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Meus Pecados

na Vila de Deus
Por André Barbosa de Morais
Juazeiro do Norte/CE, 2007
Sumário

I Impressões ................................................................................... 4
II No consultório ........................................................................... 8
III Na praça .................................................................................... 11
IV Em minha casa ......................................................................... 16
V No ônibus ................................................................................. 20
VI Sonhos de criança ....................................................................25
VII Um longo dia de trabalho ..................................................... 27
VIII Uma nova luz ....................................................................... 39
IX Dia de Caridade ....................................................................... 41
X Tempo de Preparação .............................................................. 46
XI A Filha do Prefeito ...................................................................52
XII Noite de Festa ........................................................................ 58
XIII A Lunática da Vila de Deus ................................................. 65
XIV O vendedor de Bob-Esponjas .............................................. 68
XV A Funcionária e a Garota de 200 Paus .................................. 72
XVI O Filho que nunca tive ........................................................ 80
XVII A boate da Vila de Deus ..................................................... 85
XVIII O Colega............................................................................. 94
XIX Debate................................................................................... 98
XX Brincando com os problemas .............................................. 102
XXI Um ótimo jeito de se conseguir um álibi ............................ 112
XXII O novo e único grande da Vila de Deus ............................ 115
XXIII Vocação religiosa ............................................................... 118
XXIV Vou ser papai .................................................................... 128
XXV Deus é pai ............................................................................ 131
XXVI Matando os Problemas ..................................................... 137
XXVII Dia Quente ....................................................................... 141
XXVIII Amor omnia vincit ......................................................... 143
XXIX Ela Tarda e Falha .............................................................. 149
XXX A Nova Lei .......................................................................... 155
XXXI Vida de Casado ................................................................. 162
XXXII Campanha de Caridade ................................................... 168
XXXIII Doença na Vila ............................................................... 176
XXXIV Palavra ............................................................................. 181
XXXV A Grande Loja .................................................................. 185
XXXVI Nostálgico ....................................................................... 193
XXXVII Começo do Herói .......................................................... 198
XXXVIII Tranquilidade ............................................................. 202
XXXIX Reencontro .................................................................... 207
XL O Atentado ............................................................................ 213
XLI Meu último pecado ............................................................. 218
I Impressões
Pois eu invejava os arrogantes, ao ver a prosperidade dos
perversos. Para eles não há preocupações, o seu corpo é
sadio e nédio. Não partilham das canseiras dos mortais,
nem são afligidos como os outros homens. (...) Eis que são
estes os ímpios; e sempre tranquilos, aumentam suas
riquezas. Salmos 73:3-5, 12.
Era como uma noite dessas em que os homens correm atrás de
mulher de motel, mas eu não tava nessas vontades nem também
queria ir pra casa. Era uma noite bonita, e na saída do
consultório me bateu um monte daquelas viadagens que a gente
fica tendo quando recebe notícia ruim: o ar parecia chega tá
carregado de não sei o que, quase como se nós dois fôssemos
um parte do outro, um órgão do outro; ao longe, pareceu-me
haver uns pirralhos que se divertiam em rir da minha cara, a
mangar de minha situação e a fazer trocadilhos com meu nome
(como outros fizeram na minha infância); e uma vagabunda a
rebolar suas partes só pra me provocar. Apenas impressões! As
pessoas em choque (como vários outros do mesmo modo) têm
essa tendência ridícula de ter alucinações. O ar não estava
carregado com nada. Era apenas ar e somente isso. Nunca
deixou de sê-lo. E se deixo essa impressão, em especial, ficar no
papel é porque sempre gostei de pensamentos poéticos: esses de
dizer que o ar está carregado com alguma coisa além de
compostos químicos; que a lua tem olhos ou qualidades
humanas; e que coisas inanimadas parecem ter vida. Ainda hoje
eu acho interessante aquela história de colocar adjetivos nas
emoções (humor negro?! Como seria se ele estivesse rosa
choque?). Mas vá lá, não estou criticando os poetas nem suas
manias. As crianças não estavam rindo e, pensando bem acho
que nem havia crianças na rua. Mas a imagem de alguém me
ridicularizando, e a raiva que ela gerava, ajudavam a esquecer
minha situação eram o motivo da impressão.
Enfim! A mulher que passava pela rua não era nenhuma
vagabunda; coloquei-lhe este nome só para fugir de minha
situação, como uma distração da consciência, uma janela aberta
para arejar a casa abafada. Eu ia morrer, e ela continuava a viver
sua vida sem pensar no assunto. É, Eu já sei! Sou ridículo. Ia
morrer. E daí? O que ela tinha a ver com isso. Não éramos nada
um para o outro. Se pelo menos tivéssemos esbarrado um no
outro e conversado por um ou dois minutos. Mas nem isso. Sou
ridículo. Eu já sei! Mas confesso nunca ter me acostumado com
esse sadismo que é normal, ou melhor, que é lei em nossa
sociedade “moderna”, do qual faço parte e sou um dos melhores
membros. Sadismo que nos faz ter festas pra cachorros,
enquanto há pessoas entre nós que morrem de fome ou que não
vivem, sobrevivem por falta de muitas coisas. Sadismo que nos
faz ir ao cinema assistir aos filmes que falam da miséria, que nos
faz discutir a miséria nas salas de aula, ruas e rodas de amigos, e
que não nos culpa por nunca termos saído das discussões.
Sadismo que nos faz ser quem somos: pessoas passam fome,
enquanto dormimos com nossas mulheres em motéis de 50 a
100 a noite; pessoas sofrendo nas noites geladas por falta do que
vestir, enquanto nossas amantes usam lingeries de 200 a 300 só
para podermos ter “uma noite diferente”; pessoas que fedem nas
ruas por falta de como ter higiene, enquanto nossos perfumes
dariam para alimentá-los por vários meses.
Um! Por que estou te enchendo com isso? Fiz isso a vida inteira
e só agora, porque tive uma repentina crise de consciência
devido à proximidade da morte, tento bancar o crítico. Curioso
isso de todos os que estão perto da morte terem vontade de
pedir perdão e fazer o certo, bancando o arrependido. Tarde
demais pra mim. Vou deixar o discurso crítico para os filósofos
sociais e aos poetas, que têm mais tempo para perder do que eu.
Mesmo que eu estivesse arrependido de verdade (o que é muito
fácil de dizer; qualquer criança sabe dizer “Eu estou
arrependido”), mesmo assim esse arrependimento só ajuda a
minha consciência, e dificilmente (muito dificilmente) irá curar
todas as feridas que uma vida de desprezo fez. Prefiro ser forte e
encarar a verdade, como muitos não o fazem nem o querem.
Prefiro ser forte e encarar o mundo como ele realmente é.
Deixo o discurso crítico inútil de lado. Foi só uma tolice
humana que me bateu de repente. Inutilidades! Ficam bem no
papel, nos livros de capas plastificadas, nas poesias e nas
músicas dos artistas famosos, que a gente repete sem saber o
porquê, enquanto está fazendo outra coisa menos importante,
mas mais interessante. Não passam disso. Cristo, Gandhi e
tantos outros filósofos tentaram nos advertir sobre essas nossas
tendências “humanas”. E olha o que aconteceu! Um foi
crucificado, o outro foi assassinado, e as obras dos filósofos
servem mais para enfeitar as bibliotecas e para serem decoradas
pelos alunos mais dedicados do que para serem usadas para
resolver nossos problemas. E serviriam, se as usássemos. Muitas
pessoas mesmo, caro leitor, quando terminarem a leitora deste
livro, ou desta página pelo menos (se paciência deles não der
para todo o livro), voltarão a suas vidas, tão ou mais normais do
que antes. E lhe garanto: a pena que sentirão ao passar pelos
mendigos da rua será tão passageira que nem se lembraram que
as tiveram (lembrarão sim daquela noitada com sua esposa, que
é lembrança melhor de ser guardada).
Retomando do início. Eu contava-lhe as impressões que tive ao
sair do consultório, onde recebi a notícia de que tinha uma
doença grave. Doença que me deu as alucinações e que não me
daria muito tempo de vida. Se eu fosse mais religioso talvez ela
tivesse me dado a visão do Senhor. Então ele iria por sua mão
suave e terna sobre meu ombro e me dizer que não temesse,
que tudo era parte de um plano maior e que meu tumulo seria
guardado pelos anjos até que Ele voltasse para realizar o Juízo
(então eu iria sair pregando como o Profeta de uma nova
religião, como tantos outros já fizeram). Mas não senhor!
Acredito que se eu tivesse que ver alguma entidade
sobrenatural, não a viria com asas, mas com chifres.
Acontece que eu não vivi uma vida de herói. Como disse antes,
sou um dos membros desse mundo; talvez esteja até entre os
piores. Conto em minhas costas com muitos pecados, que
dizem por si só que eu não passarei pelos portões celestiais.
Pecados grandes, e pequenos, inocentes e cruéis, que cometi
durante toda a minha vida, aqui na Vila de Deus. Pecados que
pretendo contar para você, caro leitor, se me der um pouco de
sua atenção.
Sabe, cheguei até a pensar em usar a palavra “confessar”, mas
acabei concluindo que o seu uso seria de uma desonestidade de
minha parte, e isso eu não queria. Confessar implica muitas
coisas, como, por exemplo, que eu estivesse realmente
arrependido de tudo que eu já fiz, o que não vai acontecer.
Também implica que você, você sim, caro leitor, estivesse
disposto a me perdoar.
Bem! Façamos o seguinte. Sigamos como nossa conversa.
Vamos ver se até o final dela poderei me arrepender de algum
dos meus pecados, e se você será capaz de me perdoar algum
deles.
II No consultório
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar,
e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar, e
tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar.
Eclesiastes 3:2,3
Se ocultas o teu rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a
respiração, morrem, e voltam ao seu pó. Salmos 104:29
Eu saí do consultório do Doutor Velho de Nariz Grande, que
tinha a mesma velha mania dos médicos de se acharem deuses.
Não lhe escreverei o nome dele. Não escreverei nomes aqui, e
mesmo que eu fosse dizer algum nome não seria o desse médico
hipócrita. Ele nem merece que eu o mencione nesse livro, mas é
que às vezes se faz necessário surrar os nossos desprazeres para
nos sentimos melhores, e eu (neste momento) estou precisando
disso. Essa é a grande graça e o pior defeito da literatura: nós,
autores, somos deuses do mundo que criamos. Podemos
queimar como bruxas as mais puras santas e levantar como
heróis os piores bêbados. Defeito porque eles só serão bruxas e
heróis aqui conosco, no outro lado, dentro do livro. Como todas
as coisas lindas que criamos, eles serão apenas fantasias.
O consultório era de um clima agradável. “Outro mundo”, diria
provavelmente um lavrador dos dias escaldantes se entrasse
para respirar o ar gelado do ar-condicionado. O que
provavelmente não aconteceria, pois não teria dinheiro para
pagar esse doutor caro. As estatuas do corredor davam ao
ambiente um ar intelectual, que é moda do nosso tempo: essa
de se importar tanto com as aparências. Não havia espera ou
filas (muito diferente daquilo que enfrenta a grande massa), e
mesmo que houvesse não teria problema, pois eu tinha para me
agradar, não a leitura de revistas, mas (a minha preferida) a
leitura do corpo de uma linda morena de uns 28 anos (a
recepcionista) que estava me dando bastante atenção. Claro que
analisando a situação profunda e apaticamente, chocar-nos-
íamos com um fato interessante do nosso tempo: se houvessem
filas e esperas, significaria que eu estava num hospital público; e
se eu estivesse num hospital público, aquela morena me olharia
com outros olhos. Mas deixe essa discussão para outro
momento. Ela acaba sempre ferindo o ego de muitas mulheres,
e me transformando num monstro que não quero que apareça.
Fazer o que?! Muitas das verdades ocultas por nossa vergonha
não serão discutidas; simplesmente ignoradas. Com fé e
vergonha se faz sumir até as pedras que estorvam nosso
caminho, para mantermos a ilusão e viajar mais tranquilamente.
Logo fui chamado à sala do doutor. Sala nobre, de luxo. Mesa
cara com cadeiras de couro, e logo atrás desses, pregados na
parede à vista de todos, os diplomas. Os médicos fazem isso.
Acho que são como os troféus de um caçador: provas de uma
conquista, de uma vitória.
O médico tinha me chamado para apresentar os exames que
pedira de mim há pouco tempo. Seu dedo enrugado parou no
raio-x e ele olhou as manchas pretas que indicavam um
resultado, enquanto os lábios frios cuspiam meu último
diagnostico. Não o repetirei! A vaidade me impede. No fim das
contas deixarei esse mundo como um homem forte e não como
um doente. Entretanto, repetirei com uma ideia o silêncio que
imperou na sala depois da noticia dada: ridículo.
Não fiquei nele por mais do que 3 segundos. Não daria esse
gostinho àquele velho. Ele apenas me olhou com as mãos
próximas à boca, dedo tocando dedo sem juntar as palmas.
Olhar idoso e apático: apatia daqueles que têm que lidar com a
morte diariamente, sem que isso afete seu profissionalismo. Não
o culpo em nenhum momento, nem de nenhum modo o crítico.
Como disse não sou crítico, nem gosto dessa profissão; não dá
lucro. É que as ciências e os conhecimentos acabam gelando os
espíritos. Além do que a morte para um doutor é coisa normal.
Acontecia que se o espírito daquele doutor era frio, o meu era
gelo já há muito tempo.
Deu-me conselhos para que eu fizesse preparativos, pois eu não
tinha muito tempo e quando a hora chegasse eu iria sofre
muito. Não o deixei continuar, interrompendo-o com a
exigência de privacidade sobre o caso: ninguém deveria saber a
respeito, e meu diagnostico, para qualquer um que perguntasse,
qualquer um, até mesmo Deus, deveria ser saúde perfeita. Ele
me garantiu isso; era um profissional. Paguei-lhe a vista ali
mesmo (o que não era costume, pois se paga à recepcionista), e
fiz questão de pagá-lo como quem paga os pães de uma padaria.
- Nunca imaginei que houvesse no mundo um ser humano tão
frio e apático quanto o senhor. Mesmo sabendo sua situação, o
senhor demonstra total controle de suas emoções e eu não
conseguiria dizer se está sentido alguma coisa. Ele comentou.
- Humano?! Respondi a mim mesmo, sem perceber que tinha
dito aquilo em voz alta.
- Sabe. Eu nem quero imaginar que coisas transformaram o
senhor nisso a que estou olhando agora. Replicou me olhando,
curioso para saber qual seria a minha resposta.
- Nem Eu, Senhor, pretendo contá-las para uma pessoa do seu
tipo.
Essas últimas palavras o calaram, e eu não quero perder tempo
imaginando o que passou pela cabeça do doutor. Peguei meu
rumo e sai o mais rápido possível do consultório, mas não tão
rápido a ponto de deixar que alguém notasse minha pressa.
III Na praça
Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do
rosto se faz melhor o coração. Eclesiastes 7:3
Sejam como a palha ao léu do vento, impelindo-os o anjo
Senhor. Torne-se-lheso caminho tenebroso e escorregadio,
e o anjo do Senhor os persiga. Salmos 35:5,6
Não tive, como disse, vontade de ir para casa naquela noite. Do
consultório resolvi andar pelas ruas da cidade para iludir-me
com imagens as sensações que eu ia tendo. Era o que a vaidade
exigia e era aquilo de que meu ego se alimentava. Enquanto
corriam as ruas, enquanto passavam as casas de várias cores e
formatos, enquanto caminhavam as pessoas de vários rostos e
sinas, ia me cutucando certa tristeza que há muito eu não
sentia. E foi assim, estando fora de mim, sem notar os passos
que eu dava ou por onde andava, que vieram dançar diante de
mim as antigas lembranças de tudo que eu tinha feito.
Vi minha infância passar a minha direita. Vi as crianças que não
me deixavam jogar bola, e até olhei para aquele marmanjo que
me dava rasteiras, quando os professores me obrigavam a jogar
futebol. E me irritou muito ver que os meus colegas de novo não
conversavam comigo quando era hora do intervalo. E, como se
fosse de propósito, as salas, as ruas, o meu quarto, tudo parecia
mais solitário do que realmente tinha sido.
À minha esquerda vi minha adolescência; idade de ouro, que
melhor ninguém inventa. Vi as quedas de bicicleta, os jogos que
joguei sozinho em casa. Refiz o mesmo caminho, que eu fazia
quando ia para escola, e o refiz novamente errado, só pra com
ela novamente esbarrar... Levei de novo aquele fora que tanto
me magoou, e queimei novamente os poemas que eu, besta,
fazia pra ela. Senti aquele frio na barriga quando dei meu
primeiro beijo e, Deus, como aquilo foi bom. Revi os tempos de
faculdade, e não chorei, como não tinha chorado antes, quando
vi todos os meus sonhos, todas as minhas expectativas afogadas
por um mar de “realidades” que me eram apresentadas. E vi
aquela criança, que eu era, ser aos poucos transformada naquela
larva, que cresceria lentamente até se tornar o que sou hoje. E
novamente não me arrependi de nada.
Mas foi à minha frente que se apresentou aquilo que mais me
irritou, pois vi aquilo que muitos outros veem quando estão a
beira da morte. Vi meus tempos perdidos, que nunca voltaram e
nunca foram recuperados, abandonados ou esquecidos em
algum lugar do meu passado, há tanto tempo enterrado. Vi
todas as coisas que quis e não fiz; algumas delas teriam me
deixado ainda mais condenados; outras teriam me salvado; e a
maioria era apenas coisas do ter-vontade, que vão escapando
pelos dedos e se fazendo não-realizadas. Aquilo, não entedia
porque, era que me dava uma pontada no ego.
E vendo isso, eu ri como não costumava. Como é ridícula essa
mania humana de se sentir mal pelas coisas não feitas, e quão
estranha é sua força sobre as pessoas, mesmo sobre aquelas,
como eu, desumanizadas. Quando estamos perto do fim,
arrependemo-nos, embora tenhamos feito pouco, no passado,
para que isso não ocorresse.
Pessoalmente nunca acreditei naquela história que algumas
pessoas, que numa tentativa de se justificar daquilo que não
fizeram, dizem a toa, como quem não quer nada: cuidado, a
gente pode está morto amanhã. E, sendo mais sincero, nunca
acreditei, e ainda não acredito, que alguma pessoa tenha
acreditado nessa bobagem realmente. Todos nós sabemos que
não vamos morrer amanhã; amanhã será um dia normal como o
de hoje foi. Esse é um dos piores de nossos defeitos, esse é
talvez um dos que nos torna mais humanos. Estamos cheios de
uma certeza estranha, que nos faz deixar coisas para fazer
depois. Se assim não o fosse, não estaríamos cheios de “ah eu
devia ter feito isso” quando estamos diante da morte. Se assim
não o fosse, teríamos muitas menos coisas para nos arrepender.
E foi por isso que eu ri. Ri do auto de minha apatia, vendo que
eu não era tão diferente de todos os humanos. Vi que não era
superior a eles, o que imaginava, mas que eu era tão normal
quanto eles, se bem que bem diferente. E essa contradição me
deixou curioso, formigando levemente na cabeça, mas um leve
de tirar a atenção, como aquelas lembranças e sensações me
tinham tirado. E era assim que eu garantia mais alguns minutos
de não-preocupação, e aquele era um método que trazia
resultados tão ou mais eficientes que os que o “Senhor” das
igrejas dos religiosos traria. Eles bem que podiam aprender
comigo, então podiam largar toda aquela formalidade, que de
função não tinha outra senão a mesma que eu já conseguia
sozinho.
Minha atenção, porém, foi retomada à vida e a minha situação
por uma bola que foi atirada por uma linda menininha loira de
uns 13 anos, que corria na praça onde me espantei por estar.
“Como será que cheguei aqui?”.
“Não incomode o doutor, filha.” Disse o pai da garota, que
estava sentado a alguns passos no banco da praça, com um
sorriso brincalhão-preocupado no rosto. Era o velho sorriso da
precaução, que muitas e muitas vezes eu tinha visto nos rostos
de várias pessoas, que se tornaria brincalhão, se eu
demonstrasse que tinha levado a bolada na esportiva, e que
aproveitaria para puxar conversa com o doutor; ou continuaria
preocupado, se notasse que eu era um daqueles doutores
abusados que gritam por tudo contra as pessoas humildes.
Como me mostrei do primeiro tipo, também ele se mostrou.
“Não há qualquer problema.” Eu repliquei com um sorriso de
alegria que eu sempre trazia escolhido para essas situações. “Ela
é uma menina muito danada, doutor. Que mania essa de jogar
bola. Uma mocinha da idade dela.” A mãe respondeu, vendo
que o “doutor” era um dos simpáticos, e se não paravam de me
chamar de doutor era, talvez, porque eu, por acaso, usava o
terno com o qual trabalhava. “Manias o quê, minha Senhora.
Isso é vida, e é uma das coisas que eu mais admiro e acho belas
no mundo inteiro. As crianças são um presente de DEUS.” E
acentuei o deus, como eu sempre, por estratégia, acentuava. E
foi nesse momento que a menina, muito simpática (era
característica de algumas meninas como ela), me puxou pelo
braço e me pediu para com ela brincar. “Que é isso filha, o
doutor não tem tempo para isso. Ele é uma pessoa muito
ocupada e...”. A mãe respondeu, mas não deixei que ela
terminasse. “Nunca estou ocupado demais para brincar com
uma mocinha tão linda como o é sua filha. E estaria
imensamente honrado, claro que e só se vocês me permitissem”,
um português mais rebuscado sempre surtia um bom efeito, e
eu sabia disso, e o usava constantemente. Eles nunca iriam
discordar, a não ser que eu fosse qualquer outra pessoa além de
doutor; então ficariam desconfiados.
A menina me levou para um lugar da praça, meio que fora da
vista dos pais que, isso eu não sei explicar, não vieram nos
interromper. Às vezes gosto de acreditar no destino, de
acreditar que a sorte pode ser boa com a gente e de pensar que
coisas boas podem acontecer assim, porque têm de acontecer. É
que naquele momento, no estado em que eu estava, seria
melhor para mim a inocência de uma criança não-socializada, e
não sei se eu suportaria os “interesses” que a gente com
problemas é obrigada a ter.
Primeiro jogamos bola, tocando um para o outro, de acordo
com o que a idade me permitia. E a imagem daquela menina e
aquela alegria dela foram o bastante para me tirar de minhas
preocupações novamente. Neste momento, prestei atenção em
cada detalhe dela, e os pretendia organizar nesse parágrafo, me
estendendo por páginas e páginas, mas é que eu detesto
descrições longas. Então vai essa: os cabelos eram loiros, longos
até um pouco abaixo dos ombros; corpo cheio, e as formas de
mulher, que vêm perto da idade em que ela estava, já faziam
dois volumes na blusa de flores amarelas com uma fada
moderna na altura do umbigo (percebi esses detalhes de mulher
nela quando juntei as imagens no papel, preparando a
descrição, embora ela, em muito, tenha me lembrado A Garota
dos 200 Paus); Os olhos eram penetrantes e despreocupados,
como os de Minha Filha; e a simpatia era como aquela das
crianças de bom coração.
Brincamos, até que os pais delas se aproximaram. Ela reclamou
até que eu disse que já era hora de ir para casa. Que era
necessário para ela dormir. Pois também era minha hora, e
apontei para meu motorista, que já me esperava na calçada.
Ofereci carona a eles, e para que não recusassem, disse-lhes que
ficaria ofendido se me recusassem: nunca falhou.
Ao me despedir, à porta da casa deles, prometi que apareceria
novamente, talvez para o aniversário dela, que era dentro de
dois meses, e mandei que o motorista dirigisse até fora da vista
deles, mas não para que eles ficassem fora da vista do meu
retrovisor. Nunca pude cumprir a promessa, nem talvez a
tivesse cumprido se tivesse tempo.
IV Em minha casa
O que perturba sua casa herda o vento (...). Provérbios
11:29.
Depois de alguns instantes, falei ao meu motorista que andasse
pelas ruas aleatoriamente. Ele não entendia muito o motivo
pelo qual eu fazia aquilo, mas cumpria a ordem sem problemas;
há muito que era meu costume aquilo. Confesso que se ele me
perguntasse, eu não saberia explicar. Era uma daquelas coisas
que fazemos, sem nenhuma razão especifica para fazer: como
todas as vezes em que ficamos parado com os olhos fechados
em um lugar tranquilo só para ouvir o silêncio e ver a escuridão;
como aquelas vezes em que rabiscamos coisas nos nossos
cadernos nas aulas chatas sem sequer saber o que desenhamos.
Não havia lucro, vantagens ou perdas, não havia motivos para
tal, nem muito menos motivos para não fazer, só uma vontade
curiosa e besta, que a gente não deixa passar.
Enjoei logo, o que não era do meu costume. Muitas vezes houve
em que rodei pelas ruas sem rumo por duas ou três horas,
sempre parando em lugares com muita gente para olhá-los
conversar. Talvez fosse a nova situação que me dera novos
gostos. Não sei. Sei que fomos daí direto para casa.
Era umas 10 e alguma coisa da noite, quando eu saí do carro. A
casa me pareceu um pouco diferente, como se não fosse minha,
mas era apenas uma aparência. Mais uma impressão como
aquelas, que tive ao sair do consultório. Já era hora um pouco
distante daquela em que costumava chegar, mas nem por isso
eu esperava encontrar minha mulher adormecida ao sofá a me
esperar. Bem que eu queria que ela esperasse, mas a situação
não era pra tanto e além do que, se ela estivesse preocupada
com minha demora, ligaria para mim para saber onde eu estava.
Mas isso é só um dos motivos pelo qual, às vezes, não gosto
dessa modernidade: ela acaba nos tirando alguns privilégios.
O que encontrei foi minha filha aos beijos com namorado dela,
no sofá, fingindo que assistiam a um filme de terror. Quando ela
me viu teve um sobressalto. O rapaz tirou rapidamente a mão
das coxas dela, e ambos, com respiração inconstante, tentaram
inutilmente disfarçar a situação.
- Pai, eu posso explicar...
“Depois, não estou com tempo agora!” Eu disse, interrompendo-
a. Minha filha então olhou para mim sem entender nada, e olha
que ela entendia muito mais do que o rapaz que estava
morrendo de medo de que eu tentasse matá-lo. Eu entendia,
por experiência, por isso não faria nada.
Entrei no meu quarto, onde Minha Mulher esperava com sua
camisola preta que ela sempre adorava usar, lendo uma revista.
Oh meu Deus, como e ela era linda, tão linda quanto na
primeira vez que a vi. Como eu a adorava. Esse pensamento veio
em mim e me entristeceu, fazendo-me ter uma recaída
emocional e ter vontade de chorar. Quase não conseguir reter
os sentimentos, mas há tanto tempo eu fazia isso que a
experiência me ajudou, e qualquer outra pessoa que tivesse me
visto no quarto, teria dito que eu não sentir absolutamente
nada. Acontecia que Minha Mulher não era qualquer outra
pessoa, ela me conhecia já há tanto tempo, e por isso notou algo
de diferente em mim. Eu detestava isso nela.
Levantou-se, aproximou-se e me perguntou se havia alguma
coisa. Os olhos dela, eu tenho que dizer isso, estavam incríveis
àquela distancia. Estavam quase tão negros e quase tão
brilhantes quanto estavam quando tivemos nossa primeira vez.
“Mais negros que o fundo do céu / Luzes em tua pele cor de mel
/ E como tanto assim podem brilhar / Brilhar mais que todas as
estrelas que se podem contar?” Foi como eu a descrevi tantas
vezes, nos poucos versos que eu me atrevia a fazer. Versos que
nunca dei pra ela ler. Era em momentos como aquele em que eu
tinha certeza que ela me amava, de que ela se preocupara
realmente comigo, como nenhuma outra faria.
“Estou perfeitamente bem!” Menti instantaneamente, sem
demonstrar qualquer sinal de hesitação. Menti, exatamente
como tinha feito sempre, muitas e muitas vezes. Menti do
mesmo modo que fazia para todos os outros. Menti tão
convincentemente, exatamente do mesmo modo que eu fazia,
às vezes até ludibriando a mim mesmo, que ela não duvidou.
E a beijei com vontade, com vida, com tanta vida que ela nunca
suspeitaria que a vida em mim se acabava. Então até que ela
dormiu foi uma noite cumprida, pois nos amamos com vontade,
como sempre tínhamos feito, como sempre tinha nos feito feliz.
Ao terminarmos, como de costume, ela me abraçou com o
corpo, nua, e eu a enrolei junto a mim, como de costume.
Nunca dormimos uma noite “um para cada lado”. Era como se
ela quisesse me aquecer com o calor dela. Fazia isso porque
sabia que existia alguma coisa muito fria em mim e queria que o
calor dela a espantasse (podia até ser que não o fosse, podia até
ser que fosse apenas um costume nosso e que nada significasse,
e com certeza era, mas me recuso a aceitar essa possibilidade:
essa fantasia vive comigo, e ninguém pode destruí-la).
Se algum dia eu duvidasse do que era o amor, bastava dormir
como Minha Mulher para que ela me aquecesse com aquele
calor, para ter certeza absoluta novamente. “Amor?! Cínico!”
Seria exatamente o que alguém pensaria de mim, se soubesse de
tudo e me visse falar de amor. Como uma pessoa como eu podia
falar de amor.
Receio, porém, que o pensamento desta pessoa, que me julga
um vilão, como os das novelas de quinta categoria, estaria de
certo modo equivocado. Posso falar muito do amor, posso falar
muito de várias coisas. Basta dizer que depois de tantos anos,
nunca deixei de desejar Minha Mulher. Deferente de muitos que
eu conheço, eu nunca preferi jogar bola com os amigos a levar
Minha Mulher a um motel. Nunca precisei trabalhar até mais
tarde para não a pegar acordada. E, em todos esses anos de
casamento, ela nunca se queixou da “Dor de Cabeça”.
Eu poderia até, para me defender, dizer que mentir para ela
para protegê-la, mas não sou como a maioria dos de minha
espécie. Dizer isso seria contar só 10% da verdade, o que seria
bom apenas como justificativa. Em verdade, menti também, e
principalmente, por vaidade, e menti para proteger meu ego. E
desse crime sou apenas mais um de um mundo inteiro.
A diferença básica em mim é que eu há muito tempo consegui
anestesiar a consciência. Não preciso de um motivo para me
sentir bem, pra me sentir humano (único motivo real da
consciência). Muitos homens mentem de várias maneiras, mas
diferentemente, dizem-se obrigados por circunstancias diversas
(a felicidade da esposa, a proteção do casamento, o amor pela
mulher), justificando-se. Não preciso disso, não mais. Não me
sinto menos humano em dizer que mentir porque eu quis,
mentir porque gosto de manter tudo sobre o controle, mentir
porque sou vaidoso. Isso faz parte da humanidade, sempre fez;
eu apenas me acostumei com ela.
V No ônibus
Destrói, Senhor, e confunde os seus conselhos, porque vejo
violência e contenda na cidade. Salmos 55:9.
O sábio escala a cidade dos valentes, e derriba a fortaleza
em que ela confia. Provérbios 21:22.
Não consegui dormir aquela noite. Não que minha consciência
estivesse pesada por algum feito do passado. Não era isso. Se a
consciência é mesmo um morcego, como dizia o poeta, o meu
quarto tinha telas nas janelas e eu não o deixava entrar. Era, na
verdade, uma daquelas noites nas quais alguém fica com a
cabeça cheia de pensamentos, e os pensamentos, como crianças
agitadas, insistem em não quererem ir para a cama. Os meus
não queriam, então passeei com eles (usando um pouco da boa
poesia), e andando fomos parar no primeiro dia em que pus os
pés na Vila de Deus.
Ah, como eu poderia esquecer aquele dia. Foi despertado de um
dos melhores sonhos de minha vida (ia dormir com uma das
gostosas da faculdade) por uma velha gorda, que vinha ao meu
lado no ônibus. Eu me dirigia para assumir o cargo de juiz da
Vila de Deus, algum tempo depois de minha formação. Eu
passei no concurso prematuramente, claro, mas eu nunca
reclamei das coisas que a sorte me trazia.
Se a viagem já era chata, tinha se tornado pior com a entrada da
Velha Gorda. Começou a conversar comigo sobre novelas,
assunto que eu simplesmente detestava. Então entrou com as
fofocas da Vila. Com certeza, se eu estivesse interessado em
saber alguma coisa sobre a vida de qualquer pessoa na Vila, ela
iria saber. Não suportando mais a conversa, acabei partindo
para o tratamento de choque: fingir estar dormindo na frente
dela. Eu não costumava fazer aquilo com pessoas que eu não
conhecia bem, imagina se ela fosse a mulher de algum homem
importante na cidade, eu teria um bom problema, mas como
vínhamos no ônibus, presumir que ela não devia ser ninguém
importante. Desse modo, me virei pro outro lado e dormi com
ela falando. Ela se irritou, claro, quando notou minha
indelicadeza, e se resignou a resmungar nomes feios contra
mim. Nem liguei, pelo menos seguiríamos a viagem em paz.
Isso foi o que eu tinha pensado, e cheguei sinceramente, na
minha inexperiência a acreditar em mim. Mas então um fato
novo ocorreu. Não sei como alguém, que sabia que eu tinha
passado para o concurso de Juiz, me reconheceu, nem sei
porque ele (um colega de faculdade que eu mal conhecia) veio
me tratando justamente de “Doutor Juiz”. Bem, estou sendo
meio preguiçoso, na verdade eu sei bem o motivo pelo qual
aquele colega veio logo me chamando de “doutor”, mas vou
omitir essa informação desta vez; toda vez que eu falo dessas
coisas fica parecendo que eu sou um monstro que não tem
nenhuma fé na raça humana, e eu detesto parecer assim. De
qualquer maneira, as palavras ditas pelo meu colega foram o
bastante para “acender” uma lâmpada especial nas ideias
daquela senhora, e eu sabia disso. Segurou-se por alguns
instantes, até fingindo que não ouvia a conversa que tínhamos
(o indiscreto do meu “colega” chegou até a perguntar qual era o
valor de minha remuneração). Minha frieza acabou espantando
o tal que apareceu, mas claro que ele se preocupou em ser
educado e dizer “depois conversamos, eu estou muito cansado”
(a educação sempre fez bons mentirosos!). Voltei a minha
posição e esperei a Velha Gorda puxasse novamente a conversa,
o que (acredite!) não demorou quase nada...
- Viagem cansativa essa, em?
- Concordo. Essa viagem está acabando comigo.
- É pelo menos você é jovem, consegue dormir em qualquer
lugar. A gente, quando vai ficando velho, vai perdendo a
facilidade de dormir em qualquer canto. Até a insônia nos ataca
às vezes.
- É mesmo. Ah, desculpe se eu dormi enquanto a senhora
falava... (eu adorava, e ainda adoro, brincar com essa coisa de
“me desculpe”, poucos imaginam os resultados que saem dessas
pequenas mineirinhas).
- Que é isso, não se preocupe doutor. O senhor deve está
cansado, uma dormida daquela faz bem até pra saúde. E na
verdade eu nem notei que você tinha dormido.
- Ainda bem. Eu não ficaria bem em saber que tinha, de algum
modo, ofendido a senhora. Eu não gostaria de saber que tinha
sido indelicado com uma pessoa tão distinta (Quase deu pra ver
o olho dela brilhar, e eu quase não seguirei o riso que me subia
à garganta).
- Me ofender?! Uma pessoa tão educada como o senhor, doutor.
Quem sou eu para ficar ofendida com algo tão besta. Eu fico até
feliz em saber que o senhor está se cuidado bem, afinal o senhor
é o novo Homem da Lei da nossa cidade (dizia, enquanto abria
um sorriso até que bem sincero). Eu mesma acho que há muita
coisa a ser feita....
Então nos tornamos melhores “amigos”. Claro que é um exagero
de minha parte, mas acho que da parte da Velha Gorda não era.
Percebi que ela iria ficar puxando conversa até o fim do
percurso e que o truque da dormida não iria funcionar
novamente, então entreguei os pontos. Talvez ela pudesse me
ser útil, e de qualquer modo, numa cidade pequena, sempre era
bom ter uma “amiga” fofoqueira. Se a pessoa souber como,
sempre pode tirar alguma informação útil desse tipo de pessoa.
Além do mais, eu estava morrendo de vontade de brincar com
ela, sabe como é: testar a habilidade de interrogatório, a
habilidade de mentir convincentemente, a habilidades de
parecer o melhor cara do mundo, entre tantas outras que eu
sempre mantinha bem treinadas.
Confesso que era um pouquinho cruel (quem liga?!), mas era
bem divertido e trazia alguns resultados interessantes. Não foi
difícil fazer aquela senhora me dar a fixa completa da família
dela: nomes, hábitos, gostos, dificuldades, até mesmo alguns
segredos. O que mais me interessou na família foi a existência
de uma filha de 17 anos, que foi bastante elogiada pela Velha
Gorda. Lembro-me de que ela chegou a usar as palavras “pura”,
“trabalhadeira” e “anjo” na descrição da menina, que não irei
repetir aqui: descrições de uma mãe fazendo a propaganda de
sua filha pra um “possível” bom partido não são exatamente o
tipo de descrição mais fiel que pode haver. Mas se a pessoa for
esperta, pode tirar muitas vantagens de conversas como
aquelas. E eu via um bom potencial nessa Filha da Velha Gorda.
Chegamos a Vila de Deus lá pela noitinha. “Cidade calma, cheia
de pessoas boas, e de uma tranquilidade cativante, cheia de
oportunidades para quem quer trabalhar. O ar é puro. E talvez o
único problema aqui sejam os fofoqueiros. Eu detesto gente
fofoqueira.” Foi assim que ela me descreveu a Vila.
Ao descermos do ônibus, lembro-me que ela me disse que o seu
marido a estaria esperando numa das praças. “Eu acompanho a
senhora”, disse eu, imediatamente pegando a bolsa pesada que
ela trazia. “O que é que você traz aqui, Velha, tijolos?”, cheguei
a pensar de leve. Ela tentou insistir para que eu não as levasse, e
que não era necessário acompanhá-la, mas disse-lhe que as
insistências eram inúteis.
O marido dela já esperava quando chegamos a tal praça. A
Velha fez as devidas apresentações, sempre me tecendo elogios.
E como tinha sido fácil conquistar a mulher, mesmo sozinho,
não foi difícil conquistar o marido, com a ajuda da mulher.
Conversamos por alguns minutos, até o momento em que toda
a diversão tinha se acabado. Perdi a graça de brincar, e
educadamente, coloquei a mão na boca para esconder um
suposto bocejo. Entenderam inconscientemente e tiveram pena
de mim. “A pobrezinho, o doutor não está acostumado a essas
viagens de ônibus”, lembro-me de ter ouvido, só não recordo de
quem foi. De qualquer modo era minha deixa pra sair. Despedi-
me dos dois, sempre delicadamente com a mulher, e firme com
o marido, e não deixaram que eu saísse antes de prometer que
iria jantar na casa deles no domingo seguinte.
Então, foi para a casa que eu previamente tinha conseguido para
morar, curioso para saber se era “gostosa” a Filha da Velha
Gorda.
VI Sonhos de criança
Como ao sonho, quando se acorda, assim, ó Senhor, ao
despertares, desprezarás a imagem deles (...) Eu estava
embrutecido e ignorante: era como um irracional à tua
presença. Salmos 73:20,22
Bem, nesse momento há algumas coisas que eu acho que se
deveriam saber sobre mim. Nem sempre foi o “monstro” que
estou parecendo agora, e (acredite!) não sou o “monstro” que
alguém pode achar que eu sou.
Eu tinha sonhos, muitos deles, dos quais me orgulhava muito.
Talvez dentre todos os membros de nossa raça, eu fosse o que
mais sonhava. Eu realmente acreditava nas coisas que são mal
representadas nos filmes bonitinhos:
Naquele tempo que acreditava realmente que se eu quisesse
muito uma coisa, e se eu trabalhasse duro para isso, eu poderia
conseguir tudo que eu queria. Eu realmente cheguei a acreditar
que eu poderia ter um amigo que me entendesse realmente, que
se importasse comigo do mesmo e exato modo com o qual eu
me importava com ele (e quebrei a cara muitas vezes por sonhar
que isso era sempre possível).
Digo, e se o faço é para que alguém possa não cometer o mesmo
erro, que eu podia ajudar as pessoas. E afirmo que eu fui um dos
bobos que achou que isso sempre era a correto a se fazer.
E com muita vergonha digo que foi aquele cara bobo que
acreditava no amor incondicional; que acreditava que o
dinheiro não era importante e que podia viver sem ele; que as
pessoas eram sempre boas e honestas e que mereciam sempre
uma segunda chance; que o amor e a bondade eram tudo, e que
alguém algum dia seria recompensado na terra com coisas boas
por ser uma pessoa boa. Entre muitas outras fantasias que irei
confessado ao longo de nossa conversa.
Bem, ou alguém, que provavelmente ainda está preso a várias
“correntes” de sentimentos que a nossa sociedade disse que
eram certos, e que acreditou, deve está sentindo pena de mim,
pensando “que pena desse pobre homem, perdeu toda a fé nas
coisas boas e agora se vê transformado nessa coisa sem
coração”, ou então deve está morrendo de raiva de mim porque
eu sou um “ser odioso, um péssimo exemplo, e uma alma
perdida sem salvação”.
Não fico chateado com essa pessoa. Quando eu fui perdendo
essas crendices, minha consciência de humano também pesou
sobre mim, me fazendo me sentir mal, me fazendo me sentir
um mostro. Por isso eu entendo essa pessoa, que deve está se
sentindo meio estranho comigo, algo como uma mistura de
pena, raiva, desprezo e curiosidade. E é por isso que não fico
chateado e defendo o seu direito de me chamar do que quiser,
de me julgar à vontade e de até me achar o vilão dessa história.
Mas se igualmente estará de acordo que eu fale e defende meu
direito de dizer, poderei dizer como fui perdendo esses meus
sonhos de crianças, enquanto ia fazendo meus pecados, que dão
título e motivo a essa obra.
VII Um longo dia de trabalho
As tendas dos tiranos gozam paz, e os que provocam a Deus
estão seguros (...). Jó 12:6.
Acordei cedo aquela manhã e estava bastante animado. Iria ser
o meu primeiro dia de trabalho, e por isso eu queria fazer
bonito. Tomei um longo banho. Pus a melhor roupa que eu
tinha, até me preocupando em usar uma das mais discretas que
eu tinha para não parecer que eu estava me exibindo. Isso podia
pegar mal. Era que eu queria causar uma boa impressão nas
pessoas, mostrar firmeza sem parecer duro demais, mostrando
que as pessoas podiam confiar na Lei.
Como eu era bobo naquela época. Hoje eu sei bem! De repente,
quando o tempo passa e ficamos velhos, percebemos tudo de
ridículo que um dia fizemos.
Naquele dia preparei tudo o mais rápido possível, para não
atrasar nem um segundo do meu precioso trabalho, então sentei
no sofá que ficava perto a porta (ainda me lembro da posição
exata, por causa disso) e esperei até que a Funcionária que iria
me ajudar no trabalho viesse me buscar. Estava tudo
combinado, no primeiro dia ela iria bater na porta de minha
casa para irmos juntos para o trabalho, assim ela me mostraria à
cidade e me poria a par as rotinas.
Aconteceu que, por causa do entusiasmo, eu tinha me
esquecido de como são os trabalhos públicos das cidades
pequenas. Meu trabalho começava só depois das oito horas. O
que me deixou esperando por um bom tempo.
Então já que eu esperava para ir ao trabalho, vamos aproveitar o
tempo para explicar alguns detalhes sobre minha carreira
profissional. Eu tinha feito uma faculdade ótima. Era um dos
melhores da sala, e só não digo o melhor porque havia um lá
que tinha ainda menos vida social do que eu. De fato era porque
eu não tinha vida social que eu me dedicava aos estudos (claro
que eu também gostava dos livros). E não era tão difícil está
entre os melhores da sala. A maioria dos alunos do curso de
direito levava na brincadeira. Lembro-me perfeitamente do bar
que havia ao lado da faculdade e que vivia lotado de alunos.
Alguns matavam aula por festas.
Eu era um dos alunos mais dedicados as matérias, passava horas
decorando palavras em Latim, e até fiz poemas para decorar
preceitos jurídicos, e ainda me lembro de que o professor me
admirava porque eu tinha “um brilho nos olhos que demonstra
uma fé inabalável na lei e na ordem”, como um dia ele me disse
em particular.
Meu professor não estava tão certo. De fato eu tinha um brilho
no olho diferente sempre que entrava na “Grandir” (Grande
Faculdade de Direito), como eu costumava chamá-la. Escolhi
por vocação essa profissão. Eu tinha fé nas Leis. Eu acreditava
que se podíamos mudar, se podíamos nos tornar uma sociedade
melhor, mas digna e mais justa, aquele era exatamente o ponto
onde se devia começar. “Havia muitos pontos negativos, muitos
erros e muitas praticas inadequadas e desonestas”, escrevi uma
vez num dos trabalhos apresentado ao professor, “mas com
força de vontade e com trabalho duro, se acreditarmos
realmente que podemos fazer a diferença, a tudo dar-se um
jeito.” Quase tirei nota máxima com aquela redação (eu sempre
tive muitos erros de grafia e isso atrapalhava bastante), e ainda
tenho aquelas palavras na memória (sabe como é, sempre há
um momento em que estamos tristes e precisamos rir um
pouco).
De fato quando desci daquele ônibus eu tinha esperanças. Eu
tinha, na minha cabeça, diante de mim a oportunidade de fazer
tudo para o que eu tinha sido treinado, uma oportunidade única
de fazer o certo e de ser lembrado por isso (como tantas vezes
meu pai tinha me ensinado).
Eu pensava muito naquele dia. Primeiramente na minha família,
imaginando que um dia, famoso por minhas proezas, iria
chamá-los para conhecer a minha cidade (eu sei que é um
pouco de vaidade, mas quem nunca foi vaidoso uma vez na
vida). Depois pensava nas pessoas que eu iria ajudar, levando a
justiça, e na gratidão delas a mim. Veio-me a cabeça a cena
daquele filme em que o fazendeiro pobre, depois de ser ajudado
pelo medico novo da cidade, lhe dar uma porca para pagar pelo
serviço. Eu me imaginei naquela situação e realmente, afirmo,
eu esperava a minha vez de ganhar uma porca (e a gratidão que
a acompanharia).
