Vous êtes sur la page 1sur 26

COERÇÃO, CAPITAL E ESTADOS EUROPEUS

990-1992

CHARLES TILLY

T radução

G eraldo G erson de Souza


2

AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

A E U R O P A IN E X IS T E N T E

M il anos atrás, a E u ro p a não existia. U m a d é c a d a antes d a p a ssa g em do


M ilênio, os qu ase trinta m ilhões de pessoas que viv iam n a extrem idade oeste da
m assa de terra cham ada E u rásia não tinham qualq u er razão perem ptória para achar
que constituíam um conjunto isolado de pessoas, ligadas p ela história e pelo destino
com um . T am pouco o fizeram . E verdade que a d esagregação do Im pério R om ano
havia deixado um a parte significativa do que hoje conhecem os por E uropa ligada
por estradas, com ércio, religião e m em ória c oletiva. M as o m undo rom ano n egli­
genciou um a grand e parcela d a região situada a leste do R eno e ao norte do m ar
N egro. T am bém o Im pério n ã o e ra , no final, exclu siv am en te europeu; havia-se es­
tendido em torno do M editerrâneo até a Á s ia e a Á frica.
D o ponto d e vista do com ércio e do contato c u ltu ral, a “E uropa” do m ilênio
fragm entou-se em três ou q uatro aglom erados ligados bastante frouxam ente: um a
fa ix a o rien tal c o rre sp o n d e n te m ais ou m enos à R ú ss ia e u ro p é ia d e hoje e que
m antinha fortes vínculos com B izâncio e com as prin cip ais rotas de com ércio q u e
atravessavam a Á sia; um M editerrâneo com partilhado por m uçulm anos, cristãos e
judeus e com vinculações m uito m ais fortes com as grandes m etrópoles do O riente
M édio e da Á sia; um sistem a pós-rom ano de cidades, aldeias, estradas e rios, m ais
denso num a cu rv a que se e sten d ia da Itália central a F la n d re s, m a s q u e se irradiava
pela A le m a n h a e p e la F ra n ç a; talv e z um a g lo m e ra d o se ten trio n al d istin to q u e
c o m p re en d ia a E sc an d in áv ia e as Ilhas B ritâ n ica s. (N a v erdade, m u ito s desses

89
CHARLES TILLY

rótulos p ecara p o r anacronism o; m as a nós, que p recisam os adotar um conjunto


enfadonho de convenções geográficas, não nos resta outra alternativa senão usar
designações com o “A lem anha” e “Ilhas B ritânicas” sem que se p recise ad v ertir alto
e b om som que não im plicam vinculação política ou cultural.)

Figura 2.1 A E uropa em 406 d.C. (adaptado de C olin M cEvedy, The Penguin A tla s o f M edieval H istory,
Penguin Boolcs, 1961. C orpyright © 1961 Colin M cEvedy).

N o ano de 990, os d o m ín io s m u çu lm an o s c o n tro la v a m u m a p a rc e la im ­


p o rta n te do antigo esp aço do Im p ério R om ano: todas as costas m erid io n ais do
M editerrâneo e a m aior parte da P enínsula Ibérica, sem contar as inúm eras ilhas
m editerrânicas e uns poucos pontos ao longo de sua costa setentrional. U m Im pério
B izantino com ligações bastante frouxas estendia-se do leste da Itália à extrem idade
oriental do m ar N egro, enquanto ao norte um estado russo um p ouco m ais definido
se alongava até o B áltico. U m reino dinam arquês exercia seu po d er do o este do
B á ltic o até as Ilhas B ritâ n ica s, e n q u a n to os p rin cip ad o s in stá v e is d a P o lô n ia,
B o êm ia e H ungria controlavam o território ao sul do B áltico. A o e ste desses situava-
se o Im pério Saxão, que reclam ava a herança de Carlos M agno, enquanto ainda mais
longe n a m esm a direção H ugo C apeto governava o reino da França.

90
A S CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

N o entanto, nenhum desses nom es de lugar m eio fam iliares poderia disfarçar
a enorm e fragm entação de soberania que então predom inava em todo o território
que m ais tarde se tornaria a E uropa. Os im peradores, reis, príncipes, duques, califas,
sultãos e outros potentados de 990 d.C. reinaram com o conquistadores, extorqui-
dores d e tributos e arrendatários de im postos, e não com o chefes de estado que con­
trolavam duradoura e densam ente a vida dentro de seus dom ínios. A lém do m ais,
dentro de suas ju risd içõ es, antagonistas e pretensos subordinados usaram com u-
m ente a força arm ada em seus próprios interesses e dispensaram pouca atenção aos
interesses de seus soberanos nom inais. E os exércitos particulares proliferaram em
g ra n d e p a rte do c o n tin e n te . E m nen h u m lu g a r d a E u ro p a e x is tia alg o q u e se
assem elhasse a um a nação centralizada.

Figura 2.2 A E uropa em 998 (adaptado de Colin M cEvedy, The Penguin A tla s o f M edieval H istory,
Penguin B ooks, 1961. C opyright © 1961 Colin M cEvedy).

D entro do anel form ado por esses estados alastrados e efêm eros, a soberania
fragm entou-se m ais ainda, ao m esm o tem po que centenas de principados, bispados,
cid a d es-esta d o e o u tras au toridades exerciam um controle su p erp o sto so b re as
pequenas áreas interioranas em volta de suas capitais. N a passagem do m ilênio, o
papa, o im perador bizantino e o sacro im perador rom ano reclam avam a m aior parte

91
CHARLES TILLY

da pen ín su la italiana, m as, na verdade, quase toda cidade im portante e seu interior
adjacente operava co m o se fosse um agente político livre. (E m 1200 d.C., som ente
a p e n ín su la ita lia n a co m p re en d ia du zen tas ou trezentas cid a d es-esta d o d istintas
[W aley 1969: 11].) S alvo pela relativa u rbanização das terras m uçulm anas, a co rre­
lação en tre o tam anho dos estados e a densidade das cidades era negativa: onde as
cid ad es pulularam , a soberania se esm igalhou.
A d ia n te c o m e ç a rá a se r e sta b e le c id a um a c ro n o lo g ia g ro ss e ira so b re as
m udanças nas cidades e estados no decurso dos últim os m il anos. E ntrem entes, no
entanto, façam os um com paração arbitrária a intervalos d e 500 anos, apenas para
term os um a idéia do quanto a coisa m udou. P or volta d e 1490, o m apa e a realidade
h a v ia m -se a lte ra d o en o rm e m e n te. O s c ristã o s arm ados e sta v a m ex p u lsan d o os
so b e ran o s m uçulm anos de G ranada, seu últim o territó rio im p o rta n te na m etade
o c id e n ta l do c o n tin e n te . U m Im p ério O to m an o islâ m ic o h a v ia d e sa lo ja d o os
biza n tin o s cristão s da região situada en tre o A driático e a P érsia. O s otom anos
estavam triturando o po d er veneziano no M editerrâneo oriental e avançando para
os B á lc ã s. (A lia n d o -s e com a a m e aç a d a G ranada, ta m b é m e fetu av a m as su as
p rim e ira s incursões ao M e d ite rrân e o o c id e n tal.) A lém d isso , d ep o is de m u ito s

F igura 2.3 A Europa cm 1478 d.C . (adaptado de C olin McEvedy, The Penguin A tlas o f M edieval His-
tory, Penguin B ooks, 1961. Copyright © 1961 Colin M cEvedy).

92
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

séculos em que as guerras européias haviam perm anecido regionais, e apenas um a


cruzada o casional envolvera m ilitarm ente os estados transalpinos no M editerrâneo,
os reis d a F rança e da E spanha com eçaram a lutar pela hegem onia na Itália.
Em 1490, em torno da pe rife ria européia situ av a m -se os g o v ern an tes que
d o m in a v a m e x te n so s territó rio s: não só o Im p é rio O to m an o , c o m o tam b é m a
H ungria, a Polônia, a L ituânia, M oscóvia, as terras d a O rdem Teutônica, a U nião
E scandinava, a Inglaterra, a F rança, Portugal, N ápoles. E ssas potências viviam em
grande m edida de rendas e trib u to s e governavam por interm édio d e m agnatas
regionais que desfrutavam de grande autonom ia d entro de seus próprios terrenos;
os m agnatas freqüentem ente opunham -se ao poder real ou m esm o o rejeitavam . N ão
obstante, em 1490 todos os grandes reis e duques estavam consolidando e am plian­
do os seus dom ínios.
N esse m om ento, dentro do círculo quebrado dos estados m aiores a E uropa
continuava sendo um a terra de soberania bastante fragm entada. É verdade q u e um
Im pério H absburgo difuso co m eçava a estender-se através do continente, enquanto
Veneza dom inava um arco im portante do A driático. N o entanto, a zona que vai do
norte da Itá lia até F landres e, a leste, às fronteiras indefinidas da H u n g ria e da
Polônia se fragm entou em centenas de áreas form alm ente independentes: p rin ci­
pados, ducados, bispados, cidades-estado e outras entidades políticas que de m odo
geral som ente podiam usar a força no interior im ediato em volta de suas capitais; o
sul da A le m a n h a so zin h o a b ra n g ia 69 c id a d es liv re s, além de seu s m ú ltip lo s
bispados, ducados e principados (B rady 1985: 10). R um ina J. R. H ale,

A p e sa r da fro n teira que um cartó g ra fo podia tra ç a r em to rn o d a área q u e a o p in iã o


p ública do m eado do século XV ad m itia in teg rar o S a c ro Im pcrio R om ano, isto é, a zona
e ssen cialm en te g erm ân ica en tre a F ran ç a e a H ungria, e a D inam arca e o norte da Itália, ele
não con segu e c o lo rir a m ultidão de c id ad es, de enclaves p rin cip esco s e territórios e cle siá sti­
cos m ilitan tes q u e se con sid eram real òu p otencialm ente in d e p e n d en te s, sem q u e p a s s e ao
leitor um a im pressão de qu e está so fren d o de um mal d a retina.
(H ale 1985: 14.)

