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A HISTóRIA

DEPOIS de todas as várias e divergentes definições da


natureza do homem, dadas na história da filosofia,
os filósofos modernos chegaram, muitas vezes, à con-
clusão de que a própria questão, em certo sentido, é
desorientadora e contraditória. Em nosso mundo mo-
derno, diz Ortega y Gasset, estamos assistindo a um
colapso da teoria clássica, da teoria grega do ser e,
por conseguinte, da teoria clássica do homem.
A natureza é uma coisa, uma grande coisa, composta de 'muitas
coisas menores. Ora, sejam quais forem as diferenças entre as
coisas, todas têm um traço básico comum, que consiste simples-
mente no fato de que as coisas são, de que elas têm o seu ser,
E isso significa não só que elas existem, que estão diante de
nós, mas também que possuem uma dada e fixa estrutura ou
consistência. .. Uma expressão alternativa é a palavra "nature-
za". E a tarefa da ciência natural consiste em penetrar debaixo
das aparênéias mutáveis até chegar à natureza ou textura per-
manente. .. Hoje sabemos que todas as maravilhas das ciên-
-cüis naturais, embora inesgotáveis em princípio, precisarão
sempre deter-se diante da estranha realidade da vida humana.
Por quê? Se todas as coisas entregaram grande parte do seu
segredo às ciências físicas, por que só esta resiste com tamanho
vigor? A explicação precisa aprofundar-se, chegar às raízes.
Talvez seja pura e simplesmente esta: o homem não é uma
coisa, é falso falar em natureza humana, o homem não tem
natureza... A vida humana... não é uma coisa, não tem
natureza e, conseqüentemente, precisamos resignar-nos a pensar
nela em termos, categorias e conceitos que serão radicalmente .
diferentes dos que projetam luz sobre os fenômenos da maté-
ria ...
Até agora nossa lógica tem sido uma lógica do ser,
baseada nos conceitos fundamentais do pensamento
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Ernst Casstrer Antropologia Filosófica 273

eleático, mas com estes conceitos nunca poderemos es- faz Ortega y Gasset, na história como sistema. Um
perar compreender o caráter distintivo do homem. O sistema pressupõe sempre, senão uma natureza idênti-
eleatismo era a intelectualização radical da vida huma- ca, pelo menos uma idêntica estrutura. Na verdade,
na. Já é tempo de rompermos este círculo mágico. "Pa- essa identidade estrutural - identidade de forma, não
ra falarmos no ser do homem precisamos elaborar pri- de matéria - sempre foi posta em relevo pelos grandes
meiro um conceito não eleático do ser, como outros historiadores. Eles nos disseram que o homem tem uma
elaboraram uma geometria não euclidiana. Chegou o história porque tem uma natureza. Tal foi o julga-
momento em que a semente lançada por Heráclito mento dos historiadores da Renascença, como, por
produza sua farta colheita." Tendo aprendido a imu- exemplo, Maquiavel, e muitos outros modernos sus-
nizar-nos contra o intelectualismo, temos agora cons- tentaram o mesmo ponto de vista. Debaixo do fluxo
ciência de uma liberação do naturalismo. "O homem temporal e atrás do polimorfismo da vida humana,
não tem natureza, o que ele tem é. . . história. 1 J7
esperaram descobrir os traços constantes da natureza
O conflito entre o ser e o vir-a-ser, que no Tee- humana. Em seus Pensamentos Sobre a História do
teto de Pia tão se descreve como o tema fundamental Mundo, Jakob Burckhardt definiu a tarefa do histo-
do pensamento filosófico grego, não estará, entretan- riador como uma tentativa para descobrir os elementos
to, resolvido se passarmos do mundo da natureza para constantes, recorrentes, típicos, porque elementos co-
o da história. Desde a Crítica da Razão Pura de Kant mo estes são capazes de evocar um eco ressoante em
concebemos o dualismo entre o ser e o vir-a-ser mais nosso intelecto e em nossos sentimentos. 1
como um dualismo lógico que como metafísico. Já O que denominamos "consciência histórica" é um
não falamos de um mundo de mudança absoluta em produto muito serôdio da 'civilização humana; não a
oposição a um outro de absoluto repouso. Não consi- encontramos antes da época dos grandes historiadores \,
deramos a substância e a mudança como reinos dife- gregos. E os próprios pensadores gregos ainda foram
rentes do ser mas como categorias - como condições incapazes de oferecer uma análise filosófica da forma
e pressuposições do nosso conhecimento empírico. Es- específica do pensamento histórico. Essa análise só
tas categorias são princípios universais; não se res- apareceu no século XVIII. O conceito da história
tringem a objetos especiais do conhecimento. Deve- atinge a maturidade, pela primeira vez, na obra de
mos, portanto, esperar encontrá-Ias em todas as for- Vico e Herder. Quando o homem começou a ter co-
mas da experiência humana. Na realidade, nem o nhecimento do problema do tempo, quando já não se
mundo da história pode ser compreendido e interpre- confinava no círculo estreito de seus desejos e necessi-
tado em termos de simples mudança. Este mundo in- dades imediatas, quando entrou a indagar da origem
clui também um elemento substancial, um elemento das coisas, só encontrou uma origem mítica, não his-
de ser - que não deve ser definido, porém, no mes- tórica. A fim de compreender o mundo - tanto fí-
mo sentido em que se define no mundo físico. Sem sico como social - precisou projetá-lo sobre o passa-
este elemento dificilmente poderíamos falar, como o
1. Jakob Burckhardt, Weltgeschichtliche Betrachtungen, ed. por
1. Ortega y Gasset, "A História como Sistema", em Filosofia e Jakob Oeri (Berlim e stuttgart, 1905),p. 4. Traduzido para o inglês por
História, Ensaios Apresentados a Ernest Cassirer, pp. 293, 294, 300, James Hastings Nichols, Force and Freedom; Rejlections on History
305, 313.
(Nova Iorque, Pantheon Books, 1943), p. 82.
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do mítico. No mito encontramos as primeiras tenta-


