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A HISTóRIA
eleático, mas com estes conceitos nunca poderemos es- faz Ortega y Gasset, na história como sistema. Um
perar compreender o caráter distintivo do homem. O sistema pressupõe sempre, senão uma natureza idênti-
eleatismo era a intelectualização radical da vida huma- ca, pelo menos uma idêntica estrutura. Na verdade,
na. Já é tempo de rompermos este círculo mágico. "Pa- essa identidade estrutural - identidade de forma, não
ra falarmos no ser do homem precisamos elaborar pri- de matéria - sempre foi posta em relevo pelos grandes
meiro um conceito não eleático do ser, como outros historiadores. Eles nos disseram que o homem tem uma
elaboraram uma geometria não euclidiana. Chegou o história porque tem uma natureza. Tal foi o julga-
momento em que a semente lançada por Heráclito mento dos historiadores da Renascença, como, por
produza sua farta colheita." Tendo aprendido a imu- exemplo, Maquiavel, e muitos outros modernos sus-
nizar-nos contra o intelectualismo, temos agora cons- tentaram o mesmo ponto de vista. Debaixo do fluxo
ciência de uma liberação do naturalismo. "O homem temporal e atrás do polimorfismo da vida humana,
não tem natureza, o que ele tem é. . . história. 1 J7
esperaram descobrir os traços constantes da natureza
O conflito entre o ser e o vir-a-ser, que no Tee- humana. Em seus Pensamentos Sobre a História do
teto de Pia tão se descreve como o tema fundamental Mundo, Jakob Burckhardt definiu a tarefa do histo-
do pensamento filosófico grego, não estará, entretan- riador como uma tentativa para descobrir os elementos
to, resolvido se passarmos do mundo da natureza para constantes, recorrentes, típicos, porque elementos co-
o da história. Desde a Crítica da Razão Pura de Kant mo estes são capazes de evocar um eco ressoante em
concebemos o dualismo entre o ser e o vir-a-ser mais nosso intelecto e em nossos sentimentos. 1
como um dualismo lógico que como metafísico. Já O que denominamos "consciência histórica" é um
não falamos de um mundo de mudança absoluta em produto muito serôdio da 'civilização humana; não a
oposição a um outro de absoluto repouso. Não consi- encontramos antes da época dos grandes historiadores \,
deramos a substância e a mudança como reinos dife- gregos. E os próprios pensadores gregos ainda foram
rentes do ser mas como categorias - como condições incapazes de oferecer uma análise filosófica da forma
e pressuposições do nosso conhecimento empírico. Es- específica do pensamento histórico. Essa análise só
tas categorias são princípios universais; não se res- apareceu no século XVIII. O conceito da história
tringem a objetos especiais do conhecimento. Deve- atinge a maturidade, pela primeira vez, na obra de
mos, portanto, esperar encontrá-Ias em todas as for- Vico e Herder. Quando o homem começou a ter co-
mas da experiência humana. Na realidade, nem o nhecimento do problema do tempo, quando já não se
mundo da história pode ser compreendido e interpre- confinava no círculo estreito de seus desejos e necessi-
tado em termos de simples mudança. Este mundo in- dades imediatas, quando entrou a indagar da origem
clui também um elemento substancial, um elemento das coisas, só encontrou uma origem mítica, não his-
de ser - que não deve ser definido, porém, no mes- tórica. A fim de compreender o mundo - tanto fí-
mo sentido em que se define no mundo físico. Sem sico como social - precisou projetá-lo sobre o passa-
este elemento dificilmente poderíamos falar, como o
1. Jakob Burckhardt, Weltgeschichtliche Betrachtungen, ed. por
1. Ortega y Gasset, "A História como Sistema", em Filosofia e Jakob Oeri (Berlim e stuttgart, 1905),p. 4. Traduzido para o inglês por
História, Ensaios Apresentados a Ernest Cassirer, pp. 293, 294, 300, James Hastings Nichols, Force and Freedom; Rejlections on History
305, 313.
