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A poesia da filosofia.

Sobre a Poética de Aristóteles

Introdução1
Michael Davis
Seria trágico escrever um livro sobre a Poética de Aristóteles desarmado de
senso de humor. Uma vez que nenhum texto aristotélico foi tão comentado, qualquer
novo comentário merece duas respostas. Por um lado, suas novidades deveriam ser vistas
com uma suspeição crescente, proporcional à sua importância, pois como poderiam
gerações de comentadores — muitos bastante ilustres — ter deixado passar tal idéia? Por
outro lado, se não há nada de novo e importante para dizer sobre a Poética, por que dizê-
lo? Ou o que se segue é exótico, em cujo caso é suspeito, ou é ordinário, comum, sendo
então supérfluo.
Essa dificuldade liga-se a outra. Enquanto alguns termos da Poética (por
exemplo, katharsis, mímesis, hamartia e peripeteia) são importantes e ambíguos o bastante
para levantar uma longa tradição de controvérsia acadêmica, a intenção geral do livro
parece inequívoca. Aristóteles pretende dar uma explicação da poesia, enfatizando a
tragédia. Ora, há várias maneiras pelas quais poder-se-ia argumentar que a verdade da
Poética de Aristóteles como um todo é mais profunda do que parece. Não seria difícil
“deconstruir” um livro que usa palavras cognatas para descrever os erros dos personagens
na tragédia (hamartia, 1453 a 10), dos que criticam os tragediógrafos (harmartanousin, 1453 a
24), e dos próprios poetas (hamartanein, 1451 a 20). Como uma peça de uma escrita
construída artisticamente — um poiêma —, a Poética está, em algum sentido, sujeita a sua
própria análise. Nem seria difícil entender a preocupação da Poética com a tragédia como
sintomática de uma deficiência da cultura ocidental como um todo, seja em termos de
uma celebração perversa do “indivíduo”, que alcança seu clímax no capitalismo burguês,
ou em termos de uma afirmação “falocêntrica” do lógos ou em termos de uma
“hierarquização dos gêneros”, que é apenas o sinal explícito de uma “visão de classe” e
“política conservadora”.2 Ou a racionalização da poesia por Aristóteles poderia ser
entendida como a reação eterna dos seres humanos ao seu lado sombrio — a defesa
apolínea contra o caos dionisíaco ou a tentativa do superego de anular o id.3 Ou, talvez, a
elevação do enredo por Aristóteles sobre o caráter poderia ser tomada como revelando a
compreensão imperfeita que o racionalismo grego tem da subjetividade humana.4
Qualquer uma dessas aproximações emprestaria certa profundidade à Poética. Mesmo não
negando que ela é sobre poesia, cada um a seu modo argumentaria que, propriamente
compreendida, a Poética é sobre muito mais — é sobre tudo. É óbvio que “propriamente
entendida” significa entendida de um modo diferente do de Aristóteles; ao se tornar um
objeto a ser explicado, a Poética cessaria de ser uma explicação por direito próprio. Assim,
parece que somos confrontados novamente com uma escolha. Ou nós tomamos a
intenção “explícita” da Poética seriamente (a intenção de Aristóteles), ou tratamos o livro

1 Traduzido de: Michael Davis, The Poetry of Philosophy. On Aristotle’s Poetics. South Bend: St. Augustine
Press, 1992, pp.xiii-42, por Verlaine Freitas.
2 Cf. Karl Marx, Werke, escritos até 1844, primeira parte, como complementar (Berlim: Dietz Verlag, 1960

e 8), pp.534 ss. e Celeste Schenck, “All of a Piece: Women’s Poetry and Autobiography”, in Life/Lines:
Theorizing women’s Autobiography, B. Brodzki e C. Schenck (Edts.) (Ithaca, NY: Cornell University
Press, 1988), pp. 281-85.
3 Cf. Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia, seção 14 , e Sigmund Freud, Projeto da psicanálise e O mal-

estar na cultura.
4 Cf. G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito.
como menos explícito, mas com um significado sintomático de alguma força diferente,
muito além de Aristóteles (por exemplo, Linguagem, História, Gênero ou Eros). A Poética
pode ganhar em significado quando a particularidade de seu tema é ultrapassado, mas
quando Aristóteles e sua intenção são deixados para trás, o tema explícito do livro torna-
se banalizado. A Poética poderia muito bem ter sido um livro de culinária.
Mas talvez essas alternativas sejam aparentemente exaustivas. Enquanto a
Poética é sobre a poesia em geral e sobre a tragédia em particular (os comentadores não
deixaram passar este ponto), ela é sobre a estrutura fundamental da ação humana. Ora, se
a razão é o que distingue a ação humana, um livro sobre a estrutura da ação humana deve
ser um livro sobre a razão. A Poética pode ser sobre ambas, não porque Aristóteles
escolheu esconder uma discussão exótica abaixo de uma explicação ordinária da poesia —
como se um escrito esotérico significasse ocultar sua própria intenção real detrás de uma
fachada arbitrária —, mas porque poesia, ação e razão conectam-se em tal profundidade
que falar de uma necessariamente envolve as outras. A natureza dessa necessidade é um
tópico importante o suficiente para justificar mais um comentário sobre a Poética de
Aristóteles. Isso nos força a reinterpretar o significado do livro como um todo sem
cometer a insanidade de assumir que ninguém jamais entendeu nada de importante sobre
aquele que é provavelmente o produto escrito mais freqüentemente lido de Aristóteles.
Além disso, se a discussão da Poética sobre poesia através da tragédia é em
outro nível uma discussão da razão através da ação humana, por que Aristóteles em lugar
nenhum faz a relação entre esses dois níveis de modo explícito? Ele não está consciente
da conexão? Se assim é, então alguma outra coisa deve ser responsável pela
superimposição extraordinária de uma discussão sobre outra. Por diversas vias
engenhosas e mutuamente incompatíveis, esta foi a hipótese da maior parte dos modos
contemporâneos de interpretação. A astúcia da história, de Eros, da linguagem ou do que
quer que seja — qualquer um, menos a de Aristóteles — permite aos intérpretes fazer
aquilo a que eles não conseguem resistir em virtude de um impulso enraizado
profundamente na natureza do próprio pensamento; e isso nos permite ver que um texto
significa mais do que ele parece à primeira vista, que sua superfície comum tem uma
profundidade, um ser que subjaz à sua aparência. Ao mesmo tempo, isso responde muito
bem a questão de por que seria impossível para eles fazer o que eles fazem. O que os
desconstrutivistas, freudianos, marxistas e historicistas têm em comum é um desejo
incompreensível de, ao mesmo tempo, ter e comer seu bolo. Um mundo sem nós e
quebra-cabeças — e assim níveis de significados — é desinteressante para eles, mas as
soluções que eles dão para estes quebra-cabeças tornam a própria atividade de ser
desafiado uma anomalia. Sempre que a inteligência se vê envolvida em uma fundação pré-
inteligente, a pesquisa pelo significado é recusada por aquilo que é “encontrado”. E
aqueles intérpretes, que, tendo notado que nossa busca para além do solo — o que está
oculto abaixo dele — jamais parece resultar em uma fundação, concluem que a tarefa de
interpretar é infinita e que todas as fundações são, portanto, meramente postulados,
falham em notar que eles perceberam essa infinidade da interpretação. Eles deram um
passo para trás do mundo para apreender alguma coisa dele, mesmo em sua recusa de que
este passo é possível. Todo o significado é, portanto, não simplesmente postulado. Ora, o
desespero da possibilidade de interpretar poderia não ser tão ruim se significasse somente
que a crítica literária teria que acabar. Enquanto um mundo como esse poderia ser mais
pobre, não se arruinaria. Entretanto, a possibilidade de interpretação está intimamente
conectada à possibilidade do pensamento. Inteligência e humanidade compelem os
críticos a continuar questionando, mesmo se suas doutrinas tornam a atividade absurda.
Felizmente, inteligência e humanidade regularmente triunfam sobre doutrina.

2
A questão que não deve ser evitada tem duas partes. Por que Aristóteles
deveria fazer uma investigação sobre a natureza da ação humana parecer uma investigação
sobre poesia, especialmente se em outro lugar (Ética a Nicômaco 1040 a 1-6) ele distingue
claramente as duas? Qual é a relação entre poesia e ação, e o que essa relação requer de tal
modo que ela seja apresentada de forma indireta na qual Aristóteles a apresentou? Em
segundo lugar, por que o homem que também distingue claramente em outro lugar o
teórico do poético (Metafísica 981 b 26-82 a 3) mergulha uma discussão da razão em uma
de poesia? Estas — não pequenas questões — resultam em perguntar por que a Poética
tem a forma que tem ou qual a relação que existe entre sua forma e seu conteúdo. Esta é a
questão que guia o comentário que se segue.
Justificar a afirmativa de que a Poética diz respeito à estrutura da ação
humana e à razão é uma odisséia que requer uma interpretação do livro como um todo.
Como sempre, pathei mathos — a prova do pudim está em comê-lo. Entretanto, é preciso
oferecer observações preliminares de modo a induzir a que se prove do pudim. O tema
proposto da Poética é poiêtikê (a arte da poesia) ela mesma e suas espécies (eidê). Aristóteles
argumenta que a tragédia é paradigmática da poesia (poiêsis), e assim o livro sobre poesia
pode ser primariamente sobre sua manifestação mais perfeita. Ao mesmo tempo, alguma
coisa importante é deixada implícita. Ao final de sua discussão das origens históricas de
comédia e tragédia, Aristóteles observa que os dóricos fazem reivindicações (antipoiountai)
sobre ambas, citando seus nomes como sinais.
E eles [reivindicam chamar] poiein pelo nome dran, mas eles dizem que os atenienses o
chamam pelo nome prattein. (1448 b 1-2)5
Enquanto isto parece pouco mais do que uma nota de rodapé, tomando como certo que
poiein significaria comumente “fazer” no sentido de “produzir”, aqui Aristóteles avança de
modo a nos convidar a considerar poiein e prattein como sinônimos.6 Nesse contexto poiein
significa “agir”. Nós teríamos que retraduzir o título da Poética de acordo com isso? Peri
poiêtikês significaria, assim, Sobre a Arte da Ação. Atores e atuar teriam algo a ver com a
ação; poesia estaria, de algum modo, no centro da vida humana.
Uma evidência circunstancial favorece essa visão da Poética. Se toda a ação
humana parece almejar algum bem, e se a existência dos bens instrumentais apontam em
direção a um bem em função do qual escolhemos todos os outros, e se existe uma ciência
deste bem supremo, e se, como Aristóteles diz, esta é a ciência política, ou politikê (Ética a
Nicômaco 1094 a), então é de se esperar que poesia e política estejam estreitamente ligadas.
Elas estão. A Política de Aristóteles termina com uma explicação da música e
especialmente poesia, tanto como meio para educar os seres humanos para serem bons
cidadãos, quanto como meta para que o animal racional é educado.
Tudo o que isso significaria torna-se um tanto mais claro na Ética a
Nicômaco. No livro III, coragem ou virilidade (andréia) é dita como sendo o meio próprio a
respeito das paixões de medo e confiança. Entretanto, dado que o medo pode ser
entendido como uma antecipação ou prosdokia de coisas ruins em geral, quando então a
coragem é pensada de alguma maneira equivalente a todas as virtudes, devendo ser
especificado o medo particular com o qual ela lida. Como o mais terrível dos medos é o
da morte, este deve ser aquele com que a coragem se relaciona — mas não toda morte. A

5 Todas as citações da Poética foram tomadas da edição de B. W. Lucas (Oxford: Clarendon Press, 1986).
Todas as traduções são minhas [de Michael Davis – vf].
6 Enquanto Aristóteles faz a distinção entre fazer (poiêsis) e agir (práxis) na Ética a Nicômaco 1140a 1-4, ele se

justifica por meio do apelo a diálogos exotéricos (exôterikoi logoi). Sua diferença em um nível não anula sua
semelhança em outro.
3
coragem entra em jogo quando é possível para nós exercer a escolha. Ela, portanto,
relaciona-se acima de tudo com encarar a morte na guerra.
Para falar disso, Aristóteles compara o mergulho no mar com a luta em
uma batalha. A comparação lembra o canto XXI da Ilíada, em que Aquiles luta com um
rio — chamado Xanthus pelos deuses e por nós, e Escamandro por Aquiles e pelos
troianos. Aquiles lamenta a possibilidade de morrer dessa maneira ignominiosa; para nós,
que estamos conscientes de que ele está lutando contra um deus, este destino não parece
tão desgraçado. Aristóteles sabe, evidentemente, que é possível ser corajoso em um
furacão, mas pensa que tal coragem é entendida metaforicamente. O paradigma é sempre
a luta em batalha. A explicação das virtudes morais específicas, portanto, começa com a
coragem, porque ela é modelo para como lidar com todo o medo entendido como
prodoskia do mal e assim para como lidar com o mal em geral. Aristóteles enfoca uma
situação em que temos uma escolha, para fornecer um modelo para nos comportarmos
sempre como se tivéssemos uma escolha. De acordo com isso, Aquiles não é
simplesmente o mais corajoso, mas o modelo para a virtude como um todo.
O problema mais difícil para a concepção de Aristóteles sobre a coragem é
que, enquanto as virtudes morais supostamente nos fazem felizes, a coragem é
freqüentemente mais desprazerosa e pode facilmente nos matar. Por que, então, o
homem corajoso arrisca sua vida? Aristóteles diz que é em vista do kalon — o nobre ou o
belo. Mas este fim kalon é claramente não presente na atividade ela mesma. Nem matar,
nem ser morto é em si mesmo belo. Devemos olhar para outro lugar além dos corpos
mortos no Escamandro para ver a devoção de Aquiles ao kalon. O homem corajoso,
apresentando uma imagem para si mesmo de sua ação como completa, contempla seu
feito como outros irão contemplá-lo e assim alcança os benefícios da honra até mesmo
antes que ela esteja garantida. A ação atual torna-se kalon na medida em que é tornada
completa através da reflexão ou imaginação. Os corajosos, portanto, fazem o que eles
fazem, não porque isso é bom, mas porque eles podem dizer “isso é bom”. Isso é o que
kalon significa; ele é impossível sem lógos.
A forma espúria de coragem mais elevada é chamada de coragem política
por Aristóteles; sua finalidade é a honra. Ele usa como exemplo Heitor e Diomedes
preocupando-se com o que será dito deles se não lutarem (1116 a 22-26). Mas exatamente
o que é que diferencia esta postura do agir “em função do kalon”? Se coragem sempre
significa coragem na guerra, então ela sempre se manifestará em um contexto político.
Cidades fazem guerra; indivíduos não. Mas se coragem é uma virtude, ela precisa ser
alguma coisa que transcende toda pólis particular. Este é o problema de Aquiles. Longe da
cidade ele não pode mostrar sua virtude, mas uma vez retornando para a batalha seus
motivos são necessariamente obscuros. Ele o faz por Pátroclo, pelos gregos, pela honra,
pela imortalidade? Andréia é em princípio invisível, pois ninguém pode vê-la fora de um
contexto político, o que quer dizer desconectada dos motivos ulteriores da ação que se
atribuem ao homem político.
O mais impressionante sobre a explicação da coragem na Ética a Nicômaco é
que Aristóteles usa quase exclusivamente exemplos ficcionais — Aquiles, Heitor,
Diomedes, etc. Em poesia, virtualmente não há possibilidade de ver aquele elemento que
faz da coragem o que ela é. O homem corajoso não arrisca sua vida em função de um
medo maior ou vergonha ou confiança devido a uma experiência superior. E mesmo a
partir do próprio ato é impossível distinguir a diferença entre estas formas espúrias de
coragem e aquela que é real. Precisamos de toda a história e somente a poesia pode nos
fornecê-la. A poesia nos permite ver dentro dos homens de tal maneira que possamos
celebrar sua devoção ao kalon. Ela torna visível a reflexão que enobrece a ação. Isso nos

4
remete de volta à explicação anterior do caráter metafórico da coragem em uma
tempestade no mar. De certa forma, toda coragem é metafórica. Até mesmo Aquiles está
desempenhando um papel; ele conhece seu destino e portanto é o paradigma do homem
corajoso; como todos os homens corajosos, ele quer “morrer como Aquiles”. A poesia
torna possível experimentar nossa ação como um todo antes que ela configure este todo.
Esta totalidade, então, torna-se uma parte da experiência ela mesma. Ou melhor, dado
que a conjunção não ocorre temporalmente em termos reais, a poesia constitui a
experiência. No caso da coragem, o que seria essencialmente doloroso é transformado em
algo “prazeroso”.7 E na medida em que a coragem representa aqui todas as virtudes
morais, a poesia seria condição necessária para as virtudes morais em geral. Ela é o que
nos permite experienciar nossas vidas como totalidades.
Podemos dar um passo a mais. Toda ação humana é sempre já uma
imitação de ação — Aquiles está realizando sua própria imagem de si mesmo; toda ação é
portanto poética. De acordo com isso, dado o começo da famosa definição aristotélica de
tragédia como uma “imitação de ação” (1449 b 24), a Poética parece ser sobre duas coisas:
poiêsis entendida como poesia — uma imitação de ação; e poesia entendida como ação
humana — já em si mesma também uma imitação de ação. Aristóteles pode combinar
uma análise de poesia com uma análise de ação porque, em algum sentido, as duas são a
mesma coisa. Que elas sejam a mesma coisa é o que significa para os seres humanos que
eles sejam animais racionais. Com isso em mente, comecemos pelo começo.