O itenta m ilhões de pessoas na E uropa se distribuem em cerca de 200 estados, p re ­


tensos estados, estadozinhos e organizações sim ilares a estados.
P or volta de 1990, outros cinco séculos m ais tarde, os europeus haviam e s ­
tendido enorm em ente a obra de consolidação. Seiscentos m ilhões de pessoas viviam
então dentro do perím etro d o continente. N enhum e stad o m uçulm ano p e rsistia na
E uropa, em bora um poderoso m undo islâm ico p rosperasse contenciosam ente ao sul
e ao sudeste e im pressionantes v estígios da cu ltu ra m u çulm ana perdurassem na
E spanha, nos B álcãs e naT urquia. U m gigantesco e stado russo havia-se constituído

93
CHARLES TILLY

Figura 2.4 O M undo em 1490 d.C. (adaptado de C olin M cEvedy, The Penguin A tlas o f M o d em ,H isto-
ry to 1815, Penguin Books, 1972. C opyright © 1972 C olin M cEvedy).

a leste e se e sten d ia até o Á rtico e o P acífico, e n q u a n to um a e x te n sa T u rq u ia


atravessava a fronteira asiática até o sudeste. G rande p arte do continente se havia
transform ado em estados que ocupavam pelo menos 100 mil quilôm etros quadrados,
sem c o n tar as colônias e as possessões: as duas A lem anhas, B ulgária, E spanha,
Finlândia, França, G récia, Itália, N oruega, Polônia, R eino U nido, R om ênia, Suécia,
T checoslováquia, T u rq u ia e aURSS ainda não fraccionada. O s m icro-estados, com o
L uxem burgo e A ndorra, em bora m aiores d o que m uitas das entidades políticas .que
existiram em 1490, haviam -se transform ado em m eras curiosidades. Se se contasse
pelo núm ero de governantes, a E uropa inteira dividia-se em apenas 25 a 28 estados.
L evou m uito tem po para que o m apa da E uropa fosse d om inado pelos estados
nacionais: organizações relativam ente centralizadas, diferenciadas e autônom as que
reclam avam prioridade no uso d a força d entro de territórios am plos, contíguos e
claram ente circunscritos. Em 990, nada a respeito desse m u n d o d e feudos, senhores
locais, invasores m ilitares, aldeias fo rtifica d a s, c id a d es co m e rcia n te s, c id a d e s-
estado e m osteiros podia prever um a consolidação em estad os nacionais. E m 1490,
o futuro continuava à frente; apesar do uso freqüente da palavra “ reino” , os im périos
de um ou de outro tipo reclam avam a m aior parcela da paisagem e u ro p éia e, em

94
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

Figura 2.5 A Europa em 1990 d.C .

algum as regiões do continente, as federações continuavam viáveis. A lgum tem po


depois de 1490, os europeus elim inaram essas o portunidades alternativas e partiram
decididam ente para a c ria çã o de um sistem a co nstituído quase que to ta lm e n te de
estados nacionais com um a autonom ia relativa.
Por o u tro lado, os estados dim inuíram em q u a n tid a d e e aum entaram em área.
P a ra tr a ç a r o m a p a d a s m u d a n ç a s , tem o s d e a p lic a r o te rm o “ e s ta d o ” com
generosidade, incluindo q u a lq u e r organização q u e com andava m eios substanciais
d e c o e rç ã o e re c la m a v a u m a p rio rid a d e p e r m a n e n te so b re to d o s o s o u tro s
aplicadores d e coerção dentro pelo m enos de um território claram ente circunscrito.
E m 9 90, alguns estados m uçulm anos relativam ente extensos dom inavam grande
parte do oeste do M editerrâneo, inclusive o sul da E spanha e a costa no rte da Á frica.
E ntre outros estados de bom tam anho, podem os in clu ir o reino da F rança, o im pério
saxão, o reino d a D inam arca, a R ússia de Kiev, a P olônia, a H ungria, a B oêm ia e o
Im pério B izantino. N o conjunto, os governantes dessas entidades políticas c obra­
vam tributos dos territórios q u e se achavam nom inalm ente sob o seu dom ínio. No

95
CHARLES TILLY

e n ta n to , fora de suas próprias regiões, adm inistravam com dificuldade os seus pre­
tensos dom ínios e tinham a sua autoridade c ontinuam ente contestada por potentados
rivais, inclusive p o r seus próprios agentes e vassalos putativos.
C onsiderem os a H ungria, um estado que se desenvolveu a partir da área c o n ­
q u ista d a pelos m agiares, um dos m uitos povos nôm ades arm ados que, vindos da
e step e eurasiática, invadiram a E uropa. N o decurso do sé c u lo X, a m aioria dos m a­
giares m igraram do V olga e dom inaram os eslavos, que eram em m enor núm ero,
lav rad o res e habitantes das florestas da B acia dos C árpatos, região que hoje d e n o ­
m in am o s H ungria (P am lenyi 1975: 2 1-5). Q uando se m udaram para o oeste dos
C árp ato s, a escassez d a pastagem natural fez com que alguns nôm ades predadores
se retirassem , ou tivessem reduzida a su a população, ou se extinguissem (L indner
1981). D epois de um século de pilhagem , os húngaros, ag o ra cristianizados, v o lta ­
ram -se cad a vez m ais p ara a agricultura num território q u ase d esprovido de cidades.
S ua base agrícola não im pediu q u e a nobreza h úngara fizesse guerra com seus
v izinhos, lutasse p ela sucessão real ou participasse do jo g o europeu de casam entos
e alian ças. A lém do m ais, o seu controle d a força arm ada p roporcionou-lhes o p o d e r
d e j o g a r e sc ra v o s e h o m en s livres in d istin tam e n te n u m a se rv id ão co m u m . A s
c id a d es cresceram no m om ento em q u e a agricultura feudal prosperou, a s m inas
p a ssa ram a ex p o rta r m etais para o restante da E uropa e as rotas de com ércio da
região se ligaram às da E uropa C entral e O cidental. O capital alem ão acabou por
d o m in a r o co m é rcio e a indústria húngaros. N o en tan to , as cidades da H u n g ria
co n tin u aram estritam ente subordinadas a seus senhores nobres até que, no século
XV, a c oroa com eçou a controlá-los.
N o final do século XV, o rei Janos H unyadi e seu filho, o rei M ateus C orvino,
c o n s tr u íra m u m a m á q u in a de g u e rra re la tiv a m e n te c e n tr a liz a d a e e f ic ie n te ,
co m b aten d o tanto os turcos belicosos a sudeste quanto os fam intos H absburgos a
oeste. T odavia, com a m orte de M ateus, a nobreza con tra-ataco u e privou o seu
su cesso r L adislau dos m eios de sustentar o seu próprio exército. Em 1514, o esforço
p a ra o rg an izar um a nova cruzada c o n tra os turcos provocou um a im ensa revolta
c am p o n esa, cu ja rep ressão reduziu defin itiv am en te o cam p esin a to à se rv id ã o e
aboliu os seus direitos de m udar de senhor. N a luta entre os m agnatas que se seguiu
a o s a co rd o s de p a z q u e p u seram fim à g u e rra c a m p o n e sa , o a d v o g a d o Istv a n
V erbõczi acolheu a opinião dos nobres em relação aos co stum es húngaros, inclusive
as leis de co m pensação contra os cam poneses e os provim entos pelos quais

o s n o b res go zav am d e im u n id ad e contra a p risão sem um p ré v io ju lg a m e n to legal, esta v a m


su jeito s so m en te a um rei leg itim am ente c o ro a d o , não pagavam q u a lq u e r espécie de trib u to s
e só po d iam se r recru tad o s para p restar serv iço m ilitar em caso d e d efesa do reino. F in a lm e n ­

96
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

te, era garan tido o d ireito de reb elião co n tra qu alquer rei q u e infringisse de algum m odo os
d ire ito s d a nobreza.
(M cN eill 1975 [1964]: 17.)

