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A RESPOSTA DE FICHTE
À OBJEÇÃO DE KANT:
“Declaro insustentável!”
Resumo
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Professor-adjunto
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lucautteich@terra.com.br. / 2 #
HUMANIDADES EM REVISTA
Editora Unijuí • Ano 6 • nº 8 • Jan./Jun. • 2009
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OS LIMITES DA ÉPOCA. A RESPOSTA DE FICHTE À OBJEÇÃO DE KANT: “Declaro Insustentável!”
HUMANIDADES EM REVISTA
LUCIANO CARLOS UTTEICH
Os limites da época:
a Crítica e o debate da questão tópica
À altura da Declaração de Kant encontrava-se Fichte já em Berlim,
após o conhecido episódio do Atheismusstreit, 2 decorrido nos anos de
1798 e 1979. A convicção fichtiana de haver encontrado na Filosofia de
Kant a possibilidade de demonstrar absolutamente o primado da liberdade,
permitiu-o alçar novos voos teóricos, a partir dos quais lega uma produção
filosófica intensa, mas que, por seu estilo inovador, não será mais fácil de
ser assimilada e compreendida pelo vulgo.
2
Já convencido do primado da liberdade, Fichte contemporiza todo debate que visa a
teorizar a respeito da existência de Deus. Para ele próprio, após a descoberta da
Filosofia kantiana e de sua adesão a ela, que lhe abriu novas esperanças face à
situação do determinismo no qual encontrava-se anteriormente imerso, Deus repre-
sentava a ordem moral do mundo, inescapável e inarredável: um Deus moral dava
garantias para se entender a constituição do mundo como orientada para o desen-
volvimento do melhor, para o desdobramento das potencialidades humanas em
conformidade com um caminho trilhado ao infinito (Deus). Como editor de um
Jornal Filosófico, Fichte aceitou publicar um artigo de Forberg (discípulo de
Reinhold), intitulado O desenvolvimento do conceito de religião, no qual era feita
uma atabalhoada defesa da redução da religião à fé numa ordem moral do mundo. No
artigo Forberg colocara em suspenso a existência de Deus; segundo ele, ao se per-
guntar: “Deus existe?”, devia ser respondido, como única resposta correta: “Não se
sabe”, pois esta é uma questão de ordem teórica, e não de religião. Fichte, tendo-o
publicado de má vontade, publica como resposta o artigo Sobre o fundamento da
nossa fé na Divina Providência, no qual traz a questão para a esfera da ordem
prática, opondo-se ao tipo de decisão resolvida na esfera teórica: dirá que Deus tem
de ser identificado com a própria ordem moral no mundo, motivo pelo qual não é
possível elocubrar ou duvidar da existência de Deus. Ou seja, complementa que
mediante a fé se acrescenta à moralidade “somente” uma confiança, uma esperança
de que o bem triunfe. Instala-se então o conflito: um escrito anônimo, intitulado
Carta de um pai a seu filho estudante sobre o ateísmo de Forberg e de Fichte, pede
a punição dos autores pelas autoridades acadêmicas e o ministério publicara um
decreto do soberano Príncipe-Eleitor da Saxônia ordenando a apreensão do fascícu-
lo com os artigos.
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É interessante observar as circunstâncias da época. Após o feliz acontecimento de
descobrir a Filosofia de Kant, por conta de preparar aulas particulares movido pela
necessidade de ter de exercer o preceptorado, Fichte fica impressionado sobretudo
pela Filosofia moral de Kant. Ele mesmo dirá, todavia, que é impossível compreender
a Crítica da razão prática sem ter lido a Crítica da razão pura, e para isso ele buscará
ainda na Crítica da faculdade do juízo, da qual faz um resumo, os princípios para
esclarecer o sistema. Outro feliz acontecimento se sucede, todavia. Pelo fato de a
soma indenizatória de seu preceptorado em Varsóvia, obtida da mãe de seu pupilo, que
lhe possibilitara ir ao encontro de Kant em Königsberg, logo ter se esgotado, buscou
junto a Kant um favorecimento na forma de empréstimo. A fim de quebrar a reserva
kantiana, se propôs a apresentar um escrito, e em quatro semanas entrega o texto
intitulado Ensaio de uma Crítica de Toda revelação. Em 18 de agosto de 1791
apresenta a Kant o manuscrito, que é elogiado por este e recomendado a seu editor.