7 Isto não é diferente do que ocorre na tragédia. Cf. Poética 1448 b 10-20.
5
Parte I

Mímesis

The most important thing about acting is honesty. If you can fake that,
you’ve got it made.8

— George Burns

Capítulo 1

Coisas secundárias (1447a8-18)

[1]9 A Poética pode ser algo mais profundo do que parece; entretanto, sua aparência fica
por ser explicada. A poesia tem um poder impressionante o suficiente para ser um objeto
de admiração por si mesma. O livro de Aristóteles — não freqüentemente lido como uma
explicação de nós mesmos para nós mesmos — é entretanto freqüentemente lido. Ora, se
é óbvio que a Poética é sobre poesia, é igualmente óbvio que Aristóteles entende a poesia
como uma forma de mímesis — imitação ou representação. À primeira vista, mímesis
parece ser uma estilização da realidade na qual os traços ordinários de nosso mundo são
focalizados com certo exagero, sendo a relação da imitação com o objeto que ela imita
algo como a relação da dança com o andar. A imitação sempre envolve a seleção de
alguma coisa do continuum da experiência, fornecendo assim o limite para aquilo que na
verdade não contém começo ou fim. Mímesis envolve um emolduramento da realidade
que anuncia que aquilo que está contido na moldura não é simplesmente real. Assim,
quanto mais “real” a imitação, tanto mais fraudulenta ela se torna. Se o tema da Poética é a
arte da poesia ela mesma, e o coração da poesia é mímesis, então talvez o tema da Poética
possa ser entendido como mímesis, não em suas várias formas ou produtos, mas aquilo
que ela é em si mesma. De acordo com Aristóteles, os seres humanos diferem de outros
animais por serem os mais imitativos. Nós nos deleitamos em ver imagens porque ao
fazê-lo nós “aprendemos e raciocinamos o que cada coisa é, isto é, que este homem é
aquele” (1448b4-17). Que nós imitemos, portanto, tem a ver com nosso ímpeto
incontrolável para ver a superfície das coisas. Ter que dizer “este é aquele”,
evidentemente significa que “este” não parece ser, em princípio, “aquele”, mesmo que um
exame posterior revele como sendo a verdade da questão. Precisamos reunir as coisas.
Em 1450a4-5 Aristóteles definiu o enredo como a “composição [synthesis] de feitos
[pragmata]”. Logo após isso (1450a 38-39), ele chama o enredo de “a alma e o primeiro
princípio da tragédia”. Tragédia é, evidentemente, uma imitação de ações ou feitos (1450 a
16). Reunindo tudo isso, parece que a composição de ações ou feitos é a alma e o
princípio da imitação de ações ou feitos. Isto é, a composição é a alma e o princípio da
imitação. Quando Aristóteles indica a mímesis como a nossa característica distintiva, ele
pode parecer que está oferecendo uma nova definição de seres humanos potencialmente
discordante de outras definições que ele deu — animal racional (Ética a Nicômaco 1098a,
1102a-103a, Política 1253a10-15) e animal político (Política 1253a3). Entretanto, entender
nossa natureza como mimética mostra-se como uma interpretação de nossa natureza

8 Tradução: “A coisa mais importante sobre o atuar é a honestidade. Se você pode fingi-la, você o
realizou.”
9 Os algarismos arábicos entre colchetes correspondem aos capítulos da Poética em discussão no

comentário.
6
como racional, que por sua vez é a mesma de nossa natureza como política. A Poética é um
tratado da racionalidade que é a característica distintiva da ação humana.
Entretanto, representar a mímesis como tal seria como dar um lógos do
lógos, ou pensar sobre o pensamento.10 Uma representação de representação envolveria
um deslocamento inicial de nossa atenção rumo ao objeto representado. Para representar
uma representação alguém deveria mostrar alguma coisa sendo representada, mas não é
possível mostrar uma imagem de uma maçã sem mostrar uma maçã. A Poética é
principalmente sobre mímesis — esta coisa fundamental que nós fazemos que nos torna
humanos. Entretanto, a mímesis desafia a ser olhada indiretamente. Em geral, ela é
acessível somente através de seu produto, também chamado mímesis. Mas a investigação
desses produtos, na medida em que eles são entendidos como imitações, parece ser uma
investigação sobre a poesia. A Poética, uma investigação sobre a arte da poesia ela mesma,
é sobre a ação humana como constituída pelo impulso irresistível da razão em syllogizesthai
— ver este como aquele. Colocar este item temático em geral em vez de em um contexto
particular significaria dar uma olhada direta naquilo que pode ser visto apenas
indiretamente. Uma vez que essa tarefa é impossível, o deslocamento mimético normal de
nossa atenção em direção ao objeto representado vem à tona em algum lugar. Dado que
toda representação tem que ser de algum objeto, na Poética a representação de mímesis em
geral mostra a si mesma como uma investigação sobre algo particular — poesia, mas com
a necessária especificação do significado do termo. Poesia é peculiar; enquanto ela se
expande para toda parte imitando tudo da vida, nem tudo é poesia. Ela tem um âmbito
específico. Aristóteles nos diz que ninguém confundiria o que Empédocles escreveu
como poesia, a despeito do fato de que é em verso; ao mesmo tempo, não há limite para
o âmbito da poesia — qualquer coisa pode ser seu objeto. Ironicamente, essa estranha
possibilidade de substituir o significado geral de mímesis pelo significado estranhamente
particular presente na poesia está na raiz da força da poesia — o assunto do livro tal
como entendido costumeiramente. A poesia é o objeto poético da Poética de Aristóteles.
No segundo em que a Poética começa, Aristóteles introduz estes
argumentos:
No que concerne à tanto a poiêtikê [a arte da poesia, fazer, realizar] ela mesma e suas
formas [eidê], qual poder particular que cada uma tem e como se deveriam compor os
enredos se a poiêsis [poesia, fazer, realização] deve resultar bela, e ainda quantas e quais
partes ela contém, e semelhantemente também em relação ao que mais pertence a essa
mesma investigação, vamos falar começando, de acordo com a natureza, primeiro a partir
das coisas primeiras. (1447 a 8-13)
É de se presumir que se alguém possuísse a arte da carpintaria ela mesma,
ele seria capaz de fazer qualquer coisa de madeira. E, possuindo a arte da política ela
mesma, alguém teria o conhecimento necessário para agir em todo regime político. Mas
qual é a arte da poesia ela mesma? O homem que possui poiêtikê autê seria capaz de
produzir toda espécie de poesia?11 Houve alguma vez tal poeta? E o que Aristóteles quer
dizer com as eidê, as formas ou espécies, da arte da poesia? A seqüência sugere que ele está
se referindo às várias formas de poesia (por exemplo, tragédia ou epopéia), mas isso não
pode ser o caso. As eidê devem ser as formas da arte da poesia.12 Entretanto, as duas são

10 Cf. Metafísica 1074 b 34-35.


11 Cf. Platão Íon 530 b-32 b, O Banquete 223 c-d e Apologia de Sócrates 22 a-c.
12 Por exemplo, S. H. Butcher (Aristotles’s Theory of Poetry and Fine Art) traduz o começo da primeira

sentença assim: “Proponho tratar da poesia em si mesma e de suas várias espécies...”. Telford traduz
corretamente, mas não vê o quanto é importante que Aristóteles esteja falando das eidê da arte da poesia
como oposta às eidê da poesia. Else (Aristotle’s Poetics: The Argument) vê que Aristóteles fala das eidê da arte
7
confundidas facilmente. Como alguém poderia articular a variedade dentro da poiêtikê a
não ser articulando a variedade que ela produz? Poetas trágicos fazem tragédias, poetas
épicos fazem epopéias; enquanto há uma arte da poesia “ela mesma”, ela toma várias
formas dependendo de se ela se relaciona com epopéias, tragédias, poemas líricos, etc. A
matéria com a qual a arte da poesia lida é peculiar. Carpinteiros conhecem a natureza da
madeira e assim seu potencial para a transformação, independente de seu conhecimento
daquilo em que precisamente a madeira deve ser transformada. Mas qual é exatamente a
matéria com que o poeta lida? Palavras? Mas elas são a matéria da prosa também. Toda
fala não é mais poesia do que todo movimento corporal é dança. Mais do que as outras
artes, então, poiêtikê — a arte da poesia ou da produção ou do fazer ou do realizar ou do
atuar — é invisível nela, separada de seus produtos. Não existe uma estante de livros
semi-construída oculta; um poema semi-escrito não existe em lugar algum. Se, como arte
da carpintaria, poiêtikê é um conhecimento que é responsável por uma certa maneira de
lidar com a as coisas, então essa maneira não é realmente separável de seu objeto como
uma arte, do conteúdo daquilo com o qual ela lida.
A investigação de Aristóteles sobre a poiêtikê começa inicialmente das
“coisas primeiras”. “Primeiras” é tanto adverbial, como nós começamos, e também se
refere àquilo com que começamos. Entretanto, como o fazer deve, de alguma maneira,
preceder a coisa feita, embora Aristóteles possa afirmar que começa com as coisas
primeiras, em nada o ajuda começar com o que vem em segundo lugar. As várias eidê de
poiêtikê são visíveis somente nas diferentes poiêseis das quais elas são as artes. Esta primazia
das “coisas segundas” é curiosamente confirmada pela linguagem de Aristóteles. Poiêtikê é
originalmente um adjetivo que modifica um nome feminino. Entretanto, em adjetivos
com a terminação ikê (por exemplo, aulêtikê, politikê, rhetorikê), o nome — tanto a arte
(technê) ou conhecimento (epistêmê) — tornou-se implícito no adjetivo; torna-se um
substantivo — arte ou ciência da flauta, da cidade ou do orador. Como um objeto por
direito próprio, ela parece ser uma coisa primeira quando de fato é uma coisa segunda.
Esta mudança é confirmada pela dupla ocorrência de autês — “ela mesma” no primeiro
exemplo e “dela” no segundo. Ao referir-se à poiêtikê ela mesma, ou à poética ela mesma,
Aristóteles transforma o que era adjetival e assim dependente para sua existência daquilo
que ela modifica, em uma substância independente. Falar da poética como tal ou da
poética nela mesma é tornar uma coisa segunda em uma coisa primeira, uma
transformação confirmada pelo segundo autês, que à primeira vista parece paralelo ao
primeiro, mas que de fato não é um pronome intensivo, mas somente o genitivo, “dela”.
A estrutura aparentemente paralela nos seduz poeticamente a deslizar sobre o movimento
real da sentença. Poiêtikê foi tomada como um “ela” — uma coisa primeira — sem que
nós nem mesmo percebêssemos isso. O propósito da primeira sentença da Poética é
chamar atenção para este fato enquanto o esconde ao mesmo tempo. Isso não é acidental;
um livro sobre a arte da poesia deve ser sobre algo que é sempre sobre outra coisa sem
que ele seja sobre essa outra coisa.
Aristóteles explica sua investigação sobre as eidê da arte da poesia como
uma investigação sobre qual poder cada eidos tem. Poiêtikê ela mesma é visível somente em
suas várias espécies — as artes da tragédia, epopéia e assim por diante. Essas espécies são
por sua vez visíveis apenas como os poderes que elas têm para se mostrarem como