O tratado de Verbõczi tornou-se o texto autorizado da lei húngara e “a bíblia


da nobreza” (Pam lenyi 1975: 117). P o r volta de 1526, a H ungria não tinha um , m as
dois reis eleitos e os dois lutavam entre si. Não adm ira m uito que, no m eio século
seguinte, os turcos tenham conseguido tom ar a m etade do território húngaro! N essa
época, evidentem ente, os grandes estados não eram necessariam ente os estados
fortes.

OS ESTAD O S E A C O ERÇÃO

Por volta de 1490, os m uçulm anos estavam -se retirando de G ranada, o seu
ú ltim o posto avançado na Ibéria, m as ao m esm o tem po construíam um e xtenso
im p é rio em to rn o do M e d ite rrâ n e o oriental e fa ziam in cu rsõ es até os B álcãs.
C om eçaram a surgir nos flancos d a E uropa estados dotados de grandes exércitos e
de algum controle judicial e fiscal sobre territórios de bom tam anho, e as cidades-
estado principiaram a arm ar-se para a guerra terrestre com o nunca havia acontecido
an tes. O m apa e u ropeu de 1490 atribui grandes áreas à Inglaterra, à S u écia, à
Polônia, à R ússia e ao Im pério O tom ano, mas tam bém assinala dezenas de ducados,
principados, arcebispados, cidades-estado e outros estados-m iniatura.
A q u a n tid a d e de e sta d o s d istin g u ív e is d e p e n d e de d e c isõ e s d isc u tív e is
relacionadas com a própria natureza dos estados da época. São elas: se os 13 cantões
suíços (com o em 1513) e as 84 cidades livres do Im pério O tom ano (com o em 1521)
devem ser c o n tad o s com o e n tid a d es separadas; se as possessões tec n ica m e n te
autônom as d e A ragão e C astela, c o m o a C atalunha e G ranada, m erecem reconhe­
cim ento; se a colcha de retalhos dos Países-B aixos constituíam um único estado
(ou apenas p arte de um estado) so b a hegem onia dos H absburgos; se o s estados
tributários sob o controle otom ano pertenciam individualm ente ao sistem a europeu
de estado d a época. N enhum conjunto plausível de definições fornece m enos d e 80
unidades distintas, ou mais de 500. Podem os tomar, arbitrariam ente, 200 com o um
núm ero m édio. A s cerca de 200 entidades políticas européias da época que detinham
um a autonom ia form al controlavam um a m édia de 24,5 m il quilôm etros quadrados,
m ais ou m enos o tam anho dos atuais El Salvador, L essoto e Catar.
A população européia de aproxim adam ente 62 m ilhões de habitantes em 1490
distribuía-se num a m édia de 310 m il pessoas por estado. E videntem ente, as m édias

97
CHARLES TILLY

obscurecem as enorm es variações: o grande núm ero de estados m enores d a E uropa


e suas populações caberiam facilm ente no vasto território da R ússia. N ão obstante,
a E u ro p a p r in c ip ia v a a c o n so lid a r-se em e sta d o s te rrito ria lm e n te d is tin to s e
o rg an izad o s em to rn o de institu içõ es m ilitares p e rm a n en te s, e a su p e rio rid a d e
m ilitar com eçava a propiciar aos estados m elhores chances de sobrevivência.
Para falar a verdade, apenas com eçava. Em 1490, os exércitos eram consti­
tuídos, em sua grande m aioria, de m ercenários contratados para um a cam panha, de
clientes dos grandes senhores e de m ilícias de cidadãos. N a França e na B orgonha,
os exércitos perm anentes haviam substituído as m ilícias urbanas, m as em outros
reinos não m uito. As rendas de tributos e as taxas pessoais ainda tinham grande peso
nas receitas dos reis. D entro dos estados m aiores, as com unidades, as guildas, as
igrejas e os m agnatas regionais detinham grande p arcela de im unidade e autonom ia.
A adm inistração se concentrava sobretudo nas questões m ilitares, judiciais e fiscais.
N a zona central da E uropa continuavam a proliferar as jurisdições dim inutas. C om o
as cidades-estado, ligas de cidades, im périos d in ástico s, principados vinculados
apenas nom inalm ente a m onarquias ou im périos m aiores, e entidades eclesiásticas
com o a O rdem T eutônica, todos coexistissem (em bora litigiosam ente) no con tin en ­
te, ainda não era evidente que o s estados nacionais, d a form a com o os conhecem os
hoje, iriam tornar-se as organizações predom inantes da E uropa. N ão antes do século
XIX, com as conquistas de N apoleão e as subseqüentes unificações da A lem anha e
da Itália, quase toda a E uropa se teria consolidado em estados separados entre si,
dotados de forças arm adas perm anentes e profissionais e que exerciam um controle
considerável sobre as pessoas em áreas de 100 mil quilôm etros quadrados ou mais.
Nos quatro séculos seguintes, m uitos tratados de paz e algum as federações
deliberadas reduziram drasticam ente o núm ero d e estados europeus. N o século XIX,
o núm ero tendeu a estabilizar-se. N o com eço do ano d e 1848, por exem plo, a E uropa
abrigava de 20 a 100 estados, dependendo de com o se contam os 35 m em bros da
C on federação G erm ânica, os 17 estados papais, os 22 segm entos tec n ica m e n te
a u tô n o m o s d a S u íç a e um as p o u c a s u n id ad es d e p e n d e n te s m as fo rm a lm e n te
distintas, com o L uxem burgo e N oruega: no A lm anaque de G otha, o catálogo de
nobres e estadistas, a lista alfabética d a época co m eçava com os dim inutos A nhalt-
B ernburg, A nhalt-D essau eA nhalt-K othan antes de incluir os m ais extensos Á ustria,
B aden e B avária.
As principais consolidações aconteceram quando da form ação do Im pério G er­
m ânico e do reino da Itália. M ais ou m enos no início de 1890, a lista de estados ha­
via dim inuído para cerca de 30, nove dos quais eram m em bros do Im pério G erm â­
nico. N o final de 1918, a contagem estava em torno de 25 estados separados. E m ­
bora as fronteiras tivessem m udado significativam ente com os tratados que puseram


AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

fim à P rim eira e à S egunda G uerra M undial, o núm ero e o tam an h o dos estados
europeus não mudou m uito no curso do século XX. Se, de acordo com Sm all & Sin-
ger, contarm os apenas aqueles estados grandes bastante para estab elecer um a dife­
rença m ilitar independente, detectam os realm ente um a leve inversão d a tendência a
longo prazo: 21 contendores n o final das G uerras N apoleônicas, 26 em 1848, 29 (in­
cluindo agora M alta, C hipre e a Islândia) em 1980 (Sm all & S inger 1982: 47-50).
Em contraste com os 24 500 quilôm etros quadrados de 1490, os 30 estados
de 1890 co n tro lav a m u m a m é d ia de 160 m il q u ilô m e tro s q u a d ra d o s, o q u e os
igualava às atuais N icarágua, Síria e T unísia. E m vez dos 310 m il h abitantes de
1490, o estado m édio de 1890 contava c e rc a de 7,7 m ilhões. Se o s im aginarm os
n u m a c irc u n fe rê n c ia , o s e s ta d o s o rig in a m -se n um ra io m é d io d e 9 0 a té 230
q u ilô m e tro s. N um raio d e 9 0 q u ilô m e tro s, o c o n tro le d ireto d o in te rio r p elo s
g o v e rn an tes d e um a ú n ic a c id a d e m u itas v e ze s e ra viável; a 2 3 0 q u ilô m e tro s,
n inguém g o vernava sem um aparelho e sp e cializa d o de v ig ilân cia e supervisão.
Além disso, em bora os m icro-estados com o A ndorra (453 km 2), L iechtenstein (157),
San M arino (62) e m esm o M ônaco (1,8) tenham sobrevivido à g rande consolidação,
as desigualdades de tam anho dim inuíram rad icalm ente com o tem po.
F alando de m odo geral, a ú ltim a p arcela d a E uropa a consolidar-se em estados
nacionais extensos foi a faixa de cidades-estado que ia d a Itália do N o rte, em torno
dos A lp es, e abaixo d o R e n o a té o s P a íse s-B a ix o s . A s c ria ç õ e s su c e ssiv a s da
A le m a n h a e d a Itá lia c o lo c a ra m sob c o n tr o le n a c io n a l e ssa s p e q u e n a s m u ­
nicipalidades prósperas m as briguentas, e suas regiões interioranas. E com o se os
europeus descobrissem que, sob as condições predom inantes a p a rtir de 1790 ou
m ais, um estado viável necessitava de um raio de pelo m enos 160 q uilôm etros, e
não poderia dom inar com facilidade além d e um ra io d e 400 q uilôm etros.

