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PERSONAGENS:
O JOVEM
O VELHO
A DATILÓGRAFA
O AMIGO
O GATO
O CRIADO
SEGUNDO AMIGO
A NOIVA
O JOGADOR DE RÚGBI
A CRIADA
O PAI
O MANEQUIM
O ARLEQUIM
O ECO
A MOÇA
O PALHAÇO
A MÁSCARA
A CRIADA
PRIMEIRO JOGADOR
SEGUNDO JOGADOR
TERCEIRO JOGADOR
Biblioteca. O Jovem está sentado. Veste um pijama azul. O Velho, de fraque cinzento, barba branca e enormes
óculos de ouro, também sentado.
VELHO - Perdão
JOVEM - Sim.
VELHO - É que...
JOVEM - Eu...
VELHO (Interrompendo com veemência) - Gosto tanto da palavra recordação. É uma palavra verde,
suculenta. Mana sem cessar fiozinhos de água fria.
JOVEM (Alegre e tratando de convencer-se) - Sim, sim, claro. O senhor tem razão. É preciso lutar contra
toda idéia de ruína; contra esses descascamentos de paredes. Muitas vezes levantei-me à meia noite para
arrancar as ervas do jardim. Não quero ervas em minha casa nem móveis quebrados.
JOVEM - Mas as coisas vivas com seu sangue a arder, com todos os seus perfis intactos.
VELHO - Muito bem. Quer dizer (Baixando a voz) que há que recordar, mas recordar antes.
JOVEM - Antes?
(Um relógio soa seis horas. A Datilógrafa cruza a cena, chorando em silêncio.)
JOVEM - Sim. Seis horas e com calor demais. (Levanta-se) Há um famoso céu de tempestade. Cheio de
nuvens cinzentas...
JOVEM - Conheci-a pouco. Mas não importa. Creio que gosta de mim.
VELHO - Decerto!
JOVEM - Nunca! Por ora não pode ser. Por causas inexplicáveis. Até que se passem cinco anos.
JOVEM - Não.
VELHO - Não o angustia a hora da partida, os acontecimentos, o que há de chegar agora mesmo...?
JOVEM - Barulho, barulho sempre, calor, mau cheiro. Desagrada-me que as coisas da rua entrem em minha
casa (Ouve-se um longo gemido. Pausa). João, fecha a janela
(Um Criado ligeiro, que anda na ponta dos pés fecha a janela).
VELHO - Quinze anos que ela viveu e que são ela mesma. Mas por que não dizer que tem quinze neves,
quinze ares, quinze crepúsculos? Não se atreve você a fugir, a voar, a dilatar seu amor pelo céu inteiro?
VELHO (De pé e com energia) - Ou então dizer: tem quinze anos, quinze grãozinhos de areia. Não se atreve
você a concentrar, a tornar fervente e pequenino seu amor dentro do peito?
JOVEM - O senhor quer afastar-me dela. Mas eu conheço seu processo. Basta observar na palma da mão
um inseto vivo ou olhar o mar uma tarde pondo atenção na forma de cada onda para que o rosto ou chaga
que trazemos no peito se disfaça em borbulhas. Mas é que estou enamorado, e quero estar enamorado, tão
enamorado quanto ela está de mim e por isso posso esperar cinco anos, na esperança de poder amarrar de
noite, com o mundo todo às escuras, suas tranças de luz em redor de meu pescoço.
JOVEM (Irritado) - Já sei. Cortou-as sem licença, naturalmente e isto (Com angústia) muda para mim sua
imagem (Energético). Já sei que tem tranças (Quase furioso). Por que me lembrou isso? (Com tristeza) Mas
nos próximos cinco anos voltará a tê-las.
VELHO - São umas tranças cujo perfume se pode viver sem necessidade de pão nem água.
JOVEM - Como?
JOVEM - Que estou em carne viva. Tudo para dentro. Uma queimadura.
JOVEM - Não.
JOVEM - Noiva... O senhor já sabe; se digo noiva, vejo-a sem querer amortalhada em um céu preso por
enormes tranças de neve. Não, não é minha noiva (Faz um gesto como se afastasse a imagem que quer
apossar-se dele). É minha menina, minha mocinha.
JOVEM - Pois se me ponho a pensar nela, desenho-a, faço-a mover-se branca e viva; mas logo, quem lhe
muda o nariz ou parte-lhe os dentes ou a transforma em outra cheia de andrajos que anda pelo meu
pensamento como se estivesse mirando-se em um espelho de feira?
VELHO - Quem? Parece mentira que você diga quem, Mudam-se ainda mais as coisas que temos diante
dos olhos do que as que vivem sem distância sob as nossas visitas. A água que vem pelo rio é completamente
diferente da que se vai. E quem se lembra que um mapa exato das areias do deserto... ou do rosto de um
amigo qualquer?
JOVEM - Sim, sim. Ainda está mais vivo o que há aqui dentro, embora também mude. Na última vez que a
vi não podia olhá-la de muito perto porque tinha duas ruguinhas na testa que, como me descuidasse entende
o senhor? Lhe enchiam todo o rosto e a punham desfigurada, velha, como se tivesse sofrido muito. Tinha
necessidade de afastar-me dela para focalizá-la, a palavra é esta, em meu coração.
VELHO - Com o que então naquele momento em que a viu velha estava ela completamente entregue a
você?
JOVEM - Sim.
VELHO (Exaltado) - Com que então se naquele preciso instante ela confessa que o enganou, que não o
ama, que não lhe quer ver, as ruguinhas transformaram-se nela na rosa mais delicada do mundo?
VELHO - Por isso é preciso voar de uma coisa para outra até perder-se. Se ela tem quinze anos, pode ter
quinze crepúsculos ou quinze céus. Estão as coisas mais vivas aí dentro do que aqui fora, expostas ao ar ou à
morte. Por isso vamos... ou não vamos... ou esperar. Porque o diferente é morrer agora mesmo e é mais belo
pensar que veremos amanhã ainda os cem cornos de outro com que o sol levanta as nuvens.
(Aparece a Datilógrafa)
JOVEM (Com doçura) - Não sou eu quem a retém. Já sabe que não posso fazer nada. Disse-lhe muitas
vezes que esperasse, mas você...
DATILÓGRAFA - Não espero porque não me dá vontade, porque não quero e, não obstante, não posso sair
daqui.