e que ele então discutirá as diversas formas do fazer poético através de uma discussão das várias formas
do poema feito, mas Else rejeita rapidamente demais a possibilidade de que, embora sem explicitar,
Aristóteles está se referindo à parte da poesia como uma das espécies da arte de fazer ou de realizar em
geral. Assim, estaríamos falando da arte de fazer ou atuar como tal, cuja espécie mais importante irá se
mostrar como sendo o fazer da poesia.
8
produtos — poemas. Aristóteles relaciona-se, portanto, com as partes de um poema e
como elas podem ser com-postas kalôs — belamente ou nobremente — não como um
guia para produzir poesia, mas como uma análise de como a poesia é produzida. A Poética
é filosofia da literatura mascarada como uma oficina de escrita. Ela é uma análise ou uma
separação daquilo que ela pensa ser uma com-posição de coisas. Ela parece nos dizer
como com-por poemas a partir de certas partes, mas de fato as partes nunca existiram
suficientemente separadas uma das outras para nos permitir começar com qualquer uma
delas isoladamente. Elas são os resultados da análise, e não blocos de construção. Não se
pode começar com as “partes” da tragédia designadas por Aristóteles no capítulo 6 e
discutidas no restante da Poética e com-pô-las para fazer uma tragédia. Tragédia não é
enredo mais caráter mais elocução, etc.; e essas coisas nunca estão separadas uma da
outra. Somente ao compreender como elas já estão necessariamente misturadas elas
podem ser novamente misturadas de um modo que é o mais kalon.
Poesia nunca pode ser uma mistura de elementos que são verdadeiramente
“coisas primeiras”. A Poética começa como ela o faz ao exibir a causa dessa característica
da poesia. Distinguindo a arte da poesia em suas espécies dos produtos belos da arte,
Aristóteles já sugere a distinção dentro da mímesis, a se tornar mais tarde temática, entre
o ato de imitar e o produto de imitação (1448 b 4-17), uma distinção que é paralela ao
entendimento usual de Aristóteles da diferença entre agir e fazer. Crianças que mimetizam
seus pais praticam imitação; artistas que em sua imitação pintam retratos produzem
imitações. Nós todos realizamos o primeiro por natureza e sentimos prazer ao contemplar
o segundo. Uma vez tendo visto a distinção explícita na mímesis entre o ato de fazer
poesia e a poesia feita, somos capazes de ver o começo de Aristóteles sob nova luz. O que
vem depois já está implicado na própria palavra poiêtikê. Formada em última instância de
um verbo que significa “fazer” (poiein) e uma terminação (ikê) que transforma a ação do
verbo em um objeto de uma arte, poiêtikê deve tratar a ação como um produto. Além
disso, o verbo é ele mesmo ambíguo, significando “fazer” tanto no sentido de “agir” e no
de “produzir”. Aristóteles começa a Poética com a simples distinção entre arte e produto,
mas cada vez que nós tentamos isolar o próprio ato, nós descobrimos nele um produto.
Poiêtikê autê parece sempre se esconder detrás de um poema.
As coisas primeiras da poiêtikê às quais Aristóteles, sem explicação, agora se
volta são imitações, coisas, em sua real natureza, de outras coisas — isto é, coisas
segundas. A lista é peculiar.
Ora, poesia épica [epopoiia] e o fazer [poiêsis] tragédia e ainda comédia e a arte de fazer
ditirambos [dithyrambopoiêikê], e a maior parte da arte da flauta e da cítara, todos são em
geral [to synolon] imitações. (1447 a 13-16)
Como epoipoiia contém o verbo poiein e pode significar tanto o fazer epopéia
ou a epopéia, Aristóteles começa conservando a ambigüidade entre a atividade e produto.
Que a segunda coisa primeira é o fazer tragédia parece, primeiramente, resolver essa
ambigüidade ao separar poiein do tipo de coisa feita — a coisa primeira não é o poema
mas a atividade do poeta. Poiêtikê então seria a arte dessa atividade. E ainda a palavra que
Aristóteles usa para isolar tragédia de seu fazer, poiêsis, significa algo feito ou produzido.
Então, o que resta a não ser eliminar o verbo problemático? Com efeito, o próximo
exemplo de Aristóteles é simplesmente kômôidia — comédia; a palavra pode significar
somente a própria poesia, não o ato de sua produção. Entretanto, que a comédia sirva a
este propósito é curioso, pois ela não é como outras formas de poesia. Quando realizam
monólogos, os comediantes freqüentemente escrevem seu próprio material — nós os
vemos atuar, mas sua ação é também seu produto, talvez mais do que todas [as formas de
representações – vf], numa comédia o que é representado é o ato de fazer. Um Sófocles
9
poderia estar ocupado demais para se entristecer enquanto tece as intrigas do enredo das
Traquínias, mas não está tão claro que um Aristófanes pelo menos não sorriria ao seu
modo quando compunha Os pássaros. Atores comediantes começam ou terminam como
escritores comediantes; tragédia e atuação trágica estão unidas de modo semelhante?13
Ora, se até mesmo retirar o verbo poiein não nos permite isolar um termo dessa díade de
ação e produção, de tal modo a alcançar uma coisa primeira, que tal lançar tudo em uma
palavra só para pelo menos mostrar os elementos lado a lado? Embora dithyrambopoiêtikê
— a arte de fazer ditirambos — ponha tudo num mesmo pote, ela pode referir-se
somente à arte da ação, ou de fazer ditirambos e não à poesia ditirâmbica. Assim, a adição
da terminação ikê produz um objeto da atividade que é, ela mesma, inteligível apenas em
termos do objeto que ela produz. Essa parece ser a característica da mímesis poética que a
difere de outra imitação — dois exemplos da qual se seguem: auletikê e kitharistikê. A arte
da flauta significa tocar flauta. Ela não envolve fazer flauta. Ao contrário: o conhecimento
que constitui a arte é determinado pelas características de um instrumento que preexiste o
ato de tocar flauta. Flautistas tocam a flauta e sons, mas em sentidos diferentes; sua arte
não é a do som. Aulêtikê não é o mesmo que mousikê.
Mímesis significa primeiramente mimetismo, mas também representação,
tanto como uma ação quanto como um produto. O movimento da lista de Aristóteles
reflete essa duplicidade. O como e o o quê da imitação estão de tal modo misturados em
epopoiia, que sugerem um fazer não-autoconsciente, semelhante ao mimetismo. O “fazer
tragédia” sugere uma distinção nítida, e dithyrambopoiêtikê sugere uma reunião consciente
de ato e produto, ou de um mimetismo e representação, ou de como e o que, ou de fazer
não-autoconsciente (hábito ou synêtheia) e a análise do fazer (techné). Mas poderíamos dar
um passo a mais. Mímesis, já conectada ao pensar, provou ter uma unidade problemática.
A Poética significa uma explanação dessa unidade. Mas a unidade da mímesis não é nada
menos do que a unidade daquele ser no qual a razão e o impulso misturam-se para formar
o animal racional.
Os exemplos de Aristóteles revelam a característica crucial da imitação
poética como sendo a dificuldade em separar o seu objeto de sua atividade. Isso se mostra
na seqüência imediata.
Mas elas [imitações] diferem uma da outra de três modos — tanto por imitar em coisas
diferentes, [imitar] coisas diferentes, ou [imitar] diferentemente e não da mesma maneira.
(1447 a 16-18)
Isso parece suficientemente unívoco; fornece uma estrutura para os três
primeiros capítulos da Poética — o restante do capítulo um lida com aquilo em que a
imitação tem lugar, o capítulo dois com aquilo que é imitado e o capítulo três com como
isso é imitado. Entretanto, há uma ambigüidade no grego. To mimeisthai hetera certamente
significa imitar coisas diferentes e to mimeisthai heterôs significa imitar diferentemente. Mas
o acusativo neutro plural de um adjetivo pode também ser adverbial.14 Se nós tomássemos
hetera como equivalente a heterôs aqui, abaixo da superfície óbvia e sensível, Aristóteles
estaria sugerindo que aquilo que é imitado é de alguma maneira o mesmo que como isso é
imitado. Que como algo é imitado seja sempre o objeto real da imitação parece louco, a
não ser que se imite o ato da própria imitação, anulando a distinção entre produto e ato, o
que significa mostrar o elemento peculiarmente humano de ação. É evidente que a Ilíada
deve possuir certo conteúdo para ser um poema de alguma maneira. Mas a “ira de

13 Cf. Platão Íon 535 e.


14 Aristóteles ao seu modo indica o uso adverbial do caso acusativo nas últimas palavras da sentença — kai

mê ton auton tropon, ou “ e não da mesma maneira” — que aqui se refere a como a imitação é feita.
10
Aquiles” não é idêntica à soma dos eventos pelos quais ele passa como vistos do lado de
fora. Não há ira de Aquiles, a não ser que estes eventos pareçam significantes a Aquiles.
Quando estamos com raiva, nós podemos relatar supostos erros praticados contra nós,
mas essa representação de eventos particulares é pensada como paradigmática. Não é
apenas o tapa no rosto que provoca a nossa ira, mas seu significado. Ironicamente, a
apresentação para nós mesmos do significado do evento envolve uma representação do
evento. Semelhantemente, estes eventos não são o que Homero está imitando, a despeito
do fato de que eles são o conteúdo de sua imitação. A razão de Homero imitar os eventos
está por trás dos próprios eventos. Nesse sentido, seu próprio ato de imitação é, em
última instância, o que ele está imitando.
Na medida em que toda ação humana já é uma imitação de ação, ela é
poética em sua natureza última. Isso coloca o começo da famosa definição aristotélica de
tragédia — que tragédia é uma imitação de ação — sob uma nova luz. A Poética é sobre
poiêsis entendida como poesia, ou imitação de ação, e poiêsis entendida como ação, que é
também imitação de ação. É a característica distintiva da ação humana que, sempre que
escolhemos o que fazer, imaginamos uma ação para nós mesmos como se nós a
estivéssemos investigando do lado de fora. Intenções não são nada mais do que ações
imaginadas — internalizações do externo. Toda a ação é, portanto, imitação de ação; é
poética.
Mas o que esta formulação que causa perplexidade significa? O argumento
é realmente o mesmo tal como surge, digamos, para a psicologia freudiana. Por que
somos inclinados a tentar entender a nós mesmos em termos do que ocorreu conosco
quando éramos bastante jovens? Os eventos de nossa juventude parecem ser formativos
porque puros; eles são tão remotos que até mesmo algumas vezes se pensa que sejam pré-
natais. Estes eventos são tomados, por um lado, como experiências e assim reais, mas por
outro lado, como tipos ou formas perfeitos, e assim formativos. O poder da psicologia
freudiana para nós tem a ver com sua tentativa de entender a experiência em termos de
uma experiência mais purificada — isto é, com sua tentativa de entender a experiência
poeticamente. Mas, evidentemente, se toda experiência é desse tipo, então nunca poderia
haver uma experiência primária. Meu comportamento atual poderia ser entendido como
edipiano, mas a reação inicial edipiana não pode ser entendida como edipiana. Esta é a
razão pela qual ela é caracterizada através de uma referência poética (isto é, por referência
ao comportamento de um adulto). O homem adulto é entendido em termos de um
evento primordial experimentado quando criança que é, por sua vez, inteligível somente
em termos de um mito sobre o homem adulto. Em que sentido, então, nós podemos
alguma vez falar sobre reações primeiras? Por um lado, nós não podemos entender nossa
experiência através de uma experiência primária, porque o que determina nossa
experiência e a faz ser o que ela é não pode ser uma de nossas experiências. Por outro
lado, não parecemos capazes de entender nossa experiência de outra forma. Talvez seja
paradoxal dizer que as coisas primeiras para nós são sempre imitações (isto é, coisas
secundárias), mas é um paradoxo não facilmente resolvido.

Capítulo dois

Em quê (1447 a 18-b 29)


O caráter secundário das coisas primeiras da poiêtikê torna-se mais claro na
explicação de Aristóteles das diferenças naquilo em que imitações são feitas.
Pois tal como alguns que fazem imagens imitam muitas coisas com [ou por] cores e
figuras — alguns por arte e outros por hábito [synetheia], e outros através da voz [phônê],
assim também a respeito das artes mencionadas, todos fazem a imitação no ritmo e na
11
linguagem [lógos] e harmonia, mas estes ou separadamente ou em conjunto. (1447 a 18-23)
Esta é uma passagem intrincada. Pode-se pensar inicialmente que Aristóteles pretende
distinguir entre imitações em imagem visuais e imitações em som — assim demonstrando
como as eidê de imitação podem ser diferenciadas pelo meio no qual a imitação é feita.
Phônê, entretanto, significa primariamente a voz e somente metaforicamente o som em
geral. Que a voz não seja pensada como um paralelo restrito a cor e figura está claro
também por seu lugar na sentença. Alguns são ditos como fazendo imitações com ou por
meio de cores e figuras (chrômasi kai schêmasi), enquanto outros imitam através da voz (dia
tês phônês). A diferença é ressaltada pela observação de Aristóteles aparentemente
parentética sobre como imitações com cor e figuras podem ser através tanto de arte
quanto de hábito.15 Somos tentados, assim, a dizer que voz deve ser comparada com arte e
hábito em vez de com cor e figuras. Mas então a voz seria um modo de imitar e não um
meio de imitação. Isso faz sentido enquanto a sentença permanece por si mesma, mas a
seqüência parece exigir uma distinção entre imitação visual e imitação em som.
Entretanto, phônê como voz não é som; ela não é um ser por direito próprio. Falar de uma
voz significa ter assumido alguma coisa que fala através da voz, que tem uma voz. Que
nós não falemos na voz, mas através dela é talvez o sinal mais fundamental de nossa
natureza como miméticos. Cor e figura podem ser entendidas como os elementos simples
a partir dos quais imagens pintadas são construídas, mas a voz não é simples; ela é já
mimética.16 Uma voz é somente uma voz quando ela tem algo para dizer, mesmo que
somente uma expressão de prazer ou de dor. Somente quando tomada metaforicamente
como sendo tudo do som, phônê se compara a cor e figura.17 Como uma coisa primeira,
portanto, ela é primeira apenas em termos metafóricos e assim, embora Aristóteles
indique que ela é a matéria “primordial” da imitação poética, ele tem que separá-la mais
tarde em seus elementos para revelar o “em que” da imitação poética. Temos que alcançar
as coisas primeiras detrás da coisa primeira.
Aquilo em que todas as artes mencionadas18 são imitadas (seu meio) é ritmo
(rhythmos), linguagem (lógos) e a composição de notas de modo agradável que parece
significar tanto harmonia quanto melodia (harmonia) — os três tomados tanto isolados
quanto em conjunto, tanto todos ou em partes. Diferente das coisas primeiras da pintura
(figura e cor), aquelas são já todas disposições, arranjos ou modificações do som. A
matéria da poesia já é composta. Isso parece ser a conseqüência de construir poemas a
partir de palavras. Imagens são feitas de elementos que são eles próprios já imagens.19
Isso aparentemente aplica-se não apenas àquilo em que a imitação poética é
feita, mas também àquilo que é imitado. Empédocles será retirado do âmbito dos poetas a

15 A palavra para hábito, synetheia, também significa intimidade ou até mesmo ato sexual. Alguma geração é
feita com o produto terminado em mente; esta é a geração através de technê. Alguma geração é o resultado
de ações que levam a um produto, mas não são conscientemente em função daquele produto. A
reprodução sexual é o exemplo mais importante de tal fazer. É justo dizer que os dois significados de
mímesis, mimetismo e representação, são análogos respectivamente ao fazer erótico e artístico.
16 Cf. Retórica 1404 a 21, onde Aristóteles chama phônê a mais mimética de nossas partes.

17 Nós poderíamos chamar isto synecdoche quando a espécie fica em lugar do gênero, mas cf. Poética 1457 b

6-13.
18 Tais erêmenais literalmente significa “com aquelas [as artes] que foram mencionadas”. Aristóteles

freqüentemente usa idiomas comuns que, quando lidos literalmente, são sugestivos. Neste caso, as artes
mencionadas são claramente a lista começando com poesia épica e terminando com a arte da kithera. Seu
meio comum é o som. As artes “que foram mencionadas”, por outro lado, provavelmente se referiam
especialmente àquelas artes que produzem seus efeitos pela voz.
19 Cf. Platão, República 595 c-97 c e Íon 537 d-42 b.