E foi quando eu estava no meio desse turbilhão de expectativas,
sonhos e crendices (as que lhe disse agora apouco e muitas
outras que naquele tempo eu alimentava) que a Funcionária
bateu na porta com peça de metal.
Sai de um traze naquele instante. Isso era tão normal que eu já
não me incomodava como a sensação. Era o que eu sempre
fazia, me esconder no fundo dos meus pensamentos, e ainda
hoje o faço. Era uma evasão muito poderosa, pois eu não só saia
dos problemas do externo, como também saia dos problemas
internos, é que nesses momentos eu saia do próprio corpo.
Sai, então, e cumprimentei a Funcionária, que era uma jovem
muito bonita. Devia ter seus 19 anos, era de um corpo escultural
(para usar um adjetivo bem insuficiente), e olhos profundos e
brilhantes. Eram olhos deferentes dos que eu tinha visto (não
sei, talvez porque só tivesse prestado atenção naqueles). Olhos
de quem tem muita fé na vida e vontade de vivê-la da melhor
maneira possível. Olhos fundos, compenetrados, que
provavelmente já tinham sido usados para ver muitas situações
boas e ruins, talvez até de onde rolaram muitas lagrimas, mas
que mesmo assim continuavam a ter um brilho de esperança,
algo de uma bonita fé misturada naquele castanho escuro, que
fazia todo o resto do corpo parecer brilhar. E ela brilhava muito
por causa dos olhos. Impressionei-me muito com aqueles olhos,
mas o que eu não sabia é que aqueles olhos iriam assombrar
alguns de meus pensamentos (os mais profundos e esquecidos)
por um longo tempo.
Apresentamo-nos, e ela mostrou um sorriso bem bonito de uma
amiga. Então fechei a porta e demos alguns passos em direção a
rua. “Cadê seu carro, Senhor?”, ela me perguntou meio sem
jeito. “Ainda não tenho. Estava pensando em comprar um
usado, sei lá, mas ainda estou planejando”, foi a resposta que me
saio espontaneamente dos lábios, ao que ela respondem como
um interessante “Ah, tá!”. Ah como esses dois monossílabos me
soam significativos hoje, muito mais do que o soaram naquele
dia. E andamos até que chegamos ao prédio onde eu
trabalharia.
Não sei porque fiquei irritado, nem com o quê. Sei, porém, que,
de uma hora pra outro bati a porta do meu escritório e pedi por
trabalho. A Funcionária não entendeu nada, mas obedeceu
prontamente. Naquela hora pareceu que eu tinha me feito
impor, algo como se “quem manda aqui chegou!”. Embora só
agora, recavando as memórias, me dou conta disso.
A Funcionária, meio amedrontada com minha repentina
mudança de personalidade, colocou alguns papeis de processos
para que eu olhasse. Trabalhos de rotinas: expedir ordens de
buscas, de despejo, analisar causas, etc. Na verdade, esses
trabalhos são tão rotineiros e chatos que não têm lugar aqui.
Vale a pena lembrar os trabalhos não corriqueiros que, de
quando em quando, aparecem. Eu seria infantil em dizer que
não sabia deles, ou que não esperava que tais trabalhos
chegassem a mim. Acontece que eu podia ser acusado de
sonhador, mas não de burro; sabia bem o país em que vivíamos,
conhecia a lei muito bem. Confesso, porém, que esperava que
tais trabalhos não viessem a mim tão sedo.
Mas vieram sedo as minhas obrigações escusas. Foi no meu
primeiro dia de trabalho que conheci os três Grandes da Vila de
Deus, como uma vez os chamei brincado. Tais pessoas iriam ser
causas e sofrer as consequências de alguns dos meus pecados.
Foram alguns de meus professores, a quem observei muito
atentamente, sempre aprendendo, e às vezes até agradeço
porque eles não tiveram tempo para aprender de mim.
Eu tinha começado a ler apenas as primeiras linhas de um
documento quando eu ouvi a Funcionária falar ao telefone. “Já
chegamos senhor... claro, eu avisei primeiro ao senhor,
Prefeito.” O documento era o de uma disputa entre fazendeiros,
um rico e um pobre, mas não dei muita atenção a ele. Poucos
segundos depois, como se eu fosse esperado com ansiedade,
uma pick-up parou perto de onde eu trabalhava. Deu pra ouvir
porque esses carros tem um barulho especial quando aceleram.
Levantei-me e pus a mão na maçaneta, e esperei até que o
prefeito estivesse bem próximo à porta, então a abri. Era um
meio de fingir que eu também o esperava, para que ele não
pensasse que me tinha pego desprevenido.
Tentei então dominar a situação tentando mostrar autocontrole
de um modo que ele não percebesse minha surpresa, aliais foi
essa a técnica que usei: “Senhor Prefeito, como vai? Não o
esperava assim tão cedo.” Funcionou em parte. Deu a ele a
impressão de que eu era mais experto do que ele realmente
achava. Porém, a experiência estava do lado dele, e ele dominou
a situação novamente, cuspindo autoridade sobre mim. O que
fez foi ir direto a minha cadeira, sentando-se nela, fazendo
questão de passar a mão nos encostos de braço para mostrar
que quem mandava ali era ele, e ainda teve a audácia de me
provocar: “Um! Espero que você não se importe que eu sente
aqui. Sempre quis fazer isso.”
Segui o joguinho dele, pois não me restava outra alternativa,
além do que eu era bom com os joguinhos dos hipócritas. “Que
é isso, Senhor Prefeito, claro que você pode se sentar na minha
cadeira. Pra que tanta formalidade, afinal somos colegas. Soube
que você é formado em direito também.” “Sim, sim, eu prestei
vestibular e passei na primeira tentativa. Foi um orgulho para o
meu pai. Um tempo ótimo o da faculdade... eu tenho muita
saudade daquele tempo...” E assim ele continuou, enchendo o
seu ego com autoelogios e minha paciência com toda aquela
baboseira, enquanto eu me mostrava o melhor e o mais atento
dos ouvintes.
Nesse ponto é bom explicar uma coisinha. Claro que eu estava
morrendo de vontade de prendê-lo por abuso de autoridade (
não podia, mas tinha vontade), além de outras ideias que me
passavam pela cabeça enquanto o Perfeito falava: como a de
mandar matá-lo por se mostrar superior a mim (e como odiava
aquilo). Vontade de matar?! Claro. Eu tinha isso o tempo todo.
As vontades dos outros podem até ser menores que as minhas,
menos violentas, mas se sabe muito bem que elas existem. Vai
dizer que ninguém nunca teve vontade de dar uma grande
bronca naquele cara que furou a fila? Vai me dizer que ninguém
nunca teve vontade de esmurrar aquele cara que, nas festas,
sempre roubava as garotas de quem se gostava. Bem,
provavelmente por educação essas pessoas vão negar, pois
sentir essas vontades de praticar o mal não é “normal” (como a
sociedade insistir em fazê-los acreditar nisso). Mas sei que isso é
normal. É uma das características mais normais que existem em
nós, seres humanos, exatamente como é normal pensar em
pornografia quando aquela linda mulher de seios grandes passa
na rua. Está aí mais uma diferença entre mim e outros, eu não
nego minha natureza. E não nego agora que estava morrendo de
vontade de dar com o pé na bunda daquele Perfeito.
Só que eu não podia. Fato é que o antigo juiz, cujo posto eu
estava substituindo, fora assassinado em seu carro por uns
bandidos apenas há poucos meses daquela data. O laudo
policial era obscuro. As investigações eram, por algum motivo
que eu não dava a mínima para saber, amortizadas, só se sabia
que o Juiz tinha morrido com três tiros de revolver comum, um
na cabeça e dois nas costas: era como se autoridade nenhuma
quisesse revelar o que realmente tinha acontecido naquela
noite, como se houvesse uma vergonha grande ou um crime
bárbaro por trás do acontecido. Os bandidos que foram pegos,
notavelmente, confessarão por força da influência do advogado.
Não acreditando na vergonha, optei pela segunda opção, pois
tinha boa certeza de que não tinham assassinado aquele Juiz.
Conclusão minha: tinha sido assassinado, o que queria dizer que
ele tinha sido contra algum poderoso da cidade, o que queria
dizer que eu devia manter silêncio calado e ser bonzinho ou
então o mesmo aconteceria comigo. Nunca consegui saber a
real história daquele Juiz assassinado, mas também não
pretendi arriscar. E foi o que fiz; sou sonhador mais não burro.
Depois de algum tempo falando, ele se calou. Acho que se
sentiu um pouco ridículo e talvez tenha pensado “por que estou
falando disso para esse cara”. Foi então que ele viu os papeis em
que eu estava trabalhando e viu uma oportunidade de testar
minha confiança. “Ah. Você está trabalhando no meu caso. Esse
pé-de-roça está tentando ficar com as terras que eu já comprei.
Eu não aguento essas brigas judiciárias, mas tive que fazer algo.
Odeio injustiça, principalmente quando é comigo. Mas agora
que você está no caso vou me preocupar menos. Estou certo de
que você fará a Justiça.”
Dito isso, não esperou que eu desse qualquer resposta.
Despediu-se, disse que era muito ocupado e que o Povo
precisava dele e saiu, repetindo novamente que tinha confiança
que eu “iria fazer a Justiça”.
Naquele exato momento eu quase não consegui me controlar, e
acho que o único sentimento que me parou foi o medo. Olhei,
cheio de ódio, para o papel que estava na sobre a mesa, sabendo
que eu ia ter de dar parecer favorável ao Prefeito (que com toda
certeza estava roubando a terra do outro, que era pobre). E foi
com o coração cheio de ódio (e eu sabia que aquele primeiro dia
de trabalho ia mudar minha vida para sempre) que eu recebi o
delegado.
O Delegado veio e se sentou na cadeira de espera. Olhou-me no
fundo dos olhos e acho que notou lá dentro o ódio que eu
sentia, pois me perguntou se eu estava me sentindo bem.
“Nunca me senti melhor na vida.” Então ele sorriu o sorriso
bobo dos que fingem que acreditam, e eu respondi com o
sorriso hipócrita dos que não dão a mínima. Entendíamo-nos
muito bem. Então ele começou a falar besteiras (como ia o
tempo, como ia o primeiro dia de trabalho, como ia a vida),
exatamente como tinha feito o prefeito, fingindo ser educado, e
eu fiquei ouvindo, fingindo que era importante tudo o que o
Delegado falara, cumprindo a minha função.
A conversa chegou até um ponto onde o Delegado se soltou um
pouco. Não era jovem no cargo, mas a experiência ainda não
tinha se acumulado nele. Acontece às vezes, alguns,
embriagados pelo poder, se esquecem de aprender a mantê-lo.
O Delegado era um exemplo disso. Acabou me revelando que o
Prefeito tinha uma amante, quando o perguntei indiretamente
sobre as ocupações do Prefeito. O Prefeito cometia assedio
sexual com uma funcionária da Prefeitura, esquema antigo: “Ou
faz sexo comigo ou perde o emprego”. Era comum em várias
partes desse país e o Delegado até confessou que se tivesse uma
funcionária bonita que pudesse demitir, também o faria.
Então, tendo falado as besteiras preliminares, o Delegado testou
minha confiança. Era o que todos eles faziam. A educação, o ego
ou talvez a consciência os impedia de irem direto ao ponto,
então usavam as conversas bestas para preparar o terreno, ou
seja, para preparar a mim. O irritante era que eu era obrigado a
ouvir. O que o Delegado me pediu foi uma ordem de busca e
apreensão para um homem, sob a suspeita de está portanto uma
arma ilegal. O Delegado acabou soltado que era possivelmente
uma ponto-40. O que me permitia perfeitamente concluir toda
a história: como aquela era uma pistola especial da polícia, era
evidente que a própria polícia tinha vendido a arma para essa
pessoa (para que ela praticasse assaltos para a polícia), então tal
pessoa não pagou o que devia e a arma ia ser tomada, para ser
dado a outro. Era um fato tão comum que eu nem mais me
aborrecia com isso. Se alguém ainda não sabe disso, basta que
preste mais atenção nos noticiários locais e notará que a polícia
sempre está fazendo isso, basta que preste um pouco mais de
atenção e ler as entrelinhas. Também não era caso para
mandatos, a polícia preferia fazer isso por baixo do pano, mas o
Delegado queria saber se eu estava do lado da Lei e da Ordem, e
viu no pedido uma ótima oportunidade.
Mandei a Funcionária redigir a ordem e assinei-a na frente do
Delegado, que apenas sorria o sorriso dos que acreditam
estarem por cima. Então ele foi embora.
Então foi então que o meu ódio, meu antigo ódio há tanto
tempo alimentado, foi esfriando, e sendo substituído por um
sentimento estanho que eu não conhecia. Um sentimento novo,
uma Luz Nova, frio como uma geada, e duro como o próprio
mal que ia crescendo em mim. Mas isso era o que eu queria
acreditar, pois aquilo já há muito crescia em mim, e eu sabia
disso. Aquilo me perturbou por vários instantes, iluminando-me
e confundindo-me.
Foi nesse clima de perturbação que o Empresário, um dos mais
ricos da região, que tinha residência na Vila de Deus, me
encontrou ao entrar da minha sala. Foi a única vez em que não
conseguir esconder meu descontrole. Perturbado, eu olhava
para imagens que se formavam no ar em frente de mim,
tentando rapidamente focar alguma força para esconder o que
eu estava sentido. Quando consegui, me deparei com a cara do
Empresário na minha frente, do outro lado da mesa, a me dar
aquele olhar do que fingem está preocupado. “Você está se
sentindo bem?” Ele perguntou, esperanto realmente que eu
estivesse, pois tinha assuntos do seu interesse a tratar comigo.
“Estou. Acabei de receber a noticia de que um parente muito
próximo meu faleceu. Mas esses choques nunca atrapalharam
meu trabalho.” Menti rudemente, e tenho quase certeza de que
ele não acreditou naquelas palavras, mas era a única mentira
que me tinha vindo à cabeça. Eu não tinha parentes, meus país
tinham morrido muito cedo, e o meu tio, que se viu obrigado a
criar o filho do irmão, morreu quando eu cursava o 3a ano da
faculdade.
De todos os três Grandes da Vila de Deus, o Empresário era o
mais jovem e o mais amador. Inevitável, era um filhinho de
papai que tinha herdado todos os negócios da família, que
praticamente se desenvolviam sozinhos. Em sua conversa
introdutória tentou disfarçar com educação, uma educação bem
amadora, que não estava interessado em mandar em mim, para
me tirar privilégios, mas foi bastante infeliz em sua tentativa. E
de sua inexperiência que me veio a oportunidade de conseguir
uma vantagem sobre os Grandes. Tive ali a oportunidade de me
fingir de bobo, fazendo parecer que eu estava disposto a
trabalhar para eles e que estava louco para entrar no esquema (e
não acabar com ele ou roubá-lo). De fato teria sido muito difícil
convencer o prefeito ou o delegado disso, mas com o
Empresário era possível. Outra sorte ainda tinha me dado o
destino, pois eu notei facilmente que o Empresário era tagarela,
e como eu tinha falado pouco com os outros dois, ele
convenceria os outros de toda a minha jogada. Concedi-lhe tudo
que ele queria, com o sorriso dos que fingem “puxar o saco”, e
ele me creditou confiança, com o brilho nos olhos dos que
seriam trapaceados, e foi embora.
Então eu segui meu primeiro dia, começando a ser iluminado
por aquela luz nova, a terminar todas as obrigações daquele
expediente. Minha garganta estava seca, e eu tinha sensações de
vergonha (apenas porque naquela época não sabia como me
livrar dessas besteiras humanas), e a consciência me pesava
(apenas porque, naquele exato momento, ainda não tinha
conseguido matá-la), pois eu sabia exatamente o que ia fazer.
Ao fim do dia, procurei convidar a Funcionária para tomar um
drinque e comer algo (e eu estava com o coração realmente
cheio de amorosas e esperançosas boas intenções), mas ela se
recusou, meio educada. Foi então, sozinho, para o melhor local
de festa da cidade, onde estava já sentados numa mesa o
Prefeito, o Delegado e o Empresário. Eles não notaram, de
inicio, que eu os observava, mas eu notei que eles falavam de
mim, principalmente porque o Empresário tinha a mania de
falar algumas palavras em voz alta e de gesticular muito, e eram
os meus gestos que ele imitava. Pedi ao garçom uns itens do
menu e ele, curioso, depois de anotar tudo, perguntou de onde
eu era, pois “nunca tinha me visto lá antes”. Informei apenas
que eu estava só passando, com uma última esperança mínima
no peito. Que nada! Até um médico que chegou depois de mim,
numa pick-up, foi atendido antes de mim.
Terminei rápido e irritado, e sai. Dei a sorte de, por acaso, olhar
para trás mais adiante na rua e ver que a Funcionária, que tinha
entrado em roupas bem ousadas, dava uma bola descarada para
o médico da pick-up.
Aquela noite demorou para passar. Principalmente porque o
meu passatempo foi ficar em frente ao espelho do banheiro
bebendo uísque. Aquilo tinha sido um símbolo, um ritual que
marcou minha vida profundamente. Daquele dia em diante,
passei a dividir minha vida em antes e depois da noite do uísque
e do espelho. Eu bebia para matar aquele cara ridículo que
estava na minha frente, me olhando com uma esperança
infantil. Naquela noite eu não tive nem uma piedade dele (do
mesmo modo que todos não tinham tido piedade de mim) e
bebi, copo após copo, até que aquela criancinha caiu.
VIII Uma nova luz
Porque fazes resplandecer a minha lâmpada; o Senhor, meu
Deus, derrama luz nas minhas trevas. Salmos 18:28
E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. João 8:32
Neste ponto, deve parecer que eu sou um daquelas pessoas
sempre revoltada. Que sem nenhum motivo sai odiando Deus e
o mundo. E com toda a certeza, tendo tido essa primeira ideia
de mim, que é “óbvia”, alguém já me julgaria culpado por tudo e
já me condenaria, dando-me a sentença que a sua consciência
manda dar. Não o culpo pelo seu adiantamento, geralmente as
pessoas se apressam demais nos seus julgamentos. Mas deixe
que eu continue.
Como estava dizendo, aquele dia trousse a tona uma luz nova,
que passou a me iluminar (por várias vezes ponderei se era
correto usar a palavra “luz”, mas hoje tenho certeza). Como
disse, na época eu queria acreditar que aquela luz era algo novo
(exatamente como tantos outros que sabemos que não são
verdades, mas insistimos em acreditar, pra nos sentirmos bem),
mas mesmo naquela época eu sabia que aquilo era algo antigo.
Uma Nova Luz. Algo que passou a iluminar o meu dia, a
iluminar tudo que estava pelo caminho, para que eu percebesse
ver como elas realmente era sem fantasias, sem bloqueios de
consciência (esse monstro retardador), sem sentimentos
poéticos (que nos fazem ver uma simples flor e nos sentirmos
como se estivássemos olhando a esperança do mundo). Apenas
iluminar tudo, sem dar-lhes cores ou novos significados, sem
disfarces ou amenizantes, sem nada que possa dar ou tirar, por
qualquer motivo que fosse, qualquer detalhe que fosse. Apenas
iluminar... apaticamente.
E essa luz não era nova (a palavra nova era só força de
argumentação), mas era tão antiga quanto à ideia de Deus.
Estava nos poetas, nos filósofos, nos cientistas (que as usam
mais e melhor, embora não perfeitamente), nos assassinos, nas
vítimas, nas pedras, nas flores, nas árvores, e pensando assim,
era a parte da própria natureza. Estava em mim desde o meu
nascimento, adormecida e esperando ser usada, exatamente
como está em todos agora (embora suas consciências tenham
todo o direito de lhes forçar a negar).
E só naquele momento eu a tinha aceitado. Ela me chamava
sempre. Ela estava sempre lá. Na escola quando os alunos
maiores me ridicularizavam na frente de todo mundo, e as
menininhas comportadinhas, achando aquilo engraçado, riam
de tudo, ela me chamava. Quando eu me sentia ridículo quando
ficava nervoso e tremia (eu sempre tremia quando ficava
nervoso) e eles riam sem me deixar explicar, passando a me
rejeitar por causa que eu era “esquisito”, ela estava lá. Quando
todas as meninas, que eu já amei, se sentiam mais atraídas pelo
cara de boa pinta com um carro, na faculdade, ela estava lá.
Quando as mulheres da faculdade, em seus trabalhos
bonitinhos, descreviam, sentidas, a miséria, e depois saiam com
seus namorados (os mais populares da turma) para motéis
caríssimos, ela estava lá. Ela sempre esteve lá... eu só não queria
ver...
IX Dia de Caridade
(...) Por que prospera o caminho dos perversos, e vivem em
paz todos os que procedem perfidamente? Jeremias 12:1
Foi tirado do meu transe pelas carícias especiais de Minha
Esposa. Eu já tinha adentrado muito na madrugada. As
lembranças antigas, somadas a situação em que eu estava
(sabendo que muito tempo não me restava), acabaram por me
tirar completamente o sono. Minha Mulher notou isso. Ela
sempre notava, pois minhas noites de insônia não eram raras, e
isso a preocupava. Com o tempo ela tinha aprendido a me fazer
caricias especiais, caricias especiais que ela só me fazia quando
eu pedia ou quando via que eu estava sem sonho. Ela começava
com caricias, e só terminava quando eu estivesse tão cansado
que iria desmaiar (se bem que os anos tiraram bastante do
nosso vigor). Esse era só mais um motivo pelo qual eu a amava.
E como eu a amava. Tantos anos de casamento, tantas brigas,
tantas crises, e mesmo assim ela continuava ali, segurando firme
o nosso amor, me dando tantas alegrias e tantas provas de
amor.
Rompia a manhã quando terminamos, e mesmo cansado, meu
sono não vinha. Acho que isso acabou desapontando um pouco
Minha Mulher, mas por causa da felicidade no ar ela não
pensou muito nisso. Levantou-se apenas e foi tomar um banho.
Estava feliz, aquele era um dia especial. Dia de Caridade. E
estava orgulhosa porque eu ia participar da alegria dela.
Acontecia que, a alguns meses daquela data, minha mulher
tinha começado a frequentar uma dessas ONG’s que oferecem
ajuda para pessoas que não tem como ajudar a si próprias.
Era moda daquela época, tinha muito pouco a ver com o
sentimento de caridade. Nos escritórios, todos os meus colegas
queixavam-se daquela nova moda. As mulheres das classes mais
altas se reuniam e iam fazer trabalhos sociais as custas do
dinheiro dos maridos. Mas até que era divertido. Meu colega de
trabalho disse uma vez, em forma de piada, que sua mulher
estava querendo pagar uma viagem de férias para uma família
pobre; outro, continuando com a conversa em piadas, disse que
a mulher comprou não-sei-quantas barras de chocolate para
oferecer na creche em que ela estava trabalhando e “quase
entupiu os meninos de chocolate de 3 reais a barra”. E assim as
“brincadeiras” de nossas mulheres nos fizeram dar boas risadas,
até que eu disse que minha mulher tinha me obrigado
(praticamente, pois ela estava em cima de mim, e quando as
mulheres estão em cima de nós elas mandam) a convencer
alguma empresa a financiar um projeto ao qual ela chamou de
“InforOpportunity”.
Tive que concordar (eu explicava pra elas, exatamente como
estou explicando aqui) mesmo sendo meio despropositado
oferecer informática a alunos da favela que mal tinham
condições para estudar, e até brinquei com o nome do projeto,
dizendo iria ser difícil para alunos que mal sabem ler em
português (sem ofensa aos alunos, pois os respeito muito, estou
antes cuspindo ofensas ao sistema que gera todas essas
disparidades). A minha brincadeira quase causou uma briga. É
que mesmo sabendo que era verdade a consciência de Minha
Mulher a impedia de rir também. “É desumano ter esses tipos
de pensamento” era o que a vida tinha lhe ensinado, e ela
acreditava realmente naquilo. Mas como disse, fui obrigado a
aceitar. Eu adorava quando Minha Mulher me obrigava a aceitar
alguns caprichos, além do que, a alegria dela era contagiante.
De fato não foi difícil satisfazer aquele capricho de Minha
Mulher. Não porque esse país estava cheio de “almas caridosas”
sedentas por ajudar a quem quer que seja. E se alguém acredita
nisso, está precisando amadurecer um pouco mais para a
realidade. O que era fácil era que havia muitas “almas
arrependidas” querendo fazer qualquer coisa pra se livra “dos
pecados das leis”, e como eu era um “padre das leis” bastava
escolher o pecador e lhe dar a absolvição. Havia ainda muitas
outras vantagens que eu poderia conseguir por meio da
brincadeira de Minha Mulher. Acontecia que estava na moda
essa de caridade, era uma propaganda muito mais eficiente do
que por um anuncio na teve local, e além disso livrava
temporariamente a empresa de suspeitas. Portanto, arrumando
alguma empresa para realizar o projeto, eu podia contornar a
situação a meu favor dizendo que a estava beneficiando, pois
“era uma ótima oportunidade de propaganda”, e todos ficariam
felizes.
Não foi difícil conseguir a alma solidária, nem tão pouco os
computadores. De início eles queriam doar os computadores
mais antigos do estoque, mas eu os advertir que tal ato poderia
ser usado contra a propaganda da impressa por algum professor
irritadinho e revoltado que gosta de aparecer. Pensaram então
em dar computadores novos, mas os advertir novamente de que
era desperdício de dinheiro, dentro em pouco os computadores
teriam sido quebrados por uma turma de alunos que não sabem
usá-los.
Tudo pronto e arranjado, arranjei para que fossem dadas a
Minha mulher algumas tarefas simples, para que ela se sentisse
útil, e pude admirar o sorriso fiel dela se sentindo um máximo
por ajudar uma “causa nobre”.
O destino (gosto de pensar assim) trabalhou para que a data do
evento fosse um dia depois do qual eu recebi a noticia de minha
futura morte, o que tirava totalmente meu animo. Mas Minha
Mulher se fez tão bonita que me deu vontade de brincar um
pouco, relembrar os velhos tempos.
Naquela manhã fomos de carro até a escola. Minha mulher
usava uma das roupas mais caras que a situação permitia. Como
eu falava bem, foi escolhido para fazer um discurso de abertura
da sala de Informática e de conclusão do projeto. Fui o mais
breve possível, e mesmo assim tenho certeza de que só minha
mulher e alguns amigos me ouviram, aduladores. Então
liberamos a sala para as crianças.
Estava feito. Minha Mulher estava tão realizada que não via o
que estava acontecendo a sua volta: não via que as crianças iam
tão ávidas aos computadores que eles não durariam muito; não
via que suas colegas, mulheres dos meus amigos, já tinham se
distraído e estavam pensando em para onde iriam naquelas
férias, a argumentar “se formos de novo para os Estados Unidos
meu marido vai ouvir umas boas”; não via que os meus colegas
falavam sobre o próximo jogo de futebol ou sobre o próximo
modelo de carro que iam comprar; tão realizada que ninguém
se importava com a causa, era só uma ajuda aos que
necessitavam, algo para livrar a consciência do peso de ser rico e
eles, os necessitados, não (se bem que esse peso não era
insuportável), nem mesmo ela fugia desse pensamento, estava lá
mais pela realização pessoal do que pela causa em si (era o
grande problema da humanidade, não era possível ajudar todo
mundo, e todo mundo sabe disso).
Eu era diferente daquelas pessoas. Mas eles dificilmente
admitiriam a verdade, suas consciências não os permitiam. “Era
desumano pensar assim” era o que eles diziam, mas sempre
pensavam assim de qualquer maneira, apenas preferiam não
ver. Eu não. Sabia o que eu fazia. Sabia por que deveria mentir,
e mentia consciente. Eu era um ser humano consciente.
Enquanto a maioria dizia se importar muito com as causas
sociais, na verdade se importando só um pouco, eu me
importava só um pouco, e não me sentia mal com isso.
Enquanto a maioria dizia fazer o máximo pelo bem, fazendo na
verdade apenas um pouco, quase sempre quase nada, eu fazia
quase nada e não me sentia culpado. Enquanto os homens e
mulheres estavam nas suas igrejas (ou centros espíritas, ou
outros lugares do tipo) pedindo perdão por serem gananciosos e
vaidosos sabendo que no outro dia continuariam sendo, eu os
era sem vergonha, sem mentira.
X Tempo de Preparação
Cada mulher pedirá à sua vizinha e à sua hóspeda joias de
prata, e joias de ouro e vestimentas; as quais poreis sobre
vossos filhos e sobre vossas filhas; e despojareis os egípcios.
Êxodo 3:22
Mas deixemos, caro leitor, Minha Mulher e os fatos do presente
de lado. Estou gostando de relembrar (e contar para alguém) as
histórias do passado. À medida que vou contando, vou
relembrando os fatos que foram me levando a minha vida de
pecados (não estou pondo a culpa em tais fatos, se pequei foi
por culpa minha). A narração me agrada, e sempre fui uma
pessoa saudosa, dessas que ficam horas revendo fotos antigas.
Vamos rever então mais algumas “fotos” daquele tempo.
Queria continuar a narração de onde parei, e seguir uma linha
reta contando os fatos que ocorreram depois da visita dos Três
Grandes da Vila de Deus. E até poderia, seria fácil, mas aquele
ano foi um ano apenas de trabalho, e muitos dos detalhes
minuciosos acabariam aborrecendo o leitor. Então vou resumir
as principais acontecimentos e situações.
Como disse foi um ano de trabalho, em que eu tive que fazer
mudanças na minha vida para está a altura de enfrentar os Três
Grandes. Depois daquela visita que me fizeram no primeiro dia
de trabalho, e de muitos outros fatores de minha infância, não
vi outra solução, senão aquela. Alguém, talvez por um pequeno
passageiro instante, pode pensar que mudar coisas na vida é
perigoso, mas nem tanto. As crianças mudam para adolescentes,
os adolescentes para adultos, e os adultos para velhos. O
problema era que o que eu queria fazer era me renovar
completamente, me tornar uma espécie de “monstro”, como me
chamou uma vez a Menina dos 200 paus, um “barra
pesadíssima” como me chamou o Ladrão de Cargas.
E já que eu falei no Ladrão de Cargas, posso começar por ele.
Conheci esse homem na capital, atolado em dividas e presidido
por alguns juízes agiotas, que por acaso tinham estudado
comigo na faculdade. Ia ser executado se não fosse eu para lhe
salvar a divida, e por isso ficou extremamente grato.
A gratidão dele não me foi dada por acaso. Planejei tudo muito
bem para que lhe conseguisse a fidelidade, sentimento muito
difícil de se conseguir de ladrões. No dia em que ia ser
executado, insistir para que o Credor, amigo meu, o levasse para
sua sala, onde eu não tão curiosamente estava. Impedi que os
matassem pronunciando um discurso muito antes preparado
sobre segunda chance e piedade... algo como esses que a gente
encontra nas novelas de quinta categoria.
O homem ficou grato. Disse que eu lhe tinha salvado a vida e
que eu não ia me arrepender pela oportunidade dada. E estava
certo. O homem era ideal para meus planos. Era corajoso, não
tinha família nem muitos amigos, não era viciado em drogas
(embora tomasse umas de vez em quando) e era capaz de fazer
qualquer tipo de trabalho: sequestros, roubos, assassinatos, o
que me desse vontade. O principal e o melhor era que não era
muito experto, ou era esperto o suficiente apenas para ser
mandado. Entrava em problemas sempre porque não sabia
como ser ruim: roubava e praticava crueldades desnecessárias;
torrava o dinheiro dos trabalhos rapidamente com futilidades, e
por isso logo era pego; entre outros erros que os amadores
fazem. E aí eu entrava, diferente deles, eu tinha muitas
condições de aprender a ser bandido. Meu tio uma vez, quando
me viu matar um cachorro de rua, quando viu o olhar frio que
eu tinha, e me deu uma bronca enorme, pois eu tinha muito
mal e raiva na alma.
Logo o Ladrão de Cargas arrumou mais três caras para trabalhar
comigo, sempre fiel as minhas ordens. Fidelidade é a melhor
característica, na minha opinião, nas pessoas que a gente
pretende usar, e por isso eu a alimentava bem. Os negócios
prosperaram rápido. Primeiro roubávamos cargas, sempre
investindo os ganhos em negócios legais, as velhas fachadas, e
em novos equipamentos: armas, carros, sistemas de
comunicação. Algo complicado foi convencê-los a fazer os
treinamentos. Expliquei a eles que bandido é melhor do que a
policia porque tem liberdade, mas por sua vez a policia é melhor
que bandido por causa do treinamento e da organização.
Foi difícil, mas logo minha “gang” estava bastante especializada
e profissional. Não assaltávamos mais qualquer carga, só as de
alto valor. Pagávamos as taxas dos policiais corruptos para que
eles fizessem de conta que não viam nada, e matávamos os
policiais honestos a mando dos próprios policiais. Alias, depois
de um tempo a maioria dos nossos serviços era procurada pela
policia.
Eu sempre ficava de fora, claro, meu envolvimento com eles era
bastante secreto e somente o Ladrão de Cargas sabia. Ele era
que tinha se tornado meu braço direito, e organizava tudo ao
máximo para que eu não me envolvesse com nada. E assim,
rapidamente, eu me tornei o 4 Grande da Vila de Deus.
Minha vida social não se alterou tanto assim. É importante
lembrar que eu não sair por aí esbanjando o dinheiro ganho,
isso podia levantar suspeitas de pessoas mais poderosas. Ao
invés disso eu ia elevando o padrão de vida gradualmente
(mesmo com a vontade contra mim), por falar nisso, essa era
uma política que eu fazia regra para a minha gang. Eles tinham
ordens para não roubar demais, e para sempre, de quando em
quando, fazer pausas... isso os mantinha sobre controle e estava
de acordo com minha política de não ter mais do que pode
cuidar (às vezes é melhor ter menos e saber aproveitar, do que
ter muito e perder por não usar).
Tudo ia ocorrendo adequadamente, sem interferências, e
convergindo para o provável sucesso de um plano que eu tinha
feito. Eu pretendia tomar definitivamente as rédeas da minha
vida, na virada de ano, na qual na Vila de Deus acontecia uma
festa, no clube mais famoso da cidade, que era marcada por a
aparição de todas as pessoas importante da cidade.
Lembro-me, como se hoje fosse, daquele dia. Eu tinha
comprado tudo novo. Os móveis da minha casa e até a própria
casa eram novos. As roupas, os sapatos, os gestos, as vontades e
os ódios, era tudo novo. Até mesmo tinha mandado comprar
uma pick-up, que era a mais nova da cidade, mais nova até que
a do prefeito. Só me restavam alguns itens que não eram novos.
Minha namorada por exemplo. Dois meses antes daquela data
eu tinha me envolvido com a Filha da Velha Gorda. Uma garota
de 17 anos, perfeita de corpo, que não era nada inocente. Era um
namoro só por brincadeira, apenas para fazer meu tempo
passar, mas que tinha se tornado um desafio. Dois meses de
namoro e nada de sexo, e eu sabia que ela não era virgem.
Tenho muitas hipóteses para explicar esse fato (que já estava me
incomodando), muitas das quais prefiro não explicar, mas o que
eu mais considerava é que, como eu era um bom partido, ela
estava querendo se valorizar. Seja lá qual for (pode muito bem
ter sido outro coisa, com certeza ou todas juntas), aquilo ia
chegar a um fim naquela noite.
Quando a noite chegou todos os Grandes estavam lá para se
exibir. O Prefeito, o Delegado e o Empresário tinham trazido
suas belas esposas, em belos vestidos decotados, para com elas
desfilarem (muitas mulheres de ricaços ainda são usadas para
isso), mas não chamaram tanta atenção quanto a que eu chamei
com a minha entrada com aquele carro. A maioria dos cidadãos
da Vila de Deus nem sabia qual era a marca dele. Sentei na
cadeira com a Filha da Velha Gorda ao meu lado, numa roupa
sensual que eu mesmo tinha comprado, até mandei ela colocar
um colar apertado, bem parecido com uma coleira, como
muitos homens fazem com suas “cachorras”, exibindo-a para
todos do mesmo modo que eu tinha exibido meu carro, minhas
roupas e outros objetos quaisquer. Advinha? Fui o primeiro a
ser atendido, bem antes que os outros Grandes, e aquilo me
alegrava (me assustando também).
A noite correu do jeito que eu esperava. Todos que passavam
me olhavam. Os homens queriam está no meu lugar, as
mulheres queriam está no lugar da Filha da Velha Gorda, e
todos os meus adversários se ruíam de inveja. Enquanto eles
tinham gastado anos para chegar à posição em que estavam, eu
tinha precisado apenas de um. Os Três Grandes, e suas
mulheres, vieram me cumprimentar, e me desejar toda
felicidade do mundo no ano que vinha, embora o Prefeito, o
Delegado e o Comerciante estivessem doidos para arrumar um
jeito de me pegar ou, melhor ainda, de ganhar dinheiro as
minhas custas.
Não pude também deixar de reparar na Filha do Prefeito, que
me deu uma boa encarada (ela tinha uns seios exuberantes e
uma cintura magnífica). Quem não pode também deixar de
reparar que eu tinha reparado foi a Filha da Velha Gorda, que
ficou com bastante ciúmes. Será que foi por isso que
terminamos a noite na cama? Sinceramente, os fatos me levam
a crer que não era só por vontade de dormir comigo, mas
também e principalmente para não perder o ótimo namorado.
A primeira noite de um casal, para muitos, é considerada como
uma prova de amor, mas para mim a nossa primeira noite soou
como uma traição. Não porque ela tinha demorado a se decidir,
mas porque eu sentir que ela era bem safada, o que queria dizer
que já tinha feito aquilo várias vezes, muitas vezes, o que queria
dizer que não tinha feito aquilo comigo por algum motivo
especial. E eu sabia esse motivo, e essa coisa acabava comigo.
XI A Filha do Prefeito
Se alguém seduzir qualquer virgem, que não estava
desposada, e se deitar com ela, pagará seu dote e a tomará
por mulher. Se o pai dela definitivamente recusar dar-lha,
pagará ele em dinheiro conforme o dote das virgens. Êxodo
22:16.17
Uma semana depois, ao primeiro motivo que deveria ter levado
a uma briga bem simples, brigamos feio, e terminamos. Ela
chorou muito aquela noite, sem entender o que estava
acontecendo. Eu quase chorei também, mas preferi gastar meu
tempo pensando em como faria pra me safar da situação. É que
eu não queria que ficasse parecendo que eu tinha dado um fora
na menina sem nenhuma razão, isso podia atrapalhar meus
futuros relacionamentos, além do que não era conveniente
começar a criar inimizades com a família da garota (uma de
minhas políticas era sempre evitar conseguir um novo inimigo).
A solução que encontrei foi armar uma farsa. Na noite anterior
ao dia em que eu iria para a casa dela fazer as pazes, mandei que
um dos conhecidos do Ladrão de Cargas lhe dopasse, levasse-a
ao quarto dela e fingisse que os dois tinham dormido juntos. O
plano não poderia ter dado mais certo. Quando cheguei lá,
cheguei junto com a mãe dela, que ficou muito feliz que eu
queria voltar com sua menina e entramos juntos (ela tinha a
chave). O que vimos ao entrar foi a filha dela nua com um outro
homem, parecendo estarem os dois bêbados. A Velha Gorda
entendeu o meu lado, embora quisesse que eu perdoasse sua
filha, mas no fim aceitou o fato de que a culpa tinha sido toda
da filha. Como a menina estava dizendo a verdade, e ninguém
acreditou nela, ela foi morar com uma tia (já tinha tido uns
problemas com bebidas, rebeldia e mentiras). A última vez que
eu soube notícias dela, ela estava casada e tinha uma filha, e já
se reconciliado com a família (embora as coisas nunca tivessem
voltado a serem as mesmas). Tal fato poderia até a vir ser usado
por mim para curar algum arrependimento que eu tivesse... mas
só se eu tivesse algum ou se precisasse de tais truques.
Foi uma semana depois de quando eu tinha terminado com a
Filha da Velha Gorda que eu me aproximei da Filha do Prefeito.
A primeira vez que nos falamos eu fui logo me oferecendo para
fazer companhia e lhe pagar bebidas (a gente sempre pode fazer
isso com certas mulheres, se formos “bem dotados”, claro). Logo
de inicio deu para saber muita coisa dela. É que eu tinha esse
talento de olhar para as pessoas, de escultá-las apenas por
alguns segundos, e arrancar-lhes características de
personalidade ou de vida. A garota era uma “filhinha de papai”
mimada, que tinha sido sufocada pelos pais superprotetores. Eu
adoro quando os pais fazem isso com suas filhas, deixa o
trabalho de sedução para nós homens muito mais fácil. Não foi
difícil notar que ela era bem impulsiva, revoltada e sedenta por
vida, e até conseguir o que eu queria era só usar as palavras
certas...
- Então, me diz. O que aconteceu com aquela garota com quem
você estava na noite de ano? Ela perguntava puxando conversa,
enquanto tomava um uísque (que eu tinha oferecido).
- Não gosto muito de falar dessa história... Eu respondi, sabendo
perfeitamente que ela ia perguntar porque. Esperei ela
perguntar e continuei... Ela me magoou muito.
- Mas o que ela te fez... vai, me conta? Ela continuava, agora
com um pouco de pena e bastante curiosidade.
- Tínhamos brigados. Então eu fui a casa dela pra que
pudéssemos fazer as pazes... então eu a encontrei na cama com
outro.
Eu sabia que aquela história ainda podia me ser útil, e foi.
Coincidentemente, embora eu prefira acreditar no destino (é
mais poético e divertido), o último namorado da Filha do
Prefeito tinha feito a mesma coisa que minha ex-namorada, ou
melhor, ele tinha feito de verdade. Isso nos aproximou muito, e
daquele momento em diante, passando por três doses de
uísque, estávamos já os melhores amigos. Notei rápido que ela
tinha um fraco para bebida, e como naturalmente ela não curtia
a Vila de Deus (poucas pessoas que vivera a vida toda numa
cidade curte sua própria cidade) a convidei para irmos assistir a
um racha que aconteceria na outra cidade. Ela adorou. Adorava
participar de atos ilegais. Como a noite e as bebidas
colaboravam para o nosso romance, terminamos a noite num
motel, curtindo a vida.
Nos dias seguintes tentei convidá-la novamente para sairmos,
mas ela se mostrava não estar muito interessada, e isso me
preocupou. Eu tinha gostado da menina e não queria perdê-la,
era boa nas conversas, era boa na personalidade, sem falar que
era muito boa na cama, e era boa socialmente (nada melhor do
que namorar a filha do prefeito para levantar o social de
alguém).
Parti então para avaliar a situação. Até onde eu me lembrava eu
reunia todas as qualidades materiais e psicológicas para agradar
qualquer mulher... mas estava claro que a Filha do Prefeito não
era qualquer mulher... ela tinha algo especial. E eu precisava de
algo especial que fizesse ela gostar de mim. E eu tinha uma vaga
ideia do que era.
Naquele mesmo fim de tarde, fui a prefeitura para pegar o
prefeito antes do horário de saída. Usei uma conversa besta de
que era uma visita social. “Afinal, somos duas pessoas influentes
e com interesses afins, e precisávamos manter a amizade”, foi o
que lhe empurrei, e continuei lhe empurrando aquela conversa
de influencias e interesses afins até que a conversa chegou ao
item que eu desejava.
- Você tem uma família muito linda. Tem muita sorte por isso.
- É sim. Tenho muito orgulho da minha família, e a amo muito.
Faço qualquer coisa por ela, para protegê-la. Minha mulher e
meus filhos são os tesouros da minha vida.
- Claro..estes tipos de tesouros, quando aparecem na nossa vida,
temos que se agarrá-los com amor, e fazer de tudo para não os
perder... até enfrentar o diabo se for preciso. Principalmente
com uma filha tão linda como a sua.
- É! Minha filha é uma menina muito boa. Tenho muito orgulho
dela...
- É! Eu sei bem disso, ela é muito BOA mesmo, nessa última
noite tive certeza.
Foi o bastante para a nossa conversa. Sinceramente, pensando
agora, acho que não foi necessário pronunciar aquele “boa” com
tamanha malicia, como o fiz, mas naquela data me parecia
importante insinuar. O que eu vi depois quase me assustou, e se
eu não tivesse tanta confiança na hipocrisia do Prefeito, teria
realmente achado que ele ia pular em cima de mim e me
estrangular. Mas que ele teve muita vontade de fazer aquilo
teve. Não era bobo. Já tinha suspeitas de que eu tinha me
metido com o crime, o que fazia de mim um “barra pesada”, e
além do que, agredir um juiz acabaria com a carreira dele. Mas a
raiva que sentiu de mim, foi suficiente para que ele mal
conseguisse mentir educadamente me pedindo para sair “é que
estou com dor de cabeça”, foi a melhor mentira que conseguiu
inventar.
Não que eu fosse o pior partido do mundo, ou aquele homem
com tatuagem que os pais nunca querem ver com as filhas. De
fato tenho quase certeza que o prefeito já tinha pensado em me
chamar para uma conversa na casa dele, pra apresentar melhor
a filha e... não é necessário contar o resto, é uma velha história.
Mas, se não fica claro, a pronuncia das palavras é tudo. Uma
pessoa pode dizer o pior palavrão usando a palavra mais bonita
do mundo, basta saber usar e os efeitos são numerosos. Foi o
modo com que eu pronunciei a palavra “boa” que o irritou
tanto, pois eu a pronunciei como se estivesse falando de uma
prostituta que faz ponto num bar qualquer. Se tivesse
pronunciado diferente, teria obtido um resultado diferente, mas
era exatamente aquele que eu queria. Eu queria a raiva do pai da
mossa.
Naquela noite não precisei dar muito tempo ao tempo. Lá para
as 9 da noite o meu celular tocou...
Fomos, eu e a Filha do Prefeito, para o bar. Ela estava bastante
irritada e nervosa, e eu insisti que um pouco de uísque ia lhe
acalmar os nervos...
- Vai lá. Conta o que aconteceu.
