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criação de um duplo - e muitos outros temas da literatura. De que forma ele, ainda
bem jovem, através deste hábito de escrita, planejou carreira e se construiu como
autor? Como é que alguém se transforma em escritor, ou é transformado em escritor?
(p.16, 2017). Posteriormente, como organizou os diários para que incorporassem ideias
sobre a literatura e a vida? Como viveu e registrou temas que vão da psicanálise à
política na América Latina? Sempre falando de maneira clara e inusitada, Os Diários nos
convidam a desconfiar dos discursos hegemônicos e a sempre procurarmos nosso
ponto de vista. Este trabalho pretende desenvolver um método para a descrição das
técnicas inventadas pelo autor numa linguagem igualmente acessível aos seus
possíveis leitores. A ideia é fazer isto aproveitando também da minha experiência como
ficcionista e autora de diários.
1. Inusitada autoria
O que nos chama a atenção, logo de início, é a autoria: são os diários de Renzi –
e não de Piglia. “O outro escreve e eu assisto ao seu trabalho” (p.435, 2019), anota. A
questão do duplo é exercitada de diversas maneiras. Há entradas sobre um mesmo
tema escritas em primeira e terceira pessoa, deixando o leitor na incerteza sobre quem
está falando. O autor também se imagina na vida do outro. Escreve crônicas, por
exemplo, sobre um primo de Renzi (ou Piglia), Horácio, que, tendo nascido no mesmo
ano que o autor e permanecido no subúrbio de Adrogué, se transforma numa vida
possível, caso o autor caso nunca tivesse começado a escrever ou deixado a localidade
de origem. A certa altura, o autor tenta organizar tantas vozes, separando as entradas
do diário por temas, escrevendo em dois cadernos diferentes, o “A” e o “B” - que
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depois serão cinco, de “A” até “E” - para, mais tarde, voltar a um único caderno.
Anotados nos diários, os princípios do romance Prisão Perpétua falam da fascinação de
Renzi por um outro importante - o estrangeiro - na pessoa do mentor Steve Ratliff, de
quem o autor conta as histórias, “como se Steve fosse um signo obscuro de mim
mesmo” (p. 16, 1989).
Os diários eram tão importantes para Ricardo Piglia, que são citados e usados
não só em Prisão Perpétua como em toda sua obra, antes mesmo que começasse a
editá-los. Muitas entradas também foram reproduzidas em Formas Breves, Crítica y
Ficcion e O Último Leitor, entre outros. Ele fez - entre diários, ensaios e romances - uma
dinâmica de retroalimentação. Uma dinâmica coerente com o que acredita que é a
literatura: uma reconstrução da experiência vivida; uma reescritura permanente. Aqui
outra característica do autor que nos motiva: sua experimentação. Ele escreve e
reescreve, faz e desfaz narrativas. É, como herdeiro de Jorge Luis Borges, um autor-
leitor. Se o mestre dizia “que os outros se gabem das páginas que escreveram, eu me
orgulho das que li”, Renzi - que, como Piglia, sequer fez faculdade de Letras - agarra-se
às suas leituras. Os Diários contêm trechos do que está lendo, frases, conceitos,
interpretações. Considerações esclarecedoras sobre a obra de Borges, Cortázar e Joyce,
entre outros. Vale entender como ele se apropria destes textos - e que conteúdo e
qualidade eles vão ganhando ao longo do tempo. Como escreve Marília Rothier no
artigo A força investigativa da ficção, esta seria “(...) a cadeia inescapável da arte
narrativa (...) pois a boa estória apaga as identidades de mestres e discípulos” (p. 95-
101, 2012).
Renzi também lê o diário de outros autores, tendo predileção especial pelos de
Franz Kafka, Cesare Pavese e Witold Gombrowicz. De cada um retira aquilo com que
tem mais afinidade. Em Kafka, cujo diário é um claro exercício da obra, a convicção de
que “só quem escreve um diário pode entender o diário dos outros” (p. 127, 2019). Já
nos cadernos de Pavese, na verdade uma longa carta de despedida da vida, a noção de
que “o diário é uma espécie de suicídio” (p.154, 2017). Witold Gombrowicz é aquele
que defende que a literatura é, antes de tudo, um modo de ler – uma provocação que
Piglia sustentou e discutiu.