12
despeito da forma métrica de seu trabalho. Se forma não é decisivo, será o conteúdo? Ao
representar as transformações do ar, da terra, do fogo e da água sob a influência do amor
e do ódio, Empédocles está tentando imitar as coisas primeiras diretamente. Mas é
característico da poesia sempre tomar como seu ponto inicial coisas secundárias. Este é
também o motivo de a Poética se concentrar na tragédia e não na comédia? Em sua lista de
imitações poéticas, Aristóteles deixa a comédia sozinha, sem nenhuma conexão com o
fazer ou com a arte. Há um sentido no qual o que a comédia imita é menos produzido do
que o que a tragédia imita. Isso estaria de acordo com a observação posterior de
Aristóteles (1451 b 11-32) sobre o fato de que a tragédia usa histórias antigas enquanto a
comédia se apóia muito mais em tipos naturais. Comédia nesse sentido é anterior à
tragédia. As situações na tragédia parecem estranhas e artificiais; temos que elaborar nosso
caminho através da peça para ver por que os eventos que definem Édipo deveriam ser de
alguma maneira paradigmáticos para a vida humana ou o que a ferida incurável de
Filoctetes tem a ver conosco, mas as primeiras linhas das Nuvens de Aristófanes são
suficientes para qualquer pai de adolescentes reconhecer o que está havendo entre
Estrepsíades e Fidípides. E ainda assim Aristóteles concentra-se na tragédia e não na
comédia. Ele concentra-se naquilo que parece derivativo, porque a verdade da condição
humana é que, por mais que situações nos pareçam familiares, as coisas primeiras são
necessariamente derivativas ou secundárias. Toda ação é imitação.
Os exemplos de Aristóteles das maneiras nas quais rhytmos, lógos e harmonia
ficam sozinhos e se misturam são instrutivos. Música instrumental é uma combinação de
ritmo e harmonia. A arte dos dançarinos é tomada como um exemplo de ritmo
isoladamente. Ao tornar “dançarinos” paralelos a “flautas”, Aristóteles sugere que os
dançarinos devem ser entendidos como instrumentos, mas, ao comentar sobre como eles
imitam até mesmo as paixões e ações pelo ritmo de seus figurinos (schêmatizomenôn), ele
nos lembra o fato óbvio de que estas figuras não são audíveis. Não existe dança sem
visão. O ritmo pode ser capaz de permanecer isolado dos outros dois aspectos do som,
mas este exemplo dificilmente o mostra estando sozinho. Lógos isolado e lógos misturado
ao ritmo (lógos métrico) são ambos ditos não tendo um nome. Aristóteles finaliza o
primeiro capítulo com uma discussão dos vários tipos de poesia nos quais todos os três
estão misturados.
Quais possibilidades foram deixadas de lado? Aristóteles não discute o que
harmonia seria em si mesma — provavelmente porque, para ser mais do que um som, as
notas devem mover-se; isto é, elas devem ter um ritmo. Assim, Aristóteles não menciona
a combinação de lógos e harmonia, porque quando a música se move, ela tem um ritmo.
Assim, com a exceção de lógos separadamente, a característica fundamental da imitação em
som parece ser ritmo ou tempo.
Por que lógos seria uma exceção? Aristóteles “explica” por meio de uma
longa digressão.
Pois nós não seríamos capazes de dar um nome em comum aos mimos de Sófron e
Xenarco e os diálogos [lógous] de Sócrates, nem mesmo se alguém devesse fazer a imitação
através de trímetros ou elegíacos ou qualquer outra coisa como esta, exceto se, colocando
junto o fazer com o nome do verso, designamos tais poetas elegíacos e épicos, não os
considerando como poetas a respeito de sua imitação, mas do verso que eles têm em
comum. Pois, mesmo se eles produzem/publicam algo em verso sobre medicina ou
ciência natural, eles [os homens em geral] estão acostumados a denominá-los assim. Mas
não há nada em comum a Homero e Empédocles, exceto a versificação. Daí ser justo
chamar um poeta, mas o outro, em vez de poeta, aquele que explica a natureza. E de
modo semelhante, se alguém devesse fazer uma imitação misturando todos os metros,
como Queremon fez o Centauro, uma rapsódia composta de todos os versos, seria
necessário chamá-lo também de poeta. (1447 b 9-23)
13
Os mimos de Sófron e Xenarco parecem ter sido peças de personagens em
prosa. As falas de Sócrates, sejam tomadas como diálogos platônicos ou as falas próprias
de Sócrates, foram também em prosa. Aristóteles sugere que, tal como nós não temos um
nome comum para estes dois simplesmente porque eles são em prosa, nós não teríamos
nome em comum para outros logoi simplesmente porque eles são em verso. Homero é tão
diferente de Empédocles, quanto Sócrates é de Sófron, mas a presença de metro no
primeiro caso obscurece a diferença, enquanto a falta de nome comum no último caso é
evidência de que os dois não são identificados. Este último caso é especialmente
enigmático, dado que Aristóteles usa uma palavra que poderia facilmente ter sido aplicada
a ambos — mimo (mimos). Ele poderia ter dito que mimos é um termo genérico que, como
poiêsis, veio a ser restringido a uma espécie dentro do gênero. Assim, os logoi socráticos e
os mimos de Sófron seriam mimos em sentido genérico. Não tendo feito observações
desse tipo, Aristóteles sugere que existe uma diferença radical entre os dois, uma diferença
que é análoga à diferença entre os poemas de Homero e os escritos em verso de
Empédocles. Existe, então, uma diferença nas imitações em som além da diferença entre
imitações visuais e sonoras, e ela é tão importante que ameaça a unidade do gênero
mímesis. O que é que torna possível chamar as falas socráticas, a epopéia homérica e a
rapsódia mista de Querémon, tanto quanto ditirambos, nómos (nómos poderia também
significar lei), tragédia e comédia, tudo isso poesia, mas exceto mimos e tratados em
verso?
A intenção de Aristóteles torna-se mais clara no fim da digressão:
A respeito dessas coisas, então, vamos defini-las deste modo. Pois há alguns que usam
todas as coisas mencionadas — quero dizer, por exemplo, ritmo, música e versos — tal
como o fazer [poiêsis] ditirambos e nómos [nomôn], e tanto a tragédia quanto a comédia.
Mas eles diferem porque alguns [usam] todos ao mesmo tempo e outros [os usam]
separadamente [kata meros]. Eu digo, então, que estas são as diferenças entre as artes
naquilo em que elas fazem a imitação. (1447 b 23-29)
Esta é uma reelaboração do primeiro argumento. O ritmo permaneceu
constante, mas lógos tornou-se metro e harmonia tornou-se música.20 Aristóteles chama a
atenção para o que ocorreu ao se introduzir a nova lista com legô — eu digo ou quer dizer.
Ele incorporou a linguagem ou lógos nas outras duas partes. Harmonia ou melodia mais
linguagem é música; linguagem mais ritmo é verso — e não pode haver verso sem
palavras.21 Aristóteles introduziu primeiramente a possibilidade de que lógos pudesse
permanecer sozinho como sendo o “em que” da imitação poética, apenas para retirá-lo no
fim do capítulo 1. Além disso, a harmonia nunca foi dita como estando sozinha e ritmo
esteve apenas problematicamente sozinho na arte da dança. Logo depois de sua
introdução, descobrimos que nenhuma das coisas primeiras originais pode permanecer
por si própria. Por que o argumento procede deste modo? Ao ser falado, lógos é
necessariamente ouvido e assim rítmico, se não métrico. Até mesmo falar para nós
próprios é rítmico. Para o lógos existir separadamente de ritmo, então, ele teria que conter
seu outro sentido — algo como “significado” ou ratio. Nesse sentido, ele existiria, como
uma pintura, todo de uma vez e não se desdobraria no tempo. A chave para o primeiro
capítulo da Poética é que a característica distintiva da mímesis poética é ritmo ou tempo.22

20 Melos pode também significar tom (isto é, a música para a qual os versos líricos são feitos). Entretanto, é
inquestionável que, sem clarificação ulterior, ela traz consigo a noção de música colocada em palavras.
21 Cf. Platão, Górgias 502 c onde lógos é dito como o que permanece depois que da poesia se retiram melos,

rhythmos e metros.
22 Para uma interpretação da importância do tempo ao se diferenciar entre as artes plásticas e a poesia, cf.

Laocoonte de Lessing.
14
À primeira vista, isto faz sentido. Embora seja verdade que nós nem sempre
tomamos uma pintura toda de uma vez, mas sim nos movemos de parte a parte, a própria
pintura não nos força a começar com uma parte e, assim, a tratar uma como
necessariamente anterior à outra. Este não é, evidentemente, o caso em poesia. Um
poema sobre uma urna grega a descreveria em algum detalhe, mas somente ao mover
através da descrição dessa peça — assim literalmente trazendo peças da urna à existência
antes de outras para mostrá-las. A poesia necessariamente representa a diferença como
diferença temporal. Este é o paradigma para poiêsis — o fazer, do qual ela obtém seu
nome. A poesia deve apresentar as partes das coisas como independentes uma da outra,
mesmo quando ela pretende demonstrar sua conexão necessária.23 Ela trata as partes de
uma análise como se elas fossem as partes a partir das quais algo é gerado.
Necessariamente, a poesia apresenta eidê como se elas fossem partes. Mas isso é
verdadeiro de qualquer lógos. O que distingue Homero e Sócrates de Empédocles e Sófron
é que, estando conscientes de sua limitação da linguagem, eles a usam.
O próprio modo de argumentar de Aristóteles na Poética imita o problema
da Poética e deve fazer assim. Ele começa com ritmo, harmonia e linguagem como
separados, para combiná-los de tal modo a mostrar que eles não podem existir
separadamente. É da natureza da imitação poética apresentar temporalmente o que pode
ser entendido apenas como um todo, como se ele pudesse ser composto parte por parte.
Em poesia, a busca por autonomia pode estar entrelaçada com a morte do próprio pai e
com a relação sexual com a própria mãe — em que ser a causa de si mesmo significa
autogeração. Assim, dever-se-ia retraduzir a penúltima sentença do capítulo 1.
Mas elas [as artes mencionadas] diferem em que, por um lado, elas usam tudo, mas por
outro lado procedem por partes. (1447 b 27-28)
O movimento geral do capítulo um da Poética é da poesia para imitação,
para um subconjunto da imitação que está separado do visível como seu meio e parece ter
a ver com o som. Além disso, Aristóteles permitiu que este subconjunto incluísse a dança,
de modo a tornar claro que a característica própria dessa imitação era de fato não o som,
mas o tempo. Vimos também que o “em que” especificado por Aristóteles como sendo
tríplice (ritmo, harmonia e linguagem) era problemático. Os três não podem ser
entendidos como partes da poesia e separados um do outro e assim eles não podem ser
coisas primeiras no sentido de elementos constituintes que existem independentemente
um dos outros. Assim, a explicação de Aristóteles, que inicialmente parece dizer respeito a
como compor poesia — uma explicação genética —, mostra-se como uma análise da
poesia — uma explicação eidética. Ora, esta composição obviamente se estende sobre o
tempo. O que é peculiar à imitação poética, então, é que ela parece ser uma composição
de elementos no tempo, mas de fato não é. Por que, então, ela esconde seu caráter
eidético?
Observamos repetidamente que Aristóteles reproduz este movimento em
sua própria escrita. O grau desta auto-reflexividade não é à primeira vista óbvio. A Poética
algumas vezes parece escrita de modo pobre; há pouca introdução, atipicamente nenhuma
explicação do objetivo da investigação, poucas observações metodológicas e nenhuma
explicação dos pontos de vista de seus antecessores. O livro também parece cheio de
digressões e incompleto. Pense-se apenas no famoso segundo livro “perdido” sobre

23Cf. a dupla explicação de Sócrates da relação de prazer e dor no Fédon 60 b-c. Primeiro ele diz que eles
são inseparáveis e então diz que se Esopo tivesse pensado em fazer um mito sobre eles, ele teria dito que
um deus os misturou. A primeira explicação é analítica ou eidética, a segunda poética ou genética. A
explicação poética primeiro trata as coisas como separadas, para mostrar que elas são inseparáveis.
15
comédia que alguns tomam como prometido em 1449 b 21. A Poética, então, que é sobre
literatura, parece, de todos livros de Aristóteles, o menos capaz de se adequar à sua
descrição de tragédia e, uma vez que esta é paradigmática para a poesia em geral, de toda
poesia como um todo orgânico constituída de começo, meio e fim (capítulo 7).
Entretanto, o livro é repleto de sinais de que Aristóteles pretende que ele seja tomado
como um exemplo daquilo sobre o qual se está falando.24 Como uma regra geral, a Poética
tende a fazer alguma versão daquilo sobre que está falando logo após ter falado sobre
isso. No capítulo 1, Aristóteles começa tratando ritmo, harmonia e linguagem como
inseparáveis e termina nos forçando a perceber sua inseparabilidade. Este modo de
proceder é o modo da poesia e ao mesmo tempo seu modo na Poética. Se nós nos
lembrarmos da conexão entre mímesis e pensamento, esta coincidência não nos
surpreenderia. Se o tempo é o “em que” da poesia, talvez ele seja aquilo em que o
pensamento tem lugar necessariamente. Se fazer ou agir toma a forma da imitação poética
e se pensar também a toma, então poesia seria o ponto de encontro de fazer e pensar. Ela
seria um modo de entendê-los como um. Se os seres humanos são os animais racionais,
então as duas partes da natureza humana podem ser entendidas como uma em termos de
imitação poética. Ou, a imitação poética — imitação no tempo — será a chave para aquilo
que significa que as ações dos seres humanos são racionais. Isto, por sua vez, terá alguma
coisa a ver com nosso modo de nos tornarmos seres independentes e separados a partir
das coisas que tentamos entender. E, a propósito, Aristóteles vincula isto à metáfora
como a característica fundamental do pensamento humano (capítulo 22). Mas está claro
pelo menos que a explicação do meio da imitação poética no Capítulo 1 pavimentou a via
para a discussão do objeto da imitação poética no Capítulo 2. Se o meio da poesia é
tempo, não deveria chegar como surpresa que o objeto da poesia é o que, em algum
sentido, sempre se desdobra no tempo — ação.

Capítulo três

O que e como (1448 a 1-b 3)

[2] Se é inapropriado chamar Empédocles25 um poeta épico, forma não pode ser o que dá
à poesia seu caráter. Devem os poetas, então, ser distinguidos pelo conteúdo de sua
poesia? Diferente das outras artes, poesia não tem um conteúdo peculiar, mas se estende
sobre tudo o que existe. E ainda assim Empédocles, que falava sobre a totalidade, era um
physiólogo e não propriamente um poeta. Se nem o o que nem o como definem a poesia,
talvez ela seja distinguida pela conjunção dos dois — hetera e heterôs compreendidos como
um.26 Esta é a chave para compreender o que Aristóteles quer dizer quando diz que “os
imitadores imitam agentes” (1448 a 1). Agir — o objeto próprio da imitação poética —
não é de forma alguma uma coisa; é um modo.
O Capítulo 2 começa com suas próprias ambigüidades.
Dado que os imitadores imitam aqueles que agem, é necessário para eles ser bons/nobres
[spoudaios] ou vulgares/vis [phaulos] (os caracteres quase sempre se orientam apenas por

24 Para apenas poucos exemplos, comparem-se 1453 a 5, 1453 a 23 e 1451 a 20, também o uso de phaulos
[vulgar] e spoudaios [nobre] através do capítulo 5 com seu uso na sentença final, e a longa explicação de
piedade e medo no capítulo 14 a respeito da natureza da ação voluntária com as observações breves no
final (1454 a 10 ss.) a respeito de se os poetas produziram seus enredos deliberadamente ou não.
25 [O texto original contém “Homero”, mas, pelo contexto, é evidente que há um erro de redação. N. do

T.]
26 cf. Capítulo 1.

16
tais coisas, pois todos diferem a respeito de seus caracteres por vício [kakia] e por
virtude), tanto por serem melhores do que nós, ou piores ou como nós, tal como os
pintores. (1448 a 1-5)
A essa altura não é surpresa que deveria ser perfeitamente obscuro se o
“eles” de Aristóteles se refere àqueles que imitam ou aqueles que são imitados.27 Ambos
devem ser pensados como melhores ou piores, pois imitação não é apenas de ação, mas é
em si mesma uma espécie de ação. O que quer que seja que ela nos ensina sobre a ação
em geral deve se aplicar a ela mesma. Em uma discussão provavelmente sobre as coisas
imitadas em poesia, Aristóteles a seu modo mistura imitadores e imitados. Mas por quê? E
por que a mudança na ênfase das ações como objetos de imitação para o caráter como
aquilo de acordo com que elas diferem? Será que é porque só conseguimos ver o que os
homens são por dentro apenas ao mostrar o que ocorre do lado de fora, mesmo se o que
é externo somente tem significado devido àquilo que presumimos ter acontecido
internamente?
Os agentes — em qualquer que seja o sentido — são primeiramente
referidos como tendo que ser ou bons (spoudaios) ou vulgares (phaulos), mas isso se mostra
como significando ou melhor ou pior. O tema de Aristóteles é a bondade relativa dos
homens como se torna manifesta em suas ações, mas como isso é medido? Alguns serão
melhores do que aquilo que se refere a nós (kath’êmas), alguns piores, e outros tal como
nós. Nós somos o padrão. Ora, “nós” pode ser a audiência, ou podem ser os imitadores,
mas em ambos os casos aqueles retirados da ação usam a si mesmos como medidas da
ação da qual eles estão distantes. Isso não é difícil de entender, se são aqueles imitados
que devem ser entendidos como sendo bons ou ruins. Nós medimos Antígona em relação
a nós mesmos e, seja considerando-a boa ou ruim, vemos que ela não é igual a nós. Mas o
que dizer se aqueles que imitam são quem deve ser entendido como bom ou ruim? Na
medida em que a questão da bondade ou maldade de alguma coisa surge ao se comparar a
“nós”, haverá sempre um espectador implicado na avaliação. Que os caracteres diferem
somente pela virtude e pelo vício parece significar que nós diferenciamos com base
naquilo que é valioso para ser imitado e aquilo que não é — aquilo a que gostaríamos de
nos assemelhar versus aquilo que gostaríamos de evitar. Isso, por sua vez, somente é
possível na medida em que nós representamos as alternativas a nós mesmos. A poesia faz
isso explicitamente; aprendemos sobre a ira de Aquiles ao observar suas ações. Mas toda
avaliação — de nós mesmos como dos outros — necessariamente toma uma forma
poética. Se é assim, então o ponto da ambigüidade de Aristóteles é que não faz diferença
se ele está se referindo àqueles que imitam ou àqueles imitados, uma vez que a ação dos
que imitam — a representação do bom e do ruim — é aquilo sem o que os homens não
podem ser bons ou ruins. Assim, a ação daqueles que imitam é, a seu modo, a ação
daqueles que são imitados. O objeto último da imitação poética é o modo da imitação
poética ela mesma.
Sem alguma coisa semelhante à poesia, não haveria bem ou mal no mundo.
Nesse sentido, kath’êmas é o pivô no qual o mundo moral gira. Se fôssemos identificados
somente com aquilo que fazemos, não teríamos distância de nossas ações e, assim,
nenhum modo de colocar alternativas para nós mesmos. A ação desconectada de intenção
é indistinguível de movimento. Alternativas não podem ser identificadas simplesmente
com nós mesmos, porque, como opções para nós, elas devem ser suficientemente
separadas de nós para serem entendidas como melhores ou piores de acordo conosco. O