- Não sei como, mas meu pai descobriu que a gente tinha saído
juntos, e me deu a maior bronca. Disse que não queria que eu
saísse, que eu era uma criança ainda..., eu odeio quando me
chamam de criança... e disse barbaridades de você... que eu
prefiro nem dizer.
- Que chato em... mas eu você sincero com você... eu já esperava
(eu dizia isso e me aproximava, tocando as costas dela, pra dar
mais intimidade, o segredo é acostumar a preza com o
caçador)... eu fui tratar de negócios hoje com ele, fui tão
educado e ele me tratou como se eu fosse lixo... eu não queria
falar mal de seu pai, mas acho que ele não pode tratar as
pessoas assim...
- Ele já está me deixando louca... ele fez isso também com meu
último namorado (ela deixou no ar a ideia de que eu era um
possível candidato a namoro, e isso me agradou bastante)...
proibiu a gente de se ver, cortou meu telefone... eu fiquei com
muita raiva.
Daquele momento em diante, eu não precisava ouvir mais nada.
O pai tinha tendências a ser mandão, a ser controlador, e a filha
tinha a tendência de odiar aquilo. Tudo estava a meu favor, só
era preciso saber jogar as cartas certas.
Aquela noite terminou como a nossa última. E como era a nossa
segunda noite de sexo, como ela não tinha bebido muito, como
eu tinha feito de tudo para agradá-la, ela criou um vínculo
comigo. Uma pontinha de gostar mais do que se gosta dos
amigos. Esse vínculo abriu uma “porta” para que eu a pedisse
em namoro, e com um pouco de palavras bonitas e melosas ela
aceitou. Por isso aquela noite terminou perfeita.
XII Noite de Festa
O Senhor é Deus, e nos concede a luz; atai a vítima da festa
com cordas às pontas do altar. Salmos 118:27.
Vinde, comei do meu pão, e bebei do vinho que tenho
misturado. Provérbios 9:5
Lembro-me de uma noite dessas, a mais chatas que eu tive que
passar, isto é, na verdade teria sido uma das noites mais chatas,
se eu não soubesse de meios para torná-la interessante. O
problema da vida não é que ela seja chata, mas sim que não
conseguimos arrancar dela toda a diversão que precisamos em
um determinado momento. Isso mesmo, às vezes a vida é muito
lenta se a deixarmos seguir seu curso naturalmente, por isso
precisamos arrancar da vida, mesmo que a força, todo que
precisamos. Ora, poucas coisas nesse mundo vêm
gratuitamente, e quase nenhuma delas nos agrada. As coisas
que realmente importam (de fato não importariam tanto se não
déssemos a elas tanta importância) devem ser conquistadas;
muitos seguem as regras morais e humanas e conseguem com
alguma demora; eu, como sou impaciente, prefiro usar a força,
mesmo que isso vá me levar para o inferno (depois de um
tempo, quando se pensa melhor, não dá tanto medo assim).
Naquela noite eu podia ler alguma coisa do trabalho, mas eu já
estava cansado de ler processos que tratavam de problemas de
pessoas que eu estava pouco interessado em resolver. Eu nem os
conhecia, além do que eu queria era resolver meus problemas
primeiro. Podia assistir a algum programa de televisão, mas
depois de ter estudado tanta Filosofia na faculdade de Direito
eu tinha perdido o direito inalienável que todo o ser humano
tem de matar o cérebro assistindo a novelas simplórias e
repetitivas. Podia caminhar um pouco, mas a Vila de Deus com
suas casas pobres não me atraia o olhar naquele momento. Eu
ainda não tinha aprendido a usar as dificuldades dos outros
para endurecer meu coração.
Na tentativa de achar alguma coisa para fazer, acabei
lembrando que algumas antigas amigas (que eu mal conhecia)
tinham me convidado para participar de uma festa numa
chácara na cidade vizinha. Eu, pessoalmente, odiava aquele tipo
de festa: a falda de organização com que essas crianças realizam
essas festinhas já em si é o suficiente para tornar a festa um
provável fracasso e, além disso, ainda era uma festa de um
bando de adolescentes que sequer faziam uma faculdade.
Porém, como eu não tinha achado outra memória de possível
evento para participar, decidi por ir a tal festa.
Faltavam 2 horas para a meia noite quando eu me arrumei.
Arrumei-me meio sem vontade, como se estivesse pressentindo
algo, mas como eu não acreditava em pressentimentos, ignorei.
Cheguei de carro rapidamente ao local. A chácara era bonita,
embora por dentro estivesse toda desmobiliada, e tinha sido
alugada somente para a ocasião. Era uma coisa que acontecia
muito: os jovens alugavam casas isoladas para poderem fumar,
beber e transar sem que ninguém os incomodassem. Eu, porém,
já tinha saído a muito tempo dessa fase de rebeldia, mas é
sempre bom se aproveitar da vontade de perverter-se dos
jovens: ótimas urgias podem sair dessas ocasiões.
Ao entrar na chácara, o ambiente me deu vontade de voltar. Já
de cara duas meninas que eu não conhecia foram abrir a porta e
ao verem que o meu carro era o mais legal de toda a festa
vieram todas simpática pra cima de mim: eu sabia que aquilo
era uma vantagem para mim, mas já havia algum tempo que eu
estava cansado daquele jogo de falsidade. As duas me
conduziram por um corredor, onde eu vi passar um doido que
estava completamente bêbado, até a cozinha, onde estava um
freezer cheio de cerveja. Sobre o freezer estava a aniversariante
– a festa era para comemorar seus 18 anos – que estava mais
bêbada do que qualquer um na festa, aliais bêbados estavam
todos, uns mais e outros menos.
Em outras ocasiões eu agiria diferente, mas como aquela noite
não tinha nada de especial, juntei-me ao grupo. Bebi rápido
duas garrafas de cerveja e me embriaguei logo. Daí puxei uma
das meninas que estava me adulava depois que tinha visto o
carro – a mais bonita naturalmente – e fui dançar. A música era
horrível, apenas vinda de um som de um carro que tinha sido
colocado improvisadamente sobre uma mesa.
A menina que puxei tinha um nome esquisito, mas não me
lembro qual era, desses detalhes bestas o homem nunca se
lembra. Provavelmente era a que estava mais sóbria do local,
excetuando a mim. Ela dançava mal, mas eu não me importava,
eu não queria exatamente dançar. A principal coisa que eu me
lembro dela, sim, pois as duas garrafas subiram rápido na minha
mente e embaralharam as ideias, era que ela tinha apenas
dezesseis anos. De inicio não acreditei naquilo: ela tinha seios
bem fartos e uma cintura bem feita, mas depois me lembrei que
nossas mulheres, a cada ano que passa, ganham formas
femininas cada vez mais rápido. Era loira e tinha uma voz
irritante de patricinha, mas eu não ligava, pois eu não queria
ouvi-la de qualquer maneira. Usava, também, um vestido
curtíssimo sem alças nos ombros, que deixava qualquer um ver
mais de 70 por cento de suas pernas: quando percebi isso, puxei
com virilidade sua cintura para mostrar que ela estava
dançando com um homem e não com um menino, e a
impressão que tive foi que ela não estava de vestido. Ela aceitou
numa boa a ousadia – que de fato não era nenhuma ousadia,
pois nossas mulheres se acostumaram com essas grosserias – e
até puxou meu peito para junto do dela para mostrar que eu
estava dançando com uma mulher e não com uma menina.
Depois de duas danças e muito “esfrega isso esfrega aquilo
nisso”, larguei-a sem dizer nada além de que ia ali e voltava
depois. Provavelmente ela estava achando que eu estava
gostando muito dela e que tinha rolado uma ótima química
entre nós, e era exatamente aquele tipo de pensamento que eu
queria evitar: depois que as mulheres tem certeza disso passam
a ter pensamentos de que podem se impor, e isso quando você
tem um fraco por mulheres não pode acontecer. Muito
provavelmente ela se sentiu ofendida, mas eu tinha certeza que
essa ofensa da minha parte não era o suficiente para fazê-la não
mais falar comigo: eu era o melhor partido daquela festa.
Voltei ao freezer logo de cara vi quatro garrafas quebradas no
chão. As crianças, depois que tinham bebido muito, começavam
a quebrar as garrafas. Eu bem que podia ajudar, mas como eu
não era o responsável por aquela festa não me importei, a
organizadora que arcasse com o prejuízo. Acontecia, porém,
que a organizadora, irmã da aniversariante, estava tão bêbada
quanto, além do que era uma menina sem maturidade. Peguei
mais três garrafas de cerveja e fui falar com minha amiga. Ela
me convidou para ir tomar banho de piscina com ela, mas como
ela era muito metida e eu ia ter muito trabalho para conseguir
me aproveitar da situação, resolvi recusar, mas não sem antes
fazer uma proposta somente de segundas intenções ao ouvido
dela. Ela me olhou e deu aquele sorriso safado que todas as
mulheres sabem fazer. O interessante era que éramos amigos a
muito tempo, mas somente naquela ocasião, em que eu estava
bem de vida, ela tinha me dado aquele sorriso.
Voltei para o meu futuro programa da noite com as bebidas,
pronto para começar a segunda parte do plano de conquista. A
primeira já tinha sido bem sucedida: mostrar que eu era bem de
vida, mostrar que eu não era um besta tímido e mostrar que o
que eu queria não tinha nada a ver com namorico de
adolescente. Para a segunda parte do plano bastava provar que
eu era realmente bem de vida, se o carro fosse somente
emprestado eu perderia alguns pontos; deixar claro que eu a
queria naquela noite, mas que se ela bancasse muito a difícil eu
tinha outras cinco para ficar; e, o principal, desencorajá-la a me
dizer não.
Dei a ela uma das cervejas, e como ela não queria beber,
discursei logo que aquela atitude era uma caretice,
acrescentando vários outros argumentos que eu ia inventando
na hora. Eu era bom em inventar argumentos convincentes.
Como ela não queria ser careta, pegou uma das garrafas e bebeu
comigo. Desse modo eu cuidava do terceiro passo da segunda
parte do plano de conquista, pois ficava mais fácil de se
aproveitar de uma bêbada, mas claro que eu não iria deixá-la
beber muito – mulheres bêbadas são chatas demais –, somente
o suficiente para ela parar de pensar em nãos. Do primeiro
passo era fácil de realizar, bastava fazer perguntas como “você
estuda?” e “você trabalha?” para inserir, sem parecer
pretensiosa, na conversa onde eu estudava e em que trabalhava,
o que provava meu bom status social. E do segundo passo quem
cuidou foi minha boa amiga, que mesmo sendo muito metida,
que veio me chamar para dançar. Minha amiga ainda estava
com a roupa um pouco molhada, e o efeito da bebida ainda a
deixava mansa o suficiente para me deixar passar a mão na
bunda dela na frente da outra: isso foi como se ela dissesse para
a outra “se você não tomar de conta logo, eu tomo.” E a outra
entendeu o recado. Tudo é uma questão de manipulação.
Quando larguei de minha amiga, voltei para a outra garota e
bebemos mais, até que ela me chamou para ir olhar a lua com
ela. Conversa! O que ela queria era me levar para um dos
aposentos da casa que ficava isolado para ficarmos. Não precisei
que ela me dissesse duas vezes, como todo o plano de conquista
tinha sido muito bem aplicado, ela estava bem mansinha, como
toda mulher acha que deve ser. Na situação em que ela estava, e
a que me levou, ela não podia dizer não, e a bebida era o que
mais ajudava nisso, por isso mesmo eu a beijei onde quis beijar,
vi dela o que eu quis vê, toquei nela onde eu quis tocar.
Aconteceu – o que me irritou profundamente – que quando eu
ia fazê-la fazer o que eu queria e fazer com ela o que eu queria
fazer, as criançinhas arrumaram um problema. Detesto esses
playboys filhinhos de papai que não sabem brincar
comportados.
Alguém tinha roubado todo o dinheiro que tinha sido
arrecadado para a organização da festa. O fato novo arruinou a
festa, as meninas que estavam bêbadas, e provavelmente até
drogadas, não sabiam o que fazer e as pessoas da festa, irritadas
já com a desorganização da festa, queriam ir embora. Eu, da
minha parte, estava com uma mulher já conquistada e excitada
e estava doido para terminar o que eu tinha conversado, por
isso nem pensei duas vezes em acompanhar os outros que
estavam saído da festa para ir para outra.
Na chácara, ao pessoal que quis ficar sobrou apenas a
embriagues de uma noite de bebedeira, o prejuízo de uma festa
mal organizada , e umas 90 cervejas que não tinham sido
consumidas. Os três homens que ficaram lá com as quatro
meninas provavelmente, certamente, iriam convencê-las a não
chorar o leite derramando e a aproveitar o resto da noite,
fazendo-as beber um pouco mais para terminar o resto da noite
com uma boa noite de sexo. As meninas provavelmente,
certamente, iriam se deixar embriagar, pois era para aquilo que
elas acreditavam servir e não iam se dar ao trabalho de mudar a
sociedade em que viviam.
Para outras festas iria a maioria do pessoal, que não estava nem
um pouco preocupados com o prejuízo das garotas. A vida era
curta – diriam – e não dá para esquentar a cabeça com o
problema dos outros, temos que nos preocupar com os nossos
próprios, que já são muitos. E assim continuariam com a velha
tradição egoísta que já tinha virado lei universal do nosso
mundo. Iriam, igualmente, tentar seduzir mulheres para levá-las
para a cama, e igualmente as mulheres se deixariam seduzir,
umas mais facilmente e outras menos. Era a norma de vida.
Eu, que já tinha ganhado a noite, apenas precisava levar a
minha ficante da noite para um motel e fazer o que eu quisesse
lá com ela. E graças ao bom “ficar”, melhor invento de nossa era,
podia fazer aquilo tudo com ela sem o menor remorso: se ela
me agradasse, eu ligaria para ela para repetirmos a dose, e se
continuasse me agradando, namoraríamos; se ela não me
agradasse, bastaria usar a lei “ficar” e não mais ligar, e então ela
ira saber que eu não estava interessado em compromisso e
partiria para outro. Uma bela maneira de tornar uma noite
chata numa boa, você não acha?
XIII A Lunática da Vila de Deus
Eis que Deus não confia nos seus servos, e até a seus anjos
atribui loucura. Jó 4:18
Ele morre pela falta de disciplina; e pelo excesso de sua
loucura anda errado. Provérbios 5:23
“Parece um relógio quebrado que sempre aponta para a mesma
hora”. Eu ouvia o jornaleiro da pracinha da Cidade de Deus
dizer sempre que via Maria subir naquele banquinho para falar.
E qualquer um que a visse passar concordaria com as sabias
palavras do velho. “Provavelmente é porque ele ler muito”,
talvez suspeitassem. E suspeitavam, exatamente como tantas
outras coisas que a cidade inteira somente suspeitava. E todos
iriam preferir continuar com as suspeitas de cidades pequenas a
dar ouvidos às loucuras de Maria.
A Lunática não ligava. Subia no seu banquinho, no meio da
praça, e começava a falar sobre os problemas do povo. Como eu
me divertia com aquilo. No início o povo prestou atenção,
geralmente gostavam de qualquer novidade, não importando se
era boa ou ruim. Depois passaram a rir de A Lunática por causa
das loucuras que ela dizia. Depois não deram mais ouvidos e
procuraram outras novidades: logo veio os celulares para gerar
polemicas para a população.
Mas A Lunática não se importava. Subia sempre no seu
banquinho para cumprir o trabalho que Deus lhe tinha
determinado, o cumpriria até o último de seus dias. A Lunática
era antiga professora de filosofia e amava ensinar. Foi demitida,
pois o governo do nosso tão amado país de uma hora para outra
decidiu que não era bom ensinar filosofia às crianças e o povo
(os animais começavam a pensar demais e ficava difícil de
controlá-los, foi o que eles devem ter pensado). Logo perdeu o
filho numa fila de espera por atendimento em um hospital
público, essas esperas que quase sempre são desumanas. O
trauma foi tão grande que ela viu deus (muitos o veem da
mesma forma), que lhe disse que ela devia lutar contra as
injustiças. Se o fizesse seria recompensada e teria vitórias.
Desde então ela passou a tentar abrir os olhos do povo para os
verdadeiros problemas, para a verdadeira luta.
Depois de um tempo o povo se cansou de ouvir A Lunática, e
como ela continuou falando, não hesitaram em chamá-la louca.
Mas A Lunática não era louca, ela tinha uma tarefa e a
cumpriria, mesmo que isso a matasse. A Lunática era forte,
nunca parou de falar sobre os problemas do povo e nunca
mudou de assunto. Ela sempre repetia os temas. Às vezes
mudava de exemplos e usava varias histórias reais para falar dos
mesmos assuntos, mas nunca deixava de relembrar os mesmos
temas. Era forte a A Lunática, ela acreditava que se você tem
certeza sobre algo, tem que mostrá-lo, mesmo que seja
necessário repeti-lo mil vezes de mil maneiras diferentes, até
que o povo veja a verdade. “Se o assunto é digno, deve ser
repetido até que todos entendam,” era o que dizia ela. E tinha
que dizer, pois o povo era fraco e ficava esperando que as
respostas caíssem prontas do céu. Mas o povo não a ouvia mais.
O Povo raramente ouve. Mas como A Lunática nunca parava,
logo chamaram-lhe louca.
O povo não ligava para ela, mas o prefeito ligou. Não iria deixar
uma velha num banquinho lhe atrapalhar os negócios. E a pobre
A Lunática cumpriu sua função até o fim de seus dias, como
tinha prometido ao Senhor dos senhores. Cumpriu-o até o dia
em que foi assassinada. Alguém tinha calado a voz que clamava
por justiça na Cidade de Deus. Calaram a voz que pedia
dignidade, que implorava por uma oportunidade de ajudar. A
policia nunca descobriu nada, nunca quis descobrir nada
(raramente o quer). O povo nunca descobriu nada, nunca quis
descobrir nada (raramente o quer)... estavam muito ocupados se
arrumando para ver a festa que o Prefeito tinha feito para sua
reeleição... e ele ganhou fácil nas urnas.
XIV O vendedor de Bob-Esponjas
Os bens do rico são a sua cidade forte; a ruína dos pobres é
a sua pobreza. Provérbios 10:5
Bebam e se esqueçam da sua pobreza, e da sua miséria não
se lembrem mais. Provérbios 31:7
Uma vez tive que ficar estacionado numa das ruas da Vila de
Deus. Uma figura me chamou bastante a atenção. Muitas
figuras me chamam a atenção, pois tenho ainda a mania de ser
observador, mas acredito que nenhuma me marcou tanta
quanto aquela.
Já eram nova da manhã e o sol não dava trégua. Ele olhava para
o céu tão azul, sem nenhuma nuvem para fazer sombra, e de
repente vinha-lhe o pensamento de que alguém lá em cima não
tinha piedade dele. Logo abandonou aqueles pensamentos. Não
que os pensamentos fossem fortes como aqueles que afetam a
mente dos mais ricos, quando se tem de trabalhar sob o sol o
dia inteiro soprando aquelas bolinhas de sabão, como ele fazia
desde muito tempo, não se tem tempo ou força para se ter
pensamentos fortes e insistentes. Não era isso. Era que deus, ou
quem quer que estivesse lá encima, era a única ajuda maior que
ele possuía nos momentos de dificuldade, por isso temia
ofender. Não achava que deus fosse em algum modo parecido
com aqueles doutores arrogantes de diplomas bonitos nas mãos
que por qualquer palavra critica saem processando as pessoas;
nem tão pouco achava que ia ser por deus abandonado, só por
causa de uma reclamação que nem tinha o direito de fazer; mas
no fundo não queria se meter com gente poderosa, nem mesmo
com deus. Se deus passasse ao seu lado, provavelmente sairia
correndo.
Pensou apenas por alguns segundos, mas logo lhe faltaram as
energias e o barulho infernal dos carros lhe tiraram do
descanso. Se bem que ninguém podia chamar aquilo de
descanso, pois ficava em pé mais de oito horas. Alguns também
não chamariam aquilo de trabalho: vender bobs Esponjas que
fazem bolinhas de sabão quando a gente sopra um canudo! Que
tipo de trabalho era aquele. Mas a maioria dos que tinham essa
opinião é porque nunca tiveram a necessidade de trabalhar para
sustentar uma família, e quase sempre tinham tido boas
oportunidades para fazer um bom currículo. Ele não teve
oportunidades, por isso simplesmente fazia o trabalho.
No meio da rua, segurando aquela cruz, onde estavam
pendurados toda a sua mercadoria, continuou seu trabalho.
Mergulhou novamente o bico do Bob Esponja num copo com
água e sabão liquido e continuou soprando. Soprava aquelas
bolhas o dia inteiro, tanto que era como se o cheio do sabão
fizesse parte de sua pele, ou melhor, como se seu suor cheirasse
a sabão.
O trabalho rendia pouco, mas era digno, embora ninguém nesse
país de meu deus desse a mínima para os trabalhos dignos. Cada
Bob Esponja não valia mais do que dois reais, e se alguém
calculasse o valor total de mercadorias que o pobre vendedor
carregava nas coisas, não chegaria a um valor que pudesse
comprar o celular do meu irmão. Talvez fosse por isso que as
pessoas não ligavam para o trabalho daquele vendedor. Havia
momentos que vendia bem, sendo possível, com sorte, ganhar
15 ou até 20, se o Senhor fosse bom com ele, num dia (valor que
se gasta em com uma transa num motel), mas esses momentos
eram só nas festas: na maioria das vezes voltava para casa tendo
vendido apenas um ou dois de seus produtos.
E o pior não era isso, assim como os lixeiros, ele tinha um
daqueles trabalhos invisíveis. As pessoas passavam por ele na
rua, mas quase ninguém se dava conta de que ele estava lá. Os
carros passavam e buzinavam, mas era como se o que estivesse
na rua fosse um animal ou um poste, e não um ser humano
digno de ser observado. No mais, talvez somente as crianças
ainda o olhassem e olhassem para as bolhas que flutuavam no
ar, mas esse olhar era só uma admiração de momento, sem
maiores sentimentos. As crianças de hoje dificilmente
chorariam e puxariam as roupas de seus pais para conseguir um
dos Bobs Esponjas do pobre vendedor, preferiam um
Playstation ou qualquer outro jogo virtual desses onde há
monstros para a gente matar. Desse modo, a vida e a
modernidade tinham se provado cruéis e agiam contra os
trabalhadores humildes, substituindo seus empregos por
maquinas, e suas artes por tecnologia.
Mas o vendedor não ligava para esse problema. Não porque
fosse ele uma pessoa determinada, pronta a enfrentar qualquer
desafio como os homens honrados dos filmes de herói a que
você assiste junto com sua família nos fins de semana. Era
porque não tinha tempo para ligar, tinha que soprar as bolhas
para ver se alguém se interessava em comprar um Bob Esponja.
Eram aqueles Bobs Esponjas que alimentavam sua família.
Continuou, sem mais pensar nos problemas até ao cair da tarde.
Provavelmente, voltando para sua casa de bicicleta, veria numa
das avenidas homens a preparar-se para a Boate da Vila de
Deus, onde seria realizado um show para que jovens pudessem
queimar dinheiro em bebidas, drogas (também me refiro a
bebidas) e sexo. Como sempre faziam. Provavelmente tentaria
sentir raiva. Os homens desperdiçavam montes e montes de
dinheiro em coisas fúteis, enquanto ele, como tantos e
inumeráveis outros, trabalhavam como escravos para ganhar
algumas moedas. Tentaria sentir raiva, mas acabaria pondo-se
no lugar deles; um de seus sonhos mais profundos, tipo aqueles
que a gente sabe que nunca vai se realizar, era o de poder um
dia desperdiçar muito dinheiro com sua família. E por causa
disso a única coisa que sentiria foi pena da humanidade. Mas
também não sentiria demais, pois sentir pena de condenados
não adianta muito.
Pedalaria rápido, provavelmente para ver a família. Hoje tinha
sido um bom dia e iria querer compartilhar a alegria de ter
ganhado alguns trocados a mais com a mulher e os filhos.
Amanhã, talvez, poderiam até comprar uma comida melhor, se
o dinheiro sobrasse para pagar as contas de água e luz, mas de
qualquer maneira estaria realmente “feliz”. Entraria na casa e
iria direto para o banheiro para tirar o cheiro de sabão do corpo.
Como se com um banho voltasse a ser gente novamente.
Provavelmente não conseguiria fazê-lo. Sentar-se-ia junto com a
mulher e a abraçaria para que assistissem juntos a uma novela
qualquer, mas não assistiriam até o fim, pois iriam dormir cedo.
Amanhã seria dia de soprar bolhas de sabão novamente.
Esses pensamentos começaram a afetar meus sentimentos
internos, deixando-me meu mal com tudo aquilo. E como eu
não gostava daquela situação, liguei o som do carro para afastar
os pensamentos ruins e os ruídos do mundo lá fora, e liguei para
a Filha do Prefeito para combinar a que horas iríamos nos
encontrar. Uma boa noite de sexo devia ser suficiente para me
fazer não me preocupar com tudo aquilo... e foi.
XV A Funcionária e a Garota de 200 Paus
[Salomão] Tinha setecentas mulheres, princesas, e
trezentas concubinas; e suas mulheres lhe perverteram o
coração. I Reis 11:3.
Não tomarão mulher prostituta, ou desonrada (...);
prostituindo-se, profana a seu pai; com fogo será
queimada. Levítico 21:7-9.
Meu repentino sucesso com as mulheres me tinha subido a
cabeça, afirmo. Não era um homem que tinha muitas, durante
todo o período da faculdade só tive uma namorada, e era uma
das menos bonitas do lugar. Por isso acho que acabei fazendo
jus ao ditado “quem nunca comeu mel, quando come, se
lambuza”. Seja de qualquer modo, e não tentando me justificar,
as circunstancias (e eu próprio) iam me conduzindo a cometer
mais um pecado.
Há muito que eu tinha vontades para com a Funcionária, que
trabalhava comigo. Geralmente com roupas decotadas e
apertadas, ela sempre parecia muito mais do que desejável.
Tinha me dado alguns olhares, quando eu fiquei bem de vida e
apareci de carro novo, mas como eu estava com a Filha do
Prefeito ela não continuou.
Eu já conhecia inúmeros casos de assedio sexual, e devo
confessar que a impunidade da maioria deles me pareceu bem
atraente. Há algum tempo já vinha fazendo investidas na garota,
mas ela não cedia. Continuei com educação até que minha
paciência terminou e eu pensei em fazer uma barbaridade que
eu nunca tinha feito antes (para mim aquilo era uma
barbaridade).
Sinceramente não sei como conseguir deixar claro de que o
emprego da jovem, e futuros empregos, dependiam da
contribuição dela para tornar os dias de trabalho menos
“entediantes”. Qualquer um em minha situação poderia alegar
que estava fora de si, ou que algum ser maligno tinha se
apossado do seu corpo, mas não eu. Sabe, nunca acreditei no
diabo. Para mim, mesmo que existisse uma entidade superior
do mal, ele estaria aprendendo conosco, que somos especialistas
em fazer ruindades. Não, senhor, eu tinha tanto talento para ser
ruim quando para ser bom, exatamente como todas as pessoas.
Eu só tinha escolhido um lado.
Certo dia ela acabou cedendo. Pobre menina?! Não exatamente.
Não estou dizendo que ela não era uma vitima minha e que eu
não foi um crápula, um porco e um descarado de agir daquela
maneira. Provavelmente alguém pode acha que aconteceu como
naquelas novelas de quinta, em que os “assediadores” são
sempre velhos ou bêbados, ou grosseiros, nas quais as mocinhas
são assediadas aos choros e soluços sem poder se defender dos
monstros que não têm pena delas. Não, não foi assim, e acho
que essa pessoa está acostumada demais com essas novelas.
Aconteceu diferente. Levei a garota para um motel, o mais
luxuoso das redondezas, e a deitei numa hidro que ela nunca
tinha entrado. Foi o mais cavalheiro possível (respeitando
preliminares e etc.), embora, naquelas ocasiões, fosse necessário
aproveitar o momento para realizar certas fantasias mais
picantes..., mas acho que não preciso entrar tanto em detalhes,
já se tem uma boa ideia de que não fui exatamente o mostro que
alguém me pintaria, além do que tais detalhes vão manchando a
conversa, e são de fato íntimos demais.
E era assim que eu usufruía dos “serviços” da Funcionária. Claro
que a minha relação com a Filha do Prefeito continuava, ela era
a mulher ideal para se casar. Tínhamos uma relação um pouco
fraca, mas a cada dia eu sabia alimentá-la mais e mais com
carinho e ilegalidade, e a ajuda do pai dela nesse último item
estava sendo útil. O cara tinha ficado definitivamente contra
mim, principalmente quando eu o deixei ouvir, de propósito,
uma conversa com um amigo na qual eu contava qual tinha sido
a posição que eu tinha praticado com a “safadinha” da minha
namorada.
O que o Prefeito não entedia (não sei como ainda não tinha
entendido uma coisa tão óbvia) era que quanto mais se proíbe
um namoro mais picante ele fica para as meninas. Muitos
fatores sempre contribuíram para isso, mas eu acho que o
principal era aquela baboseira romântica de que “o amor é mais
importante do que tudo”. Acho que quando os pais proíbem um
namoro, obrigam as suas filhas a provarem que o amor e mais
importante, então acabam se apaixonando mais pelos seus
namorados (claro, um pouco de proibido sempre apimenta as
coisas, e luxuria e safadeza é um dos órgãos componentes dessa
coisa que se chama amor). Claro que sei que há uma
possibilidade de haver exceções à regra, mas até agora
desconheço-as e é muito provável que seu número seja bem
reduzido.
Sendo assim, eu podia dizer que estava realizado nas relações
com as mulheres. Dormia com a Funcionária quando, por
algum motivo, não podia sair com a Filha do Prefeito, por
exemplo, quando o pai a trancava no quarto, o que aconteceu
algumas vezes, o que a propósito eu adorava, pois quando ele
fazia isso, no outro dia ela vinha com mais vontade de provar ao
pai que “o amor era mais forte” (“Viva o amor!!” Sempre foi meu
lema). E deixava a Funcionária quando era dia de atender a
primeira dama (ou seja, o nosso amor oficial).
Não havia, continuando, muita diferença nas duas nesse ponto.
Ambas muito bonitas, eram de tudo o modo agradabilíssimas na
cama. A Funcionária, nos primeiros momentos, porque as
circunstâncias mandavam. É o que normalmente acontece
nessas relações “ocultas”, o respeito perde importância e a
diversão impera. Depois, claro, ela passou até, de uma
certamaneira, a gostar um pouco de mim (pois eu sempre a
tratava muito bem), e no nosso 5 encontro era ela quem ditava
as regras (como já tinha se acostumado com a situação que era
forçada a suportar, acho que se conformou e preferiu tomar
proveito dela). Por sua vez, a Filha do Prefeito era uma mulher
feita, já bem experiente, e quase não tinha nenhuma “restrição”,
principalmente quando bebia um pouco a mais. Ela também,
depois de um tempo, passou a gostar de mim, claro que muito
mais do que a outra, e posso dizer que já no nosso
quadragésimo quinto encontro ela já me amava, e que nossa
relação não corria mais riscos, o que me habilitava já a parar de
provocar o prefeito e a começar a pensar em meios para
conquistar a confiança dele.
Outra mulher que marcou a minha vida foi a Garota dos 200
paus, nunca me esqueci da ocasião. Eu tinha ido para a capital
do estado, onde o Ladrão de Cargas e os outros membros da
gang tinham montado o “quartel general”, para renovar ordens
e pegar o lucro da minha participação. O negócio já tinha se
desenvolvido sozinho, e eu não precisava mais supervisionar as
coisas (os homens tinham sido muito bem ensinados por mim, e
não mais cometiam erros graves), mas eu sempre gostava de
aparecer para mostrar quem é que mandava. O Ladrão de
Cargas, como sempre, tinha para comigo total fidelidade, me
considerava “o irmão que a vida nunca tinha lhe dado”, como
ele disse uma vez, e eu deixava que ele pensasse assim (era útil),
e por isso quando eu chegava era praticamente tratado como o
rei da cidade. Aconteceu que, depois de quando todos os
negócios estavam resolvidos, saímos, ele e eu, para ter um
pouco de diversão.
Bebemos muito aquela noite, e decidimos gastar algum dinheiro
com as profissionais da rua (todos conhecem). Ele, muito
bêbado, ficou com um travesti (claro, qualquer um que olhasse
juraria que ela era mulher de verdade), e até o último dia que eu
o vi ele jura que nunca tinha ficado com uma mulher mais
quente do que aquela.
Eu, por minha vez, andei de carro pelas as ruas até que reduzi
numa rua escura onde havia várias mulheres. Baixei o vidro do
carro para mostrar que estava interessado, e logo veio uma
mulher falar comigo. Aquele tipo de situação já me era muito
bem conhecida, eu conhecia muito bem o mundo, o país e a
cidade onde eu vivia, mas, quero falar, que mesmo depois de
tantos anos (e mesmo hoje) não tinha me acostumado com
aquilo. Ela veio e parou na frente do carro, e fez questão de
colocar a mão na cintura de um modo que atraísse a minha
atenção para as pernas dela. Usava uma saia, mas eu não gosto
de chamar aquilo de saia, prefiro mais usar o termo “tira de
pano que cobrai a lingerie”, por ser mais adequado e preciso,
que era uma espécie de maiô de renda, provavelmente feito a
mão, que lhe subia até os seios num tipo de tomara-que-caia. O
conjunto em sim não só acentuava as formas femininas, como
também as vulgarizava, e era isso o que eu mais detestava
naquela profissão. Sempre considerei qualquer tipo de ser
feminino (que não tivesse um pênis) uma mulher, não
importava qual fosse sua profissão (deferente de muitos que só
porque essas mulheres vendem o corpo para sobreviver, as
tratam como se elas fossem uma espécie de animal, o qual se
pode bater e tratar mal, ignorar ou desprezar). Mas aquela
profissão transformava as mulheres e as faziam parecerem
menos naturais, e a vulgaridade, embora em alguns momentos
necessária, era meio ofensiva.
- O Doutor está procurando algo especial? Ela falou com voz
provocante, abaixando-se e se colocando quase dentro do carro
propositadamente, para que eu visse o decote dela.
- Não sei... pode me dar alguma sugestão de diversão para essa
noite?
- Ah, doutor, eu posso fazer as coisas que sua mulher nunca
fez..que tal?
Ela fez a tentativa dela para me agradar. Vendo que meu carro
era bem luxuoso deduziu que eu era rico, e foi por isso que
sugeriu fazermos o que “minha mulher não fazia”. Era a
tentativa mais apropriada, pois quase sempre seus clientes ricos
eram homens casados que não fiam “certas coisas” com suas
mulheres e recorriam a profissionais para isso.
Isso era uma das coisas que eu mais odiava na sociedade. Nossa
época tinha imposto em nós a ideia de que existem esposas (que
são as mães dos nossos filhos) e “vadias”. Com uma esposa não
se podia fazer certas coisas, pois isso era coisa de vadia, então,
se um “homem de bem” quisesse fazer tais coisas era preferível
procurar uma “vadia” ou uma amante para tal. Era um dos
pensamentos mais preconceituosos e ridículos da época (e por
mais que não seja agradável de admitir, ainda é hoje). E eu
conhecia muitos homens (como ainda conheço tantos hoje e
posso lhe fazer uma lista enorme) que morrem de vontade de
fazer certas sacanagens, mas preferem mil vezes trair a mulher
do que “sujá-la” com tais atos (foi a expressão que um amigo
meu usou). Embora (todos sabem) suas mulheres iriam preferir
ceder aos desejos dos maridos a serem traídas (e cá entre nós,
sabemos perfeitamente que elas iriam adorar bastante as novas
ideias, todo mundo gosta). Mas claro que seus maridos, preso
pelos preconceitos e correntes do certo-e-errado que a
sociedade impõe neles, nunca iriam perguntar isso as suas
esposas, afinal elas são as mães de seus filhos. Eu pessoalmente
odiava aquele pensamento.
- Quem é aquela? Eu perguntei quando sai do carro ao ver uma
menina de mais ou menos 14 anos junto com as outras.
- É uma menina nova. Começou hoje. Carne nova! Está
vendendo a virgindade dela por 200 paus. Quer comprar, leva
ela e eu e a gente garante te dar uma noite inesquecível.
- Chame-a e entrem as duas no carro. Vamos para um lugar
mais tranquilo. Disse depois de três segundos de reflexão.
Omitirei a maioria dos detalhes, leitor. Acho que a falta deles
não serão empecilho para o entendimento do todo. Entretanto,
algumas coisas que aconteceram naquela noite valem a pena de
serem trazidas ao seu conhecimento, claro que eles não servem
para amenizar a minha culpa (vaga e mínima por sinal, se te
interessa que eu diga) e nem tão pouco podem diminuir o meu
pecado, mas servem para clarear melhor a situação. Bebemos ao
chegar ao quarto onde seria feito o programa, eu bebi muito
pouco porque já estava demasiadamente bêbado. A mulher
bebeu, mas era só para fazer companhia. A menina pegou o
copo como quem queria beber o mundo num só gole. O
pensamento que me veio a cabeça era de que ela queria beber
para não sentir meu gosto ou minha presença, e essa ideia me
deixou meio mal. Notando que eu tinha estranhado aquilo, a
mulher mais velha deu um cutucão na menina, insinuando que
não era pra ficar bêbada que a menina tinha vindo.
Outra coisa era que eu, pelo menos posso me abster desse
crime, não tirei a virgindade da menina. Não era nem preciso
conferi os detalhes físicos para saber que aquela garota já há
muito não era virgem, os próprios detalhes a mais (o olhar, o
falar e o agir) entregavam a verdade. Esse mundo, em que
vivemos, já tinha castigado muito aquela menina (e estou
usando o temo “menina” porque quando eu dormir com ela, ela
tinha a idade que a Minha Filha tem agora). Provavelmente já
conhecia aquela vida há uns 3 meses, e a dureza dela a tinha
acostumado muito rápido. Não podia descrever o olhar que ela
me deu durante o ato, mas o posso agora, em minha situação:
ela me deu o mesmo olhar que eu evito dar as pessoas, mas que
é o meu real: o olhar de quem já não tinha sonhos, cansado de
sonhar em vão; o olhar de quem só tinha o medo da morte, e
que não temia mais nada, nem mesmo a própria desumanidade;
o olhar de quem foi afogado pelas mentiras, como dizia Marilyn
Manson, em uma de suas grandes músicas, para não dizer
hinos, e que não mais acredita em histórias educadas que as
pessoas contavam para se sentirem melhor; um olhar mal, por
sofrimentos e ódios, ela pelo sofrimento que sofrera e pelo ódio
que sentia das pessoas que a fizeram sofre, eu por causa do
sofrimento que eu pensava ter sofrido e pelo ódio que eu nutria
das pessoas, que ia me amargando; enfim, um olhar
simplesmente seco, que eu tinha demorado anos e anos de
apatia e mentiras para conseguir, e que aquela garota tinha
conseguido em apenas uns poucos anos de vida. Aquele olhar
me perturbou, e eu até poderia dizer que não aproveitei aquela
noite ou que fiquei impotente por causa da culpa, só para
parecer mais “humano”, mas isso seria mentira. A verdade é que
o corpo funcionou perfeitamente, principalmente o dela, até
mais que em outras ocasiões, e fez tudo que deveria ter feito, até
mais do que em outras ocasiões, e a mente, inebriada pelo
álcool, tinha apenas pensamentos vagos e sem intenção de se
complicar. Afinal, não é por isso que o álcool é uma droga tão
popular, assim como Deus, a Fé, a Imaginação e o esquecimento
também o são.
XVI O Filho que nunca tive
Comereis a carne de vossos filhos e de vossas filhas.
Levítico 26:29
Fá-los-ei comer as carnes de seus filhos, e as carnes de suas
filhas, e cada um comerá a carne do seu próximo (...).
Jeremias 19:9
Um fato veio a marcar bastante minha vida naquele tempo. Na
verdade era para está no capítulo anterior, pois tem relação com
a Funcionária, e eu tinha deixado o capítulo 12 para falar tudo
sobre minha relação com ela, mas algumas coisas me forçam a
fazer um capítulo especial. Um capítulo especial só para ele,
pois ele merece...
Quando voltei da capital, voltei ainda perturbado com o que
tinha sido meu mais atual pecado (até a data, pelo menos). De
todos os que eu tinha feito (já tinha dado autorizações para
assassinatos ao Ladrão de Cargas) o de pedofilia era o mais
estranho para mim. Eu voltei meio mais-ou-menos, talvez
alguém pudesse sugerir que eu usasse a palavra “arrependido”,
mas não era isso, usei “mais-ou-menos” porque não conheço
outro uso para expressar verdadeiramente aquele sentimento.
Muitos livros usam a palavra arrependimento, ou peso na
consciência, para explicar tais sensações, mas isso é um mentira
cultural na minha opinião. A consciência (e de certo modo o
arrependimento) só são úteis para os que sofrem dela. É uma
coisa egoísta muitas vezes. Eu não me sentia mal por causa do
que eu tinha feito a menina, mas mais por causa do que eu tinha
me deixado fazer. Essa é a expressão correta. Tudo na
consciência voltava para “mim”, “me” eu “eu”. Mas não é hora
para desperdiçar tempo com Filosofia. Vale, porém, lembrar que
ao menos eu tinha coragem de admitir meu verdadeiro
sentimento, muitos na sociedade (quase a maioria, sentem o
mesmo, e não tem coragem de admitir). De qualquer modo, eu
tinha voltado meio perturbado quando encontrei com a
Funcionária no escritório, que queria falar comigo em
particular.
A Funcionária sentou-se na cadeira em frente a minha mesa.
Trazia um olhar preocupado, carregado e talvez esperançosos,
um olhar bem diferente do que ela trazia, pois era um olhar
amadurecido de não-sei-o-que, talvez uma mistura de alegria e
preocupação, seja o que for deixava os olhos dela, e ela, muito
mais lindos... que me desculpe o leitor se o estou cansando,
sempre descrevendo olhos e olhares, mas essa é a primeira parte
de qualquer mulher que eu vejo... alguns olham para os seios,
outros para as pernas, outros para a bunda (a velha paixão
nacional), mas para mim o mais importante e belo de uma
mulher, em primeiro lugar, eram os olhos. Trazia um vestido
menos sensual, algo mais feminino e recatado, e um papel
brando nas mãos, segurando-os com as duas por sinal, o que
demonstrava que o papel era importante para ela. Ela,
primeiramente me olhou por alguns segundos, um olhar fundo,
um olhar lindo, que procurava em mim alguma coisa que eu
não sabia. Deixei-a vagar nos meus olhos por alguns segundos, o
que geralmente eu não fazia, sempre desviei o olhar quando as
pessoas me olham profundamente, até que ela, pensando achar
o que estava procurando, iniciou um sorriso. Ia ser um sorriso
bonito em outras ocasiões, mas então ela colocou novamente os
pés no chão (pois o corpo tinha flutuado em alguma fantasia
infantil) e recolheu rapidamente o sorriso, dando-me o papel
para que eu mesmo o lesse.
A Leitura me gelou, eu poderia dizer, se isso não fosse
clinicamente impossível, pois teria causado minha morte.
Refletir por alguns segundos, avaliando planos, anulando uns e
refazendo outros, e segurando com toda a minha força de
vontade meu corpo para não expressar qualquer tipo
movimento.
- O que vamos fazer? Ela me perguntou, e como eu não tinha
demonstrado qualquer sensação de pânico, teve confiança para
colocar as duas mão juntas na minha mesa, o que considerei
como um sinal de tranquilidade e suplica, e de deixar sobre-sair
um olhar de esperança, recheado com imagens de casamento,
lua de mel, festas de aniversário, noites dormidas a dois,
abraçadinhos, e sonhos a realizar juntos.
- O que você me sugeri? Respondi para ela, e não pude deixar de
mostrar minha apatia forçada.
- O que você quer que eu faça... Não posso assumir essa
responsabilidade sozinha. A gente fez esse filho juntos, vamos
ficar juntos... eu posso te fazer feliz... eu sei... eu te amo.... E
assim continuou, dizendo coisas daquele tipo. O pior tinha
acontecido. Ela tinha se apaixonado por mim. Notou minha
frieza de resposta e começou a apelar para aqueles argumentos.
Enquanto ela falava, eu deixava passar um filme na minha
mente, um filme que contava a história de como seria minha
vida se eu tivesse tomado outra decisão. Casar-nos-íamos,
teríamos uma lua de mel incrível, ela sempre, pela diferença de
classes, estaria tentando me agradar, fazendo minhas vontades,
meus desejos, desejando sempre ser a melhor esposa, nosso
filho cresceria, faria faculdade e me daria muito orgulho, etc. e
etc. e etc. O filme, porém foi interrompido com a última coisa
que ela falou.
- Você vai fugir da responsabilidade. O que quer que eu faça
com essa criança.
- Tira!
Tudo foi cortado por um silencio macabro. A minha resposta foi
direta, cheia de apatia e seriedade, tanta que nem eu acreditava
que tinha dito aquilo instantaneamente. Alguém provavelmente
deve estar sentindo pena da jovem moça, e me odiando porque
eu não estava sofrendo nem um pouco, e certamente está certo,
mas em parte. Eu sentia sim tristeza (sentimento que eu forçava
para que não aparecesse) e também sentia uma desumanidade
crescente em mim, me envenenado (eu sentia o veneno dela na
minha boca, e o gosto era horrível, mas eu o suportava como
um homem). Claro que tinha pensado em casar com ela, e
assumir a vida que ela estava me oferecendo. Aquela, porém,
não era a vida que eu tinha escolhido para mim. Era linda, mas
não era a que eu queria.
Ela me olhou no fundo dos olhos, mas seu olhar tinha mudado
completamente, e aquela mudança me perturba até hoje.
Ela me olhou como se estivesse morta. Um olhar sem vida.
Ela me olhou como se estivesse olhando para o próprio Diabo.
(Talvez estivesse mesmo!). Tentei confortá-la, dizendo algumas
coisas para justificar o que eu tinha dito, mas nem eu mesmo
me convenceria. Disse que prestaria qualquer assistência,
dinheiro não era problema, bastava que ela dissesse o quanto
queria, e disse que nunca mais a tocaria de novo, entre outras
coisas... mas ela não estava mais ouvindo.
