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CIP-Brasil.

Catalogação-na-Publicação
Câmara Brasileira do Livro, SP
A N TÔ N IO G O U V Ê A M E N D O N Ç A

M endonça, A ntônio G ouvêa, 1922-


M494c O celeste porvir: a inserção do protestantism o no Brasil / A ntônio
G ouvêa M endonça. — São Paulo: Ed. Paulinas, 1984.
(Estudos e debates latino-am ericanos; 10)
O riginalm ente apresentado com o tese de doutorado ao D epartam ento
de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências H um a­
nas da U niversidade de São Paulo.
ISBN 85-05-00216
1. Protestantism o — Brasil 2. Brasil — Condições sociais, 1859-1900
I. T ítulo. II. T ítulo: A inserção do protestantism o no Brasil.
CDD-280.40981
-309.18104
84-1618 -309.18105

índices p ara catálogo sistem ático: O CELESTE PO RVIR


1. Brasil: P rotestantism o 280.40981
2. Im pério: Brasil: Condições sociais 309.18104
3. R epública, 1889-1900: Brasil: Condições sociais 309.18105
in s e rç ã o do p ro te s ta n tis m o n o B rasil

Coleção ESTU D O S E DEBATES L A T IN O -A M ER IC A N O S

1. Política e Igreja, O scar Figueiredo Lustosa


2. M orte das cristandades e nascim ento da Igreja, P. R ichard
3. D as reduções latino-americanas às lutas indígenas atuais, Cehila
4. O s santos nôm ades e o D eus estabelecido, Luiz R oberto Benedetti
5. A vida religiosa no Brasil, Cehila
6. Cam inhos de libertação latino-americana — tom o I: Interpretação
histórico-teológica, E nrique D . Dussel
7. C aminhos de libertação latino-americana — tom o II: História, colo­
nialismo e libertação, E nrique D. Dussel*
8. Cam inhos d e libertação latino-americana — tom o III: Interpretação
ético-teológica, E nrique D. Dussel*
9. C aminhos de libertação latino-americana — tom o IV : R eflexões para
Teologia da libertação, E nrique D. Dussel*
10. O celeste porvir. A inserção do protestantism o no Brasil, A ntonio
G ouvêa M endonça
11. Religiosidade popular na teologia latino-americana, H elcion Ribeiro
12. A m ulher pobre na história da Igreja latino-americana, C EH IL A
* Em preparação

EDIÇÕES P A U LIN A S
PA R T E III

A NOVA RELIGIÃO
C A PÍT U L O I

A MENSAGEM INSTITUCIONAL

"A teologia am ericana em 1865 tinha m uita m obília na despensa


que nunca era usada na sala de visitas”*

Em 1910, Samuel Rhea Gammon, missionário do “Board of Nashville”


da “Southern Presbyterian Church”, publicou um livro com o sugestivo título
“The Evangelical Invasion of Brazil, or A Half Century of Evangelical Missions,
in The Land of Southern Cross”. O prefácio desse livro, tão interessante e
importante como uma visão retrospectiva e, ao mesmo tempo, como uma
projeção da empresa missionária americana no Brasil, R.A. Lapsley, Editòr
Superintendente de Publicações do Comitê Executivo das Missões Estrangeiras
da Igreja Presbiteriana do Sul, Richmond, Virgínia, informa que a intenção de
Gammon era, ao comemorar o cinqüentenário das missões presbiterianas no
Brasil, colocar nas mãos dos futuros missionários um manual sobre o país
que lhes servisse de guia informativo. Queria, também, estimular a vinda de
mais missionários para o Brasil dentro do “slogan” que então corria nos
círculos missionários: o Brasil está de portas abertas (“open doors”) para o
Evangelho. É claro que essas portas abertas tinham relação com a então
recente implantação do regime republicano, que abolira, na sua Constituição,
os privilégios legais da Igreja Católica e abrira as portas para outras religiões
em pé de igualdade, ao m é n ^ n o papel. Por outro lado, nesse período, isto é,
nos últimos anos do Império e primeiros da República, a Igreja Católica ainda
lutava para superar as suas próprias dificuldades com a romanização. De
modo que o “slogan” do “open doors” se justificava, tanto do lado político
como da religião socialmente dominante.
Parece, ainda, que as dúvidas sobre a necessidade de missões protestantes
em países civilizados e católicos que desembocaram nos Congressos Missioná-

* Smith, H. Shelton et alii, vol. II, p. 309.

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rios de Edimburgo (1910) e Panamá (1916) já vinham agitando os meios Esta história ilustra a ideologia do modelo civilizatório do protestantismo
missionários e Gammon se esforça por defender a tese de que o Brasil, assim americano. Mas Gammon argumenta com uma outra forma ideológica, e esta
como a América Latina toda, era pagão por causa do afastamento da Igreja essencialmente religiosa e oriunda das lutas teológicas dos avivamentos america­
Católica das “verdades e práticas básicas do Cristianismo”. Daí, era imperioso nos do século XIX: “O apóstolo Paulo não pensou assim quando levou o
que o Brasil não fosse riscado do mapa das Missões. Já tratei deste assunto Evangelho nascido na ‘pobre e obscura Judéia’ para as ricas e cultas Atenas
em outro lugar deste trabalho. Gammon, após historiar, um tanto ingênua e e Roma de seu tempo, porque a Judéia possuía o ‘Poder de Deus para a
triunfalisticamente, como era do estilo dos missionários, a “invasão evangélica Salvação’. A civilização salva um homem ou uma nação? A luz elétrica ilu m in a
da terra do Cruzeiro do Sul”, apela para que a invasão continue em “nossa os caminhos para o Reino dos Céus? Bondes e trens transportam pecadores
República Irmã do Sul”. aos Portais Eternos? À luz da Palavra de Deus e da História Sagrada, essa é
uma idéia absurda”, conclui Gammon.
O exame do relato da “invasão”, como a história Gammon, pode dar-nos
uma visão das contradições ideológicas que permeavam as missões americanas Mas Gammon entendia que a objeção mais séria era a dos que colocavam
no século XIX e que, seguramente, ao se transferirem para o Brasil e ao seriamente em questão a propriedade de missões protestantes em “terras
encontrarem aqui condições adversas se aguçaram ou assumiram formas de papistas . O Brasil era um país católico, os brasileiros possuíam uma forma
ajustamento que vieram a marcar, e mesmo descaracterizar, o protestantismo de Cristianismo. A essa objeção respondia Gammon com o ponto de vista mais
brasileiro em relação às origens históricas do Cristianismo reformado. ou menos uniforme dos missionários no Brasil e dos líderes protestantes
0 ideal civilizatório do “Destino Manifesto” estava presente no pensamento nacionais, a Igreja Católica, dominante durante quatro séculos, por seus desvios,
de Gammon. Ele reconhecia que o Brasil era um grande e admirável país, não havia conseguido cristianizar o Brasil. As classes educadas estavam quase
para que o seu progresso continuasse era necessário algo mais. Nas suas que inteiramente tomadas pelo ceticismo nas suas variadas formas e as massas
não educadas estavam absorvidas num sistema de supersticiosa idolatria que
próprias palavras: as aproximava mais dos antigos e modernos paganismos do que da religião de
“Ê necessária a religião de Jesus Cristo em sua pureza. O propósito Jesus Cristo. Essa era, inclusive, a situação dos demais países católicos.
deste livro é apresentar os atrativos, as possibilidades e as necessidades Civilização e progresso material não são indícios seguros da presença do
da terra e do povo e que o Cristianismo Evangélico pode ser ativado Reino de Deus, uma vez que a sociedade pode ser má porque os indivíduos não
com determinação e persistente esforço para ganhar a nação para são bons; é necessário que os indivíduos sejam regenerados para que a sociedade
Cristo e para seu Reino”'. seja transformada. Esta ideologia, bastante influenciada pelo individualismo, !
Vê-se que o progresso e o desenvolvimento material e social estavam pode ser entendida como essencialmente religiosa e originada da teologia dos
ideologicamente vinculados ao estabelecimento do Reino de Deus na Terra. avivamentos americanos. A ideologia do protestantismo civilizador, isto é, de
Mas G a m m o n , ao defender seu ponto de vista da necessidade de intensificar que as formas sociais e políticas que o povo americano havia descoberto e
a empresa missionária no Brasil, acaba desvelando a contradição fundamental implantado em sua própria sociedade podia ser entendida como produto da
que permeia toda a história do protestantismo no Brasil. Havia nos Estados Teologia do Puritanismo. As instituições americanas, refletindo os ideais
Unidos os que entendiam não ser o Brasil campo missionário: era civilizado puritanos de ‘ povo escolhido por Deus”, eram modelos que deviam ser
compartilhados com os outros povos a fim de que o Reino se implantasse
e era cristão, mesmo sendo “papista”.
no mundo todo.
Na mesma página 68 Gammon conta a seguinte história:
No fundo, essas ideologias só se contradizem no método. Uma queria
“Há alguns anos atrás, um missionário foi convidado para fazer uma transferir para outros povos as instituições americanas acabadas (“American
conferência nas montanhas da Virgínia. Perante um auditório em que havia way of üfe”) e a via escolhida era a educação; a outra queria começar pelas
pessoas de idades diversas, credos variados assim como de interesses religiosos bases, isto é, converter os indivíduos à fé protestante segundo o modelo dos
também múltiplos, o conferencista, à guisa de introdução, começou a falar
avivamentos na expectativa de que os indivíduos transformados em grande
sobre o progresso e a riqueza material do Brasil, suas estradas de ferro, luz
número acabariam por instituir uma nova sociedade segundo os modelos da
elétrica e bondes, bancos, comércio e suas belas e modernas cidades. Ele, o
missionário conferencista, quase caiu de costas quando um de seus ouvintes, civilização protestante. Esta ideologia escolheu a via religiosa propriamente
interrompendo-o, disse que estava certo, após ouvir a conferência, de que o dita. Em última instância, trata-se do grande sonho messiânico norte-americano
Brasil não precisava de missionários . do “Destino Manifesto” visto dos dois lados de uma mesma moeda2. No