Estudei Commines e os relatos contemporâneos apensos às edí-
tivas para descobrir a ordem cronológica das coisas e çõesdeste autor, e convenci-me de que um Luis XI e um Carlos,
dos acontecimentos, para apresentar uma cosmologia o Temerário, tais como se descrevem no Quentin Durward de
Scott, nunca existiram. Nesse cotejo descobri que a prova his-
e uma genealogia dos deuses e dos homens, mas estas tórica era mais bela e, de qualquer maneira, mais interessante
não significam uma distinção histórica em sentido do que toda a ficção romântica. Afastei-me desta última resol-
vido a evitar toda invenção e fabulação em meus trabalhos e
próprio. O passado, o presente e o futuro ainda estão ater-me aos fatos. 1
ligados entre si; forma uma unidade não diferenciada
e um todo não discriminado. O tempo mítico não tem Definir a verdade histórica como "concordância
estrutura definida; ainda é um "tempo eterno", Do com os fatos" - adaequatio res et intellectus - to-
ponto de vista da consciência mítica, o passado nunca davia, não constitui solução satisfatória para o pro-
passou; está sempre aqui e agora. Quando o homem blema. É uma petição de princípio em vez de ser uma
principia a desenredar a teia complexa da imaginação solução. Que a história tem de começar com fatos e
que, em certo sentido, estes fatos são não só o princí-
mítica, sente-se transportado para um novo mundo;
pio mas também o fim, o alfa e o ômega de nosso co-
começa a formar um novo conceito da verdade.
nhecimento histórico, é inegável. Mas que é um fato
Podemos acompanhar as etapas individuais deste histórico? Toda verdade fatual implica uma verdade
processo ao estudarmos o desenvolv-imento do pensa- teórica. 2 Quando aludimos a fatos não nos referimos
mento histórico grego de Heródoto a Tucídides. Tu- .simplesmente aos nossos dados sensoriais imediatos.
cídides é o primeiro pensador a ver e descrever a Estamos pensando em fatos empíricos, isto é, em fatos
história da sua época e a olhar para o passado com objetivos. Esta objetividade não é gratuita; supõe sem-
espírito claro e crítico, tendo consciência do fato de pre um ato e um complicado processo de julgamento."
que este é um passo novo e decisivo. Está conven- Se quisermos conhecer a diferença entre fatos cientí-
cido de que a clara discriminação entre o pensamento ficos - da física, da biologia e da história - precisa-
mítico e o histórico, entre a lenda e a verdade, é o mos, portanto, começar sempre com uma análise. de
traço característico que fará de sua obra uma "posse julgamento. Precisamos estudar os modos de conhe-
eterna". 1 Outros grandes historiadores pensaram da cimento pelos quais estes fatos são acessíveis.
mesma maneira. Num esboço autobiográfico, Ranke Em que consiste a diferença entre um fato físico
nos conta como se apercebeu, pela primeira vez, da e um fato histórico? Ambos são considerados como
sua missão de historiador. Jovem, sentiu-se profunda- partes de uma realidade empírica; a ambos atribuí-
mente atraído pelos escritos históricos-românticos de mos uma verdade objetiva. Mas se quisermos averi-
Walter Scott. Leu-os com viva simpatia, mas também guar a natureza desta verdade, procedemos de ma-
se melindrou em certos pontos. Sentiu-se escandali- neiras diferentes. Um fato físico é determinado pela
zado quando descobriu que a descrição do conflito en- observação e pela experiência. O processo de objeti-
tre Luís XI e Carlos, o Temerário, estava em flagrante ficação atinge sua finalidade quando conseguimos des-
contradição com os fatos históricos.
1. Ranke, "Aufsãtze zur eigenen Lebensgeschichte" (novembro de
1885), em Sãmmtlíche Werke", ed. A. Dove, LIII, 61.
1. Y.t'Y)~a: ES CtEL, Tucídides, De bello Peloponnesiaco, I, 22. 2. "Das Hõchste wãre: zu begreifen, dass alles Faktische schon
Theorie ist." Goethe, Maximen und Reflexionen, p. 125.
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Antropologia Filosófica 277