Sumiu depois de uma semana... acho que ela esperava que eu
me arrependesse e a procurasse pedindo desculpa, implorando
para que ela me perdoasse das barbaridades que eu tinha dito,
mas como eu não apareci, ela entendeu. A última vez que ouvi a
voz dela, foi quando ela me ligou dizendo que precisava de
dinheiro para resolver a vida... dei vinte vezes mais do que a
quantia que ela tinha me pedido.
Como disse antes, esse é um capítulo especial que eu dedico
àquele filho. Queria ter posto nele mais beleza, ou que fosse
mais longo ao menos....mas deixa pra lá... esse assunto não tem
mais importância agora.
XVII A boate da Vila de Deus
Porque os lábios da mulher licenciosa destilam mel, e a sua
boca é mais macia do que o azeite. Provérbios 5:3
Não bebas mais água só, mas usa um pouco de vinho, por
causa do teu estômago e das tuas frequentes enfermidades.
I Timóteo 5:23
Com o tempo, por causa dos acontecimentos que recaiam sobre
mim e de tantos outros que eu mesmo deixava que me
influenciassem, passei a lutar para controlar a humanidade em
mim. Isso (eu tinha plena consciência) criaria um paradoxo tão
extremo e contraditório em si mesmo que me transformaria
num monstro de feiura sem igualdade. Os sentimentos mais
corretos, amor, sinceridade, solidariedade, afetação, irmandade,
caridade, piedade, orgulho, honra, enfim, aqueles que podiam
salvar o homem de sua auto-destruição, iriam se tornar para
mim um empecilho para o desenvolvimento de meu máximo
potencial desejado. Não que fossem empecilhos em si; o homem
que afirmasse esse insulto provavelmente estaria com um
demônio mentiroso dentro do corpo.
Acontecia que eu tinha tomado uma decisão em relação ao
mundo: ser humano consciente, isto é, impedir que a
humanidade agisse de forma livre em mim. O mundo, pois,
tinha uma enorme capacidade de ser mau e hipócrita
inconscientemente. Matam-se pessoas nas cidades todos os dias
e ninguém é realmente culpado. Se o ladrão foi impelido a
cometer seus crimes por uma sociedade cruel e discriminadora,
isto não é problema de ninguém e é problema de todos,
ficando-se, assim, quase vão discutir tal problema; melhor é
colocar grades nas janelas e não sair de casa. Pessoas tornam-se
pobres enquanto respiramos e ninguém é culpado. Se o
capitalismo é um sistema econômico injusto ninguém pode
fazer nada; melhor é dormir cedo porque amanhã precisa-se
trabalhar para ganhar a vida. Magoam-se as pessoas de solidão,
de desprezo, de infâmia, de ignorância, de credulidade, de
arrogância, mas ninguém é realmente culpado, porque todos o
somos juntos. Se elas têm nosso perdão e a certeza de que não
fazemos isto por mal, isto não é um fator importante; perdão e
não-más intenções servem mais para aliviar os criminosos do
que para compensar a real divida.
Eu já estava cansado de tudo aquilo. Diga-se o que for: que sou
um fraco e que não quis lutar pelo que é bom e o que é justo;
que tenho tendências para o mal e prefiro a hipocrisia à
sinceridade das ações; diga-se até que eu sou a encarnação viva
do mal. Provavelmente é tudo verdade, mas nem sempre a
verdade é importante... e para mim ela não é, agora. Eu queria
me tornar diferente; eu queria controlar o humano que estava
dentro de mim. Eu queria sentir pena somente quando eu
quisesse; amar somente nos momentos e que eu desejasse,
somente as pessoas que eu acreditasse me merecer; afetar-me
somente com o que não me afetaria tanto; não ter orgulho com
nada nem ninguém; enfim, está livre de mim mesmo.
Isto era uma das coisas mais difíceis que qualquer homem
poderia fazer. Temos demasiadas tendências humanas e isso é
muito bom; ninguém deveria pensar em ser Superumano, pois
quanto maior fosse o número de pessoas desse tipo num lugar,
pior seria a vida. Eu, entretanto, desejei a Superumanidade (e
sabia que estava condenado por isso). Desejei-a porque eu não
queria ser humano numa sociedade como a nossa. Para mim a
sociedade não era mais digna da humanidade de algumas
pessoas; ela precisa desesperadamente dela porque parece não
valorizá-la. Talvez eu devesse ser a pessoa que desse a ela um
pouco mais de humanidade, mas eu era um miserável fraco, e
preferia utilizar a Superumanidade em proveito próprio. E para
conseguir tal extremo me era necessário controlar a minha
humanidade.
Existem varias maneiras de se controlar a humanidade, e quase
todas elas são usadas pela maioria das pessoas. Isso me daria
uma certa tranquilidade ao imaginar que não eu não sou a única
pessoa a reprimir os sentimentos humanos, mas a maioria das
pessoas não usava essas "maneiras" da maneira que eu usava,
por tanto não é a mesma coisa e isso não serve de desculpa para
minhas atitudes (nunca pedi ou precisei delas mesmo). O
essencial é que tomo muitas atitudes conscientemente que as
outras pessoas tomam inconsciente; isso faz toda a diferença.
Uma dessas maneiras era a urgia. Nada como uma boa noite de
sexo para espantar qualquer pensamento humano
inconveniente. E para isso, na Vila de Deus, existia um lugar
especial: a Boate da Vila de Deus. Claro que existiam vários
locais de prostituição na cidade; muitos bares tinham uma ou
duas garotas de programa para atender a clientes, mas isso era
só para a classe baixa que gostava de correr riscos. Alguns dos
casos da Vara família eram de queixas contra maridos traidores,
e muitos dos casos de separação eram pelo mesmo motivo. A
Boate da Vila de Deus, entretanto, seguia esquema bem
diferente, pois ela era destinada apenas para a elite da cidade e
de cidades circunvizinhas; nenhum dos grandes homens de
cargos importantes iria querer se arriscar como se arriscavam os
demais.
Para isso tinha sido necessário montar todo um aparato de
segurança. O local escolhido fora um sitio a 50 quilômetros do
centro urbano, onde tinha sido construído um casarão digno
dos coronéis de uns tempos atrás. O distanciamento do local era
favorável para o desconhecimento de toda a brincadeira, pois
não havia o risco de algum engraçadinho passar por perto para
atrapalhar.
Cada pessoa membro da elite da Vila de Deus detinha uma
função para com a Boate. O Prefeito, por exemplo, cuja amante
era a responsável por conseguir garotas especiais, se
encarregava de manter as instalações e os privilégios das
meninas, o que não era necessário, pois os lucros da Boate eram
bem elevados. O Delegado, por sua vez, ficava responsável em
manter a segurança das instalações; nas noites de
funcionamento, que só aconteciam uma vez por mês, raramente
no mesmo dia e raramente consecutivamente (para não levantar
suspeitas e dificultar as investigações contrárias), o Delegado
mobilizava quatro de seus homens para manter a segurança do
local e impedir que qualquer penetra sem convite se
aproximasse da Boate. Eu, como juiz da cidade, ficava
responsável, e no começo foi "obrigado" a isso, em vigiar
possíveis denuncias de prostituição vindas ao meu gabinete e,
sempre que possível, atrasar ao máximo ou até mesmo impedir
o correto andamento das investigações. Muitos membros
externos, pois a Boate da Vila de Deus era uma das mais
conhecidas entre as elites, também ajudavam na manutenção da
segurança da casa. Nas noites mais especiais, até o governador,
algumas poucas vezes, aparecia para usufruir das qualidades da
casa.
Frequentei aquela casa com frequência até que comecei meu
relacionamento com a Filha do Prefeito, depois disto algumas
vezes e, por fim, raras vezes quando eu me casei com ela. Eu até
poderia dizer que a queda na frequência foi em decorrência da
um amor que crescia em mim para com a Filha do Prefeito,
talvez eu diria isto para melhorar a minha imagem como
humano e até que funcionária. Entretanto estava longe de ser
isto. A queda era resultado de três fatores que me derrubam
ainda mais a minha imagem. O primeiro era porque eu aquelas
"noitadas" funcionavam para mim como um remédio
anticonsciência; sempre que eu ficava chateado em cometer
uma injustiça com a lei, sempre que eu me afetava ao entrar
num hospital público ao ver o descaso que eu ajudava a manter
(não fazendo a lei funcionar), e essas emoções me sobrevêm
com certa frequência, eu ia para a Boate da Vila de Deus e
esquecia de toda aquela besteira nas pernas de alguma mulher
(e como isto funcionava bem). Ao começar meu relacionamento
com a Filha do Prefeito, consequentemente, não me era tão
necessário buscar garotas de programa. Ora, tendo medicação
anticonsciência gratuitamente em casa, porque alguém iria
pagar por ela na rua? Isto só aconteceria se alguém precisasse de
uma dose mais forte, que não pudesse conseguir em casa. Este
exatamente era o seguindo motivo, pelo qual eu ainda
frequentava a Boate, mesmo me relacionando com a Filha do
Prefeito: algumas vezes eu quis dozes mais fortes do remédio.
Não que eu não pudesse conseguir o que eu queria com ela, mas
era que traí-la fazia com que o amor para com ela perdesse sua
influência e poder sobre mim. Não que acabasse com o amor,
muitas vezes dormir com garotas de programas sem sequer ter
tanta vontade de dormir, outras tantas vezes eu pensava na
Filha do Prefeito enquanto estava com as outras, mas fazendo
aquilo o amor em mim ficava menos forte. Desse modo, o
sentimento tornava-se por demais parecido com uma roupa que
você coloca e tira quando quer (e eu usava remédios e técnicas
anti humanidade exatamente para isso: para transformar a
humanidade numa roupa que eu pudesse vestir quando
quisesse, e não para destruí-la em mim, até mesmo porque eu
tinha plena consciência de que isto era impossível, e também
muitas vezes vestir a fantasia de humanidade era muito útil). O
terceiro motivo que gerou a queda de frequência foi puramente
egoísta; com o tempo, e com os tratamentos que eu fazia em
mim mesmo, a medicação anti humanidade foi se tornando
cada vez menos necessária, e desse modo eu podia parar de me
arriscar frequentando aquele local. Para que me arriscar a ser
pego num esquema ilegal se eu não precisava mais dele (além
do que eu tinha uma garota em casa que fazia todos os meus
desejos).
Muitas vezes, devido ao meu desinteresse com a Boate da Vila
de Deus, eu pensei em denunciá-la e acabar com aquele
esquema ilegal; acabei nunca fazendo-o. Não porque realmente
temesse alguma represália, pois existiam meios de acabar com a
Boate sem levantar qualquer suspeita para meu lado. Acontecia,
porém, que os motivos que me levaram a pensar em por um fim
a diversão dos meus colegas eram puramente Superumanos; eu
queria me divertir acabando com a diversão dos meus colegas.
Tendo em vista estes motivos, calculei que seria um risco muito
elevado e um lucro muito mínimo para uma simples brincadeira
da minha parte.
Para efeito de descrição, eu diria que a Boate da Vila de Deus
não era exatamente uma casa de prostituição de luxo. Isto,
naturalmente, fazia parte do negócio todo, mas deixar esta
definição no ar seria uma certa infidelidade. Para ser mais
preciso, eu diria que a Boate era uma casa de reuniões da elite,
onde eram discutidas falcatruas, queimas de arquivos, lavagem
de dinheiro, etc., com mulheres semivestidas servindo bebidas e
seus corpos para o divertimento dos membros da casa. A
prostituição era apenas uma consequência inevitável da
primeira função da Boate; nas primeiras noites, de fato, eram
apenas reuniões de negócio entre os Três Grandes da Vila de
Deus, mas eles notaram a impunidade e a segurança e
começaram a trazer suas amantes, e depois para chegarem as
prostitutas era um simples pulo.
Deixo, a título de descrição, a minha narrativa de uma das
noites especiais da Boate da Vila de Deus, uma que por acaso
ficou na história daquela casa por causa da movimentação e do
alarde que ocorrera. O fato foi o seguinte:
Fazia um bom tempo que a Amante do Prefeito ficara
responsável pela organização da Boate e pelo recrutamento de
meninas especiais (até mesmo pelo treinamento delas). Ela, por
algum motivo, começou a levar muito a sério a Boate, tratando-
o como se fosse o seu emprego. Eu, ao lembrar da dedicação
dela, chego a dizer que ela se tornara uma empresária de
excelente qualidade, pronta para fazer qualquer esforço para
aumentar a qualidade do produto por ela oferecido e,
consequentemente, o lucro adquirido. Para tanto, ela tinha
organizado uma noite especial: a Noite das Virgens.
Todos os membros da Boate da Vila de Deus, pois era necessário
ser membro (com nome em lista e tudo mais) para saber
informações sobre ela, receberam a noticia da tal noite. Eu, que
já namorava com a Filha do Prefeito e dormia com a
Funcionária, a recebi com pouco entusiasmo, mas ao ficar
sabendo que até o Governador do Estado iria aparecer, não
pude deixar de comparecer.
Na tal noite, estávamos todos lá. O Prefeito, o Delegado e o
Empresário estava em uma mesa especial numa sala isolada com
o Governador e outros detentores de altos cargos públicos. Eu,
que não podia me aproximar, pois eu sabia que os Três Grandes
da Vila de Deus tinham uma rixa comigo, principalmente o
Prefeito que era contra o meu namoro com a sua filha, fiquei
numa outra mesa junto a outros juízes e delegados que, como
eu, não estavam tão interessados em fazer a lei funcionar (eram
tantos quantos os que se pode contar, embora nem todos
tivessem prestigio suficiente para frequentar a Boate da Vila de
Deus). Enquanto conversávamos e esperávamos a surpresa da
noite, as garotas de sempre iam servido bebidas e entretendo os
mais solitários. Claro que não aconteciam urgias, pois éramos
homens por demais civilizados e formais; nada de mulheres
dançando em ferros, nem músicas insinuantes em alto volume,
nem mulheres andando nuas pelos cômodos. A formalidade
estava em nosso sangue, junto com toda a burocracia e toda a
lentidão que acompanham os homens públicos. O máximo que
elas faziam era sentar-se conosco e nos divertir com alguma
conversa besta enquanto não as levávamos para os quartos.
Com o decorrer da noite, a Amante do Delegado anunciou que
teríamos um leilão naquela noite. Em seguida as peças a serem
leiloadas foram dispostas em fila diante de nós. Eu, em
decorrência não da minha humanidade, mas sim da minha
exatidão e por causa das minhas filosofias de eterno crítico,
poderia dizer que na verdade "meninas foram dispostas em fila
diante de nós", mas para muitos deles eram apenas peças a
serem leiloadas (para mim também, de certo modo um pouco
diferente). Eram meninas simples, notava-se isto
instantaneamente, provavelmente de famílias podres da zona
rural. Provavelmente alguém tinha lhes prometido que seriam
modelos famosas, e acabaram sendo trazidas para a Boate, como
acontece com tantas outras. Eram meninas inocentes, a maioria
entre quatorze a quinze anos, e todas virgens segundo a Amante
do Prefeito; não por muito tempo.
O leilão começou rapidamente e com lances altos. O
Governador, que tinha preferência sobre nós, deu o primeiro
lance e ninguém se pronunciou contra. Depois dele, cada um,
segundo o cargo e não segundo o dinheiro que podia pagar, foi
simplesmente escolhendo a sua garota e dando um lance
qualquer. De fato eu poderia dizer que era um leilão comum,
mas sim um leilão de influência; ganhava quem tivesse maior
cargo. Acontecia muito disso em todo o canto do país. O meu
cargo também foi suficiente para uma delas naquela noite, e
assim todos foram para os quartos.
Notei naquela noite que os outros também faziam mais ou
menos as mesmas coisas que eu. Não acredito que eles se
afetavam tanto com problemas alheios como eu, o que em mim
era muito forte por causa da minha filosofia de ser consciente
em tudo. A maioria deles, possivelmente, nem achava que
estava cometendo pecados imperdoáveis; para eles aquilo era
normal. Isto era a diferença entre eles e mim: eu tinha plena
consciência dos meus pecados e de que eles nunca poderiam ser
perdoados (dificilmente eu pediria perdão por eles de qualquer
maneira), enquanto eles estavam "desculpados" porque eram
apenas personagens fracos de um sistema que se deixavam levar
por ele. Todos usufruíamos dos piores pecados da humanidade,
eu porque os desejava e buscava, eles porque não os evitavam
nem os combatiam. Estávamos todos praticando a mesma arte
da Superumanidade, embora eles a fizessem sem consciência e
de forma amadora. Mas o importante era que todos ficavam
felizes no final: eles do seu jeito, eu do meu.
XVIII O Colega
(...) o Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o
Deus de Isaque, e o Deus de Jacó, me apareceu, dizendo: Em
verdade vos tenho visitado (...). Êxodo 3:16
(...) Vi o Senhor assentado no seu trono, e todo o exército
do céu estava junto a ele, à sua direita e à sua esquerda. I
Reis 22:19
Hoje é um belo dia de novembro. Faz mesmo muito calor, mas
em casas como a minha, que tem ar-condicionado, isso não faz
a menor diferença. Às vezes me pergunto como é que suportam
essa calor os que moram em casas mais simples, ou em
barracos. Mas só às vezes, pois tenho outras coisas mais
urgentes para pensar.
Já se passaram um mês e dois dias desde que eu recebi a noticia
de minha morte. O caso já foi completamente aceito, e até me
acostumei com a ideia (se é que se pode acostumar com ideias
assim). Tive algumas crises que quase me fizeram sentar no
chão para descansar, mas pude contorná-las e suportá-las bem,
e nenhuma pessoa de minha família ou do trabalho suspeita que
eu esteja perdendo a saúde.
Na manhã deste dia recebi uma ligação de um amigo de
faculdade que há muito tempo não via. O Colega iria passar o
dia na Vila de Deus por causa de negócios e queria que nos
encontrássemos para relembrarmos os velhos tempos. Não sei
porque fiquei feliz em ouvir a noticia, era como se algo me
forçasse a achar a ideia bastante agradável.
Combinamos um lugar, um bar pouco movimentado que ficava
atrás de uma escola da Vila de Deus. Eu fui o primeiro a
aparecer, mas ele entrou logo em seguida, como se estivesse
apenas esperando que eu entrasse para entrar também. Usava
um terno preto com uma camisa vermelha, exatamente como
Marilyn Manson no Deadtothe World, e parecia muito
confiante e muito bem de vida.
- Bem! Não é como o nosso lugar, mas é parecido. Falei com ele,
mostrando com as mãos que eu tinha pedido para nos porem
numa mesa redonda.
- É parecido, mas só falta um detalhe... Ele me respondeu,
colocando uma maçã de plástico no centro da mesa.
Rimos ambos. Era curioso essa sensação de relembrar o
passado. Por que era tão boa? Talvez porque, depois que os anos
vão passando, vamos perdendo os sonhos da juventude, e ao
relembrá-los, nos sentimos mais normais, e menos
humanizados. Eu pelo menos tinha perdido quase todos os
sonhos daquele tempo, substituindo-os por outros sonhos
simples e com uma importância estratégia que os tornava
mesquinhos. Mas seja lá como for, a sensação era melhor e mais
embriagante que o álcool.
- Por onde anda o Outro? Continuei, perguntando.
- A última vez que eu ouvi a respeito dele, ele tinha recebido
uma proposta de trabalho nos EUA, por causa de um livro que
escreveu em inglês... lembra daquela mania dele de escrever em
inglês e esperanto?
- Claro, às vezes ele passava horas traduzindo os próprios textos.
- Pois é, um diretor de uma colégio em Little Rock gostou e
propôs para ele trabalho. Parte amanhã para lá.
- Que bom pra ele, fico muito feliz. Mas é você?
- Eu o quê?
- Como você está, como anda de carreira, de vida?
- Ah, sim... está tudo as mil maravilhas... multiplico meus
negócios e meu dinheiro como Jesus multiplicava os peixes (só
que eu faço melhor)... sou um deus agora... olha lá – e apontou
para um carro importado (modelo Ferrari) que estava
estacionado do lado de fora – é o meu bebê.
- Um! Estou vendo.
- E você, está tudo bem?
- Tudo as mil maravilhas. Não sou um pobre, embora não seja
tão rico como você, mas estou muito bem.
- Sempre mentindo, não é amigo? Está pelo menos
aproveitando bem os últimos meses – como o desgraçado sabia
daquilo. É necessário pelo menos fazer os preparativos corretos.
- Como sabe que estou doente.
- Ah, amigo, por favor, pra cima de mim não. Estudávamos a
Maçã de Sodoma toda sexta juntos... e você ainda acha que eu
não sei reconhecer quando uma pessoa está mentindo. Posso ler
na sua mente. Além do mais, eu já lhe disse que eu sou um
deus, eu sei de tudo – essas últimas palavras foram em tom
jocoso, não entendi porque.
Parei, naquele momento, como o teatro que eu sempre fazia
com os outros. Não sabia porque, mas nada daquilo ia funcionar
com o Colega. Contei coisas da minha vida a ele, sempre
tentando deixar de lado algumas coisas, mas uma força maior
me puxava e acabei lhe dizendo todo o plano que eu tinha feito
para meus últimos momentos.
- Acha que vai funcionar? Perguntei a opinião dele.
- Oh, caro amigo, você sabe muito bem, mais do que eu até, que
vai. E, eu sei que minha opinião não é importante, mas acho que
é um plano bem bolado, digno de entrar para a História,
embora isso nunca vá acontecer. Mas você compreende que essa
última mentira te levará para um único lugar, não é?
- Eu sei. Vai estar lá?
- Serei um dos primeiros a te dar as boas vindas! E não disse
mais nada.
XIX Debate
(...) para advertires a alguns que não ensinassem doutrina
diversa, nem se preocupassem com fábulas ou genealogias
intermináveis (....). I Timóteo 1:4
Mas evita questões tolas, genealogias, contendas e debates
a certa da lei; porque são coisas inúteis e vãs. Tito 3:9
Ah, o Direito. Quanto devo a ele pela vida que eu tenho. Sempre
achei que ela era uma maquina de fazer hipócritas. Tinha essa
opinião por causa de todas as leis que nunca saem do papel, por
causa de toda burocracia que amarram os praticantes dela, e por
tantos outros motivos que tornam os “cumpridores das leis”
seres dispostos ou capazes apenas, na melhor das hipóteses, a
fazer “suas partes”. E como acho que fazer “sua parte” é bonito,
mas insuficiente, não mudei ainda de opinião. Pensei, nos meus
tempos de faculdade, que eu poderia fazer a diferença, mas
acabei me enganando e me tornando o pior dos hipócritas
(embora isso já não me aborreça tanto).
Lembro-me de um dos meus dias de aula como se ele estivesse
acontecendo hoje. A aula continuava no segundo horário com
seus debates calorosos. Mas isso é uma das mais marcantes
características da juventude. O professor, que apoiava uma das
pernas em uma das cadeiras, olhando com um ar estranho para
a turma que discutia. Mostrava um sorriso leve no rosto, que
tenta disfarça, enquanto observava o empenho os alunos.
Para fugir dessas aulas nas quais os alunos têm que ler livros de
linguagem e ideias tão complexas que provavelmente
confundiam até seus autores, preferiu ele fazer uma aula
diferente, escolhendo um tema qualquer para seus alunos
debaterem.
O tema escolhido fora a violência. E outro melhor não poderia
ter sido apresentado. Tão logo o professor tinha terminado de
falar, levantou-se uma aluna indignada a criticar o descaso com
a violência. Tal descaso tinha ultrapassado aos limites
aceitáveis, ela argumentava, tinha chegado a hora de uma ação
mais rápida. As leis, adicionava ela, deveriam ser mudadas (e
provavelmente disse isso porque não sabia mais o que dizer,
pois é costume de nossa gente por a culpa nas leis), elas
deveriam ser endurecidas para que não houvesse mais brechas
no código que pudessem ser usadas para defender criminosos. A
força policial deveria ser aumentada e melhorada através de
treinamento e armamentos novos para que bandidos, como o
que a tinha roubado na semana passada, fossem pegos e
punidos. Daí então ela veio com a história do roubo que sofrera,
elevando em vários pontos da narrativa o tom de voz e
mostrando uma indignação e raiva que provavelmente afetavam
seu julgamento (e isso ela negaria veementemente). Continuou
o monologo até ser interrompida por um dos alunos religiosos
da sala.
Esse, por sua vez, iniciou sua argumentação muito bem. Falou
da educação, discriminação social, falta de oportunidade na vida
das pessoas que praticavam os crimes, entre outras, mas falou
tão sem detalhamento que muitos concordariam que ele apenas
introduzira os fatores, como quem joga os dados em uma roleta.
Falava sem paixão, como quem apenas abre caminho na mesa
para jogar-lhe em cima um prato maior. E quase jogou. Foi
impedido pelos outros alunos quando ia começar a falar que
somente o Senhor poderia salvar a terra. Ficou, então, irritado
com a interrupção e se resignou a ficar no seu canto e a chamar-
lhes incrédulos e a ruminar a raiva que a muito disfarçava no
peito. Não havia problema, pensava, aqueles incrédulos haviam
de queimar no inferno.
Já nesse ponto o pequeno debate tinha ganho ares de discussão.
Os alunos falavam entre si desordenadamente, mas
aparentavam estar tratando do mesmo tema. De quando em
quando, entre as experiências contadas com entusiasmo
(geralmente as experiências dos outros) aparecia um nome de
lugar ou de pessoa que reavivava certas memórias, então o
assunto era, sem problemas, desviado para aquela festa com
aquele gato ou gata que tinha sido muito legal.
De quando em quando um aluno se dirigia ao professor e
perguntava aquela opinião daquele autor antigo ou moderno. O
professor, então, tirava a perna da cadeira e soltava o sorriso a
mostrar seu grande conhecimento das grandes ideias que se
tiram da imensa floresta negra de letras. E assim uma ideia de
100 a 1000 anos era retomada, reanimada, redestrinchada e
reafirmada.
As abordagens dos fatos do cotidiano, com exemplos trágicos,
eram tratadas com o calor típico da juventude, e ninguém que
passasse em frente a sala poderia dizer que não. O capitalismo
logo surgiu na briga. E ele foi esmurrado, chicoteado e depois
amaldiçoado por alguém que não usou bem essa palavra.
Recebeu, como sempre, a culpa de tudo, e o teriam culpado
também de ter sido o responsável pela queda de Adam e Eva, se
as datas não os impedissem. Globalização também entrou no
ringue que se formava, mas sofreu menos do que seu colega. É
que fica difícil atacar algo que é difícil de ser nomeado ou
entendido com exatidão.
A política foi a seguinte a subir às cordas, e essa foi a que tomou
mais o tempo deles. Entre todas as opiniões políticas misturadas
com todas aquelas siglas inúteis que se misturavam com todas
as infinitas criticas que faziam, via-se um coquetel político que
fedia a desordem, de tudo aquilo poder-se-ia tirar uma certeza
deles: se algum daqueles alunos fosse eleito presidente iria
mudar o pais com a ajuda do povo (ou seriam simplesmente,
que é mais provável, como todos os outros... mas claro que isso
eles nunca admitiriam).
A tal ponto chegou o debate que eles iam começar a discutir as
razões do existir humano. E qualquer filosofo da antiguidade se
sentiria honrado em participar de uma sala de debates com
membros tão interessados. Iam começar a discutir os grandes
temas universais, mas foram interrompidos pelo sino que
avisava o fim da última aula da noite.
O professor, realizado com o sucesso que aquela aula tinha
conseguido e já pensando num novo tema, via os alunos
arrumarem as coisas, ainda a resmungar retalhos remanescestes
do resto que ainda persistia do debate, apáticos à indiferença do
resto do mundo e deles.
Todos, aquela noite, saíram da sala com a certeza de que,
qualquer que fosse a solução para a violência e para todos os
outros problemas que tinham discutido, algo deveria ser feito
imediatamente a respeito. E saíram cada um para o seu canto
(uns para o bar, outros para as festas ou casas de suas
namoradas, e outros simplesmente para suas casa assistir a teve)
com uma leve e murcha ansiedade pela próxima aula na qual
poderiam, talvez, discutir o tema novamente.
XX Brincando com os problemas
O Senhor é homem de guerra; Senhor é seu nome. – Êxodo
15:3
Vede agora que Eu sou, Eu somente, e mais nenhum Deus
além de mim; eu mato (...); eu firo (...); e não há quem possa
livrar alguém da minha mão. (...) Embriagarei as minhas
setas com sangue (a minha espada comerá carne), do
sangue dos mortos e dos prisioneiros das cabeças
cabeludas do inimigo. Deuteronômio 32:39,42.
Ele [o Senhor] adestrou as minhas mãos para o combate, de
sorte que os meus braços vergaram o arco de bronze.
Salmos 18:34.
Disse o Senhor: De Basã os farei voltar, fá-los-ei tornar das
profundezas do mar, para que banhes o teu pé em sangue, e
a língua dos teus cães tenham o seu quinhão dos inimigos.
Salmos 68:22,23
Tinham passado alguns meses desde o incidente com a
Funcionária. Nunca mais a tinha visto ou procurado, e fiquei de
certo modo aliviado porque ela não tentou o mesmo. De
repente, então, me bateu aquela velha sensação, que a gente
tem quanto tudo está dando certo, de que tudo vai continuar
dando certo. Minha carreira ia de vento em poupa, os negócios
com o Ladrão de Cargas também prosperavam, e meu namoro
com a Filha do Prefeito, embora não fosse um dos mais
cinematográficos, ia bem.
O Prefeito continuava ajudando para esse último item da minha
felicidade, embora tivesse passado a implicar menos comigo.
Um dia desses até me convidou para jantar na sua casa, e eu
estranhei como ele conseguiu me tratar bem. Pessoalmente,
quase cheguei a achar que ele tinha me aceitado, mas em
conversa particular (no meu escritório) ele mostrou bem o que
pretendia.
- Vamos lá Doutor. Vamos parar de teatro e partir para o que
interessa. Eu conheço o seu tipo. Sei por que você está se
envolvendo com minha filha, e admito que você está fazendo
um bom trabalho, você é o primeiro que passa mais de dois
meses com ela. Acontece que ela é minha filha, o meu maior
tesouro, e não vou deixar que você brinque com ela. Vamos lá,
podemos fazer um acordo.
- Eu não sei do que o senhor está falando doutor. Claro que eu
sabia a respeito do que ele estava falando, mas manter aquele
teatro era exatamente o que eu queria, pois ele me seria
bastante útil para o que eu ia fazer.
- Já disse para parar com a besteira. Vamos lá, que apoio para
alguma candidatura. Posso fazer isso, tenho influencia, posso
tornar você um dos homens mais ricos do estado...
- Eu já sou o homem mais rico, senhor, porque estou com a sua
filha... aquilo foi a coisa mais melosa que eu tinha dito em anos,
e me doeu um pouco na consciência dizê-lo, mas só um
pouquinho de nada.
- Qual é! Vamos ser adultos. Pare com esse joginho com minha
filha. Estou tentando ser generoso com você... mas olha aqui,
menino... posso arruinar sua vida se eu quiser...
- Assim o senhor me ofende. Espero que pense melhor no que
está fazendo, pois ameaçar as pessoas é uma coisa errada...
Já tinha ouvido o suficiente. Sai tentando parecer o mais irritado
possível, e me vendo daquele jeito a Filha do Prefeito logo veio
atrás de mim para saber o que tinha acontecido.
O Prefeito ficou sem saber o que fazer. Ele tinha planejado para
mim uma armadilha que não deu certo. Estava gravando nossas
conversas (era tão amador que mexeu duas vezes no bolso para
conferi se o aparelho estava na posição certa) e esperava que
com aquelas propostas pudesse me fazer falar alguma coisa que
pudesse ser usada contra mim.
Era um bom plano, se ele o tivesse tentado com outro ser
humano qualquer. Ele contava com meu ego, que iria me fazer
me vangloriar do meu sucesso para vangloriar a mim mesmo,
como a maioria dos burros o fazem. Acontecia que eu não tinha
ego, era um erro que eu não podia cometer, não naquele
momento. As pessoas se entregam pelo que elas falam. Nossos
pecados não devem ser contados nem para Deus, nem para o
nosso maior amor, para que ninguém possa usá-los contra nós.
Era um bom plano. O que o prefeito não esperava, talvez fosse
que eu também tinha levado um gravador, e que diferente dele,
não hesitaria nem um minuto em usar o bom material que eu
tinha conseguido com a conversa.
- Bem! Por que você está desse jeito? O que aconteceu? A Filha
do Prefeito me interrogava, preocupada.
- Não foi nada! É melhor eu não falar sobre isso.
Essa é uma das melhores partes. O dialogo deve ser bem
planejado para surtir o efeito desejado (se ainda não o consegue,
com um pouco de treinamento verá que é bem fácil, leitor). Essa
última frase era uma das mais importantes, e merece ser
analisada melhor. O “não foi nada” deve ser dito com emoção.
Se fosse simplesmente diz “não foi nada”, como quem conseguiu
colocar uma linha num buraco de agulha, a pessoa para quem
alguém se está falando provavelmente não continuará querendo
saber. Porém, se se diz “não foi nada”, com um olhar
preocupado do mesmo modo que alguém diria a uma criança
“não foi nada” se tivesse levado um tiro no pulmão, para não
assustá-la, a pessoa que está ao lado irá de qualquer maneira
querer saber o que está acontecendo. É inevitável, meche com o
íntimo dos outros, e eu nunca vi falhar. Já a “é melhor eu não
falar sobre isso” é o toque final, como o glacê no bolo de
aniversario, como os fogos de artifício no fim do ano. Isso é
praticamente a mesma coisa de apontar uma arma para a cabeça
da pessoa que está do lado e obrigá-la a perguntar. Mexe não só
com a curiosidade, mas também com a ideia de liberdade. É
como se elas pensassem “ele não quer me contar para me
proteger” e então vem o pensamento de “eu já sou bem
grandinha(o) posso me virar sozinha(o)”.
A Filha do Prefeito simplesmente segurou firme a minha mão, e
com uma voz mais firme ainda disse alto e claramente: “Seja lá o
que for, eu quero saber.” Claro que eu podia continuar com a
retórica dizendo, quem sabe, que era melhor para ela não ouvir
aquilo, que eu estava tentando protegê-la, que eu não queria
magoá-la, que eu podia lidar com o problema sozinho, blah,
blah, blah, blah... Mas a firmeza dela me mostrou que não era
necessário. Coloquei a fita do gravador para tocar sem qualquer
piedade do prefeito, e apenas esperei o resultado.
Será que alguém quer saber o resultado? Na minha opinião não
quer, afinal já deve imaginá-lo. Os fatos são claros, e a
conclusão é lógica. Mas como a maioria das pessoas não querem
usar a lógica sempre, pois não suportariam usá-la sempre... O
fato é que alguém provavelmente já deve imaginar mais ou
menos o resultado (no mínimo), mas não o suporta, e por isso
deve está tentando se livrar da solução pondo dúvidas e
esperanças que são inúteis (exatamente como as pessoas fazem
com o problema das guerras, das fomes, das doenças, da
violência, da miséria, da religião, etc.).
Mas de qualquer maneira... o resultado foi que ela veio, no
mesmo dia, morar comigo. Teve uma briga enorme com o pai, e
o prefeitozinho nem para entender que eu já o tinha fundado
até a testa, e que quanto mais ele brigava mais eu ia ter que
consolar a sua filha. E é por isso que a briga deve ter sido bem
grande, pois eu passei a noite toda consolando-a (daquele
jeitinho todo especial).
Assim foi o modo que eu encontrei para resolver o problema
afetivo ou, pelo menos, jogá-lo de lado, exatamente como os
gatos fazem, brincando, com suas bolas de lã. Mas, é como
dizem, quando alguém afasta um problema, este empurra outro
para perto. Pois com minha manobra, eu tinha ganhado um
inimigo, o Prefeito, e consequentemente mais dois: o Delegado
e o Empresário.
O Delegado já tinha uma rixa comigo. Estava com inveja do
meu sucesso e queria tomar conta do meu negócio. Para tal,
tinha colocado investigadores nas minhas coisas. Agentes
chegaram a me seguir na rua, mas como eram amadores, eu
sempre me safava. Talvez tivesse sido mais simples, para o
Delegado, se ele tivesse simplesmente me denunciado para a
polícia federal; eu teria acabado na cadeira de um jeito ou de
outro. Mas não, o que ele queria não era fazer justiça (quem
seria burro de ter essa ideia?), o que ele, ou melhor, eles, o
Prefeito, ele e o Empresário queriam era o meu negócio.
Para isso, sabiam que teriam que tentar bastante. Acabei, por
fraqueza da minha parte, deixando que eles tentassem. Eu não
queria entrar numa guerra particular, isso para mim ainda era
“errado”. Entretanto, o Delegado acabou me forçando a entrar
na guerra (pior para ele!).
Vendo que não tinha conseguido arranjar provas contra mim, e
depois que eu passei a perna no prefeito, os Grandes da Vila de
Deus tinham resolvido que não me queriam mais no mundo. E
eu soube disso da pior maneira possível, na tentativa de me
matar, o assassino falhou, e eu consegui escapar. Aquele erro
ainda ia custar muito caro aos Grandes da Vila de Deus.
Um mês depois, estávamos reunidos, eu o Ladrão de Cargas e o
resto da gang, para planejar o contra-ataque.
O Ladrão de Cargas, e o resto do pessoal, sendo mais da barra
pesada, e desse modo menos propensos a avaliar a situação
racionalmente, eram de acordo que eu deveria combater fogo
com fogo. Contratar um assassino e matar a todos eles.
Expliquei-lhes que eu estava com vontade de matá-los. Até o
momento eu tinha tentado ser bonzinho, mas eles atentaram
contra a minha vida, e isso eu não podia deixar barato. O
problema era que os matar não adiantava nada. Eles eram mais
fortes do que nós, não em armamento ou habilidades, mas em
influencia, e isso, para o mundo, é o que importa. Se eu
mandasse matar o Delegado, estava assinando minha sentença
de culpa, e seria apenas necessário esperar até que um monte de
guardinhas viessem a minha porta para me prender. Era igual
para o Prefeito e para o Empresário. Eles eram pessoas
influentes e podiam acabar com a nossa carreira facilmente.
O que era necessário (eu continuava dizendo para eles) era um
tratamento de choque. Você pode fazer uma guerra sem dar um
tiro, basta saber como. Imagine que alguém tivesse que
enfrentar um grupo de pessoas muito supersticiosas (como
essas que acreditam em magia, mal olhado, etc.), mas que são
bastante religiosos: o pior seria destruir suas igrejas, pois
ficariam furiosos e viriam mais rápido em contra-ataque; a
melhor estratégia seria, então, usar essa superstição contra eles,
assustando-os sem provocá-los. Imagine que alguém tivesse que
enfrentar alguns bandidos, que não gostam de praticar
crueldades: praticar crueldade só com um deles, e de uma
maneira leve, seria imprudente, pois isso os irritaria e os
acostumaria a fazer crueldade, tornando-os iguais ao oponente;
o mais adequado seria praticar uma enorme crueldade com
todos. Uma crueldade tão grande que eles mal conseguiriam
dormir a noite. Esse era meu plano.
O ataque contra o Delegado aconteceu uma semana depois da
nossa reunião. Não fora difícil convencer os membros da gang a
fazer o trabalho, pois eram muito supersticiosos e conscientes
(as piores qualidades em um bandido, se alguém estiver
querendo que eles trabalhem direito). Eu sabia que iria
funcionar com o Delegado, porque ele era meio religioso, mas
eu também sabia que o plano funcionaria com qualquer um dos
outros. Acontecia apenas que as circunstancias me tinham feito
escolher o Delegado: não queria fazer aquela coisa com o pai da
minha garota, era muito ariscado, e eu poderia acabar causando
um trauma nela também; e eu não tinha informações suficientes
sobre o Empresário para ter certeza se ele servia para ser vitima.
No dia do ataque, como planejado, meus homens entraram na
casa dele vestindo roupas pretas com capuz em forma de conte
(eu, neste momento, estava com a Filha do Prefeito num dos
clubes mais movimentados da capital, para fazer álibi). Eles
realizaram tudo como eu tinha planejado. Eles entraram e
renderam o Delegado, que implorava para que eles não fizessem
nada com sua família. Então o amarraram e amordaçaram-no,
mas deixando os olhos bem livres para ver tudo, e foram para os
quartos da filha e da esposa dele. A Filha do Delegado tinha 15
anos e a sua esposa era uma bela morena de uns 30 e poucos
anos, e aposto que o delegado ficou desesperado quando viu
meus homens carregando as duas para fora. Eu tinha dado
ordens especiais de como eles deveriam tratar as duas: eles
deveriam primeiro e rapidamente ir para o quarto da filha, e
deveriam fazê-la desmaiar com clorofórmio; então deveriam ir
até o quarto da esposa e, tentando ao máximo não bater nela
(era minha ordem direta), deveriam também fazê-la desmaiar,
tirar toda a roupa dela e lhes amarrar como se amarrar aquelas
mulheres sados-masoquistas, então deveriam fazer uma cruz
vermelha na testa (de cabeça para baixo) e levá-la para o quarto
da filha; então, no quarto da filha, fariam o mesmo com a
garota, só que dessa fez deveriam fazer cruzes nos seios e no
ventre da garota. Então, deveriam levar os três para uma cabana
escondida onde o resto do plano deveria ser executado.
O plano era muito cruel mesmo, eu sei, principalmente porque
meus homens, durante a abordagem, recitavam umas frases em
inglês que pareciam satânicas. Na verdade não eram satânicas,
era apenas a música Debil Metal de Mamonas Assassinas, que é
bem engraçada por sinal, mas eles não precisavam saber. Tanta
crueldade não era porque eu queria exatamente, não era isso,
fazer aquele tipo de coisa era muito perigoso, se eu fosse pego,
nunca mais seria considerado “gente” de novo. Mas tal era
necessário, pois eu queria que o Delegado saísse de uma vez por
todas da minha vida, sem matá-lo, para que ele nunca mais
pensasse em mim de novo.
Na cabana eles terminaram o serviço. Torturaram o Delegado
física e psicologicamente, principalmente psicologicamente. As
filhas foram colocadas em um quarto especial, para onde foram
dois de meus homens. Minhas ordens eram claras, quando eles
entrassem no quarto, deveriam desamarrá-las e cobri-las
imediatamente e mantê-las dopadas, então iriam simular sons
de rituais satânicos entre outros menos necessários de
descrição. Esse era o toque principal, pois o Delegado já tinha
apanhado muito na vida e mais aquela surrinha não iria fazê-lo
endoidar, por isso eu preparei a tortura psicológica: a mulher e a
filha.
E foi assim que eu conseguir fazer a tortura psicológica,
tornando aquela cabana um ambiente bem desumano. A ação
com toda a certeza iria se tornar um de meus mais cruéis
pecados na Vila de Deus até aquele momento, e com certeza
aquele iria me mandar para o inferno, pois minha lista de
pecados já era bem grande. Mas quero esclarecer uma coisa
antes de mais nada, sou culpado, e não nego, de torturar o
Delegado, mas não de violar a Filha e a Mulher dele. Minhas
ordens eram claras, as duas deveriam ficar desacordadas todo o
tempo, para que os danos psicológicos fossem os menores
possíveis.
Por esse tempo, eu já estava a uns poucos quilômetros da Vila
de Deus, num carro com a Filha do Prefeito. Então eu inventei
uma desculpa qualquer fui direto para a casa do delegado, que
ficava nos arredores da cidade, como todas as casas das pessoas
importantes. Claro que eu sabia o que eu ia encontrar lá e o que
eu não ia, mas nenhuma pessoa do mundo diria que eu sabia: a
casa estava arrombada e não havia ninguém lá dentro. Fui o
mais rápido que meu carro conseguia até a delegacia, o que
assustou a Filha do Prefeito, ligando antes para avisar que a casa
do Delegado fora assaltada e que provavelmente o Delegado e
sua família tinham sido sequestrados. Quando cheguei lá, deixei
claro que eu queria mobilização total para achar o delegado...
“entrem em qualquer casa”... deixei claro. Era perigoso, você
pode pensar, pois eu era que tinha dado a ordem para fazer o
crime, mas não naquelas circunstâncias.
Os policiais saíram logo depois, e logo depois que eles saíram,
dei por telefone a ordem para que meus homens abandonassem
a cabana. O Delegado foi achado já pela madrugada, e levado
direto ao hospital, com a mulher e a filha, que estavam ainda
desacordadas.
Eu podia ter entrado em graves problemas depois que o
delegado foi achado, mas isso não aconteceu. Como o caso era
muito bizarro, e envolvia satanismo, e era com uma autoridade,
evitou-se deixar a história cair na impressa. As buscas pelos
culpados prosseguiram apenas por mais dois dias, que foi
quando o Delegado mandou encerrá-las. Ele também tinha
mandado que nenhum exame fosse feito na filha e na mulher,
para não constrangê-las ainda mais, e nem comentou o que
“aconteceu” com elas ou com ninguém. Estava muito
traumatizado, e a única coisa que queria fazer era agradecer a
Deus, o “onipotente senhor dos céus e da terra, e o nosso
santíssimo senhor Jesus Cristo de Nazaré” (como eu mesmo o
ouvir dizer várias vezes depois). E foi isso mesmo que ele fez,
duas semanas depois largou o emprego de delegado e se tornou
membro da principal igreja evangélica da Vila de Deus,
arrastando, claro, para aquela vida, a mulher e a filha. As duas
odiavam aquela vida religiosa (a teriam amado, se eu não as
tivesse poupado do trauma), mas foram forçadas a aceitar todos
os ritos, pois o Delegado era o chefe da família, e não existe um
religioso na terra que pergunte antes a sua família se ela quer
aceitar o deus dele, ele simplesmente o impõem, pois essa é a
coisa certa a fazer.
XXI Um ótimo jeito de se conseguir um
álibi
Seja bendito o teu manancial, e alegra-te com a mulher da
tua mocidade, corça de amores, e gazela graciosa. Saciem-
te os seus seios em todo o tempo; e embriaga-te sempre
com as suas carícias. Provérbios 5:18,19
Vem, embriaguemo-nos com as delícias do amor, até pela
manhã; gozemos amores. Provérbios 7:18
Antes de continuar, e necessário contar as coisas que
aconteceram na capital comigo e com a filha do prefeito,
enquanto eu forjava o álibi, pois elas mudariam muito minha
vida, e me definiriam como um novo homem.