Mas se os três autores acima são como uma espinha dorsal para Os Diários de
Emilio Renzi, uma frase, retirada de O Diário Completo de Anais Nin, define o trabalho
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de Renzi: “O diário é um modo de incluir nos textos o que então se quer provocar na
realidade” (p. 75, 2017). Desde muito jovem, o autor argentino considera que seus
cadernos - como os chama - serão póstumos e nos emocionamos ao ler a última
entrada, inacabada, que faz em 2015, já tomado pela doença que o mataria dois anos
depois. Praticamente todos os objetivos que se coloca: ser um dos maiores escritores
da literatura argentina; entender a literatura como um processo; escrever todos os dias
- e outros - realiza com sucesso. Neste sentido demonstra como, através da
persistência em escrever, aprende a enfrentar situações futuras, a viver vidas possíveis.
Em 2014, quando ainda estava concluindo a edição dos diários e já doente, disse:
“Releio meus diários quando não estou bem. Ali percebo que nunca há problema que
não tenha saída”1.
No entanto, várias vezes, na urgência dos fatos e acontecimentos, o autor não
pensou desta forma e se sentiu encurralado. Ou assim ele nos dá a entender, pois,
como Borges, joga com o leitor, indo e vindo com as mesmas ideias – às quais sempre
acrescenta algo. Um exemplo é quando passa quinze anos discutindo o que será o seu
primeiro romance, depois nomeado Respiração Artificial. São dúzias de entradas em
que elabora o enredo; o formato; o título; a necessidade de ali falar da política
argentina – até que, quando o livro está pronto para ser lançado, começa a ditadura, o
tão almejado projeto vai ser censurado. Nesse momento ele volta a comentar O Ofício
de Viver – Diário de 1935 - 1950, de Pavese, e a contemplar a ideia de suicídio. Como
se sabe Piglia não se mata, e o romance é publicado com sucesso. O que nos caberia
estudar aqui é como o autor reforça esta instabilidade entre ficção e realidade. E,
sendo ou não verdade que o autor cogitou o suicídio, outra função deste projeto seria
o de explorar um mito clássico da literatura: a questão da escrita como salvadora de
vidas.
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Releo mis diarios cuando no estoy bien. <www.youtube.com > Círculo de Bellas Artes, 2015. Acesso 05
set 2019.
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Existe uma variada bibliografia sobre diários, sua conceituação e história, que
deve ser revista. De acordo com o estudioso de “escritas de si”, Philippe Lejeune,
existem dois tipos de diários: aqueles a que se tem acesso ao texto original e os que se
conhece apenas a versão publicada. Os de Piglia estariam nesse último caso, sem
rasuras aparentes, manchas ou falhas. É um diário de autor, e, sobre esta categoria a
bibliografia já não é tão abundante. O argentino Alberto Giordano em seu texto
Digressões Sobre Diários de Escritores deixa claro que, apesar de muito diferentes entre
si, os diários de profissionais têm em comum a meta narratividade e a autoconsciência,
já que eles escrevem refletindo sobre a linguagem e sobre o gênero. Uma destas
formas de reflexão se dá na referência ao trabalho de outros diaristas. Giordano explica
que “Jules Renard fala mal dos diários do Goncourt. Trinta anos depois, Gide lê o diário
de Renard e o comenta; treze anos depois, Virginia Woolf lê e comenta os diários de
Gide” (...) Então os diários de autores citados por Renzi seriam essenciais, pois, através
deles o autor manifesta sua admiração, sua discordância, seus objetivos e temores.
Blanchot no texto Recurso ao diário, reconhece que “os escritores que mantêm
um diário são os mais literários de todos”, mas questiona este hábito, ressaltando que
o escritor-diarista quer “recordar-se de si mesmo, de como ele é quando não está
escrevendo” – quando o que deveria fazer era escrever literatura, “este reino
fascinante da ausência de tempo”. A partir de Blanchot e de outros autores, o que
Renzi faz com o tempo-espaço ao editar os diários? Ele nos dá pistas: passa a ver os
fatos de um outro lugar, “como se os observasse do alto de um mirante” (p16, 2017) e
ressalta acontecimentos mínimos que, a partir da releitura, passa a recordar. Muitos
destes “restos”, revalorizados, se desdobram em ensaios, crônicas – textos posteriores,
feitos quando o autor já está no fim da vida, dando outra dimensão espaço-temporal
para eles.
A obra ensaística e ficcional de Ricardo Piglia será revista, para que se desenvolva
os objetivos acima. O conceito de que o diário interfere na realidade do autor, por
exemplo, toma muitas faces em sua obra. Quando, no ensaio Os sujeitos trágicos
(literatura e psicanálise), ele compara os psicanalistas aos autores e diz que “o
psicanalista quer ouvir a voz secreta que os escritores convocam desde Homero” nos
dá uma chave. Os diários, a partir desse ensaio, poderiam ser considerados como o
ouvido do psicanalista. Piglia os nomeia como “a lousa mágica de Freud”. Lembrando
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que a psicanálise nasceu na relação entre medicina e literatura e é uma área de
construção de ficção a que o sujeito recorre, caberia aqui bibliografia sobre arte e
psicanálise. O pequeno texto de Freud, retirado de sua conferência, Escritores Criativos
e Devaneios, por exemplo, revela um conceito de literatura que se relaciona com a
brincadeira e a criação poética. Brincadeira e humor é o que se pode depreender de
algumas anotações dos diários, quando ele joga com os mesmos relatos secretos e
íntimos, mudando a forma como os narra.