DATILÓGRAFA - Que razões vou dar? Não há mais do que uma razão e essa é... que o amo. Não se
assuste, senhor! A de sempre. Quando pequenino (Ao Velho), eu o via brincar lá de minha varanda. Um dia
caiu e o joelho começou a sangrar. Lembra-se? (Ao Jovem). Ainda tenho aquele sangue vivo como uma
serpente vermelha, tremendo entre meus peitos.
VELHO - Isto não está bem. O sangue seca e o que passou, passou.
DATILÓGRAFA - Que culpa tenho eu, senhor? (Ao Jovem). Rogo-lhe que faça minhas contas. Quero sair
desta casa.
JOVEM - Muito bem. Nem eu tampouco tenho culpa alguma. Além disso, sabe você perfeitamente que não
me pertence. Pode ir.
DATILÓGRAFA (Ao Velho) - Ouviu o que ele disse? Põe-me para fora de sua casa. Não quer ter-me aqui
(Chora. Sai).
JOVEM - Quisera querer-lhe como quisera ter sede diante das fontes. Quisera...
VELHO - De nenhuma maneira. Que faria você amanhã? Idem? Pense. Amanhã!
AMIGO (Entrando com escândalo) - Quanto silêncio nesta casa e para quê? Dá-me água com anis e gelo (O
VELHO sai). Ou um coquetel.
AMIGO - Huuí? Quem era aquele velho? Um amigo teu? E onde estão nesta casa os retratos das moças
com quem vais para a cama? Olha. (Aproxima-se) Vou pegar-te pelas lapelas e pintar de vermelho essas
bochechas cor de cera....ou assim esfregá-las.
JOVEM - E o que vou fazer nela? Teu gosto, não é verdade? Tenho trabalho demais com ouvi-la cheia de
carros e de gente desorientada.
AMIGO (Sentando-se e estirando-se no sofá) - Ai! Ui! Eu, em troca... Fiz ontem três conquistas e como
anteontem fiz duas e hoje uma, resulta...pois...que fico sem nenhuma porque não tenho tempo. Estive com
uma garota...Ernestina. Queres conhecê-la?
JOVEM - Não.
AMIGO (Levantando-se) - Naão e jamegão! Mas se a visses! Tem uma cintura!.... Não, embora cintura a
tenha muito melhor a Matilde (com ímpeto). Ai, meu Deus! (Dá um salto e cai estendido no sofá). Olha, é
uma cintura para a medida de todos os braços e tão, frágil, que a gente deseja ter na mão um machado de
prata para seccioná-la.
AMIGO (De boca para baixo no sofá) - Não tenho tempo, não tenho tempo de nada, tudo para mim se
atropela. Porque, imagina. Marco encontro com Ernestina. As tranças aqui, apertadas, negríssimas, e
depois... (O jovem golpeia com impaciência os dedos sobre a mesa.)
AMIGO - Mas se não há que pensar! Vou-me embora. Por mais...que...(Olha o relógio). Já passou a hora. É
horrível, sempre ocorre o mesmo. Não tenho tempo e eisto me aborrece. Ia com uma mulher feíssima, mas
admirável. Uma morena dessas que fazem falta num meio dia de verão. E me agrada, (Atira uma almofada
para o ar) porque parece um domador.
JOVEM - Basta!
JOVEM - Nada.
AMIGO - Não o entendo. Mas tampouco posso estar sério. (Ri). Vou saudar-te com os chineses (Esfrega o
nariz no do JOVEM).
AMIGO - Como?
VELHO (Furioso) - Sim, senhor. Esquecer-me-ei do chapéu (entre dentes). Isto é, esqueci-me do chapéu.
JOVEM - Mas não quero ouvi-la (Em voz alta). Tudo bem fechado.
JOVEM - Não me importa o que se passa lá fora. Esta casa é minha. E aqui não entra ninguém.
VELHO (Indignado, ao AMIGO) - É uma verdade sem refutação possível! (Ouve-se um trovão distante.)
AMIGO - Entrará todo mundo que queira, não aqui, mas embaixo de tua cama. (Trovão mais próximo.)
VELHO - Bravos!
JOVEM - Depois!
(Ouve-se outro trovão. A luz esmorece e uma luminosidade azulada de tempestade invade a cena. Os três
personagens ocultam-se por trás de um biombo negro bordado de estrelas. Pela porta da esquerda aparece o
MENINO morto com o GATO. O MENINO vem vestido de branco, de primeira comunhão, com uma capela de
rosas brancas na cabeça. Em seu rosto, pintado de cera, ressaltam seus olhos e seus lábios de lírio seco. Traz
na mão um círio encrepado e um grande laço com flores de curo. O GATO é azul com duas enormes manchas
cor de sangue no peito branco e cinzento e na cabeça. Avançam para o público. O MENINO traz o GATO
preso por uma pata.)
GATO - Miau.
MENINO - Psiu...
GATO - Miau.
MENINO - Não?
MENINO - És gata?
GATO (Mimoso) - Devias ter conhecido.
MENINO - Vou ver se encontro uma rata para ti.( Põe-se a olhar por baixo das cadeiras. O GATO, sentado
em um tamborete, treme.)
MENINO - Com tuas manchas de cera, rosa branca, pareces-me olho de lua partida, gazela entre vidros,
desmaiada. (Põe-na na cabeça)
GATO - Brincar!
Ia pelo telhado, gata chata, narinazinhas de lata, pela manhã ia colher os peixes n´água e ao meio-dia sob o
rosal do muro adormecia.
MENINO - E à noite?
MENINO (Com alegria) - Eu também ia, ai, gata chata, barata, narinazinhas de lata, comer sarçamouras e
maças e depois à igreja com meninos brincar de cabra.
MENINO - Amanhã nuns buracos escuros, todos choram. Todos calam. Mas se vão. Eu o vi.
E depois. Sabes?
ASSIM QUE PASSEM CINCO ANOS - FEDERICO GARCÍA LORCA 9
“Santos e Poetas”, 1º Semestre 2008
GATA - Que acontece?
GATA - Quem?
MENINO - O lagarto e a lagarta, com seus filhinhos pequenos, que são muitos.
GATA - Espera.