27 “Eles” está no acusativo e assim concorda com “aqueles que agem”, que é também acusativo.
Entretanto, como sujeito do infinitivo, teria que estar no acusativo de qualquer modo e, portanto, poderia
referir a “imitadores”, que estão também agindo.
17
homem bom não pratica atos bons mecanicamente; ele deve estar consciente das
alternativas e dirigir-se a uma delas. Ora, imitar verdadeiramente sua ação na poesia irá
requerer que imitemos sua consciência e intenção; irá requerer imitar a imitação.
Deve haver uma distinção entre “nós” e aquilo que representamos para nós
próprios, mesmo se pensamos que isto é “tal” como somos. Dependendo do que é
imitado, a imitação vai variar.
E está claro que cada uma das imitações mencionadas terão tais diferenças e serão
diferentes [hetera] por imitar coisas diferentes [hetera] deste modo [ou: por imitar este
modo diferentemente, ou: por imitar diferentemente deste modo]. (1448 a 7-9)
A tripla afirmação aqui é que a imitação de coisas diferentes resulta em
imitar diferentemente, o que é o mesmo que imitar a imitação diferentemente. Pintura,
dança, flauta, cítara, diálogos, poesia sem música, ditirambos e nómos — todas as formas
de imitação já mencionadas, exceto comédia e tragédia — admitem as três variedades de
objetos.
Em relação a essa diferença, a tragédia também difere da comédia; pois uma tende [ou:
deseja] imitar [homens] piores e a outra melhores do que aqueles [existentes] agora. (1448
a 16-18)
O drama parece excluir a possibilidade intermediária: a imitação de homens tais como
somos. E a comédia e tragédia tendem ou desejam imitar os melhores e piores, mas talvez
não consigam fazê-lo. No drama tudo passa pela ação. Não há possibilidade de explicar
de modo isolado o que ocorre na mente de alguém, porque toda explicação é ela própria
uma parte da ação. Se a imitação dos homens “tal como somos” significa a imitação da
característica essencial de todos os homens — nossa natureza imitativa —, ela seria um
objeto excluído do drama no qual o “nós” destacado da imitação jamais poderia aparecer.
Por essa razão — vamos chamá-la a invisibilidade derradeira da intenção na ação da qual
ela é a intenção —, o drama poderia apenas tender ou desejar imitar as ações de homens
melhores e piores. Mas por causa deste fato, ela se aproximaria ao máximo da
representação de nossa verdadeira condição no mundo; ela, de certo modo, nos imitaria
“tal como somos” em virtude de sua falha peculiar em imitar aqueles melhores e piores.
Não pode haver revelação direta do invisível na tragédia e na comédia.
Homero pode nos dizer que o homem que aparece como Mentor é realmente Atena, mas
o drama somente poderia nos mostrar Mentor.28 Drama, portanto, mais verdadeiramente
representa o modo pelo qual nosso mundo resiste à direta representação do invisível.
Comédia e tragédia são formas distintas da imitação poética, por causa do modo como
elas imitam a ação sem tornar visível sua intenção, um modo idêntico a seus objetos de
imitação — homens piores e melhores, mas não tal como eles são. Pois homens tal como
são poderiam ser imitados apenas assumindo uma perspectiva além dos homens tal como
são. Tomando a visão do pintor, Homero deve fazer com que pareça fácil determinar os
motivos de um homem e assim saber se ele é bom ou mau ou como nós. O o que da
imitação poética é, assim, em parte determinado por seu como.29

28 Cf. Seth Bernadete, “On Greek Tragedy”, in Current Developments in the Arts and Sciences, The Great Ideas
Today, 1980 (Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1980), pp.135-40, e também Michael Davis, Ancient
Tragedy and the Origins of Modern Science (Carbondale: Southern Illinois University Press, 1988), Capítulo 2.
29 Aristóteles está consciente de que Homero não é realmente tão fácil de classificar. Por exemplo, as

maravilhas dos livros IX a XII da Odisséia — os comedores de lótus, ciclopes, os encantamentos de Circe,
o Hades, as sereias, Cila e Caribde, a oferta de imortalidade por Calipso — são todas relatadas por Ulysses.
Homero portanto coloca alguma dúvida em sua autenticidade; ao ocultar os motivos de Ulysses, ele
introduz um elemento dramático em seu poema. Cf. 1448 b 35-36 e 1460 a 5-11.
18
[3] Uma ação não é apenas um movimento; ela deve também ter algum significado, um
lógos. Assim, imitar ação envolve imitar ambos os seus elementos. Como a ação é imitada
— a questão para a qual Aristóteles se volta no Capítulo 3 para completar sua explicação
dos vários modos pelos quais as imitações diferem — determinará qual o aspecto da ação
está destacado. O como da imitação afeta o que é imitado de tal modo que há um sentido
no qual narração e drama não podem ser imitações da mesma coisa.
Além disso, como alguém poderia imitar cada um destes [toutôn] é uma terceira diferença
destes [toutôn]. (1448 a 19-20)
O primeiro “destes” deve se referir aos objetos de imitação discutidos no
capítulo anterior; eles podem ser imitados de diversos modos. O segundo pareceria se
referir à imitação poética, cujas três differentiae foram o tema dos Capítulos 1 até 3. A
ambigüidade introduzida pelo duplo uso da palavra toutôn torna-se mais clara em uma
tradução alternativa da sentença: “Como alguém poderia imitar cada um destes é uma
terceira diferença deles”. Em outras palavras, como se poderiam imitar os objetos de
imitação é um terceiro modo de diferenciar os objetos de imitação, e também como se
poderia imitar a imitação poética é um terceiro modo de diferenciar imitação poética. Esta
leitura ajuda a compreender o sentido do texto notoriamente difícil que se segue.
Pois mesmo imitando as mesmas coisas e nas mesmas coisas, é possível imitar quando
relatando/narrando — tanto se tornando outra coisa como Homero faz [poiei] quanto
sendo o mesmo e não mudando — ou [imitar] todos aqueles que imitam enquanto agem
[prattontas] e estando em ação [energountas].30 (1448 a 20-24)
A narração representa ou imita a ação fornecendo seu lógos interior; o drama é restrito a
apresentar a ação como externa. Dado que o drama não pode representar a ação de
dentro, ele não pode de nenhum modo direto fazer justiça à natureza imitativa de toda
ação. Ele, portanto, imita “todos aqueles que imitam” como se eles estivessem apenas
agindo/atuando ou como se suas ações fossem energeiai — atividades completas em si
mesmas.
Enquanto narração e drama são as alternativas fundamentais, a inserção de
Aristóteles de uma terceira entre elas parece questionar sua pureza. Pura narração é toda
linguagem. Ela é sobre a ação, mas podemos apreciar esta ação somente ignorando a ação
real perante nossos olhos — um homem falando. O índice do espaço entre os dois é que
o tempo da narração se move em um plano diferente do da narração. Em poucas horas
um narrador pode contar a história de toda uma guerra, movendo para frente e para trás
no tempo tal como pareça conveniente. Puro drama, por outro lado, é todo ação; tempo
imitativo é idêntico em duração e seqüência ao tempo da ação imitada. Ao indicar o que
Homero faz (poiei) (isto é, tornando-se outra coisa), Aristóteles refere-se a um poeta épico
que tanto reproduz o diálogo, quanto, talvez mais importante, usa a voz de outro para
narrar longas partes de seu poema.31 A introdução de Homero do drama na narração é
uma indicação de que a mistura das duas formas é possível. De fato é mais do que
possível; é necessária. Tal como a narrativa é ação colocada em linguagem, o drama é
linguagem mostrada como ação. A ação de Édipo começa muito tempo antes da peça
começar e, assim, deve-se tornar disponível para nós através da narração de personagens
na peça.

30 Para uma discussão deste texto difícil, cf. a edição de D. W. Lucas da Poética, pp. 66-67.
31 Cf. nota 4.
19
Que Homero se torne alguma outra coisa em vez de outra pessoa é um
modo curioso de falar, tal como é o uso de Aristóteles do verbo poiein para o que Homero
faz ou produz ou poetiza. Homero não pode ser dito como se tornando outra pessoa
quando seu poema torna-se um diálogo, pois os personagens podem ser muitos, mas
existe apenas um ator. A ação de Homero, o que ele faz (poiei) ao se tornar diferentes
personagens, é realmente o mesmo que Sófocles faz ao escrever tragédia. Mas a ação de
Homero persiste no poema, enquanto a de Sófocles desaparece nos atores em sua peça.
Assim, tornando o fato de atuar visível, o fazer ou ação de Homero — sua poiêsis —
aparece através de seu poema — sua poiêsis. Ele não está presente a nós como um
narrador estaria em seu ato de narrar (isto é, em pessoa). Nem está presente apenas nas
ações de pessoas em sua peça — seus personagens. Ele neutralizou a si mesmo —
tornou-se, não alguém, mas uma coisa neutra (ti).
Isso poderia ser posto um tanto diferentemente. Quando alguém narra sem
citar ele está falando sobre o fazer. Sua ação ao falar é constante, mas é diferente das
ações sobre as quais ele está falando. Sua ação está, por assim dizer, no mesmo mundo
que a de seus ouvintes e assim ele os reconhece diretamente. Em uma performance
dramática, entretanto, diversos personagens falam. Suas ações na peça estão em um
mundo descontínuo com o nosso. Eles mimetizam ação; a deles é um fazer que não é
realmente um fazer. Dado que o drama requer a ilusão de que o que é realizado no palco
é ação real, que atuar é agir (se você pode fingir honestidade, você pode fingir qualquer
coisa), ele não reconhece sua audiência. Fazer assim seria reconhecer sua própria
desonestidade essencial. Como imitação, poesia demanda a suspensão de nosso próprio
senso de realidade. Devemos entrar no mundo representado. Mas se nós realmente
entramos neste mundo, ele deixa de ser uma representação e se torna realidade. Poesia,
assim, requer simultaneamente crença e descrença no mundo que ela representa.
Aristóteles usa Homero para indicar a mistura de narração e drama, que é a essência de
toda imitação poética.
Sófocles é como Homero a respeito do que é imitado (isto é, homens bons
ou elevados); ele é como Aristófanes a respeito do modo de imitar homens em ação (isto
é, drama). Esta seria uma clara afirmação da diferença entre o como e o o que da imitação
poética, se Aristóteles não tivesse acabado de usar Homero como seu exemplo de uma
mistura de narração e drama, além de enfatizar depois a habilidade dramática de Homero
e de tomar a imitação de Homero do vulgar no Margites como central para o
desenvolvimento da comédia. E, naturalmente, uma reflexão breve nos lembra Thersites
na Ilíada e o guarda em Antígona — nem Homero nem Sófocles tomam somente o bom
como objeto de sua poesia. O elevado não pode ser imitado separadamente de alguma
representação do baixo, pois para ver homens agindo é necessário que nós vejamos suas
escolhas e para isso devemos ver o que eles rejeitaram. Semelhantemente, embora As
nuvens seja engraçada e Édipo não, a reflexão de Aristófanes sobre o que move Fedípedes a
bater em seu pai está tão longe da reflexão de Sófocles sobre o crime de assassinar o pai?32
Sófocles é como Homero, mas não simplesmente porque ambos imitam os spoudaioi, e
como Aristófanes, mas não simplesmente porque ambos imitam do mesmo modo. Em
cada caso o modo de imitação é mais intimamente ligado com o que é imitado.
Por que, portanto, a pretensão de distinguir estritamente forma e conteúdo?
Seria tolice deixar que as similaridades sublinhadas nos levem a perder de vista as
diferenças óbvias entre epopéia, tragédia e comédia. Aristóteles começa com essas
diferenças superficiais, mas o fato de que ele dá sua própria explicação da relação entre

32 Cf. Leo Strauss, Sócrates e Aristófanes (New York: Basic Books, 1926), p.43.
20
epopéia, tragédia e comédia nos Capítulos 4 e 5 é suficiente para mostrar que ele não está
satisfeito com a simples versão do Capítulo 3. Há uma diferença entre o que seja primeiro
para nós e por natureza. A digressão no fim do Capítulo 3 sobre a reivindicação dos
dórios de terem originado a tragédia e a comédia contém a chave da intenção de
Aristóteles.
Daí alguns dizerem que eles são chamados dramas [dramata], porque imitam agentes
[drôntas]. Daí também os dórios reivindicam [antipoiountai] a tragédia e a comédia — pois
os megarences [reivindicam] a comédia como tendo se originado com sua democracia. E
os sicilianos [reivindicam-no], pois Epicarmo, o poeta, viveu lá, antecedendo em muito
Quiônides e Magnes. E alguns daqueles no Peloponeso [reivindicam] a tragédia —
fazendo [poioumenoi] dos nomes um índice. Pois eles dizem que chamam seus distritos
kômai, mas [dizem] que os atenienses os chamam dêmoi, como se comediantes [kômôdoi]
fossem chamados assim, não por alegrar [kômazein], mas por andarem de kômê em kômê,
sendo desonrados nas cidades. E dizem que chamam o fazer [poiein] dran, mas os
atenienses o chamam prattein. A respeito das diferenças da imitação, assim, tanto da
quantidade quanto de quais sejam, demos as coisas como ditas. (1448 a 28-b 3)
A reivindicação dos dórios depende da conexão entre seu verbo “agir” e a palavra para
atuar no palco. Embora diga que eles reivindicam tanto a comédia quanto a tragédia,
Aristóteles fornece argumentos somente para o drama em geral e para a comédia. Ele diz
dos megarences locais que a comédia está naturalmente em casa na democracia e que na
Sicília eles ligam sua reivindicação à época da vida de Epicarmo. Não está claro se estes
argumentos históricos são de Aristóteles ou dos dórios. Embora persuasivos, eles são
entretanto inconclusivos. Mégara não é a única democracia e Epicarmo não
necessariamente foi o primeiro poeta cômico. Entretanto, se eles podem ligar os nomes
dados universalmente na Grécia para comédia, tragédia e drama às idiossincrasias de sua
própria linguagem, então a causa deles pareceria muito mais forte. Todavia, sua tentativa
de fazê-lo é problemática. Comédia deriva tão facilmente de “alegrar” em ático, quanto de
“vila” em dório, e parece não haver razão para preferir a etimologia de lugar em vez da de
atividade. A ênfase em dran é portanto difícil, pois se “fazer” e “fazer no palco” não são
distinguidos, se agir significa atuar, é difícil de ver como uma noção de drama poderia se
desenvolver. A etimologia dória de drama, portanto, depende de si mesma.
O que está errado com a explicação dos dórios? Aristóteles diz que eles
reivindicam — antipoiountai — tragédia e comédia. Dado que estamos no meio de uma
digressão envolvendo uma etimologia forçada, o que dizer sobre essa palavra? Ela
significa “reivindicar sobre”, “ter autoridade sobre alguém”, ou até mesmo “ter feito algo
em resposta a alguém”. Mas literalmente, o que quer dizer não realmente, ela significaria
algo como antipoetizar. O que poderia ser antipoético na reivindicação dos dórios? E por
que, se ele pretende que sigamos esta dica, Aristóteles então fala dos dórios fazerem
(poioumenoi) dos nomes o índice de sua reivindicação? Sua reivindicação é a antipoética,
mas o uso dos nomes em que se baseia a reivindicação é poético? Aristóteles quer dizer
que a reivindicação dos dórios revela algo sobre tragédia e comédia a despeito do fato de
que ela não é verdadeira? Este livro sobre tragédia grega parece ter aprendido alguma
coisa do uso dos nomes em tragédia grega. Como nomes, “Antígona” e “Édipo” parecem
à primeira vista particulares e acidentais, mas anti-nascimento é a essência da tragédia de
Antígona, tal como a tensão entre pés-inchados e saber-onde é da tragédia de Édipo.
Somente na poesia ou por acidente um anti-herói é chamado Loman. Os dórios cometem
o erro de usar um argumento poético no mundo real. Se seu objetivo fosse clarificar a
natureza do drama, eles teriam sido bem-sucedidos; mas como era dar uma explicação de
sua origem histórica, eles falharam.

