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1.a. O livro III da República de Platão apresenta a primeira tentativa de uma distinção das
artes poéticas, com base na modalidade da narração (diegesis)1. Quando o próprio poeta se oculta,
deixando que fale somente a voz dos próprios personagens, estamos diante de uma pura imitação
(mimesis) que reduz ao máximo o ato de narrar. Por outro lado, há a narrativa simples (ou “pura”)
quando o poeta fala por si próprio, diz-nos Platão, na arte dos ditirambos.
No poema em questão, o que vemos é uma mescla dessas duas abordagens – o poeta se
serve da narrativa para contar os acontecimentos ( 2), mas também dá voz aos heróis (3), combinação
que coloca o poema dentro da categoria mista. Esta, segundo Platão:
“[...] que é constituída por ambas, que se usa na composição da epopeia e de muitos outros
gêneros”. (PLATÃO, 2000, p. 85).
Ainda segundo Aristóteles, o meio da epopeia é servir-se “da palavra simples e nua dos
versos, quer mesclando metros diferentes, quer atendo-se a um só tipo, como tem feito até o
presente” (2013, p.22). Assim, ao analisarmos a estrutura em versos do poema em questão, levando
em consideração: objetos imitados (heróis), temática (cultural, envolvendo valores e referência a
divindades) e tipo de narração (que combina diegesis e mimesis), podemos seguramente classificar
o texto como epopeia. Ainda na Poética de Aristóteles, esse modo narrativo misto permite à epopeia
apresentar não apenas a interação dos personagens, mas contar também os acontecimentos que se
desenrolam, permitindo ao poeta narrar panoramicamente as ocorrências paralelas à cena(6).
1.b. É evidente neste segundo texto que o diálogo se desenrola sem a intervenção de um
narrador. Os personagens imitados interagem diretamente entre si, sem que um poeta externo conte
1 Cf. A República, 394c.
2 (“[...] O povo morria”)
3 (“Velho que nunca te venha a encontrar junto às céleres naves [...]”)
4 Cf. a este propósito o Capítulo II da Poética: “Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estas não
podem ser senão boas ou ruins (pois os caracteres se dispõem quase nestas duas categorias apenas, diferindo só pela
prática do vício ou da virtude), daí resulta que as personagens são representadas melhores, piores ou iguais a todos
nós.
5 (“[...] por ter o Atrida Agamémnon a Crises primeiro ultrajado”)
6 O Capítulo V da Poética de Aristóteles trata da comparação da tragédia com a epopeia.
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acontecimentos fora da cena. Retomando as categorias definidas por Platão (2000), estamos diante
de um texto em que o poeta em si desaparece, deixando que os imitados, com voz própria, falem
por si mesmos(7). É o tipo de poesia que:
“[...] é toda de imitação, como tu dizes que é a tragédia e a comédia”. (PLATÃO, 2000, p.
85).
1.c. No sistema exposto na República, não há ainda categoria para gêneros de poesia escrita,
até porque Platão tratou apenas das modalidades da palavra dita(9). Todavia, alguns elementos
permitem-nos situar o texto em questão fora das categorias anteriores – por exemplo, não há
mimesis, diálogo, ou encenação, o que já o põe à parte da poesia épica e dramática. Além disso,
estamos diante do que Platão chamaria de uma “narração pelo próprio poeta” (394c), prática em sua
época atribuída à poesia dos ditirambos:
“[…] outra, de narração pelo próprio poeta – é nos ditirambos que pode encontrar-se de
preferência”. (PLATÃO, 2000. p. 85).
Ora, essa poesia, nem épica (mista) e nem dramática (mimética), em que irrompe a voz de
um “eu poético” que movimenta afetos e se expressa pessoalmente – onde o único a falar é o
próprio poeta – Platão atribui à arte dos ditirambos. Portanto, em seu tempo, foi uma subjetividade
muito mais associada ao canto e à música do que propriamente ao ato de narrar. É a mesma voz
pessoal e subjetiva que encontramos no epigrama, apesar de diferirem quanto à apresentação (já que
a poesia ditirâmbica se apresentava como uma experiência essencialmente sonora, musical). Ainda
que o epigrama não aparente ligação direta com a música, foi essa poesia musical e sentimental de
expressão pessoal que inseriu a “voz de um Eu” como recurso poético na tradição ocidental, e os
romanos parecem ter herdado do lirismo essa subjetividade de primeira voz.
2.a. A personagem poética que fala é a de um homem apaixonado( 10). que se dirige a uma
mulher, a qual o corresponde(11).. Este homem é comum, pois não há menções a um caráter de
grandeza heroica. Clamando pela sua amada, ele busca convencê-la a se entregar a esta paixão.
Quanto ao fato de ser uma mulher encontramos: “Ela abriu meus olhos cerrados no sono [...]” e
“vivo dela serei: morto dela serei […]”. O trecho que mostra que o romance é correspondido é claro
em: “Quantos abraços trocamos variados! Quantos beijos meus habitaram teus lábios!”.