crever os fenômenos dados em linguagem matemáti-


mundo de símbolos. Primeiramente, precisa apren-
ca, na linguagem dos números. Um fenômeno que não
der a ler estes símbolos. Todo fato histórico, por mais
pode ser descrito, que não se pode reduzir a um pro-
simples que pareça, só pode ser determinado e com-
cesso de mensuração, não faz parte de nosso mundo preendido pela análise prévia de símbolos. Não são
físico. Definindo a tarefa da física, Max Planck diz coisas nem acontecimentos, porém documentos ou
que o físico tem de medir todas as coisas mensuráveis monumentos os primeiros e imediatos objetos de nosso
e tornarmensuráveis todas as coisas imensuráveis. conhecimento científico. Somente através da media-
Nem todas as coisas ou processos físicos são imedia- ção e intervenção desses dados simbólicos podemos
tamente mensuráveis; em muitos casos, senão na captar os dados históricos reais - os acontecimentos
maioria deles, ficamos na dependência de métodos in- e os homens do passado.
diretos de verificação e mensuração. Mas os fatos fí- Antes de entrar numa discussão geral do proble-
sicos estão sempre ligados por leis causais a outros ma, gostaria de esclarecer esse ponto fazendo refe-
fenômenos, diretamente observáveis ou mensuráveis. rência a um exemplo concreto específico. Há cerca
Se um físico estiver em dúvida no tocante aos resulta- de trinta e cinco anos, encontrou-se um velho papiro
dos de uma experiência, pode repeti-Ia e corrigi-Ia. egípcio debaixo dos escombros de uma casa. Continha
Seu objeto se encontra presente a qualquer momento, diversas inscrições, que se diriam apontamentos de
pronto para responder às suas perguntas. Para o his- um advogado ou notário público relativos ao seu ofí-
toriador, contudo, o caso é diferente. Seus fatos per- cio - esboços de testamentos, contratos legais, etc.
tencem ao passado, e o passado foi-se para sempre. Até este momento, o papiro pertencia simplesmente
Não podemos reconstruí-Io nem despertá-Io para uma ao mundo material; não tinha importância histórica
nova vida num sentido físico, objetivo. Tudo o que e, por assim dizer, carecia de existência histórica.' Des-
podemos fazer é "recordá-Io" - dar-lhe uma nova cobriu-se, então, um segundo texto debaixo do pri-
existência ideal. A reconstrução ideal, não a observa- meiro, que, após exame mais cuidadoso, foi identifi-
ção empírica, é o primeiro passo no conhecimento his- cado como os remanescentes de quatro comédias, até
tórico. O que denominamos fato científico é sempre a então desconhecidas, de Menandro. A partir de então
resposta a uma pergunta científica formulada de an- a natureza .e a significação do manuscrito modifica-
temão. Mas a quem dirigirá o historiador essa pergun- ram-se completamente. Já não se tratava de um sim-
ta? Não pode pôr em confronto os acontecimentos ples "pedaço de matéria"; o papiro se convertera em
mesmos nem entrar nas formas de uma vida anterior. documento histórico do máximo valor e interesse, tes-
Só lhe é dado abordar indiretamente o tema. Precisa temunha de um estádio importante do desenvolvimen-
consultar suas fontes. Mas estas não são coisas físicas to da literatura grega. Tal significação, todavia, não
no sentido usual do termo. Todas implicam um mo- era imediatamente óbvia. O manuscrito teve de ser
mento novo e específico. Como o físico, o historiador submetido a toda a sorte de testes críticos, a cuidado-
vive num mundo material. Entretanto, o que encon- sas análises lingüísticas, filológicas, literárias e esté-
tra desde o início de sua pesquisa não é um mundo ticas. Depois deste processo complicado, deixou de
de objetos físicos, mas um universo simbólico _ um ser uma simples coisa; estava carregado de significa-
ção. Transformara-se em símbolo, que nos proporcio-
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nou uma nova visão da cultura grega - na vida e na sempre uma unidade interior e uma homogeneidade
poesia grega. 1 lógica. Os pensamento histórico e científico não se dis-
Tudo isto parece óbvio e inequívoco. Mas o que tinguem pela forma lógica, mas por seus objetivos e
é curioso, foi precisamente esta característica funda- por seu assunto. Se desejássemos descrever esta dis-
mental do conhecimento histórico que foi inteiramen- tinção não nos bastaria dizer que o cientista se ocupa
te descuidada pela maioria de nossas discussões mo- com objetos presentes ao passo que o historiador com
dernas do método e da verdade histórica. A maioria os passados. Uma distinção desta natureza seria ilu-
dos autores procurava a diferença entre história e sória. Como o historiador, o cientista pode investigar
ciência na lógica, não no objeto da história. Deram-se perfeitamente a origem remota das coisas. Semelhan-
ao imenso trabalho de construir uma nova lógica da te tentativa, por exemplo, foi feita por Kant quando,
história. Mas todas estas tentativas' estavam destina- em 1755, desenvolveu uma teoria astronômica que
das ao malogro. Pois a lógica, afinal de contas, é uma também se tornou uma história universal do mundo
coisa muito simples e uniforme. É una, porque a ver- material; aplicou o novo método da física, o método
dade é una. Em sua busca da verdade o historiador newtoniano, à solução de um problema histórico. Ao
está sujeito às mesmas regras formais que o cientista. fazê-lo, desenvolveu a hipótese da nebulosa, por meio
Em seus modos de raciocinar e argumentar, em suas da qual tentou descrever a evolução da atual ordem
inferências indutivas, em sua investigação das causas, cósmica a partir de um estado anterior da matéria, in-
obedece às mesmas regras gerais de pensamento a que diferenciado e sem organização. Tratava-se de um
obedece o físico ou o biologista. Enquanto nos refe- problema de história natural, mas não de história no
rirmos a estas atividades teóricas fundamentais do sentido específico do termo. A história não pretende
espírito humano não poderemos fazer discriminação descobrir um estado anterior do mundo físico, mas
entre os diferentes campos do conhecimento. No que um estádio anterior da vida e da cultura humanas.
tange a este problema será mister endossarmos as pa- Na solução deste problema pode fazer uso de métodos
lavras de Descartes científicos, mas não pode restringir-se aos dados obte-
níveis por estes métodos. Nenhum objeto está isento
As ciências consideradas em conjunto são idênticas à sabedoria
humana, que é sempre una e sempre a mesma, ainda que apli- das leis da natureza. Os objetos históricos não pos-
cada a diferentes assuntos, e não sofre maior diferenciação em suem realidade separada, com eloqüência própria; es-
decorrência deles do que a que experimenta a luz do sol em
conseqüência da variedade das coisas que ilumina. 2 tão incorporados em objetos físicos. Mas, apesar desta
incorporação, pertencem, por assim dizer, a uma di-
Por mais heterogêneos que possam ser os obje- mensão mais elevada. O que denominamos sentido
tos do conhecimento humano, suas formas revelam histórico não modifica a forma das coisas, nem detec-
ta nelas uma nova qualidade, mas empresta a elas e
1. Sobre pormenores deste descobrimento, veja Gustavo Lefebre, aos acontecimentos nova profundidade. Quando o
Fragments d'un manuson: de Ménandre, découverts et pUbliés (Le Cai-
re, Impression de l'Institut Françaís d'Archéologie, 1907). cientista deseja retroceder ao passado não' emprega
2. Descartes, Regulae ad directionem ingenii, I, "Oeuvres", ed. conceitos ou categorias de suas observações do pre-
Charles Adam e Paul Tannery (Paris, 1897), X, 360. Traduzido para o