MENINO - Nunca veremos a luz, nem as nuvens que se elevam, nem os grilos dentre a relva, nem o vento
como uma espada. (Cruzando as mãos)
Ai girassol! Ai girassol de fogo! Ai girassol!
MENINO - Ai! Cravina do sol! (A luz é tênue. O Menino e a Gata, agarrados andam às tontas)
MENINO - Cala-te.
MENINO - Não.
GATA - Encontraste saída? (A Gata aproxima-se da porta da direita; sai uma mão que a puxa para dentro)
(Uma mão aparece e puxa para dentro o Menino que desmaia. A luz ao desaparecer o Menino, volta a sua
primitiva claridade. De trás do biombo voltam a entrar rapidamente os três personagens. Dão mostras de
calor e de agitação viva. O jovem traz um leque azul, o Velho um leque preto e o Amigo um leque vermelho
berrante. Abanam-se)
CRIADO (Entrando e sempre em tom suave e andando nas pontas dos pés) - O menino da porteira morreu e
agora vão enterrá-lo. Sua mãe chora.
CRIADO - Senhor. Quer ter a bondade de deixar comigo as chaves de seu quarto de dormir?
CRIADO - Os meninos atiraram, em cima do telhado, um gato que haviam matado e há necessidade de tirá-
lo dali.
JOVEM (Com enfado) - Toma (Ao Velho) O senhor não podia com ele.
AMIGO - Não é verdade. Sim, interessa-lhe. Por mim é que o senhor não se interessa, porque sei
positivamente que a neve é fria e o fogo queima.
JOVEM (Fortemente) - Não influi o mínimo do meu caráter. Sou eu. Mas tu não podes compreender que se
espere uma mulher cinco anos, transbordante e queimado pelo amor que cresce cada dia.
JOVEM - Acreditas que posso vencer as coisas materiais, os obstáculos que surgem e aumentarão no
caminho sem causar dor aos outros?
AMIGO - Prefiro comê-la verde ou, melhor ainda, gosto de cortar sua flor para pô-la em minha lapela.
VELHO (Severamente) - Lutei minha vida inteira para acender uma luz nos lugares mais escuros. E quando
alguém foi retorcer o pescoço da pomba, segurei-lhe a mão e ajudei-a a voar.
(Aparece pela porta esquerda o SEGUNDO AMIGO. Vem vestido de branco, com impecável traje de casimira
e traz luvas e sapatos da mesma cor. Se não for possível que este papel seja feito por um ator muito jovem, fá-
lo-á uma moça. O traje há de ser de um corte exageradíssimo, trará enormes botões azuis e o paletó e a
gravata de rendas riçadas)
SEGUNDO AMIGO - Bendita seja quando há pão tostado, azeite e sonho depois. Muito sonho. Que não
acabes nunca. Ouvi-te.
SEGUNDO AMIGO - Por qualquer lugar. Pela janela. Ajudaram-me dois meninos muito meus amigos.
Conheci-os quando era muito pequeno e puxaram-me pelos pés. Vai cair um aguaceiro ... mas aguaceiro
bonito caiu o ano passado. Havia tão pouca luz, que minhas mãos ficaram amarelas. (Ao Velho) Lembra-se?
SEGUNDO AMIGO - Eu era muito pequeno. Mas recordo-me com todos os pormenores.
SEGUNDO AMIGO - Por isso não quero ver este. A chuva é bela. No colégio entrava pelos pátios e
espedaçava pelas paredes umas mulheres nuas muito pequenas que traz dentro de si. Não as viste? Quando
eu tinha cinco anos... não, quando eu tinha dois...minto, um, um ano apenas. É bonito não é verdade? Um
ano peguei uma dessas mulherzinhas da chuva e conservei-a dois dias num aquário.
SEGUNDO AMIGO (Que o ouviu) - Louco? Porque não quero estar cheio de rugas e dores como o senhor.
Porque quero viver o que é meu e mo tiram. Não conheço o senhor. Não quero ver gente como o senhor.
PRIMEIRO AMIGO (Bebendo) - Tudo isso não é mais do que medo da morte.
SEGUNDO AMIGO - Não. Agora mesmo, antes de entrar aqui vi um menino que iam enterra com as
primeiras gotas da chuva. Quero que me enterrem assim. Em um caixão deste tamanhinho. E vocês vão lutar
com a borrasca. Mas o meu rosto é meu e mo estão roubando. Eu era terno e cantava, e agora há um homem,
um senhor (Ao Velho) como você que anda por dentro de mim com duas ou três máscaras preparadas (Tira
um espelho e mira-se). Mas ainda não. Ainda me vejo trepado nas cerejeiras ... com aquela roupa
cinzenta...Uma roupa cinzenta que tinha umas âncoras de prata. Meu Deus! (Cobre o rosto com as mãos).
VELHO (Impertérrito) - Apagam-se os olhos e uma foice mais afiada sega os juncos das margens.
SEGUNDO AMIGO - Atrás fica tudo quieto; como é possível que o senhor não saiba? Não é preciso mais
do que ir despertando suavemente as coisas. Em compensação, dentro de quatro ou cinco anos existe um
poço dentro do qual cairemos todos.
JOVEM (Seguindo-o) - Aonde vai? Por que sai assim? Espere! (Sai atrás dele)
SEGUNDO AMIGO (Encolhendo os ombros) - Bem. Velho tinha de ser. Você, em troca, não protestou.
PRIMEIRO AMIGO (Sério e com honradez) - Eu faço o que me agrada, o que me parece bem. Não pedi
sua opinião.
SEGUNDO AMIGO (Com medo) - Sim,sim. Não lhe digo nada... (Senta-se numa cadeira, com as pernas
encolhidas)
(O Primeiro amigo bebe rapidamente os copos, secando até o último, e dando uma parcada (?) na testa, como
se se recordasse de alguma coisa, sai rapidamente pela porta da esquera. Aparece o CRIADO pela direita,
sempre delicado, nas pontas dos pés...Começa a chover.)
SEGUNDO AMIGO - O aguaceiro. (Olha as mãos) Mas que luz mais feia. (Adormece)
(Aparece a datilógrafa. Traz uma maleta. Cruza a cena e, ao meio dela, volta rapidamente.)
DATILÓGRAFA - Chamou-me?
