Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
o Que é:
brasiliense brasil·iense
\
,
brasiliense
ca
~~-,
Copyright @ Hilário Franco Jr.
1
Capa:
123 (antigo 27)
Artistas Gráficos
Caricaturas:
Emílio Damiani
Revisão: ""
José E. Andrade
INDICE
1I
II
I
I , Introdução 7
As motivações materiais ,....... 10
As motivações psicológicas ~. . . .. 28
iI As Cruzadas no Oriente e no Ocidente
O Ocidente após as Cruzadas
38
66
Conclusão 82
I1
Indicações para leit~ra 84
I
I
I: í
lúJ
editora brasiliense s. a . ,
01223 - r. general jardim, 160
são paulo - brasil
lt
1\
\
II
I 1
I II
II
,.
li III
1
11 INTRODUÇÃO
11
11
t sua roupa.
Mas, o que foram as Cruzadas? Teremos todas
as páginas seguintes para responder à essa questão,
mas simplificadamente podemos dizer que foram
expedições militares empreendidas contra os inimi-
gos da Cristandade e por isso legitimadas pela Igreja,
...." li
8
~ 1f
ll_il_á_r_W_R_r_a_n_co
__ A,Cruzad~ 9
I que concedia aos seus participantes privilégios eSPi-jl' E os recursos materiais, de onde provinham? As
rituais e materiais. Portanto, as lutas contra os rnu- • Cruzadas eram financiadas pelos próprios cruzados e
çulrnanos do Oriente Médio e da Península Ibérica; pela Igreja: os pequenos nobres empenhavam seus
contra os eslavos pagãos de Europa Oriental e contrá bens e vendiam a liberdade dos camponeses depen-
os heréticos de qualquer parte da Europa Ocidental dentes de suas terras, os senhores feudais recebiam
eram Cruzadas. ajuda de seus vassalos, os soberanos criavam tributos
Que privilégios eram aqueles? O principal deles, novos, a Igreja recebia donativos e taxava as rendas
o da indulgência, concedia o perdão dos pecados, de laicos e clérigos. Em alguns casos os cruzados
perspectiva muito atraente naquela sociedade de levantavam empréstimos junto a mercadores (como a
forte religiosidade, mais clerical que civil, na qual Quarta Cruzada com os venezianos ou as Cruzadas
pecado e crime eram a mesma coisa. Fazer o voto de de São Luís com os genoveses) ou as Ordens Reli-
cruzado era se tornar "uma espécie de eclesiástico giosas (nessa atividade destacaram-se os Templâ-
11I temporário" (Riley-Smith), submetido à proteção da rios).
I I1 Igreja e isento da jurisdição laica. Mais ainda, du-
rante a Cruzada o pagamento de juros ficava sus-
'Quantos indivíduos delas participavam? O nú-
mero de cruzados é difícil de ser calculado, pois a
d
I
penso e uma moratória autorizava o "soldado de
Cristo" a pagar suas dívidas apenas quando da volta.
documentação ou não nos dá nenhuma informação
nesse sentido ou as cifras são claramente exageradas,
De que maneira começava uma Cruzada? A mais simbólicas que reais. Além disso, misturavam-
iniciativa na maioria das vezes era do papa, que se às Cruzadas muitos indivíduos não combatentes,
como chefe espiritual da Cruzada pregava sua reali- mercadores, artesãos, mulheres e crianças. A pro-
I zação pessoalmente (como fez Urbano II na Primeira porção entre guerreiros e não combatentes era gran-
Cruzada) ou através de clérigos (como ocorreu na de, talvez de um para dois; no grupo dos guerreiros,
1
I
I, Segunda Cruzada com São Bernardo). A data de seu entre cavaleiros e infantes, perto de um para sete. No
início também era marcada pelo papa e um repre- geral, as maiores Cruzadas não ultrapassavam os
111 sentante seu, o legado pontifício, sempre acompa- 10 ()()()combatentes.
nhava a Cruzada como seu chefe, ainda que somente
teórico, pois naturalmente as operações militares
eram quase sempre decididas pelo rei ou pelos senho-
res feudais mais importantes. Assim, algumas vezes,
como aconteceu com a Quarta Cruzada, o papado
11 perdia o controle real da situação.
k
.11 li
·- -
I
I
!r
'I .
As Cruzadas 11
I
I,
1'
língio. Em outras palavras, o feudali~mo foi uma
li resposta espontânea-da sociedade cristã ocidental à
11
1 I crise geral que a abalava naquele momento. De fato,
lil
cada uma das características do feudalismo responde
a um aspecto daquela crise.
/!I
li!II
Economicamente, à medid~ ,!ue o se!or. me:-
,il
.;- li cantil o mais importante na Antiguidade Clássica, Ia
decaindo, o setor agrícola tornava-se o principal.
[I, Assim, a economia feudal era fundamentalme~te
I
'11.
AS MOTIV AÇÕES MATERIAIS agrária, com cada unidade de produção, ? .senhono,
,I
procurando ser auto-s."ficiente .. I~to significa que o
I 11
11 JI senhorio, como herdeiro do latifúndio romano d~s
Se por pelo menos duzentos anos (de fins do últimos tempos, produzia não só para suas necessi-
Irli
I
século XI a fins do XIII) houve um fluxo constante de dades de alimentação, mas também de roupas, ar-
li/'I
ocidentais dirigindo-se para a periferia da Cristan- mas e utensílios. As atividades mercantis encontra-
11,
da de Latina (Oriente Médio, Península Ibérica e Eu- vam-se bastante reduzidas, recorrendo-se a elas ape-
1
il1 1 ropa Oriental), devem ter existido razões profundas nas quando as condições locais não permitiam a
11'/ para isso. De fato, um conjunto de fatores materiais obtenção de uma determinada mercadoria (especia-
e espirituais provocou as Cruzadas, que represen- rias em toda a Europa, sal nas regiões afastadas do
taram originalmente uma espécie de saída, de solu- mar cereais no caso de uma má colheita).
::1
ção, para os problemas colocados pelo início da de- 'Contudo não é o fato de ser agrícola com ten-
sestruturação feudal. Portanto, precisamos examinar ,
dência à subsistência que diferencia a economia f~u-
111
esse quadro do qual as Cruzadas resultaram e que dal da de outros momentos históricos. O essencial "
"
I~""---' '1/
....
12 13
llilárioFranco~_s~c~ru~za~d~a_s~ ~
I
mas não é considerado um objeto (na Antiguidade o econômica e a auto-suficiência de cada região; daí,
li escravo era "uma ferramenta que fala"). De fato, ele por um processo lógico, o detentor de um senhorio
1I
estava vinculado a um lote de terra, e não a uma pes- assumir a defesa de seu patrimônio e de seus depen-
II dentes e assim ganhar o poder político naquele terri-
soa, não podendo ser desapossado dele.
I li,
11,
li! ficação do Ocidente. Realmente, desde a queda do camponês. Como a condição de cada pessoa tinha
Império Romano, sonhava-se com o restabelecimen- sido determinada por uma ordem divina -' daí o
illl termo "sociedade de ordens" - naturalmente não
to da unidade política. Porém, o insucesso da mais
importante dessas tentativas, a deCarlos Magno, havia possibilidade de mudanças; era uma sociedade
,1,/1
mostrou que o momento da unidade política havia de rígida estratificação. Mais que isso, cada homem
11/,
passado, e que, pelo contrário, os invasores vikings, devia resignadamente aceitar seu "destino", pois
muçulmanos e húngaros só poderiam ser enfrentados rebelar-se seria comprometer sua Salvação, sua Vida
eficientemente com a regionalização da defesa. Por Eterna.
outro lado, isso estava de acordo com a situação Em suma, apenas a aristocracia guerreira (in-
, I' I I J
I
1....,...---.
., ~~. .:
15
"-
14 Hilário Franco Jr As Cruzadas
I'
il[,
Em segundo lugar, com o feudalismo cessaram produção maior e assim surgiram as inovações, ou as
as invasões estrangeiras e as grandes batalhas, ou novas técnicas permitiram uma alimentação melhor
§
1:11:
seja, a guerra tornou-se menos mortífera. De fato, as e desta forma.o crescimento da população? Para nós,
I:
1
guerras feudais, apesar de constantes, pouco afe- pouco importa. Basta constatar que realmente a par-
'I tavam o comportamento demográfico da sociedade, tir de um certo momento houve uma me1horia na
já que geralmente colocavam frente a frente apenas qualidade da dieta e isto contribuiu para uma queda
!II: algumas centenas de cavaleiros. Ademais, essas na mortalidade.
I: guerras não tinhám por objetivo fundamental des- A alteração na dieta pode mesmo explicar a
r!
1
truir o adversário, mas aprisioná-lo, obtendo-se um
resgate pelo prisioneiro (uma das obrigações do vas-
mudança na proporção entre população masculina e
feminina, favorável à primeira na Alta Idade Média e
11 1: salo para com seu senhor feudal era pagar o resgate à segunda posteriormente. Tal se devia ao fato da
deste, caso ele fosse capturado). dieta na Alta Idade Média ser pobre em proteínas e
'I Um terceiro fator determinante do surto demo- sobretudo em ferro, elementos que a mulher neces-
II!il: gráfico foi a abundância de recursos naturais. A sita em maior quantidade (devido à menstruação,
existência de uma pequena população na Alta Idade gravidez e lactação), daí a anemia e portanto a me-
Média fizera com que vastos territórios ficassem nor defesa do organismo contra certas doenças. No
11
abandonados, recuperando assim sua fertilidade ou entanto, o progresso tecnolôgico - especialmente o
1111 '
recobrindo-se de florestas e pastagens naturais. Des- novo método de atrelagem animal, a charrua e o
sa forma, nos primeiros tempos do feudalismo havia sistema de rodízio de cultivos - fez com que desde o
maior extensão de terras inexploradas do que culti- século X se consumissem leguminosas (ervilha, len-
vadas, isto é, havia recursos suficientes para ali- tilha, feijão, grão-de-bico, etc.) e maior quantidade
mentar uma população bem superior à então exis- de carne, ovos e laticínios, possibilitando a dimi-
tente. Contribuindo no mesmo sentido, ocorreu ain- nuição da mortalidade feminina.
da a partir mais ou menos do ano 1000 uma suavi- Em função desses fatores verificou-se um claro
zação do clima europeu, que se tornou mais quente e incremento demográfico, com a população da Eu-
seco, permitindo o cultivo de várias espécies em lo- ropa Ocidental passando de 18 milhões de indivíduos
cais anteriormente impróprios. no ano de 800 para mais de 22 no ano 1000, quase 26
Por fim, o crescimento populacional está clara- I em 1100, quase 35 em 1200 e mais de 50 em 1300. Ê
mente ligado às inovações de técnicas agrícolas veri- significativo que a região que conheceu o mais acen-
ficadas na época. Discute-se, contudo, o tipo de liga-
ção: o incremento demográfico pressionou por uma
- tuado crescimento, a França - 5 milhões em 800,
6,Sem 1000, 7,75 em 1100, 10,5 em 1200, 16 em
t~
,"- I 18 HilárioFrancoJrl1 As Cruzadas 19
..
lilll:
1300 -, tenha sido a que maior contingente de cru- então mais viva do que no resto da Europa católica.