A S C ID A D E S E O C A P IT A L

P ara perceber com m ais clareza o padrão geográfico, deveríam os estabelecer


um a distinção entre sistem as de cidades e sistem as de estados. O s sistem as d e ci­
dades d a E uropa representavam as relações indefinidas entre as c oncentrações de
capital; os seus sistem as de estados, as relações variáveis entre as concentrações de
coerção. A s cidades européias form avam um a hierarquia frouxa de precedência com er­
cial e industrial dentro d a qual, em qualquer instante, uns poucos aglom erados de
cidades (agrupadas com um ente em torno de um centro hegem ônico único) d o m in a ­
vam claram ente o resto. (N a verdade, a hierarquia européia constituía apenas um a
parte d e um a rede urbana m ais vasta que ia até a Á sia no com eço do período e que,

99
CHARLES TILLY

c om o passar do tem po, se estendeu à Á frica e à A m érica.) N a sim plificação valiosa


d e F em and Braudel, Veneza, A ntuérpia, G ênova, A m sterdam , L ondres e N ew York
fo ram as capitais sucessivas do sistem a europeu de cidades do século X IV ao X X .
N o que diz respeito à predom inância, a questão crucial não foi tanto o tam anho
q u a n to a centralid ade na rede e u ro p éia d e com ércio, p ro d u ç ão e acum ulação de
capital. N o entanto, as concentrações de capital e de população urbana se equivaliam
tão estreitam ente que o aglom erado de cidades predom inante sem pre era tam bém
u m dos m aiores. U sando um c ritério c lasse-tam anho e algum traçado um tanto
arb itrário de fronteiras, J. C. R ussell delineia regiões m edievais centradas em torno
d e F lorença, Palerm o, Veneza, M ilão, A ugsburgo, D ijon, C olônia, Praga, M agde-
b urgo, Liibeck, G hent, L ondres, D ublin, Paris, T oulouse, M ontpellier, B arcelona,
C órdoba, T oledo e L isboa. As cidades eram mais densas e as regiões c o rre sp o n ­
d entem ente m enores n a faixa que vai de Florença a G hent, especialm ente em sua
ex trem id ad e italiana; m edidas pelo total d a população das dez m aiores cidades, as
re g iõ e s de V eneza (3 5 7 m il), M ilão (337 m il) e F lo re n ç a (296 m il) lid e ram o
c o n ju n to (Russell 1972:235). Em 1490, um cálculo m ais preciso do “potencial ur­
b a n o ” , feito por Jan de V ries, escolhe as regiões centradas m ais ou m enos em torno
d e A ntuérpia, M ilão e N ápoles com o os picos do sistem a urbano europeu, em bora
em 1790 predom inasse claram ente a zona circunvizinha de L ondres (incluindo as
á reas que atravessavam o Canal da M ancha) (de Vries 1984: 160-4).
O sistem a de cidades e o sistem a de estados se espalharam de form a m uito
desigual, e de m aneiras contrastantes, através do m apa europeu. N o ano de 990, as
c id a d es eram pequenas e se estendiam p o r quase toda a região situada ao norte dos
A lpes. N o entanto, eram m ais densas e suas relações m ais intensas num a fa ix a que
se e ste n d ia ao no rte, d e B olonha e P isa através dos A lp e s até G hent, B ru g e s e
L ondres. A s zonas secundárias de concentração urbana apareciam ao sul da E spanha
e ao sul da Itália. As terras m editerrânicas abrigavam um núm ero m uito m aior de
cid ad es do que aquelas que costeavam o A tlântico ou o B áltico. As duas m aiores
cid ad es da E uropa eram , na época, C onstantinopla e C órdoba, não só os principais
cen tro s de com ércio m as tam bém sedes respectivam ente do Im pério B izantino e do
C alifado O m íada; cada um a contava com um a população q ue se avizinhava d o m eio
m ilhão (C handler e F ox 1974: 11). N o curso do m ilênio seguinte, a faixa central
c o n tin u o u sen d o a z o n a e u ro p éia d e m a io r in ten sid ad e u rb an a, m as e ssa faix a
a m pliou-se, e seu centro de gravidade deslocou-se para o norte, rum o aos grandes
p ortos d o A tlântico. D e 1300 em diante, a faixa dè cidades ligadas ao norte dos A lpes
cresceu de form a desproporcional.
A p re se n ç a ou a u sê n c ia de a g lo m e ra ç õ es u rb a n a s cau so u um a p ro fu n d a
d ifere n ça na vida social regional e suscitou significativam ente as possibilidades de

100
)
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

form ação do estado. Sob as condições de produção e transporte predom inantes na


E uropa antes do século XIX, as cidades m aiores estim ularam a agricultura com ercial
em áreas tributárias que se estenderam por m uitos quilôm etros dentro da zona rural.
E ste tipo de agricultura, por sua vez, favoreceu de m odo geral a prosperidade dos
com erciantes, dos grandes cultivadores e dos pequenos proprietários rurais e ao
m esm o tem po reduziu a capacidade dos grandes senhores de terra de d om inar as
pessoas em suas adjacên cias rurais. (Todavia, ocorreu um a exceção significativa
naqueles locais em que a classe dirigente da cidade tam bém detinha extensões de
terra no interior, fato freqüente nas cidades-estado italianas; aí o cam pesinato sofreu
o peso total do do m ínio senhorial.)
A lém d o m ais, as cid ad es influenciaram profu n d am en te a d em o g rafia das
re g iõ e s c irc u n v iz in h a s . A té re c e n te m e n te , a m a io ria d a s c id a d e s e u ro p é ia s
experim entaram um declínio natural: suas taxas de m ortalidade superaram as de
natalidade. C onseqüentem ente, m esm o as cidades em estagnação atraíram volum es
consideráveis de m igrantes das cidades e aldeias próxim as, enquanto as cidades em
crescim ento geravam grandes correntes m igratórias. E ssas correntes eram m uito
m aiores do q ue o déficit urbano de nascim entos m ais a taxa urbana de crescim ento,
um a vez que todos os sistem as de m igração e n v o lv ia m um a grande p a rce la de
m ovim entação para a frente e para trás; m ascates, com erciantes, e m p re g ad o s e
artesãos flutuavam com freqüência entre a cidade e a zona rural de um ano para o
outro ou de um a estação para a outra. O fluxo líquido do c am po para a cidade incluía
usualm ente m ais m ulheres do que hom ens, resultando que as proporções de sexo
(m achos por 100 m ulheres) eram caracteristicam ente altas no cam po e baixas na
cidade. A ssim , a cidade foi m arcada pelas próprias oportunidades de casam ento de
aldeãos em suas circunvizinhanças.
O im p a c to c o m e rc ia l e d e m o g rá fic o das c id a d e s cau so u u m a d ife re n ç a
s ig n ific a tiv a n a fo rm a ç ã o do e sta d o . D e ix em o s d e lad o m o m e n ta n e a m e n te a
im portância que as classes dirigentes urbanas e o s c ap italista s baseados na cidade
detiveram enquanto partidários ou opositores dos esforços de expansão do poder
d o e sta d o ; m ais tard e voltarem o s a dar-lhe m aior aten ção . A e x istê n cia d e um
c o m é rc io in te n so e n tre a c id a d e e o c am p o o fe re c e u u m a o p o rtu n id a d e aos
governantes de arrecadar receitas através de taxas alfandegárias e de im postos sobre
c o n su m o , e n q u a n to a e c o n o m ia re la tiv a m e n te c o m e rc ia liz a d a fa c ilito u aos
m onarcas o controle dos grandes proprietários de terra à m edida que estendiam o
poder real às cidades e aldeias.
A lém disso , as relações e n tre a cidade e o c am p o afetaram o suprim ento
potencial de soldados: seriam eles os servos e m ee iro s dos m agnatas rurais, os
m ercenários de regiões de alta m obilidade e baixa nupcialidade, as m ilícias urbanas,