Tendo o texto sido publicado sem o nome do autor, levou a que todo mundo o
considerasse como uma obra do próprio Kant, de quem, à época, era esperada uma
declaração sobre esse tema. Com efeito, o texto de Kant, A Religião nos limites da
simples razão, seria publicado só no ano seguinte. O ilustre órgão científico da época,
o Allgemeine Literaturzeitung de Jena, no entanto, havia escrito: “Todo aquele que
tiver lido apenas o menor daqueles escritos pelos quais o filósofo de Königsberg
angariou imortais méritos em favor da humanidade, reconhecerá imediatamente o
augusto autor dessa obra” (Döring, 1974, p. 19). Em consequência, o ensaio fora
lido e discutido muito mais do que se tivesse sido publicado com um nome ainda
desconhecido. Assim, quando Kant declarara por sua vez, na Allgemeine Literaturzeitung
de Jena, que a obra era de Fichte, a fama de Fichte foi favorecida e já era tarde para que
a fama desse escrito pudesse ser desmerecida: Fichte passa por ser o autor de um livro
que teria sido digno de Kant.
critos (até certo ponto panfletários), eles não conseguiram baixar o tom da
polêmica. É que justo em relação a essa indignação reconheceremos o nú-
cleo dos assuntos e ocupações filosóficas de Fichte: o tema que perpassa
toda sua obra filosófica se detém na busca pela legitimação do caráter laico
da razão, visando à substituição da moral religiosa tradicional por uma mo-
ral laica e puramente racional, para cuja realização devia ser entendida, por
conseguinte, a separação entre Estado e Igreja (separação à qual se opunha
um periódico da época, o jornal Eudaimonia, que fazia campanha em defesa
“do trono e do altar”). Neste contexto, os escritos de Fichte representam
uma verdadeira ameaça ao status quo e por isso sofrem aberta oposição,
cuja defesa obstinada e inexorável em face da admoestação do ministério
custa-lhe a cátedra.
É no âmbito desses acontecimentos em um curto período de tempo
que surge a Declaração de Kant. Desde Berlin, ciente da recepção de sua
sistematização da Filosofia transcendental, Fichte compartilha de sua estu-
pefação com o amigo Schelling e, na sua reação à declaração de Kant, reflete
com o amigo: “O que eu digo da declaração de Kant sobre meu sistema?”
(10 de setembro de 1799) (Beckenkamp, 1997, p. 136). E então comenta:
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a declaração começa com algo que muitos deverão ver como uma de-
monstração a partir de razões objetivas: “a doutrina da ciência não seria
mais nem menos do que simples lógica, a qual, como lógica pura, abstrai-
ria de todo conteúdo do conhecimento (Beckenkamp, 1997, p. 137).
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Na Primeira Introdução à Doutrina da Ciência, disse Fichte: “Se os resultados de uma
filosofia não coincidem com a experiência, sustento que esta filosofia é falsa, pois não
cumpriu sua promessa de deduzir toda a experiência e de explicá-la pelo atuar necessá-
rio da inteligência. Em tal caso, ou bem o pressuposto do idealismo transcendental é
falso de um modo geral, ou bem ocorre tão só que se procedeu erroneamente na
exposição concreta do idealismo, a qual não levou a cabo o que devia” (1987a, p. 33).
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Na carta, continua Fichte: “Qual de nós dois estaria então usando esta palavra em
seu sentido correto, que tipo de afecção seja propriamente esta que, após passar por
uma série de sublimações, finalmente se expressa na palavra doutrina da ciência,
sobre isto tanto Kant quanto eu devemos aprender com Herder”.
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Fichte caracteriza como recém-descoberta a ideia de uma doutrina da ciência porque imputa
como não realizado nem por Kant nem pela tradição filosófica o reconhecimento da
proximidade entre a descoberta e a operação do primeiro princípio filosófico, desenvolvedor
da doutrina da ciência e a forma matemática de operar com a intuição na constituição de
seus objetos. Assim, porque para Fichte a intuição está num plano superior ao conceito, “o
fundamento da evidência imediata da necessidade e da validade universal não está nunca
no conceito, mas na intuição do conceber; intuição que, aliás, nunca é necessário, ou
contingente, ou algo dessa ordem, mas que apenas é, pura e simplesmente, e é assim como
é – e que tampouco é universalmente válida, pois permanece eternamente uma e a
mesma, mas justamente por isso comunica a todo conceito que a concebe, porque a
concebe e na medida em que a concebe, sua inalteralidade” (1980c, p.191).