inglês por Elizabeth S. Haldane e G. R. T. Ross, "The Philosophical sente. Liga o presente ao passado seguindo, retrospec-
Works or Descartés" (Cambridge University Press, 1911), I, 1. tivamente, a cadeia de causas e efeitos. Estuda no
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presente os vestígios materiais deixados pelo passado. este material não é fato petrificado, mas forma viva.
Tal é, por exemplo, o método da geologia ou da pa- A história é a tentativa de fundir todas essas disjecta
leontologia. A história também tem de começar com membra, os membros esparsos do passado, sintetizá-
estes vestígios, uma vez que, sem eles, não poderia -los e modelá-los de novo.
dar um só passo. Mas esta é apenas uma primeira ta- Entre os modernos fundadores da filosofia da his-
refa preliminar. A esta reconstrução real, empírica, a tória, Herder possuía a visão mais clara deste lado
história acrescenta outra simbólica. O historiador do processo histórico. Suas obras não nos oferecem
precisa aprender a ler e interpretar seus documentos apenas uma recordação mas também uma ressurrei-
e monumentos, não só como restos mortos do passa- ção do passado; não era um historiador propriamente
do, mas também como suas mensagens vivas, que se dito, não nos deixou nenhuma grande obra histórica,
dirigem a nós em sua própria linguagem. ,O conteúdo e nem mesmo o que realizou no campo filosófico pode
simbólico destas mensagens, entretanto, não é imedia- comparar-se com a obra de Hegel. Entretanto, foi
tamente observável. Cabe ao lingüista, ao filólogo e o pioneiro de um novo ideal de verdade histórica. Sem
ao historiador fazê-Ias falar e fazer-nos compreen- ele não teria sido possível a obra de Ranke nem a
der essa linguagem. A distinção fundamental entre de Hegel. Pois ele possuía o grande poder pessoal de
as obras do historiador e do geólogo ou paleontólogo revivificar o passado, de emprestar eloqüência a todos
não consiste na estrutura lógica do pensamento his- os fragmentos e remanescentes da vida moral, reli-
tórico, mas nessa tarefa especial, nessa missão especí- giosa e cultural do homem. Foi este aspecto da obra
fica. Se o historiador não conseguir decifrar a lingua- de Herder que despertou o entusiasmo de Goethe.
gem simbólica de seus monumentos, a história conti- Como escreveu em uma de suas cartas, não encontrou
nuará sendo para ele um livro fechado. Em certo nas descrições históricas de Herder apenas as "cascas,
sentido, o historiador é muito mais lingüista que cien- e conchas dos seres humanos". O que excitava sua
tista. Mas não estuda apenas as línguas faladas e es- profunda admiração era a "maneira de varrer" de
critas da humanidade; procura penetrar no sentido de Herder - "não apenas extraindo ouro do entulho
todos os idiomas simbólicos. Não encontra seus textos mas também regenerando este entulho para conver-
somente em livros, anais ou memórias. Precisa ler tê-Io em uma planta viva". 1
hieróglifos ou inscrições cuneiformes, olhar para as Esta "palíngenesía", este renascimento do passa-
cores de uma tela, para estátuas de mármore ou de do, assinala e distingue o grande historiador. Friedrich
bronze, para catedrais ou templos, para moedas ou Schlegel chamava ao historiador einen rnckwarts ge-
gemas. Mas não considera todas estas coisas simples- kehrten Propheten, um profeta retrospectivo. 2 Existe
mente com o espírito de um antiquário, que deseja também uma profecia do passado, uma revelação da
colecionar e preservar os tesouros dos velhos tempos; sua vida oculta. A história não prediz os acontecimen-
o que procura é antes a materialização do espírito de tos futuros; só interpreta o passado. Mas a vida huma-
uma era passada. Detecta o mesmo espírito em leis 1. "Deine Art zufegen - und nicht etwa aus dem Kehricht Gold
e estatutos, em cartas e declarações de direitos, em zu síeben, sondem den Kehricht zur lebendigen Pflanze~,umzupalin-
genesieren, legt mich immer auf die Knie meínes Herzens.] Goethe an
instituições sociais e constituições políticas; em ritos Herder, maio de 1775, Brieje (ed. de Weimar), II, 262.
e cerimônias religiosas. Para o verdadeiro historiador 2. "Athenâumsrragmente", 80, op. cit., II, 215.
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na é um organismo em que todos os elementos se im- tura moderna, Nietzsche lançou um repto ao chama-
plicam e explicam entre si. Conseqüentemente, uma do "senso histórico" de nossos tempos. Procurou pro-
nova compreensão do passado nos dá, ao mesmo tem- var que este senso, longe de ser um mérito e um pri-
po, uma nova perspectiva do futuro, que, por sua vez, vilégio de nossa vida cultural, é o seu perigo intrín-
se transforma num impulso para a vida intelectual e seco. Era a doença que sofríamos. A história só tem
social. Para esta dupla visão do mundo em perspecti- sentido como serva da vida e da ação. Se a serva
va e em retrospecto, o historiador precisa escolher seu usurpa o poder, e fica no lugar do senhor, obstrui as
ponto de partida. Não pode encontrá-lo senão em seu energias da vida. Por excesso de história nossa vida
próprio tempo, nem pode ir além das condições de se atrofiou e degenerou. A história se opõe ao vigo-
sua experiência presente. O conhecimento histórico roso impulso para novos feitos e paralisa o agente.
é a resposta a perguntas definidas, que tem de ser Pois quase todos nós só podemos realizar quando es-
.dada pelo passado; mas as próprias perguntas são co- quecemos. O senso histórico irrestrito, levado ao seu
locadas e ditadas pelo presente - por nossos interes- extremo lógico, destrói o futuro. 1 Mas este julgamen-
ses intelectuais presentes e por nossas necessidades to depende da discriminação artificial de Nietzsche
morais e sociais presentes. entre a vida da ação e a vida do pensamento. Quando
Esta conexão entre o presente e o passado é ine- levou a cabo seu ataque, Nietzsche era ainda adepto
gável; dela podemos tirar conclusões muito diferentes e discípulo de Schopenhauer. Concebia a vida como
no que concerne à certeza e ao valor do conhecimento manifestação de uma vontade cega. A cegueira pas-
histórico. Na filosofia contemporânea Croce é o cam- sou a ser a própria condição de Nietzsche para a vi-
peão do mais radical "historicismo". Para ele, a his- da realmente ativa; o pensamento e a consciência opu-
tória não é apenas um ramo especial da realidade, nham-se à vitalidade. Se rejeitarmos esta pressupo-
mas a realidade inteira. Sua tese de que toda histó- sição, as conseqüências de Nietzsche se tornam insus-
ria é história contemporânea conduz, portanto, a uma tentáveis. Está visto que a nossa consciência do pas-
completa identificação da filosofia com a história. sado não deveria enfraquecer nem invalidar nossas
Acima e além do reino humano da história não existe forças ativas. r Empregada de maneira correta, nos
outro reino do ser, nenhuma outra matéria de pen- proporciona um exame mais livre do presente e revi-
samento filosófico. 1 A inferência oposta foi deduzida gora nossa responsabilidade em relação ao futuro. O
por Nietzsche. Ele também insistia em que "só pode- homem não pode modelar a forma do futuro sem ter
mos explicar o passado pelo que é mais elevado no consciência das condições presentes e das limitações
presente". Mas esta asserção só lhe serviu de ponto de seu passado. Como Leibniz costumava dizer:
de partida para um violento ataque ao valor da his- on recêde pour mieux sauter, recua-se para saltar'
tória. Em seus "Pensamentos Extemporâneos", com mais alto. Heráclito inventou para o mundo físico
os quais encetou sua obra de filósofo e crítico da cul- a máxima oõo~ IXVW XGt'tW tJ.L'Y), o caminho para cima e