(Sai a datilógrafa)
(começa a chover)
Pano lento
Alcova estilo 1900. Móveis estranhos. Grandes cortinados cheios de pregas e borlas. Nas paredes, nuvens e
anjos pintados. No centro, uma cama cheia de cortinas e plumagens. À esquerda um toucador sustido por
anjos com ramos de luzes elétricas nas mãos. As varandas estão abertas e por elas entra a lua. Ouve-se uma
buzina de automóvel que toca com fúria. A NOIVA salta da cama, com esplêndida bata cheia de rendas e
enormes laços cor-de-rosa. Traz uma comprida cauda e todo o cabelo cheio de cachos.
NOIVA (Assomando à varanda) - Sobe. (Ouve-se a buzina) É preciso. Chegará meu noivo, o velho, o lírico,
e preciso apoiar-me em ti. (O JOGADOR DE RÚGBI entra pela varanda; vem trajado com as joelheiras e o
capacete. Traz uma bolsa cheia de cigarros cubanos, que acende e esmaga sem cessar. )
NOIVA - Entra. Há dois dias que não te vejo (Abraçam-se). (O JOGADOR DE RÚGBI não fala, apenas fuma
e esmaga no chão o cigarro. Dá mostras de grande vitalidade e abraça com ímpeto a NOIVA.)
NOIVA - Hoje me beijaste de maneira diferente. Sempre mudas, meu amor. Ontem não te vi, sabes? Mas
estive vendo o cavalo. Era bonito. Branco e com os cascos dourados entre o feno das manjedouras (Senta-se
num sofá que está ao pé da cama). Mas tu és mais bonito. Porque és como um dragão (Abraça-o). Creio que
me vais quebrar entre teus braços, porque sou fraca, porque sou pequena, porque sou como a geada, porque
sou como uma diminuta guitarra queimada pelo sol, e não me quebras.
NOIVA (Passando-lhe a mão pelo pescoço) - Por trás de toda esta sombra há como uma travação de pontes
de prata para estreitar-me e para defender-me, a mim que sou pequenina como um botão, pequenina como
uma abelha que entrasse de repente no salão do trono, não é verdade, não é verdade que sim? Irei contigo
(Apóia a cabeça no peito do JOGADOR). Dragão, meu dragão. Quantos corações tens? Há em teu peito como
uma torrente aonde me vou afogar. Vou-me afogar (Fita-o). E depois sairás correndo (Chora) e me deixarás
morta pelas margens. (O JOGADOR DE RÚGBI leva um cigarro à boca e a NOIVA o acende) Oh! (Beija-o).
Que brasa branca, que fogo de marfim derramam teus dentes! Meu noivo tinha os dentes gelados; beijava-me
e seus lábios se cobriam de pequenas flores murchas, eram como lábios secos. Cortei as tranças porque lhe
agradavam muito, como agora vou descalça porque gostas assim, não é verdade, não é verdade mesmo? (O
JOGADOR beija-a). Precisamos ir. Meu noivo vai chegar.
VOZ - Senhorita!
NOIVA (Separando-se do JOGADOR e adotando nova atitude distraída). - Já vou! (Em voz baixa) Adeus!
VOZ - Abra!
CRIADA - Senhorita!
NOIVA - Que é? (Acende a luz do teto. Uma luz mais azulada que a que entra pelas varandas).
ASSIM QUE PASSEM CINCO ANOS - FEDERICO GARCÍA LORCA 15
“Santos e Poetas”, 1º Semestre 2008
CRIADA - Seu noivo chegou!
CRIADA - Lá embaixo.
NOIVA - Vou vestir-me (Senta-se diante do toucador e arranja-se, ajudada pela CRIADA)
CRIADA - Senhorita!
NOIVA - Sim?
NOIVA - Você já sabe que não gosto de flores. Atire-as fora pela varanda.
(A CRIADA atira pela varanda umas flores que estavam dentro dum jarro.)
CRIADA - Senhorita!
NOIVA - O quêêê?...
CRIADA - Pense bem no que vai fazer! Reflita. O mundo é grande. Mas nós, pessoas, somos pequenas.
CRIADA - Um homem tão bom. Tanto tempo à sua espera. Com tanta ilusão. Cinco anos. Cinco anos
(Entrega-lhe a roupa).
CRIADA - Tive um noivo soldado que me cravava os anéis, a ponto de tirar sangue. Por isso, mandei-o
embora.
NOIVA - Sim?
CRIADA - O verde.
NOIVA - Não.
CRIADA - O de filó.
NOIVA (irritada, em voz alta) - Já disse que não. Quero um vestido cor de terra para esse homem; um
vestido cor de rochedo nu com uma corda de esparto na cintura(Ouve-se a buzina. A Noiva cerra os olhos e,
mudando de expressão, continua falando). Mas com uma capela de jasmins no pescoço e toda a minha carne
apertada por um véu molhado pelo mar(Dirigi-se à varanda).
CRIADA - Contanto que seu noivo repare!
ASSIM QUE PASSEM CINCO ANOS - FEDERICO GARCÍA LORCA 17
“Santos e Poetas”, 1º Semestre 2008
NOIVA - Há de esperar (escolhendo um vestido comum, simples). Este (veste-se)
NOIVA (enérgica) - E a você parece bem?(Acaba de arranjar-se no toucador e acende a luz dos anjos)
NOIVA - Não.
NOIVA - Isso me agrada. Quero ficar escura. Mais escura que um rapaz. E se cair, não sangrar; e se agarrar a
sarçamoura, não me ferir. Estão todos andando pelo arame com os olhos fechados. Quero ter chumbo nos
pés. Ontem de noite sonhava que todos os meninos pequenos crescem por acaso. Que basta a força que tem
um beijo para poder matar a todos. Um punhal, uma tesouras duram sempre e este meu peito dura só um
momento.
(Entra o pai da noiva. É um velho distraído. Traz uns óculos pendurados ao pescoço. Cabeleira branca. Cara
rosada. Traz luvas brancas e roupa preta. Tem sinais de leve miopia)
PAI - Chegou!
PAI - Como?
PAI - Vem casar-se contigo. Escrever-lhe durante os cinco anos que durou nossa viagem. Não dançaste com
ninguém nos transatlânticos... não te interesse por ninguém. Que mudança é está?
NOIVA - Antes não existia eu tampouco. Existiam a terra e o mar. Mas eu dormia docemente nas almofadas
do trem.