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A proposição fundamental (Ich bin) para Fichte “acompanha todo saber, está conti-
da em todo saber, e todo saber a pressupõe”(1980a, p. 16).
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Como observou Adorno, “o conceito d e Kant d o ‘eu penso’ era a fórmula
indiferenciada entre a espontaneidade engendradora e a identidade lógica”, em
que, complementa, “o momento kantiano da espontaneidade (...) na unidade sinté-
tica da apercepção se junta completamente com a identidade constitutiva” (Adorno,
1981, p. 34).
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Diz Fichte: “é a Egoidade, a sujeito-objetividade (...); o pôr do subjetivo e de seu
objetivo, da consciência e daquilo de que ela tem consciência, como um; e pura e
simplesmente nada mais do que essa identidade” (1973, p. 84).
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Diz Fichte: “O primeiro, válido para toda razão, nas determinações fundamentais
da consciência, somente com o qual a filosofia tem de se ocupar, é o a priori
kantiano, ou o originário; o segundo, determinado apenas pela espécie e individu-
alidade, é o a posteriori desse mesmo escritor. A doutrina da ciência não precisa
pressupor essa distinção anteriormente a seu sistema, na medida em que ela é feita
e fundada no próprio sistema, e, para ela, aquelas expressões, a priori e a posteriori,
têm uma significação inteiramente outra” (1973, p. 79).
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Como diz Paul Ricoeur, a razão não deve ser reduzida a uma única dimensão (a da
Epistemologia): “a reflexão não é intuição”, ou seja, há que se “distinguir a tarefa da
reflexão de uma simples crítica do conhecimento. (...) A limitação fundamental de
uma filosófica crítica reside no seu cuidado exclusivo para com a epistemologia. A
reflexão é reduzida a uma única dimensão: as únicas operações canônicas do pensa-
mento são aquelas que fundamentam a objetividade de nossas representações”. E
reforça: “Eu digo, com Fichte, que reflexão é menos uma justificação da ciência e do
dever, do que uma reapropriação do nosso esforço para existir; a epistemologia é
apenas uma parte desta tarefa mais vasta: nós temos de recuperar o ato de existir, a
posição do si em toda a espessura de suas obras” (Ricoeur, 1990, p. 322).
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Como observou José Henrique dos Santos (Santos, 1995, p. 306), Kant forneceu com
o juízo infinito ou limitativo uma fórmula mais precisa que conduz à categoria de
limitação. Na proposição “a alma é não-mortal” aparece a determinação “não-
mortal” como limite “posto” no infinito, e que como tal não pode “teoricamente”
perdurar. Daí que se torna crucial a pressuposição de uma dinamicidade, subjacente à
modalidade categorial concebida pela razão “teórica”, com vistas a que possa haver
um estatuto legitimador para as novas subsunções da razão, quando as anteriores
soçobraram em virtude de seu caráter de não subsistentes por si. No entender de
Fichte (1987b), esse estatuto legitimador é a ação originariamente prática e primei-
ra (Tathandlung), à qual cabe a efetivação do primeiro princípio “Eu sou”.
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Disse Fichte: “A doutrina da ciência deve esgotar o homem inteiro; por isso só pode
ser apreendida como a totalidade de sua capacidade inteira. Não pode tornar-se
filosofia universalmente válida enquanto em tantos homens sua formação mata
uma força mental em proveito de outra, a imaginação em proveito do entendimen-
to, o entendimento em proveito da imaginação ou mesmo de ambos em proveito da
memória; enquanto for assim – diagnostica – ela terá de encerrar-se em um círculo
estreito – uma verdade tão desagradável de dizer quanto de ouvir, mas que é,
mesmo assim, uma verdade” (1980b, p. 153/nota). Isso pode ser contrastado ao
fato de que o princípio incondicionado Eu sou “não surge mediante uma síntese
cuja pluralidade pudesse ser decomposta, todavia, adiante, senão mediante uma
tese absoluta” (1987b, p. 90). A autoconsciência “põe originariamente, pura e
simplesmente, seu próprio ser” (1980b, p. 46). Ou: “Aquilo cujo ser (essência)
consiste merament e nisso: que ele põe a si mesmo co mo send o, é o Eu
[autoconsciência] como ser absoluto” (1980b, p. 46).