(Nova Iorque, Pantheon Books, 1943), p. 82.
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Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 275
nou uma nova visão da cultura grega - na vida e na sempre uma unidade interior e uma homogeneidade
poesia grega. 1 lógica. Os pensamento histórico e científico não se dis-
Tudo isto parece óbvio e inequívoco. Mas o que tinguem pela forma lógica, mas por seus objetivos e
é curioso, foi precisamente esta característica funda- por seu assunto. Se desejássemos descrever esta dis-
mental do conhecimento histórico que foi inteiramen- tinção não nos bastaria dizer que o cientista se ocupa
te descuidada pela maioria de nossas discussões mo- com objetos presentes ao passo que o historiador com
dernas do método e da verdade histórica. A maioria os passados. Uma distinção desta natureza seria ilu-
dos autores procurava a diferença entre história e sória. Como o historiador, o cientista pode investigar
ciência na lógica, não no objeto da história. Deram-se perfeitamente a origem remota das coisas. Semelhan-
ao imenso trabalho de construir uma nova lógica da te tentativa, por exemplo, foi feita por Kant quando,
história. Mas todas estas tentativas' estavam destina- em 1755, desenvolveu uma teoria astronômica que
das ao malogro. Pois a lógica, afinal de contas, é uma também se tornou uma história universal do mundo
coisa muito simples e uniforme. É una, porque a ver- material; aplicou o novo método da física, o método
dade é una. Em sua busca da verdade o historiador newtoniano, à solução de um problema histórico. Ao
está sujeito às mesmas regras formais que o cientista. fazê-lo, desenvolveu a hipótese da nebulosa, por meio
Em seus modos de raciocinar e argumentar, em suas da qual tentou descrever a evolução da atual ordem
inferências indutivas, em sua investigação das causas, cósmica a partir de um estado anterior da matéria, in-
obedece às mesmas regras gerais de pensamento a que diferenciado e sem organização. Tratava-se de um
obedece o físico ou o biologista. Enquanto nos refe- problema de história natural, mas não de história no
rirmos a estas atividades teóricas fundamentais do sentido específico do termo. A história não pretende
espírito humano não poderemos fazer discriminação descobrir um estado anterior do mundo físico, mas
entre os diferentes campos do conhecimento. No que um estádio anterior da vida e da cultura humanas.
tange a este problema será mister endossarmos as pa- Na solução deste problema pode fazer uso de métodos
lavras de Descartes científicos, mas não pode restringir-se aos dados obte-
níveis por estes métodos. Nenhum objeto está isento
As ciências consideradas em conjunto são idênticas à sabedoria
humana, que é sempre una e sempre a mesma, ainda que apli- das leis da natureza. Os objetos históricos não pos-
cada a diferentes assuntos, e não sofre maior diferenciação em suem realidade separada, com eloqüência própria; es-
decorrência deles do que a que experimenta a luz do sol em
conseqüência da variedade das coisas que ilumina. 2 tão incorporados em objetos físicos. Mas, apesar desta
incorporação, pertencem, por assim dizer, a uma di-
Por mais heterogêneos que possam ser os obje- mensão mais elevada. O que denominamos sentido
tos do conhecimento humano, suas formas revelam histórico não modifica a forma das coisas, nem detec-
ta nelas uma nova qualidade, mas empresta a elas e
1. Sobre pormenores deste descobrimento, veja Gustavo Lefebre, aos acontecimentos nova profundidade. Quando o
Fragments d'un manuson: de Ménandre, découverts et pUbliés (Le Cai-
re, Impression de l'Institut Françaís d'Archéologie, 1907). cientista deseja retroceder ao passado não' emprega
2. Descartes, Regulae ad directionem ingenii, I, "Oeuvres", ed. conceitos ou categorias de suas observações do pre-
Charles Adam e Paul Tannery (Paris, 1897), X, 360. Traduzido para o
inglês por Elizabeth S. Haldane e G. R. T. Ross, "The Philosophical sente. Liga o presente ao passado seguindo, retrospec-
Works or Descartés" (Cambridge University Press, 1911), I, 1. tivamente, a cadeia de causas e efeitos. Estuda no
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presente os vestígios materiais deixados pelo passado. este material não é fato petrificado, mas forma viva.