PAI - Esse homem me insultará com razão. Ai, meu Deus! E estava tudo arranjado. Hava-se presenteado
com o formoso traje de noiva. Está lá dentro, no manequim.
PAI - E eu? E eu? Será que não tenho direito de descansar? Esta noite há um eclipse da lua. Não poderei
olhá-lo lá do terraço. Quando sofro uma irritação, sobe-me o sangue aos olhos e não vejo. Que faremos com
esse homem?
PAI - É preciso.
NOIVA - Não.
PAI - Todos contra mim (Olha o céu pela varanda aberta). Afora vai começar o eclipse (Dirigi-se à
varanda). Apagaram-se as lâmpadas. (Com angústia) Será belo! Estive esperando-o muito tempo. E agora
não vejo. Por que o enganaste?
PAI - Quem?
ASSIM QUE PASSEM CINCO ANOS - FEDERICO GARCÍA LORCA 19
“Santos e Poetas”, 1º Semestre 2008
CRIADA - Já entrou (Sai rapidamente).
(Aparece Jovem. Vem com roupa de passeio. Arranjo o cabelo. No momento em que entra, acendem-se todas
as luzes da cena e os ramos de lâmpadas que os anjos têm mão. Ficam os três personagens a olhar-s, quietos e
em silêncio).
NOIVA (Olhando-o bem fitamente sem soltar-lhe a mão) - Sim. Uma viagem fria. Tem nevado muito nestes
últimos anos(Solta-lhe a mão).
JOVEM - Desculpem-me, mas o fato de correr, de subir a escada, me pôs agitado. E depois...na rua bati
nuns meninos que estavam matando um gato a pedradas.
NOIVA - E um olhar antigo. Um olhar que se parte como a asa de uma mariposa seca.
JOVEM - Não, não posso estar sentando. Prefiro conversar. De repente, enquanto subia a escada, vieram à
minha memória todas as canções que havia esquecido e queria cantar todas de uma vez (Aproxima-se da
Noiva). As tranças...
JOVEM - Seria a luz da lua. Seria o ar coagulado em bocas para beijar tua cabeça.
(A Criada retira-se para um canto. O Pai vai para as varandas e olha com os óculos prismáticos)
NOIVA - Não tinhas um sorriso violento que era como uma graça em teu rosto?
JOVEM - Não
JOVEM - Nunca.
NOIVA (Com ardor) - E não levavas um cavalo pelas crinas e matavas em um dia três mil faisões?
ASSIM QUE PASSEM CINCO ANOS - FEDERICO GARCÍA LORCA 20
“Santos e Poetas”, 1º Semestre 2008
JOVEM - Nunca.
NOIVA - Então...Para que vens buscar-me? Tinha as mãos cheias de anéis. Onde há uma gota de sangue?
NOIVA - Não são teus braços, são os meus. Sou eu quem se quer queimar em outro fogo!
JOVEM - Não há mais outro fogo senão o meu(Abraça-a). Porque te esperei e agora ganho o meu sonho. E
não é sonho tuas tranças porque as farei eu mesmo com teus cabelos, não é sonho tua cintura onde canta o
meu sangue, porque é meu esse sangue, ganho lentamente através de uma chuva, e meu este sonho.
NOIVA (Libertando-se) - Deixa-me. Tudo podias ter dito menos a palavra sonho. Aqui não se sonha. Eu
não quero sonhar...
NOIVA - Como vou deixar que entres no meu quarto, quando outro já entrou?
NOIVA - Bastaram apenas dois dias para que me sentisse carregada de cadeias. Nos espelhos e entre as
rendas da cama ouço já o gemido de uma criança que me persegue.
JOVEM - Mas minha casa já está construída. Com paredes que eu mesmo toquei. Vou deixar que nela viva
o ar?
NOIVA - Amar.
JOVEM - A quem?
JOVEM (Enérgico) - Não procuro. Tenho-te a ti. Estás aqui entre minhas mãos, neste mesmo momento, e
não me podes fechar a porta porque venho molhado por uma chuva de cinco anos. E porque depois não há
nada, porque depois não posso amar, porque depois tudo se acabou.
ASSIM QUE PASSEM CINCO ANOS - FEDERICO GARCÍA LORCA 21
“Santos e Poetas”, 1º Semestre 2008
NOIVA - Solta-me!
JOVEM - Não é tua falsidade que me dói. Tu não és má. Tu não significas nada. É meu tesouro perdido. É
meu amor sem objetivo. Mas virás!
JOVEM - Para que não tenha de voltar a começar. Sinto que esqueço até as letras.
JOVEM - Para que não morra. Ouves? Para que não morra.
NOIVA - Deixa-me.
NOIVA - Ninguém.
NOIVA (Ao Pai) - É preciso devolver-lhes os presentes (O Jovem faz um movimento). Todos. Seria
injusto... todos menos os leques... porque se partiram.
NOIVA - Um azul...
JOVEM (Sorrindo) - Não importa que se tenham perdido. Lançam-me agora mesmo um ar que me queima
a pele.
JOVEM - Obrigado!
PAI (Que olha sempre na varanda) - Deve já estar no começo. O senhor desculpe (À Noiva) Vens?
JOVEM - Adeus... e o quê? Que faço com essa hora que vem e que não conheço? Aonde vou?
(A luz da cena escurece. As lâmpadas dos anjos tomam uma luz azul. Pelas varandas torna a entrar uma luz
de lua que vai aumentando até o final. Ouve-se um gemido.)
(Entra em cena o Manequim com o vestido de noiva. Esse personagem tem rosto, as sombrancelhas e os lábios
dourados como manequim de vitrina de luxo.)
MANEQUIM - Canto
morte que não teve nunca
dor de véu sem uso,
com pranto de seda e pluma.
Roupa de dentro que fica
gelada de neve escura,
sem que as rendas possam
competir com as espumas.
Telas que cobrem a carne
serão para a água turva.
E em lugar de rumor quente,
quebrado torso de chuva.
Quem usará a roupa boa
da noiva menina e morena?
JOVEM - Nunca.
JOVEM - O quê?
ASSIM QUE PASSEM CINCO ANOS - FEDERICO GARCÍA LORCA 24
“Santos e Poetas”, 1º Semestre 2008
MANEQUIM - Um trajezinho que roubei da costura. (mostra uma roupa cor-de-rosa de menino)
As fontes de leite branco
molham minhas sedas de angústia
e uma dor branca de abelha
cobre-me de raios a nuca.