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Mais fundamental que o questionamento kantiano, a investigação fichtiana abre
espaço para a pergunta: “como são possíveis conteúdo e forma de uma ciência em
geral, isto é, como é possível a própria ciência? Algo [o topus] no interior do qual
essa questão fosse respondida seria também uma ciência, e aliás a ciência da
ciência em geral” (Fichte, 1980a, p. 18). No dizer de Fichte, tal ciência “não é algo
que existisse independente de nós e sem nossa intervenção, mas, pelo contrário,
algo que só pode ser produzido pela liberdade de nosso espírito atuando segundo
uma direção determinada” (1980a, p. 19).
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Como observa M. Frank, a partir do conceito do “Eu penso” (Ich denke) Kant não teria
se dado conta que por esse conceito, do qual teria “se descuidado de tratar” (Frank,
1991, p. 418), ele havia já apresentado conjuntamente o fundamento superior da razão,
que neste ponto, na fundação do princípio da consciência (Eu penso) a crítica da razão
acaba por considerá-lo só para a explicação da objetividade das representações, condu-
zindo-o por isso a “uma conexão insolúvel entre identidade e Eu, verdade (como
propriedade de asserções) e objetividade (como propriedade de representações)” (Frank,
1991, p. 418). Há, todavia, que se ressaltar que nesse domínio o que pode ser considerado
como espelhando a estrutura do desdobramento do fundamento superior será ou advirá
mais da estrutura antinômica da razão (tese, antítese e síntese), na forma da tética e
antitética da razão na Crítica da razão pura. Sob essa grade antinômica se desenvolve e
resolve o conflito instituído a partir da abordagem dos dois lados da razão (do ângulo da
reflexão e do ângulo da abstração ou do sujeito e do objeto).
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Tem início aqui a questão do “começo” da Filosofia, tematizado por Hegel no
capítulo inicial da Ciência da Lógica. Referente ao começo, diz Fichte: “A doutrina
da ciência apenas começa naquele Eu-puro, ou na intuição, em sua máxima
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abstração; mas a cada passo que dá junta-se nela um novo termo à cadeia, cuja
junção necessária é demonstrada precisamente na intuição” (1973, p. 90). Pelo
fato de Fichte, todavia, utilizar-se da comparação como a geometria (Matemática)
para instituir o modo de operação da doutrina da ciência, no que afirmou: “Assim é;
como também é na geometria, onde em cada nova proposição é acrescentado ao
anterior algo novo, cuja necessidade, do mesmo modo, só é mostrada na intuição.
Tem de ser assim em toda ciência real, que efetivamente progride, e não dá voltas
em círculo”(1973, p. 90). No entender de Hegel há que se criticar esse tipo de
começo, posto que tal unidade terá de se referir por fim à verdade, conceito não
tematizado por Fichte. Diz Hegel: “o verdadeiro é unicamente essa diversidade que
se reinstaura em si mesmo no ser-outro. Não é uma unidade original enquanto tal,
ou imediata enquanto tal. É o devir de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim
como seu alvo, tem esse fim como princípio e é efetivo somente por meio da sua
realização e do seu fim” (Hegel, 1988, p. 17). Ou seja, porque para Hegel o real não
se dá como uma “unidade original”, imediata, mas dentro de um processo de constru-
ção do real, tal processo é um processo que inclui necessariamente a contradição, o
ser-outro e o devir, sendo por isso um processo sempre em curso, contendo em si uma
dinamicidade diferente da da pura matemática.
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Para Goethe estava claro, uma vez que era preciso um imperativo da investigação da
natureza, do mesmo modo como possuímos um imperativo moral.