2 Olmstead, Clifton E., 1961, p. 134.


1 Gammon, S.R., 1910, p. 68.

180 181
entanto, é curioso ver como ambas as ideologias, isto é, os dois lados da
nível do discurso religioso abstrato apresentado pelo especialista e ao nível
moeda, ocuparam seus espaços na empresa missionária americana e o resultado
foi um verdadeiro despejo (“invasão” na expressão dç Gammon), no Brasil, da reinterpretação desse discurso a fim de fazer com que ele desça ao concreto
de educadores, principalmente educadoras, e de pregadores. Isto ocorreu, e ao nível de ajustamento às necessidades existenciais imediatas. É por isso
sensivelmente, após a Guerra Civil Americana, quando problemas internos das que a religiosidade popular tende a escapar constantemente do controle dos
especialistas4. Isto não significa, a experiência o demonstra, que ambos os lados
igrejas, criados pela questão abolicionista, foram superados. Ocorreu que essa
dupla invasão, portadora de duas ideologias pelo menos sob o ponto de vista não possam conviver, embora ressentimentos e atritos estejam constantemente
metodológico, foi recebida no Brasil sob prismas diversos e provocou profundas em latência, podendo mesmo se tomarem conflituosos e excludentes conforme
demonstra Pierre Bourdieu5. A divisão leigo-especialista pode introduzir no
dissenções nos campos missionários brasileiros3.
plano interno do campo religioso a oposição de classes existente no plano da
É m in h a intenção, neste capítulo, buscar a compreensão do fenômeno sociedade global. Estudos recentes6 tendem a explicar os atritos e ressentimen­
protestante no Brasil pela via religiosa, isto é, a pregação e a aceitação da tos, efetivos ou latentes, como uma rejeição ao especialista por parte dos
mensagem protestante e seus efeitos na caracterização de nosso protestantismo. leigos. Com referência ao protestantismo, no entanto, não creio que se possa
Embora tenha estudado a educação protestante no capítulo intitulado “A falar em conflito como no caso da religião estabelecida e dominante, o
Estratégia Missionária”, a intenção foi somente a de mostrar exatamente a catolicismo. Isto é verdade, pelo menos no momento da implantação do
educação como uma das estratégias missionárias e para ressaltar o ponto de protestantismo. Mais tarde, após o reforço institucional das igrejas, é bem
apoio que as escolas paroquiais representaram para a evangelização propria­ possível que o conflito tenha se estabelecido. É por isso que prefiro ficar, na
mente dita. Fica, portanto, fora da minha preocupação, a educação protestante relação mensagem religiosa do especialista/assimilação por parte do receptor,
representada pelos grandes colégios embora ela possa, vez por outra, inciden- no plano prévio da reinterpretação.
talmente, vir à tona. Para fins de compreensão e de análise da apresentação da mensagem
protestante e da forma que assumiu essa mensagem na crença e na prática do
protestante comum brasileiro, vou tentar mostrar os dois lados da questão:
o do especialista, isto é, do missionário, e o do receptor, isto é, do homem
1. A TEOLOGIA DO PROTESTANTISMO MISSIONÁRIO rural brasileiro. Por outras palavras, o aspecto institucional da mensagem e
NO BRASIL E SUAS FORMAS DE ASSIMELAÇAO o aspecto da crença e/ou vivência religiosa propriamente dita.
Sob o ponto de vista institucional, ou do especialista, a mensagem
protestante foi dogmática-epistemológica e polêmica. O aspecto dogmático-
O transplante do protestantismo norte-americano para o Brasil trouxe no epistemológico envolveu o inculcamento da doutrina ou teologia, e sua respecti­
seu bojo as suas próprias contradições e, em contato com uma cultura já va visão do mundo e do homem; o polêmico foi o confronto com a religião
estabelecida completamente diversa, com uma estrutura social praticamente já
dominante no sentido de mostrar a sua falsidade em relação à verdade7 do
definida, teve de ajustar-se a demandas inesperadas que, pouco a pouco, foram
a ssim ila n d o e desenvolvendo elementos daquele protestantismo na direção
cristianismo protestante. A polêmica com o catolicismo foi necessária na medida
em que representava a tentativa de desalojar a religião estabelecida para abrir
dessas mesmas demandas.
espaço para a “nova religião”8.
Noutra parte deste trabalho procurei mostrar que o protestantismo pene­
Sob o ponto de vista da crença ou vivência religiosa, o protestantismo
trou no Brasil através da camada “livre e pobre” do meio rural. Essa parte
da população brasileira, no século XIX especialmente, tinha condições e se apresentou como pietista, de um lado, e milenarista-messiânico, de outro,
necessidades próprias que, ao se defrontar com uma nova mensagem religiosa, embora em ambos os aspectos com características próprias. Estas formas de
procurou selecionar nela as respostas mais adequadas a essas mesmas condi­
4 Sobre estes níveis em relação à religião camponesa, ver Wolf, Eric R., 1976, p. 136.
ções e necessidades. Essa seleção foi resposta e estímulo, tanto interno dessa
5 Bourdieu, Pierre, 1974, capítulo 2.
camada como da ordem social envolvente.
6 Benedetti, Luiz R., 1981.
Esse processo seletivo, que ocorre toda vez que se confrontam especialistas
da religião com grupos de vida rústica, dá-se em dois níveis pelo menos: ao ^ 7 A palavra “verdade” para significar a mensagem protestante em relação à fé e prática
católicas, é constante nos sermões e artigos de pregadores protestantes e assume um conteúdo
epistemológico coloridamente racionalista.
3 Exemplo, o Cisma Presbiteriano de 1903, que deu origem à Igreja Presbiteriana
8 “Nova Religião” era uma designação freqüentemente dada à mensagem protestante pelos
Independente. que a ouviam pelas primeiras vezes.

182
a) 1 — Robert R. Kalley (1809-1888)
crença, como já foi dito, resultaram da herança cúltural religiosa fortemente
inculcada e das condições sociais abrangentes. jo primeiro missionário a se estabelecer permanentemente no Brasil com
A conseqüência da relação entre a forma institucional da mensagem trabalhos religiosos, em português, foi o médico escocês Robert R. Kalley.
protestante e as respostas em formas de crenças foi uma forma de vida Missionário por conta própria, com sua esposa Sara P. Kalley, é o represen­
representada por uma ética fortemente individualista e ascética, negadora do tante legítimo do puritanismo escocês já mesclado de wesleyanismo-metodísta.
mundo e apolítica. A melhor fonte de sua teologia são os seus hinos, assim como os de sua
esposgj1muitos traduzidos e adaptados e outros escritos aqui, mas todos tendo
em vista a disseminação do protestantismo no Brasil.
a) A mensagem institucional A teologia do amor de Deus, isto é, que Deus ama a todos os homens,
embora pecadores, e quer salvar a todos, pensamento que perpassa o purita­
O núcleo central da mensagem dos missionários americanos no Brasil foi, nismo inglês e ganha grande importância no metodismo, está patente nos
sem dúvida, a teologia dos avivamentos americanos de fins do século XVIII Kalley. A correspondência a esse amor universalista de Deus, que se contrapõe
e do século XIX, que traz a marca e o colorido do wesleyanismo metodista. à doutrina clássica da predestinação calvinista, é individual e voluntária. A
No entanto, ela não deixa de trazer, também, os traços das lutas teológicas salvação assim aceita não é definitiva como no calvinismo ortodoxo, mas
que perpassaram as igrejas americanas durante todo o século XIX e que sujeita à “recaída”,12 mediante as tentações do mundo. Daí a necessidade de
produziram um certo cansaço no protestantismo’. Como já procurei demonstrar uma ética rigorosa que mantenha bem nítida a linha divisória que separa q^(
no Capítulo II, todos os movimentos filosóficos e científicos dos séculos XVIII fiel do mundo, linha esta que tem de ser robustecida num constante esforço
e XIX, como o Iluminismo e o Evolucionismo, repercutiram intensamente na de purificação e santificação.ÍRalley, (logo que chegou ao Rio de Janeiro, )
traduziu e publicou, em série, no CORREIO MERCANTIL, “O Peregrino”,
teologia protestante, assumindo formas diversas-como racionalismo, unitaria-
de João Bunyan^TjA ideologia religiosa deste famoso livro, que já foi vista
nismo e liberalismo. Por outro lado, um neoplatonismo, surgido já no seio
no capitulo II,"[reflete o universalismo do amor de Deus, o individualismo e
do antigo puritanismo inglês10, percorre persistentemente toda a história do a peregrinação do pecador, em meio a dúvidas e tentações que podem fazê-lo
pensamento teológico protestante como um ponto de descanso nas lutas teoló­ perder a rota, até a gloriosa Cidade de Deus] Por certo Kalley assumia a
gicas. A teologia dos missionários traz as marcas desse protestantismo cansado. teologia de Bunyan, caso contrário não teria tido o trabalho de traduzi-lo e
A luta no sentido de relacionar constantemente a religião com a sociedade publica-lo. Mais tarde, outra não menos famosa obra, o sugestivo quadro
civil em permanente mutação, como era o caso dos Estados Unidos antes e intitulado “Os dois caminhos”, também já mencionado neste trabalho e que,
depois da Independência, era tarefa que exigia momentos de descanso. Assim de certo modo, reproduz pictoricamente a teologia de Bunyan, veio a se tornar
diz Robert T. Handy: comum nas casas de protestantes brasileiros.
Os hinos de Kalley testemunham a sua teologia. Este salienta o tema do
“Os líderes religiosos trabalhavam pelo progresso da religião e pelo amor universalista de Deus:
melhoramento da civilização”n.
Louvemos todos ao Pai do céu,
Os momentos de descanso consistiam num salto para o mundo do alem, Porque amou aos pecadores;
deixando este mundo entregue às suas próprias preocupações. E seu Filho querido deu
Acredito que o melhor material para um levantamento da teologia dos Para sofrer as nossas doresu.
missionários é a hinódia do protestantismo brasileiro, que esta inteiramente
à nossa disposição. Mas os sermões e outras referencias tambem podem ser Este, a decisão pessoal:
usados. Vou tentar combinar esse material no sentido de fazer ressaltar
12 Graham, Richard, 1973, p. 295.
o pensamento teológico subjacente neles à luz da tradição do protestantismo
?3_ Rocha' Jojj° G - Lembranças do Passado, vol. 1, p. 47 — Kalley deu à obra o título La.
puritano. , d° Cristão; os capítulos, em número de 35, saíram entre 5 de outubro de 1856
10 de dezembro do mesmo ano, de dois em dois dias.
9 Sobre esse tema do “cansaço do protestantismo > ver Handy, Robert T., 1971, p. 33.
Kalliv HÍn°A n ° Í 2, 18??/ Este foi ° primeiro hino em português escrito por
10 Sintoma muito nítido na já comentada obra de João Bunyan, O Peregrino. lley, em 1842, quando ainda na Ilha da Madeira (nota na edição de 1975 dos Salmos e
am o s com Musicas Sacras, em que o aludido hino traz o n.° 45).
11 Handy, Robert T., 1971, p. 33.
Assim conto estou, sem ter que dizer à) 2 — Ashbel G. Simonton (1833-1867)
Se não que por mim vieste morrer,
E me convidaste a Ti recorrer; No capítulo III já tive a oportunidade de estudar a mensagem deste
pioneiro do presbiterianismo no Brasil, na tentativa de sentir o seu pensamento
Bendito Jesus, me chego a Ti/15
sobre a religião dominante. Agora, cabe a tarefa de buscar os contornos do
Este sobre o temor da “recaída”, escrito por Sarah P. Kalley: seu pensamento teológico, verdadeira matriz do presbiterianismo. Nesta tarefa
vou buscar, primeiro, as origens religiosas de Simonton e, depois, voltar à
Ensina-me a fugir análise da coletânea de Sermões que dele possuímos, pregados no Rio de
Do lobo Satanás, Janeiro entre 1864 e 186720. O Editor da Coletânea, Rev. Alexander L.
E no caminho prosseguir Blackford, cunhado de Simonton e continuador imediato da missão presbite­
Da Santidade e paz!'6 riana no Brasil, tendo aqui chegado em 1860, sete anos antes da morte do
pioneiro, dá no prefácio alguns informes sobre o autor e sua obra.
Sobre a vigilância dos atos da vida, este hino de Sarah P. Kalley Simonton fora, no seu batizado, consagrado por seus pais ao ministério
Quando para o mal tentados, vê-nos Jesus! sagrado e o “instruíram cuidadosamente nas Sagradas Letras”. Em 1852,
Simonton concluiu curso no Colégio de Princeton, Nova Jersey, “uma das
Se ccúrmos nos pecados, vê-nos Jesus!
melhores instituições de seu gênero nos Estados Unidos”. Encetou estudos
Ele nunca está distante, de direito, mas logo mudou de rumo. Assim narra Blackford as razões dessa
Mas com coração amante, mudança:
Nos contempla vigilante, vê-nos Jesus!'7 “Logo, porém, depois de começar o estudo de direito, foi convertido
Em suma o pensamento teológico de Kalley, por que não dizer dos a Cristo. O seu coração, que por muitos anos, resistira aos convites
A Kalley reflete o vohTntarismo individualista voltado para a negaçao do mundo do Salvador e aos impulsos do Espírito Santo, rendeu-se, afinal, humil­
S * P I X «sim expressa esse pensamento num hmo escnto em 1863. de e dócil. A mudança foi radical, e dali em diante a sua vida teve
nova mira em vista. Reconheceu por suas próprias as obrigações dos
Ando errante no deserto votos feitos por seus pais a seu batismo (sic), e não pode esquivar-se
Peregrino, triste, aqui; ao cumprimento dos deveres que importaram-lhe,yi'.
Fraco, e com o passo incerto, Simonton formou-se em teologia no Seminário de Princeton, em 1858.
Olho, Cristo, para ti! Recebeu ordens como ministro da Igreja Presbiteriana, em 1859. Chegou ao
Mas nos céus os fatigados Rio de Janeiro, como missionário, em agosto do mesmo ano, e morreu em
Têm descanso! têm descanso! São Paulo, em 1867, provavelmente de febre amarela. Está sepultado no
Livramento dos pecados! Cemitério do Redentor (Cemitério dos Protestantes), à Av. Dr. Arnaldo, ao
lado de outro pioneiro do protestantismo no Brasil, o ex-padre Rev. José
Sim há paz ali!'* Manuel da Conceição.
Kallev não estava ligado a nenhuma missão, não representava, portanto, Informa ainda, Blackford, que “o tratado sobre A MORTE E O FUTURO

s: »Tos : «_ .-
- Ä S NSo estava mu*o ESTADO DOS JUSTOS não foi escrito pelo Sr. Simonton. É extraído de