101
CHARLES TILLY

ou os trabalhadores sem terra expulsos por grupos de p ressão? As oportunidades de


trib u tação , o p o d e r dos pro p rietário s rurais e o su p rim en to de tro p as a fetara m
profundam ente o m odo de form ação dos estados. A trav és do a b aste cim en to de
alim entos, da m igração, do com ércio, das com unicações e das o p ortunidades de
em prego, as grandes aglom erações urbanas im prim iram a sua m arca na vida social
de regiões circunvizinhas e influenciaram assim as estratégias dos dirigentes que
tentavam e sten d e r o po d er do e stad o a essas regiões. P e río d o s de c resc im e n to
urbano apenas acentuaram esses efeitos.
Com algum risco, e negligenciando em gran d e e sc ala a v ariação regional,
podem os dividir o crescim ento urbano da E uropa a partir de 1000 em cinco fases:
um período de considerável ex p an são até m ais ou m enos 1350; um a épo^ca de
depressão seguida de flutuação não-tendenciosa entre 1350 e 1500; um a aceleração
no século X V I; um a redução no século X V II e, finalm ente, um a enorm e aceleração
depois de 1750 (H ohenberg & L ees 1985: 7-9). A devastadora dissem inação d a peste
no século X IV m arca a transição d a prim eira para a segunda fase; a navegação ibérica
para a Am érica, o início da terceira fase; o crescim ento da indústria algodoeira depois
de 1600, o com eço d a quarta; a im plosão do capital, das m anufaturas, dos serviços
e do com ércio nas cidades, a m udança da quarta para a quinta fase.
D o século X V I ao X V III, m uitas regiões européias, entre elas as zonas interio-
ranas de M ilão, Lyon e M anchester, experim entaram a proto-industrialização: a m ul­
tiplicação de pequenas unidades m anufatureiras, inclusive dom ésticas, e de pequenos
com erciantes que as ligavam aos m ercados distantes. D urante essa grande e x pansão
industrial, o capital procurou o trabalho e não o inverso; o trabalho rural proletarizou-
se, no sentido de que m udou decisivam ente para o serviço assalariado usan d o os
m eios de produção de propriedade dos capitalistas, m as perm aneceu nas unidades
dom ésticas e nas pequenas oficinas. N esse m om ento, o capital acum ulou-se gran­
dem ente, m as não se concentrou na m esm a proporção. N o decurso dos séculos X IX
e X X aconteceu um m ovim ento inverso: o capital im plodiu, a m anufatura e os tra­
balhadores m udaram -se para as cidades e extensas áreas do cam po se desindustria-
lizaram . Os m anufatureiros procuraram localizar-se cada vez m ais naqueles lugares
em que era possível m inim izar os custos de m atéria-prim a e de m ercado para os
seus produtos, adm itindo corretam ente que os trabalhadores viriam até eles às custas
d e algum outro. A últim a lufada de concentração acelerou enorm em ente a u rbani­
zação européia e produziu o continente enxam eado de cidades que conhecem os hoje.
A s cidades cresceram ju n tam en te com a população européia, e o núm ero de
lu g are s u rb an o s, p o rtan to , m u ltip lic o u -se m esm o q u a n d o a p o rç ã o u rb a n a d a
p opulação se m anteve co nstante; com base nos testem u n h o s atuais, apenas não
sabem os se a população européia se tornou realm ente m ais urbana antes de 1350.

102
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

D e qualq u er m odo, a p ro p o rçã o que vivia nas cid a d es não aum entou significati­
vam ente antes do século XIX. Segundo as m elhores estim ativas de que dispom os, a
porção de lugares com 10 m il habitantes ou m ais girava em torno d e 5% em 990,
6% em 1490, 10% em 1790 e 30% em 1890, em com paração com os q u a se 60% de
hoje (B airoch 1985: 182, 282; de Vries 1984: 29-48).
A e scala da urbanização refletiu a histó ria do capital europeu. D urante sécu­
los, a m aior parte do capital líquido da E u ro p a e stev e nas m ãos de pequenos c o ­
m erciantes que trabalhavam dispersos por to d o o continente, ou com erciando bens
produzidos em outro local ou orientando a m an u fatu ra de produtores form alm ente
independentes em aldeias, distritos e p eq u en as cid ad es. O s grandes capitalistas,
com o o s de G ênova, A ugsburgo e A ntuérpia, desem penharam um papel im portante
na ligação d e toda a E uropa entre si e com o resto do m undo, m as detinham um a
pequena parcela de todo o capital em m ovim ento.
A ntes d e 1490, a d ispersão dos testem unhos torna difícil o ferecer alguns in­
form es quantitativos m ais detalhados. No entanto, as estim ativas de Paul B airoch e
a recente co m p ilação de e v id ê n cia s relativas à u rb a n iz aç ã o e u ro p éia a partir de
1500, feita p o r Jan de V ries, possibilitaram a lguns c álculos sim ples m as surpreen­
dentes. A T abela 2.1 m ostra a tax a com um p ro lo n g ad a de crescim ento urbano antes
de 1490, a aceleração no século X V I e a excepcional urbanização d epois de 1790.
Por v olta de 1980, a barreira d o s 10 mil hab itan tes havia perdido o seu sentido (daí
os núm eros especulativos d a tabela), e um total de 390 c id a d es tin h am 100 m il
habitantes ou mais. Com efeito, as estatísticas de 1980 colocam 34,6% d a população
em cidades de no m ínim o 100 m il habitantes. A grande aceleração d o crescim ento
urbano ocorreu depois de 1790, com a c o n cen tração de capital no século X IX , o
aum ento escalar dos em pregos e a criação do tran sp o rte de m assa. N o entanto, na
m aior parte d o período p o sterio r a 1490, as zonas interioranas exclusivas de que
dispunham a m aioria das cidades estavam d im in u in d o de tam anho.

Tabela 2.1 U rbanização d e 990 a 1980 na E uropa a o este da R ússia.

990 1490 1590 1690 1790 1890 1980

cidades de 10 mil habitantes ou mais I II 154 220 224 364 1709 5000?
população nas cidades de 10 mil ou mais 2,6 3,4 5,9 7,5 12,2 66,9 25 0 ?
(m ilhões)
taxa anual (% ) de crescim ento — 0,1 0,6 0,2 0,5 1,7 1,5?
a partir da data anterior
% de população em cidades 4,9 5,6 7,6 9,2 10,0 29,0 55?
de m ais de 10 mil habitantes
km2 por cidade (m il) 44,3 3 1,9 2 2 ,0 2 2,0 13,5 2,8 1,0?

Fonte: De Vries 1984: 29-48; B airoch 1985: 182.

103
CHARLES TILLY

A IN T E R A Ç Ã O E N T R E C ID A D E E E S T A D O

A s tendências divergentes das cidades e estados m udaram algum as relações


c rític a s . E m 9 9 0 d .C ., com m ilh a re s de u n id ad e s tip o e sta d o , é p o ssív e l q u e
houvesse na E uropa um a única cidade de 10 mil h abitantes p ara cada vinte ou trinta
“e stad o s” . Em 1490, essa cidade ex istia para cada um ou dois estados. Em 1890, o
e sta d o m édio m ític o tin h a c e rc a d e 6 0 cidades d e 10 m il ha b ita n te s ou m ais.
S o m e n te e ssa m u d an ç a j á provocou alterações fu n d a m e n ta is nas relações entre
governantes e g overnados: alterou as técnicas d e c o n tro le, alterou as estratégias
fiscais, alterou as dem andas de serviços e alterou a política.
A s cidades m oldaram os destinos dos estados, sobretudo por servirem com o
pontos de re ce b im e n to e d istribuição de capital. P o r m eio do capital, as classes
d irigentes urbanas estenderam a sua influência a todo o interior urbano e através de
redes extensas de com ércio. M as as cidades variaram no que se refere à quantidade
de capital que su as o ligarquias co ntrolavam ; A m sterdam , no século XVII, fez a
o u tro ra g loriosa B ruges parecer insignificante. A lém disso , o fato de as cidades
serem os locais de acum ulação de capital propicia às suas autoridades políticas o
acesso ao capital, ao crédito e ao controle sobre o in te rio r que, se for d om inado e
cooptado, pode servir tam bém aos objetivos dos m onarcas. A dam Sm ith expôs o
fato central d e form a convincente:

U m a região q u e ab u n d a em co m ercian tes e m an u fatu reiro s ... necessariam ente abunda


tam b ém em um c o n ju n to d e pessoas q u e sem pre dispõem d o p o d e r de adiantar, se e sc o lh e ­
rem fazê-lo, um a som a m uito g rande d e d in h e iro ao gov erno.
(S m ith 1910 [1778]: II, 392.)

S e escolherem fa zê -lo : por trás desse qualificativo se escondem séculos de disputa


en tre os capitalistas e os reis. N ão obstante. A dam S m ith estava totalm ente correto
em e n fatiz a r as van tag en s fin an ceiras dos estados q u e operavam em reg iõ es de
capital abundante.
Os estados, p o r sua vez, atuam sobretudo co m o receptáculos e aplicadores
dos m eios de co erção , esp ecialm en te a força arm ada. H o je em dia, o d e se n v o l­
v im e n to de e stad o s q u e investem no b em -estar p ú b lic o , de estados regulam en-
tad o re s, de e stad o s q u e em pregam grande p arte de seu e sfo rço em in te rv ir nas
questões econôm icas, suavizou e obscureceu a centralidade da coerção. C ontudo,
d u ra n te e sse m ilê n io d e h istó ria e u ro p é ia que e sta m o s e x am in an d o , os g asto s
m ilitares u su alm en te consum iram a m aior parte dos orçam en to s do estado, e as
forças arm adas constituíram caracteristicam ente o m aio r setor do governo, tom ado
isoladam ente.