II zados forneceu. Em suma, sem o surto demográfico Veneza, um dos maiores centros da época, man-
II as Cruzadas não teriam sido possíveis nem neces- tinha intensas relações comerciais com o Oriente.
sárias. Desde o século VIII levava para Bizâncio trigo, vi-
O contexto comercial é outro elemento a ser nho, madeira, sal e peixe, obtendo em troca espe-
'!II/, levado em consideração para se entender a gênese ciarias, seda e manufaturados. A partir do século IX
II ,I' ~ das Cruzadas. As novas técnicas agrícolas tinham os venezianos comerciavam também com os muçul-
permitido uma significativa elevação da produtivi- manos do Egito, fornecendo-lhes mercadorias escas-
dade, que não só satisfazia as necessidades de uma sas naquela região (ferro, madeira, escravos) em tro-
população em crescimento, como ainda gerava um ca de especiarias e ouro. Sua importância no Império
excedente. A existência desse excedente permitia que Bizantino cresceu tanto que em fins do século X o
novamente a Europa pudesse obter bens não produ- imperador concedeu-lhes a Bula de Ouro, docu-
1 ,[1"
zidos ali (especiarias, seda, perfumes, etc.). Parale- mento pelo qual os navios de Veneza pagariam ape-
II:I~
1
lamente, aumentavam as necessidades dos mercados nas a metade das taxas alfandegárias devidas pelos
f" bizantino e muçulmano por gêneros alimentícios e estrangeiros. Mais ainda, um século depois recebe-
matérias-primas ocidentais. ram isenção total de impostos e uma feitoria em
Neste processo de expansão do comércio a Itália Constantinopla. Entende-se assim que Veneza tenha
teve a primazia graças a vários fatores. Sua locali- desempenhado importante papel nas Cruzadas, pois
zação geográfica, no centro do Mediterrâneo, tor- tinha no Oriente interesses a defender e estender.
nava-a naturalmente predisposta a sero elo de liga- Gênova, a maior rival veneziana, conquistara
II em princípios do século XI a hegemonia mercantil no
1111 ção entre Ocidente e Oriente. Seus recursos agrícolas
limitados tornavam aquela vocação uma necessi- Mediterrâneo ocidental derrotando os muçulmanos e
dade, pois apenas o comércio poderia fornecer os se apossando das ilhas de Elba, Sardenha e Córsega.
bens indispensáveis; é significativo que as duas maio- Assim, para ela os interesses comerciais e o combate
res cidades comerciantes italianas, Veneza e Gênova, ao infiel eram uma mesma coisa, o que facilmente a
fossem particularmente desfavorecidas para as ativi- identificou com as Cruzadas. Na verdade, seu apoio
dades agrárias. Mais ainda, o estreito contato com aos cruzados (transporte, provisões, empréstimos)
civilizações comerciais como a bizantina e a muçul- estava sempre condicionado ao recebimento de privi-
~
mana certamente reforçou aquela tendência. Por légios comerciais nas cidades conquistadas por eles.
fim, não se pode esquecer que sua tradição comercial Foi assim que os genoveses puderam formar um vas-
e urbana, vinda da Antiguidade, sempre esteve até to e rico império colonial - arrancado aos bizantinos
li
Jh
.•.
• I' • _
::r-\I~
'"
11: 20 Hilário Franco Jrê As Cruzadas 21
I
I
li e muçulmanos -, abrangendo Chipre, as principais impraticável, cada região passou a se dedicar ao tipo
ilhas do Egeu e territórios do mar Negro. de cultivo ou criação que melhor se adaptava às suas
I (I
Assim como os interesses comerciais italianos condições de solo, clima, etc. Surgiu assim um exce-
111" influíram nas Cruzadas do Oriente Médio, o mesmo dente produtivo e se desenvolveram as trocas comer-
lill: I fizeram os interesses hanseâticos em relação à ocu- ciais.
li
pação da Europa Oriental. De fato, a Hansa Teutô- Desta forma os camponeses, que anteriormente
nica, liga de comerciantes alemães, dominava o trá- não tinham outra opção de vida senão os trabalhos
fico mercantil no norte europeu, recolhendo num agrícolas e compulsórios, passaram a ter no comércio
I local e vendendo em outros inúmeros produtos: peles, uma atividade mais compensadora. Ademais, assim
I,
mel e cera da Rússia, trigo e madeira da Polônia, como a vida no campo identificava-se com servidão,
minerais da Hungria, peixe da Noruega e Islândia, a urbana identificava-se com liberdade: segundo um
cobre e ferro da Suécia, vinho da Alemanha, lã da conhecido provérbio medieval, "o ar da cidade dá
II!I!! Inglaterra e tecidos da Flandres. Portanto, atraía os liberdade" (o servo que ali residisse um ano e um dia
II11 alemães a idéia de dominar, ocupar e colonizar os sem ser reclamado pelo seu senhor tornava-se ho-
!III' territórios dos eslavos, que além de serem pagãos mem livre). Portanto, de diferentes formas (fuga,
tinham um nome interpretado como uma predes- compra da liberdade, alforria, sublevação) crescia o
!~II!I tinação a serem escravos ... número de camponeses que escapavam à servidão,
O contexto social que possibilitou as Cruzadas roubando assim ao feudalismo um dos seus susten-
estava, naturalmente, ligado às transformações ante- táculos.
riores. Um aspecto daquele contexto que nos inte- Ê natural, contudo, que nem todos os indivíduos
ressa é a maior mobilidade social, com a passagem que conseguiram abandonar o campo e a servidão
da sociedade de ordens para a sociedade estamental. tenham podido tornar-se comerciantes, surgindo as-
1/lill'll
Isto significa dizer que, enquanto na primeira o indi- sim um crescente grupo de marginalizados. Na ver-
víduo é de determinada camada social, condição dade, toda sociedade gera seus marginais, aqueles
1'111''1
1,1
estabeleci da por ordem divina desde o nascimento, que são rejeitados ou que se afastam da vida social
na segunda o indivíduo está num certo grupo social.
II por não se encaixarem nas normas de comporta-
IIlil,I Tal se devia ao fato da expansão demográfica ter mento em vigor ou por colocarem a sociedade frente
reduzido o tamanho da parcela de terra de cada às suas próprias contradições. No caso que exami-
~Ii família camponesa, obrigando muitos indivíduos a namos, o Ocidente na época das Cruzadas, dois tipos
I
I,
tentarem um novo gênero de vida. Como assim a de marginalidade interessam-nos, a heresia e a po-
tendência à auto-suficiência dos senhorios tornava-se breza, uma porque será combatida pelas Cruzadas,
I"I,
q
I ""
~\l,i{
~
..•.
22 Hilário Franco J,JI As Cruzadas 'lJ
outra porque fornecerá elementos para elas. pessoas eram diferentes. Algumas, na verdade, ávi-
Numa sociedade religiosa como a feudal, pensar das por novidades, iam apenas para ver coisas novas.
diferentemente da Igreja era cometer ao mesmo tem- Outras eram levadas pela pobreza, por estarem em
po um pecado e um crime, era se expor a punições situação difícil na sua terra; estes homens foram para
I 'I espirituais e corporais. Por que, então, surgiam tan- combater não apenas os inimigos da Cruz de Cristo,
tas doutrinas contestando as verdades oficiais, pro- mas mesmo cristãos, desde que vissem oportunidade
clamadas e defendidas pela Igreja? Exatamente pelo de aliviar a sua pobreza. Havia ainda os que estavam
fato de os grupos heréticos estarem, através da nega- oprimidos por dívidas para com outros, ou que dese-
ção dos valores religiosos socialmente aceitos, criti- javam fugir ao serviço devido aos seus senhores, ou
cando toda a organização social, todo o status quo. que estavam mesmo esperando o castigo merecido
Assim, combater as heresias era para as camadas pelas suas infâmias.
dirigentes combater um elemento desagregador da Um dos elementos sociais de mais ativa parti-
sociedade feudal, era preservá-Ia e portanto pre- cipação nas Cruzadas foram os secundogênitos de
servar-se. famílias nobres. De fato, pelos costumes sucessórios
Nos primeiros tempos do feudalismo a fraqueza do direito feudal, a norma de primogenitura estabe-
demográfica proporcionava ao servo uma certa segu- lecia que, com a morte de seu detentor, a terra
rança pois, apesar da dureza de suas condições, ele passasse indivisa para seu filho primogênito (não se
podia contar com um pedaço de terra para alimentar alterando, portanto, o jogo contratual senhor-vas-
sua família, sem correr o risco de ser privado dela e salo). Os demais filhos ou entravam para o serviço de
podendo ainda transmiti-Ia a seus herdeiros. Com a seu irmão mais velho, ou se tornavam clérigos, rece-
expansão demográfica e o conseqüente desenraiza- bendo portanto terras da Igreja. Com o surto popu-
mento, porém, muitos indivíduos deixaram de ter o lacional, no entanto, aquelas soluções revelaram-se
mínimo para a subsistência, dependendo da caridade insuficientes, sobretudo porque a Igreja, apesar de
Illi~r.ll' alheia, de serviços eventuais ou do crime. Por isso, ser a maior possuidora de terras do Ocidente, não
III!III.
Guibert de Nogent, cronista da Primeira Cruzada, podia enfeudar a todos aqueles nobres sem senhorio.