ä ä vários artigos publicados em 1868, no 4.° volume da IMPRENSA EVANGÉ­


LICA22, da qual ele foi por alguns anos o principal redator. A importância
do assunto de que se trata nestas páginas e o precioso testemunho
igreja, “lato sensu” .
do Sr. Simonton nelas citado induziram o editor a inseri-la neste volume”.
15 Salmos e Hinos, n.° 39, edição 1899 (adaptação de Kalley). Naturalmente, Blackford está dizendo que a redação final, como aparece na
16 Salmos e Hinos, edição de1899,n.° 109.
20 Simonton, A.G., 1869.
17 Salmos e Hinos, edição de1899,n.° 188. 21 Blackford, A.L., prefácio a Simonton, 1869.
18 Salmos e Hinos, edição de1899,n.° 62. 22 Semanário fundado por Simonton, em 1864, que circulou durante vinte e oito anos
(até 1892).
19 Graham, R., 1973, p. 297.
187
186
Coletânea, não é de Simonton, mas reproduz o seu pensamento, exposto em como Charles Hodge (1797-1878), que ensinava em Princeton a centralidade
artigos na IMPRENSA EVANGÉLICA. da Teologia do Pacto, assim como a inspiração verbal da Bíblia e ao mesmo
Realmente, a afirmativa de Blackford sobre a “importância do assunto” tempo uma visão mais liberal nesta questão, ao admitir a possibüidade de
e “o precioso testemunho de que se trata nestas páginas” põe em relevo o erros por parte dos escritores sagrados. Insistia, também, na salvação de todos
pensamento de Simonton nesse seu trabalho, que aparece às páginas 183 e que morriam na infância. Hodge contribuiu para abrandar o espírito polêmico
da “Velha Escola”24.
seguintes da Coletânea. Já examinei esse trabalho nas suas alusões à Igreja
Católica (Cap. III). Apesar de Simonton ter estudado em Princeton, então reduto do
Este prefácio de Blackford, parente e companheiro de trabalho de pensamento presbiteriano conservador do Norte25, ele apresenta, como já foi
Simonton, é importante como testemunho do tipo de conversão do pioneiro, dito, uma certa ambigüidade de pensamento e de ação refletindo a situação de
assim como de seu pensamento; a própria seleção de sermões feita por tensão vigente nos círculos presbiterianos até bem depois de ter ele deixado
Blackford pode indicar que, com certeza, conhecendo ele muito bem o modo o Seminário24. Por exemplo, em Princeton o pensamento conservador defendia
de pensar “simontoniano”, é o que melhor representa esse mesmo modo de a chamada teologia da Igreja Espiritual, isto é, que a Igreja nada tem a ver
com os negócios humanos, que são objeto da política (‘Dai a César o que é
pensar.
de César e a Deus o que é de Deus’). Simonton aderiu à teologia da Igreja
Mas é necessário, antes de encetar a análise do pensamento de Simonton, Espiritual, o que se infere pelo seguinte registro em seu Diário:
buscar mais alguns informes sobre suas origens. Os anos de formação de
Simonton foram o período de lutas políticas e econômicas que antecederam “Um jovem, que tem assistido aos cultos, parece ávido da verdade e
a Guerra Civil e que se refletiram em tensões dentro dos círculos presbiterianos. da importância de uma religião espiritual”27.
Principalmente por causa da questão escravocrata, os presbiterianos se Anteriormente ele já registrara o seguinte:
dividiram em 1837, formando a Igreja do Sul e a Igreja do Norte, à semelhança
do que ocorreu com a maioria das denominações americanas. Embora Simonton “O mundo apela para o que é sensual. . . Para viver é necessário ele­
’ pertencesse ao “-Board” de Nova Iorque, mantido pela Igreja do Norte, menos var-se a outra atmosfera, absorvendo todo o poder de um mundo des­
conservadora, suas tendências teológicas, seguindo sua experiência de con­ conhecido da vista, e de Jesus, o Salvador invisível”28.
versão à maneira metodista, vão mostrar uma certa ambigüidade quando se
tem em vista o clima do pensamento do protestantismo americano do seu Simonton está preocupado com um outro mundo, distante das preocupa­
tempo, já sob a intensa influência do metodismo. A partir de 1830 os pres­ ções humanas. O “sensual” para ele é o oposto do mundo platônico para o
qual a Igreja devia transportar-se.
biterianos já se achavam teologicamente divididos. A linha mais ortodoxa
da tradição escocesa-irlandesa dos puritanos da Nova Inglaterra era represen­ A teologia da Igreja Espiritual constituía-se num esforço para contornar
tada pela chamada “Velha Escola” (Old School Presbyterians), e a linha de o agudo problema da escravidão, no sentido de afastá-lo da Igreja para o da
tendência avivalista nò espírito metodista pela “Nova Escola” (New School política. Hodge, o já citado teólogo de Princeton, afirmava não ter encontrado,
Presbyterians). Havia rachaduras mais profundas na teologia dos presbiteria- nas Escrituras, nenhuma condenação da escravidão assim como nenhuma evi­
! nos, como a negação do pecado original por Albert Barnes, teologo da Nova dência de que Cristo ou os apóstolos tivessem clamado contra ela. Esperava,
Escola”, para quem “o pecador não era responsável pela transgressão de no entanto, que o progressivo desenvolvimento do negro trouxesse de modo
Adão”. *Lyman Beecher, presidente do Lane Seminary, também foi acusado natural o fim da servidão29. Vê-se que havia uma preocupação por parte da
pelas autoridades eclesiásticas, em 1834, de heresia em relação ao pecado ori­ mentalidade conservadora de sair do impasse sem grandes arranhões. Parece,
ginal23. A negação do pecado original era necessária para que pudesse ser por aí, que a teologia da Igreja Espiritual era bastante adequada para um i
ressaltada a capacidade humana em todos os sentidos e se constituía na avenida prudente distanciamento da Igreja dos graves problemas da sociedade abran­
pela qual os presbiterianos podiam caminhar para a teologia dos avivamentos. gente.
Mas era uma rachadura imensa na ortodoxia calvinista. Segundo Clifton E.
Olmstead, a menor causa de tensão entre os presbiterianos era a questão es­ ■. 24. Ibl(jem> PP; 79/80. Não deixa de ser significativo o fato de que Simonton deve ter
aluno de Charles Hodge pelo que ele diz em seu Diário, dia 11/4/1860.
cravista, embora a “Nova Escola” fosse mais agressivamente oposta à escra­ 25 Reily, A.D., 1977, p. 18.
vidão do que a “Velha Escola”. Com o passar do tempo, a rigidez da “Velha 26 Mclntire, Robert L„ 1969, p. 4/2.
Escola” foi diminuindo através de formas compromissadas de pensamento, 27 Simonton, Ashbel G„ 1962, pp. 79/80. O grifo é meu.
28 Ibidem, p. 77, registro de 14/2/6/1861. Os grifos são meus.
23 Olmstead, Clifton E., 1961, p. 79 — Sobre essas polêmicas entre os presbiterianos,
ver também Elsbree, Oliver W., 1928, pp. 25/26. 29 Olmstead, Clifton E., 1961, p. 95.

188 189
Simonton não assume inteiramente, porém, o ensino de Hodge na "John chama-me de velho antiquado, que defendo doutrinas velhas e
eqüidistância em relação à escravidão. Surpreende-nos vê-lo colocar-se em gastas que estão na iminência de serem ultrapassadas. Há muita
posição contrária, pelo registro que ele fez no seu Diário, em 28/9/1859: verdade nesses ataques. Eu nao sustento que mudança é progresso,
revolução, reforma"3*.
“Tive uma discussão com S., que muito lamento. Foi uma discussão
A preferência de Simonton pela teologia da Igreja Espiritual e sua carreira
sobre escravos. Ele é desarrazoadamente pró-escravatura, e eu,
ligada institucionalmente à “Velha Escola”, parecem confirmar a tendência
opondo-me à idéia, só consegui prejudicar a minha posição, perdendo
conservadora registrada precocemente em seu Diário. Seu antiescravismo mais
influência sobre ele”30. coerente com a Nova Escola” pode ser levado à conta de seus sentimentos
Em 19/7/1861, comentando os primeiros eventos da Guerra Civil em humanos, mas não a de uma rigorosa coerência teológica. Daí, aquela ambigüi­
seu país registra Simonton, de passagem: dade de pensamento que parece situar Simonton como que suspenso entre o
céu e a terra.
"Outra esperança que não parece grande demais para ser alimentada é a
do ‘irúcio do fim’ da escravidão”31 O que parece explicar essa ambigüidade de Simonton é a sua conversão
a maneira metodista. Simonton formou-se, repetimos, num clima de grandes
Quando de sua estada nos Estados Unidos, entre 1862 e 1863, em plena
controvérsias teológicas, especialmente entre os presbiterianos. Como diz Ro­
Guerra Civil, registrou Simonton em seu Diário, em 3/1/1863:
bert L. Mclntire, “é freqüente os períodos de controvérsias teológicas condu­
“Não antecipo paz nem sossego enquanto continuar o presente regime zirem a despertamentos espirituais”35. Essas controvérsias teológicas, A Guerra
de escravidão. Ê um sistema que clama por justiça. Cedo ou tarde Civil e os “avivamentos”, opina ainda Robert Mclntire, influíram na história
o julgamento virá. Não duvidei nunca, desde o princípio, de que a das missões no Brasil através de Ashbel Green Simonton. Parece-me, portan­
controvérsia de Deus conosco, como nação, diz respeito à escravatura. to, que ele trazia a marca do conservadorismo dos puritanos calvinistas e
Deve haver algum modo de se promover a abolição”32. mais a influência religiosa dos avivamentos.
A onda do “avivamento” da década de 50 chegou a Harrisburg, onde
Simonton escrevia isto dois dias após o Presidente Lincoln ter proclamado Simonton se encontrava, em 1855, e atingiu as igrejas Metodista, Luterana e
a libertação dos escravos nos estados rebeldes. Desse modo, vê-se que Simonton, Presbiteriana, da qual ele era membro. Havia reuniões todas as noites, e a
adepto de uma escola teológica que parecia adequada para justificar, ou pelo religião passou a ser assunto predominante na cidade. Simonton, que estudava
menos eludir o problema da escravidão, firma-se na linha oposta, isto é, da direito na ocasião, aceitou o apelo da última noite de reuniões e registrou no
“Nova Escola”. No entanto, toda a carreira ministerial de Simonton está seu Diário, em 10/3/1855:
ligada institucionalmente à “Velha Escola”. Em 1855 foi recebido como
membro da Igreja Presbiteriana Inglesa de Harrisburg, Pensilvânia, ligada à "Já vivi o suficiente para refletir que os assuntos da eternidade são
“Nova Escola”. Mas quando esta Igreja foi destruída pela fogo, Simonton e muito mais importantes do que os temporais, que a eternidade é mais
outros membros dela fundaram, em 1858, a Igreja Presbiteriana de Harrisburg, longa que o tempo. . . a alma imortal tem que ser satisfeita. Honras
jurisdicionada ao Presbitério de Carlisle, ligado a “Velha Escola”. Simonton, e riquezas são suprema loucura”36.
em abril de 1859, recebeu ordens sacras desse mesmo Presbitério. Quando Esse registro da decisão de Simonton confirma sua adesão à Igreja Espi­
em 1865, ele ajudou a fundar o primeiro presbitério no Brasil, o Presbitério ritual. Insisto neste ponto porque essa doutrina, colorida pelo individualismo
do Rio de Janeiro, base da relativa autonomia da Igreja Presbiteriana no e demais ênfases metodistas e pietistas, irá condicionar o pensamento protes­
País, foi ele filiado ao Sínodo de Baltimore, também da “Velha Escola”33. tante no Brasil ao lado do conservantismo puritano. Ê bastante significativo o
Como bem diz Robert L. Mclntire, as tendências teológicas de Simonton fato de que O Peregrino” de Bunyan tenha sido, à semelhança do que ocorrera \
só podem ser inferidas no seu Diário, uma vez que jamais ele se declara desta ou com Kalley, um dos primeiros textos que Simonton usou no Brasil para o
daquela Escola. Assim, em 21/2/1855, antes de entrar para o seminário, ele ensino religioso. Em 28/4/1860 ele registra èm seu DIÁRIO:
registrou: Sábado passado, dia 22, dirigi uma Escola Dominical em casa. Foi
o meu primeiro trabalho em português. Os filhos de Ewbank estiveram
30 Simonton, Diário, 1962, p. 55.
31 Ibidem, p. 79. 34 Citado por Mclntire, ibidem, pp. 4/3. John era irmão de Simonton.
32 Ibidem, p. 92. 35 Ibidem, pp. 4/4.
36 Citado por Mclntire, Robert L., 1959, p. 415.
33 Mclntire, Robert L., 1959, pp. 4/3.