1. Sobre esse problema veja Guido Calogero, "Sobre a Chamada 1. Nietzsche, Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Le-
Identidade da História com a Filosofia", em Filosofia e História, En- ben, em "Unzeit gemâsse Betrachtungen" (1874), Pt. lII. Traduzido pa-
saws Apresentados a Ernst Cassirer, pp. 35-52. ra o inglês por Oscar Levy, VoI. lI.
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o caminho para baixo são uma mesma coisa. 1 Em tão de Agostinho e de Marsilio Ficino; um Platão ra-
certo sentido, podemos aplicar o mesmo enunciado ao cionalista, o Platão de Moisés Mendelssohn; e, há pou-
mundo histórico. Até nossa consciência histórica é cos decênios, nos ofereceram um Platão kantiano. Po-
uma "unidade de contrários": liga os pólos opostos demos sorrir de todas estas diversas interpretações
do tempo e nos dá, assim, o nosso sentimento da con- que, contudo, apresentam não só um lado negativo
tinuidade da cultura humana. mas também um positivo. Todas, cada qual dentro de
Esta unidade e continuidade se tornam especial- seus limites, contribuíram para uma compreensão e
mente claras no campo de nossa cultura intelectual, avaliação sistemática da obra de Platão. Cada qual in-
na história da matemática, da ciência ou da filosofia. sistiu em certo aspecto contido em sua obra, mas que
Ninguém poderia jamais tentar escrever uma história só poderia tornar-se manifesto graças a um complica-
da matemática ou da filosofia sem possuir uma visão do processo de pensamento. Ao referir-se a Platão,
clara dos problemas sistemáticos .das duas ciências. em sua Crítica da Razão Pura, Kant indica este fato:
Os fatos do passado filosófico, as doutrinas e. sistemas " ... não é absolutamente fora do comum", disse ele,
dos grandes pensadores, não têm sentido sem uma in- "ao compararmos os pensamentos que um autor ex-
terpretação. E este processo de interpretação nunca pressou em relação ao seu assunto, ... descobrir que
se detém de todo. Assim que atingimos um novo cen- o compreendemos melhor do que ele mesmo se com-
tro e uma nova linha de visão em nossos próprios pen- preendeu. Como não determinou suficientemente seu
samentos, precisamos revisar nossos juizos. Neste conceito, às vezes falou, ou mesmo pensou, contra-
sentido, nenhum exemplo será porventura mais carac- riamente à sua própria intenção'L! A história da fi-
terístico e instrutivo que o que nos oferecem as mu- losofia nos mostra muito claramente que a plena de-
danças de nossa visão de ·Sócrates: temos o Sócrates terminação de um conceito rarissimamente é obra do
de Xenofonte e de Platão; um Sócrates estóico, cético, pensador que o apresentou pela primeira vez. Pois,
místico, racionalista e um Sócrates romântico. São to- falando de modo geral, um conceito filosófico é antes
talmente diferentes. Não obstante, não deixam de ser um problema que a solução do mesmo - e sua com-
verdadeiros e cada um nos dá um novo aspecto, uma pleta significação não poderá ser compreendida en-
perspectiva característica do Sócrates histórico e de quanto estiver. em seu estado implícito inicial. Precisa
sua fisionomia intelectual e moral. Platão via em Só- tornar-se explícito a fim de ser compreendido em seu
crates o grande dialético e o grande mestre ético; Mon- verdadeiro sentido, e a transição do estado implícito
taigne via nele o. filósofo antidogmático, que confes- para o explícito é obra do futuro.
sava a própria ignorância; Friedrich Schlegel e os pen- Pode objetar-se que este contínuo processo de in-
sadores românticos puseram em relevo a ironia socrá- terpretação e reinterpretação é de fato necessário na
tica. E no caso do próprio Platão, poderíamos traçar história das idéias, mas que a necessidade deixa de
o mesmo desenvolvimento: temos um Platão místico, existir quando chegamos à história "verdadeira"
o Platão do neoplatonismo; um Platão cristão, o Pla-
1. Kant, Crítica da Razão Pura (2." edição), p. 370. Traduzido
1. Fragmento 60, em Diels, Die Fragmente der voreokrauker, para o inglês por Norman Kemp Smith (Londres, Macmillan, 1929),
I, 164. p. 310.
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AntropOlogia Filosófica
286 Ernst Cassirer