Meu filho. Quero o meu filho.
Por minha saia o desenham
estas cintas que me estalam
de alegria na cintura.
E é teu filho.
JOVEM - Sim, meu filho:
onde chegam e onde se juntam
pássaros de sonho louco
e jasmins de bondade.
(Angustiado)
E se meu filho não chega?
Pássaro que o ar cruza
não pode cantar.
JOVEM (Aterrado e decisivo) - Vesti-lo-á a mulher que anda pelas praias do mar.
MANEQUIM - na rua.
(A luz é de um azul intensíssimo. Entra a CRIADA pela esquerda com um candelabro e a cena toma
suavemente sua luz normal, sem descuidar a luz das varandas abertas de par em par que já no fundo. No
momento em que entra a CRIADA, o MANEQUIM fica rígido como numa posição de vitrina. A cabeça
inclinada e as mãos levantadas em atitude delicadíssima. A CRIADA deixa o candelabro sobre a mesa do
toucador, sempre em atitude compungida e olhando o JOVEM. Neste momento aparece o VELHO por uma
porta da direita. A luz aumenta).
VELHO (Dá mostras de grande agitação e leva as mãos ao peito. Tem um lenço de seda na mão) - Sim, eu.
VELHO - Mais que nunca! Ai, me magoaste! Por que subiste? Eu sabia o que ia passar-se. Ai!
VELHO (enérgico) - Nada. Não estou sentindo nada. Uma ferida, mas... o sangue está-se secando e o que
passou, passou (O JOVEM inicia a retirada) Aonde vais?
VELHO - Quem?
JOVEM - Eu também vou-me embora. Busco, igual a ela, a nova flor do meu sangue.
(Sai correndo)
CRIADA (Entra rapidamente, pega o candelabro e sai pela varanda) - Ai, a senhorita, meu Deus, a
senhorita!
VOZ (Fora)
Esperaaaaaaa!
Pano rápido.
TERCEIRO ATO
PRIMEIRO QUADRO
Bosque. Grandes troncos. No centro, um teatro rodeado de cortinas barrocas com o pano cerrado.
Uma escadinha une o tabladinho ao cenário. Ao levantar-se o pano, cruzam entre os troncos duas figuras
trajadas de preto, com as caras brancas de gesso e as mãos também brancas. Soa uma música distante. Entra
o ARLEQUIM. Roupa preta e verde. Traz duas máscaras, uma em cada mão e ocultas nas costas. Movimenta-
se de modo plástico como um bailarino.
MOÇA - É verdade.
Perdi meu desejo,
perdi meu dedal
e nos troncos grandes
tornei a achá-los.
ARLEQUIM (Irônico) - Uma corda mui longa,
longa para baixar.
ARLEQUIM - Adormecido.
MOÇA - Agora?
ARLEQUIM - Verdade.
Eu to darei.
(Aparece um esplêndido PALHAÇO, cheio de lentejoulas. Sua cabeça cheia de pó dá uma sensação de
caveira. Ri com grandes gargalhadas.)
ARLEQUIM - Toco.
Noivo, onde estás?
(ARLEQUIM toca um violino branco, com duas cordas de ouro. Deve ser grande e pleno. Marca o
compasso com a cabeça.)
PALHAÇO - Silêncio.
(ARLEQUIM ri.)
(Sai a MOÇA.)
PALHAÇO - Representando.
Um menino pequeno
que quer trocar
em flores de aço
seu naco de pão.
ARLEQUIM - Mentira.
ARLEQUIM (Adotando uma atitude de circo e como se o menino ouvisse) - Senhor homem, venha. (Inicia a
falsa saída).
PALHAÇO (Aos gritos e olhando o bosque e adiantando-se ao ARLEQUIM)- Não grite tanto.
Bom dia!
(Em voz baixa).
Vamos!
Toque.
ARLEQUIM - Toco?
(Ouvem-se as trompas. Entra a DATILÓGRAFA. Veste traje de tênis, com boina de cor intensa. Em cima do
vestido uma capa comprida. Vem com a primeira MÁSCARA. Esta veste traje de 1900, com comprida cauda
amarelo-berrante, cabelo de seda amarelo, caindo como um manto, e máscara branca de gesso; luvas até o
cotovelo da mesma cor. Traz chapéu amarelo e todo o peito semeado de lantejoulas de ouro. O efeito desse
personagem deve ser o de uma labareda sobre o fundo de azuis lunares e troncos noturnos. Fala com leve
sotaque italiano).
MÁSCARA - Lindo.
DATILÓGRAFA - Não aparecia... Mas o via pelas venezianas; quieto (Tira um lenço) com uns olhos...
Entrava o ar como uma faca, mas eu não lhe podia falar.
MÁSCARA - “Oh! Meu Deus!” Era igual ao conde Artur da Itália. Oh! Amor!
DATILÓGRAFA - Sim?
MÁSCARA - No foyer da Ópera de Paris há umas enormes balaustradas que dão para o mar. O Conde
Artur, com uma camélia entre os lábios, vinha em uma barquinha, com seu filho, os dois abandonados por
mim. Mas eu corria as cortinas e lhes atirava um diamante. Oh! Que dulcíssimo tormento, minha amiga! O
conde e seu filho passavam fome e dormiam entre os ramos com um lebreu que me havia dado de presente
um senhor da Rússia (Enérgica e suplicante). Não tens um pedacinho de pão para mim? Não tens um
pedacinho de pão para o teu filho? Para o menino que o conde Artur deixou morrer congelado?... (Agitada).
E depois fui ao hospital e ali soube que o conde havia se casado com uma grande dama romana... E depois
pedi esmola e compartilhei de minha cama com os homens que descarregam o carvão no cais.
MÁSCARA (Serenando-se) - Digo que o conde Artur me amava tanto que chorava por trás das cortinas com
seu filho, enquanto que eu era como uma meia-lua de prata, entre os binóculos e as luzes de gás que
brilhavam sobre a cúpula da grande Ópera de Paris.
DATILÓGRAFA - Tardará.
MÁSCARA - Também Artur tardará. Tem na mão direita uma cicatriz que lhe fizeram com um punhal, por
minha causa, sem dúvida (Mostrando sua mão). Não a vês? (Apontando o pescoço). E aqui outra, estás
vendo-a?