II' ,I fala da grande tranqüilidade que ocorreu na França, Assim, é compreensível que a pequena nobreza sem
com os ladrões e bandoleiros partindo para o Oriente. terra ou com escassos feudos visse nas Cruzadas a
Outro cronista, este um alemão, falando dos possível fornecedora de senhorios.
participantes da Segunda Cruzada, mostra o papel O contexto político que contribuiu para a ocor-
que os aventureiros, os criminosos e os despossuídos rência das Cruzadas estava em parte ligado àquela
tiveram no movimento: "as intenções destas várias nobreza despossuída e turbulenta. Na sua constante
----.J 1
24 HilárioFrancoJzll As Cruzadas 25
as Cruzadas que, ao levarem a guerra para outros poderão ser recompensados empregando sua cora-
locais, poderiam pacificar a Cristandade Latina. gem noutro empreendimento. Trata-se de um negó-
Num segundo momento, porém, também as monar- cio de Deus. É preciso que sem demora vocês partam
quias passaram a perceber que as Cruzadas podiam em socorro de seus irmãos do Oriente, que várias
ser-lhes úteis ao desviar para outros empreendi- vezes já pediram sua ajuda. Como a maior parte de
mentos a nobreza e seu espírito guerreiro e" irre- vocês já sabe, os turcos invadiram aquela região;
quieto. Tal fato -revelava-se extremamente atraente muitos cristãos caíram sob seus golpes, muitos foram
aos soberanos, que já se aproveitavam dos problemas escravizados. Os turcos destroem as igrejas, sa-
I: da nobreza para, apoiados pela nascente burguesia,
promoverem a centralização política. Por isso mes-
queiam o reino de Deus. Por isso, eu os exorto e
suplico - e não sou eu quem os exorta, mas o
mo, muitas vezes os próprios reis participavam de próprio Senhor - a socorrer os cristãos e a levar
Cruzadas, levando consigo para fora do país boa aquele povo para bem longe de nossas terras.
illlll parte da aristocracia guerreira. "A todos os que partirem e morrerem no cami-
Por fim, devido a questões de política eclesiás- nho, em terra ou mar, ou que perderem a vida com-
!I tica, a Igreja tinha ainda outra razão para promover batendo os pagãos, será concedida a remissão dos
as Cruzadas: tentar a reunificação da Cristandade. pecados. Que combatam os infiéis os que até agora se
De fato, uma série de divergências jurídicas, eclesiás- dedicavam a guerras privadas, com grande prejuízo
ticas, teológicas e políticas que existiam há séculos dos fiéis. Que sejam doravante cavaleiros de Cristo os
entre as Igrejas de Roma e Constantinopla tinham que não eram senão bandoleiros. Que lutem agora
culminado em 1054 no Cisma do Oriente. Nesse mo- contra os bárbaros os que se batiam contra seus
mento ocorreu a divisão em Igreja Católica Romana irmãos e seus pais. Que recebam as recompensas
e Igreja Ortodoxa Grega. Desta forma, o papado via eternas os que até então lutavam por ganhos mise-
nas Cruzadas uma arma de pressão que poderia sub- ráveis. Que tenham uma dupla recompensa os que se
meter a Igreja Oriental a Roma, dando-lhe a supre- esgotavam em detrimento do corpo e da alma. A
macia sobre todos os territórios cristãos. terra que habitam é estreita e miserável, mas no
Concluindo, a melhor síntese das motivações território sagrado do Oriente há extensões de onde
materiais da Cruzada que poderíamos apresentar é o jorram leite e mel (. .. )"
próprio discurso do papa Urbano 11 no Concílio de
Clermont, em novembro de 1095: "Após ter prome-
tido a Deus manter a paz em suas terras e ajudar
fielmente a Igreja a conservar seus direitos, vocês
J I
I
-- =tr:
·1. As Cruzadas 29
XI
~~i
30 HilárioFranco!r.. As Cruzadas 31
tando homenagem a seu senhor feudal. tores da sociedade. Cada um deles era especialista
A belicosidade foi outro componente da menta- num tipo de combate: os guerreiros com seus cava-
lidade que se originou na prática social para depois los, suas armaduras, suas lanças e espadas, enfren-
ganhar lugar no inconsciente coletivo. De fato, as tavam os invasores de suas terras, assim como os
sociedades ocidentais desde a crise do Império Ro- clérigos com suas armaduras simbólicas, as batinas,
mano no século Il l conheciam muitas invasões es- e suas armas espirituais (sacramentos, preces, exor-
trangeiras (germânicas, muçulmanas, vikings, hún- cismos) enfrentavam os inimigos da fé, as forças do
garas, eslavas) e longos períodos de lutas internas Mal. Naturalmente, os inimigos eram vistos como
(guerras sucessórias, disputas territoriais). O próprio exércitos demoníacos e portanto combatê-los era ao
feudalismo tinha sido na origem, em parte, uma mesmo tempo obra política e religiosa, como fica
forma de resistir aos invasores, fragmentando o Oci- bem claro através das próprias Cruzadas.
dente em pequenas unidades que se adaptavam me- A religiosidade, por fim, era o grande traço
lhor àquele tipo de guerra. Por outro lado, procu- mental da época das Cruzadas, traço formado, como
rando limitar as lutas internas, a Igreja promovera a os anteriores, a partir do contato com a realidade.
Paz e a Trégua de Deus, proibindo guerras em certos Como mostrou Marc Bloch, o homem da idade feu-
períodos, mas assim implicitamente aprovando-as no dal vivia muito próximo e dependente de uma natu-
resto do tempo. reza desordenada e rude, que a pobreza de seu ins-
Desta forma, o dado material transferiu-se para trumental não permitia controlar: "numa palavra,
o emocional: desde o século XI o Diabo era visto havia por detrás de toda vida social um fundo de
como um vassalo de Deus caído em felonia, isto é, primitivismo, de submissão aos elementos indisci-
traição por quebra de contratualidade. Portanto os plináveis, de contrastes físicos que não podiam ser
homens, vassalos ainda fiéis, entraram em combate atenuados" .
constante com o demônio. A própria missa nada Isto gerou uma religiosidade concreta, presa ao
mais era que uma simulação simbólica daquele com- palpável, pois o íntimo contato do homem com a
bate. As igrejas do estilo romântico, típicas da idade natureza apresentava-lhe mistérios que só poderiam
feudal, ficaram conhecidas por "fortalezas de Deus", ser explicados pela atuação de forças sobrenaturais
e realmente assemelhavam-se aos castelos senhoriais que se tentava controlar. As forças do Bem poderiam
e tinham as mesmas funções defensivas: estes contra ser levadas a ajudar o homem a dominar a natureza,
os invasores, aquelas contra as forças demoníacas. a fazê-Ia trabalhar para seu benefício (clima favo-
Os clérigos e os guerreiros formavam a elite rável, fertilidade da terra e dos animais). As forças
dirigente exatamente devido ao seu papel de prote- do Mal poderiam ser subjugadas, impedindo a ocor-
32 Hilário Franco Jr. As Cruzadas 33
rência de fenômenos naturais violentos, prejudiciais papel, ser uma forma de penitência e levar o indi-
ao homem (terremotos, inundações, secas). víduo ao contato com relíquias. De fato, o peregrino
Em função do seu aspecto contratual e bélico, a era sempre um estrangeiro, um homem que procu-
1',:1
religiosidade feudal apresentava como ideal de vida rava a espiritualização separando-se do seu mundo
I
cristã um estilo de vida heróico, de busca de proezas habitual, conhecendo as dificuldades e perigos dos
ascéticas, de luta contra o próprio corpo; a santidade caminhos. É significativo que os grandes centros
era acessível pelo.esforço. Este ideal cristão era pre- peregrinatôrios, que atraíam indivíduos de todos os
ferencialmente atingível nos mosteiros, mas os laicos cantos da Cristandade, estivessem em, ou próximo a,
de origem modesta que não podiam se tornar monges territórios muçulmanos - Jerusalém e Compostela.
optavam por uma vida de privações e rudeza, de Portanto, os peregrinos que se dirigiam para aqueles
severidade que era um traço característico da espiri- locais passavam por maiores dificuldades do que se
tualidade popular da Idade Média: era como se uma visitassem santuários mais próximos, e assim puri-
li maior violência para com o próprio corpo compen- ficavam-se mais de seus pecados. .
sasse as deficiências de conhecimento e reflexão reli- Por outro lado, ter contato com relíquias era
:1
giosas. também um importante objetivo dos peregrinos, pois
Tal espiritualidade levava a uma religião de atribuía-se a elas poder mágico, protegendo ou eu-
obras que representavam o conjunto de obrigações rando seu portador. Mesmo aqueles que não podiam
1:1
IIP!I dos vassalos-hornens para com o senhor-Deus: pre- obter uma relíquia, beneficiavam-se com a simples
I ces, esmolas, jejuns e, sobretudo, peregrinações. Es- proximidade de um corpo santo, o que dava ao pere-
tas eram viagens a santuários onde se veneravam grino a esperança de' por alguma forma ser tocado
relíquias, ou seja, objetos sagrados ou tornados sa- por aquela sacralidade. Apesar de seu grande nú-
grados pelo contato com corpos santos. Por exemplo, mero, as relíquias e corpos santos não chegavam a
ia-se até o Monte Saint Michel, na França, venerar a satisfazer a imensa necessidade do sagrado que havia
marca de pé que o arcanjo Miguel deixara na rocha; na sociedade medieval. Em virtude disso, o culto de
a Chartres, também na França, ver a santa túnica da imagens ganhou muito prestígio e algumas delas che-
Virgem; a Roma visitar os restos mortais de São garam mesmo a se tornar também objeto de pere-
Pedro e São Paulo; a Compostela, na Espanha, eu 1- grinação.
tuar o corpo santo do apóstolo Santiago; a Jerusalém As Cruzadas, portanto, devem ser entendidas
visitar o Santo Sepulcro e os locais por onde Cristo neste contexto psicológico, sendo elas próprias "pe-
passara. regrinações armadas". De fato, da reunião dos três
Assim, as peregrinações cumpriam seu duplo elementos da mentalidade feudal que acabamos de
34 Hílárío Franco ir. As Cruzadas 35
I
.r>«.
devem servi-Lo, recuperando as regiões roubadas pe-
los infiéis, pagãos e heréticos; b) a Cruzada é um
exército de penitentes, de pecadores buscando .indul- 1.1) lif
gência (desde fins do século XII as mulheres dos
cruzados também ganhavam indulgência permane- \
cendo fiéis); c) a honra cavaleiresca que se buscava
numa Cruzada não poderia ser obtida de outra forma ~~~~
nem ao longo de toda uma vida; d) o caráter sagrado
dos locais disputados reforçava a obrigação dos ho-
mens para com seu Senhor e tornava-os "soldados de
Cristo"; e) a caridade fraterna do cristianismo seria
praticada ao se ajudar os cristãos oprimidos pelos /
L
-' <,
muçulmanos na. Terra Santa ou na Península Ibé-
rica.
-'- ~ ~
Entende-se assim que os cruzados fossem vistos
como homens generosos, desprendidos, verdadeiros
mártires, como neste texto do século XII: "não são
realmente mártires aqueles que renunciam a si pró-
prios e aos seus bens, que não temem nem a ruína
que uma longa ausência pode ocasionar, nem a indo-
lência do clima, nem a agitação do mar tempestuoso,
-..
<,
nem o estrondo de suas vagas, nem os inumeráveis
perigos da rota e do deserto, nem os sofrimentos da
fome e da sede, nem a própria morte?".
Os cronistas das primeiras Cruzadas falam em
pessoas milagrosamente marcadas na carne com
uma cruz, sinal de benção divina e do agrado de
Deus por sua participação na Cruzada. Outros cro-
nistas contam-nos que à Cruzada do rei húngaro I. I,~ A marca da cruz: bênção divina.