pende de nossa concepção dos homens que neles esti-


à história do homem e das ações humanas. Aqui se
veram empenhados. Assim que vemos estes homens
diria que temos de lidar com fatos constantes, óbvios,
a uma nova luz, somos obrigados a alterar nossas
palpáveis, e que precisam apenas ser relatados para
ser conhecidos. Mas nem mesmo a história política idéias dos acontecimentos. Entretanto, mesmo assim,
constitui exceção à regra metodológica geral. O que não se obtém uma visão histórica verdadeira sem um
se aplica à interpretação de um grande pensador e constante processo de revisão. A Grandeza e Deca-
de suas obras filosóficas também se aplica a juízos dência de Roma, de Ferrero, difere em muitos pontos
sobre uma grande figura política. Friedrich GundoH importantes da descrição do mesmo período feita por
escreveu um livro inteiro, não sobre César, mas sobre Mommsen. Este desacordo deve-se, em grande parte,
a história de sua fama e das várias interpretações de ao fato de que os dois autores têm uma concepção in-
seu caráter e missão política, desde a antigüidade até teiramente diferente de Cícero. A fim de formar um
nossos dias. 1 Até em nossa vida social e política mui- juízo justo de Cícero não basta, contudo, conhecer
tas tendências fundamentais só revelam toda sua for- simplesmente todos os acontecimentos do seu consu-
ça e sentido numa etapa relativamente tardia. Um lado, a parte que ele desempenhou na revelação da
ideal político e um programa social, há muito tempo conspiração de Catilina ou nas guerras civis entre
concebidos em sentido implícito, tornam-se explícitos Pompeu e César. Todos estes assuntos permanecerão
através de um desenvolvimento ulterior. " ... muitas dúbios e ambíguos enquanto não conhecermos o ho-
idéias do norte-americano germinal", escreve S/ E. mem, nem compreendermos sua personalidade fi
Morison em sua História dos Estados Unidos, seu caráter. Para isto, faz-se mister alguma interpre-
podem ser rastreadas até a mãe pátria. Na Inglaterra estas tação simbólica. Não me basta estudar suas orações
idéias persistiram através. dos séculos, apesar de certo falseá- e seus escritos filosóficos; devo ler as cartas a sua
mento e obstrução nas mãos dos monarcas Tudor e dos aristo-
cratas 'Whíg; na América encontraram oportunidade' de um livre filha, Túlia, e aos amigos íntimos; e ter simpatia pelos
desenvolvímento. Assim encontramos... vigorosos e antigos encantos e defeitos de seu estilo pessoal. Só pela reu-
preconceitos ingleses embalsamados nas Declarações de Direitos
norte-americanos e em instituições havia muito obsoletas na nião de todas estas provas circunstanciais chegarei a
Inglaterra '" que duraram, com poucas modificações, nos Es- uma imagem verdadeira de Cícero e de seu papel na
tados norte-americanos até os meados do século XIX. Foi uma
missão inconsciente dos Estados Unidos tomar explfcito o que vida política de Roma. A menos que o historiador
estivera implícito por muito tempo na Constituição britânica seja um mero redator de anais, e se contente com
e provar o valor de príncípios que haviam sido em grande
parte: esquecidos na Inglaterra de Jorge IH. 2 urna narração cronológica dos acontecimentos, preci-
sará sempre realizar esta tarefa dificílima, a de de-
Na história política não são, de maneira alguma, tectar a unidade por trás das expressões inumeráveis
os simples fatos que nos interessam. Desejamos com- e, não raro, contràditórias de um personagem histórico.
preender não só as ações mas também os atores. Nosso. Para ilustrar este ponto, desejo citar outro exem-
julgamento do curso dos acontecimentos políticos de- plo característico, tirado da obra de Ferrero. Um dos
acontecimentos mais importantes da história de Roma
1. Friedrich Gundolf, Caesar, Geschichte seines Ruhm (Berlím,
1924). _ que decidiu seu futuro e, em conseqüência, o fu-
2. S. E. Morison, The Oxforâ History 01 the United States (Ox- turo do mundo - foi a Batalha de Actium. Consoan-
ford, Clarendon Press, 1927),I, pp. 39 e seguinte.
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Ernst Cassirer AntropologiO. Filosófica 289

