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OVO DE MADEIRA

Havia na minha infância alguns ovos bem intrigantes. Um deles era o ovo do coelhinho, uma
aberração intrínseca. Outro era o tal do ovo indez. Jamais tive certeza da grafia correta desta
palavra, até por conta das diversas pronúncias campeiras. Só eliminei a dúvida segundos atrás.
Trata-se de um ovo falso que se deixa no ninho de uma ave para que ela, ao imitar uma suposta
colega, discipline a postura e trate de por seus ovos sempre no mesmo lugar.
O outro ovo era o que minha mãe tinha na sua cesta de costura. Era de madeira. Acho que devo
explicar do que se trata, porque a maioria das senhoras de hoje não tem sequer uma cesta de
costura, o que dirá um ovo de madeira. Esta bela peça, torneada, era colocada dentro de meias,
por exemplo, para cosê-las. Num tempo em que se usava galochas e se remendava as meias.
Posso me enganar, mas penso que naquela época só finórios não usavam meias remendadas.
O que eram galochas? Bem, remeto os que não souberem ao dicionário, de preferência antigo.
Lembro também que, décadas atrás, quando alguém dizia uma asneira, os que estavam à volta
troçavam do infeliz e resumiam os açoites verbais numa frase sintética: fulano botou um ovo! Por
que será que se dizia isto? Seria porque as galinhas são reconhecidamente pouco dotadas?
Havia também um ovo humano: o ovo de Colombo. Céus, o que teria Cristóvão Colombo a ver
com um ovo? Reza a lenda que num banquete para celebrar a descoberta da América
perguntaram a ele se qualquer outro poderia ter logrado o mesmo feito se ele não o houvesse
conseguido. Teria Colombo então desafiado a todos para que colocassem em pé um ovo de
galinha. Ninguém conseguiu, naturalmente. Sem maiores cerimônias, Colombo bateu levemente
uma das extremidades do ovo para fraturá-lo ligeiramente. Ato contínuo o colocou em pé.
Acusado, sob risonhos protestos, de fraude, porque deste jeito qualquer um conseguiria, teria
apenas retorquido que tudo parece fácil depois de inventado. Brincadeira à parte, o mais curioso
de tudo é que Colombo chegou à América pensando que havia alcançado a Índia! Na linguagem
da minha infância, portanto, Colombo botou um ovo!
Criado no tempo do ovo de madeira, sinto que algo saiu errado na ciclópica transformação de
nosso tempo. Mas sempre tive, mercê de minhas limitações, dificuldade em teorizar a respeito.
Por isto gostaria de ir um pouco adiante nesta conversa. E de falar de um último ovo. Que foi
chocado no início do século XX e gerou larga descendência: o ovo da psicanálise. É uma história
longa e bem conhecida. Não por mim, leigo no assunto. Por isto peço ajuda a Viktor Frankl,
pensador e terapeuta vienense. Nunca desprezando as buscas e pulsões humanas identificadas
antes dele - o “princípio do prazer” de Freud e a “vontade de poder” de Adler,- Frankl elaborou
nova doutrina psicológica e psicoterápica. Segundo ele, suplantando a visão mecanicista, o
homem também tem “vontade de sentido”, sem a qual se esborracha num buraco chamado vazio
existencial. Reproduzo abaixo pequeno trecho de seu livro “Psicoterapia e sentido da vida”:

“Refiro-me àquele sentimento de perda do sentido, que pelo visto se apodera cada vez mais do
homem de hoje, e que defini como vácuo existencial. Atualmente, o homem não sofre apenas de
um depauperamento dos instintos, mas de uma perda da tradição. Doravante, nem os instintos
lhe dizem o que tem que fazer, nem a tradição lhe diz o que deve fazer. Em breve deixará de
saber o que quer, para começar a imitar os outros pura e simplesmente. E, assim, cairá no
conformismo.”

Linhas depois, Frankl me ajudou a penetrar nas entranhas do drama maior contemporâneo:

“E, já que Boss mencionou o tédio como a neurose do futuro, estou em acrescentar que ‘o futuro
já começou’. Mais ainda: foi já profetizado no século passado por Schopenhauer, que via o
homem destinado a oscilar para sempre entre os dois extremos da necessidade e do tédio. Em
todo caso, nós, os psiquiatras, observamos que o extremo do tédio dá mais que fazer.”

Em tempo: Frankl foi prisioneiro em Auschwitz, escreveu “A busca do homem por sentido” em
1946 e morreu em 1997. Afirmava que se deve a Freud a descoberta de toda uma dimensão do
ser psíquico, mas que ele, Freud, errou, como Colombo, ao não entender toda a profundidade do
conhecimento de si mesmo. Voltemos ao ovo de madeira. Acho que seria bom, volta e meia,
usarmos alguma peça remendada, íntima que fosse. Estas peças nos ajudariam a não esquecer
o que de fato somos. No recolhimento, ou em público, nos sussurrariam que não somos coisa
alguma. Esta é, por incrível que pareça, a pedra fundamental para que tudo ganhe sentido.

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