190 191
todos presentes, além de Amália e Mariquinhas Knaack. A Bíblia, um da verdadeira religião para Simonton, o que ele desenvolve com brilho sem
catecismo de história sagrada e “O Peregrino” de Bunyan foram os dúvida, nos seus sermões.
compêndios usados”37. A crença nos dois mundos pressupõe uma fé interior e uma ética que
Simonton mostra uma grande preocupação com a religião interior, com a estabelece as normas para se viver no provisório com os olhos no permanente.
vida íntima, pessoal, e por esse prisma, critica o “deísmo” dos estrangeiros Essa ética, ao afirmar o permanente nega o provisório, não pode se constituir
protestantes no Brasil, principalmente ingleses e americanos com os quais ele só de regras exteriores, mas deve ser o resultado de uma disposição interior e
teve maior contato, assim como o “sensualismo” da religião dos naturais da pessoal. Não depende dos recursos humanos, mas decorre da graça divina. No
terra. Se o “deísmo” representava um racionalismo em que o distanciamento e seu sermão “Entrai pela Porta Estreita”43, que pelo título se sente a influência
a indiferença do sobrenatural valorizavam o terreno, o “sensualismo”, embora da “Jornada do Peregrino”44 e do clima do famoso quadro “Os Dois Caminhos”
não seesquecesse do sobrenatural, trazia-o familiarmente para o mundo dos que surgiu não se sabe bem quando, Simonton vai delineando sua teologia que,
homens. De qualquer modo o espiritual, o sobrenatural, em cuja supremacia aqui e ali, já se esboçara no seu DIÁRIO. As citações abaixo mostram como ele
encaminha suas idéias no citado sermão:
Simonton acreditava, acaba sendo obscurecido pelos negócios humanos. Há
três registros no seu DIÁRIO que mostram essas tendências: • “Para ser cristão é não só necessário ser batizado, mas ê preciso
estar arrependido e contrito de coração” (p. 15).
“ .. . quando olho para dentro, a fim de avaliar o progresso que tenho
feito a caminho do céu, no cultivo das graças espirituais, na mortifi­ • “A verdadeira religião exige um culto não fingido e falso, mas
cação do pecado e no desenvolvimento da aptidão para o trabalho, nascido de um espírito atribulado e sincero” (p. 16).
tenho profundas razões para dúvidas e acabrunhamentos”33. • “A verdadeira religião é uma religião que aperta” (p. 18).
“O que me afeta mais é que todos os estrangeiros que vivem aqui, • “A vida do cristão é uma carreira. O cristão nunca pode encostar
protestantes nominais, rejeitam o Evangelho e descrêem dele. Deus suas armas para descansar” (p. 23).
existe e sua lei moral deve ser obedecida como for possível, mas a • “Não se pode gozar a amizade de Cristo e do Mundo” (p. 24).
divindade de Cristo, o sacrifício e a salvação continuam a ser negados
universalmente. Não há esperanças para o Brasil, com os estrangeiros Para Simonton, uma verdadeira religião tem que atender aos anseios
que ora se misturam aos seus habitantes. Uma crença superficial, irre- humanos diante das realidades existenciais. No sermão “A MORTE E O
fletida, desarrazoada, os afeta a todos”37. FUTURO ESTADO DOS JUSTOS”45 ele afirma:
“O mundo apela para o que é sensual”40. “Um outro jovem, que tem “Só pode ter jus de chamar-se religião verdadeira, divina e católica,
assistido aos cultos, parece ávido e persuadido da verdade e da impor­ aquela que é adequada a estas circunstâncias invariáveis do ente ao
tância de uma religião espiritual”4'. qual ela se dirige, que supre as necessidades que ele sente, ministra-
Bem mais tarde, após passar pela crítica experiência da perda de sua lhe o alívio de que carece, satisfaz as suas aspirações, dá-lhe a segu­
mulher, aparentemente vítima de complicações puerperais, registra Simonton: rança de uma vida feliz no porvir, tão duradoura como a imortalidade”
(p. 197).
“O céu é o lar dos crentes. Tudo o que é mais caro se encontra lá:
A valorização da vida futura permite superar os sofrimentos do presente
pai, mãe, irmã e esposa. Jesus está lá”42.
e dá consolo diante da morte. Para Simonton, esta é a função da verdadeira
Parece, portanto, que o pensamento de Simonton era firmemente espiri­ religião.
tualista no sentido mais rigoroso do termo, da duplicação perfeita do mundo, Não vou abrir um espaço especial para o companheiro e sucessor de
^ em que um é mau e provisório e o outro é bom e permanente. Era esse o leme Simonton, que foi A. L. Blackord. No prefácio que ele escreveu para o livro
de sermões revela-se a sua identificação com o pensamento do pioneiro. Os
37 Diário, 1962, p. 68. historiadores concordam que Blackford não foi um homem de pensamento
38 Simonton, Diário, 11/4/1860, p. 67. vigoroso, mas sim um grande trabalhador.
39 Ibidem, 14/2/1861, p. 77.
40 Ibidem. 43 Simonton, A.G., 1869.
41 Ibidem, 25/11/1861, p. 79. Pelo contexto parece estar referindo-se Simonton a um 44 The Pilgrim’s Progress from this world to that which is to come, título original da
jovem brasileiro. obra de John Banyan.

42 Simonton, ibidem, 31/7/1864, p. 107. 45 Simonton, A.G., 1869.

192 7 - Celeste porvir


193
No entanto, se Simonton deixou sermões e poesias, que aparecem às Este outro:
vezes no fecho dos sermões, Blackford deixou um hino que não destoa da
lin h a geral de Kalley e Simonton, da teologia dos dois mundos, mas que Oh! que terra! que morada
acrescenta um forte acento pietista46: Gloriosa além nos céus!
“Ao Céu eu vou, ao Céu, ao Céu eu vou; Lá sorrindo-se enlevada
Eu me firmo em ti, Jesus! Minh’alma verá a Deus!48
Já salvo sou, pois me salvou O combate pela vida moral pessoal está bem exemplificado no hino inti­
Tua morte sobre a cruz! (coro) tulado “O Cristão como cidadão”:
Teu puro sangue carmezim
Da culpa vil livrou-me aqui, “Quero mesmo aprender a me vencer,
Ventura gozarei ali; A tudo dar de mão forte atrativo,
Viverei com meu Jesus!” (2.a estrofe) A ver se dos sentidos sobrevivo
Ao combate proposto até morrer”:49

^ O sermão “Por que ignoramos a Eternidade”50, ao lado de conceitos


a) 3 — José Manuel da Conceição
polêmicos contra a Igreja Católica, fornece os traços da teologia de Conceição.
A religião individual e interior, a recompensa no além pelo que o homem
José Manuel da Conceição, o primeiro pastor protestante brasileiro, após fizer nesta vida, a enfase no valor da vida futura localizada e reduplicativa,
abandonar a Igreja Católica e passar para a Presbiteriana, dedicou-se mais à em melhores condições, da vida presente, indicam identificação com a teologia
polêmica. Não foi pastor de nenhuma igreja mas consagrou-se a “corrigir” dos missionários.
o que anteriormente havia ensinado aos seus antigos paroquianos. Seu com­
pêndio de teologia era a Bíblia e seus princípios os da Reforma. Sua perso­ A parte final do sermão, patética, mostra grande ênfase na Pátria Celeste.
nalidade nunca foi bem compreendida, mesmo pelos missionários que com O homem é estrangeiro no mundo e anseia pela sua verdadeira pátria, onde
ele conviveram, mas é certo que Conceição, ao lado dos conhecimentos da vai encontrar seus parentes e amigos que já morreram:
história da Reforma que certamente adquiriu na biblioteca de Langaard, e “Consola-te, ó minha alma, Deus tem preparado o teu sossego, e
que constituem a linha divisória entre o protestantismo e o catolicismo, parece conservado a tua Pátria onde acharás por fim o que tinhas perdido
ter assimilado bem o pensamento dos missionários. aqui. Não estarás sozinho, os caros já te esperam. Eles se acercam
Conceição escreveu artigos, sermões e hinos. Artigos e sermões estão de ti com as palmas da vitória, que deves ganhar aqui. Levanta-te
nos jornais protestantes da época, “Imprensa Evangélica” e “Púlpito Evan­ minha alma! Termina este combate. Eleva-te pela santa palavra de
gélico”. Dos hinos que escreveu um está nos Salmos e Hinos (n. 448). Vicente Jesus e por sua santa vontade. Por meio dele somente te poderás
Themudo Lessa, na sua biografia de Conceição47, transcreve três hinos dele, tomar cidadão de uma vida mais bela, e participante de um futuro
sendo um o já mencionado. Este hino, além da linguagem característica do bem-aventurado/”5'
pietismo e do individualismo, traz a marca indelével da teologia dos dois
mundos: Conceição, neste sermão, no seu ardor religioso, aproxima-se perigosa­
mente dos limites que a ortodoxia protestante poderia permitir. O céu de
Se o Soberano Monarca Conceição é quase material, é a revelação de um filme fotográfico em que a
Dos homens na multidão vida cotidiana é meramente o negativo. Suas palavras lembram o célebre
Me discerne, se me marca sermão de Vieira, pregado em Lisboa, em 1644, sobre “As Glórias de Santa
Na palma de sua mão: Teresa”: o amor de Jesus por Madalena é terreno, mas por Santa Teresa é
Que m’importa a mim, ó mundo! celestial. O que estaria por trás destas idéias de Conceição? Sua tradição cató­
Se sempre me desconheces! lica que, por sua vez, trairia um certo odor de islamismo? É temerário fazer
Tu, com teu olhar profundo,
Tu, Jesus, Tu me conheces. 48 Lessa, V .Í., 1935, p. 91.
49 Ibidem, p. 92.
46 Salmos e Hinos, edição de 1899, n.° 471, (Escrito em 1888).
50 In Lessa, V.T., 1935, Apêndice.
47 Lessa, V.T., 1935. 51 Lessa, V.T., 1935, Apêndice, p. 88.

194
195
a firm a tiv a s, mas o certo é que o pensamento de Conceição parece ter acom­ e quatro de W. E. Entzminger54. Alguns desses cânticos, especialmente os
panhado a crença protestante no Brasil, ao menos ao nível do subliminar. deste último autor, foram incluídos tardiamente nos SALMOS E HINOS,
Os biógrafos de Conceição, principalmente Boanerges Ribeiro52, entendem isto é, no terceiro volume da coleção que estou usando, editado em Londres,*
que o pensamento e ação desse homem de comportamento estranho, que em 1916. Os dois primeiros foram editados em Edimburgo, em 1899. É pro­
causou perplexidade aos seus amigos missionários, não estava preocupado em vável, no entanto, que aqueles cânticos já circulassem nas congregações a
protestantizar mas em reformar a religião na direção de uma nova compreen­ ponto de justificar sua inclusão posterior. Se isto não ocorreu, prova-se pelo
são do cristianismo a partir do conhecimento da Bíblia. Daí, escrever ele na menos que eles não destoavam da linha doutrinária dos presbiterianos, prin­
sua “Sentença de Excomunhão e Resposta”, publicada em maio de 1867: cipais usuários da coleção, e, muito menos dos congregacionais, proprietários-
editores até hoje dos SALMOS E HINOS.
“Quando a Bíblia correr pelas mãos de todos os povos, então se hão
De fato, o exame desses cânticos mostra desde logo a uniformidade de
de realizar as promessas do Salvador, que a religião dele prevale­
pensamento que há entre eles e os de Kalley, de Blackford, Conceição e de
cerá em toda a Terra. Manifestar-se-á então a universalidade da sua
outros da mesma tradição denominacional e teológica e, para isso, alguns
Igreja“53. exemplos são suficientes.
E n fim , o pensamento de Conceição, por não ter passado pelo acade- Este de Salomão L. Ginsburg sobre conversão pessoal e recusa do
mismo da tradição protestante e por ter vindo diretamente do catolicismo, mundo:
é muito simples e, se visto com atenção, parece indicar a crença do protestante Todo, ó Cristo, a ti entrego,
comum brasileiro que tem, como pano de fundo, a própria cultura religiosa Corpo e alma eis-me aqui!
brasileira. Voltarei a este tema mais adiante. Todo o mundo eu renego,
Digna-te aceitar-me a mim!55

a) 4 __ A teologia dos metodistas e batistas Este sobre o milênio:


Cristo em breve do céu virá,
Este trabalho, como já foi estabelecido desde o início, preocupa-se com Ele prometeu e não tardará!
as denominações protestantes que mais profundamente conseguiram penetrar Que alegria e glória será,
na sociedade brasileira. Gira mais ele, portanto, em torno dos congregacionais, Quando Jesus regressar!55
presbiterianos, metodistas e batistas, embora o seu centro esteja nos presbi­
terianos que, historicamente, ocuparam o maior espaço no período de implan­ De W. E. Entzminger basta mencionar um:
tação do protestantismo no Brasil, isto é, a segunda metade do século XIX. Em breve a vida vou findar, aqui não mais eu cantarei
Além disso, pela minha formação, é a denominação com a qual tenho maior Mas eu então irei morar lá, na presença do meu Rei.57
familiaridade. Por isso, já tentei fazer um levantamento do pensamento teoló­
gico dos congregacionais e presbiterianos naquele período, ramos da mesma Os metodistas contribuíram com nove cânticos para os SALMOS E
família reformada. Resta ver agora, alguma coisa dos metodistas e batistas. HINOS. Justus H. Nelson escreveu sete e J. J. Ransom dois. Destes nove
Embora esteja eu reservando a análise do que é, ao meu ver, a principal só dois podem ser considerados tardios. Os demais aparecem no segundo
volume, editado em 1899.
fonte de explicitação da fé protestante no Brasil, o seu livro comum de cân­
ticos religiosos nas primeiras décadas (SALMOS E HINOS) para outras partes „ Dos sete ^ nos de Justus H. Nelson,cincoversam sobre o tema do
deste capítulo, terei de antecipar alguma coisa ao tratar do pensamento dos milênio e sobre o motivo pietista. Todoseles são dosmaiscantados pelos
metodistas e batistas. É que nos SALMOS E HINOS encontram-se contri­ protestantes, como será mostrado mais adiante.
buições significativas de missionários dessas denominações, o que expressa Sobre o milênio há dois muito significativos e de boa qualidade poética
uma indiferenciação teológica nuclear. em relação à maioria dos que constam do tradicional hinário:
Nos SALMOS E HINOS aparecem quatorze hinos de autores batistas,
54 Braga, Henriqueta R.F., 1961, p. 195.
sendo dez de Salomão L. Ginsburg, um judeu-cristão, missionário no Brasü,
55 Salmos e Hinos, 3.° vol. 1916, n.° 534.
52 Ribeiro, Boanerges, 1950. 56 Salmos e Hinos, 3.° vol., 1916, n.° 537.