Tal é, por exemplo, o método da geologia ou da pa- A história é a tentativa de fundir todas essas disjecta
leontologia. A história também tem de começar com membra, os membros esparsos do passado, sintetizá-
estes vestígios, uma vez que, sem eles, não poderia -los e modelá-los de novo.
dar um só passo. Mas esta é apenas uma primeira ta- Entre os modernos fundadores da filosofia da his-
refa preliminar. A esta reconstrução real, empírica, a tória, Herder possuía a visão mais clara deste lado
história acrescenta outra simbólica. O historiador do processo histórico. Suas obras não nos oferecem
precisa aprender a ler e interpretar seus documentos apenas uma recordação mas também uma ressurrei-
e monumentos, não só como restos mortos do passa- ção do passado; não era um historiador propriamente
do, mas também como suas mensagens vivas, que se dito, não nos deixou nenhuma grande obra histórica,
dirigem a nós em sua própria linguagem. ,O conteúdo e nem mesmo o que realizou no campo filosófico pode
simbólico destas mensagens, entretanto, não é imedia- comparar-se com a obra de Hegel. Entretanto, foi
tamente observável. Cabe ao lingüista, ao filólogo e o pioneiro de um novo ideal de verdade histórica. Sem
ao historiador fazê-Ias falar e fazer-nos compreen- ele não teria sido possível a obra de Ranke nem a
der essa linguagem. A distinção fundamental entre de Hegel. Pois ele possuía o grande poder pessoal de
as obras do historiador e do geólogo ou paleontólogo revivificar o passado, de emprestar eloqüência a todos
não consiste na estrutura lógica do pensamento his- os fragmentos e remanescentes da vida moral, reli-
tórico, mas nessa tarefa especial, nessa missão especí- giosa e cultural do homem. Foi este aspecto da obra
fica. Se o historiador não conseguir decifrar a lingua- de Herder que despertou o entusiasmo de Goethe.
gem simbólica de seus monumentos, a história conti- Como escreveu em uma de suas cartas, não encontrou
nuará sendo para ele um livro fechado. Em certo nas descrições históricas de Herder apenas as "cascas,
sentido, o historiador é muito mais lingüista que cien- e conchas dos seres humanos". O que excitava sua
tista. Mas não estuda apenas as línguas faladas e es- profunda admiração era a "maneira de varrer" de
critas da humanidade; procura penetrar no sentido de Herder - "não apenas extraindo ouro do entulho
todos os idiomas simbólicos. Não encontra seus textos mas também regenerando este entulho para conver-
somente em livros, anais ou memórias. Precisa ler tê-Io em uma planta viva". 1
hieróglifos ou inscrições cuneiformes, olhar para as Esta "palíngenesía", este renascimento do passa-
cores de uma tela, para estátuas de mármore ou de do, assinala e distingue o grande historiador. Friedrich
bronze, para catedrais ou templos, para moedas ou Schlegel chamava ao historiador einen rnckwarts ge-
gemas. Mas não considera todas estas coisas simples- kehrten Propheten, um profeta retrospectivo. 2 Existe
mente com o espírito de um antiquário, que deseja também uma profecia do passado, uma revelação da
colecionar e preservar os tesouros dos velhos tempos; sua vida oculta. A história não prediz os acontecimen-
o que procura é antes a materialização do espírito de tos futuros; só interpreta o passado. Mas a vida huma-
uma era passada. Detecta o mesmo espírito em leis 1. "Deine Art zufegen - und nicht etwa aus dem Kehricht Gold
e estatutos, em cartas e declarações de direitos, em zu síeben, sondem den Kehricht zur lebendigen Pflanze~,umzupalin-
genesieren, legt mich immer auf die Knie meínes Herzens.] Goethe an
instituições sociais e constituições políticas; em ritos Herder, maio de 1775, Brieje (ed. de Weimar), II, 262.
e cerimônias religiosas. Para o verdadeiro historiador 2. "Athenâumsrragmente", 80, op. cit., II, 215.