104
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

A s d ife re n ç a s e n tre a g e o g ra fia d a fo rm a ç ã o do e sta d o e u ro p e u e a da


construção de cidades colocaram um problem a pungente para q u alq u er pretenso
governante. A beberando-nos em Paul H ohenberg e Lynn Lees, podem os estabele­
cer um a distinção grosseira entre cidades: p ra ça s centrais e pontos de redes urba­
nas; todas as cidades pertencem a um ou ao outro sistem a, m as a im portância rela­
tiva dos dois conjuntos de relações varia drasticam ente de um a cidade para outra
(H ohenberg & Lees 1985: capítulo 2). O sistem a hierárquico de p raça central é o
interm ed iário do fluxo de pro d u to s com uns com o alim ento e vestuário en tre as
povoações de um a região contígua; as m atérias-prim as e os produtos brutos tendem
a d eslocar a hierarquia das praças centrais para povoações m aiores que servem a
m ercados m ais extensos, en q u an to que os produtos acabados e e specializados -
sobretudo os produzidos fo ra do sistem a regional - tendem a m udar-se dos lugares
m aiores p a ra os m enores. D u ra n te grande p arte da história que estam os e x am i­
nando, alguns produtores prim ários, com erciantes locais, vendedores am bulantes
e feiras pú b licas p eriódicas vendem um a p arte im portante dos p ro d u to s a seus
consum idores.
P or outro lado, as redes urbanas ligam os centros de alto nível de sistem as
regionais separados, às vezes afastados en tre si p o r m ilhares de quilôm etros. Em ­
bora m uito antes de 1500 a m adeira de lei, o trigo, o sal e o vinho tenham viajado
grandes distâncias na E uropa, as redes urbanas por m uito tem po se especializaram
na troca de produtos leves e caros com o especiarias e sedas. O s com ercian tes e
fin an c istas, p o r disporem d e grande quan tid ad e de capital, se to rn aram figuras
im portantes nas redes urbanas da Europa. D urante séculos, aquilo que Philip Curtin
d enom ina diásporas com erciais teve um papel decisivo; alguns grupos m ercantis
g e o g raficam en te dispersos, c o m o os judeus, os arm ênios, ou os g enoveses, que
tinham a m esm a língua, religião, parentesco e (às vezes) origem geográfica reduzi­
ram as incertezas do com ércio internacional m ediante a concessão entre si de cré­
dito, inform ação de m ercado e tratam ento preferencial (Curtin 1984). M esm o na­
queles lugares onde as diásporas com erciais não criaram os vínculos decisivos entre
os centros distantes, com erciantes dispersos costum avam m anter relações com seus
colegas por m eio de viagens, correspondência pessoal, nom eação de representantes
locais e c ontato com conhecidos mútuos.
P ode ocorrer que um governante aplicador de coerção, com u m a certa som a
de esforços, capture todo o território de um a ou m ais hierarquias de praça central, e
até rem aneje um a hierarquia d e form a a que corresponda m ais ou m enos aos lim ites
de seu estad o ; p o r volta do sé c u lo XVI, foi e stab e le c id a um a c o rre sp o n d ê n c ia
aproxim ada entre a Inglaterra e o sistem a de praça central de Londres, entre a França
e o sistem a de praça central de P aris. N o entanto, é raro e difícil um estado encaixar-

105
CHARLES TILLY

se nos contornos de um a rede urbana de longa distância. As federações, a exem plo


das L igas H anseáticas, e os im périos m arítim os, com o Veneza e Portugal, quase o
conseguiram d urante algum tem po, m as sem pre foram coagidos a c o m p e tir ou
negociar com governantes territoriais que reivindicavam um ou outro de seus postos
de com ércio; a consolidação de um império otom ano p o r cim a das rotas com erciais
m ais lucrativas d e V eneza condenaram o im p ério m ercantil e sp e ta cu la r que os
ve n ez ia n o s h a v ia m criado nos sécu lo s XII e XIII. P o r ou tro lad o , os e sta d o s
territoriais cujos negociantes se dedicaram ao co m ércio de longa distância sem pre
tiveram de enfrentar poderosos atores econôm icos de cujas relações externas eles
n u n c a c o n se g u ira m um c o n tro le total e q u e , to d a v e z q u e as e x ig ê n c ia s do
governante se tornavam insuportáveis, encontraram relativa facilidade de fugir com
seu capital para outro lugar de com ércio. A d urad o u ra discrepância entre a geogra­
fia da coerção e a do capital garantiu que as relações sociais organizadas em torno
delas evoluíssem de m aneira distinta.
N o c o n ju n to da E uropa, as alterações no c o n tro le estatal d o c ap ital e da
co erção , e n tre 990 d.C. e o p e río d o atual, se g u ira m duas c u rv as p a ra le la s. A
princípio, durante a época do patrim onialism o, os m onarcas europeus geralm ente
extraíram o capital de que necessitavam , sob a form a d e tributos ou rendas, das terras
e população que se achavam sob o seu controle im ediato - m uitas vezes com lim ites
c o n tra tu a is ríg id o s sobre as q u an tid a d es q u e p o d ia m extorquir. N o tem p o da
corretagem (sobretudo entre 1400 e 1700 ou m ais), passaram a depender fortem ente
de capitalistas form alm ente independentes para os em préstim os, a adm inistração
das em presas produtoras de rendas e a cobrança de im postos. Todavia, por volta do
século XVIII, tev e início o período da n a c io n a liza ç ã o ; m uitos soberanos incor­
poraram o aparelho fiscal diretam ente à estrutura do estado e reduziram de form a
d rástica a particip ação de co ntratados in d ep e n d en te s. O últim o sécu lo m ais ou
m enos, a era d a especialização, introduziu um a separação m ais aguda entre a orga­
nização m ilitar e a fiscal e um crescente e nvolvim ento dos estados na fiscalização
d o capital fixado.
D o lado da coerção, ocorreu um a evolução sem elhante. D urante o período do
patrim onialism o, os m onarcas recrutaram a fo rça arm ada entre aqueles clientes,
vassalos e m ilícias que lhes deviam serviço pessoal - m as no caso tam bém com
lim ites contratuais significativos. N a época da corretagem (de novo sobretudo entre
1400 e 1700) recorreram em crescente m edida às forças m ercenárias que lhes eram
fornecidas pelos contratantes, os quais m antinham considerável liberdade de ação.
Em seguida, durante a nacionalização, os soberanos incorporaram o exército e a
m arin h a d ire ta m e n te à e stru tu ra a d m in istra tiv a d o estad o , re c o rre n d o apenas
eventualm ente a m ercenários estrangeiros e alugando ou recrutando a m aior parte

106
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

de suas tropas entre os seus próprios cidadãos. A partir da m etade do século XIX,
nu m a fase de e s p e c ia liz a ç ã o , os e sta d o s e u ro p e u s c o n so lid a ra m o siste m a d e
soldados cidadãos financiados por vastas burocracias civis, e separaram as forças
de p olícia especializadas no uso da c o erção fo ra da guerra.
P or volta do sé c u lo XIX, a m aioria dos e stados europeus haviam internalizado
tanto a força arm ada qu an to os m ecanism os fiscais; reduziram , assim , as funções
governam entais dos arrem atantes de im postos, dos contratantes m ilitares e de o utros
agentes independentes. Seus governantes, então, continuaram a n egociar com os
capitalistas e outras c lasses o crédito, as rendas, a m ão-de-obra e os m eios de guerra.
A negociação, por seu turno, criou novas exigências ao estado: pensões, pagam entos
aos pobres, educação p ública, planejam ento urbano e m uito m ais. N o processo, os
estados, em vez de am p liar as m áquinas d e guerra, passaram a c ria r organizações
de m últiplas finalidades. Seus esforços p a ra controlar a c oerção e o capital p ro s­
seguiram , m as ju n ta m en te com um a am pla variedade de atividades de regulam en­
tação, com pensação, distribuição e p roteção.
A ntes do sé c u lo XIX, os e sta d o s d ife ria m a c e n tu a d a m e n te no to c a n te à
sincronização e in te n sid a d e relativas dos dois principais p ro cesso s de m udança.
D urante um século ou m ais, o estado neerlandês alugou grandes exércitos e frotas
de navios, adotou p recocem ente a adm inistração estatal das finanças, m as continuou
d evendo aos capitalistas d e A m sterdam e d e o u tras cidades m ercantis. N a verdade,
em alguns m om entos o e stad o neerlandês se decom pôs em suas principais m u n ic i­
palidades. Por outro lado, em Castela, as forças terrestres - m uitas vezes alugadas
fora da E spanha - predom inaram ; lá a m onarquia conquistou o créd ito dos m erc a ­
dores ao convertê-los em arrendatários de im postos e passou a d ep en d e r das rendas
coloniais para reem bolsá-los. Portugal, P o lô n ia, as cidades-estado italianas e os e s­
tados do Sacro Im pério R om ano adotaram outras com binações das duas c u rv as e,
desse m odo, criaram estru tu ras de e stad o claram ente diferentes