36 Hilário Franco Jr. As Cruzadas 37
Estevão, em princípios do século XIII, juntaram-se que a idéia de guerra santa foi melhor elaborada e
animais, peixes, pássaros e borboletas (estas consi- justificada, ganhando contornos definitivos. Para ele
deradas portadoras da alma desde os antigos egíp- a Cruzada antes de um fato político e militar era uma
cios), que revoavam também em torno do contem- liturgia, devendo por isso estar aberta a todos e não
porâneo São Francisco de Assis. Em suma, a Cru- apenas a uma elite. Na verdade, dela deveriam parti-
zada era uma obra aprovada por Deus. cipar de preferência os maus cristãos, os grandes
Em função disso-tudo, desenvolveu-se no Oci- pecadores. Claro, portanto, que esta atividade puri-
dente a concepção de guerra santa, existente, aliás, ficadora só poderia ser considerada santa. Como a
entre os muçulmanos. Os bizantinos, contudo, não Cruzada iria "vingar a honra ultrajada de Jesus", ela
aceitavam aquela idéia, já que para eles nenhuma transformava a atividade guerreira de algo conde-
guerra era santa, mas apenas necessária; morrer na nável numa virtude, quase santidade. O verdadeiro
luta não seria um martírio, pois os mártires enfren- cruzado não lutaria apenas com a espada, mas tam-
tavam o inimigo apenas com as armas da fé. A bém com a fé, daí o combate terminar ou com a
princesa e cronista bizantina Ana Comneno indig- vitória militar ou com a glória do martírio. Enfim, o
nava-se ao ver cruzados lutando na Semana Santa, e cruzado tornava-se uma espécie de monge-guerreiro,
entre eles sacerdotes armados e empenhados no idéia que depois se concretizaria com as Ordens Mili-
combate. Esta diferente visão das coisas explica, a tares Religiosas (Hospitalários, Templários, Cava-
par de razões políticas e econômicas, a desaprovação leiros Teutônicos, etc.).
bizantina frente às Cruzadas. Assim, os conceitos de Paz de Deus e de Guerra
No Ocidente, porém, já no século V Santo Agos- Santa, aparentemente contraditórios, encontravam-
tinho admitira que as guerras eram feitas por ordem se estreitamente associados - reunindo a trilogia
de Deus. Em meados do século IX o papa Leão IV mental, contratualidade, belicosidade, religiosidade
afirmava que todo aquele que morresse lutando em _, procurando impor uma concepção de mundo em
defesa da Igreja receberia uma recompensa celestial. proveito das elites, sobretudo da clerical, criadora
Pouco depois outro papa, João VIII, colocava as deste modelo ideológico.
vítimas da guerra santa entre os mártires. Em 1064
Alexandre 11 oferecia indulgência a quem lutasse
contra os muçulmanos na Península Ibérica, e pou-
cos anos depois Gregório VII dava absolvição a quem
morresse lutando pela cruz.
Foi contudo no século XII, com São Bernardo,
)
~'" 3B i As Cruzadas 39 1
.....
I"
O movimento das Cruzadas
no Oriente Médio
AS CRUZADAS NO ORIENTE
E NO OCIDENTE Após o discurso do papa Urbano 11 em Cler-
mont, o entusiasmo despertado pela idéia de se partir
para Jerusalém foi muito grande. Enquanto a no-
I breza feudal iniciava seus preparativos, necessaria-
Como vimos, as Cruzadas resultaram de um mente demorados, o movimento repercutiu nas ca-
conjunto de fatores materiais e psicológicos, ocor- madas populares. A pregação fervorosa e entusiás-
rendo portanto onde quer que aquelas necessidades e tica de um monge, Pedro, o eremita, reuniu bandos
ansiedades pudessem ser satisfeitas. Daí termos tido de franceses e alemães que, sem um plano preesta-
Cruzadas no Oriente Médio, que objetivavam rein- belecido e sem condições materiais.adequadas, par-
tegrar na Cristandade a Terra Santa, isto é, Jeru- tiram separadamente para o Oriente. A caminho,
salém e regiões vizinhas, e na própria Europa, onde a . estes grupos de pequenos cavaleiros, camponeses,
Península Ibérica estava em mãos de muçulmanos e clérigos, aventureiros, maltrapilhos e desenraizados
as regiões orientais, além rio Elba, eram território tinham dificuldades em obter provisões, e chegavam
pagão. muitas vezes ao limite da fome, passando então a
As Cruzadas que buscavam a Terra Santa rece- roubar e saquear.
bem tradicionalmente números (de Primeira a Oi- O fanatismo quase ingênuo dos participantes
tava Cruzada), no caso. das expedições oficiais, ou desta Cruzada Popular e os problemas materiais pe-
nomes (Cruzada Popular, Cruzada de Crianças), pa- los quais passavam, levaram-nos em vários locais,
ra indicar a composição social diversa de outras. De sobretudo na Alemanha, a massacrarem comuni-
qualquer forma, isto é apenas um recurso didático dades judias. Boa parte daqueles milhares de pere-
usado pelos historiadores, já que na verdade havia grinos que tinham partido em abril de 1096, morreu
- J
~
r ,"I . "
40 Hilário FrancoJr.
'rl
r/,r.I,
42
- Hilário FrancoJr. As Cruzadas 43
""
juramento contribuiu para estremecer ainda mais as Depois de sete meses de cerco, graças à astúcia
já frágeis relações entre cruzados e bizantinos. Os de Boemundo e à traição de um cristão armênio
cristãos encontravam-se divididos, mas para sua sor- t residente na cidade, os cruzados ocuparam Antio-
te o mesmo ocorria, e de forma mais drástica naquele quia em meados de 1098. Contudo, logo depois che-
momento, com os muçulmanos. gava um numeroso exército turco de socorro e a
A campanha começou com o cerco à cidade de situação invertia-se, com os latinos ficando então
Nicéia, que os turcos haviam ocupado alguns anos sitiados. ,A -íome, a falta de apoio bizantino e as
antes, local estrategicamente importante por sua deserções baixavam o moral dos cruzados, que esta-
proximidade de Constantinopla. O bloqueio dos cru- R vam numa situação difícil quando ocorreu o famoso
zados por terra foi eficiente, mas eles precisavam de episódio da Santa Lança. Um camponês francês teve
apoio naval, que o imperador forneceu, isolando to- visões nas quais Santo André indicou-lhe uma igreja
I talmente a cidade. Assim, os turcos resolveram capi- de Antioquia onde estaria a lança com que o centu-
II I tular, entregando Nicéia a Aleixo, que garantia em rião romano ferira Cristo. A descoberta da lança no
Ii i';
troca respeitar a vida de seus habitantes. Para os 1
local indicado suscitou grande entusiasmo e a certeza
cruzados esse acordo foiencarado como uma traição, de que Deus os apoiava. Assim, motivados, os cruza-
que arrancava aos ocidentais a possibilidade de uma ;~ dos saíram para uma batalha em campo aberto e
i
vitória militar completa, cheia de glória e saques. conseguiram a vitória.
A seguir a Cruzada passou para a Síria, numa A etapa natural seguinte seria Jerusalém, mas
caminhada lenta e difícil devido aos obstáculos geo- antes cada chefe cruzado empenhou-se em ações iso-
gráficos, à dificuldade de aprovisionamento, aos ladas procurando realizar uma conquista territorial
desentendimentos entre os chefes cruzados e à resis- para benefício próprio. Finalmente, no início de 1099
tência dos turcos. Os ocidentais ficaram mesmo sur- os cruzados puseram-se em marcha para Jerusalém,
presos com o valor militar dos inimigos, tanto que a1cançando-a alguns meses depois. O sítio foi difícil e
um cronista afirma que "tivessem eles observado prolongado, mas os cruzados conseguiram penetrar
',!II
111, sempre com firmeza a fé em Cristo e ninguém pode- I" na Cidade Santa em julho de 1099, com incrível
ria rivalizar com eles em força, coragem e ciência da ferocidade, como nos mostra a História Anônima da
guerra". Após a conquista de algumas cidades, que Primeira Cruzada: "perseguiam, massacravam os
não foram aliás devolvidas ao imperador bizantino muçulmanos até o Templo de Salomão, onde houve
conforme tinha sido combinado, os cruzados chega- tal carnificina que os nossos caminhavam com san-
ram frente a Antioquia, importante comercial e gue até os tornozelos", depois do que "os muçul-
estrategicamente. manos vivos arrastavam seus mortos para fora da
I.pJ
".,/ / Edessa
Desta maneira, os ocidentais - chamados gene- /- ~~\~ r CONDADO •
ricamente de francos - puderam estabelecer no ter- / ~~I ~~~ ,/i DEEDESSA
ritório sírio-palestino Estados estruturados de forma " ti \, :-"'_ •••_ •••
\ , ..•...._-_ I
que poderíamos chamar de feudo-colonial. De um ~
I
Antioquia \
• ,
<, /
lado, porque seus quadros dirigentes eram oriundos PRINC. \
da pequena nobreza feudal européia e portanto as DE "
'ANTIOQUIAi,
relações entre eles eram regidas pelas normas .do , \---_ ...
I' __ .1
~
/
/
Damasco
.
doxos). Tiro). ~: '"
'f<:J I
Acre(. ...:;, O
Os Estados francos eram quatro. O Reino de (;f, o
Jerusalém, região de solo pedregoso e pouco propício O'
t:ç: ~
I
I
"11
à agricultura, de litoral inóspito que não favorecia o
comércio marítimo, tinha ainda a vizinhança sempre
perigosa do Egito, a maior potência muçulmana da Damieta
::::
~. E:!:f:
IR " ' ...
f2 Jerusalém
'\
~
s;
,
I
,
,
I
ESTADOS
a coroa de espinhos". No extremo nordeste, o Con- I I CRUZADOS DO
I~ I! dado de Edessa, criado em 1098 por Balduíno de
I
1__ ••• /
I
ORIENTE
r lIV'
As Cruzadas 47
"
Bolonha (irmão de Godofredo), encontrava-se por pelos ocidentais rudes, incultos e violentos, "cães
sua localização constantemente pressionado pelos cristãos" para os muçulmanos, "bárbaros" para os
muçulmanos, e seria o primeiro a desaparecer. bizantinos. '
O Principado de Antioquia, na desembocadura Portanto, a existência da Síria franca estava
das rotas caravaneiras provenientes do Extremo sempre ameaçada, especialmente quando os muçul-
Oriente, desempenhou importante papel na Síria • manos deixavam de lado temporariamente seus de-
franca, sobretudo no período em que foi governado ~ sentendimentos internos e se uniam frente aos cris-
" por seu criador, Boemundo. O Condado de Trípoli, o tãos. Foi o que aconteceu quando o chefe islamita de
último Estado latino a se constituir, localizado entre Mossul reunificou vastos territórios e formou um
Antioquia (ao norte) e Jerusalém (ao sul), benefi- poderoso Estado limítrofe a Antioquia e Edessa. Esta
ciava-se de um litoral muito favorável ao comércio, o última, mais fraca e isolada, foi conquistada em
que levara Gênova a ajudar Raimundo de Saint- 1144. A notícia da queda de Edessa mostrou ao
Gilles a formá-lo. Exatamente em função-desta sua Ocidente a fragilidade das demais possessões cristãs,
importância comercial, e portanto do interesse das e assim despertou a idéia de uma Cruzada de apoio,
cidades italianas, Trípoli foi a última região latina na que reocupasse Edessa ou ao menos fortalecesse as
Síria a cair frente aos muçulmanos (1291}~ " demais posições latinas no Oriente Médio.