53 Lessa, V.T., 1935, p. 33. 57 Ibidem, n.° 572.

196 197
Na terra abençoada estou; O Escolhido dos milhares para mim;
Por Beulá peregrino vou; Dos vales é o Lírio;
Delícias abundantes são; Ê o forte mediador,
E só dos céus saudades dão (l.a estrofe) Que me purifica e guarda para Si;
Coro — Ô bela terra de amor! Consolador amado,
Do alto monte encantador Meu protetor do mal,
Olhando vejo além do mar Solicitude minha toma a Si;
(Que em breve hei de atravessar) Dos vales é o Lírio,
a praia áurea, eternal, A Estrela da Manhã,
Querido lar celestial5t. O Escolhido dos milhares para mim.60

Este cântico desenvolve o tema do capítulo XX de “O PEREGRINO”, O outro metodista, J. J. Ransom, escreveu dois hinos pietistas:
de Bunyan, que por sua vez, é uma paráfrase dos textos bíblicos de Cânticos Eu te quero, eu te quero,
de Salomão 2,10-12 e Isaías 62,4-12, que falam de uma restauração total da Meu Jesus e meu Senhor,
natureza à semelhança do surgir rápido da primavera na Palestina, que anun­ Sê meu guarda, vem guiar-me
cia e já começa a mostrar o Reino Messiânico. São as palavras de Bunyan: Nesta vida de horror.
“Depois das agradáveis práticas que acabo de Livra-me dos meus pecados,
referir, vi, em meu sonho, que os peregrinos Dá-me puro coração,
tinham já passado a terra encantada, e estavam Pois seguindo-te obediente,
à entrada do país de Beulá’’. Provarei a salvação6'
Por meus delitos expirou
Este outro segue a mesma linha de inspiração: Jesus, a vida e luz;
Da linda pátria estou bem longe; O meu castigo ele esgotou
Cansado estou; Na ensanguentada cruz67.
Eu tenho de Jesus saudade;
ô ! quando é que vou? O primeiro mostra, à semelhança do último de Justus H. Nelson, aquela
Passarinhos, belas flores hnguagem de intimidade com Deus típica do pietismo, e o segundo repisa ^
Querem m’encantar: o tema da cruz e do sacrifício cruento. Este último é bastante cantado pelos
protestantes.
6 ! terrestres esplendores!
De longe enxergo o lar.59 Quanto aos metodistas, congregacionais e presbiterianos, não é neces­
sário ir mais além. Ressalvadas certas ênfases, especialmente a disciplina e
O tema de “O PEREGRINO” continua no alerta ao fiel contra as atra­
o sistema de governo eclesiástico, que acompanharam as tradições denomi-
ções mundanas que, por mais deslumbrantes que sejam, não devem impedi-lo
nacionais, pode-se dizer que a teologia era mais ou menos uniforme em torno
de manter os seus olhos fitos num além melhor. A jornada do peregrino esta
cheia de tentações e embaraços. É da experiência do autor deste trabalho o do nucleo da teologia dos avivamentos americanos, que por sua vez, repro­
quanto estes hinos são cantados pelos protestantes, e que candentes emoções duzia a tradição metodista.
favorecem nas congregações, principalmente sertanejas. Os batistas, incluídos no mesmo nucleo teológico dosdemais,merecerão
Mas Justus H. Nelson escreveu também um outro hino, muito cantado, na seção seguinte algumas indicações sobre suas peculiaridadesque, embora
que exprime intenso pietismo: não os diferenciem teologicamente, dão-lhes um colorido típico de grupo quase
separado.
Achei um bom Amigo,
Jesus, o Salvador, 60 Salmos e Hinos, edição de 1899, 2.° vol., n.° 402.
61 Salmos e Hinos, Edição de 1899, 2.° vol., n.° 362.
58 Salmos e Hinos, 2.° vol., 1899, n.° 401.
62 Ibidem, n.° 363.
59 Ibidem, n.° 403.

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198
a) 5 — Unidade teológica dos protestantes no Brasil Unidos, talvez ciosas de suas tradições peculiares, passaram a organizar suas
próprias sociedades missionárias e, pelo menos, ao se transferirem para a
Sob o ponto de vista formal, congregacionais, presbiterianos, metodistas América Latina, conservaram suas formas eclesiais. Assim, os presbiterianos
e batistas, transplantaram para o Brasil o protestantismo típico norte-ameri­ com a sua democracia representativa e autoridade conciliar, os congregacionais
cano. As denominações vieram e se implantaram com suas características for­ e os batistas com a sua democracia direta e autonomia das congregações locais
mais próprias, isto é, com suas tradições de governo eclesiástico necessárias e os metodistas com o seu governo episcopal. Mas a relativa uniformidade
à estruturação de seus próprios trabalhos no sentido de implantação e esforço teológica dos “avivamentos” e da “era metodista” do protestantismo ameri­
de propagação. Todas elas mantiveram o princípio geral de associação volun­ cano foi mantida.
tária, e nem podia ser diferente. Nos Estados Unidos, a índole dos coloni­ Se em outras áreas missionárias a multiplicidade de estranhas religiões
zadores, contrária à pressão religiosa da Igreja Oficial, com seus sistemas tinha de ser vencida, na América Latina o inimigo a ser enfrentado era a
paroquial e compulsório, partira para o voluntarismo; no Brasil, os missio­ presença vasta de um ramo do cristianismo implantado pelo conquistador e
nários encontraram uma igreja estabelecida e oficial exatamente no mesmo colonizador, e solidamente instalado em todos os segmentos da sociedade, e,
modelo da Igreja da Inglaterra. Por princípio ou pela conjuntura, o caminho ainda, intimamente ligado ao poder político. Era o velho e conhecido inimigo
teve que ser o mesmo. da Reforma que importava vencer novamente. Contra um inimigo poderoso
De certo modo, e guardadas as circunstâncias próprias de uma cultura nada melhor que uma coligação. Esta foi mais uma razão para a unidade de
completamente diferente e da presença de uma Igreja oficial, a “invasão” esforços das missões denominacionais no Brasil do século XIX, e sem uma
protestante no Brasil reproduziu o protestantismo de fronteira dos americanos. ideologia comum, essa cooperação se transformaria em séria dificuldade. Daí, -
Quase se pode dizer que a empresa missionária no Brasil foi um alargamento a simplificação teológica e litúrgica, cujo atestado maior foi o uso comum dè
daquela fronteira: sua teologia, sua liturgia e sua estratégia de propagação se um único livro de hinos sagrados que serviu às denominações do Brasil pelo
ajustaram aqui tão bem quanto se haviam ajustado às zonas pioneiras ameri­ menos até fins do século XIX64. Já tenho citado extensamente esse hinário
canas. Não se pode deixar de lado, porém, que as condições peculiares do ao longo deste trabalho, mas agora é necessário mostrar como essa famosa
Brasil imprimiram sua marca nesse protestantismo indiferenciado e “sui gene- coletânea de cânticos sacros, comum a quase todo o protestantismo brasileiro
ris” quando comparado com os outros protestantismos, mesmo o americano e praticamente a matriz de todas as que foram aparecendo posteriormente, foi
e, principalmente, os europeus. Pretendo, em seguida, mostrar o porquê dessa sendo elaborada. Por volta do fim do século XIX ela já estava pronta. Repre­
indiferenciação. senta o mais significativo repositório da fé protestante no Brasil. É um com­
Nos primeiros tempos não houve, no Brasil, nenhuma ênfase denomi- pêndio de teologia para ser cantado.
nacional. A ideologia da empresa missionária nas igrejas européias e ameri­ A primeira edição dos SALMOS E HINOS saiu em 1861, preparada
canas tendia a ser teologicamente monolítica, o que se constituía numa estra­ pelo casal Kalley, contendo traduções e adaptações de poesias estrangeiras e
tégia tanto do ponto de vista interno do cristianismo protestante como dos outras escritas aqui mesmo por necessidades ocasionais. Os presbiterianos
seus objetivos externos. Internamente, seria estrategicamente contraproducente fizeram uso dessa coletânea desde o início, mas em 1867 publicaram a cole­
apresentar a pagãos ou a católico-romanos as complicações teologicas de cada tânea intitulada “CÂNTICOS SAGRADOS PARA USO DOS QUE ADORAM
tradição denominacional, estabelecendo concorrência que seguramente contri­ A DEUS EM ESPIRITO E EM VERDADE”. A edição desse hinário, que
buiria para aumentar a desconfiança dos receptores da mensagem; externa­ tenho em mãos65, não traz data nem editora, mas parece corresponder à des­
mente, isto tendo em vista o alargamento e a implantação do Reino de Deus crição que Henriqueta Rosa Fernandes Braga66 faz da edição de 1867. Con­
na terra, era importante que cada denominação se considerasse como um cluo que um deve corresponder ao outro. Contém 138 cânticos e algumas
dos instrumentos para a consecução desse objetivo mais amplo. músicas. Está bem encadernado, mas mostra falta de páginas.
Quando na Inglaterra e no Continente Europeu, se formaram as primeiras O missionário presbiteriano John Boyle (1845-1892), autor de diversos
sociedades missionárias, elas eram interdenominacionais. Foram organizadas hinos que foram incorporados à edição final dos SALMOS E HINOS, publi­
por pessoas de “sentimentos evangélicos” com a cooperação de diversas deno­ cou uma coletânea intitulada HINOS EVANGÉLICOS E CÂNTICOS SA­
minações e com a resolução de “não enviar o presbiterianismo e nem qualquer GRADOS, datado de Bagagem-MG, 1888, edição LAEMMERT, Rio de Ja-
outra forma de governo eclesiástico, mas só o glorioso evangelho do Deus
bendito”63. Posteriormente, as denominações, como ocorreu nos Estados 64 Salmos e Hinos.
65 Exemplar pertencente à biblioteca da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista. Rudae
63 Tal foi A Sociedade Missionária de Londres. — Dillenberger, J. e Welch, C., 1958, Ramos, São Bernardo do Campo — SP.
p. 164. 66 Braga, Henriqueta Rosa Fernandes, 1961, p. 154.