21
O Capítulo 3 é sobre o como da poesia. Tendo dito que Sófocles e
Aristófanes são semelhantes em sua imitação de agentes (drôntes), Aristóteles parece se
distrair e se mover para uma discussão da conexão entre dran e drama. No curso desta
digressão etimológica, ele revela que o caráter antipoético das reivindicações dórias
consiste em sua confusão entre poesia e realidade. Eles literalmente ligam drama a dran —
agir a atuar — e assim obscurecem a distinção entre os dois. E mesmo assim sua
etimologia voluntarista era poética na medida em que revela a conexão essencial entre
drama e realidade. Em uma explicação poética, o que parece inicialmente ser
idiossincrático mostra-se como revelando algo essencial. Mas não é isso o que o próprio
Aristóteles fez no Capítulo 3? Uma digressão aparentemente irrelevante e inessencial nos
revela o modo poético como a aparência de irrelevância e acidente. Este é o como da
mímesis poética. Sua separação forçada do o que era uma ficção necessária para revelar a
intimidade de sua relação.

Capítulo 4

Imitação dramática (1448 b 4 - 49 b 20)


[4] Até agora, o argumento da Poética parece ter algo como a seguinte estrutura. Aristóteles
primeiramente divide a mímesis em espacial e temporal; então divide a imitação temporal
em música e poesia (Capítulo 1). Divide poesia em narrativa e drama (Capítulo 3), e
drama em comédia (Capítulo 5) e tragédia (Capítulo 6). Todo o livro moveu-se para isolar
a tragédia como o objeto principal da investigação de Aristóteles. Entretanto, esta divisão
sistemática é complicada por vários problemas. Embora mímesis seja claramente o ponto
inicial para Aristóteles, não nos é dito o que ela é até o Capítulo 4 e lá ela se mostra
bastante indefinida. Mímesis significa o ato de imitar ou a coisa imitada? E as duas causas
naturais da arte da poesia devem ser entendidas como a nossa tendência natural para
imitar e nosso prazer nas imitações, ou a mímesis deve, em toda sua ambigüidade, ser
tomada como uma causa e a harmonia e ritmo a outra (1448 b 20-21)? Aristóteles afirmou
anteriormente (1447 a 20-21) que imitação poética é no lógos, harmonia e ritmo, mas se
harmonia e ritmo são juntamente com a mímesis as co-causas da poiêtikê, devemos entender
que mímesis substituiu lógos como uma daquelas coisas nas quais a mímesis tem lugar? O que
isso poderia significar? Mímesis é aquilo em cujo termo a poesia deve ser entendida, ou ela
própria é o que deve ser entendido? – e essa dificuldade tem alguma coisa a ver com a
ambigüidade na própria mímesis (isto é, como atividade e como produto)?
Precisamos começar novamente do começo do Capítulo 4.
Duas causas e ambas naturais foram provavelmente as que geraram a arte da poesia como
um todo.33 Pois a imitação é natural para os seres humanos desde a infância — e nisso
eles diferem do resto dos animais por serem [literalmente: ele é] os mais imitativos e
fazem [poieitai] seu primeiro aprendizado através da imitação — como é [natural] para
todos ter prazer nas imitações. E o que o ocorre em relação às obras [ou feitos — erga] é
um sinal disso; pois temos prazer em admirar especialmente imagens precisas de coisas
que poderiam ser elas mesmas dolorosas, por exemplo, as formas visíveis tanto da mais
desonrada fera e de cadáveres. E a causa para isso é que o aprendizado não é apenas o
mais prazeroso para os filósofos, mas também para os outros homens, embora eles
raramente participem nele. De acordo com isso, eles têm prazer em ver imagens, porque,
ao contemplá-las, ocorre que eles aprendem e compreendem [syllogizesthai] o que cada
coisa é, por exemplo, que este é aquele, dado que, se por acaso, ele não tiver visto [alguma

33A explicação de Else do que diferentemente seria um men solitarium em 1448 b 5 parece correta. Até 1448
b 24, Aristóteles está discutindo as causas de poiêtikê em geral ou como um todo. A partir daí a discussão
se divide em uma explicação de quais causas especificam as diferenças no gênero.
22
coisa] antes, ela não produzirá [poiêsei] prazer como imitação, mas apenas pela sua
habilidade, cor ou qualquer outra causa como essa. Dado que o imitar é natural para nós,
tal como a harmonia e ritmo (pois é claro que os metros são partes dos ritmos), desde o
início aqueles especialmente dotados por natureza dessas coisas, avançando pouco a
pouco, geraram a poesia [poiêsis] a partir de suas improvisações. (1448 b 4-24)
O tema é a dupla causa da arte da poesia, que parece inicialmente idêntica à duplicidade
na mímesis. Crianças imitam desde o começo mais remoto. Elas aprendem a falar desse
modo. Imitação aqui não significa performance ou representação, mas sim uma tendência
natural de um conteúdo do próprio agir de alguém reproduzir o que outros fizeram. Tal
ação é totalmente absorvente; ela não requer uma consciência de que se está imitando.
Crianças são freqüentemente compenetradas com seu jogo. Por outro lado, ter prazer na
representação como representação, portanto como natural para nós, envolve ser
consciente do caráter lúdico do que está sendo representado. Essas duas versões da
mímesis, semelhantes mas não idênticas, repetem o padrão presente já no começo da
Poética. Poiêsis significa tanto o fazer ou agir, quanto poesia. Poesia, por sua vez, está
conectada a mímesis, que abrange tanto mimetismo quanto representação. Prazer na
representação, portanto, demonstra ter dois sentidos: um é comum à maioria dos
homens, o outro é filosófico. Seja o que for aquilo em que estamos dividindo, alcançamos
um componente ativo e um reflexivo, e mesmo quando pensamos que nos fixamos na
parte reflexiva, tal como nos casos de poesia e mímesis, cada uma demonstra ter seu
próprio componente ativo e reflexivo. Acabamos reproduzindo em uma nova forma o
que pensamos ter eliminado.
Que tal, se as duas causas naturais da arte da poesia não forem os dois
aspectos de mímesis, mas sim mímesis como um todo por um lado, e harmonia e ritmo, por
outro? Esta ambigüidade sobre as duas causas reforça o que nós já vimos, pois o sentido
ativo de mímesis está para o reflexivo, assim como harmonia e ritmo estão para a mímesis
como um todo.34 Começa a parecer que a verdadeira causa da arte da poesia tem a ver
com estes simultâneos conectar e dividir sempre presentes na explicação. Ao substituir
lógos, harmonia e ritmo (os elementos de mímesis no Capítulo 1) por mímesis, harmonia e
ritmo aqui, Aristóteles sugere que mímesis e lógos são intercambiáveis. Por um lado, mímesis
deve agora ser entendida, de alguma maneira, como um elemento de si mesma. Por outro
lado, lógos deve ser entendido como fundamentalmente mimético. Isso por último faz
sentido se representação significa, primeiro, separar alguma coisa das outras, para dar a ela
certa totalidade. Pintar um retrato requer concentrar-se na face a ser pintada — um ato de
pensamento antes de colocar o pincel na tela. Este ato de pensamento é precisamente o
que é pressuposto por toda fala. Para dizer “este é aquele” alguém deve primeiro pensar a
este como independente daquele. Compor pode ser a alma tanto da imitação quanto do
lógos; entretanto, ele requer primeiro pensar separadamente. Lógos, não menos do que
mímesis, significa enquadrar objetos no mundo — colocando-os separados daquilo que os
rodeia, de modo a torná-los objetos para contemplação. Assim, enquanto lógos é, em um
sentido, um elemento de mímesis poética (isto é, a matéria a partir da qual poemas são
feitos), em outro sentido, mímesis é a matéria a partir da qual lógos é feito. Mas isso é apenas
dizer mais uma vez que, para poesia, as coisas primeiras são coisas secundárias.
Se a arte da poesia ou do fazer ou da ação é necessariamente mimética, se
ser mimético é a característica distintiva do seres humanos, se isso é assim porque o
pensar requer reunir coisas que não estão já obviamente juntas (syllogizesthai), e se reunir
requer representar no sentido que tem o ato de dizer “por exemplo” em ressaltar e

34A referência marginal ao verso parece pretender revelar uma divisão similar entre ação e reflexão no
próprio ritmo.
23
produzir um todo a partir daquilo que era previamente somente parte de um continuum,
então o livro de Aristóteles sobre a arte da poesia é sobre a característica distintiva de
seres humanos. O prazer que temos por natureza em imitações é um prazer em com-por.
Algumas vezes isso significa se comprazer pela precisão de representações, mas
Aristóteles torna claro que a semelhança não é sempre a origem de nosso prazer, dado
que podemos nos deleitar com uma imagem mesmo se nós nunca tivermos visto aquilo
de que ela é supostamente a imagem. Seguramente mímesis significa imitação e uma
imitação bem feita chama a atenção para si como uma imitação. O realismo na arte é
necessário para revelar a irrealidade da arte. Ao ver que uma obra de arte é uma cópia de
outra coisa, tornamo-nos conscientes do quanto estranho é uma cópia; por outro lado,
uma obra de arte se parece com qualquer outra coisa. Entretanto, não é tanto a exatidão
da cópia que nos apraz quanto a nossa própria atividade de ver as coisas como cópias.
Embora mais óbvia ao ver uma pintura, esta atividade é o núcleo de todo pensamento e,
assim, do que é caracteristicamente humano. Mímesis é, acima de tudo, nossa habilidade de
nos afastarmos do mundo para ver suas peças como separadas umas das outras de modo
a reuni-las novamente.
Aristóteles conecta este prazer de ser um espectador, de observar ou
contemplar (theôrountes), com aprender em sentido comum e no extraordinário de
filosofar. Filosofia está explicitamente presente apenas aqui na Poética e é introduzida
como o caso exemplar da característica distintiva humana. Filosofia é a perfeição da
mímesis que é central à poesia. Das formas de poesia, o drama, mais do que tudo, aponta
para a separação do espectador, que é o cerne da mímesis. A escolha por Aristóteles dos
exemplos — cadáveres e a mais desonrada das feras — prefigura a importância da
tragédia para ele. O prazer do pensamento é tão forte nos seres humanos, que pode
transformar a mais temível coisas, a morte, em algo prazeroso. Entretanto, cadáveres são
terríveis por causa do que eles representam, mas é difícil saber o que faria animais serem
desonrados (atimotatoi), a não ser que estivessem em alguma relação de representação a
outras coisas. Mulas são talvez desprezíveis como cavalos de guerra; como animais de
carga eles têm uma utilidade inegável. Mímesis é o que torna olhar para corpos mortos
mais do que consumir o cadáver de alguém; somente como seres que podem se
representar para si mesmos, podemos ser conscientes de nossas próprias mortes. Nekroi
não são simplesmente carne ou matéria orgânica em decomposição, mas cadáveres, seres
humanos que viviam e agora estão mortos. Eles são horríveis, não porque são fisicamente
feios, mas porque nos tornam conscientes de nossas próprias mortes. Mas nekroi também
pode significar o morto no Hades. A imitação poética do morto, ao nos erguer acima de
nós mesmos e nos fazer espectadores, transforma os corpos mortos em sombras do
Hades. Ao fazer isso, ela nos alivia de nosso medo e torna possível para nós ter
compaixão de outros. Isto, o prazer do drama trágico, torna bastante manifesta a
separação do espectador, que é a característica definidora de toda mímesis.
O estatuto especial da tragédia começa a emergir mais claramente na
própria explicação de Aristóteles sobre as histórias de tragédia e comédia. A seqüência de
eventos nessa história parece ser a seguinte. Enquanto mímesis, ritmo e harmonia são
naturais aos homens, alguns os têm em grau mais elevado que outros. A linguagem destes
homens é primeiro espontânea e extemporânea e no espírito do mimetismo. Notando o
quão bem sua linguagem é recebida, eles o fazem novamente. A primeira linguagem é
como puro mimetismo — uma imitação de ação. A segunda é um passo a mais perto de
mímesis entendida como representação; ela é já uma imitação de uma imitação. Em ambos
os casos a mímesis ressalta o atual, como a canção ressalta a fala ou a dança ressalta o
caminhar. Ora, este mimetismo, como uma ação ela mesma, deve ter motivo que se

24
origina no caráter daquele que age. Há dois tipos fundamentais de caráter — o mais
reverente, digno ou elevado (semnoteroi) e o mais mediano, empobrecido ou mais trivial
(eutelesteroi).35 O primeiro imita ações belas ou nobres e as ações daqueles que são belos ou
nobres.36 Estas imitações são hinos e encômios — os primeiros louvam a deuses, os
segundos a homens. Aristóteles quer dizer que, embora os homens possam praticar atos
nobres, somente os deuses são nobres? Os últimos, um tipo de homem mais mediano,
imitam as ações dos vis (phauloi) — não ações vis, fazendo invectivas e injuriando
(iambizein). Um leva eventualmente à tragédia, o outro à comédia.37
A diferença entre a arte da poesia cômica e a da poesia trágica parece
assegurada a partir dessa explicação de suas origens. Entretanto, ela é parcialmente
ultrapassada na pessoa de Homero. Tragédia e comédia podem originar-se em uma
disposição para reverenciar e em uma para desrespeitar, respectivamente, mas Homero é
o poeta do injuriante Margites, tanto quanto das heróicas Ilíada e Odisséia.38 Obviamente,
então, os dois impulsos — reverenciar e ofender — não podem ser incompatíveis. Drama
parece ser o princípio que unifica os dois. Mas o que significa o fato de que como poeta
mais dramático, Homero possa ser tanto cômico quanto trágico? A resposta mais fácil é
que, porque o poeta dramático não fala em sua própria voz, o drama requer que o poeta
reconheça sua própria atividade; ele deve ser capaz de separar o drama e dran. Comédia
não é mais simples invectivas do que a tragédia é simples elogio. Como um mímico que
não é mais (exceto acidentalmente) um ator no palco, o poeta dramático é essencialmente
invisível. Ele, então, tornou a distinção entre o real e imaginário muito mais pronunciada.
Ao emudecer o papel de sua própria ação — sua imitação, ele emudeceu o papel de seu
próprio caráter. O Capítulo 4 move-se do mimetismo para representação. Entretanto, ao
começar com a questão do motivo para o mimetismo, Aristóteles nos forçou a ter em
mente que, como uma ação ela mesma, representação também requer um motivo. Nós
ainda não entendemos totalmente Homero.
Este tema emerge de outro modo quando Aristóteles cita as várias
contribuições de Ésquilo e Sófocles ao desenvolvimento da tragédia (1449 a 15-19).
Ésquilo reduziu o papel do coro aumentando o número de atores para 2, assim tornando
o lógos a estrela da performance. De fato, ao trazer dois atores para o palco, Ésquilo criou
atores. Ele tornou possível para os personagens falar um com o outro e assim ignorar a
audiência. Essa inovação tornou possível ao drama, a ação no palco, apresentar a si
mesmo como uma realidade absoluta, impelindo assim a tensão entre os dois níveis de
ação — dran e drama — ao seu estágio mais extremo.