Estes Estados latinos do Oriente eram.tporém, Esta Segunda Cruzada (1147-1149), pregada en-
claramente, criações artificiais, muito distantes do tusiasticamente por São Bernardo, reuniu três con-
Ocidente, com o qual estavam ligados apenas por via tingentes: o alemão do imperador Conrado 111, o
marítima, ficando assim dependentes dos interesses francês do rei Luís VII e um de europeus do norte
comerciais italianos. Os francos representavam uma (ingleses, flamengos e frísios). Este último grupo,
pequena minoria naqueles territórios de povoamento que ao contrário dos primeiros pretendia atingir a
antigo e denso, elementos estranhos ao meio e que Terra Santa por mar, ao passar pela Península Ibé-
nunca poderiam ser completamente assimila dores ou rica ajudou os cristãos a reconquistarem Lisboa aos
assimiláveis. Outro problema era a grande ambição muçulmanos, entrecruzando-se assim as Cruzadas
dos chefes ocidentais, que os levava a uma rivalidade orientais e ocidentais. Entretanto, os alemães que
desgastante, enfraquecendo as limitadas forças cris- chegaram antes dos demais ao Oriente, sem esperar
tãs e mostrando aos inimigos que aquela desunião apoio e sem maior planejamento, penetraram em ter-
poderia ser explorada. Ademais, a hostilidade mu-
çulmana e bizantina era grande, produto do des-
! ritório turco e foram esmagados em Doriléia.
Os sobreviventes juntaram -se ao exército francês
! que chegou logo depois, porém os constantes atritos
prezo de civilizações mais refinadas e sofisticadas
II
..•.
l7í'ill!li
1,1
48 Hilário Franco Jr. As Cruzadas 49
entre alemães e franceses dificultava uma ação con- inglês Ricardo Coração de Leão e o imperador ale-
junta dos cristãos. Além disso, ocorriam também mão Frederico Barba Ruiva. Além dos cruzados da-
desentendimentos entre Luís VII e Raimundo de Poi- I quelas regiões, participaram também guerreiros da
"11'1
tiers, príncipe de Antioquia, por causa de Eleonor da distante Escandinávia e marinheiros das cidades ita-
Aquitânia, esposa do primeiro e sobrinha do segun- lianas. Esta Cruzada, aparentemente tão forte, so-
do, que mesmo acompanhando o marido à Cruzada fria, contudo, da mesma debilidade das anteriores,
não chegava a merecer a indulgência por fidelidade falta de um comando único e de um planejamento I
, conjugal. .. Quando finalmente Conrado e Luís che- global. Mais uma vez cada exército seguia caminhos
garam a um acordo, tomaram a decisão pouco feliz diferentes e já chegava ao Oriente desgastado e com o
de atacar Damasco, o que redundou em mais uma espírito de cruzada enfraquecido.
derrota cristã e assim no fracasso da Cruzada. ~
O imperador alemão, que partira antes, conse-
Essa mostra da fraqueza cristã ocorria parale- guiu algumas vitórias na Ãsia Menor, mas teve o fim
lamente ao surgimento no mundo muçulmano de pouco glorioso de morrer afogado ao tentar a tra-
uma nova potência, que contava com um líder muito vessia de um rio, e desta forma as forças germânicas
hábil política e militarmente, Saladino. Em poucos dispersaram-se. Paralelamente, um grupo de com-
anos ele eliminou vários rivais muçulmanos, apode- ~ batentes de várias nacionalidades cercava a impor-
rando-se de regiões que praticamente cercavam tante fortaleza de São João d'Acre, que resistiria por
os Estados cristãos. Assim, a invasão do Reino dois anos, só caindo em meados de 1191. Enquanto
l de Jerusalém, a conquista de suas principais pra-
ças-fortes e por fim da própria Jerusalém (1187)
~ isso, Filipe e Ricardo sequer haviam partido, pois
antigas diferenças políticas e pessoais impediam que
era o resultado quase inevitável da diferença de chegassem a um acordo. Finalmente eles se reuniram
forças. Jerusalém tinha permanecido cristã por ape- no sul da França e resolveram dirigir-se para Mar-
II
nas (ou por longos, dependendo do ponto de vista) 84 selha, em seguida para Gênova e daí para a Sicília,
1
li' anos. A notícia da perda da Cidade Santa comoveu e onde, porém, novos desentendimentos os retiveram
movimentou o Ocidente na preparação de uma nova por seis meses. Quando chegaram ao Oriente, a re-
Cruzada, a Terceira (1189-1192). sistência de Acre já estava fraca e os cristãos com os
O papa autorizou vários pregadores a percor- reforços franceses e ingleses finalmente tomaram a
rerem a Europa e estendeu a indulgência para aque- cidadela, que seria desde então o principal ponto de
les que não podendo participar da Cruzada finan- ~,
apoio ocidental e o último bastião latino a ser recon-
ciassem a ida de outras pessoas. Três soberanos to- quistado pelos muçulmanos no séculoXIII.
maram a cruz, o rei francês Filipe Augusto, o rei O que parecia ser uma boa perspectiva para a
.Lil
Vif,·7 ,
I 50 Hilário FrancoJr. As Cruzadas 51
I,
Cruzada não teve, porém, continuidade. Filipe Au- a nobreza feudal mas não soberanos, reunindo efe-
gusto, sempre desconfiado de seu adversário europeu tivos sobretudo franceses. A questão do transporte e
e aliado oriental, Ricardo, resolveu voltar para a dos recursos financeiros acabaria, porém, por des-
França, cujos problemas preocupavam-no mais que viar os rumos da Cruzada, revelando as trasforma-
a Cruzada. Ricardo Coração de Leão, grande guer-
•
ções que ocorriam no Ocidente e portanto nas pró-
reiro que era, conseguiu algumas vitórias sobre Sala- prias Cruzadas. De fato, assinou-se com Veneza um
dino, mas nem sempre soube explorar convenien- acordo pelo qual ela forneceria transporte e provisões
temente seus resultados, e preferiu fazer um acordo para os cruzados em troca de uma certa quantia em
com os muçulmanos. Por este tratado, Saladino reco- dinheiro e metade das conquistas que fossem feitas.
nhecia a posse do litoral sírio-palestino aos ocidentais
I e permitia aos cristãos peregrinarem a Jerusalém,
Como na época do embarque os cruzados não tinham
a quantia total, os venezianos propuseram uma mo-
.flli' que continuava contudo sob seu domínio. De qual- ratória desde que recebessem sua ajuda para ocupar
quer forma, esta Cruzada garantiu aos Estados fran-
I ;ij cos territórios fundamentais para sua sobrevivência,
a cidade de Zara, no litoral adriático.
I,
A concordância da Cruzada já era um desvir-
i"
adiando por um século seu desaparecimento; ao tuamento, pois tratava-se de apoiar as pretensões
invés de "semifracasso" (Rousset) seria preferível materiais de um partido (Veneza) contra outro, tam-
considerá-Ia um semi-sucesso. bém cristão (o rei da Hungria, possuidor de Zara).
Os novos interesses comerciais e políticos, o Ademais, os venezianos só aceitaram a presença na
surgimento de uma nova tolerância entre cristãos e Cruzada de um representante papal que tivesse ape-
muçulmanos devido à longa convivência, a liberdade nas funções espirituais; a Quarta Cruzada começava
de peregrinação consegui da por tratados - estes com um ato de rebelião em relação ao papa e ao seu
fatores iam aos poucos enfraquecendo o espírito de legado.
Cruzada e fazendo com que o movimento fosse muitas Para complicar a situação, o príncipe bizantino
1111,
vezes desviado de seus objetivos originais. O melhor Aleixo pediu o apoio dos cruzados para destituir um
exemplo disso foi a Quarta Cruzada (1202-1204) que, usurpador que ocupava o trono de Constantinopla e
resultante dos velhos desacordos ocidentais-bizan- nele recolocar seu pai, Isaac 11. Prometia em troca
tinos e dos interesses econômicos de Veneza, acabou reunificar as Igrejas, pagar uma grande quantia em
por se tornar a primeira Cruzada contra cristãos. dinheiro e fornecer provisões aos cruzados. Tal pro-
Contudo, é curioso como aparentemente esta posta interessou ao chefe da Cruzada, Bonifácio de
Cruzada começava como a primeira, incentivada por I11
Montferrat (amigo de Filipe da Suábia, genro do
um papa de prestígio (Inocêncio 111),.movimentando imperador destronado), pois assim poderia liquidar a
11,1:
[,
.,.d'7
~ ~
III!,I(" As Cruzadas 53
I , I, 52 Hilârio Franco Ir.
8]1111
54 Hilârio Franco Jr. As Cruzadas 5S
importante cidade de Damieta, mas demoraram-se a Assim, no ano seguinte no Concílio de Lyon o papa
marchar sobre o Cairo, permitindo que os islamitas pregava a realização de uma nova Cruzada. No en-
se recuperassem e os derrotassem. tanto, a resposta a esse apelo foi fraca: a idéia de
A Sexta Cruzada (1228-1229), realizada pelo Cruzada estava desgastada, os italianos e alemães
imperador alemão Frederico II, é um claro exemplo encontravam-se envolvidos mais uma vez na disputa
de como a "moral do lucro sobrepujava a moral de Igreja- Império, a Inglaterra conhecia problemas in-
nobreza, a política derrotava a mística" (Rousset). ternos, a Península Ibérica continuava suas próprias
De fato, as suas ambições imperiais em relação ao Cruzadas, a Europa Oriental sentia a ameaça mon-
Oriente tinham-no levado a se casar com a filha de gol. Portanto, apenas a França tinha condições de
João de Brienne, rei - sem reino - de Jerusalém, e participar de uma nova Cruzada, e isto ia ao encon-
assim Frederico passou a se considerar com direitos tro do espírito muito religioso de seu rei, Luís IX,
àquele trono. Como, porém, ele estivesse excomun- depois canonizado como São Luís.
gado pelo papa devido a um choque de interesses A Sétima Cruzada (1248-1250), retomando pro-
envolvendo a Itália, Frederico II não poderia contar jeto anterior, tinha por objetivo o Egito, que lhe
com o apoio dos católicos do Oriente. Desta forma, o parecia a chave para o domínio da Palestina. Da-
imperador germânico, grande conhecedor da língua mieta pôde ser conquistada com certa facilidade,
e da cultura árabes, iniciou negociações com o sul- mas a indecisão (como na Quinta Cruzada) em se
tão. O resultado foi o Tratado de Jafa, pelo qual atacar o Cairo deu chance a que os muçulmanos
Jerusalém e outros territórios eram devolvidos ao absorvessem o golpe inicial e preparassem a defesa.