2.b. O homem apaixonado dirige-se a uma mulher amada( 12). que corresponde ao seu afeto.
Trata-se de um homem e de uma mulher, uma vez que, no seguinte trecho, é dito: “macho e fêmea
em total união”. A fim de saber se se trata de uma persona masculina falando, podemos ler o
seguinte excerto: “antes que eu possa transferir meus amores a outro amor, vivo dela serei; morto
serei dela”. Temos, com isso, um homem (“morto”) entoando um discurso amoroso a sua amada
(“dela”), além da fórmula-comum da promessa.
É recorrente na poesia lírica remeter-se à Vênus, Afrodite (sua versão romana), às Musas e
aos Cupidos. Diz-nos CARA em A Poesia Lírica (1989) que os homens começam nesse momento a
“abandonar os deuses para aspirar ao desfrute de prazeres terrenos” (p. 17). Citando Mimnermo:
“sem a loira Afrodite não há vida nem prazer! Preferia estar morto se tivesse de não gozar dela
mais” (CARA, 1989, p.17). Já na Antologia, temos em Safo a “Ode à Afrodite” e o poema 13 de
Catulo, que também faz referência à Vênus e aos Cupidos (“Vênus e os Cupidos deram [...]”).
O poeta apaixonado convida a mulher amada para o desfrute das paixões da carne. Essa
fórmula também aparece, por exemplo, no início do Poema 5 de Catulo: “Vamos viver, minha
Lésbia, e amar”. Atrelado ao convite é a ideia do exagero e urgência desta entrega:
10 “Ó minha felicidade! Ó minha cândida noite!”
11 “Assim para nós, que agora amantes aspiramos um grande amor”
12 “Ela abriu meus olhos cerrados no sono / Com seus beijos […]”
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“Se deres todos os beijos, poucos haverás dado”. (Elegia 2, 15).
Entre os topoi que encontramos no poema, outro que encontra paralelos na Antologia é a
necessidade de “colher o dia”:
“Tu, por tua vez, enquanto é dia, não abandones os desfrutes da vida” (Elegia 2, 15).
“Talvez o dia de amanhã encerre nossos fados” (Elegia 2, 15).
Essa mesma ideia, da finitude da vida humana e da necessidade de usufruir com urgência
enquanto houver dia aparece no Ode 1,11 de Horácio (“colhe o dia e pouco crê no futuro”) e ainda
no poema 5 de Catulo (“quando breve morrer a nossa luz, perpétua noite dormiremos, só”).
2.d. Em primeiro lugar, é importante mencionar que esse poema se configura, na divisão
platônica, como uma narrativa simples ou modo exegemático (o próprio poeta fala, não surgindo
novas vozes); e, como Aguiar e Silva (2000) explica, trata-se de uma modalidade que se inclui na
lírica – embora Platão não considerasse a lírica. Esta modalidade simples, a qual compete ao poema,
mostra, diz-nos Cara, uma das características distintivas do modo lírico: o poema em primeira
pessoa. Esta característica já desponta desde a transformação histórica da execução do papel da
poesia na Grécia Antiga: antes, submergia das motivações de cunho coletivo, isto é, identitário e
multifacetado quanto às necessidades políticas e culturais, desconsiderando certos elementos de
foro íntimo e particularidade do indivíduo enquanto entidade subjetiva.
“o verdadeiro amor não conhece limite algum […] se todos desejassem levar essa vida e
descansar seus membros apoiados com muito vinho, não haveria a espada cruel tampouco
naus bélicas” (Elegia 2, 15).
A compreensão do amor, neste sentido, seria equivalente a um vício e não uma mediania
(atitude que advém da vida virtuosa e, por definição, sábia quanto ao certo e o erro, bem e mal).
Para Carlos Reis, um componente lírico é, dentre outras coisas, a junção entre a subjetividade, as
imagens que disso (a expressão dessa subjetividade) resultam e a interiorização do sujeito em
relação à realidade que o cerca. Neste poema, notamos que, confrontando a supremacia do ideal
heroico, a persona poética confabula a importância do amor enquanto paixão vívida e até natural,
emergindo até mesmo das naturezas mais simples(13). Esta expressão da subjetividade que, com o
13 “Que as pombas unidas te sirvam de exemplo no amor”
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auxílio das figuras, mostra a interioridade desse sujeito que dialoga com o tema universal do amor,
mas com o matiz e marca de sua individualidade: um sujeito poético. Esta marca traduz, em grande
parte, “a propensão eminentemente egocêntrica própria do sujeito poético” (REIS, 2003, p. 314),
propensão esta que observamos no poema:
“Se ela desejar me conceder consigo noites tais, longo me será um ano de vida; se ela me
der muitas coisas, vou me tornar imortal nelas: numa noite qualquer um pode ser deus.”