Eu e a filha do Prefeito tínhamos tido uma briga na noite
passada, por causa da qual ela até saiu de casa e foi para uma
pousada. Briga besta, coisa de mulher. De algum modo ela tinha
descoberto que eu tinha mentido para ela, e ficou muito
irritada. Eu fiquei doido tentando ligar para ela para pedir
desculpas e me explicar, para que pudéssemos voltar ao que era
antes, até que ela resolveu atender uma das ligações (a 13ª por
sinal) e aceitou conversar sobre o assunto comigo.
Eu sabia que as coisas estavam complicadas. A Filha do Prefeito
era como um pássaro na gaiola, que por qualquer brecha escapa.
Ela era muito revoltada, e a nossa relação não era tão forte, por
isso mesmo eu sabia que se eu não fizesse nada a respeito, ela
rapidamente me esqueceria e voltaria para a casa do pai. Por
isso planejei tudo.
O jantar no melhor restaurante da capital era ponto secundário
do plano. Eu conhecia a Filha do Prefeito Muito bem. Era uma
patricinha que tinha sido acostumada a vida inteira com luxo.
Uma das coisas que ela mais amava, embora inconscientemente,
era o dinheiro. Ela adorava sentar num banco de carro
importado, e adorava cobrir a pele com a melhor maquiagem e
os melhores perfumes das lojas. Passava horas no salão de
beleza (só eu sei o quanto me custou para manter aquilo
enquanto ela estava vivendo na minha casa). E não é bom
pensar que ela iria admitir aquilo, mas só para se ter uma ideia
de como era inconsciente que ela fazia aquelas coisas, dou mais
uma prova: ela nunca tinha namorado com alguém que não
tivesse um carro zero.
A parte principal do plano era tornar a noite a mais especial
possível. Fui cavalheiro, jurei mil vezes o meu amor a ela, e
mentir bastante, dizendo que nunca mais mentiria para ela na
vida. Ela se deixou levar. Essa, pessoalmente, é uma das
melhores características das mulheres, e é a que eu mais amo:
elas criam uma espécie de ligação, e transformam essa ligação
em algo quase sagrado, que é bem difícil de ser quebrado. Esse é
o motivo principal que faz as mulheres não largarem os maridos
que batem nelas, que as faz perdoar-nos quando as traímos,
mesmo quando elas dizem que traição é uma coisa imperdoável,
e assim por diante. E se deixando levar pelas palavrinhas doces
que eu ia inventando (todo o homem vira poeta nessas horas),
ela foi se deixando tocar, se deixando aproximar, – tudo sempre
bem lento, que é o que as mulheres chamam de “se fazer de
difícil”, que é para valorizar a mercadoria – se deixando abraçar,
se deixando beijar... e depois de um tempinho, eu já estava com
a mão dentro da calça dela (debaixo da mesa, claro) e com ela
me pedindo para parar, bem daquele jeito que todo o homem
sabe, uma voz suave e sem muita decisão: “Para! Para! Para!” (as
mulheres sempre fazem isso, mas nunca se lembram de tirar a
nossa mão do lugar).
Para comemorar pedi umas bebidas especiais, coisa que eu não
fazia a bastante tempo, pois eu vinha evitando beber na frente
dela porque eu sabia que ela tinha problema com bebida (ela
sempre exagerava). Dessa vez eu nem liguei para isso. E fomos
terminar nossa comemoração num motel, onde bebemos mais.
Meu plano corria perfeitamente bem. Muito bêbada, nem ligou
quando eu não coloquei um preservativo. Fiz de propósito, pois
sabia que ela detestava usar pílulas anticoncepcionais. É claro
que eu podia ter usado qualquer outro método
anticoncepcional (era obrigação minha, pois eu quase não
estava bêbado, eu tinha fingido que bebia), mas eu não queria.
Queria um filho, e fiz de tudo para que ele fosse feito naquela
noite (fizemos amor naquele dia 3 vezes seguidas).
E foi assim aquele dia na capital. Se eu tivesse sorte, teria
conseguido fecundar a Filha do Prefeito, e quando ela
descobrisse, nos casaríamos, e viveríamos felizes para sempre.
XXII O novo e único grande da Vila de
Deus
Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e as
extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro
as regerás, e as despedaçarás como um vaso de oleiro.
Salmos 2:8,9
Vinde, filhos, e escutai-me; eu vos ensinarei o temor do
Senhor. Salmos 34:11
Sejam confundidos e cobertos de vexame os que buscam
tirar-me a vida; retrocedam, e sejam envergonhados os que
tramam contra mim. Salmos 35:4
Tudo estava resolvido com aquela pequena ação, e os resultados
tinham sido bem melhores do que eu esperava.
Exatamente no dia em que o Delegado decidiu abandonar o
trabalho e virar protestante, recebi a visita do Prefeito e do
Empresário. Eles estavam muito assustados. Entraram na minha
sala como se entrassem na própria sala do diabo. Olharam
preocupados um para o outro, como se quisessem dizer “fala
você... não fala você... não fala você...”. Eu pude ler esses
pensamentos nos olhos dos pobres coitados, que perduraram
por alguns segundos. A cena era divertida, mas era repetitiva, e
isso a tornava chata, por isso eu mesmo fui direto ao assunto.
- Primeiro, por favor meus amigos, será que dava para vocês
colocarem todos os aparelhos eletrônicos na mesa. Disse eu com
a voz mais amigável e doce que eu tinha, como se estivesse
falando com melhores amigos de infância.
Eles obedeceram sem restrição, e até se levantaram para que eu
os revistasse, o que de fato eu fiz. Eles não tinham qualquer
aparelho que pudesse ser usado para gravar aquela conversa.
Não queriam, sabiam que não adiantava. Não estavam ali para
tentar algum contra ataque, estavam para entregar a carta de
rendição total.
- Em primeiro lugar, Prefeito, eu não poderia deixar de
compartilhar minha alegria com o senhor... não temos certeza
ainda, mas acho que eu e sua filha vamos lhe dar um netinho.
O prefeito ouviu aquilo como quem escuta a sentença de morte
da filha. Acho que ele deve ter pensado, “o que eu fiz para
merecer essa maldição sobre minha filha”. De todo modo, não
conseguiu esconder a preocupação. O Empresário não dizia
nada, de fato estavam os dois abalados. O meu ataque contra o
Delegado, do ponto de vista deles, tinha sido algo desumano,
era como se fosse demoníaco, e para ser mais claro, tenho
certeza de que eles achavam que eu tinha feito um pacto com o
diabo, e contra isso eles sabiam que não podiam lutar.
- Vamos gente, eu aqui todo alegre, e vocês com essas caras de
preocupação – continuei, agindo como se não tivesse
acontecido nada e indo para uma parede onde havia uma
garrafa de champanhe e 3 taças – que desfeita é essa. Vamos lá!
Vamos brindar essa alegria imensa e esquecer todos os
problemas do passado. Agora eu posso dizer, senhor prefeito,
que sou um homem realizado. Tenho tudo que quero,
principalmente o amor de sua filha, sou um homem bem
sucedido, e ninguém consegue me parar, ninguém pode se
meter na minha felicidade, pois eu tenho a ajuda de um Deus
muito forte – eu queria que alguém pudesse ter visto a cara dos
dois quando eu disse isso – e agora sua filha vem abençoar todo
o meu sucesso com o fruto do nosso amor. Um filho, um
FILHO!!!!!!!!! Vocês nem tem ideia de como o meu Deus está
sendo generoso comigo – eu provoquei de novo, só para
alimentar mais o medo deles.
Daquele ponto em diante era só eu o rei do pedaço. Os dois
estavam muito assustado para dizer ou fazer qualquer coisa.
Temiam por suas famílias, temiam por suas vidas, e tinham a
certeza de que se me apoiassem e mostrassem que não iriam
fazer nada, eu também não faria.
Eu, por minha vez, continuei com o teatro. Até pedi
oficialmente a mão da Filha do Prefeito ao Prefeito. “Eu sou um
homens de bem, senhor, justo e correto... estou certo de que
posso fazer sua filha feliz... e também sei que você, senhor, vai
dar todo o apoio” eu comentei, e o Prefeito só concordou.
Continuei, também, dizendo que agora, com esse atentado
contra o Delegado, que era necessário nos unirmos, financeira e
socialmente. “Devemos ser amigos, meus caros, principalmente
agora que eu vou entrar para a família de vocês” eu dizia, pois o
Empresário era um primo de segundo ou terceiro gral do
Prefeito. “Não se preocupem com nada... agora eu vou cuidar
dos seus negócios, para garantir que eles sejam tão prósperos
quando são os meus” continuei dizendo, dando a indireta de
que eles deveriam, daquele ponto em diante, entregar os
negócios ilegais deles nas minhas mãos. E eles entregaram,
alguns meses depois eu estaria tomando conta dos roubos de
carga do empresário, e dando ordens que o prefeito era
obrigado a cumprir.
No final das contas, eu com uma só cartada tinha
desestruturado os Grandes da Vila de Deus, e me tornado o
único deles. E ninguém podia fazer nada. Os que sabiam da
verdade, não queriam mais se envolver, e os que não sabiam
dela não se importavam, era só mais uma troca de “chefão”.
Nada ia mudar.
XXIII Vocação religiosa
Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou
a mulher do teu amor, ou teu amigo que amas com a tua
alma, te incitar em segredo, dizendo: vamos, e servimos a
outros deuses, - que não conheceste, nem tu nem teus pais,
dentre os deuses dos povos que estão em redor de ti, perto
ou longe de ti, desde uma até outra extremidade da terra,
não concordarás com ele, nem o ouvirás; não o olharás com
piedade, não o pouparás, nem o esconderás, mas
certamente o matarás. A tua mão será a primeira contra
ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo. Apedrejá-
lo-ás até que morra, pois te procurou apartar do Senhor
teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da
servidão. Deuteronômio 13: 6-10
Chegava a um ponto a minha vida, em que eu tinha muito
pouco a resolver ou querer. Tinha o controle dos negócios da
cidade e a mulher que eu queria, e os únicos que poderiam
atrapalhar minha boa vida morriam de medo de mim. Sendo
assim, tinha chegado a minha hora de parar de me matar
trabalhando (se é que algum dia eu tinha me matado) e
começar a curtir a minha vida.
Eu já era relativamente popular na Vila de Deus. Desde o início,
eu tinha procurado criar uma imagem de amigo de todo mundo,
de pessoa caridosa, assim por diante. Os meios pelos quais se
conseguia isso, eu devo admitir, eram interessantes, mas
bastante tediosos, e cheguei várias vezes a pensar se não era
melhor parar com o teatro, mas é como eles dizem: não importa
o que aconteça, o show tem que continuar.
Para formar tal imagem, eu tinha já feito de tudo. Quase todas
as quintas eu dava aula de literatura para os alunos da escola da
Vila de Deus, e esse meu trabalho era elogiado pela
administração da escola. Eu também fazia doações anuais para a
escola, como computadores, alimentos, material escolar, etc.,
coisas simples que em nada pesavam no meu bolso. Não era que
o ato de caridade pagasse as contas, mas acontece que a maioria
das mercadorias já era para doação, eu só arrumava um jeito de
colocar meu nome na jogada, além do que alguns dos alimentos
que eu doava eram fruto de roubo (o que não tinha o menor
problema; os meninos nunca sentiram a diferença). Eu também
tinha organizado festas para a cidade, e até trazido artistas
importantes para conhecer a cidade. Claro todos sempre
vinham pelo um gordo cachê ou pela publicidade, mas para o
povo esses detalhes não são importantes (podem ser omitidos).
O fato era que o resultado de todos esses trabalhos um dia veio:
tinha chegado o tempo em que se o prefeito quisesse se
reeleger, ele teria que pedir minha ajuda.
De todas essas brincadeiras de parecer bonzinho, uma foi
especial e ficou bastante marcada na minha memória. Talvez
porque tenha ocorrido no mesmo período em que eu estava
dando os últimos toques na minha vida: subjugar os Grandes da
Vila de Deus e casar com a Filha do Prefeito. Talvez porque
tenha sido mais um de meus pecados, no qual eu ariscava
sempre ser pego (a sensação de adrenalina sempre me
alimentou). Talvez porque tenha sido mais uma de minhas
experiências, e isso tenha me feito sentir superior aos humanos.
Talvez apenas tenha alimentado o meu ego, e por isso lembro
mais do que as outras.
Como eu já tinha dito, o Delegado, exatamente como eu tinha
planejado, ficou traumatizado depois da ação, que eu tinha
ordenado. Rapidamente entrou para a vida religiosa, e se tornou
pastor. O que era totalmente previsível, pois a maioria dos
“fanáticos religiosos” é resultado de um trauma qualquer (eu, e
meus colegas já tínhamos visto esse padrão há muito tempo). E
mesmo tendo certeza de os resultados seriam esses, bateu-me
certa curiosidade de analisar o caso mais de perto: a religião, e
as causas dela, sempre tinham me despertado curiosidade.
Para tanto resolvi me tornar o melhor amigo do Delegado, o que
não foi difícil. Além da minha larga experiência para enganar
pessoas de todos os tipos, eu também tinha muito
conhecimento bíblico. Era que essa tinha sido uma das matérias
que eu mais estudei antes da faculdade, devido a uma religiosa
que eu queria impressionar. Cheguei à casa do Delegado com
uma Bíblia Tompson (uma das mais caras e completas) na mão,
fiz uma cara de arrependido e disse que eu queria falar com ele.
De fato eu imaginava que ele fosse reagir de maneira diferente
(e se tivesse reagido eu também estaria preparado), mas o que
aconteceu foi que ele me deu um forte abraço e disse que estava
feliz, pois eu era um homem religioso. Acontecia que o trauma
que eu tinha causado fora tão grande que ele nem chegou a
suspeitar do óbvio: que era eu o único suspeito possível do
crime. Mas mesmo com a calorosa recepção, preferi prosseguir
com um plano alternativo, pois para mim era muito
interessante que o Delegado se tornasse o meu melhor amigo
(afinal essa era a minha intenção inicial, e eu geralmente não
me desvio de minhas intenções iniciais). Chamei-o para um
canto, longe da Filha e da Mulher, que ficavam cochichando a
reclamar das roupas e de tudo que lhes estava acontecendo, e
disse a ele que eu tinha uma coisa muito importante para lhe
dizer. “Sabe, irmão, eu vivi uma vida afastada do Senhor nosso
Deus. Mas ontem ele veio em sonho a mim, e me disse que eu
devia procurar a sua ajuda para que nós dois pudéssemos servir
a ele juntos...” Disse isso e mais algumas linhas. Alguém devia
ter visto a cara dele enquanto eu lhe dizia aquilo,
principalmente porque eu ia repetindo passagens bíblias sem
erros ou consulta ao longo do que eu falava. Ele se impressionou
muito, principalmente com minha exatidão em repetir versos
bíblicos (besteira, eu tinha decorado 50 deles enquanto tomava
café), e disse que naquele dia eu diria minha mensagem para
todos os da igreja. Então fomos para lá.
Enquanto andávamos para a igreja, a Mulher dele e a Filha iam
na frente. Com certeza o Delegado nem notou que eu não
estava nem um pouco interessado no deus ou na religião dele,
principalmente porque eu sabia conversar com uma pessoa
olhando para outra coisa, sem deixar que ela notasse (eu treinei
muito isso e muito me ajudou). Todas as vezes que eu repetia
frases exatas da bíblia (que era para mostrar que eu conhecia a
bíblia muito bem), ele ia consultar para saber se eu tinha
acertado mesmo (e ficava sempre impressionado). Esse era o
tempo em que eu aproveitava para olhar as pernas da esposa e
da filha dele (ambos perfeitos). Sentia um pouco de pena das
duas. Lembro-me de uma ocasião de festa em que o Delegado
compareceu, e as duas estavam completamente lindas e cheias
de vontade de viver. Agora aquela beleza e aquela vontade de
viver tinham sido sufocadas por roupas comportadas de
religiosos e regras chatas de não-faça-isso e não-faça-aquilo, que
não eram seguidas nem no tempo que foram escritas. Era como
se a bíblia que estavam carregando fosse uma condenação, e de
fato o era. Mas aquela pena (isso geralmente acontece comigo)
foi de leve se transformando em algumas ideias bem
interessantes. E assim foi durante todo o caminho, eu enganava
o Delegado e ia tendo ideias interessantes com o resto da
família.
Deste ponto, mais que provavelmente, algum religioso deve
estar certo de que eu era um cético que desprezava
completamente os assuntos de Deus. Não estará completamente
certo, como não estará completamente errado. Eu sou deísta,
acredito que Deus é o arquiteto do universo, e creio que todo
aquele que refletir melhor sobre o mundo e a realidade, sem
temer a verdade, vendo que muitos parecem ser ajudados por
Deus enquanto outros parecem ter sido abandonados, também
se tornarão deístas. Nunca tive nada contra a religião, mas sim
contra os religiosos e a atitude desses em temer analisar seu
próprio conhecimento. Se o Delegado (ou qualquer outro
religioso) estivesse realmente interessado em estudar a bíblia,
eu alegremente faria parte do estudo: analisaríamos genealogias
bíblicas, nas quais vários nomes aparecem trocados ou em falta;
discutiríamos várias passagens, que muitas vezes pregam
crueldade, preconceito, ou em vários casos se contradizem; e
estudaríamos princípios como a bondade de Deus, a santíssima
Trindade, o Temor a Deus, entre outros. Mas claro que muitos
religiosos não querem isso. A bíblia, dizem alguns, não pode ser
estudada criticamente, só adorada. É como se eles soubessem,
inconscientemente, que se estudassem realmente a bíblia, ao
invés de lê-la entre rezas ou orações, achariam algo que não
deveriam ter achado. Era como se a santa bíblia tivesse
ensinamentos que não poderiam ser ensinados, passagens que
não poderiam ser ditas, fatos que não poderiam ser mostrados
(se não era assim, então porque existem passagens bíblicas que
nunca foram lidas e explicadas ao público por padres ou
pastores). Eu já tinha perdido a conta do número de colegas de
escola ou faculdade a quem eu sugeria que analisássemos uma
genealogia bíblica, e de quem eu recebia um não bem grande ou
uma desculpa esfarrapada. Eu já tinha perdido a conta do
número de pessoas que quiseram me pregar um livro que eu
não podia estudar realmente, dizendo que eu deveria ter fé e
pronto. Esse argumento não me servia. Eu tinha fé, mas para
mim a fé devia ser baseada em algo coerente. Era-me incoerente
ler um livro que eu não podia analisar comparativamente. Era-
me absurdo dizer que algo era santo e fugir, como o diabo foge
da cruz, de confirmar por busca-de-erro se realmente o era.
Ora, se a bíblia era mesmo santa, então não tinha importância
procurar nela um erro: se algo é perfeito e sem erro, não existe
nela erro, então alguém que procurasse um erro nele, não
acharia. O que eu não conseguia engolir era o grande medo de
pensar que os religiosos tinham: se o deus deles era realmente
um deus bondoso, então ficaria feliz que seus seguidores
pensassem por conta própria, e não apenas o seguissem; quem
gosta de seguidores cegos são os tiranos e os políticos. Mas eu
sabia que muitos religiosos, incluindo o Delegado, não queriam
realmente encontrar deus; temiam-no. O que queriam
realmente era o conforto que Deus lhes dava, e por isso mesmo
nunca iriam questionar sobre suas religiões. Tinha sido por
estas conclusões, que eu tinha me desinteressado dos assuntos
religiosos.
Ao chegar à igreja do Delegado, fui muito bem recebido. Os
religiosos geralmente gostam de receber bem o seu público alvo.
O culto se iniciou, eu sempre notando que a Mulher e a Filha do
Delegado fingiam suportar toda aquela, e de repente me bateu
uma ideia. O pastor, que presidia o culto, perguntou se alguém
queria ir para o pupto e dar seu testemunho. Rapidamente eu
levantei a mão, e sem qualquer dificuldade, pronunciei um
discurso exaltando Deus com tanto talento, que até o diretor
geral da igreja se impressionou. Confesso que não era difícil, era
só falar bem de Deus, sempre exigindo que as pessoas dissessem
“amem”, mas como eu sabia muitas passagens decoradas, meu
sermão foi bem mais profissional.
Logo então, como resultado mais do que esperado, ao fim do
curso, o pastor geral pediu para conversar comigo. Veio logo
com aquele papo besta e sem utilidade de que eu tinha talento
como servo de Deus e que havia muito serviço para mim
naquele templo (se ele sequer imaginasse que tipo de servo de
deus eu era). Respondi-lhe educadamente que eu era só um
peixe pequeno, que tinha sido resgatado por um servo muito
maior, e apontei para o Delegado, dando conselhos ao chefe da
igreja de que fosse imediatamente falar com ele, pois receberia
bênçãos futuramente. E foi. E o Delegado, sem qualquer
hesitação, largou a mulher e a filha, que ficavam livres para que
eu pudesse falar qualquer coisa com elas (concretização da
súbita ideia que eu tivera).
- Que porre essas comemorações, não acham? Comentei com
elas, e como elas tinham visto meu entusiasmo com o sermão,
acharam estranho.
- Eu não entendi, senhor. Do que está falando? Essas reuniões
são santas. A Mulher do Delegado respondeu-me, temendo que
eu a estivesse testando.
- Ah, que é isso. Pare com o teatro que ninguém está ouvido. Eu
acabo de mandar seu marido falar com o padreco dessa bodega
(eu geralmente, quando sentia que podia ser jocoso, usava os
termos satíricos).
Nesse momento a filha riu. Tinha um sorriso lindo, bem
parecido com o que tinha a funcionária, só que esse era um
sorriso contagiante. E contagiou a mãe, que riu também.
- Tá vendo. Não precisa continuar fingindo. Pelo visto foi bom
afastar o seu marido de você. Lhe devolvi um pouco da sua
antiga vida, que eu tanto admirava em você.
Então, a Filha do Delegado pegou confiança em mim. Ela era
bem fácil de ser conduzida, e bem sugestionável. E tendo
conquistado uma pontinha de atenção da Filha, conquistei fácil
a atenção da Mãe (as mães sempre respondem ao desejo dos
filhos). Era uma situação tão fácil, que eu nem sentia muito
orgulho de estar conduzindo as duas para onde eu queria. Elas
falaram das frustrações que estavam passando nos últimos dias.
Estavam precisando desabafar com alguém. Todos precisão; e
isso dar muito poder a quem escuta. Diziam que a vida tinha se
tornado um inferno, tudo era privação, tudo era não pode fazer
isso, tudo era Deus para cá, Deus para lá. E continuavam as
reclamações.
O modo, porém, como reclamavam, era digno de análise.
Estavam confusas. Não acreditavam que aquilo era vida, que era
mesmo o que Deus queria, mas a preção que o Delegado estava
exercendo era tanta que suas mentes estavam confusas.
Reclamavam sempre questionando. Será que não podemos ir
mais em festas? Será que não podemos mais viver normalmente
como as outras pessoas? Será que não podemos usar roupas
normais? Será... será... E as dúvidas continuavam, sempre em
formas de reclamações. A Filha tinha mais delas do que a Mãe,
pois ela ainda tinha esperanças de viver uma vida como as
outras da sua idade (a Mãe se via presa à vontade do marido, e
sendo assim, se sentia já sem vida normal, como o marido).
Daquele ponto em diante, a mente das duas era sugestionável. A
fragilidade, o bombardeamento com novas regras que elas não
estavam acostumadas a seguir, os novos valores, e
principalmente as novas proibições (as pessoas não aceitam
com bons olhos as proibições), toda aquela situação tinha feito
uma bagunça nas cabeçinhas lindas das duas. Então havia a
possibilidade de alguém colocar “ordem” na bagunça. E eu
pretendia fazer aquilo. De fato eu podia organizar as cabecinhas
delas, com minha experiência e conhecimento, já que eu tinha
(junto com meus colegas), na época da Maçã de Sodoma,
estudado o comportamento humano, além de que eu sempre
fora interessado em Filosofia, Sociologia e Antropologia. De
fato, eu podia tirar todas as dúvidas que as Garotas (vou chamá-
las assim) tinham e substituí-las por minhas certezas, ou pelas
certezas que eu achasse melhor. Foi nessa hora que me
pousaram aos ombros os dois anjinhos, o do bem e o do mal, e
cada um deu seu conselho. Poderia ajudar o delegado (seguindo
o anjo bonzinho), e fazer sua família aceitar a religião e uni-los
novamente (já que o choque do trauma os tinha separados), e
ajudar o deus e a religião dele, trazendo mais duas fieis para o
“santo e feliz” rebanho de Deus. Mas como eu nunca tinha dado
ouvidos ao que o anjinho bom tagarelava... Expliquei a elas que
o delegado estava fora de si. Que o trauma o tinha deixado
louco, e que ele queria deixá-las loucas também. Aquilo não era
Deus, eu dizia. Deus não queria que elas perdessem a vida
rezando para as paredes, e usei até muitas passagens bíblicas
provando minhas afirmações (era por isso que eu adorava a
bíblia, dá para defender até o assassinato em massa de
populações inteiras com ela, dá para defender até o mal com
ela, basta achar os versículos corretos). Continuei e mostrei que
a vida era bela, e que era uma burrice desperdiçá-la, e converti
tudo para a vontade de Deus, dizendo que Deus queria a
felicidade das duas, e que o Deus que eles estavam empurrando
nelas era na verdade falso.
Com poucos argumentos, as duas se tornaram fieis da minha
religião. Claro, meu deus era por mim totalmente moldável, e
minha forma de pregá-lo era falar só das coisas que as pessoas
queriam que eu dissesse. Já adeptas, as duas me olhavam com
toda a atenção do mundo, pois eu tinha lhes reanimado as
esperanças. Eu tinha lhes dado uma chance. Então outra súbita
ideia me bateu e como meu lema é “toda ideia, se não for
prejudicial a mim, deve ser posta em pratica” (que é muitas
vezes um lema mundial). Falei da minha admiração para com as
duas. Disse, cheio de elogios, que as mulheres gostam de ouvir,
que eu admirava a vida nelas. “Ah, quanta Vida em vocês! A
Vida é tão linda em vocês, que isso me impressiona.” Eu dizia, e
continuava, “me preocupa que alguém, mesmo que seja o seu
pai e seu marido, esteja tentando tirar isso de vocês. Isso devia
ser contra a lei.” Elas concordaram prontamente (era o que
queriam ouvir). Assim, um novo brilho acendeu nos olhos das
duas. Era como se elas me olhassem como se eu fosse o único
que as entendia, o único que queria salvá-las, o único que queria
o que elas queriam. E vendo que o Delegado já tinha terminado
de falar com o chefe da igreja, terminei a conversa com a duas
desse modo: pedi as duas para se aproximarem, indicando que
eu queria cochichar alguma coisa (era na verdade um pretexto
para sentir o cheio das duas, eu amo o cheio de mulher), e disse,
“eu, como amigo, não vou permitir que ninguém roube a vida
de vocês, tentando pregar um deus que eles não deixam que
você questione, não se preocupem que eu vou dar um jeito
nessa situação.”
Então eu me despedi e fui para casa. Sabia que a ideia tinha
ficado fervilhando nas cabeças das duas, e se a Mãe fosse por
acaso mais sensata, a Filha, que como toda adolescente doida
para viver, não deixaria que ela o fosse.
XXIVVou ser papai
A mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão. E
não permito que a mulher ensine, nem que exerça
autoridade sobre o marido; esteja, porém, em silêncio. I
Timóteo 2:11-12
A mulher virtuosa é a coroa do seu marido (...). Provérbios
12:4
Chegando a minha casa eu esperava encontrar a Filha do
Prefeito dormindo, como era de costume, pois geralmente na
semana eu chegava tarde. Entretanto ela me esperava no sofá,
com uma folha na mão e um olhar meio confuso. Pensei rápido
naquele momento, e me indaguei se não deveria eu fingir que
não sabia do que se tratava. Na verdade eu não queria fingir
mais, naquela noite. Eu já tinha usado muito aquilo, e mesmo
brincadeiras divertidas abusam. Então eu me lembrei que ela já
havia apresentado os sinais de que estava grávida, e, portanto,
se ela suspeitasse de alguma coisa, eu só precisava dizer que eu
já suspeitava. Olhei-a então no fundo dos olhos, e os dela
diziam claramente que o resultado tinha sido positivo (era outra
coisa que eu adorava nela, nos comunicávamos com os olhos), e
abracei o seu ventre, e deixei toda a minha alegria transbordar
(a alegria que não tinha demonstrado à funcionária por
conveniência).
A minha alegria logo a contagiou, mas mesmo assim ela não
conseguiu se livrar das dúvidas. Ela me acariciou os cabelos e
disse que queria conversar comigo sobre a situação. Falou que
estava insegura, era um sonho ter um bebe (toda mulher sonha
com isso), mas não achava que estava pronta para aquilo.
Achava-se muito nova; que a nossa relação não estava tão
madura para aquela responsabilidade; que era cedo de mais
para nós, etc. De fato, tenho que admitir, que o que ela disse
tinha muita razão... Mas quem liga?! Eu não ligava nem um
pouco para o que ela pensava, não naquela assunto, nem para o
que ela duvidada.
Como, porém, ela insinuou de leve a possibilidade de está
disposta a pensar no caso, remotamente, de tirar a criança, eu
fiz um show de indignação bem no meio da sala. Disse que em
nenhum momento iria deixar que ela sequer pensasse naquilo.
Disse que estava muito desapontado com ela por que pensar
naquela coisa não era humano (e de fato, por mais que você não
acredite, eu estava sendo sincero, pois aquele era o discurso que
eu devia ter dito para a funcionária). E a desencorajei de todos
os modos, dizendo que eu queria ter a criança com ela, e que
agora, eu de jeito nenhum desistiria da nossa relação.
Como todas as grávidas são bem afetadas pelas demonstrações
de sentimentos, ela deixou a alegria do momento enchê-la,
orgulhosa por está ao lado de um homem que não tinha medo
de assumir sua responsabilidade, por ter caráter, e me abraçou,
e me beijou.
Então foi só amor. Beijei-a naquele momento como Minha
Mulher, e ela sentiu isto, e a tomei nos braços como se
estivéssemos em lua de mel, e a levei até o quarto.
Comemoramos a noticia do bebê com uma noitada de amor das
boas, sendo que no final (estando ela ainda em estase pelo
momento crucial) eu a pedi em casamento ali mesmo.
Impossível recusa, e eu sabia disso, tanto quanto sabia que dois
mais dois são quatro.
Você, leitor, provavelmente, depois de ouvir isso, deve está
fazendo a minha caveira, me chamando de diabo para baixo,
completamente irritado com minha “falta de caráter”. É direito
seu! Mas deixe-me te lembrar de um detalhe, que é
provavelmente o principal motivo pelo qual você está irritado:
minha alegria era real e havia pouquíssimo fingimento nela. Eu,
como todo o ser humano, podia ser bem hipócrita (aliais essa é
uma das nossas principais e mais evoluídas características). O
momento de alegria vem, e nos esquecemos de tudo que já
fizemos de ruim no passado. Um marido, que trai a mulher,
quando dorme com sua esposa, provavelmente nem pensa na
outra, e, por mais que você duvide, é muito provável que ele
ame as duas igualmente. Por que pensar em coisas ruins? Por
que pensar nas coisas do passados? Muitas pessoas já devem ter
feito essas perguntas, você sabe muito bem como eu sei
também. Não sou diferente da maioria, acontece somente que
eu estou em harmonia tanto com minhas qualidades humanas
como com meus defeitos humanos. Acontece somente que eu
faço consciente o que os outros fariam inconscientemente.
Mas deixe o papo filosófico para lá. Você provavelmente não
quer ouvir nenhuma explicação por minha parte, mas sim
apenas me criticar, porque eu sou, ao seu ver, mau, muito mau.
Fique a vontade, você não será o primeiro nem o último a
defender as coisas nas quais você acredita. Eu fico com a alegria
de relembrar o momento, e ela me basta.
XXV Deus é pai
Naquela noite, pois, deram de beber vinho a seu pai e,
entrando a primogênita, se deitou com ele, sem que ele
notasse, nem quando ela se deitou, nem quando se
levantou. (...) De novo, pois, deram aquela noite, a beber
vinho a seu pai e, entrando a mais nova, se deitou com ele,
sem que ele notasse, nem quando se deitou, nem quando se
levantou. E assim as duas filhas de Ló conceberam do
próprio pai. A primogênita deu à luz a um filho (...). A mais
nova também deu à luz um filho(...). Gênesis 19:33-38.
E livrou o justo Ló, afligido pelo procedimento libertino
daqueles insubordinados (por que este justo, pelo que via e
ouvia quando habitava entre eles, atormentava a sua alma
justa, cada dia, por causa das obras iníquas daqueles). II
Pedro 2:7-8.
Daqui acredito que seja necessário um pulo, algo em torno de
alguns dias para ser exato. Foi mais ou menos o tempo que eu
levei para aprontar algumas coisas. O casamento entre mim e a
filha do prefeito estava marcado. Dentro em pouco ela seria
Minha Mulher, e eu estava muito feliz com aquilo. Quem não
estava feliz, porém, era o Prefeito. Ele não se conformava que
sua linda filhinha tinha caído nas garras de um demônio (que
provavelmente era como ele me chamava). Mas com ele não me
preocupei muito, enquanto o medo o mantivesse quieto estaria
tudo bem.
Na igreja meu sucesso só aumentava. Como era muito fácil de
enganar aqueles religiosos (alguns são muito superficiais), logo
fui indicado para cargos importantes na congregação. Neguei-os
todos, sempre alegando que eu não era digno de tais
recomendações, e sempre apontando quem seria o melhor para
o trabalho: o Delegado. Com isso, o Delegado se tornava mais e
mais meu melhor amigo. É que ele sentia que eu sempre estava
pensando nele, tentando ajudá-lo, e as pessoas geralmente
respondem a isso. O que provavelmente ele nunca notou
(muitas pessoas não notam isso) é que lhe ajudando,
indiretamente eu estava me ajudando.
O Delegado passavas horas fora de casa, cuidando dos afazeres
da igreja e de Deus. Ele sempre era indicado para fazer missões
envagelizadoras e outras cidades, e para isso que eu sempre
fazia contribuições generosas ao pastor, que entendia muito
mais a língua das notas do que a língua dos gregos e hebreus da
bíblia. O Delegado me deixava (por confiar muito em mim)
cuidando da esposa e dos filhos. Enquanto ele estava fora,
conversávamos muito, eu a filha e a mãe. A sede de viver das
duas era grande. Viver era (e é) o melhor viciante, eu sempre
soube disso e igualmente utilizei ao máximo essa característica
humana a meu favor.
No começo foi um pouco difícil quebrar o gelo entre nós, mas a
carência de um homem na casa, também a carência de alegrias
normais, e não as alegrias de igreja, forçadas, induzidas do nada,
artificiais e “alcoólicas”, que não são a mesma coisa, fazia o meu
trabalho bem fácil. Facilitava também que eu trazia bebidas e
cigarros para elas. No inicio não beberam, envergonhadas,
tímidas ou simplesmente cheias de alguns princípios chatos. Eu
detestava certos princípios que guiam as mentes humanas,
principalmente os que me atrapalhavam. Precisei de um tempo,
é certo, para convencê-las a tomar os primeiros copos, mas
depois de algumas explicações elas cederam. Eu dizia que o ato
de beber era muito exagerado na mídia, eu próprio indiquei um
dos canais mais famosos do Brasil, que hipocritamente passava
(no mesmo dia) comerciais apoiando e sendo contra a bebida, o
que elas concordaram. Falei que era importante beber para
perder algumas vergonhas (principalmente porque eu queria
que elas perdessem as delas), e enchi-as de exemplos históricos
e até bíblicos (o próprio Noé foi o primeiro a encher a cara, e
Deus continuava o chamando de perfeito!). E à medida que eu
ia falando, elas iam se convertendo (interessante que muitos
começam a beber por vontade de outros).
Era muito fácil enganá-las. É muito fácil enganar algumas
pessoas. A vida e a minha profissão tinham me ensinado isso. As
pessoas ligavam demais para as aparências, e se esqueciam de se
aprofundar na essência. As pessoas não avaliavam as outras, não
profundamente (dava muito trabalho), e por isso eram
enganáveis. As pessoas tinham preguiça de pensar
aprofundadamente. Preferiam se conformar com as coisas mais
ou menos boas ou julgá-las simplesmente como certas ou
erradas. Era por isso que as pessoas ficariam eternamente prezas
a alguns dogmas religiosos (superstições amadoras que com
qualquer estudo mínimo se desfazem), era por isso que ficariam
eternamente prezas a condição em que estavam, presos de uma
educação que vale pouco, de uma moral que já não nos serve, de
um estilo de vida que já não é nosso.
Nossa amizade ia crescendo, principalmente porque a Filha
fazia o que a Mãe fazia, copiando-a, e a Mãe geralmente
concordava com as coisas que eu insistia que ela fizesse. Claro
que eu tinha cautela, é sempre necessário não chocar, não
assustar a preza. Aos poucos eu ia acostumando-as,
“convertendo-as” se preferi, aos hábitos que eu explicava serem
os mais corretos. Assistíamos a filmes e bebíamos. Com o
tempo, além das bebidas, eu ia incluindo em nossas reuniões
cigarros leves, e depois alguns mais fortes. Aos poucos foi
acostumando-as, sempre aos poucos. Assistíamos inicialmente a
filmes leves, romances e comedias, e geralmente ao fim da
noite, quando a bebida tinha subido às cabeças das moças,
ficávamos assistindo à esses programas que só passam depois
das 12 horas. Depois de um tempo aquilo já estava tão normal,
que falávamos sobre sexo e dizíamos palavrões no meio da sala,
a filha sempre com dúvidas que eu a mãe dela tirávamos
oralmente. Até que a própria mãe, para esclarecer melhor a
filha, num momento em que estavam as doas bêbadas, pediu
para que no outro dia eu trouxesse um filme pornô para elas
assistirem.
Neste ponto, algum leitor deve está ou duvidando de minhas
palavras, achando talvez que eu tenha simplesmente inventado
tudo (posso no máximo está exagerando a velocidade de como
aconteceu aquilo), ou impressionado com meu poder de
controle sobre as pessoas. Nenhum nem outro; eu não tinha
controle nenhum sobre ninguém. O que eu fazia era apenas
fazer sugestões e explicações pessoais sobre algumas “verdades”
que a sociedade insistia em nos fazer acreditar, e no caso das
Garotas eu apenas as acostumei lentamente com a liberdade da
“sem-vergonhice”. Nenhum jure pode me acusar de tê-las
obrigado a beber (embora meu poder de sugestão fosse bem
forte). Eu apenas bebia na frente delas, e quando elas me
perguntavam sobre o hábito, eu dizia que não tinha nada
demais (todos bebiam), e elas bebiam (muitos outros casos
ocorrem do mesmo modo). Eu apenas falava palavrões na frente
delas, e quando elas me perguntavam sobre o habito, eu dizia
que não tinha nada de mais (todos falavam), e elas falavam
também. Eu apenas usava certas drogas na frente delas, e elas
usavam também. Eu apenas fazia as coisas na frente delas, e
quando elas me perguntavam sobre o habito, eu dizia que não
tinha nada demais, e faziam também.
Bem, eu sabia que aquela noite ia ser quente, por isso preparei
tudo. As garotas já estavam acostumadas com bebidas e até
tinham experimentado uns cigarros mais fortes. Também já
estavam acostumadas com algumas travessuras, uma vez até
tinham me mostrado os seios, ambas, quando muito bêbadas, e
outra vez a Filha me levou para o banheiro, e lá demos alguns
beijos (queria saber como era). Para isso eu tinha dado a
entender que eu era meio homossexual, o que deixava as duas
meio “soltinhas”. Mas eu sabia que para aquela noite elas
precisavam de um estimulo especial, por isso eu também levei,
além do filme e das bebidas, umas pílulas dessas que só se
vendem nas esquinas escuras da vida.
Bem, a noite foi... não é necessário dizer. Acho que já se pode
ter alguma ideia. De fato, nem assistimos ao filme, apenas o
colocamos para tocar como som de fundo, e as meninas, soltas,
dopadas, fizeram o que quiseram.
Quando acordou pela manhã, vendo que estávamos todos nus
na mesma cama, e relembrando o que aconteceu, a Mãe ficou
chocada com o que tinha feito. Não porque não tinha gostado
do que tinha feito – tinha adorado, principalmente a parte de
estar com outra mulher –, mas era que a consciência dela, por
educação, dizia que aquilo era errado. A consciência dela
insistia que aquilo não poderia ter acontecido (mesmo ela tendo
gostado muito), e também dizia que ela deveria passar o resto
da vida se lamentando e tentando controlar o desejo íntimo de
fazer aquilo de novo. Não foi nenhuma surpresa para mim,
acontece o mesmo com quase todos os seres humanos (é esse
um dos motivos para o qual serve a nossa consciência). Passou
então a frequentar a igreja com o marido e passou a ser religiosa
de verdade.
A filha também se arrependeu, mas também não porque tinha
dormido a três, nem porque tinha dormido com uma mulher –
ela adorou também –, mas porque tinha feito aquilo com a mãe,
e a sua consciência dizia que aquilo era errado (mesmo ela
tendo adorado). Ela, porém, tomou rumo diferente. Fugiu de
casa, trabalho uns tempos numa boate de stripper (eu usei os
serviços delas mais umas duas vezes), e depois se tornou uma
atriz de filmes pornô. Fiquei sabendo dessa última parte por
minha mulher, que trousse um dos filmes dela para animar o
casamento (sabe como é).
Eu, pessoalmente, tomei aquela noite como minha despedida de
solteiro, e não poderia ter sido melhor. Com uma farra daquela
eu não precisava de uma despedida de solteiro oficial, que os
meus amigos estavam armando para mim, e assim pude posar
de bom-marido para a minha esposa, dizendo que eu não queria
ter uma despedida de solteiro porque eu não precisava nem ver
mais outras mulheres: só importava ela para mim. Ela se
derreteu toda quando eu disse isso, e até hoje diz para as amigas
que o marido dela não quis ter despedida de solteiro porque a
amava demais (não estava tão errada sobre o amar de mais,
apenas tinha feito a relação errada).
XXVI Matando os Problemas
Filha da Babilônia, que hás de ser destruída; feliz aquele
que te dar o pago do mal que nos fizeste! Feliz aquele que
pegar teus filhos e esmagá-los contra a pedra. Salmos
137:8,9.
Bendito seja o Senhor, rocha minha, que me adestra as
mãos para a batalha, e os dedos para a guerra. Salmos 144:1
Aquele meu último pecado tinha sido realmente ousado. A orgia
aconteceu na casa do delegado, mas acredito que ele não notou
nada. Ele acabou se afastando de mim, quando a mulher se
afastou, principalmente porque dei um bom dinheiro ao pastor
para mandá-lo para uma missão bem longe, tipo essas de
evangelizar presos ou pobres ignorantes das cidades pequenas
que os protestantes adoram, pois mal conseguem ler a
linguagem bíblica e formular entendimento para possíveis
argumentações contra os ataques evangelizadores.
O Prefeito e o Empresário souberam do acontecido, mas não
contaram nada. Não contariam porque não adiantava. As
circunstâncias os impediam e isso era o que mais lhes
assustavam. Pelo pouco que souberam do caso deduziram o
resto: eu tinha ficado com a filha e com a mãe ao mesmo tempo
e não tinha nem um pouco de remorso, e eram a filha e a
mulher de um homem que eu tinha torturado. Aquilo era
demais para a cabeça do empresário. Como a família dele não
estava envolvida comigo, planejou uma viagem e foi para fora
do país três meses antes do meu casamento.
Acho que o prefeito pensou em abandonar a Vila de Deus, mas
como eu estava com sua filha sentiu que não podia deixar a filha
com aquele demônio, que era eu. É a única explicação que eu
consigo arranjar para a atitude que ele tomou dois meses antes
do meu casamento.
Aconteceu que um homem entrou no meu escritório querendo
falar comigo, dizendo que era muito importante. Ele era um
assassino profissional que tinha sido contratado pelo prefeito
para colocar uma bomba incendiaria no meu carro. “Eu não
gosto desse método, levanta muitas suspeitas, além do que é
muito desnecessário. Prefiro um tiro na cabeça com um rifle de
elite,” – Ele me explicava – “mas o Prefeito exigiu que eu te
queimasse vivo, e ainda disse que era para eu usar a maior
bomba do tipo que eu tivesse disponível. Como eu conheço sua
fama, sei que você é dono de uma gang muito bem organizada,
e que a policia está do seu lado, preferi avisá-lo.”
Tinha acontecido o que eu temia. O medo que eu tinha
provocado no Prefeito não mais o parava, pelo contrário, lhe
dava um motivo quase santo para me atacar: ele tinha que livrar
a terra desse demônio, que era eu. E demônio a gente mata com
fogo. Acho que foi o que aconteceu. De outro modo ele não
teria tido a coragem de se arriscar tentando me matar, pois ele
sabia muito bem que se não tivesse sucesso, eu iria revidar.
Pensei alguns segundos sobre a situação, principalmente e
quase exclusivamente sobre como eu iria consolar a Minha
Futura Mulher, a Filha do Prefeito, depois de ter matado seu
pai. “Uhm! Eu descubro um jeito!” Pensei, e respondi ao
assassino, “você vai receber o dobro do pagamento que o
Prefeito te daria, é só colocar o presente que ele ia me dar no
carro dele.” E fiz uma exigência. “Ei! vou me casar com a filha
dele daqui a dois meses. Então vê se faz o serviço rápido para ela
poder chorar o suficiente nesse mês, assim não vai atrapalhar o
casamento.”
Ele me olhou torto. E mesmo sendo um assassino, desejou não
ter me encontrado, e saiu de lá o mais rápido possível.