MÁSCARA - Por quê? Por quê? Que faço eu sem feridas? De quem são as feridas de meu conde?
ASSIM QUE PASSEM CINCO ANOS - FEDERICO GARCÍA LORCA 31
“Santos e Poetas”, 1º Semestre 2008
DATILÓGRAFA - Tuas. É verdade! Há cinco anos que me está esperando, mas... Que belo é esperar com
segurança o momento de ser amada!
MÁSCARA - E é seguro!
DATILÓGRAFA - Seguro! Por isso vamos rir! Quando pequena, guardava os doces para comê-los depois.
(Ouvem-se trompas).
DATILÓGRAFA (Iniciando saída falsa)- Se me amigo viesse... Tão alto, com todo o cabelo riçado, mas
riçado de um modo especial... Faze que não o conheces.
(Aparece o JOVEM. Veste um traje niker cinzento com meias de quadrados azuis).
JOVEM - O quê?
ARLEQUIM - Cheio de espectadores definitivamente quietos. (Suave) Não quer entrar o senhor?
JOVEM - Não.
ARLEQUIM (Enfático) - O poeta Virgílio construiu uma mosca de ouro e morreram todas as moscas que
envenenavam o ar de Nápoles. Lá dentro, no circo, há ouro brando, suficiente para fazer uma estátua do
mesmo tamanho de você.
PALHAÇO (Entrando pelo lado oposto) - Mas aonde vai? Ah! Ah! Ah!
JOVEM (Irritado) - Mas quererá dizer-me que brincadeira é essa? Eu ia para minha casa, isto é, para minha
casa, não; para outra casa, para...
(O ARLEQUIM já se levantou. O JOVEM está de costas e saem também de costas, nas pontas dos pés,
marcando um passo de baile e com o dedo nos lábios).
DATILÓGRAFA - Contigo.
JOVEM - Contigo
JOVEM - Amor,
O dia que volta.
Meu amor!
DATILÓGRAFA - Espera!
(Dirige-se para a escada. As cortinas do teatro se descerram e aparece a biblioteca do primeiro ato, reduzida
e de tons pálidos. Aparece na cena a MÁSCARA amarela, tem um lenço de rendas na mão e aspira sem cessar
um frasco de sais.)
MÁSCARA (À Datilógrafa) Agora mesmo acabo de abandonar para sempre o conde. Ficou para atrás com
seu filho. (Desce a escada). Estou certa de que morrerá. Mas me quis tanto (Chora. À Datilógrafa). Não o
sabias? Seu filho morrerá sob a geada. Abandonei-o. Não vês como estou contente? Não vês como rio?
(Chora). Agora me buscará por todos os lados. (No chão) Vou esconder-me dentro das sarçamouras. Falo
assim porque não quero que Arthur me ouça (Em voz alta) Não quero! Já te disse que não te quero (Sai
chorando). Tu a mim, sim; mas eu a ti, não te quero.
(Aparecem dois CRIADOS vestidos de librés azuis e caras palidíssimas, os quais deixam à esquerda do
cenário dois tamboretes brancos. Pela cenazinha cruza o Criado do primeiro ato, sempre andando nas pontas
dos pés.)
JOVEM - Parece-me que agonizo sem ti. Aonde irei, se me deixas? Não me lembro de nada. A outra não
existe, mas tu, sim, porque me queres.
JOVEM - Agora...
(Aparece no cenário o Velho. Vem vestido de azul e traz um grande lenço na mão, manchado de sangue, que
leva ao peito e ao rosto. Dá mostras de agitação e observa lentamente o que se passa na cenazinha.).
JOVEM - Mas o sangue lateja em minhas fontes com nós de fogo, e agora tenho-te já aqui.
(Cruza a cenazinha o MENINO morto. Vem só e entra por uma porta esquerda.)
JOVEM - Sim, meu filho. Corre por dentro de mim, como uma formiga sozinha dentro de uma caixa
fechada. (Á datilógrafa) Um pouco de luz para meu filho. Por Favor. É tão pequeno... Achata as narinazinhas
na vidraça do meu coraçãoe, não obstante, (não tem ar).
MASCARA AMARELA (Aparecendo no cenário grande) Meu filho! (Entram duas mascaras que
presenciam a cena)
DATILÓGRAFA (Autoritária e seca) Escreveste as cartas? Não é teu filho, sou eu. Tu esperavas e me
deixaste partir, mas sempre te acreditas amado. É mentira o que digo?
DATILÓGRAFA - Eu, em troca, sabia que não me quererias nunca. E, não obstante, elevei o meu amor, e
mudei-te e vi-te pelos cantos da minha casa. (Apaixonada) Quero-te, porém mais longe de ti. Fugi tanto que
preciso contemplar o mar para poder evocar o tremor de tua boca.
VELHO - Porque se ele tem vinte anos pode ter vinte luas.
DATILÓGRAFA - Sim, quero-te, porém muito mais. Não tens tu olhos, para ver-me nua, nem boca para
beijar o meu corpo que nunca se acaba. Deixe-me! Quero-te demasiado para poder contemplar-te.
DATILÓGRAFA - Estou muito alta. Por que me deixaste? Ia morrer de frio e tive de buscar o seu amor por
onde não há gente. Mas estarei contigo. Deixa-me baixar pouco a pouco de ti.
(Aparecem o PALHAÇO e o ARLEQUIM. O PALHAÇO traz uma cortina e o ARLEQUIM um violino branco.
Sentam-se nos tamboretes).
ARLEQUIM - De anos.
DATILÓGRAFA - Sim.. Será possível que sejas tu? Assim de repente, sem haver sobreado lentamente essa
formosa idéia: será amanhã? Não tens pena de mim?
DATILÓGRAFA - Irei.
JOVEM - Vamos.
DATILÓGRAFA - Mas...
JOVEM - Dize-me.
(O Jovem começa a descer lentamente a escada. A Datilógrafa fica em atitude extática no cenário. Entra o
Criado de ponta de pés e a cobre com uma grande capa branca).
PALHAÇO - Uma música.
ARLEQUIM - De anos.
SEGUNDO QUADRO
A mesma biblioteca do primeiro ato. Á esquerda o traje de noiva posto em um manequim sem cabeça e sem
mãos. Várias maletas abertas. Á direita uma mesa.