'i reino latino; Jerusalém tornava-se cidade aberta, Meses depois, ao retomarem a marcha sobre o Cairo,
I
II com os muçulmanos conservando as mesquitas e os os cruzados foram derrotados diante da fortaleza de
1
cristãos o Santo Sepulcro. Mansura e na retirada o próprio São Luís foi apri-
!H Contudo, uma nova peça entrava no jogo polí- sionado. Para que ele e seus homens fossem liber-
li
tico do Oriente, os mongôis. Nas primeiras décadas tados restituiu-se Damieta e pagou-se ainda uma
i,ill
do século XIII, sob Gengis-Khan, eles submeteram grande quantia em dinheiro. Luís dirigiu-se então à
1
::11
uma área muito vasta, destroçando ou empurrando à Síria onde ficou quatro anos reconstruindo e refor-
sua passagem muitas populações. Foi o que acon- çando fortalezas cristãs e aguardando o momento de
teceu na Ásia Central com os khwarizmianos (racial- atacar Jerusalém. Contudo, a morte de sua mãe,
mente iranianos, religiosamente muçulmanos), que. regente de França, obrigou-o a voltar à Europa.
se deslocaram então para a Ásia Menor, pressio- Quando os muçulmanos conquistaram Antio-
nando a Síria franca e tomando Jerusalém em 1244. quia - a única grande cidade que ainda permanecia
li,;
~ ~
'l ~ 58 Hilário Francolr. As Cruzadas 59 '1-"
Illi/
em mãos cristãs - em 1268, São Luís novamente se fracasso dessas e o sucesso lento mas constante da-
I1
fez cruzado, mas contando com poucas adesões e quela foram alterando a própria posição da Igreja.
recebendo mais criticas que apoio. Esta Oitava Cru- Hostiensis, importante jurista canônico do século
11 zada (1270) dirigiu-se para a Tunísia (mais para XIII, refletia essa mudança ao afirmar que "embora
atender a interesses políticos do irmão do rei do que a opinião pública olhe favoravelmente as Cruzadas
considerações de ordem estratégica), onde logo após do ultramar, crux marina, parece, contudo, a quem
r'
11I
o desembarque uma,- epidemia matou centenas de julga de acordo com a razão e com o senso comum,
cruzados, inclusive São Luís. Sem sua liderança e seu í que a Cruzada no continente, crux cismarina, é mais
entusiasmo - na verdade ele era um dos poucos a ~ justa e mais racional" .
aindà acreditar na Cruzada - naturalmente a expe- Praticamente desde que os muçulmanos con-
dição fracassou, retornando-se logo depois para a quistaram a Península Ibérica, em princípios do sé-
França. culo VIII, tinha começado o processo conhecido por
Em suma, naqueles quase dois séculos o quadro Reconquista Cristã. Na verdade, inicialmente o mo-
histórico geral que dera origem às Cruzadas tinha-se vimento não tinha motivações religiosas, mas era
modificado profundamente, e assim elas perderam apenas produto das necessidades criadas pelo cres-
sua razão de ser e acabaram desacreditadas. O fato cimento populacional dos grupos cristãos refugiados
, '1
I' do papado ter continuado a pregar Cruzadas sobre- nas montanhas do norte da Espanha. A Reconquista
tudo após a perda do último território católico na era um empreendimento essencialmente camponês e
Síria - Acre, em 1921 - apenas mostra que a pastorial. As várias expedições realizadas por Carlos
instituição continuava viva, mas sem o espírito e as Magno e seu filho entre 778 e 827 faziam parte de
li!, motivações originais, daí a quase nenhuma resso- j
uma política de busca de prestígio (objetivando a
nância desses apelos. unidade política do Ocidente) e de aliança com a
Igreja (cujo apoio era necessário para aquele obje-
III1
tivo), não tendo alterado aquele caráter original da
o movimento das Cruzadas no Ocidente Reconquista. Mesmo assim, as expedições carolín-
gias arrancaram aos árabes considerável território,
A luta contra os inimigos da Cristandade come- onde mais tarde organizaram-se os reinos de Navarra
I1II çara antes no próprio Ocidente, mas seu caráter e Aragão.
II
doméstico, contínuo e regular não lhe deu - na visão A grande mudança na situação peninsular ocor-
1[,1111
da época e da historiografia - o aspecto espetacular
que ganharam as expedições a Jerusalém. Porém, o ti reria contudo apenas no século XI. De um lado,
porque o califado muçulmano de Córdoba desin-
UJl
60 Hilário Franco Jr. As Cruzadas 61
tegrou-se por problemas internos, dando origem a o outro Portugal (que seu filho transformaria em
pequenos reinos independentes e rivais (as taifas), o reino independente).
que facilitava as pretensões cristãs. De outro, porque Os grupos comerciais também viam com bons
a forte expansão demográfica da Europa além-Piri- olhos a possibilidade de se ter uma Ibéria totalmente
neus levava para a Península Ibérica muitos aventu- cristã, fornecedora de algumas matérias-primas im-
reiros e pequenos nobres interessados em obter terras portantes. Esse era o caso da lã, muito procurada
e glória para si. Foi assim que, através dos franceses pela indústria têxtil em expansão. A Igreja, natu-
principalmente, a Reéonquista ganhou caráter reli- ralmente, também estava interessada na Reconquis-
gioso, com o papa Alexandre 11 em 1063 prometendo ta, pois gostaria de ampliar sua área de atuação
remissão dos pecados a quem ajudasse os cristãos efetiva. Ocorre que mesmo os territórios cristãos da
ibéricos na sua luta. Portanto, só "em fins do século península estavam pouco ligados à Igreja, pois ainda
XI a Reconquista, nitidamente patrocinada pelo che- adotavam o rito moçârabe, herança da época visi-
fe da Igreja, possui um caráter religioso indiscu- goda. Por fim, a Península Ibérica também tinha sua
tível" (Villey). Jerusalém, seu local sagrado que fornecia a moti-
Desde então, pode-se empregar o termo Cru- vação religiosa: Compostela, cidade em que se acre-
zada em relação à Reconquista Ibérica, mesmo por- ditava estarem os restos mortais do apóstolo San-
que ela apresentava todas as motivações que exami- tiago.
namos nos capítulos anteriores e que haviam gerado Para que a Cruzada Oriental não esvaziasse a
os movimentos para o Oriente. De fato, o vasto terri- Cruzada ocidental, o papa Pascoal 11 em 1100 proi-
tório que poderia ser tirado dos muçulmanos atraía biu os cristãos ibéricos de irem à Terra Santa e
os excedentes populacionais de várias regiões euro- concedeu a eles a mesma indulgência que cabia aos
péias, sobretudo da vizinha e superpovoada França. da Palestina. Mais tarde, em 1218, também os es-
A nobreza secundogênita, especialmente, via na pe- trangeiros que lutassem na Reconquista receberiam
nínsula a possível realizadora de seu sonho de obter a indulgência plena, como se combatessem em Jeru-
terras. O sucesso de muitos desses indivíduos natu- salém. Além da participação de europeus não ibé-
ralmente atraía outros. -Os exemplos mais famosos ricos que se dirigiam para a península especialmente
disso envolvem dois membros da família do duque de para a luta antimuçulmana, a Reconquista teve a
Borgonha: Raimundo e Henrique, por sua ajuda a ajuda de cruzados que estavam de passagem para o
Afonso VI de Castela, casaram-se com duas de suas Oriente. Por exemplo, em 1147 um grupo de ale-
filhas, recebendo assim o primeiro deles a Galícia mães, escoceses, flamengos, ingleses e franceses, que
(ficando ainda como herdeiro do trono castelhano) e se dirigiam para a Segunda Cruzada, ajudou os por-
62
Hilário Franco Jr. As Cruzadas 63
\
I ,
I
68
- Hilário Franco ir, As Cruzadas 69
I
71
As Cruzadas
70 Hilário Franco Jr.
. ,0., .•..
.. r-"'o
73
II 72 Hilário Franco Jr. As Cruzadas
1'1
,\" , 11 Entretanto, não se deve exagerar esses efeitos
própria razão de ser da Igreja. Estavam lançadas as
sementes que cem ou duzentos anos depois, em 1517, negativos, pois em algumas regiões ocorreu o inverso.
~. No Macônnaise, por exemplo, como mostrou Geor-
li dariam origem ao Protestantismo.
Socialmente, três foram os principais resultados ges Duby, a Cruzada "emp~breceu a~gu~as linh~-
I das Cruzadas: o enfraquecimento da aristocracia, o gens, mas teve sobretudo efeitos íavorãveís: em ~n-
enfraquecimento da servidão e o fortalecimento da l meiro lugar, certos cruzados retornar~m à re~ão
burguesia. O crescente anticlericalismo não podia mais ricos do que eram quando haviam partido;
deixar de se refletir na aristocracia laica, estrutu- foram também muitos os que não regressaram eos
ralmente ligada ao clero. É verdade que de inicio seus parentes, menos numerosos quando da partilha
parecia ocorrer o fortalecimento e enriquecimento sucessória, tiraram' proveito disso. De fato, a pere-
das elites: Guibert de Nogent, cronista da Primeira grinação à Terra Santa, drenando o excedente da
Cruzada, afirma que, na ânsia de partir, muita gente cavalaria, assegurou a prosperidade de muitas linha-
vendia bastante barato os bens que não serviriam gens, evitando que o seu patrimônio se dividisse
Id
il
para a expedição, comprando caro as mercadorias excessivamente" .
que seriam úteis. Os mosteiros foram-especialmente As Cruzadas contribuiram para o retrocesso da
beneficiados, pois muitos cruzados doavam-Ihes suas servidão de várias maneiras. Em alguns casos o aris-
tocrata, precisando de dinheiro para partir em Cru-
propriedades ou ao menos faziam deles seus procu-
radores durante sua ausência.