Tudo ocorreu razoavelmente bem. O carro do Prefeito queimou
como uma linda fogueira de São João, se bem que a comparação
é péssima e muito sadista (até mesmo para mim). Meu azar foi
descobrir que no dia em que a explosão tinha sido planejada, o
Prefeito tinha ido passear com a mulher e o filho de 12 anos, que
também foram queimados. Isso magoou muito minha amada,
ela ficou de cama sem comer por uma semana, e chorou por
muito tempo, por isso não tive coragem de pedir a ela que não
adiasse o casamento. De fato eu sabia que ela ia me pedir para
adiar o casamento, por isso eu mesmo me antecipei (sempre é
bom se antecipar aos fatos, para não deixar que eles ocorram
sem controle) “Olha, Linda, sei que você está passando por um
momento difícil. Estou do seu lado não importa o que aconteça.
Por isso adiei nosso casamento. Sei que você precisa se
recuperar. Mas você tem que ser forte. Eles estão com Deus
agora,” – eu adorava meter deus no meio das coisas, aumenta
muito a eficiência do teatro. “Eles foram para um lugar melhor.
Eu sei, tenho certeza absoluta de que eles devem está lá em
cima no céu olhando por você, lhe ajudando a suportar a perda.
Seu pai, que sempre quis seu bem, que eu admirava muito, por
mais que a gente tivesse nossos desentendimentos, não ia
querer que você ficasse triste pelo resto da vida. Tenho certeza
de que todos estão lá em cima cuidando de você.” Foi o que eu
lhe disse, e ela achou aquilo muito bonito, principalmente
porque eu não gostava muito de falar sobre coisas espirituais,
para ela eu era até bem cético. Ela achou bem bonito o que eu
disse – eu sabia que ela ia achar, por isso o disse – e de fato
minhas palavras funcionaram, pois nos casaríamos no mês
seguinte, o que me deixou muito feliz, pois eu não tive que adiar
as comemorações, não sou paciente por natureza, só por
obrigação, e eu estava doido para vê-la de branco entrando pela
igreja, e também pela lua de mel (tinha uma fantasia de fazer
amor com noivas que eu estava doido para realizar).
Quando ao assassino do Prefeito, o laudo final indicava que
tinha sofrido um acidente com seus próprios explosivos, e foi
desse modo que morreu. Jeito trágico! Conseguiram achar
apenas partes dele espalhadas pelos restos de casa que tinha
sido destruída pela explosão. Com ele, morriam todas as
chances de se descobrir o mandante do crime. Acabei
concordando com a opinião do assassino no fim de tudo,
quando ele dizia que usar explosivos era muito desnecessário,
por isso mesmo só os usei àquelas duas vezes.
XXVII Dia Quente
Depois o anjo tomou o incensário, encheu-o de fogo do
altar e o lançou sobre a terra (...). Apocalipse 8:5
Tinha amanhecido gelado de tremer os dentes, nem te conto. O
ar, que tinha sido abraçado pela noite, trazia calafrios ao corpo.
Era como se a terra estivesse bem na frente de uma geladeira
enorme, que alguém tinha se esquecido de fechar. O frio parecia
afastar as pessoas. Os que não ousavam sair ficavam em casa
debaixo de vários cobertores quentinhos; os que tinham, com
ou sem coragem, que sair e enfrentar o abraço gelado da Velha
Gelada, não o faziam sem um bom café e mangas longas; os que
não tinham nem um e nem outro, e eram obrigados a dormir
com a Noite (essa amante cruel) simplesmente o faziam como
podiam, sem a ajuda ou a piedade de ninguém. Na noite fria
existe pouco além da solidão fria. Mas todos suportavam a
Velha Senhora sem grande choro, pois sabiam que Ela não ia
demorar.
E Ela não demorou. Logo veio imponente o grande Sol e subiu
até lá no alto onde o céu estava claro sem nenhuma macha
bonita de nuvem. Estava bastante disposto a castigar todos nós
por todo o mal que fizemos a terra. Lá no alto, sorriu de luz e
deu uma longa lambida em tudo que estava em aqui embaixo,
deixando seu hálito seco se espalhar por todos os cantos e
buracos conhecidos. Rapidamente, então, o asfalto começou a
ficar mole em alguns pontos, como se o calor fosse capaz de
derreter a própria pedra. O vapor que parecia sair do chão
garantia a miragem, e alguém que não conhecesse esse
fenômeno poderia facilmente jurar que o chão estava fervendo.
O ar parecia acido... era seco e quase irrespirável, e só de
lembrar o nariz dói, como se a gente estivesse respirando a
fumaça de uma fogueira. Mas não, não era fumaça o que se
respirava, era somente o cheiro da cidade perfumada de calor.
Mas todos suportavam a situação sem grande choro, pois
sabiam que Ele não iria demorar.
Demorou um pouco mais que a sua senhora, mas passou.
Mesmo com a chegada da noite, os efeitos do sol continuavam
por algum tempo, e até certa hora da noite a presença do
Carrasco podia ser sentida. Mas a noite era paciente e não
demorou muito até que Ela conseguisse envolver tudo com seu
abraço gelado onipresente. Tudo foi esfriado como se fosse
necessário conservar os corpos dos homens com vida, para que
pudessem continuar a suportar sua sina. Mas isso não é alivio
pra ninguém, pois todos sabem que isso também não dura, e o
calor virar amanhã como sem falta... talvez pior.
XXVIII Amor omniavincit
Como és formosa, querida minha, como és formosa! Os
teus olhos são como os das pombas que brilham através do
véu. Os teus cabelos são como o rebanho de cabras que
descem ondeantes do monte de Gileade. (...) Os teus dois
seios são como duas crias, gêmeas de uma gazela, que se
apascentam entre os lírios. Cânticos dos Cânticos 4:1,5.
Dez minutos fora do prazo e eu não estava aborrecido. Se
tivesse sido algum espertinho que tivesse me deixado esperando
no fórum, eu já teria pedido para que fosse redigido uma
intimação, só para cuspir autoridade. Desde o primeiro dia de
trabalho até agora, com tudo que aconteceu e que fiz acontecer,
pode-se dizer que me acostumei com o poder e a abusar dele.
Os sábios dizem que o poder corrompe, mas os mais sábios
dirão que me corrompi muito antes de ter poder. Os motivos
foram de toda ordem, e já neste patamar da vida poderia forjar
uns para que a narração me fizesse parecer bonzinho. O negócio
era, porém, que eu gostava da minha vida do jeitinho que ela
estava, e não me arrependeria de uma virgula que eu tivesse
colocado num simples processo, quando mais das mortes e
assaltos. Trago a mente, agora, o pensamento de que sou
aprecio o mal, e, por mais que possa parecer, tento me ver como
um monstro pelo menos uma vez, mas não consigo. Não que
minha arrogância ou hipocrisia sejam fatores que me cegam;
nem tão pouco que eu tenha medo de admitir os crimes que
cometi para algum leitor mais bruto; nem um nem outro. Se
assim o fosse, eu não teria escrito os meus pecados, mas sim
minhas virtudes, mas com tantos anos de experiência sendo
uma coisa e demonstrando outra, de repente me bateu uma
vontade desgraçada de ser sincero e ir contando o que acontece
como aconteceu. Não pense, leitor, que tirei uma única palavra
de seu lugar, temendo qualquer coisa: os Grandes da Vila de
Deus, com todos os seus poderes, não foram capazes de fazer
justiça sobre meu couro; a Filha do Prefeito, com todo o seu
amor, igualmente não foi capaz, de me dar um coração
diferente; e, finalmente, a vida não foi capaz de ser justa, me
arrancando a vida. Não seria, pois, um simples leitor que iria
causar problemas. Não falo assim para humilhá-lo, a você que
teve paciência de me acompanhar até aqui: falo apenas para que
atente para o fato de que muitos outros escritores enfeitarão a
história para parecerem melhores ou piores, no sentido de bem
e mal, mas eu não: não sou nada disso, nada a não ser um
grande além do bem e do mal.
Mas eu não estava aborrecido, muito pelo contrário: minha
futura mulher estava no direito de se atrasar o quanto quisesse,
porque eu sabia que viria.
Para o meu casamento com a Filha do Prefeito veio muita gente
importante. Alguns colegas do curso de direito, agora
advogados, um ou dois juízes e a maioria concursados: eram os
de maior amizade dentre aqueles pseudo amigos. Com o poder
vem algumas coisas chatas, com as quais demorei um pouco a
me acostumar, mas o costume veio, ajudado pela facilidade de
vida. Dos mais de cem convidados, eu poderia contar menos de
dez com os quais teria alguma mínima confiança, e nenhum
com o qual teria boa confiança, mas isso é mais pelo meu
espírito de resolver tudo sozinho do que por qualquer outra
falta de qualidade que aquelas pessoas possuíssem. Quando se é
o que sou a primeira necessidade é a tranquilidade no viver
sozinho, o que eu tinha aprendido rapidamente, por já está
acostumado à solidão: muitos anos e ninguém me tinha visto
chorando porque um filhinho de papai tinha pegado a minha
garota dos sonhos (e foram tantas que nem me lembro).
A maioria dos convidados era de estratégia. Era o dia de minha
alegria, pois iria enfim conseguir para mim uma companheira e
amiga, não amiga para as horas de confissão (amor, sou o
assassino do teu pai, me perdoa!), mas a Filha do Prefeito
serviria bem para o resto das atividades de cama e mesa, sem
falar que eu gostava dela, principalmente quando ela passava
horas me acariciando (eu meio que me sentia humano), e talvez
o filho que ela esperava me fosse acompanhar, se eu o quisesse
no mundo do meu lado escuro. Mesmo em tal ocasião, não
perdi a oportunidade de continuar com meus planos.
Não era nada pelo dinheiro, já tinha até demais e com a Filha do
Prefeito, eu ainda ia trazer para casa toda a fortuna do Prefeito,
que era generosamente gorda. Por falar em dinheiro, eu até
estava começando a ter problemas com em como manter os
gastos contínuos sem levantar suspeitas, por isso costumava dar
ordem para que meus homens dessem propina muito maior do
que o valor de mercado: isso além de escoar a produção um
pouco, mantinha os inimigos muito bem quietos.
O governador não tinha vindo. Era uma complicação muito
grande para ele simplesmente entrar na Vila de Deus, coisa que
nunca tinha feito. Acabei trazendo ele outro dia para as
festividades da cidade (estava em campanha, eu, um dos
patrocinadores desta). Hospedou-se na minha casa, o que me
deu um status danado, embora me tenha sido chato: Minha
Mulher ficou impressionada por uma semana, e eu bem que
preferia tê-la levado a um motel do que ouvir aquele presunçoso
falar de política e se metendo a filósofo. Negócios são negócios.
Honraram-me com suas presenças o Vice Prefeito, o Novo
Delegado, o Dono da Churrascaria, o Pastor e o Médico da
Cidade. Se bem que não me honraram coisa nenhuma, não me
agradava nem um pouco ter aquelas víboras perto da Filha do
Prefeito, pois eu sabia que estavam esperando que eu cometesse
o menor deslize para tomar-me o que eu tinha conquistado:
disse aquilo de honrar só por formalidade, igualzinho ao que
disseram para mim. Mas vá lá: melhor cercado de víboras, rico e
poderoso, casado com uma linda morena de 95 de busto e
quadril (isso quando não se tem problema em se estar sozinho),
do que cercado de poucos amigos, pobre cercado de dívidas sem
saber onde cair morto e vendo os homens ricos e poderosos
ficarem com toda a diversão. Sem falar que não era para tanto,
quem foi o idiota que disse que se escolhendo isso, não se pode
também ficar com aquilo. Sempre fui ganancioso, querendo
mais e mais e não só mais, mas vários, mas ambos, mas diversos,
mas opostos. Poder-se-ia dizer que eu nunca fora bom com
escolhas, mas não era isso, muito pelo contrário: se não fosse
homem com força de vontade, não teria chegado aqui. O meu
problema mesmo era com a teoria de que casa sim é um não
que se diz a outra coisa. Meu sim não significava um não, mas
um talvez, quem sabe, se for possível. Um homem estende suas
mãos diante de mim, escondendo dentro delas dois conteúdos,
e me pergunta qual escolherei, eu por minha vez me pergunto a
mim mesmo se não lhe posso dar um soco no estomago e fazer-
lhe abrir as duas mãos; ou então, não podendo, se não lhe posso
convencer a me dar os dois conteúdos, por suborno, troca de
favores, enganação e mentiras, ou então qualquer outro meio
eficaz; ou então, não podendo, se não lhe posso ludibriar para
que acredite que peguei apenas um, quando na verdade peguei
dois; ou então, não podendo, se não posso conseguir o outro
conteúdo com outra pessoa. Só nas ocasiões em que não estou
com vontade alguma de me esforçar, ou então quando não vale
a pena mesmo, ou então quando estou simplesmente com a
cabeça em outro lugar, é que me ponho a escolher um só.
Imaginei, na minha infância, que tal atitude era impossível: que
a vida iria me forçar sempre à escolha e que a duplicidade de
minha existência iria arruinar minha vida, mas estava enganado.
A vida nunca me cobrou nada, até mesmo porque a vida não é
um ser humano para poder cobrar alguma coisa, mas sim uma
realidade sem coração. Os tolos tratam a vida como se ela fosse
alguém, mas a ilusão é tanta que não percebem que ela nunca
foi alguém: não fica triste, não condena, não persegue nem
ajuda: só está lá. Se amigos era o favor que dava significado a
vida, vá lá. Eu podia muito bem ter amigos e continuar sendo
rico, poderoso e pecador. Alias, muitos dos meus convidados,
incluindo a Velha Gorda, estavam lá por amizade: eram meio
amigos, mas não há qualquer problema nisso.Também se fica
bêbado com meias doses, e a embriaguez é igual a embriaguez
das doses inteiras.
Falei, alternadamente, com os convidados, enquanto esperava a
noiva que me deixava esperando. Uma vez com um convidado
estratégico, outra vez com um convidado meio amigo, e assim
por diante, sem deixar parecer que dava preferência a um e não
a outro. Fiz rápido, porém, que ela estava chegando, linda.
Ah, se eu fosse descrever o momento: colocaria toda a poesia
que meu coração escurecido não me deixou sentir naquele
momento. O fato era que não me permitia sentir com
intensidade há muito tempo, e aquela noite não fora para mim a
de maior, desmedida emoção. Também não teria dificuldade de
por no papel arroubos de descrição: como o vestido branco,
meio solto por causa da já barriginha, estava incrível nela (ela
que com ele fez moda na Vila de Deus); como perfumou os
cabelos , para que quando a abraçasse fosse como abraçasse
uma roseira; como a igreja, enfeitada de rosas brancas,
combinava com sua cor de pele, branca como se nunca tivesse
visto um sol na vida; e como tudo parecia alimentar a minha
alma na ação de entrega e confiança que ela fazia, quando me
disse ao ouvido que agora era toda minha, corpo e alma.
Rio-me! Até dizer estas palavras é por demais poético e tem um
gosto de falsidade. Não que os fatos acima não tivessem
acontecido; aconteceram. É que a literatura pinta tudo com um
ar mais nobre. Meu curso e minha carreira também ajudaram
bastante, li mais livros de poesia e romantismo por mês do que
muito brasileiro lerá por ano, e parece que nas páginas também
vinha, junto com a tinta das letras, o veneno da literatura, e eu
também sempre tive algum talento para esse ofício (com certeza
muitíssimo mais do que para fazer a justiça da lei).
Deixo, portanto, a descrição pobre que vai aí mesmo. Minha
Mulher merecia muito melhor, mas ela não está aqui para dar
opinião, nem tão pouco acredito que a ouviria nesse caso: não é
uma das melhores críticas literárias, se você me entende. Não
descrevo aqui, também, a festa, por não ter gostado muito da
comemoração: estava meio impaciente para tirar de Minha
Mulher o vestido branco e lhe fazer minha, se bem que já o
tinha feito, mas a lua de mel e a gravidez dariam um gostinho
especial ao todo. Não descrevo aqui, também, algumas
conversas que eu tive com os convidados estratégicos, que me
vieram pedir hora para falar-me quando voltasse da lua de mel,
nem tão pouco descreverei como me foi agradável a sensação de
ser o Poderoso Chefão da Vila de Deus, e que para falar comigo
eles pediam permissão: não me ponho nessa descrição porque
também não é hora adequada, e minha mente agora está
perdida nas reminiscências do busto da Minha Mulher que
quase pulava para fora do vestido decotado (espetáculo lindo).
E, finalmente, também não descrevo os dias de lua de mel, caro
leitor, porque não são de sua conta.
XXIX Ela Tarda e Falha
Não seguirás a multidão para fazeres o mal; nem numa
demanda darás testemunho, acompanhando a maioria,
para perverteres a justiça êxodo 23:2
E será justiça para nós, se tivermos cuidado de cumprir
todos estes mandamentos perante o Senhor nosso Deus,
como ele nos ordenou. Deuteronômio 6:25
Quando eu cheguei à Vila de Deus, só havia um único banco
que ficava logo atrás da igreja católica principal, um lugar ao
alcance de todos e das lembranças em meu coração.
Naturalmente hoje temos três destas casas de comércio, que
nada mais fizeram do que responder a uma abertura no
mercado que apareceu junto ao crescente desenvolvimento
urbano. O segundo a se instalar foi um banco privado de alto
renome; mandei caixas de uísque e umas prostitutas ao
responsável pela escolha como gratidão e pagamento, mas não
fiz mais. O terceiro veio por conta própria e era uma instituição
pública criada por autoridade, o que me dispensava de qualquer
retribuição, mas não me impediu de realizar uma festinha ao
governador sob minhas custas. Isto, porém, por questões de
apoio político para projetos que eu intencionava. Os três
bancos, aconteceu, viviam em harmonia sem que, contudo, os
novos atrapalhassem o sucesso do antigo, que detinha a maior
parte das transações, devido à tendência tradicionalista que era
bem comum nos cidadãos da Vila de Deus.
Conto isto porque, como disse, aquele primeiro banco é símbolo
de muitas de minhas boas memorais, que valem a pena deixar
no papel.
As primeiras, que me são mais próximas, até mesmo por causa
da intensidade de meu hedonismo, são de carinhos femininos.
Nada mais natural, contudo. A consciência bem domada vive
bem melhor das lembranças amorosas do que das criminosas,
até mesmo porque estas são tão indigestas que melhor sejam
evitadas. Afinal, não é isto que nos ensinam os paz-e-amor? Pois
bem, pode até ser possível manter uma vida de somente bons
feitos, mas não acredito nos milagres nem nos santos; mas basta
ter no peito as boas lembranças para a tranquilidade da alma,
afugentando-se as más lembranças que querem chamar a culpa
a perturbar e a consciência a pesar. Eis o verdadeiro segredo da
espiritualidade.
Aquele banco é o palco onde aconteceram minhas primeiras
caricias nas intimidades de Minha Mulher. Era um tempo de
emoções, que me deixa saudosista. Tempo bom; eu era jovem,
inexperiente, e Minha Mulher teimava em não perceber que eu
era o homem de sua vida e que faria tudo para possuí-la. Nada
que não fosse arranjável, como arranjei, no fim das contas. O
alcoolismo de Minha Mulher daquele tempo me foi muito útil,
além de divertido, por isso o mantive até que a engravidei,
prendendo-a definitivamente a mim.
Naquelas noites, em que estava interessado em acariciar minha
futura mulher, eu mantinha um ritual, como em quase tudo que
vivi. Primeiro íamos beber alguma coisa em qualquer bar ou
casa de show disponível. Tinha uma especial para cada caso: o
ar do Bola, que tinha uma mesa especial num canto mais escuro
e reservado que seu dono reservava especialmente para o Dr.
Juiz; e também a Boate da Meia Noite, onde funk era tocado e
eu tinha a oportunidade de assistir minha linda dançando e se
esfregando para mim. Ela, então, bebia normalmente, enquanto
eu apenas moderadamente, esperando que ela chegasse ao
ponto certo, nem bêbada demais que eu tivesse que carregá-la
ou possuí-la na inconsciência, nem bêbada de menos que
tivesse que a adular demais em preliminares. Mulher e cachaça,
é sempre bom, mas na dosagem exata.
Caminhávamos, então, de mãos dada pelas ruas mal iluminadas
em direção a parte de traz do prédio do banco. Ah! Nada no
mundo paga o bom de andar nas ruas de uma cidade pequena, à
noite, sem se preocupar com assaltos; e a juventude é com
certeza mais miserável porque não tem isso. E eu aproveitava os
cantos escuros no caminho, aqui e ali, para puxá-la pelo braço,
escorá-la numa parede, e dar-lhe um beijo tão profundo quanto
o carinho que ela ia aplicando em mim. E ouvi-a dizer-me, ao pé
do ouvido, quase sem sentido, que não, que aquele não era o
lugar para aquilo, que alguém podia aparecer, que... E tudo isto
sem afastar-me em nenhum momento de nenhum modo, e sem
fazer qualquer movimento além de abrir-se mais e vim mais
para meu corpo. Tudo bem devagar e constante, dada vez mais,
nunca cada vez menos, porque a vergonha não estava em nós,
não era nossa inimiga, nem conhecida, e íamos nos tornando
um enquanto chegávamos ao nosso lugar especial, no qual não
havia sequer os nãos do formalismo, só entrega com algumas
ressalvas: terminaríamos o começado num motel qualquer.
Nosso lugar?! Um... a lembrança que chegou ao peito é adoçada
e embeleza a vista. A vida está parecendo mais leve agora: eu
estou mais leve com o peso dela. Eu começo a devanear em
pensamentos santos: acho que amanhã vou embebedar Minha
Mulher e levá-la para trás do banco, para umas dedadas de
relembranças.
Contei-lhe, leitor, isto, mas é de fato uma lembrança minha
íntima que na empolgação acabei narrando. Mas na verdade
aquele banco representa muito mais para a cidade,
principalmente, já que é um pecado dela. Explico-me contando
a história daquele prédio.
Seu dono antigo fora um grande produtor de algodão nos
tempos de outro deste produto, recebendo, por isso mesmo, o
apelido de Coronel do Algodão. Comprara o título com os
primeiros grandes ganhos. Fora ele, também, quem trouxe a
primeira fábrica da cidade, que quebrou, junto com ele, quando
as pragas do algodão vieram.
Acabou falindo, sem receber ajuda dos dois filhos, que se
fizeram pastor evangélico e padre católico, deixando a cidade e
abandonado o pai para nunca mais serem visto. Não faltou
senhoras para amaldiçoarem o feito.
Mas nunca voltaram, e sozinho e quebrado, o Coronel do
Algodão não escapou de enlouquecer. Não pense, porém, que
alguém da Vila de Deus parou para ajudar o pobre. O mundo
não ajuda ninguém e a Vila de Deus é o mundo. O que fez foi
vê-lo enterrar-se em dívidas, tentando reavivar um negócio que
há muito estava morto. Os credores cobraram logo na pior hora
possível, e a justiça, esta ferramenta, tomou os bens na medida
de suas possibilidades e além. Não participei deste pecado
específico: ele era do Senhor Juiz Meu Antecessor. Comentam
que ele foi muito além da prudência e da equidade que nos
ensinam no Curso de Direito. Foi como se estivesse com raiva e
quisesse se vingar do Coronel, mas eu sei que não foi o caso. Era
apenas um sem-coração agindo com o poder que lhe fora dado.
E não se engane, não há em minha profissão um que seja
diferente; só existem mais ou menos juízes, como se o
magistério nos colocasse todos no mesmo barco, e coloca!
Louvo e posto na mendicância pela Vila de Deus, começou a
vagar pelas ruas vivendo da pena e da caridade de quem se
dispunha a tê-las. Sabe-se que ficou assim por toda a reforma de
um de seus prédios, que tinha sido tomado pelo Prefeito para a
instalação do Banco, promessa de campanha.
O Prefeito foi reeleito, e a cidade ganhou seu banco e, de
brinde, um dos loucos da cidade mais famosos (houve muitos).
É que aos poucos o Coronel do Algodão passou a achar que o
banco fosse seu, pois estava construído em seu prédio, e dormia
todas as noites perto de um dos caixas eletrônicos. Fizesse
chuva ou frio, sem incomodar ninguém e sem falta, lá estava ele
ajeitando aquele trapo velho dado por Dona Flor das Roseiras,
que usava como lençol, e deitado sobre a bolsa rasgada que o
Velho das Bolsas do Mercado tinha lhe arranjado, que usava
como travesseiro porque era volumosa, cheia de pão velho que a
Esposa do Padeiro lhe dava toda manhã.
Às dez horas da noite estava entrando pelos portões de vidro
para a sala dos caixas eletrônicos, e antes das seis da manhã já
não se via mais por lá. O fato é que as pessoas se acostumaram
com a presença daquela louco na cidade e havia até quem
gostasse dele.
A situação manteve-se constante e sem grandes alterações até
que a gerência daquele banco foi trocada. O novo gerente, vindo
da capital, era um homem da ciência administrativa, formado
na melhor faculdade, e por isso mesmo nada mais do que um
burguês sem-coração profissional.
Logo que chegou, considerou toda a situação anticomercial e
prejudicial a saúde da instituição. Retirá-lo, então! Não foi outra
e um mês depois eu recebi a denúncia da promotoria sobre a
tragédia: o Coronel do Algodão, o Louco Querido do Banco,
tinha sido assassinado com uma pedrada na cabeça.
“E que diabos eu tinha a ver com isso?” me perguntava mas a
comoção do povo clamava Justiça, e até mesmo Minha Mulher
tinha entrado nesta história.
O cenário foi todo armado, então, e pelo menos tenho o gosto
de dizer que este pecado não é meu, mas um da Vila. Apenas
assisti a tudo de camarote, no meu lugar de honra.
Rápido e convenientemente apareceu um réu confesso. Um
bandido de quinta categoria, que não tinha nada a perder e era
extremamente feio. Isto ajudou muito. Os jurados já o estavam
condenando só pela aparência. O resto foi da parte da
promotoria, que acusou o senhor com vitalidade. Era um jovem
promotor com arroubos de herói, e tão idealista que era cego
para ver o que era óbvio: a justiça estava indo contra o homem
errado. Mas não é assim mesmo que os cego agem, às cegas?
Condenado, passou pouco tempo na penitenciaria, mas tempo o
bastante para que todos achassem que a justiça tinha sido feita.
Os jurados nunca ficaram sabendo deste fato e todos ainda têm
muita fé de que ajudaram a fazer a justiça. A justiça é que nunca
veio e falhou em condenar os verdadeiros culpados: o Gerente e
Seu Filho. Estes estão muito bem, o filho casou-se e teve um
menino de quem sou padrinho de batismo. Chamaram-me para
um jantar de aniversário no domingo. Talvez eu vá: Minha
Mulher precisa sair um pouco.
XXX A Nova Lei
A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma; o testemunho
do Senhor é fiel, e dá sabedoria aos simples. Salmos 19:7
Entretanto aquele que atenta bem para a lei perfeita, a da
liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte esquecido,
mas executor da obra, este será bem-aventurado no que
fizer. Tiago 1:25
A lua de me se passou muito bem, na medida do que se podia
esperar e eu não esperava muito: só o que eu tinha conquistado
com meus esforços e viria sem poréns. Coisa de sempre. Muito
amor, paz e tranquilidade com aquela bela morena, Minha
Mulher, me dando todo o tipo de carinho que eu pudesse
imaginar, e minha imaginação não faltava; eu lá relaxado como
se não tivesse nada a temer ou a me perturbar. Não tinha! Não
era como se alguém medito a herói fosse aparecer naquele hotel
de cinco estrelas com um revolver ou faca na mão para fazer
justiça: até podia tentar, mas acho difícil mesmo um doido
desses, mesmo com a pouca segurança, e também acho que o
mundo não fabrica mais desses. No fim das contas era até
normal que ninguém viesse fazer justiça, estando ocupados com
as próprias vidas, do mesmo jeito que você está preocupado
com a sua: os heróis estavam com mais vontade era de ganhar
um bom dinheiro e se juntar a mim na minha tranquilidade de
mulher gostosa e bebidas caras do que de qualquer outra coisa.
Quem é que iria querer matar um juiz só para mofar na cadeia,
depois que meus colegas defendessem o meu lado?! Quanto a
estes homens da ordem e da lei, é a velha história de sempre
que nem vale a pena de ser contada: vá lá assim mesmo. A
saber, no quarto ao lado de onde eu estava, estava o Delegado
Federal brincando com sua nova amante, e três quartos à frente
um Desembargador que ia estrear sua nova namorada. Eu
mesmo os convidei para jantar comigo numa mesa para
poderosos, e não imagino-te, leitor, ingênuo de pensar que
seriam estes homens aqueles com os quais devesse me
preocupar. Também não me preocupava com o mundo: só
relaxava. Vazia um tempão que o jogo do Bem versus Maltava
todo sem regras e uma bagunça só: os jogadores se misturavam,
ninguém sabia para onde correr; as faltas dum time não eram
cobradas pelo adversário; os juízes e bandeirinhas pareciam
todos comprados, não apitavam nada, e nesse caos até os
torcedores não se interessavam mais pelo resultado. Porque
seria eu que me interessaria: logo eu que nunca gostei de jogo
de bola?!
Mas na lua de mel em si fui todo marido e atenção e carinho e
todas as coisas que eu sabia que muito agradavam a minha
amada. Pedi férias do trabalho e nem sequer um livro de leitura
trouxe para a viagem. “Minha atenção estava toda para minha
família”, disse uma vez, num momento de moleza, sobre a
barriga de Minha Mulher. Momento de fraqueza, ela quase que
não entendeu meu jeito, mas acho que associou com as
emoções de ser pai. Para não estragar a cena, resolvi que só iria
me fechar novamente no cair da noite, mas não muito que eu
não estava com a menor vontade de pretensões.
Não deixei porém de cuidar de negócios, pois com a nova
família e vida eu tinha muito o que fazer. Queria dar bastante
legitimidade para meus negócios, e isto custava uma fortuna.
Dinheiro investido sabiamente. O Ladrão de Cargas cuidava de
tudo isso para mim até com certo ar de felicidade. Embora a
malfeitoria estivesse em seu sangue, queria, como todo ladrão
que se preza, parar, e não foi custo convencê-lo das enormes
vantagens de se tornar bandido de colarinho branco.
Nas nossas formas de lavar o capital conquistado com os poucos
mais prósperos anos de assaltos a cargas estavam o
financiamento de prostíbulos, os meus favoritos, e o da
distribuição de propinas, o meu mais detestado. No findar da
contabilidade, estes dois investimentos já tomavam bastante do
dinheiro, e o resto era investido em imóveis e outros
investimentos seguros. Custava muito para limpar toda a sujeira
que ficava no caminho, mas as empregadas federais e estaduais
estão aí para isso.
Eu já estava querendo parar com as aventuras de grandes
roubos, que eram crimes mais arriscados. Quando mais eu
descia ao fundo do posso, mais perigoso tudo ficava e eu estava
começando a ter alguns problemas, e eu simplesmente não
queria nada de problemas. O meu problema maior era com os
ignorantes membros da gang, que ficavam com vontade de
ostentar riqueza quando não era hora apropriada, mas graças à
ajuda do Ladrão de Cargas eu tinha conseguido contornar esse
também.
Os problemas, porém, e enfim, estavam findando. Eu tinha
gastado bastante para fazer investimentos limpos, e estes já
estavam rendendo seus lucros e se multiplicando. Eu tinha uns
restaurantes, escolas infantis particulares, consultórios de
contabilidade e advocacia, que iam dando um bom dinheiro,
mas é claro que a tendência para o imoral não saia do meu
espírito e eu também mantinha umas bandas de forró, umas
agencias de modelos e uns prostíbulos, que podia ser até que
redessem bastante, mas que eu mantinha para as necessidades
do espírito: ninguém é de ferro!
Neste vai e vem de investimentos, junto com o trabalho de Juiz,
que eu fazia sem muita preocupação, mas com alguma
competência, principalmente quando era caso de alguém que
podia pagar advogado que chegava a minha mesa. Estas
ocupações, embora me tomassem boa parte do tempo, eram
boas, principalmente nos primeiros meses depois da chegada da
lua de mel. Os desejos de Minha Mulher e as crises nervosas,
constantes, já estavam me dando nos nervos, e quando chegou
aquela fase, próxima do parto, na qual as barriga aumentam e
elas começam a ter medo de atender certas vontades dos
maridos, é que eu me dei por satisfeito.
Viajei por esta data para a Capital do Pais em busca de umas
certas diversões. Uma das agencias de modelo tinha alistado
uma criaturinha do interior, e fui eu quem foi fazer a entrevista
do sofá. Nada que me desse o mínimo pudor, a garota até que
não era nenhum bicho do mato, e sabia botar o currículo para
funcionar.
Depois da diversão, aproveitei para fazer uma visita a Meu
Amigo Legislador, um colega de faculdade que tinha resolvido
subir na fama mais do que eu. Nunca o invejei; bem que podia
ter feito igualmente, mas preferi ao invés de subir na fama, subir
na vida mesmo e dar-lhe umas boas palmadas. Cada um segue a
sina que deseja, pode-se dizer, ou a que pode pagar, os mais
sábios talvez tenham coragem de acrescentar.
Do sujeito não gostei: um burguês medito a besta que só sabia
mais ostentar poder, numa inocência que me enjoava. Mas
também eu não podia dizer nada porque eu estava no mesmo
barco indo direto para o Hades. Mostrou-me as dependências
de seu trabalho, na medida de suas possibilidades, e à medida
que passeávamos ia falando do trabalho quase como se o
trabalho fosse a única coisa interessante na sua vida, fosse a
única coisa de vida nela. Não condene o homem, leitor, há
muitos homens cujas vidas não terão mais que isso, enquanto
outras serão um conjunto de liberdades e libertinagens: cabe
aos donos saber das vidas a melhor.
Nas discussões, comentou-me que estavam para aprovar uma lei
sem importância que facilitava a adoção de crianças no caso de
adotantes solteiros. Passou tão por cima da discussão que nem
notou meu súbito interesse pela questão.
Um fenômeno interessante naquela época, que era a reabertura
dos debates sobre o casamento entre homossexuais. Ó, como eu
odiava aquelas discussões, principalmente porque tinha um
bando de crentes que se pegavam na autoridade de um livro mal
escrito, cujos autores nem sabiam ler o livro anterior para não
se contradizerem, para afirmar que até mesmo debater tal
questão era uma abominação. Quando me bateu esse
pensamento veio junto um desejo de que aquela lei fosse
aprovada.
O leitor desatento, que talvez ainda busque em mim algum
traço de “o herói dessa história”, talvez vá imaginar que meu
desejo era alguma coisa de heróico, fazer justiça, combater a
descriminação, e todo o resto. Longe disso, eu tava mais era
com vontade de fazer uma raiva ao Povo da Bíblia do que de
fazer justiça aos homossexuais. Aliás, eu sempre fora e ainda sou
de opinião que sempre que for possível fazer uma raiva a este
povinho, se deve pensar poucas duas vezes.
Nos pensamentos e reflexões, olhei para o Legislador e falei-lhe
do meu interesse, mas é claro que não falei dos meus interesses
reais: só uns ingênuos acreditariam realmente que ele estava
realmente interessado no caso porque qual legislador estaria
interessado em fazer valer a lei e este nunca fora o trabalho dele
de verdade. Nem tão pouco, por assim dizer, falei-lhe somente
do interesse do meu coração moído pela injustiça, até mesmo
porque não seria ao meu coração ou à injustiça que ele daria
ouvido, mas falei mesmo foi do interesse do meu bolso em que a
tal lei fosse aprovada.
Aí sim ele me olhou entendido: estávamos falando a mesma
língua, que era a língua do nosso país. Perguntei o preço da lei,
como se estivesse numa loja mesmo, e ele me deu a tabela: os
preços variavam de acordo com a importância e efeito, existindo
umas que eram uma grande fortuna, e outras que nem tanto. A
loja da União era algo extremamente organizado; é de se
admirar. O negócio também funcionava como uma loteria, em
que se aumentam as chances de ganho à medida em que se
aumentam os números jogados, neste caso os legisladores.
Naquele caso específico, tudo foi muito fácil por muitos
motivos. A lei era insignificante, e o Meu Amigo Legislador não
teve competência para perceber meu desejo. Não que lhe
faltasse inteligência, os homens de grande escalão não são tão
bobos assim e não se deve brincar com eles; faltava-lhe era a
loucura dos meus pensamentos, pois quem era o doido que iria
imaginar que um homem como eu faria investimento para
ajudar uns homossexuais? Também me facilitou a vida porque,
depois de checado o primeiro motivo, resolveu dar um desconto
de primeiro cliente, na esperança de que eu voltaria para fazer
novas compras; voltei de fato, dois anos depois, para fazer
aprovar outra lei insignificante, embora neste caso tive que
comprar três legisladores só por garantia.
O preço foi pequeno a pagar: apenas dois favores que o
Legislador não podia resolver ou não tinha coragem para tal.
Satisfiz-lhe uma tara com uma menor de doze, que mandei
trazer das cidades humildes, e paguei ao seu filho um carro
importado. A primeira ele não conseguiria nunca, ficou até
surpreso com a facilidade que eu consegui a garrota amarrada
num quarto de hotel de outro estado. O segundo, poderia ter
feito, mas acredito que, como o filho era um playboy vagabundo
que vivia quebrando os carros em pegas, achou melhor fazer um
otário pagar pelo brinquedo do filho, achando que eu era
mesmo otário: deixei no hotel onde realizou suas perversões um
monte de câmeras escondidas. Um filme de quinta categoria, o
choro da criança cortava todo o clima, mas o tenho ainda:
esperava utilizá-lo caso tivesse problemas, mas nunca tive e
resolvi não brincar com ele.
No dia da votação, comprado, como estariam os outros se
aquela lei fosse de interesse maior, levantou em argumentação a
favor da lei e convenceu os outros que estavam em dúvidas.
Recebi noticia do meu investimento lendo o Diário Oficial, e
resolvi que não tinha mais graça brincar com aquilo: melhor era
procurar outro hobby.
XXXI Vida de Casado
Porque a mulher que está sujeita ao marido, enquanto ele
viver, está-lhe ligada pela lei; mas, morto o marido, está
livre da lei do marido. Romanos 7:2
A mulher não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas
tem-no o marido (...). 1 Coríntios 7:4
Um ou dois anos se passaram com a calma e paz que são
particularidades na Vila de Deus: beirando o tédio. Não se
poderia dizer menos do que se tem mais. Eu não me preocupava
porque sabia me cuidar bem e, mesmo estando fora dos
negócios ilícitos que eram de maior risco, embora também
maior diversão, não deixei de cometer aqui e ali um pecado ou
outro. A grande ironia do destino: o que antes eu detestava e
que me fizera revoltar-me e tornar-me o que sou agora, não era
mais objeto de meu desgosto e, no fim das contas, até que se
poderia dizer que eu não estava tão mal assim comigo mesmo.
Agora que estou comentando isso, queria me lembrar daquele
colega que me disse uma vez que o errado é uma questão de
ponto de vista, se não do indivíduo, da sociedade; queria lhe dar
uma garrafa cara de uísque como presente pela sabedoria que
me deu, mas, na falta dele na memória, não me custa nada
imaginar que a sabedoria é minha e usá-la do mesmo jeito. Não
a uso, porém, no sentido mofado, revirado de socialismo,
beirando o bíblico, que se costuma entender; nem tão pouco
uso-a como justificativa para meus pecados. Não sou de um
nem de outro tipo, mas apenas diferente. Não preciso dos
pontos de vistas antigos sobre o bem e o mal, que vão acabar me
levando ao céu ou inferno, e que servem para as classes
poderosas, como as minhas, permanecerem em paz; nem tão
pouco preciso de justificativas para o que eu faço, tentando
pintar o mal de bom somente para ter sonhos mais tranquilos à
noite: tenho um espírito mais forte do que isto e, nesta última
questão, minha mulher me ajuda muito. Há uns colegas meus
que não conseguem dormir sem se enganarem com ideologias
baratas, mas eu ficaria enojado se precisasse de algumas delas
para manter a minha estabilidade: há uns, na minha profissão,
que fazem muito menos justiça no trabalho do que eu e que
acreditam piamente que estão contribuindo para a ordem social
e a promoção da justiça, e há outros que nem justiça fazem e se
acham no direito de ter as mesmas crenças. Não tiro-lhes o
direito, não, todo o homem tem o direito de engolir a mentira
que quiser, embora nem todos queriam de bom grado aceitar o
dever de suportar as explorações, que vem como consequência.
Com os anos, entretanto, vieram alguns aborrecimentos, que
me teriam pegado em cheio se já não os tivesse previsto.
Enquanto eu acompanhava o crescimento da Minha Filha, como
um pai babão, qualidade que reservara ao filho certo da pessoa
certa, primeiros passos com um ano; primeiras palavras dois
meses depois e seis meses depois primeiras expressões
inteligíveis, eu observava o tédio de Milha Mulher crescer
dentro daquela grande casa, e este se voltar perigosamente
contra mim. No início eu a queria para fiel dona de casa,
daquelas que esperam o marido com jantares românticos e que
se mantém sempre linda nas ocasiões de festas de exibição, e
que não sai muito para dar bola a concorrência, mas essas
qualidades foram desejadas apenas no começo da relação
enquanto eu estava ainda somente sob o aconselhamento de
minha inexperiência. Imediatamente depois de alguns messes
de nascimento de nossa Filha, pude avaliar tudo de melhor
maneira e notar que meus planos deveriam ser rapidamente
mudados. Minha Mulher, dentro daquela casa, estava se
transformando uma pessoa carente, ciumenta e pegajosa, que
sempre queria ficar ligando-me em todos os momentos e
acompanhando-me a todos os lugares. O que por um lado era
ótimo, eu bem que gostaria de manter uma necessitada sob meu
julgo, tornava-se ruim pelo estilo de vida que eu levava, e ficava
cada vez mais impossível eu me divertir com meus pecados,
com Minha Mulher insistindo em permanecer muitíssimo
próxima de mim.
Na dúvida de escolher entre eu e os outros, sacrifiquei logo os
outros; na dúvida de permanecer com o bem ou com o mal,
joguei logo o bem fora; e na dúvida de alimentar a verdade ou a
mentira, deixei logo a verdade passando fome. E nessas decisões
de um-ou-outro, do que decidi não me arrependi até os dias de
hoje (não me entendam mal, este jeito de falar não significa que
esteja arrependido agora ou que vá me arrepender amanhã).
Cuidei logo de procurar um curso universitário para Minha
Mulher, para afastá-la um pouco de mim e preencher aquela
cabeça vazia que já estava me dando nos nervos. Não deixei de
aproveitar ocasião para tirar vantagens e pecar um pouquinho: é
necessário aproveitar bem as oportunidades da vida, não acha?!
No convívio de casa, no sobrar de dinheiro e na autoridade do
matrimônio que eu possuía, eu bem podia ter colocado Minha
Mulher para estudar num bom cursinho pré-vestibular e a feito
passar em faculdade particular de Medicina ou Direito: uma das
duas lhe daria nome, dinheiro, e conhecimento elevado. Passou-
me pela cabeça, naquela ocasião de planejamento que fiz, que
assim eu até poderia ter uma intelectual para conversar comigo
e compartilhar de minhas ideias, ao invés de ter que aturar
aquele papo de socialite que saia algumas vezes da boca de
minha esposa; Minha Mulher era bonita, mas também tinha
potencial de inteligência, com o incentivo e ajuda certos havia
uma chance de que ela fosse bem longe numa carreira; também,
seria a coisa certa a fazer, pois amando-a como eu a amava, não
era mais do que meu dever desenvolvê-la da mesma maneira
que eu tinha desenvolvido a mim (se ela o quisesse, é claro).
Todas estas considerações e mais outras pesaram para minhas
escolhas, mas cuidei delas rápido. O problema de ter alguém
intelectual para conversar se resolvia simplesmente
aumentando-se a frequência com que eu ia para fóruns de
filosofia, direito, sociologia, teologia, etc.: havia muitos deles
pelo estado e região. Minha Mulher indo longe na carreira não
me interessava nenhum pouco: ela podia começar com certos
planos de independência e meu estilo de vida, que levei tempo
para construir, poderia entrar em risco. Por vim a ideia de
“dever no amor” não me soou bem aos ouvidos: eu detestava
qualquer ideia de dever e a combinação desta com o termo
amor fazia toda a consideração parecer um romantismo dentre
tantos outros romantismos, bastando que eu escolhesse outro
romantismos mais interessante e valeria a mesma coisa.
Decidido tudo, desencorajei Minha Mulher de estudar: não
havia necessidade, já que éramos ricos e eu podia pagar
qualquer faculdade que ela escolhesse. Ela podia aproveitar o
tempo, entretanto, e já começando a escolher materiais de
estudo, tipo aqueles cadernos rosinhas, e todas as outras
frescuras que lhe distraíssem a cabeça. Concordou com a
relutância de sempre, de mulher forte que queria ser
independente em certas coisas. Força insignificante comparada
ao meu poder de persuasão, que lhe quebrou a intenção
eventualmente. Tudo é uma questão de saber onde apertar, em
que coisas mentir, que presentes dá, etc., recursos que não me
faltavam. Meu poder quebrou-lhe aquela intenção, mas não
conseguiu no mesmo ato tirar-lhe da cabeça a determinação de
ir para a Faculdade Particular de Medicina da capital, e como
eu, como argumento, tinha dito a ela que poderia escolher
qualquer curso que eu pagaria, fiquei sem poder usar a mesma
tática de argumentação.
Não era pelo dinheiro que eu não queria Minha Mulher fazendo
Medicina, três ou quatro de meus negócios seriam capazes de
sustentar as mensalidades e algumas outras despesas sem
problemas, e se houvesse algum aperto eu sempre poderia
voltar aos ilícitos e cobrir os gastos com facilidade. Seria até um
motivo para voltar aos velhos tempos, e seria até irônico: a
exploração de mulheres pagaria a especialização em
ginecologia; o tráfico de criança pagaria a especialização em
pediatria; a venda de armas pagaria a especialização em cirurgia;
e o consumo de minhas drogas pagaria a especialização em
química farmacêutica. Bem que me divertir fazendo a lista de
negócios sujos que eu podia entrar só para satisfazer os
caprichos de Minha Mulher, mas acontecia que não era só eu no
mundo, tinha Minha Filha e ela, e eu tinha decidido não me
arriscar muito. Enfim, não era pelo dinheiro que eu não queria
Minha Mulher fazendo Medicina: eu simplesmente achava que
o curso era bom demais para ela. Ela bem que podia fazer
enfermagem ou administração ou nutrição ou qualquer outro
curso que desse pouco poder.