te a versão comum, Antônio perdeu a batalha porque


provoca da pelo medo, nem um ato de amor cego e
Cleópatra, apavorada e sem esperanças quanto ao re-
apaixonado, mas um ato político cuidadosamente pla-
sultado, voltou com seus barcos e fugiu. Por seu
nejado de antemão.
amor, Antônio decidiu segui-Ia, abandonando seus
soldados e amigos. A ser correta esta versão tradicio- Com a obstinação, a segurança e a veemência de uma mulher
nal, devemos endossar o dito de Pascal, reconhecendo ambiciosa, de uma rainha confiante e obstinada, Cleópatra
procurou persuadir o triúnviro... a atacar de novo o Egito por
que, se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto, mar. . . Em princípios de julho, Antônio pareoe haver pensa-
toda a face da terra teria sido alterada. 1 Ferrero, po- do em abandonar a guerra e voltar ao Egito. Era-lhe impossí-
vel, entretanto, proclamar sua intenção de abandonar a Itália
rém, interpreta o texto histórico de maneira totalmen- a Otaviano, de desertar a causa republicana e de trair os sena-
te diversa. Declara que a história do amor entre dores romanos, que haviam deixado a Itália por sua causa. O
engenho de Cleópatra, por conseguinte, concebeu outro plano;
Antônio e Cleópatra é uma lenda. Antônio, diz-nos : travar-se-ia uma batalha naval para disfarçar a retirada. Parte
ele, não desposou Cleópatra porque estivesse perdida- do exército seria enviada a bordo da esquadra, outras' tropas
receberiam ordens de guardar os pontos mais importantes na
mente apaixonado por ela. Pelo contrário, Antônio ti- Grécia; a frota partiria em ordem de batalha e atacaria se o
nha em mente um grande plano político. . inimigo avançasse; em seguida se faria à vela para o Egito. 1

Antônio queria o Egito e não a formosa pessoa de sua rainha;


pretendia, com seu casamento dinástico, estabelecer o proteto- Não estou opinando aqui sobre a correção desta
rado romano no vale do Nilo e poder dispor, para a campanha afirmação. O que desejo ilustrar, com este exemplo,
persa, dos tesouros do Reino dos Ptolomeus... Com um casa- é o método geral da interpretação histórica de even-
mento dinástico, seria possível assegurar para si todas as van-
tagens da posse efetiva, sem correr os riscos da anexação; por tos políticos. Em física os fatos se explicam quando
isso optou por esse artifício que... fora provavelmente imagi- conseguimos díspô-los numa ordem serial tríplice: na
nado por César. .. O remanos entre Antônío e Cleópatra enco-
bre, pelo menos no início, um tratado político. Com o casa- ordem do espaço, do tempo, das causas e efeitos."Bes-
mento, Cleópatra procura firmar seu vacilante poder; Antônio
trata de colocar o vale do Nilo debaixo do protetorado roma- ta maneira, eles se tornam plenamente determinados;
no. . . A verdadeira história de Antônio e Cleópatra é um dos e é precisamente esta determinação que temos em
mais trágicos episódios de uma luta que lacerou o Império Ro-
mano durante quatro séculos, até que finalmente o destruiu, a mente quando nos referimos à verdade ou à realida-
lufã entre o Oriente e o Ocidente. " A luz destas considerações, de dos fatos físicos. A objetividade dos fatos históri-
o procedimento de Antônio se torna claríssimo. O casamento
em Antioquia, pelo qual éle coloca o Egito sob o protetorado cos pertence, todavia, a uma ordem diferente e mais
romano, é o ato decisivo de uma política que visa transportar elevada. Aqui também precisamos determinar o local
o centro de seu governo para o Oriente ... 2
e o momento dos acontecimentos. Quando chegamos,
Se aceitarmos esta interpretação dos caracteres porém, à investigação de suas causas surge um novo
de Antônio e Cleópatra, os sucessos individuais, e en- problema. Se conhecêssemos todos os fatos na ordem
tre eles a própria Batalha de Actium, surgem a uma cronológica, teríamos um plano geral e um esqueleto
luz nova e diferente. A fuga de Antônio do campo de da história; mas não teríamos sua vida real. No en-
batalha, declara Ferrero, não foi, de maneira alguma, tanto, a compreensão da vida humana é o tema geral
e o objetivo final do conhecimento histórico. Na his-
1. Pascal, Pensées, ed. Louandre, p. 196.
2. Guglielmo Ferrero, "A História e a Lenda de Antônio e Cleó-
patra", em Personagens e Acontecimentos da História Romana, de L Ferrero, Grandezza e decadenza di Roma (Milão, 1907), lU,
César a Nero (Nova Iorque, G. P. Putnam's Sons, 1909), pp. 39-68. 502-539.Tradução inglesa de H. J. Chaytor, Greatness and Decline 01
Rome (Nova Iorque, G. P. Putnam's Sons, 1908), IV, pp. 95 e seguintes.
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tória encaramos todas as obras do homem e todos seus construídas 'para a eternidade. Os grandes artistas
atos como precipitados de sua vida; e desejamos re- pensam em suas obras, e a elas se referem, como se
constituí-los no estado original, desejamos compreen- fossem· monumenta aere perennius. Estão certos de
der e sentir a vida de onde derivaram. haver erguido um monumento que não será destruído
Neste sentido, o pensamento histórico não é a pelos anos sem conta e pela fuga dos séculos. Mas esta
reprodução, mas o reverso do processo histórico real. pretensão está presa a uma condição especial. Para
Em nossos documentos e monumentos históricos en- poderem perdurar, as obras do homem precisam ser
contramos uma vida passada que assumiu certa forma. constantemente renovadas e restauradas. Uma coisa
O homem não pode viver esta vida sem fazer esforços física permanece em seu estado atual de existência
constantes por expressá-Ia. Os modos desta expres- através da inércia física. Conserva a mesma natureza
são são variáveis e inumeráveis. Mas são todos ou- enquanto não é alterada nem destruída por forças ex-
tros tantos testemunhos da mesma tendência funda- ternas. Mas as obras humanas são vulneráveis por
mental. A teoria do amor de .PI~tão define o amor um ângulo muito diferente. Sujeitas à mudança e à
como um desejo de imortalidade. No amor, o homem decadência não só num sentido material mas também
luta por romper a cadeia de sua existência individual num sentido espiritual, ainda que sua existência con-
e efêmera. Este instinto fundamental pode ser satis- tinue, correm constantemente o risco de perder seu
feito de duas maneiras.
sentido. Sua realidade é simbólica, não é. física; e esta
Aqueles que têm a semente fecunda no corpo, apenas" lançam realidade nunca deixa de requerer interpretação e
mão de mulheres e geram filhos - este é o caráter de seu amor;
sua prole, como esperam, preservará sua memória e lhes dará reinterpretação. E aí começa a grande tarefa da his-
a bem-aventurançae a imortalidade... Mas se a semente está tória. O pensamento do historiador guarda uma 'rela-
na alma, esta concebe o que é próprio da alma conceber ou
conter.> ção com seu objeto muito diferente que o físico ou o
naturalista com os seus. Os objetos materiais existem
Daí que uma cultura possa ser descrita como pro- independentemente da obra do cientista, mas os his-
duto e conseqüência desse amor platônico. Até no tóricos só têm existência real enquanto recordados -
estádio mais primitivo da civilização humana, até no e o ato da recordação precisa ser ininterrupto e con-
pensamento mítico, encontramos este protesto apaixo- tínuo. O historiador não só deve observar seus obje-
nado contra o fato da morte. 2 Nas camadas culturais tos, como o naturalista, mas também preservá-los, A
superiores - na religião, na arte, na história, na filo- esperança de mantê-los em sua existência física pode
sofia - este protesto assume nova forma. O homem ser frustrada a qualquer momento. Pelo incêndio que
começa a ver, dentro de si, um novo poder, com o destruiu a biblioteca de Alexandria, inúmeros e ines-
qual se atreve a desafiar o poder do tempo. Emerge timáveis documentos se perderam para sempre. Mas
do mero fluir das coisas, lutando por eternizar e imor- até os monumentos sobreviventes aos poucos desapare-
talizar a vida humana. As pirâmides egípcias parecem ceriam se não fossem. constantemente mantidos vivos,
pela arte do historiador. Para possuir o mundo da
1. Platâo, o Banquete, 208·209; tradução de Jowett, I, pp. 579 e cultura precisamos reconquistá-lo incessantemente pe-
seguinte.
2. Veja pp. 137-139. la recordação histórica, que não significa simplesmen-
Antropologia Filosófica
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292 Ernst Cassirer