A S F IS IO L O G IA S D O S E S T A D O S

P or que os estados europeus seguiram cam inhos tão d iferen tes, em bora q u ase
todos eles tenham cam in h ad o rum o a u m a m aior concentração d e capital e coerção?
D uas razões ocultas explicam a m aior pa rte dessa com plexidade. A prim eira é a
com petição perm anente e agressiva por co m ércio e território e n tre os vários estad o s
d e tam an h o igual, os q u a is fizeram d a g u e rra um a fo rça p ro p u lso ra da h istó ria
européia. A segunda re sid e naquilo que G abriel A rdant denom inou a “ fisiologia”
dos estados: os processos pelos quais adquirem e distribuem os m eios de realizar as

107
CHARLES TILLY

su a s p rin c ip a is a tiv id ad e s. N o q u e se refere à m aio r p a rte d a h istó ria q u e nos


interessa aqui, os m eios im portantes eram sobretudo d e coerção, os recursos p a ra a
g u e rra . O s m eios d e coerção tin h am um a função n a g u e rra (a ta ca n d o os rivais
e x te rn o s), na form ação do estado (atacando os inim igos internos) e na p roteção
(atacando os inim igos dos clientes do estado). Os m eios coercivos tam bém faziam
p a rte d o e x e rc íc io d e e x tra çã o (tira n d o d a p o p u la ç ã o su b m e tid a o s m eio s de
atividade do estado) e de ju stiç a (resolvendo as disputas entre os m em bros dessa
p op ulação). Som ente quando surgiram a produção e a distribuição é q u e os m eios
de coerção deixaram de ser os p rincipais suportes d a atividade do estado - e m esm o
n esse m om ento o grau de coerção variou de estado para estado. N as regiões em
q u e os estados instituíram seus próprios m onopólios sobre a produção de sal, arm as
e artigos de fum o, por exem plo, eles o fizeram caracteristicam ente com a fo rça das
arm as; c o m u m e n te o contrabando se torna c o n tra b an d o quando os g o v e rn an tes
decidem m onopolizar a distribuição da m ercadoria em questão.
O s m eios de c o erção c o m b in a m arm as com h om ens que saib am u sá-las.
(Q uero d izer m esm o hom ens; na ex periência ocidental, as m ulheres tiveram um a
im p o rtâ n c ia su rp re e n d e n te m e n te p e q u e n a na c o n stru ç ã o e uso da o rg a n iz aç ã o
coerciva, fato q u e certam ente ajuda a explicar a sua posição subordinada d entro dos
estados.) O s agentes dos estados têm m ais disponibilidade para concentrar a coerção
e p a ra im pedir q u e o utros o façam , na m edida em que (a) a produção de arm as
im p lica um conhecim ento esotérico, m ateriais raros e capital abundante, (b) poucos
grupos dispõem da capacidade independente de m obilizar grandes quan tid ad es de
hom ens e (c) poucas pessoas conhecem o segredo de c o m binar arm as com hom ens.
C om o d ecurso do tem po, os governantes dos estados europeus aproveitaram -se de
to d as e ssas c o n d iç õ es para in stau ra r m onopólios das m aiores c o n ce n tra ç õ es de
m eios de c oerção d entro de seus territórios: exércitos, forças de p o lícia, arm as,
p risões e tribunais.
O s estados usaram a concentração da coerção de m uitas m aneiras diferentes.
N o s p rim e iro s sé c u lo s após 9 9 0 d .C ., os reis ra ra m e n te d isp u n h a m d e m aio r
c o ntingente de força arm ada sob seu controle do que os principais so b eran o s que
vieram depois. A logística da alim entação e m anutenção de hom ens arm ados tornou
p ro ib itiv am en te c ara a instituição de exércitos p erm an en tes. N o rm a lm en te , um
ex ército real era constituído da p eq u en a força perm anente do rei e das tro p as que
d e ix a v a m te m p o ra ria m e n te a v id a c iv il a c h a m a d o d o s p a rtid á rio s d o rei. A
presença deste reforçava os vínculos pessoais entre os guerreiros: “A reg ra geral
e ra que o rei com andasse p essoalm ente toda cam panha im portante. A id ad e não
im portava; O to III tinha 11 anos q u ando chefiou seu exército contra os saxões (991)
e H e n riq u e IV tin h a 13 q u a n d o fo i à g u e rra c o n tr a os h ú n g a ro s e m 1 0 6 3 ”

108
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

(C ontam ine 1984: 39). O s exércitos reais em m archa viviam , em am pla m edida, da
requisição (que teoricam ente era indenizada pelo tesouro real) e d a pilhagem (que
não o era); na verdade, a distinção entre esses dois eventos perm aneceu am bígua
durante séculos.
As cidades, habitualm ente, organizavam m ilícias de cidadãos que guardavam
os m uros, patrulhavam as estrad as, intervinham em con flito s p úblicos e e v e n ­
tualm ente travavam algum as batalhas contra os inim igos da cidade ou do reino. As
m ilícias m u n ic ip ais e sp a n h o la s foram um a e x ce çã o ; tiveram um a im portância
decisiva n a c o n q u ista d a Ibéria m uçulm ana p elo s reis cristãos, fa to que se re fle te
nos grandes poderes que as m unicipalidades dom inadas pelos nobres adquiriram
depois da R econquista e n a cristalização da d iferença entre caballero (cavaleiro) e
p eón (so ld ad o a pé) num a div isão social d u ra d o u ra e geral (P ow ers 1988). Em
outras regiões, os reis geralm ente tentaram lim itar a força arm ada independente de
q u e d isp u n h a m os c id a d ã o s , p e la m esm a b o a ra z ã o de q u e os c id a d ã o s p ro ­
vavelm ente usariam e ssa fo rça em seu próprio interesse, inclusive para opor-se às
exigências do rei.
Essas várias forças m ilitares enfrentaram m uitos grupos de hom ens arm ados
que não agiam sob o co ntrole direto do rei; e n tre outras, os vassalos de senhores
particulares que com um ente não eram recrutados para o serviço real, os bandidos
(m uitas v ezes soldados desm obilizados que contin u av am a sua pilhagem sem a
aprovação real) e os piratas (que freqüentem ente agiam sob proteção real ou cívica).
As acum ulações dos m eios de coerção eram m odestas m as m uito dissem inadas; a
concentração era pequena. M esm o assim , os governantes estavam em penhando-se
m ais em concentrar a coerção do que haviam feito quaisquer outros.
Os estados acabaram p o r operar m últiplas forças arm adas, todas elas b uro­
cratizadas e m ais ou m enos integradas à adm inistração nacional. M esm o a E spanha,
conhecida pela repetida atribuição de poderes de estado a seus agentes e grandes,
em penbou-se seguidam ente para separar suas forças arm adas de seu am biente civil.
F ilipe II, p o r exem plo, colocou intencionalm ente sob o controle direto do governo
as forças arm adas cujos com andos, durante o rein ad o de C arlos V, seu pai, haviam
sido quase que posses privadas dos grandes. P o r v olta de 1580,

toda a in stitu ição m ilitar foi d e v o lv id a à C oroa e era ad m in istrad a pelos m inistros reais; as
g aleras d a E sp an ha, d e N áp oles e d a Sicília, depois d e u m breve e m a l-sucedido retorno à
co n tratação em 1574-76, reto rnaram à adm inistración, o ap rovisionam ento d as frotas m edi-
terrân icas e das g u arnições d a Á frica do N orte era c o n tro la d o pelo co m issariad o real de Se-
vilha, as in d ú strias d e arm as e o s fabricantes de salitre e stavam sob a e strita supervisão real,
e a m an u fatu ra d e pólvora era um m onopólio do rei.
(T hom pson 1976: 6-7.)

109
CHARLES TILLY

D urante o meio século seguinte, as exigências de financiam ento e adm inis­


tração levaram a E spanha de volta à contratação ex tensiva e ao co ntrole local; não
obstante, as forças arm adas passaram a agir d a í por diante com o ram os distintos e
diferenciados do estado nacional. Com efeito, no século X IX , o ex ército espanhol
adquiriu tal distinção e autonom ia que interveio repetidas vezes na p olítica nacional
com o força isolada (B allbé 1983).
N a E spanha e em outros países, cedo em ergiu um a divisão acentuada entre o
exército e a m arinha, divisão que subsistiu por m uito tem po. Em escala nacional,
só m uito tarde - na m aioria dos países, no século X IX - é que se generalizou a
separação entre o exército (geralm ente esp ecializado em co m b a ter outras forças
arm adas) e as forças de polícia (com um ente especializadas no controle de indivíduos
ou pequenos grupos desarm ados ou providos de arm as leves). M ais ou m enos nessa
época, as acum ulações de força coerciva eram am plas, concentradas e, portanto,
m uito desiguais. Por volta do século XIX, os estados haviam conseguido arm ar-se
de form a im pressionante e quase desarm ar as suas populações civis.
A figura 2.6 esquem atiza a relação entre as cidades e os estados em função
da interação do capital e da coerção. Acima da diagonal, a coerção superou o capital;
a b aix o d e la , o cap ital so b re p u jo u a c o erç ão . A d istin ç ã o a p lic a -se às c id a d es
individuais; portos europeus com o A m sterdam e B arcelona tip icam ente nadaram
em capital em bora dispusessem de aparelhos de coerção relativam ente tênues; por
outro lado, sedes de m o n arq u ias, com o B erlim e M ad rid , a p rese n tara m m aio r
volum e de coerção do que de capital.