2.e. A subjetividade neste poema se mostra através da expressão dos desejos pessoais e da
concatenação do sujeito com sua finitude. Através da abordagem do amor, mas de modo tangencial
ao seu próprio ser: a passividade do amor enquanto sinônimo de paixão, ou seja, fora de
redemoinhos ou considerações mais robustas sobre, restringindo-se à entrega ao mesmo, entrega
esta que o eleva para além das circunscrições do que hoje ele é, tornando-se apoteótica( 14). Este
sujeito tece elogios ao amor e, situando-o fortemente no real, mostra-nos que este é, sobretudo, um
substituto para a guerra, revelando aqui uma expressão individual que se contrapõe à moral
aristocrática(15).
Esta subjetividade remete à relação deste sujeito com a sua cultura, uma vez que, em sua
expressão individual, dirige-se sob o formato apologético a um sentimento palpável, tomando-o
como salvação contra a moral coletiva e vigente. Ele se opõe a esses ideais, mostrando que a
excelência do bem viver surge dessa divinização do amor, cuja elevação já se mostra através da
menção à Vênus(16). É uma subjetividade que emana de um sujeito poético que não
necessariamente corresponde ao sujeito empírico, já que esses objetos e relações possuem realidade
interior, dentro do próprio universo poético:
“Essa voz será entendida, então, como a de um sujeito poético inerente ao texto; enquanto
tal, ele participa do mesmo estatuto de existência de objectos, situações e emoções […] que
no texto se encontram representadas, existência essa que não tem que ser empiricamente
atestada.” (REIS, 2003, p. 316)
14 “Erra quem procura o fim de um louco amor [...] se ela me der muitas coisas, vou me tornar imortal nelas: numa
noite qualquer um pode ser deus”
15 “Se todos desejassem levar essa vida [...] não haveria espada a cruel tampouco naus bélicas”
16 “Não apraz a Vênus destruir no movimento cego”
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O sujeito do poema de Propércio constrói uma atmosfera poética muito distinta e particular
– uma experiência amorosa circunscrita em suas próprias impressões, ímpetos e emoções. Apesar
disso, a experiência não se aparta do mundo, visto que tenta se relacionar com outra subjetividade,
vaga no poema, mas que mostra a tessitura de sua relação( 17). Este sujeito, em sua construção de
símbolos e imagens, traz a divinização do seu objeto de louvor – o amor – ao mencionar Vênus e,
simultaneamente, a pungência do envolvimento carnal, mostrando a crucialidade da presença desse
ente amado(18). Depois, totalizando e tornando mais tátil a compreensão desse amor carnal e
passional (e não filosófico e ideal), menciona a união biológica dos animais( 19). Posteriormente,
expandindo ainda mais seu discurso, o sujeito poético traceja certa divinização não só da paixão;
mas, ainda, da relação entre os sujeitos que a ela se entregam em sua integralidade( 20). A
efemeridade do momento, em sua completa fruição, estende-se para além de seu lócus passageiro.
Ocorrendo isso, a própria compreensão da vida e da morte adquire nova roupagem, posto que,
amando, haverá um pertencimento, quer seja em vida, quer seja em morte( 21). Visualizamos, assim,
certa escalaridade de entendimento nesta atmosfera amorosa, a qual parte desta subjetividade
particular e, para abarcar a reciprocidade de um Outro, trafega em cada elemento a partir do qual o
objeto de anseio se torna passível de concretização conjunta. Este universo, partindo de uma
primeira pessoa, alça, no fim, para a pluralização da entidade subjetiva (“assim para nós […]”). O
percurso traçado neste parágrafo nos mostra um enraizamento numa articulação temática que
permite a fruição poética por uma experienciação envolvente e sedutora das emoções, como afirma
Carlos Reis (p.320), e que conduz de maneira persuasiva a um conhecimento intuitivo. O
conhecimento do amor, mesmo sob os moldes míticos e emocionais, convida à fruição necessária
para vivê-lo.
17 “Tu, por tua vez, enquanto é dia, não abandones os desfrutes da vida!”
18 “Há pouco, pois, lutou comigo com seios desnudos. Por vezes a túnica dissimulada fez a demora!”
19 “Que as pombas unidas te sirvam de exemplo no amor, macho e fêmea em total união”
20 “Se ela me der muitas coisas, vou me tornar imortal nelas”
21 “vivo dela serei; morto serei dela”
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALONSO, André. Bases da cultura ocidental. v.1. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2014.
CARA, Salete de Almeida. A Poesia Lírica. São Paulo: Editora Ática, 1989.
REIS, Carlos. O conhecimento da Literatura: introdução aos estudos literários. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003.
AGUIAR E SILVA, Vítor Emanuel de. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 2000.
ARISTÓTELES. Poética e Tópicos I, II, III e IV. São Paulo: Hunter Books, 2013.