35 Cf. 1448 a 1-5.


36 De modo bastante interessante os dois não são o mesmo; aparentemente o nobre nem sempre pratica
ações nobres e as coisas nobres nem sempre são feitas por homens nobres.
37 Em 1449 a 9-14, Aristóteles sugere uma outra origem de comédia e tragédia a partir de canções fálicas e

ditirambos. Como Lucas salienta, ditirambos não parecem se ajustar à explicação de Aristóteles das
origens dignas da tragédia. Entretanto, o próprio Aristóteles compromete essa explicação com sua volta a
Homero como o pai tanto da comédia quanto da tragédia. A separação por Aristóteles de comédia e
tragédia no começo parece depender de uma primeira mímesis, que era como puro mimetismo e em nada
reflexiva. Os primeiros poetas seriam totalmente inconscientes — seus “poemas” seriam os puros
produtos de seus caracteres. Entretanto, como toda mímesis já é em alguma medida reflexiva, não deveria
surpreender que esta pura origem demonstra ser uma ficção. A segunda explicação menos pura da origem
da tragédia é pensada como um sinal disso.
38 Do Margites possuímos apenas fragmentos. Foi um poema escrito em uma mistura de hexâmetro e

jâmbico sobre um herói extremamente burro que “conhecia muitas coisas, mas todas elas muito mal”. Por
exemplo, pensava-se que Margites não sabia se foi seu pai ou sua mãe que o pariu.
25
Esta história de tragédia é assim de algum interesse. Poesia começa como
uma imitação natural que não é tão diferente da vida real. Um homem começa atuando,
mas ele está ainda falando para nós sobre coisas que nos são familiares. Ele, portanto, usa
o verso mais próximo da linguagem cotidiana — jâmbico — para suas injúrias (iambizein).
Nesse ponto, entretanto, para afirmar a diferença entre si mesma e o mundo, entre drama
e dran — atuar e ação, a poesia torna-se estilizada. Seu verso muda-se para o hexâmetro
heróico. Finalmente, para afirmar a precisão de sua imitação do real, ela é levada de volta
a alguma coisa como o metro jâmbico, mas agora em uma forma, drama, que permite a
ela afirmar sua realidade absoluta — ela é uma representação acurada — e sua irrealidade
absoluta — ela é somente uma peça — simultaneamente. É isso o que Aristóteles parece
dizer quando se refere à necessidade de julgar a tragédia de duas maneiras — de acordo
consigo mesma e a respeito de sua audiência (1449 a 7-9). Para si própria ela precisa ser
real — uma ação; para a audiência ela deve ser irreal — atuação. Este duplo padrão ao
qual todo drama, como mimético, deve aderir, opera diferentemente em comédia e
tragédia. Porque uma peça é obviamente uma peça (isto é, descontínua com nossas vidas
reais), ela é mais difícil de ser levada a sério do que não. Mas na medida em que aquilo que
ocorre na peça é mimético, aquilo de que achamos mais fácil rir é uma imitação de nossas
vidas reais. Numa comédia estes dois níveis concordam entre si; ela é uma representação
lúdica do lúdico. Na tragédia os níveis estão em discordância; como representação lúdica
do sério, a tragédia requer a suspensão da atenção de alguém sobre seu próprio mundo e
suas ações, de um modo não necessário na comédia.

[5] Aristóteles afirmou anteriormente que Sófocles e Aristófanes eram semelhantes na


medida em que ambos imitam homens agindo, mas diferiam no valor dos objetos de sua
imitação (1448 a 25-28). Agora começamos a ver mais claramente o que ele quer dizer.
Comédia, como dissemos, é uma imitação do vil, mas não a respeito de todo mal, mas da
parte ridícula do que é vergonhoso/feio. Pois o ridículo é um erro [harmartêma]
vergonhoso, mas anódino e não destrutivo, tal como por exemplo, a máscara cômica
[prosôpon] é algo vergonhoso e distorcido, mas sem dor. (1449 a 32-37)
A comédia pode imitar os vis, mas somente aqueles que não tememos. Ela encoraja,
assim, um sentido de superioridade por parte de seus espectadores. Da nossa perspectiva
de distanciamento divino, somos inclinados a admirar “O quão tolos são estes mortais”.
Podemos fazer isso, porque eles não nos ameaçam puxar para a ação de seu mundo. A
comédia, portanto, enfatiza o caráter lúdico das peças. Nossas ações são sérias; aquelas na
peça não são. Dado que não existe tensão entre o modo lúdico da comédia e seu
conteúdo também lúdico, seus espectadores são encorajados a ter um duplo senso de
superioridade e assim de distanciamento. Não chega a surpreender, então, que sua história
deva ser menos conhecida que a história da tragédia, pois, “comédia, pelo fato de não ser
séria [spoudazesthai], foi desde o começo esquecida” (1449 a 38-b 1). Ser um ator — um
jogador — é não ser sério; é substituir a ação pelo atuar. Ser um ator cômico é até mesmo
menos sério, dado que isso quer dizer não imitar coisas que são sérias. De um modo
bastante estranho, o duplo caráter lúdico da comédia nos permite tomar seus atores
seriamente. Porque a falta de seriedade de ser um ator se conforma com a não seriedade
da peça, é fácil confundir os dois. Somos inclinados a pensar “Quão bobo ele é!” e não
“Que extraordinário ator ele deve ser para parecer um bobo”. Este é o motivo pelo qual
os coros cômicos foram durante muito tempo deixados para voluntários — amadores
(1449 b 1-2). Comédia é vista como mais natural, como precisando de menos artifício.39

39 Cf. 1447 a 13-16.


26
Ela desfaz a diferença entre o ator atuando e a ação de atuar e assim entre as duas formas
de mímesis — mimetismo e representação.
Conhecemos pouco da história da comédia, mas sabemos quem introduziu
o enredo. Esta mudança foi crucial. Comediantes que atuam sozinhos não são
qualitativamente distintos de suas audiências; eles conversam com as pessoas ao seu redor
mesmo se de uma maneira artificial. Enredo, entretanto, anuncia que estamos na presença
de uma realidade alternativa. Enredo é mais que uma imitação de ação; é uma composição
de ações em um todo coerente. A comédia deixa de ser invectiva no momento em que o
poeta inventa a pessoa sobre quem está fazendo piadas.
A produção [poiein] de enredo veio por um lado originalmente da Sicília; mas daqueles em
Atenas, Krates foi o primeiro que começou a rejeitar a forma [idea] da poesia jâmbica para
diálogos [logoi] e enredos [mythoi] do universal [katholou]. (1449 b 5-9)
A comédia não pode evitar a duplicidade do drama.
Se comédia e tragédia são semelhantes na forma, vimos que tragédia e
epopéia são semelhantes no conteúdo (1448 a 25-27). A epopéia segue a tragédia, embora
claramente não de forma temporal, como uma imitação em linguagem métrica do bom,
valoroso ou sério (spoudaioi). As duas diferem na forma. Epopéia é narrada; a tragédia é
dramática. O tempo de uma epopéia não está obrigado, tal como o está na tragédia, a ser
aproximadamente de um dia. As duas últimas diferenças são remontáveis à primeira. O
drama da tragédia, sua apresentação de uma realidade alternativa, requer o verso da
linguagem e também que o tempo ficcional e real sejam mais ou menos o mesmo.
Aristóteles singulariza a tragédia por causa da ênfase dela na separação e
identidade simultâneas de drama e dran, de atuar e ação. Ele pode fazer isso e ainda assim
intitular seu livro Sobre a arte da poesia, porque os princípios da tragédia são os de toda
poesia. A respeito da epopéia, Aristóteles faz esta relação explicitamente.
Pois algumas partes são as mesmas e algumas são peculiares à tragédia. Daí que quem
quer que seja que conheça tragédias boas [spoudaios] e vulgares [phaulos], também
conhecerá epopéias [epôn]. Pois o que a produção épica [epopoiia] tem existe na tragédia,
mas nem tudo que existe nesta também há naquela. (1449 b 16-20)
Os princípios da tragédia são também os da comédia e da epopéia; eles são
os princípios de toda imitação poética. Toda poesia, como mímesis, deve afirmar a si
mesma como separada do mundo, mesmo se ela imita o mundo. Tragédia, que
compartilha sua forma — seu como — com a comédia e sua matéria — seu o que —
com a epopéia, é a que torna esta duplicidade da imitação a mais evidente e, assim, é, de
certa forma, a mais mimética. Ao mesmo tempo, tragédias não são apenas sobre o
spoudaios; elas são medidas de acordo com o spoudaios e o phaulos (1447 b 17-18). Além de
se aplicarem às ações imitadas na comédia e na tragédia, o valoroso e o vil aplicam-se às
próprias ações da tragédia e da comédia. A procura por se separar do mundo é a ação
característica da tragédia no mundo. Se tragédia é exemplar para toda poesia e poesia é
exemplar para a ação humana como tal, então a duplicidade na tragédia será o caráter da
ação humana como tal. A parte da Poética sobre poesia demonstrou ser sobre tragédia. A
parte sobre tragédia (Capítulo 6 até o 18) demonstrará ser sobre a ação.

Capítulo 5

Tragédia (1449 b 21-31)

27
[6] Nos dois últimos capítulos anteriores, Aristóteles deu uma explicação da origem da
tragédia a partir de imitação rudimentar. À primeira vista parece que o Capítulo 6
continua esse argumento.
A respeito da imitação em hexâmetro, então, e a respeito da comédia, falaremos mais
tarde; mas falemos da tragédia, dando a definição de sua essência formada a partir das
coisas que foram ditas. (1449 b 21-24)
A explicação de Aristóteles sobre a formação da tragédia foi aparentemente simultânea a
uma formação de uma explicação da tragédia. Ao contemplarmos a genesis, a formação, da
tragédia, somos espectadores de um drama. Mas nossa contemplação distanciada,
portanto uma ação, foi a genesis da definição da ousía, o ser, da tragédia. Este será o tema
central na longa explicação da tragédia, que constitui o núcleo da Poética (Capítulos 6 até
18). Tragédia, que parece uma série de eventos conectados de forma elaborada — uma
formação predestinada —, é de fato a formação de uma interpretação daqueles eventos. A
regra da necessidade (isto é, destino) parece antes arbitrária no âmbito do enredo.
Somente no âmbito da compreensão do significado dos eventos do enredo esta
arbitrariedade desaparece.
Aristóteles define a tragédia naquela que é provavelmente a passagem mais
famosa da Poética.
Tragédia, então, é uma imitação [mímesis] de ação que é boa/séria [spoudaios] e
completa/perfeita, tendo magnitude/grandeza, em linguagem que agrada por cada uma
das espécies [eidê] nas partes/de cada vez [en tois moriois], através de atuação e não de
narrativa/relato, realizando através da compaixão e do medo a purificação/purgação
[katharsis] de tais paixões [pathêmata]. (1449 b 24-28)
Muitas coisas são obscuras nesta muito comentada definição. Como a tradução indica,
seus termos-chave são equívocos de modo incomum. Além disso, exatamente de que são
estas espécies ou eidê, e o que significa que cada uma agrada separadamente por partes ou
de cada vez? Aristóteles tenta esclarecer estes temas na seqüência.
Quero dizer [legô] por linguagem [lógos] agradável aquela que tem ritmo, harmonia e canto,
e por separadamente nas espécies [eidê] algumas vezes realizando sua tarefa através apenas
dos metros e também outras vezes através de canto. (1449 b 28-31)
As espécies parecem ser as da linguagem agradável (isto é, linguagem acompanhada e
desacompanhada de música); “nas partes” parece significar que as canções corais são
cantadas e os episódios não.40 Entretanto, este é um modo confuso de dizer alguma coisa
mais simples. A falta de habilidade no texto de Aristóteles poderia ser um convite para
reconsiderar seu significado? Poderíamos ser levados a ver que a imitação trágica
caracteristicamente nos mostra as eidê — espécies ou formas — como partes, de modo
que, por exemplo, o pé inchado de Édipo é literalmente a causa de sua solução do enigma
da esfinge — ele conhece a necessidade de uma bengala e ao mesmo tempo isso é
simbolicamente a causa de sua solução do enigma — somente o homem que não satisfaz
a definição de um homem pode ver o que significa ser um homem?41 A tragédia apresenta
o eidético geneticamente; os elementos intelectuais nos quais uma ação deve se dividir —
suas eidê —, se devemos entendê-la, são apresentados como elementos de sua formação
— sua genesis. O enredo deve demonstrar ser a parte mais importante da tragédia somente
depois de se encorpar.

40 Cf. Lucas, Telford e Else.


41 Cf. Bernadete.
28
Com exceção da parte sobre piedade, medo e catarse, Aristóteles parece ter
preparado o terreno para sua definição de tragédia.42 Mímesis foi tratada nos Capítulos 1 e
4, a ação spoudaios no Capítulo 2 e a diferenciação entre narrativa e drama no Capítulo 3.
Entretanto, tudo isso se aplica tanto à comédia quanto à epopéia; o que é totalmente
distintivo da tragédia é sua finalidade — a catarse de “tais paixões” por meio de piedade e
medo.43 É portanto peculiar que sejamos incumbidos de imaginar para nós mesmos o
significado de catarse — uma palavra que tem um significado religioso de purificação
quanto também um significado médico de purgação. Além disso, por que piedade e medo
são especificados como aquilo através do que a catarse é efetuada? – e mesmo aceitando
sua importância, o que significa dizer que a catarse efetuada é de “tais paixões”? Quais são
as paixões relevantes além de piedade e medo? – e por que elas são comparáveis a piedade
e medo?
Por mais de um século o debate acadêmico concentrou-se em saber se
catarse significa purificação ou purgação.44 A Poética parece nos dar pouca ajuda; catarse é
mencionada somente uma outra vez e em um contexto aparentemente não relacionado.
Em 1455 b 15, Aristóteles se refere ao artifício praticado por Ifigênia na peça de
Eurípides Ifigênia em Tauris (1156-434). Fingindo que a estátua de Ártemis foi maculada
pela tentativa de oferecer um matricídio como sacrifício, baseando-se em sua autoridade
como sacerdotisa, Ifigênia diz aos taurenses para permanecerem dentro, enquanto ela
purifica a estátua no mar. Enquanto isso, ela escapa com seu irmão, Orestes. Neste
contexto, catarse deve significar purificação; o que poderia significar para Ifigênia purgar a
estátua? A palavra, então, é pelo menos ambígua na Poética; ela não simplesmente significa
purgação.
Na verdade, nem mesmo é claro que catarse tenha este significado médico
na passagem mais freqüentemente usada para auxiliar o ponto de vista de que o propósito
da tragédia é uma purgação das emoções através de piedade e medo. Aristóteles discute o
efeito catártico da música no Livro 8 da Política.
Pois a paixão que ocorre fortemente a respeito de algumas almas existe em todos, mas ela
difere para mais e para menos — tal como piedade e medo, e além delas, a inspiração
[enthousiasmos], pois alguns são também capazes de serem possuídos por este ímpeto. Mas
de canções sacras — quando usam músicas levando a alma ao êxtase — nós os vemos ser
restaurados como se obtendo uma cura e uma catarse. É necessário que aqueles que
sentem piedade e estão temerosos passem pela mesma coisa, tanto quanto os demais, que
geralmente sofrem/se afetam [tous pathêtikous], de acordo com a intensidade que pertence
a cada um desses homens. E [é necessário], assim, alguma catarse ocorrer para todos e
[que todos] sintam alívio/leveza com prazer. E de modo similar canções catárticas
produzem uma alegria inofensiva entre os seres humanos. (1342 a 5-16)
Isso foi freqüentemente entendido como significando que a catarse trágica é como uma
cura homeopática na qual nós passamos por uma versão da doença a ser purgada. Assim,
a paixão em jogo seria uma doença cuja remoção traria prazer. De acordo com isso,

42 Também não é imediatamente claro por que a ação imitada deva ser completa ou perfeita.
43 Em todos os trabalhos de Aristóteles, nada foi tão debatido quanto o significado de catarse em sua
definição de tragédia. “Uma grande discussão histórica centrou-se ao redor desta frase. Nenhuma
passagem, provavelmente, na literatura antiga foi tão freqüentemente tratada por comentadores, críticos e
poetas, por homens que sabiam grego e por aqueles que não sabiam” (Butcher). “A bibliografia de
Cooper-Gudeman e sua continuação por M. T. lista 147 livros, dissertações e artigos desde 1856 cujos
títulos claramente indicam que eles lidam especificamente com catarse; e a isto deve-se adicionar,
evidentemente, as grandes edições da Poética e muitos dos livros gerais sobre a Poética e Aristóteles” (Else).
...
44 Cf. Else.