CRIADO - Agora está como porteira. Mas antes foi uma grande senhora. Viveu muitos tempo com um
conde italiano riquíssimo, pai do menino que acabam de enterrar.
CRIADO - Dessa época lhe vem à mania de grandeza. Por isso gastou tudo quanto tinha na roupa de menino
e no caixão.
CRIADA - E nas flores! Presenteei-o com um raminho de rosas, mas eram tão pequenas q nem sequer as
deixaram entrar na sala.
JOVEM: (Entrando) - João.
CRIADO - Senhor.
(A Criada sai)
JOVEM - Dá-me um copo d’água fria (O Jovem dá mostras de desesperança e desfalecimento físico).
(O Criado o serve)
CRIADO - Não
JOVEM - É assombroso que seja tão estreita. Minha casa tinha um pátio enorme, onde eu brincava com
meus cavalinhos. Quando o vi, aos vinte anos, era tão pequeno que me parecia incrível que houvesse podido
voar tanto por ele.
CRIADO - O senhor apresenta cada exemplo... Mas eu lhe perguntaria, se o senhor o permite... Sente-se
bem o vento?
JOVEM - Sim.
JOVEM - Isso mesmo. A de nogueira talhada. Quão bem se dormia nela. Lembro-me de que, quando
menino, vi nascer uma lua enorme por trás da varandinha de seus pés... Ou foi pelos ferros da varanda? Não
sei. Onde está?
(o criado sai)
JOVEM - Seda preta... Não... Procura outros (levantando-se). E será possível que nesta casa esteja sempre o
ar rarefeito? Vou cortar todas as flores do jardim, sobretudo todas aquelas malditas adelfas que passam por
cima dos muros e aquela relva que só brota à meia-noite...
CRIADO - Dizem que com as anêmonas e dormideiras dói a cabeça em certas horas do dia.
JOVEM - Deve ser isso. Leva isso também. (apontando o sobretudo) Põe-no no sótão.
(soa a campainha)
(Entram os Jogadores. Vêm de fraque. Trazem capas longas de cetim branco que lhes que lhes chegam aos
pés)
PRIMEIRO JOGADOR - Foi em Veneza. Um ano mau de jogo. Mas aquele rapaz jogava de verdade.
Estava pálido, tão pálido que na última jogada já não tinha mais remédio senão largar o ás de coeur. Um
coração seu cheio de sangue. Largou-o e ao ir apanha-lo (baixando a voz) para... (olha para os lados) tinha
um ás de copas transbordando e fugiu bebendo nele com duas garotas, pelo Grande-Canal.
ASSIM QUE PASSEM CINCO ANOS - FEDERICO GARCÍA LORCA 39
“Santos e Poetas”, 1º Semestre 2008
SEGUNDO JOGADOR - Não há que fiar-se em gente pálida ou que tem fastio; jogam, mas reservam.
TERCEIRO JOGADOR - Joguei na Índia com um velho que, quando já não tinha uma gota de sangue
sobre as cartas, e eu esperava o momento de lançar-me sobre ele, tingiu de vermelho com uma anilina
especial todas as copas e pôde escapar entre as árvores.
PRIMEIRO JOGADOR - Jogamos e ganhamos; mas que trabalho nos custa! As cartas bebem rico sangue
nas mãos e é difícil cortar o fio que as une.
SEGUNDO JOGADOR - Mas creio que com este... não nos equivocamos.
SEGUNDO JOGADOR - Sim. Mas lembra-te do menino que na Suécia jogou conosco quase agonizante, e
por pouco nos deixou cegos os três com o jorro de sangue que nos lançou.
SEGUNDO JOGADOR - É preciso trata-lo com muita mansidão para que não reaja.
TERCEIRO JOGADOR - E ainda que nem à outra, nem à senhorita datilógrafa ocorrerá virem aqui até
que passem cinco anos, se é que vêm.
SEGUNDO JOGADOR (rindo) - Se é vêm, ah! ah! ah!
PRIMEIRO JOGADOR (alegre e profundo) - Eu guardo uma flecha num tiro ao alvo.
PRIMEIRO JOGADOR (em brincadeira) - Em um tiro ao alvo que não somente se crava sobre o aço mais
duro, como sobre a gaze mais fina. E isto sim que é difícil (riem).
JOVEM - Senhores (aperta-lhes as mãos) Chegaram muito cedo. Faz demasiado calor.
PRIMEIRO JOGADOR - Tão elegante que já não deveria tirar nunca a roupa.
TERCEIRO JOGADOR - Há vezes em que a roupa nos fica tão bem que já não temos vontade de tira-la.
JOVEM - Começamos?
(sentam-se os três)
JOVEM - Que cartas mais frias! Nada. (Deixa-as sobre a mesa) E vocês?
PRIMEIRO JOGADOR (em voz baixa) - Nada (Dá-lhes cartas outra vez)
TERCEIRO JOGADOR (olhando suas cartas com inquietação) - Nada. Vamos ver.
(Os três JOGADORES mostram suas cartas. O JOVEM se detém e as oculta na mão).
JOVEM (ao TERCEIRO JOGADOR) - Você certamente gostará de anis. É uma bebida...
JOVEM (ao CRIADO, que entra) - Como, não há uísque? (No momento em que o CRIADO entra, os
JOGADORES ficam silenciosos com as cartas na mão) Nem conhaque?
JOVEM (Angustiado) - O conhaque é uma bebida para homens que sabem resistir.
(Sai o CRIADO)
JOVEM (agonizante) - Sim, sim. Um pouco de Chartreuse. O Chartreuse é como uma grande noite de lua
verde dentro de um castelo onde há um jovem com umas algas de ouro.
PRIMEIRO JOGADOR (forte) - É necessário que você nos entregue seu ás.
SEGUNDO JOGADOR (enérgico) - Porque há que ganhar ou perder... Vamos. Sua carta.
(neste momento, nas prateleiras da biblioteca, aparece um ás de copas iluminado. O Primeiro Jogador saca
uma pistola e dispara sem ruído como uma flecha. O ás de copas desaparece e o Jovem leva as mãos ao
coração)
ECO - Amor.
ECO - Aqui...
(o Jovem morre. Aparece o Criado com um candelabro aceso, o relógio soa as doze).
Pano. FIM
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