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na é um organismo em que todos os elementos se im- tura moderna, Nietzsche lançou um repto ao chama-
plicam e explicam entre si. Conseqüentemente, uma do "senso histórico" de nossos tempos. Procurou pro-
nova compreensão do passado nos dá, ao mesmo tem- var que este senso, longe de ser um mérito e um pri-
po, uma nova perspectiva do futuro, que, por sua vez, vilégio de nossa vida cultural, é o seu perigo intrín-
se transforma num impulso para a vida intelectual e seco. Era a doença que sofríamos. A história só tem
social. Para esta dupla visão do mundo em perspecti- sentido como serva da vida e da ação. Se a serva
va e em retrospecto, o historiador precisa escolher seu usurpa o poder, e fica no lugar do senhor, obstrui as
ponto de partida. Não pode encontrá-lo senão em seu energias da vida. Por excesso de história nossa vida
próprio tempo, nem pode ir além das condições de se atrofiou e degenerou. A história se opõe ao vigo-
sua experiência presente. O conhecimento histórico roso impulso para novos feitos e paralisa o agente.
é a resposta a perguntas definidas, que tem de ser Pois quase todos nós só podemos realizar quando es-
.dada pelo passado; mas as próprias perguntas são co- quecemos. O senso histórico irrestrito, levado ao seu
locadas e ditadas pelo presente - por nossos interes- extremo lógico, destrói o futuro. 1 Mas este julgamen-
ses intelectuais presentes e por nossas necessidades to depende da discriminação artificial de Nietzsche
morais e sociais presentes. entre a vida da ação e a vida do pensamento. Quando
Esta conexão entre o presente e o passado é ine- levou a cabo seu ataque, Nietzsche era ainda adepto
gável; dela podemos tirar conclusões muito diferentes e discípulo de Schopenhauer. Concebia a vida como
no que concerne à certeza e ao valor do conhecimento manifestação de uma vontade cega. A cegueira pas-
histórico. Na filosofia contemporânea Croce é o cam- sou a ser a própria condição de Nietzsche para a vi-
peão do mais radical "historicismo". Para ele, a his- da realmente ativa; o pensamento e a consciência opu-
tória não é apenas um ramo especial da realidade, nham-se à vitalidade. Se rejeitarmos esta pressupo-
mas a realidade inteira. Sua tese de que toda histó- sição, as conseqüências de Nietzsche se tornam insus-
ria é história contemporânea conduz, portanto, a uma tentáveis. Está visto que a nossa consciência do pas-
completa identificação da filosofia com a história. sado não deveria enfraquecer nem invalidar nossas
Acima e além do reino humano da história não existe forças ativas. r Empregada de maneira correta, nos
outro reino do ser, nenhuma outra matéria de pen- proporciona um exame mais livre do presente e revi-
samento filosófico. 1 A inferência oposta foi deduzida gora nossa responsabilidade em relação ao futuro. O
por Nietzsche. Ele também insistia em que "só pode- homem não pode modelar a forma do futuro sem ter
mos explicar o passado pelo que é mais elevado no consciência das condições presentes e das limitações
presente". Mas esta asserção só lhe serviu de ponto de seu passado. Como Leibniz costumava dizer:
de partida para um violento ataque ao valor da his- on recêde pour mieux sauter, recua-se para saltar'
tória. Em seus "Pensamentos Extemporâneos", com mais alto. Heráclito inventou para o mundo físico
os quais encetou sua obra de filósofo e crítico da cul- a máxima oõo~ IXVW XGt'tW tJ.L'Y), o caminho para cima e
1. Sobre esse problema veja Guido Calogero, "Sobre a Chamada 1. Nietzsche, Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Le-
Identidade da História com a Filosofia", em Filosofia e História, En- ben, em "Unzeit gemâsse Betrachtungen" (1874), Pt. lII. Traduzido pa-
saws Apresentados a Ernst Cassirer, pp. 35-52. ra o inglês por Oscar Levy, VoI. lI.