200 201
Hymn Tune Book”, “Wesleyan Conference Office”, “Congregational Hymn
neiro. O exemplar que tenho em mãos47 apresenta uma curiosidade: acima do
Tune Book”, “Musical Board of Salvation Army”, “Musical, S alv a tio n ist ” ,
título do hino n.° 475, “O lar do céu”, está escrito a lápis “Sweet by & by or
“Songs of Peace and War”, “Chants de Délivrance et de Combat”, “European
over there”. Parece tratar-se de nota bem antiga. Talvez seja o título original
Psalmist”, “English Hymnal”, “Alexander’s New Revival Hymns”, “Wesleyan
do hino, traduzido ou adaptado, e que corresponde nos SALMOS E HINOS,
edição de 1899, ao número 485, muito cantado pelos protestantes. Suas Methodist Sunday School Department”, “Methodist School Hymnal” e assim
por diante.
primeira e última estrofes são assim:
A teologia explícita nos sermões e hinos dos congregacionais, presbite­
ó ! pensai d’esse lar lá no céu rianos, metodistas e batistas, nos seus contornos gerais, é a do metodismo
Bem ao lado do rio de luz, americano: o amor de Deus por todos os homens pecadores, o perdão gra­
Onde os santos p’ra sempre ali gozam cioso pela aceitação, através da fé, do sacrifício expiatório de Cristo, a vida
Da presença de nosso Jesus. regenerada visível na ética mundana e a expectativa da vida eterna no céu.
Cedo, cedo no céu lá estarei, Dois novos elementos são superpostos a essa teologia: a teologia da Igreja
Vejo o fim da jornada chegar: Espiritual, justificadora e consetvadora do “status-quo” social e certos traços /
Meu Jesus ali está me esperando, da teologia do pietismo, com seu emocionalismo característico. Calvinistas
Ê melhor estar ali que aqui estar. por tradição como congregacionais, presbiterianos e batistas, tiveram de abrir
mão da predestinação em favor do voluntarismo, como já o haviam feito nos
Trata-se, como se vê, de cântico apropriado para os momentos finais da Estados Unidos: a necessidade de conservar os neoconversos no redil diante
vida. As outras estrofes falam da certeza de, no céu, encontrar os amigos de uma sociedade ameaçadora obrigou-os a pôr de lado a doutrina calvinista
que já morreram e contemplar Jesus face à face. De modo que o título “Doce da perseverança dos santos”, a fim de manter os fiéis em permanente vigi­
adeus”, que aparece a lápis no volume que compulsei, surge como bem apro­ lância, válvula esta aberta para a doutrina metodista da santificação. Justi­
priado. A primeira estrofe lembra, ainda, a alegoria de “O Peregrino”. fica-se isto pela procedência dos missionários, cujas agências americanas sur­
Em resumo, SALMOS E HINOS representava no fim do século XIX, giram no clima dos avivamentos e da questão da abolição, ficando o pietismo
uma coletânea de cânticos que englobava os hinários que foram aparecendo por conta do pano de fundo do metodismo wesleyano. Mas, pergunta-se: num
desde o início do estabelecimento institucional do protestantismo no Brasil, Brasil monoliticamente católico teria sido possível introduzir uma outra forma
isto é, 1855. Representava também, e isto é bastante significativo, o reposi­ de pensamento religioso? Se nos Estados Unidos, cujo colorido era protestante,
tório comum de cânticos religiosos da maioria absoluta dos protestantes no foi necessário o conversionismo instantâneo e emocionalista para que o protes­
Brasil. Congregacionais e presbiterianos continuam a usá-lo até hoje; os ba­
tantismo se firmasse, no Brasil isso teria de ocorrer com maior razão.
tistas até 1891, os metodistas até 1931; os episcopais até muito recentemente.
Há, portanto, uma dupla justificação.
Mesmo os luteranos, os da Confissão de Augsburgo, pelo menos, incluíam
> até recentemente em seu hinário diversos cânticos dos SALMOS E HINOS.48 A unidade teológica produziu, desde o início, franca colaboração entre
Se é verdade que SALMOS E HINOS pôde atender a denominações de os protestantes. Os presbiterianos colaboraram e receberam colaboração dos
diversas tradições teológicas, é também verdade que ele procede dos mais congregacionais, anglicanos do Rio e luteranos de Nova Friburgo.
variados segmentos e tendências do protestantismo mundial, principalmente Mais tarde, quando chegaram os dois missionários, J. W. Morris e L. L.
inglês e americano ou, pelo menos, filtrados por eles. A edição com musicas Kinsolving, que iriam estabelecer definitivamente a Igreja Episcopal no Brasil,
sacras que estou usando neste trabalho, em très volumes, os dois primeiros ficaram eles seis meses em Cruzeiro-SP, aprendendo o português com o pastor
de 1899, e o terceiro de 1916, contém, no segundo, os agradecimentos de presbiteriano Benedito Ferraz. Ao se estabelecerem posteriormente em Porto
seu compilador, Rev. João Gomes da Rocha, às diversas instituições estran­ Alegre, onde fundaram igreja em 1891, por um acordo com os presbiterianos
geiras que haviam autorizado a inclusão de hinos e músicas de suas proprie­
receberam deles uma congregação na cidade de Rio Grande-RS49.
dades. Algumas dessas instituições mostram a diversidade de tradições teoló­
gicas que foi canalizada para o protestantismo brasileiro: Church Missionary Colaboração mais intensa e freqüente foi entre presbiterianos e metodis­
Hymn Book”, “Free Church Hymn Book”, “The Methodist Sunday School tas. J. L. Kennedy70 registra momentos de íntima cooperação com pastores
presbiterianos nos primeiros anos do metodismo. Em 1881, em Piracicaba, os
67 Exemplar pertencente à biblioteca da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista,
Rudge Ramos, São Bernardo do Campo. 69 Braga, Henriqueta R.F., 1961, pp. 200-201.
68 Braga, Henriqueta R.F., 1961, p. 216. Devo muito das informações contidas nesta 70 Kennedy, J.L., 1926.
parte a este excelente trabalho sobre a música sacra no Brasil.

202 203
metodistas estavam em apuros para atender aos múltiplos encargos com a cional de três membros de cada uma das duas igrejas. Esta resolução do
igreja e o colégio. Diz J. L. Kennedy: Sínodo Presbiteriano foi o resultado das atividades de uma Comissão Inter-
“A Igreja Presbiteriana, de coração generoso, acudiu às necessidades denominacional Presbiteriana e Metodista que vinha trabalhando há alguns
dos metodistas nesse momento de anseio. O Rev. F. J. C. Schneider, anos.
ministro ilustrado dessa igreja irmã veio a Piracicaba para prestar Resta dizer alguma coisa mais sobre os batistas. Como já vimos, embora
serviços fraternais aos metodistas. Fez três trabalhos nessa cidade: tenha havido cultos batistas na colônia americana de Santa Bárbara, em 1871,
ajudou os missionários no estudo do português, lecionou no Colégio foi só em 1882, na Bahia, que foi fundada a primeira igreja batista com
Piracicabano e pregou o Evangelho duas ou três vezes por semana. objetivos missionários. Portanto, os batistas, assim como os episcopais, são
Um dia nos visitou outro ministro do Evangelho, o Rev. Dr. Cham- os mais tardios dos protestantes a se estabelecerem no Brasil, o que não os
berlain, que pregou excelente sermão no salão de cultos, a um audi­ impediu de crescer bastante.
tório seleto. . . ”7' Já havia mais de um ramo batista na Europa e, durante a colonização
Em 1884 visitou os metodistas em Piracicaba, outro presbiteriano, o americana, surgiram outros grupos. Regra geral, os batistas mais tradicionais
Rev. Eduardo Carlos Pereira, que fez uma série de conferências religiosas eram calvinistas, variando para mais ou para menos a ênfase na ortodoxia.
Por exemplo, no sul dos Estados Unidos os chamados Batistas P r im itivos
“que atraiu grande atenção”72.
levavam tão a sério o calvinismo, que protestavam contra um clero educado,
Por outro lado, o Sínodo Presbiteriano, reunido no Rio de Janeiro, em
escolas dominicais e sociedades missionárias76. O extremo da doutrina da pre­
1884, registra a presença do pastor metodista Rev. J. W. Tarboux, recebido
destinação talvez levasse estes batistas a negarem qualquer iniciativa h u m an a
como representante da “Brazil Mission Conference”73. As atas deste mesmo
Mas o certo é que a grande maioria dos batistas sofreu o impacto dos aviva-
Sínodo registram também a distribuição de seus membros pelas igrejas do
mentos e do arminianismo. Já vimos páginas atrás que a teologia dos batistas
Rio de Janeiro, a fim de celebrar ofícios religiosos, incluindo-se^ além das
que vieram para o Brasil era a mesma dos presbiterianos, congregacionais e
presbiterianas, as congregacionais, metodistas e batistas. A III Sessão do mes­ metodistas.
mo Sínodo registra, também, em sua ata, a presença do pastor batista W. B.
Bagby, que foi recebido como membro visitante. Mas os batistas no Brasil, ao contrario do que ocorreu com os outros
A l.a Conferência Anual Missionária, realizada pelos metodistas, no protestantes77, foram sempre arredios quanto à proximidade e colaboração
mesmo ano de 1884, em Piracicaba, teve no seu ternário a questão “da divisão com outros grupos. A causa deste distanciamento dos batistas deve remon­
do território entre as diversas igrejas evangélicas, desejosas de cooperar do tar-se às suas origens no Brasil, à mentalidade de seus primeiros missionários.
melhor modo possível, com as denominações cristãs, manifestando-lhes real Naturalmente e antes de outra coisa, os batistas brasileiros guardam
simpatia e amor”.7,4 aquelas características distintivas históricas de todos eles. Autonomia completa
Simpatia e amor continuou havendo principalmente entre presbiterianos das congregações locais, composição da igreja só por pessoas regeneradas,
e metodistas. O Sínodo da Igreja Presbiteriana, em sua reunião de 1900, negação do batismo infantil, batismo exclusivo por imersão e uma tenaz con­
adotou um “modus vivendi” com a Igreja Metodista a respeito de ocupação vicção de liberdade religiosa. Entendem que a vida religiosa é uma relação
de território e transferência de membros de uma igreja para outra. Ficou exclusiva entre o homem e Deus através da experiência religiosa pessoal, no
estabelecido que nenhuma cidade com menos de 25.000 habitantes seria ocupa­ que não diferem muito dos demais grupos protestantes. Mas como essa expe­
da por mais de uma denominação e que seria considerado território ocupado riência religiosa é alimentada principalmente pela leitura e interpretação pes­
aquele em que “o serviço divino venha sendo observado com regularidade . soal da Bíblia, eles são levados a desvalorizar um clero academicamente prepa­
A transferência de membros entre as igrejas deveria merecer cautelas75. Sen­ rado78 e os sacramentos como meios exclusivos de graça, realizando-os só no
te-se que presbiterianos e metodistas queriam afastar o espírito de concor­ sentido de ordenanças, assim como os credos e confissões de fé que só servem
rência e proselitismo entre os próprios protestantes. Para dirimir dúvidas e para tirar a liberdade de interpretação pessoal da Bíblia. O único credo batista
fiscalizar o acordo foi nomeada uma Comissão Permanente Interdenomma- é o Novo Testamento interpretado diretamente pelo fiel. é uma vigorosa
recusa de qualquer autoridade, seja pessoal ou escrita. A autoridade do pastor
71 Kennedy, J.L., 1926, p. 26.
76 Latourette, K.S. 1941, vol. IV, pp. 445/446.
72 Ibidem, p. 35.
73 Antes do Sínodo da Igreja Presbiteriana no Brasil, Sessões de setembro de 1884. nriJ 2 , C?,nVém re.8ÍStrar ,qU® ° s batistas recusam o nome protestante porque afirmam sua
origem histórica anterior à Reforma.
74 Kennedy, J.L., 1926, pp. 38-39.
m i 78l Geralmente ° Pregador batista é da mesma classe social daqueles a quem prega” —
75 Neves, Mário, 1950, p. 141. tJillemberger, J. e Welch, C., 1958, p. 143.