29
entretanto, esta não é uma explicação particularmente persuasiva do que ocorre conosco
no teatro. Nós certamente não nos sentimos doentes com uma paixão quando as luzes da
casa apagam e desejosos de sermos aliviados dela quando as luzes se acendem, como se
nossa satisfação de ver Otello consistisse em ser purgado de ciúme. Realmente as pessoas
ciumentas gostam de Otelo mais do que aqueles que têm o monstro de olhos verdes sob
controle? Não seriam eles menos provavelmente abertos à reflexão sobre o ciúme e,
assim, menos motivados pelo seu drama? O prazer que experimentamos parece antes
surgir da experiência da paixão do que de sua anulação. A passagem do Livro 8 da Política
parece indicar que as paixões para as quais a música produz uma catarse, embora
presentes em diferentes graus, existem entretanto em todas as almas. Isso certamente não
sugere que elas sejam sempre simplesmente purgadas. Se as canções sacras produzem uma
cura e uma catarse, poder-se-ia facilmente concluir tanto que existe uma diferença entre as
duas, quanto uma catarse seja uma cura.
Mas talvez isso não seja totalmente adequado. Talvez a tragédia seja
pensada como servindo de vacinação. Ao induzir a aparência da doença, ela purgaria sua
realidade antes do fato. Nós iríamos, então, a Otello para prevenir a nós mesmos de nos
tornarmos doentes com o ciúme, em vez de nos curarmos de um caso já existente.
Entretanto, isso dificilmente contaria para o prazer da experiência. Este prazer parece de
alguma maneira conectado ao caráter paradigmático da paixão que surge em uma tragédia
particular. Otelo não é apenas um homem ciumento; ele é, de algum modo, o homem
ciumento. Como “formas das bestas desonrados e cadáveres” (1448 b 12), paixões
mostradas em sua perfeição podem ser experimentadas com prazer, mesmo se suas
versões impuras são dolorosas. Mesmo se o resultado da tragédia é que somos purgados
de certas paixões perigosas, esta purgação é realizada por uma representação de uma
versão purificada das paixões em jogo. Quando Aristóteles diz que a tragédia é imitação
que, através de piedade e medo, realiza a catarse de tais paixões ou sofrimentos, catarse
significa purificação, mas são as paixões, e não os espectadores, que são purificadas.
Entretanto, precisamos saber em que consiste exatamente esta purificação e por que ela é
efetuada por medo e piedade.
Se a tragédia realiza uma purificação, ela o faz como uma imitação — como
mímesis. A afirmação de Aristóteles indicaria que a tragédia é uma representação que,
através de piedade e medo, purifica paixões tal como piedade e medo (isto é,
presumivelmente existem outras paixões de algum modo semelhantes a elas). Vimos que a
afirmação leva a questões problemáticas. Por que a purificação é realizada por piedade e
medo? E piedade de que e medo de quê? Por que, também, a paixões a serem purificadas
são ditas como “tais como estas” (isto é, como piedade e medo, mas não apenas piedade e
medo)? O que é paradigmático sobre estas duas? Na Retórica, Aristóteles define piedade e
medo de forma particularmente instrutiva para a Poética.
Seja a piedade uma dor de um mal aparente, tanto destrutivo quanto doloroso, que
acontece imerecidamente e que alguém poderia esperar sofrer ele mesmo ou aqueles que
lhe são próximos, e isso quando esse mal parece perto. (1385 b 12-16)

Seja o medo, então, uma dor ou distúrbio da imaginação [phantasia] de um mal iminente,
tanto destrutivo ou doloroso. Pois nem todos os males são temidos, por exemplo se
alguém irá se tornar injusto ou estúpido, mas há alguns que tornam possível grandes
dores ou destruições, se não estão longe, mas sim parecem próximos de tal modo a serem
iminentes. (1382 a 21-25)
A comédia dizia respeito somente a alguns males (kakiai), aqueles que eram ridículos pelo
fato de pertencerem àquela parte do vergonhoso ou feio que não era nem dolorosa nem
destrutiva (1449 a 32-35). Piedade e medo parecem, então, ser o análogo trágico ao
30
cômico ou ridículo. Assim, enquanto a resposta à comédia era única, a resposta à tragédia
é dupla. Se o mal que aparece perante nós é destrutivo ou doloroso, somos forçados a
reconhecer a distinção entre nossa perspectiva como espectadores — ta theatra — e a
perspectiva do personagem que passa por aquilo que é destrutivo ou doloroso — autho
kath’auto (1449 a 8-9). Como espectadores nós nos compadecemos; como participantes,
tememos. Mas isto é simplesmente a conseqüência do duplo caráter de toda imitação
exemplificada pela tragédia — a mistura do extremamente real e do extremamente irreal,
de dran e drama.
Imitações nos anunciam sua simultânea realidade e falsidade. Elas somente
podem nos afetar na medida em que são reais; devemos, portanto, entrar na perspectiva
do personagem. Por outro lado, elas somente podem nos afetar como imagens se nós
estamos conscientes de sua irrealidade; essa distância nos permite separar a nós mesmos
da adversidade do personagem. Se uma besta feroz avança sobre um personagem em um
filme, nós no cinema não podemos apreciar propriamente o filme, a não ser que
estejamos receosos em algum nível. Por outro lado, se estivéssemos simplesmente com
medo, deixaríamos nossos assentos e correríamos para as portas de saída. Podemos
apreciar nosso medo somente na medida em que nossa experiência é simultaneamente
real e irreal. Embora sejam entendidas de modo útil como a divisão entre a perspectiva do
personagem no drama e aquela da audiência, esse dualismo inicial não é estável.
Compaixão não é assim tão separável do medo, pois, se nós não receamos em alguma
medida, não poderíamos nos compadecer com a adversidade de alguém em perigo.
Preocupar-se com o perigo diante de um personagem significa, em algum sentido, senti-lo
como um perigo. Enquanto a tragédia enfatiza a disparidade entre drama e dran, ela, não
menos do que qualquer outra forma de imitação, deve também depender de sua junção.
Toda mímesis envolve purificação. Dizer “este é aquele” requer uma
simplificação do que “este” é. Toda poesia, portanto, envolve purificação — catarse. Em
parte, Aristóteles começa a Poética descrevendo a poiêtikê como uma explicação de como
compor enredos de modo a tornar a poiêsis, a coisa feita, bela (1447 a 10). Para que alguma
coisa esteja separada das coisas ordinárias de nossa experiência, de tal modo a ser capaz
de representá-las, para que sejamos capazes de dizer “este” é “aquele”, é necessário que os
limites artificiais sejam colocados ao redor da coisa, de modo a torná-la descontínua com
a realidade. Para ser alguma coisa a mais, ela própria deve se tornar visível como um todo.
Mas nada no mundo real possui esta sorte de isolamento esplêndido. Imitação bem-
sucedida depende desta irrealidade essencial da mímesis, e imitação bem-sucedida é bela.45
Não é um acidente que a questão “Mas isso é real?”, quando respondida negativamente, é
suficiente para destruir nosso senso da bondade de alguma coisa, mas deixa intacto nosso
senso de sua beleza. Uma ilusão bela permanece bela, mesmo depois que nos tornamos
conscientes de sua natureza ilusória.46 Poesia, como mímesis, está necessariamente ligada à
beleza nesse sentido. Mesmo quando não é bela de um modo óbvio, ao representar ela é
uma idealização daquilo que representa. Ela destila a realidade para ser uma versão pura
do real. Mesmo um poema pensado apenas como “uma fatia da vida”, ao ser seccionado
do continuum da vida, torna-se paradigmático — uma idealização do ordinário. A vida não
vem em fatias.
O belo, to kalon, é a medida da poesia, por causa de sua conexão com a
irrealidade da poesia. Essa é uma imitação do real que é sabida como não sendo real. O
que, então, isso tem a ver com a representação de paixões? Como espectadores ou leitores

45 Cf. Davis.
46 Cf. Seth Benardete.
31
podemos ser levados a sentir justa indignação em uma forma quase pura. Quando os
pretendentes de Penélope tratam Telêmaco com desrespeito no começo da Odisséia,
ansiamos por Ulysses retornar e puni-los. Sentimos tais paixões realmente — se não o
fizéssemos, não haveria fundamento para provocá-las em nós na poesia — e, entretanto,
não as sentimos tão puramente. Justa indignação nos move a defender nossa honra, mas
quando nossas vidas estão realmente em jogo, ela é acompanhada por uma enfraquecida
mistura de medo. Nossas paixões estão misturadas de tal modo que nunca podemos saber
precisamente se temos medo, raiva ou piedade. Na realidade, tendemos a parecer mais
com a sensível Ismênia do que com a passional Antígona.47 Se poesia efetua uma catarse
das paixões dos espectadores, então ela o faz através de um tipo diferente de catarse das
paixões que ela figura. Ao figurá-las, ela as idealiza. A ira de Aquiles é um paradigma para
a ira humana, mas ela não é uma ira jamais sentida pelos seres humanos na realidade. Esta
verdadeira pureza, entretanto, significa que as paixões da poesia ocorrem de modo
irrestrito. Porque elas são puras, suas contradições internas finalmente mostram a si
mesmas. Macbeth é o homem corajoso, mas coragem irrestrita leva-o a atacar as
condições primordiais para a liberdade humana sem as quais coragem é impossível.48 Ajax
é o homem totalmente leal, cuja lealdade o leva a tentar trucidar todo o exército a que ele
é leal.49
Personagens poéticos são tipos idealizados mesmo quando, como é
normalmente o caso, eles são mais complexos que representações de paixões únicas.
Hamlet é sobre vingança, amor ao próprio pai, amor à própria mãe, medo da morte,
ambição? Qualquer uma destas tomadas uma a uma, e de fato todas tomadas em
conjunto, são simples demais. E, entretanto, Hamlet é a composição de um número finito
de ações. Por mais que ela nos seduza a pensar que exista um Hamlet com uma alma
totalmente humana por trás destas ações (de tal modo que o desavisado começará a
pensar em como teriam sido as experiências da infância de Hamlet), o personagem é
somente a coleção de ações na peça. Enquanto esta coleção é extraordinariamente rica e
nos leva a pensar através dos elementos conflitantes da alma de Hamlet, entretanto ele
não é um ser humano sempre com um futuro indeterminado à sua frente. Descrever um
personagem selecionando um número finito de suas ações é carregar tais ações com um
peso que elas não poderiam suportar na realidade. Fazê-las significantes nesse grau é
remover delas as características acidentais presentes em todas as ações da vida real.
Somente porque elas têm uma magnitude finita, podem ter esta grandeza (1449 b 25);
entretanto, na realidade nenhuma ação é claramente limitada deste modo. Quando uma
ação real de assassinato começa ou termina? Esta seleção real, que torna a mímesis
possível e significante, ao mesmo tempo assegura a irrealidade da imitação. O mundo é
significante, mas de modo incompleto; o mundo da poesia é totalmente significante, mas
irreal.
Toda poesia, como imitação, envolve purificação, mas o que significa que a
causa desta purificação na tragédia seja piedade e medo? O objeto de piedade e medo é o
mesmo — ambos envolvem ser afetado por um mal iminente e destrutivo ou doloroso.
Eles diferem a respeito da pessoa de quem esse mal se aproxima — eu mesmo ou
outrem.50 Ao provocar tanto piedade quanto medo, tragédia sublinha a tensão entre estas

47 Cf. Benardete.
48 Cf. Davis.
49 Cf. Davis.

50 É interessante que a questão de se o mal é ou não merecido não aparece no caso de medo (isto é, em

meu próprio caso).


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duas perspectivas; por um lado, entramos na perspectiva do personagem e, por outro, nos
distanciamos. Somos simultaneamente práticos (vinculados à ação) e teóricos (vinculados
ao olhar ou à contemplação), e deve ser assim, porque estamos teorizando sobre questões
práticas. Nosso medo é sinal de que suspendemos a realidade ordinária. Nossa piedade é
sinal de que reafirmamos nossa realidade ordinária, mas não totalmente. Para nos
apiedarmos de Édipo, devemos aceitar sua experiência purificada e simplificada como
experiência real. Piedade e medo participam ambos como co-causas da catarse trágica,
porque a tragédia sempre lida com males iminentes e estas duas paixões representam
nossa resposta dupla a eles. A ambigüidade ordinária de nossa situação em face de uma
imitação é sublinhada deste modo quando o objeto da imitação é o mal.
Entretanto, o que é mais peculiar à tragédia não é nem a purificação, que é
constitutiva de toda poesia, nem o fato de que esta purificação mostra a si mesma de
modo duplo através de piedade e medo. A parte mais enigmática da definição aristotélica
é o que é purificado — “tais paixões”. Por que a purificação mostrada através de piedade
e medo tem que ser das paixões como piedade e medo? Como um par, piedade e medo
apontaram para o caráter simultaneamente real e irreal de toda mímesis. “Tais paixões”
significa paixões deste tipo, paixões que nos tornam ao mesmo tempo espectadores e
atores, teóricos e práticos, racionais e animais? Toda poesia está sujeita ao belo — to kalon;
ela purifica o que ela representa. Tomados conjuntamente, piedade e medo apontam para
a discrepância entre o real e o belo. Nós realmente nos apiedamos daqueles pelos quais
podemos temer, somente por que temos uma realidade entre parênteses. Paixões “tais
como estas”, então, seriam as que apontam para esta discrepância. Tragédia seria aquela
forma de poesia que tem como sua matéria a discrepância entre o real e o belo entendido
como idealizado. Isto é, toda poesia, como catártica, purifica ou embeleza aquilo sobre o
que ela é. Enquanto os temas específicos variam, tragédias são sempre concernidas com
este processo de purificação ou embelezamento. Toda poesia é bela; a matéria da tragédia
é o belo.
Mas tragédia é ainda poesia e, como tal, catártica em suas representações. Já
a partir do início da Poética, Aristóteles indicou que o princípio que governa a composição
de partes é o belo (1447 a 10). Tragédia é, portanto, a bela representação do belo.
Tragédia imita a vida humana de tal modo a mostrar os perigos do elemento característico
da vida humana. Ao representar nossas vidas para nós mesmos, purificamo-nas; e as
tornamos mais simples do que elas realmente são. Édipo concebe um rei como o pai para
seu povo. Sófocles mostra-nos o que ocorre quando Édipo falha em compreender que
esta metáfora é uma figura de linguagem recalcada. Édipo realmente pensa de si como pai
de seus súditos e, assim, falha em lembrar que é também “irmão” deles, que é tanto um
deles, quanto superior a eles. O destino de Édipo é trágico. Ele é forçado a encarar as
conseqüências de sua própria purificação da realidade. Mas sua história é uma versão
purificada do que acontece ao homem que leva sua própria purificação da realidade, seu
papel como rei-pai, seriamente demais. Tragédia é, então, não mais real do que qualquer
outra forma de poesia. Ao expor os perigos da idealização, ela é uma dura crítica da
pureza que, ao idealizar as contradições da vida humana, exagera seu efeito. Ela nos faz
sentir que todos nós somos Édipo, quando Édipo somente poderia existir dentro de um
poema. Tragédia, assim, figura belamente para nós as conseqüências da disparidade entre
o belo e o real. Ela realiza através da piedade e do medo a purificação de tais paixões e, ao
fazê-lo, toma como seu objeto seu próprio procedimento.
Tragédia pode ser tomada como paradigmática para poesia em geral,
porque ela torna a poesia tão real quanto pode ser. A matéria da tragédia é a poesia. Esta
preocupação da poesia consigo mesma não seria de tanto interesse, se ela não fosse

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idêntica com a preocupação com nossas naturezas como seres imitativos. Dado que
nossas naturezas como imitativos estão na base de nossas naturezas como racionais,
tragédia é como uma crítica pura da razão pura.

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