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o caminho para baixo são uma mesma coisa. 1 Em tão de Agostinho e de Marsilio Ficino; um Platão ra-
certo sentido, podemos aplicar o mesmo enunciado ao cionalista, o Platão de Moisés Mendelssohn; e, há pou-
mundo histórico. Até nossa consciência histórica é cos decênios, nos ofereceram um Platão kantiano. Po-
uma "unidade de contrários": liga os pólos opostos demos sorrir de todas estas diversas interpretações
do tempo e nos dá, assim, o nosso sentimento da con- que, contudo, apresentam não só um lado negativo
tinuidade da cultura humana. mas também um positivo. Todas, cada qual dentro de
Esta unidade e continuidade se tornam especial- seus limites, contribuíram para uma compreensão e
mente claras no campo de nossa cultura intelectual, avaliação sistemática da obra de Platão. Cada qual in-
na história da matemática, da ciência ou da filosofia. sistiu em certo aspecto contido em sua obra, mas que
Ninguém poderia jamais tentar escrever uma história só poderia tornar-se manifesto graças a um complica-
da matemática ou da filosofia sem possuir uma visão do processo de pensamento. Ao referir-se a Platão,
clara dos problemas sistemáticos .das duas ciências. em sua Crítica da Razão Pura, Kant indica este fato:
Os fatos do passado filosófico, as doutrinas e. sistemas " ... não é absolutamente fora do comum", disse ele,
dos grandes pensadores, não têm sentido sem uma in- "ao compararmos os pensamentos que um autor ex-
terpretação. E este processo de interpretação nunca pressou em relação ao seu assunto, ... descobrir que
se detém de todo. Assim que atingimos um novo cen- o compreendemos melhor do que ele mesmo se com-
tro e uma nova linha de visão em nossos próprios pen- preendeu. Como não determinou suficientemente seu
samentos, precisamos revisar nossos juizos. Neste conceito, às vezes falou, ou mesmo pensou, contra-
sentido, nenhum exemplo será porventura mais carac- riamente à sua própria intenção'L! A história da fi-
terístico e instrutivo que o que nos oferecem as mu- losofia nos mostra muito claramente que a plena de-
danças de nossa visão de ·Sócrates: temos o Sócrates terminação de um conceito rarissimamente é obra do
de Xenofonte e de Platão; um Sócrates estóico, cético, pensador que o apresentou pela primeira vez. Pois,
místico, racionalista e um Sócrates romântico. São to- falando de modo geral, um conceito filosófico é antes
talmente diferentes. Não obstante, não deixam de ser um problema que a solução do mesmo - e sua com-
verdadeiros e cada um nos dá um novo aspecto, uma pleta significação não poderá ser compreendida en-
perspectiva característica do Sócrates histórico e de quanto estiver. em seu estado implícito inicial. Precisa
sua fisionomia intelectual e moral. Platão via em Só- tornar-se explícito a fim de ser compreendido em seu
crates o grande dialético e o grande mestre ético; Mon- verdadeiro sentido, e a transição do estado implícito
taigne via nele o. filósofo antidogmático, que confes- para o explícito é obra do futuro.
sava a própria ignorância; Friedrich Schlegel e os pen- Pode objetar-se que este contínuo processo de in-
sadores românticos puseram em relevo a ironia socrá- terpretação e reinterpretação é de fato necessário na
tica. E no caso do próprio Platão, poderíamos traçar história das idéias, mas que a necessidade deixa de
o mesmo desenvolvimento: temos um Platão místico, existir quando chegamos à história "verdadeira"
o Platão do neoplatonismo; um Platão cristão, o Pla-
1. Kant, Crítica da Razão Pura (2." edição), p. 370. Traduzido
1. Fragmento 60, em Diels, Die Fragmente der voreokrauker, para o inglês por Norman Kemp Smith (Londres, Macmillan, 1929),
I, 164. p. 310.