204 205
decorre unicamente da assembléia que o elege e é exclusivamente profética
e exortativa79. Os landmarkistas afirmavam que as associações locais (congregações
batistas), sendo diretamente descendentes do tempo de Cristo, constituíam,
A idéia batista da composição da igreja só por pessoas regeneradas está
através da história, marcos de uma sucessão apostólica, não através de uma
intimamente ligada à teologia da Igreja Espiritual. O exclusivismo visa fechar
linha de bispos mas de uma ininterrupta corrente de congregações volun­
as portas ao mundo e manter bem nítida a distinção entre igreja e mundo.
tárias idênticas às do Novo Testamento, desde os tempos apostólicos até o
O Reino de Deus é espiritual e invisível. Qualquer confusão entre autoridade
presente. Para James R. Graves (1870-1893), um dos teólogos do “landmar­
civil e autoridade eclesiástica impede a constituição de uma Igreja Espiritual80.
kismo”, os demais ramos do protestantismo, como herdeiros do catolicismo
Entendo que, em linhas gerais, estas questões dos batistas em relação a medieval, haviam conservado muitas corrupções da Igreja Católica.
congregacionais e presbiterianos acabam sendo mais enfaticas do que distin­
Em 1855, a Convenção Batista do Sul colocou o problema da igreja e
tivas. Os primeiros são tão congregacionais quanto os batistas e se identificam
do ministério. Rejeitando o batismo infantil (pedobatismo) como não neo-tes-
pelo nome; os presbiterianos, não se sabe se desde o início ou se e fenômeno
tamentário, rejeitava-se conseqüentemente, um ministro (pastor) que tivesse
posterior, e por causa de condições diferentes, como distribuição geográfica
sido batizado na infância porque o seu batismo não seria válido. Só se reco­
e condições da sociedade brasileira, mostram uma sensível tendência congre-
nhecia, portanto, o ministério de quem tinha sido corretamente batizado, isto
gacionalista, com prejuízo de sua tradição hierárquica-conciliar. A presença
é, por imersão e na idade da razão. Por outro lado, a grande ênfase na auto­
dos bispos talvez tenha atenuado a tendência congregacionalista entre os meto­
nomia e disciplina da congregação local levou os “landmarkistas” a colocar
distas. Mas as características comuns da teologia arminiana e pietista perpassam
em questão o direito de membros de uma igreja participarem da mesa (co­
essas quatro denominações. E me arriscaria a dizer que o reduzido sacramen-
munhão) de outra, mesmo sendo da mesma fé e ordem. Assim, o relaciona­
talismo dos batistas tem a sua correspondência nas demais denominações em
mento com outros ramos do cristianismo ficou, pelo “landmarkismo”, com­
comparação. prometido pela idéia da sucessão apostólica, não como a entendem a Igreja
Mas, voltemos à questão da relativa separação dos batistas dos demais Católica e as da Comunhão Anglicana, mas na compreensão dos batistas.
protestantes, apesar de tantos pontos em comum. Os missionários batistas O zelo pela autonomia e clausura da congregação local dificulta, às vezes,
foram enviados ao Brasil pela Convenção Batista do Sul, sendo pioneiros as relações até entre os próprios batistas. Concluindo, a Convenção Batista
W. C. Bagby e Z. C. Taylor, os mesmos que, com suas esposas e um brasi­ do Sul, sob influência dos “landmarkistas” já havia, em meados do século
leiro, o ex-padre Antonio Teixeira de Albuquerque, fundaram a já mencionada XIX, decidido pela negativa de comunhão com as denominações pedoba-
primeira igreja batista no Brasil. Um desses pioneiros, Z. C. Taylor, era tistas por não trazerem as marcas (‘landmarkers’) da sucessão neotestamen­
adepto do “landmarkismo”, corrente batista radical que considerava “a ecle- tária”.
siologia batista como a única neotestamentária”8'. Realmente o historiador A.
O movimento “landmarkista” recebeu seu nome de um tratado escrito
R. Crabtree, na introdução à sua obra, segue claramente as idéias de Taylor
por James M. Pendleton (1811-1891) e publicado por Graves, em 1854, sob
que, por sua vez, acompanha os “landmarkistas”: o título de AN OLD LAND MARK RESET84.
“O povo desta fé é mais antigo do que o seu nome histórico, porque Parece não haver dúvidas de que o “landmarkismo” “marcou” os batistas
é da mesma fé e ordem dos cristãos do Novo Testamento. As igrejas brasileiros, explicando assim o seu relativo isolamento dos demaisprotestantes
apostólicas eram verdadeiramente batistas porque constavam somente brasileiros, apesar da unidade teológica que a todos identifica.
de crentes batizados, porque eram democráticas, e porque respeitavam
a consciência e a responsabilidade pessoal”m.
Diz ainda Crabtree:
2. EMOCIONALISMO E DOGMATISMO EPISTEMOLÓGICO
“Um estudo cuidadoso e livre de preconceitos das igrejas apostólicas,
convencerá qualquer pessoa de que elas eram essencialmente da mes­
ma fé e ordem das igrejas batistas de nossos dias”*3.
O padrão de pregação no protestantismo brasileiro de missão foi sempre
tríplice: avivalista, polêmico e moralista. O padrão avivalista tem por objetivo /
79 Crabtree, A.R., 1962, p. 29.
80 Crabtree, A.R., 1962, pp. 29 e 33.
a conversão do indivíduo, o polêmico convencê-lo da verdade do protestan- - J/
81 Reily, D.A., 1977 ,p. 19.
tismo ante o catolicismo e o moralista mostra e inculca os padrões de conduta
diferenciadores da nova religião.
82 Crabtree, A.R. 1962, p. 29.
83 Ibidem, p. 30.
84 Sobre este tema ver Smith, H. Shelton e outros, 1963, vol. II, pp. 108ss.

206
207
Por ora vou tratar do primeiro aspecto. A simples leitura dos sermões ser recuperados diante de uma melhor e mais verdadeira fundamentação escri-
não é suficiente para dar idéia da paixão e da veemência profética com que turística, e racionalista ao procurar tecer o sermão numa lógica irrecusável.
eram pregados. Mas as descrições que até nós chegaram dos grandes prega­ O objetivo era convencer o ouvinte de uma verdade contra outra. Mas o dog-
dores avivalistas como Jorge Whitefield (1714-1770), Dwight L. Moody (1837 matismo-epistemológico-polêmico nem sempre era suficiente para mover o
e 1899) e Charles H. Spurgeon (1834-1892), explicam o estilo oratório que ouvinte a uma mudança de atitudes; daí a necessidade de aliar ao sermão, já
ainda hoje se vê nos púlpitos protestantes. Sermões longos, ,■veementes e na maior parte das vezes dramático, cânticos apropriados para auxiliar a ele- -
emocionalistas. Não é difícil imaginar-se o casamento feliz que houve entre vação do “tonus” emocional da reunião, formando ambiente favorável às
o estilo avivalista dos missionários e a oratória latina dos brasileiros bem na decisões individuais (conversão).
tradição das academias de direito. A insistência com que os grupos protestantes tradicionais ainda cantam
O sermão avivalista pretendia convencer o indivíduo de seu pecado, certos hinos de penitência e conversão parece indicar que eles fazem parte
desencadear suas emoções e levá-lo a uma decisão existencial e, por isso, quan­ do patrimônio cultural do protestante brasileiro, construído a partir dos marcos
to mais dramático o pregador, melhores os resultados. Regra geral, a teologia experienciais de conversão da primeira e segunda gerações de protestantes.
da pregação avivalista era simples: Na análise que fiz dos hinos que compõem o volume “SALMOS E
“Os indivíduos eram confrontados com o terrível juízo de Deus sobre HINOS , encontrei mais de 70 cânticos de penitência e conversão entre os
os pecados da indiferença, infidelidade e imoralidade. Estes eram des­ 608 do total. Esta análise não é rigorosa; a composição desses hinos é, regra
critos em quadros gráficos que infundiam temor e pânico aos ouvintes, geral, eclética. Tratam de vários temas ao mesmo tempo, de maneira que
uma vez conseguido isto, o pecador proclamava o perdão de Deus muitos outros incluem apelo para conversão. Mas, o que parece mais impor­
para aqueles que se arrependiam de seus pecados e nasciam de novo tante é que eles eram os mais cantados nas congregações e no dia-a-dia do
por seu espírito”65. protestante. Apesar de ter de voltar a este assunto mais adiante, vou dar dois
exemplos desse tipo de cântico:
O arrependimento do ouvinte, quando atingido pela mensagem, regra
Ô quão cego andei, e perdido vaguei
geral era marcante, isto é, transformava-se em sinais externos de emoção
Longe, longe do meu Salvador;
como choro, gritos e, às vezes, êxtases. De modo que o convertido podia, até
Mas do céu ele desceu, e seu sangue verteu
o fim de sua vida, lembrar-se com pormenores do dia de sua conversão. Podia
P’ra salvar a um tão pobre pecador65
datar a sua “experiência religiosa” e desenvolvê-la como uma emoção profun­
da seguida de uma decisão existencial caracterizada por um “antes” e um Vem, filho perdido!
“depois”. Nas devidas proporções, reproduziram-se no Brasil as mesmas condi­ ó pródigo, vem!
ções do protestantismo avivalista de fronteira dos Estados Unidos. Para come­ Ruina te espera
çar, os próprios missionários, como ocorreu com Ashbel G. Simonton, o Nas trevas além!
pioneiro presbiteriano, deviam ser frutos dos avivamentos. Depois, a mensagem Tu, de fome gemendo!
deles era para gente tão fronteiriça quanto os seus patrícios do norte: frontei­ ô ! filho perdido,
riços sob o ponto de vista da geografia, da sociedade e da religião. Tinham Vem, pródigo, vem F
que ser ganhas para a nova religião; portanto, a pregação, reproduzindo o
mesmo estilo das fronteiras norte-americanas, devia gerar os mesmos resul­ A estratégia das grandes campanhas de avivamento religioso de João
tados, embora sem a mesma dramaticidade que descrevem, às vezes, os Wesley na Inglaterra foi essa de acompanhar os dramáticos sermões com
historiadores do norte. hinos desse teor, o que se repetiu nos movimentos de fronteira nos Estados
Não encontrei, em minhas pesquisas, nenhum relato completo de uma Unidos; há, portanto, razões para se crer que a mesma estratégia tenha sido
reunião evangelística dos primeiros tempos do protestantismo brasileiro, isto usada no Brasil. Percebe-se, portanto, que nos primórdios do protestantismo
é, registro do sermão pregado e dos hinos cantados. Sabemos que os sermões no Brasil, a crença religiosa era uma composição de dogmastimo, raciona-
eram conversionistas e polêmicos; o pregador procurava apelar para a distin­ lismo e emocionalismo. Esta difícil composição epistemológica e emocional
ção entre a “verdade” e o “erro”, entre a nova mensagem e a religião domi­ parece que marcaria uma permanente dialética nos desdobramentos históricos
do protestantismo no Brasil.
nante. O tom do sermão era dogmático e racionalista ao mesmo tempo;
dogmático ao fundamentar-se nos dogmas comuns do cristianismo que deviam 86 Salmos e Hinos, 1899, n.° 234.

