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Renato Athias
Professor no Programa de Pós-graduação em Antropologia e
Coordenador do Laboratório de Antropologia Visual da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Preâmbulo
Considerações etnográficas
mostra um grupo social que faz parte de um sistema patrilinear, cada um com um nome
próprio, altamente hierarquizado e “territorializado”.
O conhecimento, o saber é específico e pertence a cada dos clãs. E são
compartilhados com outros apenas em situações determinadas. O conjunto de histórias
que compõe o entendimento cosmogônico dos grupos Baniwa e Kuripako está associado
a vários mitos envolvendo as aventuras dos heróis míticos Nhiãpiriculi e Kuwai nesse
mundo. Essas narrativas mitológicas dão base ao conhecimento e ao entendimento desses
povos. E essas narrativa são muito especificas de cada grupo, havendo sempre mudanças
na ordem dos acontecimentos dependendo daquele que está narrando.
O filme Procurando o Sono é a representação do entendimento dos Baniwa
e dos Kuripako sobre o aparecimento da noite no mundo atual. Essas histórias possuem
várias versões, e cada um dos grupos tem a sua própria, de modo que não existe uma
versão “canônica” desse mito. Assim, cada grupo procura difundir, contar, narrar
utilizando elementos que fortalecem o clã daquele que narra. Para realizar o filme, os
alunos Kuripako e Baniwa, que participaram da produção, passaram muitas horas
reunidos procurando uma versão comum, que iria ser representada e, posteriormente,
filmada. Esse aspecto é interessante, pois na versão filmada percebem-se principalmente
os elementos comuns às diversas narrativas. Em relação a esse processo de negociação
das versões para se chegar a uma narrativa comum, é interessante refletir sobre a questão
da identidade, levando-se em consideração o que Carlos Brandão já assinalava em Somos
as águas puras (1994):
Em sua obra O Saber Local (1997), Geertz nos convida a conhecer uma
abordagem antropológica singular, desde o ponto de vista dos interlocutores, insistindo
em uma questão epistemológica, isto é, na necessidade de os antropólogos “verem o
mundo” do ponto de vista dos nativos. E aí se dá uma descrição dos processos de
negociação sobre aquilo que os índios desejam mostrar aos antropólogos ou a outros
pesquisadores. Nesse sentido, o cinema indígena traz o ponto de vista dos índios que o
produzem, tal como descrito em A Sociologia do Rito, de Jean Cazeneuve (1971), e as
performances no rito.
“Procurando o sono”
Filme e Performance
Produção Antropológica
sobre a seguinte questão, já formulada por outros pesquisadores, notadamente por Jean
Rouch: Como podem os filmes fornecer informações que escapam à antropologia escrita?
Procurando uma resposta para essa pergunta, vimos que o cinema pode introduzir
a uma visão nova sobre os diferentes aspectos da pesquisa antropológica, sobretudo com
relação às possibilidades de registro e ao estudo das performances coletivas, além de
possibilitar a participação de um número maior de colaboradores, para além do mero
informante. Construir a narrativa desse filme implicou entender como os processos de
compreensão mítica são vividos pelos índios – no grupo havia muitas mulheres que, sem
dúvida nenhuma, conheciam o mito, no entanto, elas não estavam a par de muitos detalhes
que os homens possuíam. Este tipo de filme pode captar as sutilezas, e estas poderiam ser
apreendidas por todos aqueles que conheciam a narrativa negociada para a encenação. De
outra parte, a filmagem permite a preservação da integridade dos gestos, das atitudes, das
reações, e dos ritmos.
Com essa produção, ficou demonstrada também a maneira como as imagens
animadas apresentam os diversos espaços onde os animais, representados pelos atores, se
situam no mundo humano, enfatizando as relações sociais presentes nos comportamentos
animais, pois, no mundo mítico, animais e humanos utilizam-se das mesmas estratégias,
não havendo, portanto, uma “separação” entre comportamento animal e humano. Nesse
sentido, a filmagem garante o registro que a observação direta, não instrumentalizada,
dificilmente poderia realizar. E isso nos lança para a discussão sobre as vantagens da
observação fílmica comparada ao resultado de uma observação direta, o que não significa
desprezar a observação direta. Entretanto, a câmera e o trabalho com ela, juntamente com
o grupo com o qual se está trabalhando, leva-nos a uma profundidade que “um
informante” não teria como superar.
Talvez outro aspecto importante sobre o qual essa produção visual me levou a
pensar diga respeito aos desdobramentos provocados pela narrativa imagética em
questão. Esse registro visual põe em evidência uma versão consolidada de um mito que
tem muitas versões. Assim, da mesma forma que a escrita do mito se limita a uma única
versão, uma produção visual sobre um mito pode levar a um congelamento de uma única
versão.
Estas são algumas das questões suscitadas pelo filme Procurando o Sono, e que
nos pareceram ser importantes compartilhar a fim de contribuir para o debate sobre o
cinema indígena e a produção antropológica.
Referências Bibliográficas
FRANCE, Claudine de. 2000. “Antropologia Fílmica – Uma Gênese difícil, mas
promissora.” In Do filme etnográfico à antropologia fílmica. Trad. Marcius S. Freire.
Campinas, SP:, Editora universitária Unicamp.
ROUCH, Jean. 1975. The camera and man. In: HOCKINGS, PAUL (org.)
Principles of visual anthropology. The Hague: Mouton Publishers.
WORTH, Sol & ADAIR, John. 1972. Through Navajo Eyes. An Exploration in
Film Communication and Anthropology. Bloomington / London: Indiana University
Press.
WRIGHT, Robin. 1996. Aos que vão nascer: uma etnografia religiosa dos índios
Baniwa. Tese (Livre Docência). Universidade Estadual de Campinas.
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LINK https://youtu.be/2giYHf8dYFk