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tória encaramos todas as obras do homem e todos seus construídas 'para a eternidade. Os grandes artistas
atos como precipitados de sua vida; e desejamos re- pensam em suas obras, e a elas se referem, como se
constituí-los no estado original, desejamos compreen- fossem· monumenta aere perennius. Estão certos de
der e sentir a vida de onde derivaram. haver erguido um monumento que não será destruído
Neste sentido, o pensamento histórico não é a pelos anos sem conta e pela fuga dos séculos. Mas esta
reprodução, mas o reverso do processo histórico real. pretensão está presa a uma condição especial. Para
Em nossos documentos e monumentos históricos en- poderem perdurar, as obras do homem precisam ser
contramos uma vida passada que assumiu certa forma. constantemente renovadas e restauradas. Uma coisa
O homem não pode viver esta vida sem fazer esforços física permanece em seu estado atual de existência
constantes por expressá-Ia. Os modos desta expres- através da inércia física. Conserva a mesma natureza
são são variáveis e inumeráveis. Mas são todos ou- enquanto não é alterada nem destruída por forças ex-
tros tantos testemunhos da mesma tendência funda- ternas. Mas as obras humanas são vulneráveis por
mental. A teoria do amor de .PI~tão define o amor um ângulo muito diferente. Sujeitas à mudança e à
como um desejo de imortalidade. No amor, o homem decadência não só num sentido material mas também
luta por romper a cadeia de sua existência individual num sentido espiritual, ainda que sua existência con-
e efêmera. Este instinto fundamental pode ser satis- tinue, correm constantemente o risco de perder seu
feito de duas maneiras.
sentido. Sua realidade é simbólica, não é. física; e esta
Aqueles que têm a semente fecunda no corpo, apenas" lançam realidade nunca deixa de requerer interpretação e
mão de mulheres e geram filhos - este é o caráter de seu amor;
sua prole, como esperam, preservará sua memória e lhes dará reinterpretação. E aí começa a grande tarefa da his-
a bem-aventurançae a imortalidade... Mas se a semente está tória. O pensamento do historiador guarda uma 'rela-
na alma, esta concebe o que é próprio da alma conceber ou
conter.> ção com seu objeto muito diferente que o físico ou o
naturalista com os seus. Os objetos materiais existem
Daí que uma cultura possa ser descrita como pro- independentemente da obra do cientista, mas os his-
duto e conseqüência desse amor platônico. Até no tóricos só têm existência real enquanto recordados -
estádio mais primitivo da civilização humana, até no e o ato da recordação precisa ser ininterrupto e con-
pensamento mítico, encontramos este protesto apaixo- tínuo. O historiador não só deve observar seus obje-
nado contra o fato da morte. 2 Nas camadas culturais tos, como o naturalista, mas também preservá-los, A
superiores - na religião, na arte, na história, na filo- esperança de mantê-los em sua existência física pode
sofia - este protesto assume nova forma. O homem ser frustrada a qualquer momento. Pelo incêndio que
começa a ver, dentro de si, um novo poder, com o destruiu a biblioteca de Alexandria, inúmeros e ines-
qual se atreve a desafiar o poder do tempo. Emerge timáveis documentos se perderam para sempre. Mas
do mero fluir das coisas, lutando por eternizar e imor- até os monumentos sobreviventes aos poucos desapare-
talizar a vida humana. As pirâmides egípcias parecem ceriam se não fossem. constantemente mantidos vivos,
pela arte do historiador. Para possuir o mundo da
1. Platâo, o Banquete, 208·209; tradução de Jowett, I, pp. 579 e cultura precisamos reconquistá-lo incessantemente pe-
seguinte.