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Complementa Fichte: “Todas as proposições que são fundamentais em uma ciência
particular qualquer são, ao mesmo tempo, também proposições domésticas da
doutrina da ciência; uma e a mesma proposição deve ser considerada sob dois
aspectos: como proposição contida na doutrina da ciência e como proposição
fundamental colocada no topo de uma ciência particular. A doutrina da ciência
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Nesse contexto se antecipam as conseqüências no Zeitgeist da mudança a propósito
do conjunto de exigências que passava a fazer parte do trabalho filosófico, na distin-
ção e caracterização da tarefa da Filosofia como um operar igualmente científico dos
conceitos. Depois das críticas dos primeiros pós-kantianos (Jacobi, Reinhold, Maimon
e Schulze) às carências da Filosofia transcendental kantiana, incorpora o fazer filo-
sófico à tarefa de explicitação e elucidação dos conceitos, igualmente a de “demons-
tração” da efetividade e vigência dos conceitos. Advém dessa exigência a compreen-
são diferenciada a respeito da lógica transcendental que em Fichte recebe o trata-
mento de uma Ontologia (Primeiros Princípios), amparando o modelo filosófico na
estrutura axiomática da matemática. No mesmo texto de 1800, no qual responde a
Declaração de Kant, a propósito da doutrina da ciência como ideia de uma ciência
recém-descoberta, diz Fichte: “Porque a doutrina da ciência é matemática, ela tem
as vantagens da matemática. Em primeiro lugar, a mesma evidência imediata. (...)
A mesma determinidade completa. (...) A mesma irrefutabilidade. (...) Ora, a dou-
trina da ciência não deixa, terminantemente e sem nenhuma exceção, valer ne-
nhum conceito que ela não tenha engendrado, no interior de seus limites, a partir
da intuição; e nenhum de seus conceitos vale para ela mais, ou algo outro, do que
aquilo que estava contido na intuição” (p. 193); antes afirmara: “Assim como, por
exemplo, a geometria abrange o sistema inteira de nossas delimitações do espaço,
ela abrange o sistema da razão inteira” (1980c, p. 192); pois, “a doutrina da
ciência é máthesis, não somente segundo a forma exterior, mas também segundo o
conteúdo. Descreve uma série contínua da intuição e demonstra todas as suas
proposições na intuição. É a máthesis da própria razão” (1980c, p. 192).
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O elemento problemático aqui está no caráter evanescente do elemento intuitivo
para servir de mediador na “demonstração” do conceito, na medida em que, como
enfatizará Hegel, para a própria demonstração o elemento mediador precisa dar-se
como elaborada também conceitualmente, pois ele se mostrará, por fim, igualmente
como “um momento” do conceito. Na medida em que se requer a mediação como
conceitualmente concebida, o aspecto divino no homem, reconhecido na infinidade
do conhecer como “infinito em graus” dar-se-ia segundo a postulação da ascensão
nos graus do conhecimento na estrutura amorfa da Intuição intelectual, conservando
do seu lado a ausência de regra (conceito) para construir ou apresentar os componen-
tes mediadores.
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LUCIANO CARLOS UTTEICH
Referências
ADORNO, T. W. Tres Estudios sobre Hegel. 3. ed. Madrid: Taurus, 1981.
BECKENKAMP, J. Correspondências entre Fichte e Schelling. In: Dissertatio,
UFPel (6), p. 133-144, verão de 1997.
DÖRING, W. O. Fichte. Der Mann und sein Werk. Hamburg: Ansischer
Gildenverlag, 1974.
FICHTE, J. G. Sobre o conceito da doutrina da Ciência. In: A doutrina da
Ciência de 1794 e outros escritos. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.
São Paulo: Abril Cultural, 1980a. (Col. “Os Pensadores”).
______. A doutrina da Ciência de 1794. Trad. Rubens Rodrigues Torres
Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1980b. (Col. “Os Pensadores”).
______. O programa da doutrina da Ciência (Anúncio de uma Nova Expo-
sição da Doutrina da Ciência, 1800). In: A Doutrina da Ciência de 1794 e
outros escritos. 1. ed. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Abril Cultural, 1980c. (Col. “Os Pensadores”).
______. O princípio da doutrina da Ciência (Ensaio de uma Nova Exposi-
ção da Doutrina da Ciência, 1797). In: A Doutrina da Ciência de 1794 e
outros escritos. 1. ed. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Abril Cultural, 1980d. (Col. “Os Pensadores”).
______. Primeira Introduccion a la Doctrina de la Ciencia (1797). Madrid:
Tecnos, 1987a.
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