Figura 2.6 Cam inhos alternativos de mudança em caso de concentrações de cap ital e de poder co erci­
vo na Europa, 1000-1800.

110
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

A distinção aplica-se tam bém aos am bientes dos estados. A direção g eral da
m udança européia n a passagem do m ilênio sem dúvida elevou a diagonal, ru m o a
concentrações cad a v e z m aiores tanto d e capital quanto d e coerção. N o en tan to ,
e s ta d o s d ife re n te s se g u iram c a m in h o s d ife re n te s na m e sm a d ire ç ã o g e ra l. O
B ra n d en b u rg o -P rú ssia desenvolveu-se num am biente rico d e co erção , p o b re de
capital, e revelou as m arcas de seu am biente inicial m esm o quando estendeu o seu
dom ínio às cidades capitalistas da R enânia. A D inam arca tev e usualm ente m aio res
concentrações de c ap ital à disposição d o que o resto da E scandinávia e in v estiu
m enos esforços na construção do po d er m ilitar.
Os C avaleiros Teutônicos (a ordem do H ospital de Santa M aria em Jerusalém )
adotou um cam inho irregular: de cruzados pirateadores na T erra S anta (portanto,
e n v o lv id o s in te n sa m en te no m undo p irá tic o do com ércio o c eâ n ic o ) no fin a l do
século X II a g ov ernadores de um a gran d e porção da T ransilvânia durante o século
X III, depois a c o n q u ista d o res e c o lo n iz ad o re s da P rússia pagã, onde de a p ro x i­
m adam ente 1300 até o século X V I governaram no estilo dos grandes senhores de
terra. O s C a v a le iro s, em m ais ou m en o s trin ta anos, c ru za ram a lin h a e n tr e a
fo rm ação do e sta d o com grande in v e rsã o de capital e a fo rm aç ão com in te n sa
c o e rç ã o . O s C a v a le ir o s de M a lta (ta m b é m c o n h e c id o s s u c e s s iv a m e n te p o r
C avaleiros H osp italários de São João de Jerusalém e C avaleiros de R odes) tam b ém
ziguezaguearam , m as term inaram n u m a localização m uito diferente:

... u m a ordem re lig io sa n a sc id a na T erra S an ta m ais ou m enos em 1100, m as que se tra n s fo r­


m ou qu ase que im ed iatam en te num a o rd em m ilita r em defesa dos estad o s latinos do O rie n te ,
e em segu ida c o n v erte u -se num a carreira m a rítim a qu ando se retirou d e C hipre (1291) e d e ­
pois d e R odes (13 0 9 ) e fin alm en te foi fo rça d a , em 1530, a d ev o ta r-se in teg ralm en te à su a
in stalação em M alta so b a form a de estado so b eran o sob a su seran ia do Réi d a Sicília.
(F o n ten ay 1988a: 362.)

D evotando-se à pirataria legalizada a p a rtir d e sua base em M alta, os C avaleiros


seguiram um cam inho que investia m ais capital do que os seus antigos v izinhos da
T erra Santa. Pod em os dizer, assim, que o diagram a é um m apa das m últiplas tra je ­
tórias que estados europeus diferentes seguiram em suas diversas interações com
as cidades ex isten tes em seus territórios.
O diagram a coerção-capital in co rp o ra o argum ento q u e delineei no c a p ítu ­
lo I: os g overnantes m ais poderosos e m a lgum a região p a rticu la r estab e le c era m
o s term o s d a g u e rra p a ra todos; o s g o v e rn an tes m enos im p o rta n te s tiv eram de
o p ta r e n tre a c e ita r as e x ig ê n c ia s d o s v iz in h o s p o d e ro so s ou te n ta r e s f o r ç o s
e x c e p c io n a is no se n tid o d e se p re p a ra re m p a ra a g u e rra . A g u e rra e o s p r e ­
p arativ o s d a g u erra levaram os g o v ern an tes a ex trair os m eios d e gu e rra d a q u eles

ui
CHARLES TILLY

q u e m an tin h am os re cu rso s essen ciais - h om ens, arm as, p ro v isõ e s ou din h eiro
p a ra c o m p rá -lo s - e q u e re lu ta v a m em c e d ê -lo s sem fo rte p re ssã o ou c o m ­
p e n sa çã o . D entro dos lim ites estabelecidos p elas exigências e com pensações dos
o u tro s estad o s, a e x tra ç ã o e a luta pelos m eios d e gu e rra c ria ra m as e stru tu ra s
o rg an izacio n ais c en trais dos estados. A o rganização das p rin c ip a is classes sociais
d e n tro do território de um estado, e as suas relações com e ste, afetaram sig n ifi­
c ativ am en te as e stratég ias que os governantes em pregaram p a ra extrair recursos,
a re sistê n c ia que en fre n tara m , a luta d aí resultante, os tipos de organização d u ra ­
d o u ra q u e a ex tração e a luta introduziram e, portan to, a e fic iê n c ia da ex tração
de recursos.
A organização das principais classes sociais, e suas relações com o estado,
variaram co nsideravelm ente das regiões européias que aplicaram intensa coerção
(á re a s d e poucas c id a d e s e p re d o m in ân c ia a g ríc o la , o n d e a c o erç ão direta e ra
d e cisiv a na produção) p a ra aquelas onde houve grande aplicação de capital (áreas
de m uitas cidades e pred o m in ân cia com ercial, onde p revaleciam os m ercados, a
tro ca e a produção para o com ércio). As reivindicações que essas classes principais
fizeram ao estado, e su a influ ên cia sobre ele, variaram correspondentem ente. O
s u c e s s o re la tiv o das d ife re n te s e stra té g ia s e x tra tiv a s, e as e stra té g ia s q u e os
g overnantes aplicaram de fato, variaram portanto de m odo significativo das regiões
que usaram intensa c o erç ão para aquelas de grande inversão de capital.
C o n seq ü en tem en te, as form as o rganizacionais dos e stad o s seguiram tra je ­
tórias claram ente d iferentes nessas partes distintas da E uropa. O tipo de estado que
p re v a le c e u num a é p o c a e p a rte d e te rm in a d as da E u ro p a v a rio u g ra n d em en te .
S om ente no curso do m ilênio é que os estados nacionais exerceram um a superio­
ridade evidente sobre as cidades-estado, os im périos e outras fo rm as com uns na E u ­
ropa. N ão obstante, a e sc a la crescente da g u e rra e o en tre la ç am en to do sistem a
europeu de estado através de relações com erciais, m ilitares e d iplom áticas acabaram
p o r c o n ferir, na g u e rra , u m a vantagem à q u eles e stad o s q u e p odiam d isp o r de
grandes exércitos p erm anentes; os estados que tinham acesso a um a com binação
de g ra n d es p opulações rurais, capitalistas e econom ias relativ am en te co m e rcia ­
lizadas venceram as guerras. E stabeleceram os term os da guerra, e a sua form a de
e sta d o passou a p re d o m in a r em toda a E u ro p a. N o fin al, o s e stad o s e u ro p e u s
convergiram nesta form a: o estado nacional.
D entro de cada trajetó ria indicada no diagram a capital-coerção, os prim eiros
p a sso s determ inaram os ú ltim os. E m bora as classes d irig e n tes urbanas tenham
d e se m p e n h ad o funções im portantes na c o n so lid a çã o inicial d e um estado d ad o
(com o aconteceu na H olanda), m uito depois o estado im prim iu a sua m arca na form a
das instituições burguesas. E m bora um estado se tenha orig in ad o da conquista de

112
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

p opulações am plam ente rurais (com o nos sucessivos im périos russos), c o n tin u o u a
o fe re c e r pouca p e rsp ec tiv a àquelas cid ad es que m edraram em seu m eio; n e ssa s
re g iõ e s, g ra n d es n o b re z a s se d e se n v o lv e ra m q u ando os m o n a rc a s g a ra n tira m
p rivilégios fiscais e substanciais poderes locais aos proprietários de terras arm ados,
em troca de seu serv iço m ilitar perm anente.

113

Vous aimerez peut-être aussi