2. Veja pp. 137-139. la recordação histórica, que não significa simplesmen-
Antropologia Filosófica
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292 Ernst Cassirer
te o ato da reprodução. É uma nova síntese intelec- plo, a história da cunhagem de moedas ou do direito
tual - um ato construtivo. Nesta reconstrução o es- público romano. Mas tudo é feito com o mesmo es-
pírito. O Romisches Staatsrecht (Direito público ro-
pírito humano se move na direção oposta à do proces-
mano) de Mommsen não é uma simples codificação
so original. Todas as obras de cultura nascem de um
de leis constitucionais. Estas leis estão cheias de vida;
ato de solidificação e de estabilização. O homem não
sentimos, por detrás delas, as grandes forças necessá-
poderia comunicar seus pensamentos e sentimentos, e
rias à construção de .um sistema desta ordem, e as
não poderia, por isso mesmo, viver num mundo social,
grandes forças intelectuais e morais, as únicas capa-
se não possuísse o dom especial de objetificar seus zes de produzir esse organismo do direito romano; o
pensamentos e dotá-los de uma forma sólida e perma- dom do espírito romano para ordenar, organizar e co-
nente. Atrás destas formas fixas e estáticas, destas mandar. Também neste caso, a intenção de Mommsen
obras petrificadas da cultura humana, a história des- foi mostrar-nos o mundo romano no espelho da lei
cobre os impulsos dinâmicos originais. É dom dos romana. "Enquanto a jurisprudência ignorou o Es-
grandes historiadores reduzirem todos os simples fa- tado e o povo", disse ele, "e a história e a filologia
tos aos seus fieri, todos os produtos a processos, todas ignoraram o direito, ambas bateram em vão à porta
as coisas ou instituições estáticas às suas energias cria- do mundo romano".
doras. Os historiadores políticos nos dão uma vida Se compreendermos desta maneira a tarefa da
cheia de paixões e emoções, lutas violentas de par- história, muitos problemas que, nos últimos decênios,
tidos políticos, de conflitos e guerras entre diferen- têm sido discutidos tão vivamente e têm encontrado
tes nações. respostas tão diversas e divergentes, podem ser" solu-
Mas nem tudo isto é necessário para dar a uma cionados sem dificuldade. Os filósofos modernos têm
obra histórica seu caráter e cunho dinâmicos. Quan- tentado, com freqüência, construir uma lógica espe-
do Mommsen escreveu sua História Romana, falou cial da história. A ciência natural, dizem eles, baseia-
como grande historiador político e num tom novo e -se numa lógica de universais, a história numa lógica
moderno. "Queria fazer descer os antigos", disse ele de indivíduos. Windelband declarou que o julgamen-
numa carta, "do fantástico pedestal em que apare- to da ciência natural é nomotético, os julgamentos da
cem, para o mundo real. Por isso o cônsul precisava história são idiográficos. 1 O primeiro nos dá leis ge-
transformar-se no burgomestre. Talvez tenha eu exa- rais; os últimos descrevem fatos particulares. Esta
gerado, mas minha intenção era perfeitamente váli- distinção tornou-se a base de toda a teoria de Rickert
da". 1 As obras ulteriores de Mommsen parecem ter sobre o conhecimento histórico. "A realidade empí-
sido concebidas e escritas em estilo totalmente dife- rica torna-se natureza se a consideramos em relação
rente; entretanto, não perdem o caráter dramático. ao universal; torna-se história, se a consideramos em
Pode parecer paradoxal atribuir este caráter a obras relação ao particular." 2
que tratam dos assuntos mais áridos como, por exem-
1 Windelband, "Geschichte und Naturwissenschaft ", em Priiiu
1. Mommsen em carta a Henzen; citado por G. P. Gooch, History dien (5.' edição, Tubinga, 1915), VoI. rr.
and Historians in the Nineteenth Century (Londres, Longmans, Green &
2 Rickert, Die Grenzen der naturwissenschattlichen Begri!fsbil·
Co., 1913; nova edição, 1935), p. 457. dung (Tubinga, 1902). p. 255.