Contudo, logo ficou claro o golpe que as Cru-
, zada, vendia a liberdade para os servos; em outros,
voltando arruinado, obtinha recursos da mesma for-
zadas eram para a maioria dos nobres. Muitos deles ma; em outros, ainda, a ausência do senhor permitia
~
arruinaram-se na esperança de obter no Oriente ou a fuga do servo, que ia tentar uma nova vida, na
.. na Península Ibérica um patrimônio maior. Muitos cidade como artesão ou comerciante; jnuitas vezes
"
outros morreram no caminho ou em combate, dai o a fuga 'dava-se provocada pelo entusiasmo e vontade
desaparecimento de famílias e familias nobres. Para de partir em peregrinação (como na Cruzada Popu-
III lar). Algumas vezes, sobretudo na França, ,a líber-
dar um exemplo, numa região do norte francês ....
grande fornecedor de cruzados --: havia uma centena 11 tação dos servos não ocorria por alforrias individuais,
de linhagens nobres 1150, 80 em 1200, apenas 40 em mas através de movimentos coletivos: pressionados
1250 e somente 12 em 1300. Os que conseguiram pelos camponeses, muitos senhores foram obrigados
111:
feudos no Oriente tiveram na verdade um sucesso a conceder cartas de franquia, documentos que liber-
pouco duradouro, que não beneficiou senão algumas tavam comunidades rurais inteiras.
I1
gerações. O desligamento de muitos camponeses dos laços
I
'\ ~
1\
a
- .-- ..-----------~-~.,I--.
rtl: 74 Hilário FrancoJr. As Cruzadas 75
irli! servis, o desenvolvimento comercial, a intensificação Cristandade através das Cruzadas, superando assim
da vida urbana e o progresso da produção artesanal um certo isolamento geográfico a que parecia des-
naturalmente fortaleciam a burguesia. E isso repre- tinada. ,
sentava novo golpe sobre a sociedade feudo-clerical. No entanto, o resultado político mais impor-
Interessada na diminuição do número de tributos tante talvez tenha sido o grande impulso no processo
regionais, a burguesia combatia a autonomia dos de centralização política. A lenta passagem das mo-
feudos e a .descentralização política. Interessada no narquias feudais para monarquias nacionais tinha
fim das guerras feudâis que atrapalhavam seus negó- II
começado antes das Cruzadas e só se completaria
cios, a burguesia desejava uma paz efetiva, não a bem depois, mas sem dúvida foi beneficiada por elas.
Paz de Deus, mas a Paz do Rei, a centralização O enfraquecimento. ou 'desaparecimento de muitas
política. Interessada numa cultura racionalista e famílias nobres, o afrouxamento da servidão, o apoio
individualista, de acordo com sua mentalidade, a ,da burguesia, foram fatores que trabalharam na-.
burguesia combatia os valores eclesiásticos e as inter- quele sentido. No caso ibérico, com a proximidade
venções da Igreja na vida política e econômica. do inimigo e as Cruzadas no próprio território, os
Politicamente, o resultado que mais chama a monarcas puderam desde cedo contar com o apoio
atenção é a grande ampliação da Cristandade Latina. popular, a submissão da nobreza e a aceitação da
No Oriente Médio aquela estreita faixa de terra onde Igreja.
se organizaram os Estados francos ficou menos de Economicamente, as Cruzadas não tiveram a
dois séculos (1098-1291) em mãos cristãs. Contudo, importância que muitas vezes lhes foi atribuída. Se-
partes da Grécia (restos do Império Latino de Cons- gundo a conhecida tese do historiador belga Henri
1:1111 tantinopla) ficaram sob domínio ocidental até 1460, Pirenne, as conquistas muçulmanas do século VIII
a importante ilha de Rodes até 1522, Chipre até fecharam o Mediterrâneo ao comércio, de forma que
1571, Creta até 1669. Na Europa Oriental uma área "a Europa Ocidental regrediu ao estado de região
considerável em extensão e bastante rica foi incorpo- exclusivamente agrícola". O desaparecimento das
P~III rada definitivamente à Cristandade Latina, apesar atividades comerciais trouxe conseqüentemente um
da antiga influência bizantina na região. Mas o esvaziamento das cidades, com muitas delas dei-
grande êxito, indubitavelmente, foi a reincorporação xando de existir e outras vendo sua população bas-
!IIII de mais de 400 ()()()km de território ibérico, ex- tante reduzida. A interrupção do tráfico Ocidente-
:!I cluindo para sempre os muçulmanos da Europa Oci- Oriente também afetou o sistema monetário, com o':
dental. Mais ainda, a Escandinávia, cristianizada em bimetalismo anterior (ouro e prata) sendo substí-,'
princípios do século XI, integrou-se realmente na tuído por um monometalismo de prata, correspon-"
111
I,
r--'\
1;"llí
I 76 Hilârio FrancoJr. 77
As Cruzadas
illll
I
i',11'
dente à regressão econômica da época. "- guesia, despertar do individualismo e do raciona-
., Assim, prossegue o pensamento de Pirenne, a
i 'I; lismo aparecimento das universidades, novas con-
reconquista cristã do Mediterrâneo, começada antes cepções religiosas e artísticas, fortalecimento do po-
das Cruzadas mas impulsionada e completada por der monárquico.
r,
'I'
11
elas, reabriu aquele mar ao comércio. Isto natu- Portanto, as Cruzadas não foram as respon-
I
ralmente refletiu-se na vida urbana, que foi também sáveis pelas grandes transformações econômicas,'
reativada: as fortalezas construídas no período ante- mas produto delas. Contudo, elas não deixaram de
rior, chamadas burgus, passaram a ser procuradas contribuir significativamente para o avanço daquelas
!'!Ii
pelos mercadores como local de abrigo e proteção. transformações. Exemplifiquemos novamente com
.Com a intensificação do comércio, o crescente nú- Veneza e Gênova, pois estas cidades eram os prin-
mero de mercadores não conseguia mais se instalar cipais centros econômicos da época ~ tiveram impor-
nas fortalezas, daí criarem junto às muralhas uma tante participação nas Cruzadas. O mtenso comércio
aglomeração, uma espécie de entreposto comercial, o que ambas praticavam era anterior ao século XI, mas
portus. Por questão de segurança seus habitantes foi a abertura dos mercados orientais - para o que as
rodeavam-no por uma muralha, que assim, obvia- Cruzadas desempenharam papel decisivo - que as
mente, também cercava o antigo núcleo senhorial. tornou potências econômicas.
I
I
Portanto, o subúrbio mercantil englobava o burgo, I Mais ainda, os impérios "coloniais orientais de I
dando assim origem a uma cidade. Veneza e Gênova interessavam à economia de todo o
Estas estimulantes idéias, aceitas integralmente Ocidente por escoarem seu excedente produtivo e
por muito tempo pela historiografia, atualmente re- fornecerem importantes produtos. No primeiro caso
cebem críticas e reparos. Mas não nos interessa aqui estavam trigo; vinho e tecidos. No segundo, má~-
111
11
acompanhar essas discussões, excessivamente aca- tique, anil e alume (resinas básicas par~ a indústn.a
dêmicas para nossos objetivos. Basta lembrar que têxtil), algodão e açúcar (pouco conhecidos n? OCI- ~
1111
1 atualmente prefere-se enfatizar a continuidade das dente cristão), mel (o principal adoçante, devido ao
atividades comerciais, que jamais foram interrom- alto preço do açúcar), cera (de várias utilidades),
,.,
Ilill pidas. Portanto, as mudanças ocorridas a partir do peixes salgados (importantes na alimentação). Mes-
século XI foram de caráter quantitativo. Não houve ~ mo regiões que não participaram diretament~ ~o
I1
'I um "renascimento comercial", mas uma intensifi- comércio resultante das Cruzadas foram beneficia-
I cação de tal proporção que repercutiu em todos os das-por ele. Este foi o caso da Champagne, onde ~s
iI setores da sociedade, alterando-a profundamente: célebres feiras reuniam comerciantes de todo o OCI-
desenvolvimento das cidades, surgimento da bur- dente e produtos do Oriente Médio e Extremo (leva-
lill
~I" -
"ir
dos pelos italianos) e da Europa Oriental (levados I quele fenômeno de transmissão cultural. Este ocor-
pelos hanseáticos). reu basicamente graças à reincorporação na Cristan-
Da mesma forma, o desenvolvimento dos bancos dade de territôrios muito tempo muçulmanos (Ibé-
e do crédito pode ser considerado resultado indireto /ní ria, Sicília) e portanto impregnados de sua cultura.
das Cruzadas. É verdade que o revigoramento do Ora, aquela reincorporação deu-se graças às Cru-
comércio e da economia monetária por si sô criava zadas, assim contribuidoras indiretas pela transfe-
condições para o aparecimento 'de bancos. Contudo, rência cultural muçulmana ao Ocidente. Por outro
a extensão de seus negócios foi possibilitada pelo lado, as condições favoráveis à aceitação da influên-
comércio a longa distância (transferência de fundos, cia islamita independiam das Cruzadas.
câmbio de moedas de diversas origens) e pelas neces- Também no sentido inverso - transferência de
. sidades dos cruzados (depôsítos durante sua ausên- elementos culturais ocidentais para regiões muçul-
cia, empréstimos). Os Templârios - monges-guer- manas - a contribuição dos cruzados foi limitada.
reiros organizados para proteção dos peregrinos a As razões são claras: tratava-se de indivíduos de
Jerusalém - tornaram-se os grandes banqueiros da interesses políticos e econômicos e não culturais; em
época graças aos resgastes conseguidos nas lutas con- função disso, de pessoas despreparadas; a cultura
tra os muçulmanos. Com esse capital eles finan- que se poderia transmitir (a ocidental) era nitida-
ciavam a ida de muitos cruzados ao Oriente, além do mente inferior à das regiões ocupadas (a muçul-
que guardavam a riqueza de outros em troca de uma mana); no Oriente os casamentos mistos com muçul-
pequena taxa. manos envolviam apenas francos de condição inferior
Culturalmente, supervalorizou-se a influência (a elite casava-se com orientais cristãos, gregos ou
dos cruzados. Eles não foram, como muitas vezes se armênios). Assim, a presença cultural latina na Síria
disse, os responsáveis diretos pela transmissão de I ficou registrada somente através de igrejas e forta-
elementos culturais muçulmanos para o Ocidente lezas.
cristão. Tanto os cruzados do Oriente Médio quanto Institucionalmente, as influências recíprocas fo-
1,1 os da Península Ibérica estavam muito absorvidos ram pequenas, mesmo porque latinos e muçulmanos
por outros interesses para darem à cultura muçul- possuíam instituições condizentes com suas respec-
mana sua devida atenção. Ademais, a maior parte tivas necessidades, e que não poderiam ser alteradas
deles não tinha nível cultural suficiente para poder artificialmente. No máximo ocorria uma adaptação
Ili compreender, assimilar e retransmitir componentes às condições locais. Por exemplo, o feudalismo de
daquela cultura. No entanto, é preciso que fique bem cada um dos Estados francos correspondia às carac-
claro, as Cruzadas tiveram grande participação na- terísticas do lugar de origem de seus componentes.