Outra forma de pensar a relação psicanálise e literatura é através do gênero
policial, forte temática nos romances do autor: “Definitivamente, não há nada além de
livros de viagem ou histórias policiais. Narra-se uma viagem ou um crime. Que outra
coisa se pode narrar?” (p 73, 2019) Como escreveu Mauro Gaspar em sua tese, o texto
do autor argentino se funda nesta interação entre viagem e investigação, “tanto no
sentido da descoberta quanto na utilização desses elementos como estratégia
narrativa”. Esta viagem que segue pistas vai descobrir os segredos da escrita, algo que
pode, como define Piglia, “ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo”. Uma aventura em
que o leitor é convidado a desvendar mais de uma camada do que está lendo – como a
estratégia para a escrita de contos que ele defende, onde “um conto sempre conta
duas histórias”. Aqui se faria necessário nos debruçarmos sobre a tragédia, o gênero
dramático que os psicanalistas consideram uma das chaves de interpretação do ser
humano – e também o ambiente em que os detetives/personagens de Piglia estão
inseridos.
Outros diaristas também consideravam a ideia do registro cotidiano como
transformador da vida e da obra. André Gide no seu clássico Diário dos Moedeiros
Falsos, já na dedicatória o define - “dedico este caderno de exercícios e estudos
àqueles a quem as questões do ofício interessam”. Ou seja, registra-os como exercícios.
Susan Sontag, ao contrário, tem um diário póstumo que não foi editado por ela.
Pessoal, entrecortado, ela nunca o destinou à publicação. É importante ler como ela,
assim como Piglia, constrói os projetos que depois realiza, sempre anotando que
“escrevendo mudo a mim mesma”. Autores que definem o diário como o ensaio de um
novo sujeito seriam fundamentais aqui. Robert Fothergill em seu Private Chronicles
afirma que diário significa “o que você pensar que ele significa”. E Allan Girard analisa
modelos em Le Journal Intime para concluir: “um diário não obedece a nenhuma regra
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imposta”. Em contraposição, Maurice Blanchot considera a escrita diaristica limitadora,
como já dissemos. Mas Blanchot nunca teve um diário, o que para Piglia e Kafka já o
deixaria incapaz de criticá-lo. Para além destas críticas está Roland Barthes, que fez
quatro tentativas de diários. No texto Deliberação, do livro O Rumor da Língua, ele
publica treze recortes de seus diários, comentando sensações em diferentes
momentos: quando o escreve; após a leitura imediata depois da escritura e, num terceiro
momento, o de uma leitura posterior. Seus questionamentos ressoam como as angústias
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autor e a comunidade que o cercava. É impressionante ler como, mesmo no cotidiano
de tantos dias terríveis, ele persistiu trabalhando. Aqui os diários, como inúmeras vezes
para tantos autores, transformam-se de escritas de si para escritas do luto e da dor.
Inúmeras vezes ele não consegue trabalhar e viver no próprio apartamento, que está –
ou que ele julga estar – vigiado. O autor começa então a viver uma vida intinerante, se
escondendo da repressão - e aqui poderíamos acessar o conceito de errância para
Foucault, que considerava que esta seria uma condição própria a qualquer homem que
nunca se encontra plenamente em casa. A partir do primeiro nomeado desterro, aos
16 anos, Piglia dizia que não se importava mais onde vivia, e ele reflete sobre isto nos
textos posteriores, principalmente os do volume Um dia en la vida. As mudanças
constantes e o clima de medo têm sérios efeitos sobre sua produção.
Os Diários foram os primeiros livros que li, entre 2018 - 2019, com os quais tive
profunda identificação na relação que nós, estudantes, professores e pensadores,
tivemos com a política brasileira desses anos. É importante ler as formas de resistência
quando o autor recorda, por exemplo, o que os alunos fizeram quando da universidade
ocupada do final dos anos 60. Os Diários devem ser lidos, finalmente, porque trazem
alguma esperança: “O recurso da literatura como saída ou salvação é efeito da crise da
esquerda ou do início da maturidade (...) Não é possível escrever sem entusiasmo ou
confiança no que virá” (p. 313, 2017).
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