85 DUlemberger, J. e Welch, C. 1958, p. 143. 87 Ibidem, n.° 132.

208 209
O fenômeno da conversão instantânea não ocupa de modo exclusivo á o intelecto e através deste sobre a alma. Ou, dizendo de outro modo, o ato da
história da expansão do protestantismo no Brasil. Embora não tenhamos vontade se dá após o ato cognoscitivo90. Creio que a notória tendência do
dados seguros para comparação, é certo que outro tipo de conversão tenha protestantismo para se apresentar como um saber se deve, pelo menos em
também o seu lugar nas histórias de vida de muitos protestantes. Há indicações parte, a essa corrente teológica que se esforçava para ajustar o calvinismo
biográficas de conversões que se deram após muitos anos de aprendizado das ortodoxo às novas tendências humanísticas da época e que ganhou notável
doutrinas protestantes. Embora as lideranças eclesiásticas sempre busquem no importância no espírito do protestantismo americano, tomando-se, parece,
neófito aquele momento decisivo em que ele, por um ato de vontade, resolveu importante lastro da Nova Escola dos presbiterianos.9'
dar o passo de ingresáo na igreja como adepto, não se despreza upi longo
aprendizado. A experiência de muitos protestantes mostra mesmo que a apren­
dizagem anterior torna a conversão mais confiável para a liderança. Nas igrejas
presbiterianas, por exemplo, o rito de ingresso de um candidato na comunhão 3. NEOPLATONISMO E TRANSCENDENTALISMO
da igreja é precedido de um exame de conhecimentos bíblicos e doutrinários.
Há mesmo aulas de preparação prévia em classes especiais. Creio que, pelo
menos entre os presbiterianos, o aspecto epistemológico é mais importante Se o protestantismo no Brasil apresentou desde o início características
do que a experiência emocional da conversão. Numa das atas do Conselho da de um saber, traindo assim origens eclesiásticas bastante significativas, não
Igreja Presbiteriana do Rio Novo — SP está registrado o seguinte: deixou de mostrar logo traços de um de seus oponentes principais que foi o
velho liberalismo protestante dos inícios do século XIX. E foi buscar esses
“Foram examinados Sebastiana Maria Gertrudes e Rita Camargo, mas
traços logo no liberalismo mais radical, o representado por Ralph Waldo
não foram, recebidas por não terem, ainda, o necessário conheci­
Emerson (1803-1882). Quando Emerson irrompe no cenário teológico ameri­
mento”.88 cano, irrupção prematura, uma vez que ele não tinha mais do que vinte anos, o
O Rev. Miguel Torres registrou no livro de atas da Igreja Presbiteriana faz em nome de um cansaço da velha teologia escolástica protestante: “estou
de Borda da Mata — MG: cansado e desgostoso com as pregações que estou acostumado a ouvir”, es­
creveu ele numa carta em 1823.92
“A 31 de julho de 1886, Pedro C. do Lago e Amador Marques Pe­
reira, tendo sido previamente examinados, professaram publicamente Os liberais, dos quais um dos representantes mais radicais foi Emerson,
sua fé. . . O ato das profissões teve lugar na fazenda denominada buscaram suas bases no conjunto do pensamento idealista e se tomaram conhe­
cidos por transcendentalistas. Como na epoca, e mesmo hoje, não é necessária
Paraíso, pertencente ao Sr. Pedro C. do Lago”39
muita argúcia para perceber que as doutrinas transcendentalistas provocaram
O rigor da exigência desses exames pode ser avaliado pela observação sérios arranhões em alguns princípios básicos da teologia cristã. Mas, como
que o Presbitério São Paulo, ao qual estava jurisdicionada a Igreja Presbite­ dizem os autores de ‘American Christianity”, repetindo um lugar comum, “o
riana de Rio Novo, apôs ao livro de Atas dessa Igreja pelo fato de se regis­ que se apresenta como liberalismo para uma geração às vezes aparece como
trarem vários ingressos de novos membros sem que se declarasse terem sido conservantismo para a seguinte”,93 o transcendentalismo vai ressurgir de modo
eles regularmente examinados. tranqüilo nos meios mais ortodoxos do protestantismo do século XIX.
Não seria demais lembrar aqui a concepção teológica que valoriza a ação Embora o pioneiro do presbiterianismo no Brasil, Ashbel G. Simonton,
do intelecto no processo de conversão, embora não tenha eu encontrado refe­ pareça não perfilhar com o “unitarismo”94, doutrina desdobradora do trans-
rência específica sobre sua influencia na teologia dos missionários, mas que
de algum modo deve ter ocorrido em meio às refregas teológicas que prece­ 90 O principal teólogo de Saumur foi Moisés Amyraldus (1596-1664), notável por seus
deram a era missionária. Em 1633, a Academia de SAUMUR, na França, esforços para atenuar a doutrina da predestinação. Sua obra mais polêmica foi o Tratado da
Predestinação, publicado, parece, em 1634.
tradicionalmente calvinista, passou a adotar um ponto de vista intermediário
91 Briggs, Charles A., 1916, vol. II, p. 160.
entre o calvinismo e o arminianismo. Nem o arbítrio divino nem a livre
vontade humana, mas uma conjunção das duas partes: a ação divina sobre 92 Smith, H. Shelton et alii, 1963, vol. II, p. 119.
93 Idem, p. 119.
88 Ata de 23/4/1882, fls. 29, livro I. 94 Em 17/10/1859, Simonton escreveu no seu Diário: “Recebi ontem uma nota da
89 Ata da Igreja Presbiteriana da Borda da Mata — MG, livro 1, fls. 32. Ao pé desta Sra. Cordeiro, pedindo-me para batizar-lhe seu füho. Lembrei-me da minha última visita a ela
Ata, acrescenta o Rev. Miguel Torres que o registro foi feito ali por engano, já que o fato ?.. . lmPoss*t’ilidade de aceder, visto que rejeita uma das doutrinas fundamentais do cristianismo.
devia ter sido inscrito no livro da Igreja Presbiteriana de Caldas — MG. Como os pastores Visitei-a a caminho da Saúde e conversamos novamente. Repeti as razões da 'recusa, H.Vntind»
cuidavam simultaneamente de várias congregações, tais enganos talvez fossem freqüentes. com ela a divindade de Cristo. Conversa bem e parece inteligente, mas seus pontos de vista

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cendentalismo e que apresentava amplo espectro no pensamento protestante cânticos sagrados protestantes. Na guerra temporária entre dois poderes, do
americano no século XIX, o fato é que nas estantes dos protestantes cultos bem e do mal, da luz e das trevas, da verdade e do erro, o cristão se alista
brasileiros, inclusive pastores, livros sobre Emerson começaram a aparecer.95 como soldado do bem, da luz e da verdade. No levantamento que fiz nos SAL­
O autor deste trabalho viu, em bibliotecas de igrejas, exemplares de livros de MOS E HINOS, encontrei trinta e cinco cânticos que versam sobre o tema
e sobre Emerson. Hoje passou da moda, mas nas primeiras décadas do século quec classifiquei como “HINOS DE BATALHA”, embora, como já afirmei
XIX, o transcendentalismo de Emerson provavelmente se apresentava como em outro lugar, o tema apareça em numerosos outros, dado o ecletismo doutri­
a confirmação do pensamento conservador protestante que viera por canal nário idos hinos.
qualquer da empresa missionária. O fato é que o platonismo subjacente ao Transcrevo, como exemplo, algumas estrofes dos hinos mais represen­
transcendentalismo está presente na mensagem institucional protestante desde tativos desse “tema de batalha”.
sua implantação no Brasil. Este, traduzido por Sara Kalley:
As linhas mestras do pensamento de Emerson apareceram em 1826 no
seu sermão pregado perante a Associação de Pastores de Middlesex, como Avante! avante! ó crentes!
prova para seu ingresso no ministério. Essas linhas mestras se baseiam em Soldados de Jesus!
duas idéias filosóficas: 1) a supremacia do espírito sobre a matéria, e 2) o Erguei seu estandarte,
imediatismo de Deus na alma humana. Esse idealismo de Emerson, sem entrar Lutai por sua cruz!
em complicações mais avançadas tem, pelo menos, duas implicações muito Contra hostes inimigas
significativas: o distanciamento entre a religião e a ordem social e a negação Ante essas multidões,
da religião como um saber ordenado, lógico, em favor de um certo tipo de O Comandante excelso
intuicionismo pessoal. A tradição idealista, desde Platão ate o neokantismo, Dirige os batalhões97.
fornece o principal estímulo a essa forma de pensamento96. A questão episte-
Este, traduzido por Manuel de Arruda Camargo, intitulado “Grito de
mológica parece ter, posteriormente, encontrado bom apoio na teologia do Guerra” (“Sound of the Battle Cry”):
sentimento de Schleiermacher (m. 1834), em que o subjetivismo em religião
se transforma em crítica aos dogmas e, por conseqüência, à toda sistemati­ Moços, declarai guerra contra o mal,
zação objetiva de doutrinas. Para Schleiermacher, religião não é um saber nem Exaltai a cruz do Salvador;
um fazer, mas uma experiência do divino. Em suma, era a velha luta entre Firmes empunhai armas não carnais,
o racionalismo e o romantismo idealista. Sempre confiai em seu favor90.
Há muitas razões para se admitir que o transcendentalismo, com suas im­
plicações iniciais pelo menos, encontrou algum canal para se instalar no pro­ Robert H. Moreton fez a adaptação deste hino intitulado “Ó jovens,
acudi!” (“Volunteers”), cuja 4.a estrofe diz:
testantismo brasileiro. As múltiplas referências em sermões e hinos sobre a
superioridade da vida no além sobre a presente, do céu sobre a terra e do De Satanás os filhos, com armas já na mão,
espírito sobre a matéria indicam que o transcendentalismo deixou aqui a sua Juntos já se acham com seu capitão.
marca, constituindo considerável reforço para a doutrina da Igreja Espiritual. Ó jovens, apressai-vos, formai-vos sem temor
Não pode deixar de causar curiosidade, ainda, que o neoplatonismo tenha Nas fileiras, em que manda nosso Salvador99.
adquirido, no pensamento protestante brasileiro, aproximações estranhas com
Como último exemplo, a 3.a estrofe deste hino anônimo:
o maniqueísmo. Não se trata, por certo, de criação do espírito brasileiro; ele
encontrou canais que o filtraram dos portadores da mensagem protestante. Nós vamos descansar além,
Não importa agora buscar essas origens; basta constatar sua presença nos Depois da dura guerra;
Nosso inimigo lá não tem
sobre as verdades religiosas são muito superficiais. Para ela, a religião consiste em conseguir Poder como na Terra"30.
chegar ao céu por meio da imitação de Cristo. Acha que esse propósito é de todos os que se
fjiypm cristãos e considera intolerância da minha parte não reconhecer os unitários como 97 Salmos e Hinos, 1899, n.° 147.
discípulos de Cristo”.
98 Salmos e Hinos, 1899, n.° 366.
95 Não confundir com Harry Emerson Fosdick (1878), fundador da igreja interdenomina-
cional Riverside Church, em New York, autor de muitos livros conhecidos no Brasil. 99 Salmos e Hinos, 1899, n.° 377.
100 Idem, n.° 412.
96 Smith, H. Shelton et allii, 1963, vol. 11, p. 121.

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RESUMO E ALGUMAS CONCLUSÕES
que eles trouxeram para o culto no Brasil não foi a acadêmica, mas a teologia
das suas formas de crença, no seu conjunto a teologia dos avivamentos à
qual as diversas tradições haviam se esforçado para encontrar meios de ajusta­
Fiz uma tentativa de encontrar os traços predominantes do protestantismo mento. De modo que a teologia dos púlpitos e do culto em geral não foi a dos
americano que foi filtrado para o Brasil pela empresa missionária. A teologia seminários e academias. Essa mesma defasagem ocorreu no Brasil quando os
desse protestantismo foi forjada nas longas lutas que começaram na Europa presbiterianos começaram a formar os seus pastores em seminários. As compli­
da Reforma, em que a religião cristã buscava seus caminhos de ajuste diante cações da teologia não eram levadas para o púlpito. O púlpito desempenhou
das mudanças de profundidade que então se processavam. A teologia, o pensa­ no Brasil um triplo papel: o de polemizar contra a Igreja Católica, o de infun­
mento religioso, então gozando de grande prestígio, foi aos poucos se cons­ dir moral e o da explanação bíblica. Este último papel talvez tenha sido respon­
truindo a partir das demandas de ordem sócio-política, cujas respostas a essas sável pela única via pela qual o protestantismo pode mostrar sua presença na
demandas levavam, muitas vezes, um caráter de legitimação, aliás, talvez, a cultura brasileira. O conhecimento das línguas bíblicas, a prática da exegese e
função primordial da religião como diz Peter Berger: da hermenêutica sobre os textos sagrados produziu filólogos e gramáticos
“ . . . a religião tem sido, através da história, o instrumèrtto mais conhecidos. Por outro lado, a polêmica e o moralismo isolaram os protestantes
difundido e efetivo de legitimação”,m da cultura, assim como este último, o moralismo, parece ter fechado as portas ^
dos eruditos protestantes para a literatura.
Por sua vez, os segmentos mais importantes da sociedade encontravam,
Se, como dizem H. Shelton Smith e os demais autores de “American
afinal, momentos de paz quando a teologia lhes dava respostas a partir dos Christianity”103, “a teologia americana, em 1865, tinha muita mobília na des­
oráculos divinos, função provavelmente tão importante quanto a da legitimação
pensa que nunca era usada na sala de visitas”, o mesmo ocorreu no Brasil.
ainda no conceito de Peter Berger: Se alguma mobília eles descarregaram nos seminários, dela pouco chegou
" . . . manter ou reconstruir a instituição de modo que sirva como aos púpitos.
estrutura viável de plausibilidade para definições da realidade. . . ”102 As pontas de linha da teologia que chegaram ao culto protestante no
Brasil tinham, repito, como trilho mestre a ideologia dos avivamentos, mas
Mesmo os grandes inimigos da teologia, como o iluminismo e algumas
traziam o colorido das múltiplas tendências dos diversos estratos missionários.
novas teorias científicas, acabaram aliados importantes da teologia protestante
Encontrando aqui um meio social diferente sofreu por sua vez um processo
quando forneceram instrumental para que a teologia pudesse ir ao encontro
de filtragem que acabou produzindo um protestantismo “sui generis”. Tentarei
de novos anseios de ordem social, como a valorização do homem, o progresso analisar e entender esta questão logo a seguir.
e assim por diante.
Nos Estados Unidos, matriz do nosso protestantismo, diante de uma
sociedade que nascia sob o impacto dos problemas da velha sociedade euro­
péia, a teologia protestante teve que lutar muito para encontrar seus caminhos.
Pode-se dizer que os caminhos que a sociedade encontrou para se constituir
foram os caminhos da teologia que, já na Europa, principalmente na Holanda
e Inglaterra, se colocara na vanguarda das aspirações político-sociais. Mas a
recíproca também é verdadeira: a teologia não deixou de buscar fórmulas de
legitimação das aspirações da nova sociedade. Por isso, uma sociedade com­
plexa e freqüentemente tumultuada não podia deixar de produzir idéias do
mesmo tipo. Realmente, a teologia protestante norte-americana de fins do
século XIX era complexa e tumultuada.
A empresa missionária americana exibiu no Brasil as pontas de linha de
toda aquela luta. Os missionários, tanto pregadores como educadores, embora
academicamente preparados nos seminários e universidades, foram como já
foi dito, produtos dos movimentos de avivamento. Assim sendo, a teologia

101 Berger, Peter, 197, p. 48.


102 Ibidem, p. 188. 103 Vol. 11, p. 309.

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