No fim das contas não tive que me preocupar muito, e eu nem
precisava ter subornado alguns professores do primeiro
semestre do curso para serem muito rigorosos, duros e
desaminadores com a classe de Minha Mulher. Ela mesma não
aguentou a leitura dos primeiros livros e desistiu do curso pelo
meio do semestre.
Veio pedir-me conselhos sobre cursos, dizendo que Medicina
não era o que ela pensava e que tinha descoberto que não era a
carreira que ela queria: exatamente o que todos aqueles que
acham um curso complicado demais dizem. Acabou que
consegui pô-la no curso de Administração que, além de ser
pequeno em poder diante do meu, tinha campus na cidade
vizinha à Vila de Deus. Não precisava pagar aos professores dos
primeiros semestres que aumentassem, dizendo vantagens do
curso, mas eu sempre lhes dava algum aqui e ali quando Minha
Mulher ia mal em alguma prova, para que não forçassem muito
a cabecinha linda dela. Por fim, fiz-lhe promessa de que quando
se formasse a incluiria em algum negócio meu para que
administrasse: “Trabalharemos juntos, Meu Amor, e você vai ser
meu braço direito”. A formatura veio e não ouve necessidade de
cumprir qualquer promessa: eu sempre achava mais uma
distração, mais uma mentira, mais uma brincadeira para ela se
distrair, e assim eu ia mantendo Minha Mulher feliz e se
sentindo bem. Não encontrei ainda melhor maneira!
XXXII Campanha de Caridade
A religião pura e imaculada diante de nosso Deus e Pai é
esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições e
guardar-se isento da corrupção do mundo. Tiago 1:27
E a minha ira se acenderá, e vos matarei à espada; vossas
mulheres ficarão viúvas, e vossos filhos órfãos. Êxodo 22:24
Despediste vazias as viúvas, e os braços dos órfãos foram
quebrados. Jó 22:9
Pecar sozinho é bom, seguro, e uma prova fiel da liberdade
maior que o individual pode ter sobre o coletivo, mas nem
sempre é o bastante. Muito melhor é quando se consegue fazer
com que os outros, principalmente em ignorância, pequem, e
ainda melhor quando se pensam inocentes. O motivo disso, nas
grandes metafísicas do meu ser, é que o controlar o outro tem
sempre um gostinho mais especial. É da natureza humana. Está
bem que controlar a si mesmo exige grande esforço intelectual e
é uma manobra bem difícil do espírito; que os filósofos,
principalmente os da autotrancendência, apreciam
consideravelmente esta atitude e a chamam de virtude, mas o
fato é que, apesar deles, o controlar o outro é muito maior do
que isto. Explico-me: para controlar o outro, fazendo-o cometer
um pecado sem seu próprio conhecimento, envolve a realização
de várias superações, em número maior do que as necessárias
na superação de si.
A primeira é a superação da realidade humana, que acontece a
partir do momento que se abandonam as ilusões que nos
enganam, impedindo-nos de enxergar o que é real fático. E
entenda de uma vez por todas esta verdade última: ninguém
mente melhor do que aquele que conhece melhor a verdade.
Saiba tirar um bom conselho daí. Esta, então, é a primeira
superação necessária aqueles que querem realizar o feito que
descreverei. Superar o que é apenas aparência, o só-amor, o só
justiça, o só-deus, o só-verdade e o só-bem, e que nos impedem
de ver que o mundo é bem mais complicado do que
imaginamos e que o no amor há ódio, na justiça há injustiça, em
deus há o diabo, na verdade há a mentira, e no bem há o mal.
Como segunda superação temos a da moral e não são muitas
pessoas nem filósofos que gostarão desta ou a aprovarão. Todo
mundo que chega falando que as regras que mantêm nossa
sociedade coesa e coerente são simplesmente invenções e de
mal gosto, geralmente não é bem visto, principalmente num
tempo este como o nosso onde a corrupção e a falta de moral
impera. Não lhes tiro a razão; há pessoas que não merecem ser
amorais, como eu. Mas merecimento não significa muito neste
mundo, e até desconfio que este também seja só uma invenção
humana e outra de mal gosto. Defendo, porém, a possibilidade,
e nem as pessoas nem os filósofos conseguirão me refutar: a
amoralidade é possível. As regras culturais são diferentes, as
pessoas sabem disso, e as pessoas mudam, os filósofos sabem
disso; o que é certo aqui pode não ser ali e o que era bom ontem
pode não sê-lo amanhã. O homem pode mudar seu conjunto de
regras moral, assim como pode mudar de fé, pois é uma coisa
dele, isto é mostrado em vários livros, pode procurar. Melhor,
assim, é mudar para uma moral melhor, a melhor e mais
conveniente. Superação moral, então, faz aquele que encontrou
uma nova moral, que lhe é mais adequada. Eu superei, só que
preferi escolher a moral mais estrategicamente nula.
A terceira superação, enfim, é a superação da figura do outro.
Por muito tempo em sua vida, e para alguns durante toda ela, o
homem vê o outro como uma figura completa. Assim, não se
pode ver somente a religião do homem, pois ele não é somente
religião, mas um conjunto: tudo é sempre o todo, o conjunto, e
não só a junção das partes. O mesmo, porém, não acontece
quando se quer manipular, corromper ou destruir: estas ações
podem ser feitas nas partes, como um câncer que, infectando
uma das partes, mata o todo. Um homem, por exemplo, pode
ser até incorruptível, mas se alguma de suas partes for religião,
com esta corrompida, corrupto será. Como vê, não há fuga da
corrupção. É como e diz: há várias maneiras de se comprar a
alma de alguém, basta só saber fazer com que ele não note que
está vendendo, e este conhecimento já é uma grande superação.
Colocando-se estas superações em prática, os resultados
acontecem. Coloquei-as uma vez, e o resultado desta
brincadeira é o que conto agora, como exemplo, e porque estou
nesta de lembrar mesmo.
Era nos tempos mais contemporâneos, não é lembrança antiga,
e Minha Mulher insistia em me aborrecer. Tinha entrado para
um desses grupos religiosos metidos a caridade. Sabe como é,
tudo entediante: um bando de dondocas e doutorezinhos que se
juntam mais para tentar mostrar que são um pouco humanos de
que para fazer caridade. E ainda por cima minha mulher insistia
que eu comparecesse as reuniões com ela. Foi então que
comecei a prever um inferno: estaria lá à força com pessoas
daquela péssima espécie, e ainda por cima teria que fazer cara
de santo porque todos lá eram pessoas influentes na política e
em outros campos, e eu não poderia tê-los como inimigos.
Foi como imaginei durante um mês inteiro. Reuniões chatas
onde as dondocas discutiam temas como “a falta de moral na
juventude”, “aborto”, “prostituição”, “violência”, entre outros, e
tudo com uma artificialidade que me fazia lembrar dos velhos
tempos do curso de Direito, onde as filhinhas de papai debatiam
os mesmos temas sem a menor ideia do que realmente eram.
Queria ver uma delas ser contra aborto se sua filhinha desse
para o filho do jardineiro. E com que autoridade falavam se
nunca tinham sido assaltadas na vida, vivendo em mansões com
todo tipo de segurança?
Ia pensando nestes e em outros tipos de insultos bem maiores e
mais cabeludos, que era como conseguia manter um sorriso no
rosto durante as reuniões, e já estava imaginando que seria um
longo mês de tortura até que uma oportunidade surgiu como se
caída dos céus: uma das dondocas, que por acaso era muito
amiga de minha mulher e frequentava nossa casa, comentou
que sentia pena dos meninos de rua. “Esses pobres anjinhos que
não tem pai nem mãe e que ficam limpando para-brisas ou
vendendo bombons nos semáforos”, dizia. Entrou, então, a
criticar os pais que permitiam tal situação e, talvez percebendo
que seu argumento era ruim e de difícil defesa, pois os pais
eram tão miseráveis quando o resto do mundo, partiu para
criticar a coisa mais fácil de se criticar neste país: o governo. Na
boca daquela senhora, o governo era isso, o governo era aquilo,
o governo era a mãe e o filho de todos os problemas, e com
certeza muito mais, “mas é que eu não sou tão boa com as
palavras quanto nosso Senhor Juiz”, comentou, chamando-me
para defendê-la, porque muitas vezes, em minha casa, me
observou tecendo melhores e mais intelectuais críticas a
respeito do Estado. Ia me pôr a ajudá-la, mas sem pressa, pois
era uma crítica tão simples, nada complicada para qualquer
patricinhia um pouco mais instruída, que eu não estava tão
animado. A senhora, porém, continuou, “meu filho mesmo saiu
desta vida depois de lutar em vão para trazer um pouco mais de
decência a este país”, se referindo ao filho que tinha sido
deputado e presidente da câmara estadual e que eu conhecia
muito bem. Corrupto até a ponta dos cabelos, que eram de cor
artificial, como provavelmente seu coração; abandonara a
política porque era arrogante demais e não conseguira apoio e
não antes de encher os bolsos seus e de muitos parentes a partir
dos cofres públicos.
Não deixei de comentar esta. “Eu, pessoalmente sou próximo do
jovem prodígio da casa da senhora, e considerei uma perda sem
tamanho para nosso estado e país que seu menino tenha se
desgostado da política. Mas quem não se desapontaria,
tentando fazer o bem nas terras onde todo mundo quer tudo
para si e não consegue pensar no outro e nas necessidades do
outro e respeitar o outro. Mas tudo para um bem e Deus sabe o
melhor para cada um: aquele não era o lugar para seu bom
menino...” E pensei, “era arrogante demais, e provavelmente iria
querer se vender por mais do que valia”, e quase cheguei a
insinuar esta ideia, tão grande era o meu tédio e o consequente
descuidado de minha parte.
Mas ninguém notou. A senhora sorriu, agradeceu os elogios,
elogiou a mim e a minha eloquência, disse qualquer coisa sobre
o fato que era bom saber que a justiça estava sendo feita por
alguém como eu, e continuou seu discurso, salvando-me do
tédio finalmente, dizendo que era hábito seu dar um presente
nas datas comemorativas, principalmente a cristã do
nascimento de Cristo Nosso Senhor, e perguntou ao padre se
aquilo estava correto.
Não deixei o padre comentar, pois não iria perder aquela
oportunidade de me divertir, tão rara naquele ambiente, por
nada naquele mundo. “Mas é claro que está correto. A caridade,
é o amor de deus, amor dei charitas est, e a qualidade que todo
o cristão deve ter, e que bom que a senhora toma esta iniciativa,
mas é preciso tomar cuidado. Não podemos deixar nossa
vontade de ajudar acabar causando um mal maior, nem que o
produto de nossa caridade seja usado para algo ruim.
Precisamos nos organizar, até mesmo para fazer melhor o bem.”
O padre concordava, principalmente vendo que eu era um bom
cristão católico e que tinha conhecimento dos termos.
Continuei, “o problema é que tenho recebido denuncia dos
policiais sobre este tipo de atitude sendo mal utilizada na
capital. Os meninos recebem os presentes, brinquedos lindos,
bonecas para as crianças, roupas novas, e os pais ou outros
meninos os estão tomando para vender para si ou para comprar
drogas”.
E fui inventando mais casos que não aconteciam. A audiência
era minha e nenhum dos presentes era desconfiado o suficiente
para pesquisar e descobri que não tinha nada disso. Esta é a
primeira regra e mais importante da minha oratória: o público
está ali para assistir, não para se instruir, e dificilmente checará
se todas as informações estão corretas. É como chegar e dizer
que Nietzsche falou uma vez que a melhor coisa numa leitura e
viajar para outros mundos; desta maneira, assim solto.
Nietzsche deve ter escrito mais de mil páginas, e você acha que
o mané da segunda fila voltará para casa e procurará em toda a
obra de Nietzsche até encontra a exata informação que você
deu. Claro que não, e então, assim, você pode sempre usar de
certas mentiras para fortificar seu discurso.
Continuei, sem exagerar muito, pois o exagero é qualidade dos
imprudentes e tolos, até que cheguei ao ponto em que eu
queria. Comentei que deveríamos criar uma ONG ou alguma
instituição de caridade, que reconhecem estas doações e que
lhes dessem o destino correto. “E que também acompanhe o
andamento das crianças, para que não seja só dar o presente e
acabou: verificar se o menor frequenta a escola regularmente, se
ele não tem qualquer problema de saúde e se tiver, encaminhá-
lo, etc. Pode-se fazer muito com uma boa organização”. E para
reforçar minha posição, comentei que eu mesmo já tinha visto
isto acontecendo e que conhecia as pessoas certas para cuidar
da instituição e que eu mesmo poderia cuidar da papelada. “O
quanto antes, se vocês estiverem dispostos a seguir com esta
ideia.”
E todos me mostraram seus sorrisos. Como é bom a sensação de
comando e de superioridade! O padre me elogiou a disposição e
a prontidão e disse que queria ter mais ovelhas na sua igreja
como eu, a senhora comentou que não esperava menos de mim
do que as atitudes de um homem honesto e cristão de verdade e
Minha Mulher me deu um abraço e um beijo no rosto,
orgulhosa e alegre de ter um marido tão bom, e comentou isto
com os outros que, no calor das alegrias, concordaram todos.
Assim, eu cuidaria da parte burocrática e das pessoas que
ficariam responsáveis pela instituição; os outros ficariam
responsáveis por conversar com todos os seus conhecidos para
não mais continuarem com aquele hábito de dar presentes ou
doações nos semáforos ou pessoalmente, pois o Senhor Juiz da
Vila de Deus iria organizar uma instituição de caridade para a
cidade, e que todos ajudassem para o sucesso dela; Minha
Mulher, empolgada, ficaria responsável pela propaganda
externa, num programa de rádio e talvez até na teve local; e o
padre faria sermões louvando minha atitude e buscando por
ajuda, pois a igreja também seria um local de arrecadação.
Todos trabalharam duro, menos eu, é claro. Botei um dos
estagiários do curso de Direito que eu mantinha para cuidar de
toda a papelada, e só assinei. Meu nome tinha que aparecer e,
aliás, muitos trabalhos só tem isso de seus realizadores. O
resultado foi que consegui meter dois corruptos na gerencia
daquela instituição.
Não lucrei nada com o fato. Deixei a instituição correr solta. E o
que melhor tirei foi saber que o movimento se popularizou,
chegando até a capital, e que minha brincadeira tinha surtido
efeito. Graças a mim, as pessoas da Vila de Deus passaram a
não ser mais caridosas: entregavam esta função para uma
instituição burocrática e cheia de brechas. Não viam mais os
rostos das crianças sorrindo ao receber os presentes, e
geralmente não supervisionavam a correta distribuição das
doações. O dinheiro, que era doado, era gasto com despesas
operacionais, como telefone, água, salários dos funcionários,
propaganda etc., tudo menos caridade, tudo ao invés de
alimentar uma família necessitava. E ainda hoje, quando ando
pelas ruas, pessoas da Vila me agradecem pelas boas coisas que
eu trouxe para a comunidade.
XXXIII Doença na Vila
E sobre os homens caiu do céu uma grande saraivada,
pedras quase do peso de um talento; e os homens
blasfemaram de Deus por causa da praga da saraivada;
porque a sua praga era mui grande. Apocalipse 16:21
Por isso, num mesmo dia virão as suas pragas, a morte, e o
pranto, e a fome; e será consumida no fogo; porque forte é
o Senhor Deus que a julga. Apocalipse 18:8
De um jeito ou de outro, o pecado acabou se tornando o centro
de minha vida: se eu não pecava prejudicando alguém, pecava
contra minha própria humanidade: e se eu não pecava com atos,
pecava com meus próprios pensamentos e ideias. Estou pecando
agora mesmo enquanto escrevo, mas o que posso fazer. Sou o
juiz da vila de deus: ela é o mundo e eu o homem, e o pecado é
de ambas nossas naturezas. Pecamos no trabalho, nos
relacionamentos e até mesmo sozinhos. Muitas vezes pecamos
um para o outro para continuarmos sendo nós mesmos e não
ter que mudar.
Entre tantas páginas, assim, fui contando meus pecados. Não
porque são o que somente tenho para contar, mas porque
compõem mais a minha natureza do que as ações boas.
Entretanto, não fui o único pecador na Vila de Deus, embora a
exclusividade comece a me soar algo de que se orgulhar. Cada
um desta cidade tinha seu pecado, do pequeno ao grande, do
primeiro a eu.
Por falar nestes, uma história que poucos conhecem merece ser
registrada, por causa das muitas de suas explicações na vila de
Deus e na vida humana.
Por época da Doença do Mosquito, todos os canais de televisão
nacional só falavam nas dicas de combate e prevenção. Tudo
muito repetitivo e chato, tal que em menos de um mês todos já
sabiam de có todas as precauções. Sabiam o certo, mas não o
faziam, como é da natureza humana, e a doença se espalhava
inevitavelmente pela nação, tornando-se sua praga principal.
Da nação, mas não da Vila de Deus, que por muito tempo ficou
abençoada de ser uma cidade conhecida como livre de doenças
gerais (não só daquela). Nosso orgulho eram os recordes
consecutivos de melhor saúde do país. Mas a bênção é sempre
bênção de um, e prejuízo de outro neste mundo, e o que Deus
dá o homem sempre arranja um jeito de perverter ou destruir.
E com esta intenção, embora não consciente dela, foi que o
Secretário de Saúde da Vila de Deus veio me procurar em minha
casa.
- Bom dia, Doutor Juiz.
Falou o Secretário, deixando o semblante de seus olhos
demonstrar que não sabia se aquela era a maneira correta de se
referi à minha autoridade. Era, portanto, só mais um parente do
prefeito que tinha ganhado o cargo por indicação, como a
maioria dos cargos governamentais daquela época.
- Bom dia, Senhor Secretário. O que posso fazer pelo Senhor?
- Sabe o que é, doutor. Eu estou com umas dúvidas cá comigo, e
estava querendo saber se o Doutor, que tem mais conhecimento
das leis e das coisas, poderia me ajudar. Se não for incomodar,
claro.
Pensei logo em besteiras. Vi naquele homem imediatamente
uma chance de me divertir. Diversão é bom: sempre uma
oportunidade de sair da rotina. Respondi-lhe, então, que não
era incômodo nenhum, e que eu não fazia mais do que minha
obrigação, principalmente se o assunto era a Lei, de que eu era o
representante naquela bela cidade.
- Aliás, obrigação não, mas prazer, pois eu sempre quis desde
criancinha servir bem à lei e à justiça.
- Sabe o que é, Doutor, é que eu trabalho na área de saúde, e
minha secretaria tá em falta de recurso e verba, e eu pensava
que com essa doença se espalhando por ai, as coisas fossem
melhorarem, mas não.
- E em que posso ajudá-lo?
- A minha dúvida é porque a verba que bem do governo é bem
menor do que vem para outras cidades, como a vizinha. E eu
queria saber se o senhor não acha que tem alguma coisa errada
com isso. Não sei. Será que não dá para cobrar mais verba do
governo...
E então, talvez por pensar que eu o estava achando egoísta,
justificou-se dizendo que não era por ele, mas pelos outros
funcionários que trabalhavam sob suas ordens. “Pais de família”,
dizia, “que precisam do emprego”, mas todos não são pais de
família que precisam de seus empregos?
- Na verdade não, não há nada de errado com os envios das
verbas. A cidade vizinha recebe mais dinheiro porque a doença
chegou até ela, e não até aqui. Deus abençoou esta cidade, e por
causa disso infelizmente seus funcionários perderão o emprego
mais cedo ou mais tarde. Agora, se a doença chegasse até aqui...
- Mas não fale uma coisa dessas, Senhor. Essa doença é perigosa
demais e melhor nem pensar disso.
- Nem tanto, Senhor secretário, é tudo mais uma manobra do
governo e um exagero da televisão.
- O senhor acha mesmo?
- Acho não, eu sei! É tão óbvio, meu caro. A televisão precisa de
notícia para vender, é o trabalho dela, e esta doença veio na
hora para salvar uns comerciais. Daí eles exageraram bastante,
para vender mais. Mas não é tudo isso que dizem, e só uma
doença de mosquito comum. Nada com que se preocupar
muito, principalmente porque o tratamento é eficaz.
- É mesmo, é, doutor?
- Sim. Mas como a doença não vai chegar aqui, acho que não
tenho como lhe ajudar. Desculpe-me.
O Secretário de Saúde da Vila de Deus saiu, então, dizendo que
minhas desculpas não eram necessárias, mas com um olhar
estranho. “Teve alguma ideia”, pensei logo, “mas qual será a
ideia que lhe provoquei”. De minha parte me contentei em
observar e esperar para ver o que acontecia depois, e se o
Secretário não tinha feito algo com o que não fosse capaz de
lidar.
Dito e feito, minhas suspeitas se concretizaram, e a doença
apareceu misteriosamente na cidade. O prefeito, por sua vez,
respondeu a altura, cobrando mais verbas do governo, e os
empregos de que o Secretário falava foram salvos.
Todo mundo, assim, ficou feliz por algum tempo. Foi só uma
pena que o filho do Secretário tenha morrido da doença depois
de alguns meses.
Ficou arrasado, o pobre. Tentou sair do emprego, e acabou se
afogando na culpa, chegando a tentar se matar, mas nada disso
me comoveu o suficiente para não pedir ao promotor que
fizesse a denúncia contra ele.
Por fim consegui sua condenação por crimes de saúde pública, e
o resultado foi que acabou se matando dentro da penitenciária.
Bem feito, quem mandou não ter buscado meu apoio para sua
brincadeirinha.
XXXIV Palavra
Agora pois, ó Senhor, olha para as suas ameaças, e concede
aos teus servos que falam com toda a intrepidez a tua
palavra. Atos 4:29
Mas que diz? A palavra está perto de ti, na tua boca e no
teu coração; isto é, a palavra da fé, que pregamos.
Romanos 10:8
Tomai também o capacete da salvação, e a espada do
Espírito, que é a palavra de Deus; Efésios 6:17
Voltemos agora para o agora. Eu estava tão entretido em
escrever meus pecados que me esqueci do tempo e olha que já
se passaram alguns bons dias. O retorno ao presente, ao real é
sempre um incomodo, mas não tão grande: é só o peso do
inevitável que me pesa um pouco. Naquela época eu era jovem,
cheio de energia, e tinha uma vida inteira pela frente; agora eu
tenho alguns meses e os efeitos da doença que eu tenho que
disfarçar. O Doutor Hipócrita comentou que nos quatro últimos
meses os sintomas ficariam mais graves e muitos mais visíveis,
mas eu nem dei ouvidos a ele naquela hora; também não darei
ouvidos às memórias. Nem mesmo planejo ficar aqui nestes
meses e deixar minha família ver-me definhar.
Mas chega disto, agora: chega de mim. É hora de falarmos um
pouco de você. Agora que vou chegando ao fim destas
memórias, e que vou contando tudo, e o tudo que vou contando
vai se acabando, me lembro de contar algo em especial.
Por que estou fazendo isso, me pergunto no ócio da narração.
Por que estou escrevendo meus pecados? Não é em busca de
redenção, longe disso: não os conto em forma de confissão,
muito pelo contrário, não nego o fato de me bater uma certa
ponta de divertimento ao ir narrando os fatos, como se o
amadurecimento e o esfriamento do coração de todos esses
anos não fossem fortes o bastante para tirar o prazer na
iniquidade.
A motivação humana é um pouco mais complicada do que os
meros motivos únicos. Escrevo primeiramente por razões
egoístas: porque o preencher das páginas com as palavras me
tira da mente as preocupações, e assim me controlo mais
facilmente e não deixo que meus familiares vejam-me como um
fraco. Egoísmo, egoísmo, egoísmo, o que não faríamos se você
não estivesse em nossos corações, amor?!
Mas também isto não é tudo, e talvez dentre vocês exista
alguém que estar cansado de ser o que eu era, e que não está
achando tão absurdo o que me tornei. Talvez até lhe seja
atraente, e minha vida de pecados não lhe seja tão feita. Alma
corruptível, você sabe muito bem que eu falo uma língua
perigosa, mas bastante doce aos ouvidos. Mulheres, carros, do
poder escorrendo pelas mãos. Será que isto, realmente, não
significa nada para vocês? Será que seus dedos não coçam de
alguma vontade de vir para o time vencedor.
Ah, não fique aborrecido com meu coração frio de argumentos
sem pudor. Eu poderia ser bem educadinho e alimentar as mais
variadas ilusões como o bem sempre vence, deus salvará a
todos, a bondade será recompensada... mas só por um momento
podemos sussurrar um pouco e dizer uma verdade maior.
Guardem as medalhas bonitas para o público lá fora, que gosta
dos espetáculos de ficção. Aqui só estamos você e eu, e logo não
estarei aqui para contar seu lado feio. Nós vivemos num mundo
horrível, que talvez tenha mais oportunidades para os corações
hipócritas do que para os bonzinhos. E eu sou a prova viva,
prestes a morrer, de que os dois podem existir na mesma
entidade humana: porque então lucrar das oportunidades
apenas de um lado, quando podemos pelos dois.
Ah, tuas ilusões te alimentaram parcamente em vida, humildes
de espírito e de bolso e de poder. Mas onde estará o céu que
deveria herdar. Como é que o extraordinário aconteceu e você
ainda não foi capaz de perceber que foi botando esta historinha
na cabeça que nós, poderosos, conseguimos mais facilmente
tomar a terra para nós.
Ah, o poder de deus é grande, e como vivemos em paz enquanto
você reza. Nossas mulheres sempre são as mais bonitas, nossos
móveis os mais caros, nossas bebidas as mais nobres, nossa
educação a mais refinada, nossas urgias as mais cheias de
prazeres.
Nem mesmo foi preciso que lutássemos pelo que queríamos, em
nossas revoluções, bastou fazê-lo lutar por nós, metendo-lhe
alguma ideologia barata. Segurou o rifle por nós e por nós levou
tiros, acreditando que era pela pátria, pela justiça, pela honra,
pela paz, e nossos negócios sempre cresceram, enquanto você
morria.
Sua miséria é nossa riqueza; seu desemprego, o nosso bolso
cheio; sua insegurança, nossa bonança; sua fome, nossa fartura;
sua prisão, nossa liberdade. E não pense que a corrupção vá nos
deixar podres, nos cansar, ou nos dar definitiva punição.
Até mesmo a consciência pesada, não duvide disso, foi só um
peso que nós, poderosos, fizemos pesar em nossos burros de
carga.
Não pegue em armas, amigo; não somos extermináveis, e como
os cristãos, outra praga que infesta esta terra, igualzinho a nós,
o nosso sangue fertilizará o solo, se bem que se tentar derramá-
lo estará entrando em problemas desnecessários, porque a
polícia e até os bandidos estão do nosso lado, nossos
empregados.
Quem sabe um dos meus motivos para escrever meus pecados,
um dos mais pequenos, não fosse o de fazer você pensar nestas
verdades que tanto te assustam, quem sabe?! Prefiro continuar
com meu primeiro motivo, e deixá-lo pensar no que quiser:
quem sabe para você não é melhor voltar a sua vidinha de
sempre, e esperar que alguma ideologia nossa te faça comprar
algum de nossos produtos ou lutar em alguma de nossas
guerras; ou quem sabe, só quem sabe, você não prefira tomar
uma atitude diferente!
(Sabe, acho que até aqui, neste capítulo insignificante, acabo de
cometer mais um pecado. Descubra você!).
XXXV A Grande Loja
Sabedoria e conhecimento te são dados; e te darei riquezas,
bens e honra, quais não teve nenhum rei antes de ti, e nem
depois de ti haverá. 2 Crônicas 1:12
Pela extensão da tua sabedoria no teu comércio
aumentaste as tuas riquezas; e eleva-se o teu coração por
causa das tuas riquezas. Ezequiel 28:5
Pois, se nas riquezas injustas não fostes fiéis, quem vos
confiará as verdadeiras? Lucas 16:11
A inauguração estava marcada para por volta das oito horas,
mas você sabe como são estas coisas: nunca são em horário
exato, principalmente porque o Prefeito queria dizer algumas
palavras pelo acontecimento e ele tinha o péssimo hábito de
querer sempre falar bonito e muito. O simplório acreditava que
estas duas qualidades, o bonito e o muito, no falar em público
estavam conectados de algum modo; talvez fosse uma ideia
vinda dos péssimos livros de autoajuda que ele costumava ler as
escondidas de mim. Isso desde quando começamos nossa
amizade de interesse, na qual ele, como antigo Vice Prefeito da
Vila de Deus, conseguiria, com a minha ajuda, entrar na
prefeitura e eu, com a sua, depois, conseguiria acesso aos cofres
públicos e a outros favores da mesma. Fiz mais pela brincadeira,
precisando de diversão, enquanto ele fez por necessidade:
nunca conseguiria seu objetivo sem ajuda; era um incompetente
político que achava que sabia falar em público; e só tinha
conseguido alguma mixaria de carreira porque de algum modo
tinha conquistado a profunda amizade do Pai de Minha Mulher.
Não tendo a mesma sorte de conquistar-me, mesmo com
muitos argumentos açucarados de infantilidade sobre os altos
valores e profundas necessidades da amizade, percebeu que esta
não era minha língua e que eu sabia muito bem que também
não era a sua, simplesmente subornou-me; o negócio passou a
ser interessante desde então.
Foi uma campanha simples; vitória folgada. Eu tinha o dom de
fazer as coisas acontecerem e, muitíssimo melhor do que isso, o
dom de conseguir que as pessoas fizessem coisas para mim
através da mentira. Eu era praticamente um santo, então! Meus
discursos, que o Prefeito leu durante toda a campanha sob
minhas ordens, junto com algumas outras manobras muito
menos fáceis de serem explicadas, embora irei, como a
promessa de que traria a Grande Loja para a cidade, tudo isso
somado ao grande carisma que eu tinha atraído como juiz da
Vila de Deus foram demais para a oposição. Como disse, vitória
folgada; nem me orgulho de ter feito a população da Vila eleger
um ladrão....oh, confundi-me, mas corrijo: não me dá orgulho
ter posto aquele idiota na prefeitura, porque é sempre um
prazer criar mais mentiras para prejudicar os ignorantes do
povo; alimentar e manter as antigas também é muito agradável,
mas não tanto quanto ser autor de novas. É por isso que dizem
que escrever os próprios poemas é mais bonito do que recitar os
alheios.
A festa iria começar dentro em pouco. Haveria uma comoção
enorme de pessoas curiosas, dessas de vida miserável que de
mais emocionante nos dias ordinários têm o que umas novelas
da televisão lhes dão, e mesmo detestando esses tipos de
eventos e quase que principalmente as pessoas que os
frequentam, eu precisava ir: muita oportunidade para aparecer e
fazer-me de amigo das pessoas, amizades que poderiam me
permitir ser o único capaz de pôr ou não alguém na prefeitura
da Vila. Minha Mulher parecia, porém, menos preocupada com
as pessoas que representavam poder do que com a própria
imagem. Muitas mulheres são assim mesmo. Na dúvida entre
um vestido preto, que combinava com o cabelo dela, e uma saia
e uma blusa, que segundo ela eram a última moda na Europa,
pediu-me ajuda. Indiquei o vestido, porque ficava perfeita
mulher nela, enquanto que com a segunda combinação não
parecia mais do que uma patricinha crescida; não acreditou-me,
porém, e foi pedir a opinião da empregada, que era mulher.
Curioso: é mais fácil fazer Minha Mulher acreditar em mim
quando estou mentindo; mas curioso ainda: Muitas pessoas
também são assim
Terminou e fomos. Seria a inauguração da Grande Loja , que
pertencia a uma rede de lojas com o mesmo nome, que vendiam
todo tipo de coisas: de celulares a brinquedos; de material
escolar a filmes; de CD's de toda ordem a cuecas; de chocolates
a móveis. Era uma loja extremamente famosa, tanto que parecia
para aquele povo da Vila um milagre que o Prefeito a tivesse
trazido; quando em discurso de campanha falava, confiando em
mim, que traria a Grande Loja, acho que o povo imaginava que
fosse mais promessa de campanha, desses que os políticos
mentem junto com outras para ir ganhando votos (sorte que as
outras promessas eram mais críveis).
Tudo estava bem posto e organizado. A Grande Loja, que se
localizava numa das ruas na frente da praça principal, estava
somente esperando pelas solenidades para abrir suas portas.
Uma pequena multidão de gente meio que se espremia na
frente da loja: eram aqueles menos pacientes, do tipo que
gostam de um empurra-empurra. No restante do quarteirão da
praça estavam espalhados o resto das pessoas , mais pacientes,
mas não menos curiosos pela inauguração. Os mais poderosos,
como eu, o Dono da Churrascaria, entre outros, ficavam no
restaurante que ficavam do lado oposto da loja.
O Prefeito queria tomar todo o crédito por ter trazido a Grande
Loja para a cidade. Era homem ambicioso e fraco, e sabia que
era fraco, e esse tipo de combinação é solo fértil para a
produção de más ações. Esses tipos de homens, os viciados em
poder que não o têm, correm como desesperados atrás dele e,
nota-se em suas ações, chegam ao ponto de algum desesperos.
Mas assim como era ambicioso e fraco, era também ingênuo,
diria até inocente em muitos aspectos, e os ingênuos e
inocentes raramente serão alguma coisa na vida enquanto
existirem lobos como nós.
Para tirá-lo dos louros da fama, não foi preciso mais do que uma
pequena frase de agradecimento embutida no discurso que ele
pediu que eu preparasse. Ele sequer notou, no momento,
quando passou por cima de um “eu agradeço especialmente ao
Juiz de nossa cidade...”, mas as pessoas naquela praça notaram
muito bem, e no fim das contas atribuiriam o feito a mim, e não
ao Prefeito.
O feito não era meu exatamente, nem me cabe aqui qualquer
nobreza por ele; eu simplesmente fiz a intermediação entre a
prefeitura e o responsável pelos projetos de criação de novas
filiais. Era um homem até que integro, e foi difícil dobrá-lo.
Primeiro, nem tentei convencê-los das vantagens que aquela
loja traria para a cidade e para o povo daquela cidade: isso é
argumento para se jogar num programa de televisão, rádio ou
jornal, quando o povo está olhando, e não quando se está
conversando a sós com um dono de qualquer coisa grande; fui
logo para as vantagens que sua loja iria receber, como isenção
de impostos, abatimento total (nos primeiros meses) e parcial
das contas de energia e água, que seriam pagas pela prefeitura,
entrega do local de construção das instalações livres de
encargos, etc., tudo que poderia fazê-los reduzir o preço e
abater a concorrência sem qualquer problema. É claro que os
pequenos comerciais, pais de família, trabalhadores honestos,
iriam ser fundamentalmente prejudicado, principalmente
porque eles nunca teriam os mesmos incentivos de trabalho,
mas o Prefeito não estava muito preocupado com os pais de
família, nem tão pouco o povo, que só queria ver a Grande Loja
instalada em sua cidade para comprar mais barato produtos de
melhor qualidade; não ligavam muito para como estes produtos
de maior qualidade ficavam tão baratos.
Não lhe sendo suficiente os incentivos prometidos, pois havia
mais vinte cidades que estavam dispostas a dar os mesmos e até
mais, partir para o suborno. Uma bela quantia, que sairia dos
cofres públicos, naturalmente, seria de algum jeito posto em sua
conta particular ou em qualquer outra que desejasse. Vi logo,
quando falei do dinheiro, seus olhos brilharem, mas ele era um
bom comerciante; fez-se que estava pensando, esperando tirar
mais alguma oferta de mim, mas já pronto a aceitar se eu não
me pronunciasse com mais nenhuma. Foi exatamente este
barganhar comigo que se tornou seu infortúnio depois.
Insinuei poder, para dar a entender que ele não se arrependeria
em fazer a minha vontade, e como na insinuação de poder eu
não sabia deixar de insinuar predisposição para a violência, ele
se pôs logo a aceitar: barganhou ainda um carro novo, que eu
deveria mandar a sua casa, e este “deveria” me soou ousado e
corajoso demais, mas concordei. Quando assinou o contrato
com a prefeitura, recebeu no trabalho um carro do ano com
duas loiras peitudas para lhe fazer companhia durante o test-
drive, mas daí já começava meus planos. As garotas eram
funcionárias de um prostíbulo de luxo que mantinha na capital,
sob a responsabilidade de um homem de confiança e inferior a
mim; eram profissionais da melhor qualidade, capazes de fazer
os homens mais poderosos comer nas suas mãos.
Uma simples rodada com as duas e ele ficou doido. Natural! Os
homens comuns costumam não ter aventuras deste tipo: são
tradicionalistas demais para fazer suas esposas lhes satisfazerem
em tudo e covardes demais para arrastar outras a fazê-lo. Assim,
quando a chance aparece, não estando preparados ou
acostumados, são facilmente tomados pelo abismo. O pecado,
quando vem forte, às vezes, ao invés de corromper, quebra o
espírito, trazendo vulnerabilidade.
Doido pelas garotas, que estavam instruídas por mim a darem
uma de que gostaram dele, para que ele as frequentasse mais e
mais vezes, passou a dar-lhes presentes e atenção, talvez até
mais caros e maior do que dava a sua esposa oficial, que ficou
em casa prevendo uma crise do casamento. As crises deste tipo
são naturalmente passageiras, e qualquer homem sabe levar sua
esposa na conversa e resolver tudo: eu mesmo tinha feito uma
fez, quando deixei a situação chegar a tal ponto. Eu, porém, não
queria que ela se resolvesse.
Mandei, então, cartas anonimas para sua esposa acusando o
marido de está-la traindo, e fiz com que ela achasse no birô de
trabalho dela um cartão de um detetive particular, que no caso
era eu: suborno de nada, quase não tinha graça. Sendo que o
destino colaborava para que ela investigasse o marido, resolveu
contratar-me, e confesso que eu não tinha, inicialmente,
percebido as incríveis possibilidades que toda a situação podia
trazer.
Era mulher muito bonita, mas tinha sido criada sob pai muito
autoritário e marido muito conservador: era carente e não saia
de casa muito, e não tendo vida social, vivia pelos livros e
novelas, na solidão da casa sem filhos e só com empregadas, o
que lhe deixava propensa para todo o tipo de influência, arte
que eu sabia muito bem.
Como as garotas estavam sob meu mando, não foi nada difícil
bancar o detetive, nem precisei estudar o papel que
interpretaria. Segui-los era simples, eu sabia para onde iam
sempre; tirar votos não era problema, as garotas tiravam por
mim; e até fazer o idiota do marido cometer alguns erros graves
era possível, bastava dar ordem as meninas para embebedá-lo e
fazer dele o que quiser. Botei-o para fazer relações sexuais com
um travestir, uma vez, mas naturalmente era uma montagem,
ele era heterossexual assumido e nunca iria fazer aquilo
conscientemente; a mulher dele, porém, não precisava saber da
farsa.
Enquanto a brincadeira com ele ia me divertindo, chegando a
tal ponto que eu conseguir , por telefone, uma gravação em que
ele se dizia apaixonado por uma das garotas, ia também
destruindo a integridade psicológica da mulher, chegando ao
ponto de tê-la chorando no meu ombro perguntando se ela não
tinha valor, para que o marido procurasse até homens para
satisfazê-lo. Neste contexto, fui fazendo a caveira do marido e
consolando a esposa, no velho papo de sempre: ele não te
merece; você é muito especial e precisa de alguém que goste de
você; não chore, você fica mais bonita quando sorrir; eu não
gosto de te ver triste assim, etc., toda a conversa besta que as
mulheres precisam ouvir antes de se entregarem a outro
homem.
Neste jogo, terminou que eu tinha conquistado tudo que eu
queria e até um pouco mais. No dia da inauguração, estava eu lá
recebendo os louros pelo feito; enganando o Prefeito, o que me
dava muita alegria; fazendo o povo de besta, o que era divertido
também, assim como prejudicando um monte de pais de
famílias, que não tinham outra escolha a não ser serem
trabalhadores honestos. Logo no outro dia, fiz uma viagem para
consolar a mulher, que tinha me largado chorando, se dizendo
muito sozinha, e terminei com ela na cama me dizendo que
queria se vingar do marido, fazendo comigo tudo que não tinha
feito com ele. O Marido, arrastei-o para uma emboscada uma
semana e meia depois, exatamente o tempo que precisei para
fazer tudo com a sua esposa, para repetir o tudo, e para abusar
do tudo, tendo inventado até umas maneiras novas de fazer o
tudo. Morreu de latrocínio, dentro de uma das favelas da
capital.
A mulher morreu no fim daquele mês de suicídio. Acho que eu
não devia ter dito a ela, quando ela me ligou dizendo que estava
apaixonada por mim e que queria viver comigo para sempre,
que eu só tinha ficado com ela por pena e pelo sexo e que
nenhum homem são iria gostar de verdade de uma mulherzinha
tão infantil e fácil como ela. Mas desde então cheguei a
conclusão de que não deveria brincar com os sentimentos das
mulheres assim porque ela podia ter ficado com raiva e ter feito
uma besteira, como tentar acabar com meu casamento.
XXXVI Nostálgico
Sua carne se reverdecerá mais do que na sua infância; e ele
tornará aos dias da sua juventude. Jó 33:25
Nossa Vila de Deus foi, por muito tempo e antes de alguns
acontecimentos outros, uma típica cidadezinha do interior:
pacata, tranquila, em paz consigo mesma e com os outros, lenta
e mais humana. A modernidade, porém, veio, poderosa e veloz,
com seus homens modernos, como eu, apenas um pouco mais
que cardíacos, e com suas novidades todas elas rápidas, intensas
e passageiras, como o espírito vido de amor que hoje enche os
jovens que amam grandiosamente sem sequer supor o que é
realmente o amor. Acostuma-se, mas não sem prejuízos.
Se as coisas fossem certas, porém pessoas como eu estariam
cumprindo duras penas ou em hospitais recebendo medicação
pesada e tratamento. Mas não são: sorte minha, azar o seu e da
Vila, que era tão bonita e deveria continuar sendo. Mas não dá
para basear uma vida nos deverias da vida.
Bateu-me certa melancolia agora, sabe?! As lembranças estão
fervilhando e querendo voltar, como se desejassem que sua
presença me fizesse mal. Não faz; são como certas bebidas que
se ingerem sem causar grande mal além da embriaguez,
contanto que não se misturem com outras bebidas. Neste
sentido, você pode beber rum com qualquer outro tipo de
refrigerante sem se sentir tão mau, mas o misture com cerveja e
verá o céu e os anjos rodarem num balé divertidíssimo (assim
como deve ser). Assisti com frequência a este espetáculo sem
maiores inovações: estava curioso pela sensação de embriaguez
rápida e intensa, mas seu efeito colateral, o gosto ruim na boca
e a dor de cabeça posteriores, devo admitir, deixam o todo da
brincadeira muito próximo de não valer a pena.
Mas por falar em bebedeiras, quando às metafísicas, recomendo
cuidado redobrado e considerável moderação, porque são mais
perigosas que tudo. Este é o segredo do verdadeiro sábio
bêbado. Misturar, por exemplo, nostalgia com solidão é uma
escolha muito forte que se tomada demasiadamente pode muito
bem resultar numa ressaca depressiva daquelas acompanhada
por tendências suicidas. É uma escolha nada sábia. Eu, embora
entrando na casa da saudade neste exato momento, tomei
precauções e não deixe de colocar Minha Mulher dormindo nua
à meu lado enquanto escrevo numa prancheta à mão. Assim,
caso as lembranças e as sensações provocadas tentem me
arrastar para muito longe do meu querer, basta olhar para as
carnes brancas de meu bem ou acariciá-la onde eu queira para
que ela não me deixe ir. Minha Mulher é que estranhou um
pouco quando lhe pedi que realizasse esta vontade, mas, como
não era a primeira delas que vinha esquisita (da outra fez pedi
que dormisse com uma das pernas postas sobre a minha, de
calcinha, e que ignorasse quaisquer sinais de excitação de
minha parte, atendeu-me. Chamo a isto de barreira sentimental.
Creio, também, que Minha Mulher sabe que não sou uma
pessoa normal, que tenho um lado muito escuro (poucos
segredos se escondem totalmente), e que preciso de quando em
quando estar controlado e direcionado, e talvez se sinta bem em
ser a barreira que me impede de escurecer. E é sempre bom
deixar que as mulheres acreditem nisso. Outra mistura que não
faz muito bem à saúde é a de consciência com lembranças do
passado. Fui viciado nesta nos tempos de minha mocidade, mas
para nunca mais; Deus me abençoou em livrar-me deste vício. É
coquetel por demais forte. E aliás, a consciência é como certas
bebidas que têm somente uma única e simples utilidade:
embriagar os outros, principalmente as mulheres. Nunca deseje
provar esta mistura nem, tão pouco, quaisquer outras do
gênero, com consciência; e digo-lhe mais, qualquer cachaça
barata dessas que se vendem nos botecos das esquinas é melhor
do que a consciência.
Em lembranças, então, e segurado por Minha Mulher,
principalmente, vaguei e fui parar nos meus primeiros dias na
Vila de Deus com meus sonhos infantis. Lembro-me,
particularmente, da praçinha que ficava atrás da velha fábrica
abandonada de algodão, que falira por ocasião do bicudo.
Dizem por aqui que esta praga fora trazida pelas grandes
companhias americanas para eliminar a concorrência, e se isto
contar de alguma coisa, tenho a consciência limpa de não ter
sido este um pecado meu: está vendo como é bom ter a
consciência limpa?!
Contava, a praça, com três pequenos jardins desnivelados que
continham, cada um em seus cantos, dois bancos de madeira. O
Prefeito era que os tinha mandado construir daquele mesmo
jeito, duros e constantes, como promessa de campanha que até
mesmo os netos dos netos dos netos dos cidadãos da Vila de
Deus teriam a chance de namorar naqueles bancos. Aquela não
era a Praça dos Namorados, naturalmente, que ficava dois
quarteirões mais distante e abaixo, mas a fala, naquele
momento, rendeu bons aplausos, e talvez tivesse rendido uma
reeleição, não fosse o trágico acidente do prefeito.