te o ato da reprodução. É uma nova síntese intelec- plo, a história da cunhagem de moedas ou do direito
tual - um ato construtivo. Nesta reconstrução o es- público romano. Mas tudo é feito com o mesmo es-
pírito. O Romisches Staatsrecht (Direito público ro-
pírito humano se move na direção oposta à do proces-
mano) de Mommsen não é uma simples codificação
so original. Todas as obras de cultura nascem de um
de leis constitucionais. Estas leis estão cheias de vida;
ato de solidificação e de estabilização. O homem não
sentimos, por detrás delas, as grandes forças necessá-
poderia comunicar seus pensamentos e sentimentos, e
rias à construção de .um sistema desta ordem, e as
não poderia, por isso mesmo, viver num mundo social,
grandes forças intelectuais e morais, as únicas capa-
se não possuísse o dom especial de objetificar seus zes de produzir esse organismo do direito romano; o
pensamentos e dotá-los de uma forma sólida e perma- dom do espírito romano para ordenar, organizar e co-
nente. Atrás destas formas fixas e estáticas, destas mandar. Também neste caso, a intenção de Mommsen
obras petrificadas da cultura humana, a história des- foi mostrar-nos o mundo romano no espelho da lei
cobre os impulsos dinâmicos originais. É dom dos romana. "Enquanto a jurisprudência ignorou o Es-
grandes historiadores reduzirem todos os simples fa- tado e o povo", disse ele, "e a história e a filologia
tos aos seus fieri, todos os produtos a processos, todas ignoraram o direito, ambas bateram em vão à porta
as coisas ou instituições estáticas às suas energias cria- do mundo romano".
doras. Os historiadores políticos nos dão uma vida Se compreendermos desta maneira a tarefa da
cheia de paixões e emoções, lutas violentas de par- história, muitos problemas que, nos últimos decênios,
tidos políticos, de conflitos e guerras entre diferen- têm sido discutidos tão vivamente e têm encontrado
tes nações. respostas tão diversas e divergentes, podem ser" solu-
Mas nem tudo isto é necessário para dar a uma cionados sem dificuldade. Os filósofos modernos têm
obra histórica seu caráter e cunho dinâmicos. Quan- tentado, com freqüência, construir uma lógica espe-
do Mommsen escreveu sua História Romana, falou cial da história. A ciência natural, dizem eles, baseia-
como grande historiador político e num tom novo e -se numa lógica de universais, a história numa lógica
moderno. "Queria fazer descer os antigos", disse ele de indivíduos. Windelband declarou que o julgamen-
numa carta, "do fantástico pedestal em que apare- to da ciência natural é nomotético, os julgamentos da
cem, para o mundo real. Por isso o cônsul precisava história são idiográficos. 1 O primeiro nos dá leis ge-
transformar-se no burgomestre. Talvez tenha eu exa- rais; os últimos descrevem fatos particulares. Esta
gerado, mas minha intenção era perfeitamente váli- distinção tornou-se a base de toda a teoria de Rickert
da". 1 As obras ulteriores de Mommsen parecem ter sobre o conhecimento histórico. "A realidade empí-
sido concebidas e escritas em estilo totalmente dife- rica torna-se natureza se a consideramos em relação
rente; entretanto, não perdem o caráter dramático. ao universal; torna-se história, se a consideramos em
Pode parecer paradoxal atribuir este caráter a obras relação ao particular." 2
que tratam dos assuntos mais áridos como, por exem-
1 Windelband, "Geschichte und Naturwissenschaft ", em Priiiu
1. Mommsen em carta a Henzen; citado por G. P. Gooch, History dien (5.' edição, Tubinga, 1915), VoI. rr.
and Historians in the Nineteenth Century (Londres, Longmans, Green &
2 Rickert, Die Grenzen der naturwissenschattlichen Begri!fsbil·
Co., 1913; nova edição, 1935), p. 457. dung (Tubinga, 1902). p. 255.

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