"Ib
~
;,,7 81
As Cruzadas
I 80 HilárioFrancoJr. ,I
i
senão um exemplo de perdição e de obras tenebrosas
111.
I
Mas a importância da economia monetária no Orien- e que agora, com razão, os detesta mais que a
te permitiu que lá fosse mais utilizado o chamado cães?".
feudo de bolsa: o vassalo recebia de seu senhor feudal A sua preocupação iria se revelar fundamen-
não uma extensão de terra mas uma quantia anual tada. Em 1453, com os turcos às portas de Constan-
em dinheiro. tinopla, pensou-se em pedir ajuda aos ocidentais,
Por fim, no que denominaríamos hoje relações mas um general bizantino resumiu o pensamento
internacionais, as Cruzadas trouxeram uma conse- popular: "prefiro o turbante dos muçulmanos à mi-
qüência de grandes repercussões: o afastamento Oci- tra dos latinos". A Rússia, que sempre se considerou
dente-Oriente. Apesar da maior tolerância entre cris- herdeira de Bizâncio - de quem recebera o alfabeto,
tãos e muçulmanos, as profundas divergências per- a religião, elementos artísticos e literários, institui-
maneceram, sendo alimentadas e às vezes aumen- ções políticas -, manteria por séculos essa descon-
tadas por determinados acontecimentos. Após a to- fiança em relação ao Ocidente. Em suma, as Cruza-
I
mada de Jerusalém, em 1099, os cristãos realizaram das afastaram Ocidente e Oriente, criaram barreiras
1I
um massacre que as fontes árabes quantificam em que, nos dois lados, enraizaram-se no inconsciente
100000 mortos entre guerreiros, mulheres e crianças, coletivo, mantendo-se para além de mudanças nos
I
cifra obviamente exagerada mas de claro significado
simbólico. Durante a Terceira Cruzada, como as
I~.. sistemas políticos e econômicos, e que talvez expli-
l~ quem mesmo algumas questões atuais ...
negociações caminhassem lentamente, Ricardo Co- .
ração de Leão ordenou a execução de dois a três mil
prisioneiros muçulmanos, cujas entranhas foram
abertas e reviradas em busca de ouro que eles teriam I ..:
engolido para escondê-lo.
Em relação a Bizâncio os desentendimentos an-
teriores tornaram-se irreversíveis após a Quarta Cru- I •
zada e os excessos cometidos pelos latinos. O próprio
papa Inocêncio 111, preocupado com as conseqüên-
cias daquele episódio, admoestava o legado ponti-
I fício: "como poderá na verdade a Igreja Grega ser
trazida à união eclesiástica e à devoção pela Sé Apos-
JI tólica, quando tem sido assediada por tantas aflições
I~
e perseguições, de tal maneira que não vê nos latinos
lr
II a
11
L, - r'
J
'1 As Cruzadas 85 lh
I
I
I
I volumes de textos ocidentais e orientais reunidos no
século XIX e reeditados recentemente: Farnborough,
I
)
Gregg Press, 1969). No entanto, existem pequenas
antologias, muito úteis e de leitura agradável: RI-
CHARD, J.L'esprit de Ia croisade, Paris, Cerf, 1969
(com uma introdução histórica muito boa) e PER-
NOVD, R. Las cruzadas, Buenos Aires, Mirasol,
" 1964. É também interessante ter-se a visão de outros
protagonistas das Cruzadas, como os muçulmanos:
INDICAÇOES PARA LEITURA GABRIELI, F. Storici arabi delle crociate, Turim,
··~I Einaudi, 1973.
Para aqueles que têm pouco contato com a His-
,
tôria Medieval, é interessante em primeiro lugar
A literatura sobre Cruzadas é vastíssima, mas só familiarizar-se com o pano de fundo histórico no
podemos indicar aqui alguns titulos (dos quais muito qual devem ser vistas as Cruzadas: LOPES, R. S.
poucos em língua portuguesa, e sempre em tradu- O nascimento da Europa, Lisboa, Cosmos, 1965, e
ção). Contudo, os interessados em fazer uma pes- LE GOFF, J. La civilisation de l'Occident médiéval,
quisa mais profunda contam com dois excelentes Paris, Arthaud, 1967, são obras gerais muito bem
repertórios bibliográficos: MAYER, H. E. Biblio- feitas, com uma concepção moderna de História,
graphie zur Geschichte Kreuzzüge, Hanover, Hahn, valorizando não os fatos mas as estruturas sociais,
1960, onde estão citadas mais de 5000 obras e artigos políticas, econômicas, religiosas e culturais. Sobre o
sobre as Cruzadas, e ATIYA, A. S. The Crusade, II feudalismo a melhor obra continua a ser o clássico
historiography and bibliography, Londres, Indiana t (só recentemente traduzido para o português) de
Vniversity Press, 1962, mais modesto e de utilização BLOCH, M. A sociedadefeudal, Lisboa, Edições 70,
IIII
1
MIQUEL, A. O Islame e a sua civilização, Lisboa, fazem sua análise a partir dos textos dos canonistas,
Cosmos, 1971, e WATT, M. Historia de Ia Espana enquanto ALPHANDERY, P. e DUPRONT, A. La
islamica, Madri, Alianza, 1970; PORTAL, R. Os Chrétientéet l'idée de croisade, 2 V., Paris, Albin
eslavos, povos e nações, Lisboa, Cosmos, 1968. Michel, 1954; procuram estudar aquele conceito
Obras introdutórias sobre as Cruzadas existem mais a partir de um ponto de vista não oficial, ecle-
muitas; as melhores são MORRISSON, C. Les croi- siástico, mas "popular" .
sades, Paris, PUF, 1969 (2!l ed. 1973) e RILEY- Finalmente, as melhores obras de conjunto da
SMITH, J. What weré the crusades?, Londres, Mac- historiografia das Cruzadas são GROUSSET, R. His-
millan, 1977, de concepção semelhante à nossa, po- toire des Croisades, 3 v., Paris, Plon, 1934-1936, e
rém mais elaboradas pois, apesar de serem ambas RUNCIMAN, S. A history 01 the Crusades, 3 v.,
também dirigidas a um público não especialista, tra- Londres, Cambridge University Press, 1951-1954
ta-se nesse caso do público europeu, 'cujo leitor mê- (existe tradução espanhola: Historia: de Ias Cru-
dio é de formação histórica superior ao nosso. O livro zadas, Madri, Aílanza. 1973). A primeira delas
de GROUSSET, R. As Cruzadas, São Paulo, Difel, dá grande destaque à "colonização" franca no
1965, apesar de escrito por um especialista, é mais Oriente Médio, seguindo de perto os detalhes po-
restrito, examinando basicamente a história política líticos de sua evolução. A segunda é obra de um
dos Estados Cruzados do Oriente. grande erudito, que manuseando tanto fontes oci-
Ainda num só volume, porém obras de maior dentais quanto orientais elaborou um livro minu-
fôlego, são ROUSSET, P. História das Cruzadas, cioso, preciso, fundamentado, mas excessivamente
Rio, Zahar, 1981, livro sério, de um grande conhe- narrativo.
cedor, muito superior a OLDENBOURG, Z. As Cru- 11
zadas, Rio, Civilização Brasileira, 1968, nem sempre
precisa e imparcial. Dentro da sua perspectiva, com
os limites geográficos e cronológicos que se impôs, é
muito boa a obra de PERROY, E. Les croisades et
/'Orient latin (1095-1204), Paris, CDU, s/d,
Sobre o conceito e a idéia de Cruzada temos três ~
importantes clássicos: ERDMANN, C. The origin 01
the idea 01 Crusade, Princeton, Princeton University
I ~I, Press, 1977, e VILLEY, M. La Croisade. Essai sur Ia
formation d'une théorie juridique, Paris, Vrin, 1942,
li li
11"
I
li
II :,
T
27. A construção do socialismo na China »D. Aarão Reis Filho 28. Opulência e
miséria Das Minas Gerais - Loura Vergueiro 29. A burguesia brasileira • Jacob Gorender
30. O governo [ânío Quadros • M.· Vict6ria Mesquita Benevides 31. Revolução e
guerra civil espanhola· Angela. M. Almeida 32. A legislação trabalhista no Brasil .
Kazumi Munakata 33. Os crimes da Paixão· Mariza Corrêa 34. As cruzadas· Hilário
Sobre o Autor Franco Ir. 35. Formação do 3." mundo· Ladislau Dowbor,
A SAIR:
Hilário Franco Ir., professor, doutorando em História Medieval
pela Universidade de são Paulo, é também co-autor de Hist6ria Econô- • A Balaiada . M. de Lourdes [anotti • A crise de 1929 • Alberto Marson • A cultu-
ra na era de Vargas . C. Guilherme Malta • A democracia .atenlense . F. M. Pires/
mica Geral e do Brasil (Atlas, 1980). Especialista em História Medieval e Paulo P. Castro • A economia cafeeira . I. R. Amaral Lopa·. A guerra civil amerí-
História Econômica, é membro da The Medieval Academy of America e cana- Peter Eisenberg • A guerra dos farrapos. Antonio Mendes Ir .• A guerra fria
• Déa Fenelon • A história do espetáculo e encenação • Fernando Peixoto • A
I, da The Economic History Society.
história do trabalho fabril . Edgar de Decca • A Independência dos EUA . Suzan
Anne Semler • A industrialização brasíleira Francisco 19lésias • A ínquisição no
>
•
Michae/' Hal/ • O movimento operário no século XIX· Ulisses Guaraiba • O siste-
I- ma escravista do novo mundo . Ciro f./Cardoso • O tráfico negreiro· I. Ruiino dos
Santos • Os caipiras de São Paulo - C. R. Brandão • Os movimentos de cultura
j popular no Brasil . C. R. Brandão • Padre Cícero, o .milagreirn . Carlos A. Dôria
• Previdência Social no Brasil . Amélia Cohn • Revolução dos cravos • Mauro de
Ii(
'r" Mello Leonel 'r.
----Decole Conosco
editora brasiliense
r. general jardim, 160 - cep 01223
••
~*
A Mitologia Grega - Pierre Grimal
~
riqueza de um livro. Com essa intenção a Brasiliense
encampou o projeto de Hélio e Matico (Ornar), dois
jornalistas que se propuseram a embarcar para EI
Salvador e trazer de lá material para um livro vivo,
forte e instigante: um retrato da insurreição na Amé-
rica Central.
HISTOMAPA DE HISTORIA
John B. Sparks
Obra fundamental que apresenta um quadro atual da
História do Mundo, esclarecida por fatos significa-
. tivos apresentados em coordenação ordenada, com os
quais o leitor facilmente associará todos os aconte-
cimentos e.idéias que possa colher na sua leitura coti-
diana.