O banco da ponta esquerda superior era especial para mim e eu
particularmente mandaria assassinar aquele que o vandalizasse,
se eu fosse uma pessoa realmente nostálgica. Não sou, sou
apenas um cara que gosta de brincar com os próprios
sentimentos e alheios para dar um pouco mais de cor e sabor à
vida artificializada depois de muitos acontecimentos e
pensamentos. E eis um bom conselho para você, se já tiver
entrado na Vila da Corrupção, ou se pretende para mudar uma
vida de sofrimento e desapontamento com o que eles chamam
de correto.
Aquele banco fora o lugar onde di meu primeiro beijo aqui na
Vila de Deus. Lembro-me quase que perfeitamente da sensação
de vitória, conquista e aquisição, como uma criança com um
brinquedo novo ou um jovem que acabou de comprar algo com
seu primeiros salário. O tempo era o de quatro semanas depois
que eu tinha tomado a grande decisão de minha via, e não havia
volta. O Ladrão de Cargas e os outros membros da gang
estavam no meio de seus treinamentos diários, trabalhando
duro com muita dedicação e quase prontos para se tornarem os
melhores do estado, superando tanto a concorrência quanto a
polícia, e eu necessitava de uma distração. Por aquele tempo eu
já desejava uma companhia permanente, porque o homem com
fantasmas na cabeça e muito remorso no coração precisa de
alguém que segure sua mão e que esteja junto para quando a
solidão mudar de inspiradora para destrutiva. Não poderia
satisfazer esta necessidade, entretanto, pois eu tinha mudado
toda a minha maneira de ver o mundo e, com isso, o mundo
também muda para o homem, e nele não cabia mais lugar para
certas ilusões descontroladas. O amor era uma delas e se se
tinha que comprar, como sempre se compra, porque todo amor
se compra, o que muda é a forma de pagamento, então eu o
compraria com a melhor embalagem em que fosse fabricado.
Ou você acha que o amor é somente amor e que não importa a
embalagem e os acessórios? Que não são igualmente parte do
produto que se está comprando? Não tinha dinheiro, porém,
para o carro importado tive; tive que me contentar com o
nacional, que naquele caso era a Filha da Velha Gorda.
A conquista foi rápida, que resultou no meu primeiro beijo e em
quase um ano de namoro fiel da parte dela. Não tive muito que
fazer, e por isso não me orgulho: não menti, não fingi
qualidades, não subornei ninguém para tal. O destino, diz-se, é
que parecia querer-nos juntos; o destino e a Velha Gorda, que
queria que a gente se acertasse mais do que a própria filha. Eu
era o melhor partido que aparecera interessado, é claro, e
poderia dar a princesinha dela uma vida de princesa de verdade.
Quem diria que eu acabaria dando-lhe outra....mais dura.
XXXVII Começo do Herói
Não perverterás o direito do teu pobre na sua demanda.
Êxodo 23:6
Quando entre ti houver algum pobre, de teus irmãos, em
alguma das tuas portas, na terra que o SENHOR teu Deus
te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás a tua
mão a teu irmão que for pobre. Deuteronômio 15:7
De todos os homens que trabalham com a lei, acredito que
poderia considerar-me um bom juiz; isso, pelo menos, dentro
das paredes do fórum. É um trabalho cansativo, naturalmente:
fazer valer a lei naquele ambiente com os recursos escassos que
este país nos disponibiliza é realmente uma prova de que eu sou
uma pessoa criativa. Às vezes o trabalho me dar dor de cabeça,
principalmente nos casos mais banais que alguns poderosos
levam a justiça apenas para demonstrar poder, mas é
exatamente nestes casos que eu lavo a alma de algumas
vontades minhas.
Dia desses chegou até mim uma denúncia do promotor local
sobre um assalto que tinha acontecido na churrascaria da
cidade. Caso banalíssimo. O promotor, provavelmente por
influência do poder do Dono da Churrascaria, e também por
não me conhecer direito e por não ter previsto qual seria minha
reação àquela denúncia, deu corda no capricho do burguês. Não
fez por mal; simplesmente pensou que eu fosse um desses juízes
positivistas que simplesmente leem a lei e a aplicam, e também
que, como muitos, eu me posicionaria a favor do Dono da
Churrascaria ao invés de querer pegar briga defendendo um
pobretão.
Descarreguei toda a minha raiva (que era por uns muitos
motivos fúteis e uns poucos motivos justos) no promotor e todo
o mundo que dentro do raio de alcance dos meus berros. Não
fiz, naturalmente, só para usar de valentia. O caso era
conhecido e muito vantajoso para dar ares ao meu espírito de
justiça (principalmente porque me era muito bom que todos na
cidade o vissem voando). O pobre coitado tinha roubado umas
comidas no desespero de salvar a família de mais um dia de
fome: pelo menos um. Também não fora só por isso que dei
curso a vontade de me amostrar, mas também pelo fato que eu
estava morrendo de vontade de mostrar quem era realmente
mais poderoso naquela cidade e assim o fiz.
Dentro do fórum me aquiete um pouco. Não ia passar do além
que a lei me permitia só por causa de um passa-fome. Mas do
lado de fora, quando eu tinha mais liberdade de soltar o verbo,
di asas à imaginação. Sair de braço no ombro com ele,
acompanhando-o até meu carro, pois eu mesmo iria dar uma
carona para ele até em casa e ajudá-lo. O povo, que estava
ouvindo tudo, pois o povo não abaixa as orelhas para as
possíveis fofocas e eu também não cuidei de abaixar o tom de
voz, muito pelo contrário, sempre falando grosso, começou a
me olhar como se eu fosse um herói: aquele que iria lutar pela
defesa dos seus. Se soubesse?!
O Dono da Churrascaria, que tinha dado início ao show que
tomei para me promover, tentou apelar para seus direitos como
proprietário e outros mais, citando a constituição até que
bonitinho; mas quem ligava para o que a constituição dizia.
Tentativa pobre; não tinha experiência em fazer cenas como eu:
tudo o que ele disse foi praticamente só para me promover
ainda mais.
Como os prejuízos do roubo não passavam de cinquenta reais,
que é na facha do que minha mulher gasta só com perfume por
semana, um dinheiro que daria para manter a família do
Denunciado por um mês, tirei do bolso uma nota de sei, e
joguei como se fosse em direção do Dono da Churrascaria.
“Tome seu dinheiro, Senhor”, eu disse, “não queira prejudicar a
vida desse homem por causa de uma ninharia dessas.”
Quase deu para ouvir transpiração dos circundantes, e logo
depois uma aluna de Direito que fazia estágio conosco aplaudiu,
ao que todos acompanharam, como gado em rebanho.
Interrompi-os, logo; precisava fechar com chave de ouro. “Não
quero que me aplaudam”, eu respondi em bom tom, “estou só
cumprindo o meu dever”. E sai logo para não acabar caindo em
exagero, porque eu já estava me empolgando.
Levei, então, o Denunciado para sua casa e lhe prometi um
salário mínimo. “Não é esmola, meu amigo”, respondi quando
ele insinuou que não aceitaria, “será um trabalho fixo para que
você trabalhe para mim.” Estava sem emprego fixo ou estável,
como quase todos os do tipo dele estão. Disse-lhe que tinha
uma chácara perto da cidade onde de quando em quando eu ia,
mas que precisava de uma família que ficasse lá e cuidasse de
tudo, e disse que o queria para o serviço. Aceitou na hora,
emprego, obrigações e salário (que era duas vezes menor ao que
eu pagava para a antiga família que trabalhava para mim).
Terminando as negociações como o Denunciando, para que ele
não saísse pela cidade dizendo que só na frente do povo eu fora
bonzinho, mas que saísse espalhando que eu tinha realmente
ajudado, virei minha atenção para o Dono da Churrascaria. Não
iria criar um inimigo por motivos bestas.
Encontrei-o extremamente irritado num aposento particular,
esperando-me para que eu me retratasse. Não fui sozinho; levei
duas profissionais que sabem amolecer até a mais dura alma de
um homem: dinheiro e mulher. O dinheiro, era uma quantia
que equivalia a mais ou menos o lucro bruto de seis meses de
funcionamento da churrascaria, e a mulher era algo do tipo que
valeria mais do que a mulher com quem ele dormia todo o dia.
Não o convenci, porém, de súbito, com presentes tão simples:
alguns homens são simples, de alma humilde, sem muita
ambição, e fáceis de agradar: precisam apenas de uma esmola
qualquer dada de modo que não se pareça com esmola, mas sim
um direito admitido; outros são mais espertos, mais comerciais,
mais provados nas coisas da realidade: não se contentam só com
presentes, mas querem vantagens para desenvolver negócios,
proteção para cometer pecados, poder para destruir as coisas e
os outros. Sei lidar com ambos, cada um a sua medida e com
sua linguagem própria.
Terminei fazendo acordo em que ele receberia mais visitas
como a daquela moça, e que eu prometeria não usá-lo mais para
melhorar a minha imagem, além de ajudá-lo a recuperar a sua,
que por aquela hora já devia está na lama, pois todos na cidade
já deviam estar sabendo do acontecido. Pensei que fosse pedir
mais, e estava mesmo preparado para oferecer mais, mas talvez
ele não tenha se estendido muito nos pedidos por temer alguma
vingança futura de minha parte. Sentiu muito poder em mim e
não quis provocar-me. Sensato dele.
Voltei para casa aproveitando a sensação de ser um herói, e
tudo aquilo sem gastar um tostão: pois tanto o dinheiro que eu
dei para o Dono da Churrascaria e o que eu prometi como
salário do Denunciado, eram dinheiro de roubos e extorsões. Eu
os tinha arrancado uma enorme quantia, e agora, aconteceu que
lhes devolvi alguma merreca, depois de ter lucrado. Senti-me
como o próprio Governo, que fazia a mesma coisa todo o dia, e
naquele dia dormi muito bem.
XXXVIII Tranquilidade
Haja paz dentro de teus muros, e prosperidade dentro dos
teus palácios. Salmos 122:7
E o efeito da justiça será paz, e a operação da justiça,
repouso e segurança para sempre. Isaías 32:17
Também me deste o escudo da tua salvação; a tua mão
direita me susteve, e a tua mansidão me engrandeceu.
Salmos 18:35
O tempo ia passando e eu ia ficando velho para algumas coisas.
Já fazia algum tempo que ninguém morria por minhas ordens, e
outro um pouco menor que a gang não se metia com assaltos. A
evolução da carreira, meu amigo! Fomos subindo lentamente de
ladrões de cargas para criminosos do colarinho branco, e eu não
tenho palavras para descrever como essa vida é monótona.
A sensação de poder era algo que eu não descrevo, mas deve ser
algo muito parecido com o que os padres sentem quando
percebem que controlam as vidas de seus fiéis, ou pelo menos
de alguns deles. No começo, tudo tinha sido por dinheiro, e eu
caia na besteira de dizer que não ia fazer mais do que o
necessário, mas depois fui tomando gosto pela coisa. Você já
segurou um revolve contra o rosto de um inimigo seu, deixando
entre ele e a bala somente o espaço de um impulso livre de
raiva? Você já teve o poder de com uma assinatura, resolver ou
destruir a vida de alguém, ou melhor ainda, as vidas de alguém?
Você já teve nos lábios mentiras tão fortes que as pessoas
acreditam nelas com uma facilidade quase inacreditável? Não
sabe o que está perdendo, porque eu fui tudo isso: fui como a
polícia, e oprimir meus inimigos com a violência, assim como
ela oprime o povo; fui como o Estado e, nas minhas decisões,
arruinei e resolvi vidas, com o poder de uma página escrita, do
mesmo jeito que ele faz com as muitas vidas; fui como a Igreja, e
de minha boca saiu todo o tipo de palavras para agradar aos
outros e manter minhas regalias e poder, como fiz com Minha
Mulher, com meus amigos, com todos; enfim, fui uma
instituição inteira.
Não seja tão rápido ao me condenar, caro Leitor, pelo menos
não tão rápido quando será lento para condenar o mundo que
foi meu palco de atuação. Sou mais um artistas de tantos;
alguém que aceitou o papel que mais lhe convinha, e que não
deixou de fazer sucesso. A vida é um teatro, meu amigo,
entenda isso de uma vez por todas, ou fique sem entender
mesmo: melhor! Menos serão os atores e mais os espectadores,
e o show fica assim melhorado com a presença de apenas
poucos no palco do poder.
Não tenho remorso, nem arrependimento... talvez um pouco de
culpa aqui e acolá, mas isso é tão subjetivo e mínimo que não
vem ao caso. O que há de difícil de me entender para você
talvez seja o fato de que eu não sou um monstro comum.
Ontem matarão queimados vivos pai, mãe e filhos de uma
família bem bonita, do mesmo jeito que eu fiz com a família de
minha mulher. O que me torna diferente daqueles bandidos?
Acredito que você já saiba a resposta, por isso nem me
incomodo, mas em caso de não saber, deixo-lhe o problema
para que resolva: talvez a resposta deste problema lhe vá mudar
a vida, pois saiba que eu não sou o único de mim a andar pelas
ruas. A sociedade inteira, como um conjunto, tente mais para
este meu tipo de caráter....do que para o seu.
Isso assusta você? Não se assuste, nem se preocupe. Não quero
tirar sua noite de sono. Isso não tiraria meu sono, claro, mas
não é por isso que me importo. Hoje está uma noite tão bonita
para esquecermos tudo e beijarmos nossas esposas, e deixarmos
que elas espantem tudo o que é mal de nossas mentes, deixando
somente o que é belo.
Por que você não tenta? (Eu vou tentar hoje à noite!) Este é um
remédio que tanto os anjos como os demônios podem usar sem
medo. Veja se não funciona. As coisas belas estão aí para isso,
para nos esquecermos da feias... e o ser humano tem uma ótima
habilidade para o esquecimento, eu sempre soube disso e de
que ela me seria muito útil.
Jogue fora os livros de autoajuda, eles não ajudam em nada se
você não entende o real problema. Você nunca vai ser
realmente feliz por detrás das páginas de qualquer livro.
Também não vai ter muito sucesso procurando detrás das
regras de códigos morais velhos, como os bíblicos, por exemplo.
Relaxe! Deite a cabeça no colo de sua mulher (ou homem, se
você é uma mulher e ainda não me odiou até agora o suficiente
para queimar meu livro): ela está lá para isso, e vai achar até
algo bem romântico. Faça-a acariciar seus cabelos, ou qualquer
outro carinho que lhe agrade. E se livre dos pensamentos ruins.
Deixe vim a lembrança do primeiro beijo que você deu roubado
naquela festa que você foi escondido, e deixe para lá que talvez
tenha sido necessário mentir ou talvez até roubar o emprego de
outra pessoa; deixe vim a dos momentos de riqueza e luxo em
que você casou com as pompas que muitos não tiveram a
ousadia de sonhar em ter, e deixe para lá o fato de que talvez
você teve que explorar trabalhadores honesto para tanto; e se
você for mais um pouco ousado como eu, deixe vim a
lembranças de todas as vidas que você atrapalhou ou destruiu
para tornar a sua o mais perfeita possível. No fim das contas,
algumas vezes, não raras, o resultado importa mais do que os
meios para obtê-los. Olha o meu vizinho da direita, por
exemplo, tem o mesmo nível de felicidade e tranquilidade que
eu, e conseguiu tudo honestamente. Teve sorte! Já meu vizinho
da esquerda, que também é metido das honestidade, nunca
conseguiu metade do que eu tenho, e sua esposa se separou dele
para casar-se com alguém mais rico. Até acho que se você
conversar com ele sobre mim, ele vai dar uma piscadela de olho
de tentação.
Mas o que será mesmo que te irrita? Claro, não é uma pergunta
sem sentido, porque eu sei que não é uma morte aqui, um
assalto ali, uma propina naquela outra ocasião, nada disso: essas
coisas veem acontecendo há muito, e isso já não incomoda
tanto, não é? É algo mais. Talvez o que você queria era que eu
perdesse o sonho hoje, banhado na culpa, ou que implorasse em
palavras melosas que me perdoasse às faltas, para que talvez eu
pudesse receber a absolvição de um deus divinho e maior do
que tudo no mundo. Não! Não! Não! Não! Não! Até dói no
ouvido usar estas palavras; estão muito fora de moda. Talvez
então eu devesse me perder em psicoses, pelo menos, e ficasse
louco, vendo os fantasmas das pessoas que eu mandei para São
Pedro, e tudo mais. Mas também não! Eu sou melhor do que
isso. Esse tipo de coisa são para os de mente fraca, que se
deixam levar demais pelos próprios pensamentos. Talvez então
eu devesse pelo menos tentar me justificar, tentando aumentar
ou alterar os fatos, tentando justificar as coisas ruins que fez.
Qualquer coisa, qualquer coisa que lhe fizesse perceber em mim
qualquer coisa de desespero: assim, talvez, você pudesse se
defender e dizer que o mal afetou ele, por mais que o mundo
não o tivesse condenado. Sinto ter que desapontá-los aqui
também: o mal não me afetou em nada, muito pelo contrário, às
vezes é uma companhia tão agradável quanto o bem, porque o
que você chama de mal, junto com o bem são só ideias morais
que vão ficando velhas e morrendo com o tempo.
Sei lá?! Você, claro, pode se alimentar com a ideia de que um
dia uma pontinha dessas ideias vai me atingir, e que esse
pequeno súbito raio de humanidade vai quebrar meu coração
fio em dois, levando embora a sanidade. O direito é seu, mas
ambos sabemos que não vai; no máximo, perderei o sono de
uma noite, mas para isso remédio sempre há: álcool, televisão,
sexo, etc.
Sabe, é que essas ideias funcionam machucando um significado
que a sociedade conseguiu colocar em nós por meio de nossos
pais, da educação, dos filmes, dos livros, etc. Uma vez que você
acaba com esse significado, elas vêm e não encontram nada para
machucar: então, não servem nem como uma piada ruim.
Uma piada ruim! Essa foi boa! Quem será que vai rir?
XXXIX Reencontro
Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-
á. Porque tudo que pede, recebe, e, o que buscas, acha. –
Mateus 7:7-11
Dia desses, fui à capital tratar de uns negócios pendentes. Já era
hora de fechar mais um ou dois ilícitos que eu não estavam mais
servindo para me divertir. Tudo rotineiro: era só passar para um
qualquer mais interessado e menos poderoso e, se me desse
vontade, como aconteceu uma ou duas vezes, arrumar um jeito
de entregá-lo logo em seguida sem que nunca soubesse que fora
eu que o entregaria. Sempre tinha a possibilidade de, logo após
entregá-lo, pagar-lhe do próprio bolso o melhor advogado para
tentar soltá-lo: isso sempre os confundia.
O Ladrão de Cargas, que tinha sido avisado que não preparasse
nada, acabou não resistindo, e me levando para uma de nossas
casas de diversão para que eu conhecesse as meninas novas, que
tinham acabado de ser incorporadas no negócio. Eu, não estava
com o menor interesse de ver mulheres, pois já bastava a mãe
de minha filha que era muito suficiente neste aspecto. Deixei-
me ir, entretanto.
Demorou um pouco, mas enquanto conversava com o Ladrão,
envolvido pelas novas meninas, percebi nos olhos de uma delas
os olhos que há muito tempo me tinham visto como o Diabo.
Esse tipo de coisa não se esquece.
Eram os olhos da funcionária, a minha antiga funcionária, que
mesmo vestida de vulgaridades ainda continuava linda.
Continuei olhando-a até que me notou e olhou para mim. O
olhar era totalmente diferente de todos os que havia visto antes,
e eu preciso falar dele, porque se durante a noite dormir com
ela, e a fiz fazer coisas de profissionais, se usei de seus serviços e
paguei com alguma inquietação no espírito, foi somente pelos
efeitos do que aquele olhar me causou. Ela acabou se tornando,
na minha vida, a mulher que mais me marcou, e fez isso usando
somente os olhos.
Num primeiro momento, quando eu cheguei à cidade, sem um
vintém no bolso e somente com o poder que o poder judiciário
me dá, que não é pouco, mas que não chama muito a atenção
das pessoas comuns, o olhar dela era indiferente: como se não
me conhecesse ou até não me visse. Não a culpo. A visibilidade
social é um fenômeno que envolve muitos elementos, a maioria
deles compráveis ou conquistáveis por poder e dinheiro. Se o
mundo inteiro tinha escolhido que um conjunto de regras
contraditórias e injustas fossem a moral mais forte
predominante, quem era eu para dizer que o contrário.
Num segundo momento, quando deixei claro que o emprego
dela corria risco se ela não cedesse as minhas vontades, o olhar
dela era como o de alguém que ver simplesmente uma pessoa
fútil, um homem desprezível, tipo daqueles que as mulheres
olham e dizem, “os homens são todos iguais”. E tendo que ceder
aos meus caprichos, pelo poder que era superior em mim, e
vendo que eu não abusava dele com violências desnecessárias e
grosserias inconvenientes, pôs-se disposta a se acostumar com
os presentes e carinhos, que não eram poucos. Natural! Muitas
mulheres podem amar os “homens que são homens”, embora
não tenham tanta facilidade para gostarem dos “homens
diferentes”.
Esse olhar manteve ao longo de nosso relacionamento, cada vez
tendendo mais para o querer bem do que para o desprezo.
Simples: os sentimentos são algo em andamento, modificáveis, e
não se tem um amor hoje que não possa se tornar um ódio
amanhã, e o inverso também é válido. Ficamos nesta situação
até o momento em que ela engravidou, e mandei que tirasse o
filho como se fosse uma roupa ou bijuteria barata, que foi
quando ela me deu o olhar de que eu era o Diabo. Foi assim não
por que tivesse notado crueldade em mim, mas porque notou
simplesmente nada, como se eu tivesse esvaziado o espírito de
sentimentos.
Se antes, porém, eu era um demônio para os olhos dela, naquele
momento, ela me olhava de modo completamente diferente.
Forçou o sorriso, ou melhor, meio que o forçou, pois não havia
tanta dificuldade naquela ação, mas algo de profissionalismo.
Eu era agora para ela como uma força maior, muito além da
compreensão que ela pudesse ter. Eu não era um deus: pois aos
deuses, pelo menos na contemporaneidade, geralmente se
imputa a qualidade de bons; não era, tão pouco, um demônio,
pois também em nossos tempos se imputa a estes a qualidade
de maus; eu era simplesmente algo dos dois, e nada deles.
Expulsei as outras novatas, que disputavam entre si para ver
quem iria passar a noite com o Poderoso Juiz da Vila de Deus.
Era uma ótima oportunidade para que uma delas conseguisse
me agradar e conquistar algum afeto de mim; sabiam que não
era impossível, pois uma ou duas vezes eu tinha tirado daquela
vida três ou quatro meninas que me tinham agradado
suficientemente. Ficaram chateadas ao verem que dei ordem
para que somente a funcionária me fizesse companhia.
Ela veio toda profissional; sentou-se no meu colo e ficou a fazer-
me carinhos sem interromper a conversa que eu estava tendo
com o Ladrão de Cargas. Este continuava falando de umas
besteiras as quais eu não dava a menor atenção; estava
concentrado em sentir os lábios da funcionária no meu pescoço,
no meu nariz o perfume suave, que era do mesmo tipo que ela
usava quando ficávamos juntos, no meu colo as pernas de
mulher feita apertadas numa minissaia, em volta de mim os
braços muito brancos, e à vista de meus olhos o decote de seios
apertados pelo sutiã que se insinuava para fora. Num dado
momento, coloquei a mão na autora da cocha dela, entre uma e
outra, ao que ela respondeu afastando o rosto do meu pescoço e
me olhando, como se pensasse que eu a quisesse beijar. Eu
pensava mesmo, mas como percebi as expectativas dela, reagi
diferente. “Continue”, disse, como se não tivesse sensações.
Ela voltou a pôr o rosto no meu ombro, do lado direito do
pescoço, e a beijá-lo de quando em quanto e a acariciá-lo com o
rosto, esperando por minha nova ordem. Não creio que
acreditasse que eu não tinha sensações, pois, no meu colo,
sentia perfeitamente que tinha algum efeito sobre o corpo,
embora soubesse que não tinha nenhum sobre o espírito. Não
deixei que ela percebesse que ainda tinha algum. Nesta
situação, acho que acabei desapontando o espírito de prostituta
dela, já que é comum que, nestes casos, seja ela a corpo-frio, e
não o cliente.
Naturalmente o carinho desse tipo não é igual àquele dado
gratuitamente ou ao natural. Mas o adoçante artificial adoça até
mais do que o açúcar comum, e o comprado do dado muitas
vezes tem efeitos parecidos. Não me leve à mal, é só uma
verdade que aprendi que também é aplicável, com algum
esforço, à vida também.
Continuei a conversa sem pressa, bebendo meu uísque. Ela
bebeu também e, para fazer um charme, a maioria das vezes no
meu próprio copo, fazendo um charme nos olhos. Olhei pouco
para ela nestes momentos, evitando que ela percebesse que
aquelas olhos tinham algum poder sobre mim. Talvez não
tivesse percebido, achando que eu a tinha escolhido pelo
histórico que nos ligava.
Levantei-me, então, e a pus junto a mim, com alguma firmeza e
possevididade. Ela deixou-se vim sem problemas, apoiando o
corpo no meu e continuando com o rosto no meu pescoço.
“Quando é o preço definitivo dela”, perguntei para o Ladrão de
Cargas. Perguntei simplesmente por reflexo, acostumado a ferir
a alma das pessoas sempre que podia. Ela não disse nada, só
apoiou o corpo mais forte sobre o meu. “Se te agrada, Doutor,
pode levar para casa”, o Ladrão de Cargas respondeu e, como
tivesse percebido minha motivação quase involuntária, vinda do
hábito, emendou, “quando abusar, pode devolver, a casa está
sempre às suas ordens.” Logo aí nos despedimos. Ele foi para
um dos aposentos, com duas das novas meninas, que estavam
um pouco chateadas por terem percebido que eu tinha
escolhido a funcionária.
Eu fiquei mais um tempo com ela, conversando, bebendo e
dançando, ou melhor, eu conversava, eu bebia e eu dançava, ela
continuava só me acompanhando e dava para sentir isso no ar,
embora era fizesse tudo de uma maneira agradável. Alguns
minutos depois, ela já tinha esquecido um pouco o
profissionalismo e se posto lá como mulher. O carinho que ela
me dava não era oriundo de um bem-querer, nem mesmo de
um querer, mas sim de uma simples resignação.
Era já sem brilho, sem força de revolta ou qualquer outro sonho
que não fosse viver uma vida o mais feliz possível, não
importando como. Naquele momento ela tinha duas opções: a
primeira era tentar revoltar-se e me atacar de algum jeito,
mesmo sem poder, o que resultaria em talvez ela atendendo
vários homens por noite numa boate vagabunda (isso se
sobrevivesse depois); ou então, resignar-se a atender somente a
um cliente, como eu, que lhe iria tratar bem.
Acho que, durante a vida, desejou ver a minha punição.
Qualquer coisa, quem sabe. Que eu nunca tivesse casado ou
encontrado alguém para gostar de mim; que eu não tivesse
amigos de verdade, mas somente falsários sempre atrás de tirar
vantagem sobre mim ou tomar meu lugar; ou então pelo menos
que eu fosse um homem consumido pelo remorso. Como não
aconteceu nada disso, eu tinha uma ótima mulher que me
amava, ótimos amigos, embora poucos, tinha sucesso na vida e
integridade de espírito que fazia inveja, entendeu como aquele
mundo realmente funcionava. Talvez tivesse deixado, naquele
momento, de acreditar em forças sobrenaturais, na sorte
favorecendo os bons, na vitória eterna e constante do bem sobre
o mal, e até nos finais felizes de novela onde o vilão sempre
morre.
Cansada de apanhar da vida, tanto de mim como de tantos
outros, simplesmente se deixou levar pela vida, do mesmo
modo que se deixou levar pela mão por mim. Pus-lhe numa
chácara de luxo, com muitas regalias e alguns empregados, e a
visitava esporadicamente.
Nunca lhe perguntei sobre o que tinha acontecido com o meu
filho que ela estava esperando, ela também nunca comentou
sobre ele. Descobri, depois, que morreu aos quatro anos de
infecção por falta de atendimento médico, pois ela não tinha
como pagar e o atendimento público era uma porcaria. Estava
com uma doença grave e o médico receito-lhe repouso e muito
liquido. As tragédias da vida!
XL O Atentado
E a besta que vi era semelhante ao leopardo, e os seus pés
como os de urso, e a sua boca como a de leão; e o dragão
deu-lhe o seu poder, e o seu trono, e grande poderio. E vi
uma das suas cabeças como ferida de morte, e a sua chaga
mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou após a
besta. Apocalipse 13:2-3
Os riscos não eram tão ausentes em minha vida, como posso
estar deixando parecer. Acabei me empolgando em relembrar
meus pecados que me esqueci que também pecaram contra
mim. Não quero que você pense que com essa narração quero
transformar minha vida em tranquilidades eternas, contando
meus sucesso e deixando subentendido os fracassos e tragédias.
Isso acabaria passando a ideia errada de minha atitude perante
a vida e o leitor poderia naturalmente concluir que sou mais um
desses homens comuns que põem em ideologias o peso que não
podem carregar de perceber a realidade como ela é: seca e tanto
desumana como humana, dependendo simplesmente do acaso.
Na vida há sempre riscos, e do mesmo modo que um pedreiro
no seu trabalho corre o risco de cair de seu andaime, um ladrão
de colarinho branco corre o risco de ser morto por outro ladrão
de colarinho branco que deseja, ao invés de dividir o negócio,
eliminar a concorrência. Noite dessas os fiéis de uma igreja
evangélica, nos fins das orações, foram surpreendidos com o
teto do templo caindo-lhes sobre as cabeças, e no fim das
contas, o pastor sempre dizia nos sermões que aquele era o
lugar mais seguro e abençoado de se estar.
Perceba que são inevitáveis os riscos e diante dessa verdade
universal o indivíduo pode assumir duas atitudes. A primeira é
tomada por aquele tipo de pessoa que tem medo da própria
sombra: reprimem a própria vida na tentativa covarde de
eliminar todo e qualquer risco possível, acreditando que é assim
que se consegue a verdadeira tranquilidade. Não leitor, não
ache que há alguma tranquilidade neste tipo de vida, e chamo
vida simplesmente só por formalidade, pois não passa de uma
existência e das piores. O que há, na verdade, é uma aparência
de tranquilidade criada pela ausência próxima do total de riscos.
A tranquilidade é um sentimento humano e, portanto, deve ser
entendido dentro da realidade humana, e não da realidade de
fato. Neste sentido, a tranquilidade é um sentimento que se tem
e se mantém mesmo diante do mais profundo caos e para
muitos é algo tão difícil que chega até a parecer algo religioso,
como os budistas acreditam. De todas as atitudes perante uma
vida de risco, a de simplesmente evitá-los é para mim uma das
mais pobres e mal planejadas.
A segunda atitude que se pode tomar diante da vida e a de
escolher os riscos que se irá correr, e esta é a única atitude digna
que podemos todos tomar. Mas aí surge um problema natural,
que muitos não sabem resolver, que é o de saber quais os riscos
devem ser evitados, e quais deve ser encarados. Muitos correm
os livros em busca de saber a resposta para esta pergunta e,
agora que estou tocando no assunto, você deve está curioso para
saber qual a resposta que darei para ela, talvez desejoso de saber
se eu tenho melhor resposta do que outros narradores. Minha
resposta, porém, talvez para o seu desapontamento, é nenhuma.
Nenhuma simplesmente porque não sou eu que deve dar a
resposta, mas você mesmo. Ai, que informação batida. Todo
mundo já está cansado de saber disso. Pode dizer. Todo mundo
já sabe que não pode deixar ninguém ficar mandando em suas
vidas, que têm que ser autônomos, mas a ideia parece ainda não
ter entrado em suas cabeças realmente, estando apenas
circulando talvez no ar.
Façamos o que queremos, afinal. Aqueles que querem ariscar a
vida com coisas poucas, de pouco lucro e prazer rápido ou
prolongado, que o façam. São donos da própria vida e
provavelmente já têm dinheiro para o próprio enterro. Mas
pergunte para eles, esporadicamente, se é realmente isso e só
isso que desejam para toda sua vida, que verá que a maioria das
pessoas não está realmente satisfeita com a sua existência,
muitos desejosos de terem feito coisas que nunca fizeram (e
nunca farão). Eu, do meu lado, permaneço aqui, correndo
alguns riscos maiores, mas ganhando mais na vida. Se morresse
amanhã, pelo menos teria aproveitado ao máximo a vida da
maneira que eu quis; muitos não terão a mesma possibilidade
de dizê-lo.
Dos riscos que tive que passar para manter a minha vida de
pecados, alguns se destacarão bastante e merecem ser contados.
Os que não merecem ser contados com detalhamento, mas
apenas mencionados, são os riscos de sempre, pelos quais todos
passam: assaltos, doenças mais graves, acidentes quase fatais,
entre outros.
Um deles, e mais grave de todos, foi a tentativa de assassinato
que foi contratada para mim. Um caso que repercutiu bastante
na Vila de Deus, até porque fora a primeira vez que acontecera.
Meu carro estava parado numa das ruas de terra que vão em
direção a região rural da cidade. Eu gostava muito de beber por
nos sábados a tarde, dentro do carro mesmo, ouvindo som. O
problema não foi a embriaguez em si, mas outra, a de poder,
que estava me inebriando e tirando-me dos cuidados que eu
deveria tomar pela vida que levava. Se antes eu era disciplinado,
depois que me tornei o Grande da Vila de Deus, acabei
relaxando: criei rotina perigosa de hábitos observáveis. Dentro
dá Vila eu ia para os mesmos cantos nos mesmos horários,
comia nas mesmas mesas e falava com as mesmas pessoas. Era
uma tendência horrível, mas natural, que passei a odiar e evitar
depois daquele dia.
Não foi nem um pouco difícil planejar toda a coisa. Qualquer
amador teria acabado comigo facilmente, mas talvez o plano
dele não fosse me matar. Não sei. Sei que naquele dia de sábado
uma vã à distância disparou vários tiros de armas de baixo
calibre contra meu carro. Vi quando meu motorista foi morto
com um tiro no rosto, e logo depois senti uma pontada forte no
peito, outra no braço e outra no estomago.
Os médicos disseram, uma semana depois quando eu realmente
acordei dos remédios e da dor, que fora um milagre eu ter
sobrevivido, e que alguém lá de cima devia está do meu lado.
Pensei imediatamente que milagre era o que aqueles bandidos
necessitariam para se salvar e logo que pude me comuniquei
com o Ladrão de Carga, cheio de desejos de vingança, e dei a
ordem para prometer uma alta quantia pela cabeça daqueles
ousados.
Não havia necessidade, entretanto, e aquele foi o maior
problema. O Ladrão de Carga já tinha iniciado as perseguições
mesmo antes de receber a minha ordem, e uns dias depois do
atentado, acharão todos os seus membros, na mesma casa,
convenientemente mortos. Não havia sinais de roubo, de luta,
nada, e eu sabia que me tinham pego com a mesma ação que
era minha. Aquela era minha exata tática de eliminação de
testemunhas: contratar bandidos vagabundos para fazerem um
serviço pesado e eliminá-los logo em seguida para que a polícia
não os peguem e os façam falar.
Também, quando refleti sobre as circunstâncias do ataque,
sobre como tinha sido tão ineficiente, até mesmo para bandidos
simples, eu soube que tinha um inimigo e era alguém como eu.
Saí daquele hospital naturalmente nervoso: além de ter a
preocupação de ter além a minha espreita, esperando para me
destruir, havia também uma sequela do atentado que era a
dificuldade de respirar que me acompanha até hoje. Não é nada
muito grave, apenas me apertando o peito de quando em
quanto.
Não tive paz durante um mês. Andava sempre com segurança,
armado e com várias armas no carro, e até me arrisquei a
mandar vir alguns membros da gang para a Vila de Deus. A
tortura continuou, entretanto, e mesmo eu estando preparado
para combater o inimigo, este nunca veio. Passaram-se dois
meses, três, quatro, e no fim de seis meses eu já estava mais
relaxado. Comecei, primeiro, abandonando a arma que eu trazia
sempre na cintura; depois, abandonei as armas que estavam no
carro, os seguranças, e por fim voltei a normalidade.
O Mandante do atentado nunca mais fez outro movimento, do
mesmo modo que nunca consegui encontrá-lo. Acho que a sorte
dele fora diferente da minha e acabou morrendo de qualquer
coisa, não podendo continuar com o plano. Sua vingança, então,
ou seja lá o que motivava aquela pessoa, não tardaria, porque no
fim das contas eu acabaria morrendo de um jeito ou de outro.
Como, entretanto, sempre se tira algum lucro dos problemas,
aconteceu que minha popularidade na Vila de Deus aumentou
depois do atentado. Este povo deu de inventar o boato de que o
mandante tinha sido algum homem poderoso que eu tinha
irritado com minha “busca pela justiça para os cidadãos da
Vila”, e o boato se espalhou, não tenho quem dissesse o
contrário. Nunca aproveitei, entretanto, este lucro eventual;
acabei afastando-me do público e aproveitando a vida mais
escondido. Até alguns meses atrás, sempre imaginava que ele
poderia está por aí somente esperando para fazer alguma coisa
comigo ou com minha família, e só me aquietei de verdade
depois que saí daquela clinica e fiquei com a certeza de que pelo
menos morto por ele, como uma pessoa comum, não serei.
XLI Meu último pecado
Perguntou o Senhor: Quem enganará a Acabe, para que
suba, e caia em Ramote-Gileade? Um dizia desta maneira, e
outro de outra. Então saiu um espírito, e se apresentou
diante do Senhor, e disse: Eu o enganarei. Perguntou-lhe o
Senhor: Com quê? Respondeu ele: Sairei, e serei espírito
mentiroso na boca de todos os seus profetas. Disse o
Senhor: Tu o enganarás, e ainda prevalecerás; sai, e faze-o
assim. Eis que o Senhor pôs o espírito mentiroso na boca de
todos estes teus profetas, e o Senhor falou o que é mau
contra ti. I Reis 22:20-23
Tudo correu muito bem na minha vida. Eu poderia dizer que
com uma certa qualidade, mas você provavelmente me
entenderia mal e eu teria que te explicar que a tranquilidade de
uma vida normal foi se tornando cada vez mais chata para mim
e que se não fosse preenchida com pitadas de maldade, a tal
ponto que ficavam maiores a cada dia, eu talvez não tivesse
gostado tanto de viver. Tudo bem, até um dia em que entrei
num consultório e um médico me disse que eu tinha pouco
tempo de vida. Ele morreu ontem e embora eu não tenha nada a
ver com a morte dele, o desejo de olhá-lo descer à cova
primeiramente do que eu não me falto ou foi pouco. Não digo
que minha vida tenha mudado depois que soube da
proximidade da morte, nem digo, também, que a partir daquele
momento algo tenha começado a correr mal na minha vida.
Pobre são as almas que se perturbam com pouca coisa. É certo
de que me perturbei logo depois que recebi a notícia, mas isso
não quer dizer que continuei perturbado, e pouco tempo bastou
para recobrar a minha fria tranquilidade.
Foi então que eu decidi contar os casos que aconteceram e que
causei na minha vida. Casos esses que o leitor acabou de tomar
conhecimento. Sou, porém, um escritor lento e cuidadoso,
costumo reescrever várias e várias vezes o que escrevo, até
mesmo é gostoso o prazer que me dá relembrar todos os meus
pecados e contá-los por diversos ângulos diferentes sinto como
se estivesse os cometendo de novo, um por um. Por isso
passaram-se vários dias desde que o iniciei o trabalho, que
conseguiu ocupar-me a cabeça por alguns momentos. Termino-
o agora com este capítulo, acreditando não haver nada mais de
relevância para por nas linhas, a não ser o meu último pecado,
que planejei para o grande final.
O dia está claro lá fora hoje e são mais ou menos 12 horas da
manhã de um domingo muito quente. Lá fora os homens andam
se queixando de calor, enquanto eu não me queixo de nada.
Fora uma ótima desculpa que usei para tirar Minha Mulher e
Minha Filha de casa. No princípio não quis ir: a maldita intuição
feminina. Estava muito carinhosa e receosa, talvez por alguma
preocupação vinda de algo maior, ou talvez por estar naqueles
dias de maior sentimentalismo. Prefiro acreditar no seguindo,
mas não digo que ela não vai dizer que sabia o que ia acontecer.
Não ligo! Se ela se sentir melhor atribuindo-se poderes
sobrenaturais, e isso lhe fizer sentir melhor. Vá. É pelo menos
uma chance de não ficar chorando por muito tempo pelos
cantos.
Mandei que as duas fossem para um parque aquático. Minha
Mulher ficou chateada, pois eu não iria com elas, mas se
conformou quando eu disse que ia só comprar umas bebidas no
shopping e logo iria encontrá-los.
Chegando ao Shopping, fui muito simpático com o atendente de
uma loja. E o fiz me olhar quatro vezes, e na hora de pagar disse
que tinha esquecido o dinheiro. “Oh, meu Deus! Onde eu estou
com a cabeça. Devo ter deixado em casa. Eu vou buscar e depois
eu volto aqui. Pode separar para mim, por favor.” Não iria
separar, mas não duvido nada que de alguns dias depois,
quando fosse testemunhar em juízo, diria que tinha separado. O
que importa é ter engolido a isca.
Cheguei a minha casa, e já me esperavam à porta os homens de
minha gang. Entramos juntos, e eu disse-lhes que fossem logo
colocando algumas coisas, joias e aparelhos eletrônicos, no meu
carro, enquanto isso eu iria escrever umas últimas linhas de algo
que eu estava escrevendo. E aqui chegamos a um ponto onde o
tempo da narração se junta ao real, pois estou aqui escrevendo
as últimas linhas, e não posso usar verbos no passado para
contar o que acontecerá comigo dentro em pouco.
Quando eu terminar de escrever, e de queimar todas as páginas,
logo depois, para que toda memória se perca, os homens que
estarão me esperando na sala. São ladrões que foram leais
comigo a minha vida inteira e que me fizeram a riqueza, muitos
com mulher, filhos e a família completa. Estão quase todos eles
aposentados; trabalhadores até que honestos, não fazem mal a
ninguém e só querem viver a vida sem ter que pegar mais numa
arma. Só aceitarão o trabalho por causa da lealdade que têm
comigo, e porque eu nisso insistir muito.
Hoje pela manhã usei um celular que comprei (só para essa
ocasião) para ligar para o chefe de uma das gangs da região, que
é rival da minha. Disse que seus inimigos iriam roubar a casa de
um ricaço para poder comprar armamento pesado para usar
contra eles, ou algo parecido, e junto a isso entreguei-lhes
localizações, hábitos úteis, tudo, que lhes ajudasse a cumprir a
função deles. Isso irá garantir que minha gang, a única ligação
que não eliminei do meu passado de pecados, seja toda morta, e
assim morrerão também as provas do que vou fazer.
Quando eu sair, iremos simular uma luta, para que quando a
perícia investigue pense que eu reagir ao assalto. Estarei
segurando uma aliança de casamento da Minha Mulher (que
com uma desculpa de concerto, embora a muito custo, tirei-lhe
para a data de hoje): assim Minha Mulher pensará que eu reagir
para proteger a joia que é tão importante para ela. E depois de
alguns socos, para que todo fique bem real, eles me darão dois
tiros: um no peito, para que não pensem que eles já viam para
me matar; um na nuca, a queima roupa, para ficar algo mais
heroico: tiros a queima roupa sempre impressionam mais.
Minha Mulher chegará, e verá a situação. Chorará muito, e
passará noites e noites sem comer, mas vai se recuperar um dia.
Ela sempre se recupera: por isso fora a única que amei. Terei um
enterro glorioso, digno do herói que serei; não duvidem disso.
Sempre soube fazer muito bem as coisas acontecerem neste
país. Minha Mulher e um padre qualquer tecerão inúmeros
elogios sobre minha pessoa, e muitos dos meus amigos (tenho
vários!) que irão comparecer, inclusive a Velha Gorda, e irão
concordar com todos os elogios, talvez apontando apenas a
algum tipo de exagero: mas os exageros são perdoáveis nos
momentos de trágicos. Minha morte aparecerá no jornal. Não
porque foi bárbara, mas porque sou importante e rico, e morte
de gente rica sempre aparece nos jornais, talvez os cidadãos da
Vila de Deus até façam uma passeata em favor da não-violência,
muitos vestidos com camisas com a minha foto na estampa; e o
crime nunca será selecionado (pelo menos todos terão mais um
motivo para criticar a lentidão da justiça desse país).
Este é último parágrafo e vai especialmente para você, caro
leitor, que foi paciente em ouvir a minha história, e que deve
está pensando que você é a única testemunha que conhece
meus pecados. Temo que você esteja errado nisso: pois você
sabe pouco que sirva para fazer valer a justiça (mas talvez tenha
sido assim a sua vida inteira).
Não citei nenhum nome, nem de local ou de pessoa, e até o
nome Vila de Deus é fictício, o que torna minhas vítimas
anônimas e meus crimes sem qualquer pista (mas não são assim
muitos outros crimes dessa vida).
Permanecerei sem qualquer punição... meus crimes serão
crimes de ninguém... mas não se irrite, nem me der todo o
crédito; não sou pioneiro, só alguém que resolveu ter coragem
de fazer, durante sua vida e de uma só vez, aquilo que todas as
pessoas foram fazendo, de pouquinho em pouquinho, durante a
história.
Mas porque estou te aborrecendo como isso? Acho que acabei
ganhando o péssimo hábito de aborrecer os outros com
insignificâncias. Quem realmente se importar com tais
problemas que cuide realmente deles. Fico imaginando,
tranquilo, como será o lugar para onde vou depois da morte.
Será que o inferno é como eles dizem? Será que arranjo um
emprego bom por lá? Quem sabe algum cargo administrativo:
tenho currículo para isso. Ou será que é como os espíritas
dizem, e vou encarnar noutro corpo, tendo novas oportunidades
para pecar mais? Sei lá. Queria escrever sobre estas dúvidas
minhas, talvez fazer um tratado filosófico mais nobre do que
minhas memórias (falaria em teoria da nova consciência que o
leitor viu em mim na prática), mas deixa isso para lá: meus
assassinos me esperam para me transformar num herói.

FIM

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