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29/06/2019 1917.

Dos autocratas de Smolny à tragédia de um povo – Observador

1917. Dos autocratas de Smolny à tragédia de um povo


16 Outubro 2017  128 

Observador

Quais foram as primeiras decisões tomadas na Rússia pós-


revolução de Outubro e quem as tomou? O Observador faz a
pré-publicação do livro-referência de Orlando Figes, agora
por fim editado em Portugal.

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29/06/2019 1917. Dos autocratas de Smolny à tragédia de um povo – Observador

Vinte anos após a publicação original em inglês, uma das obras de


referência sobre o acontecimento que marcou a história mundial
regressa às livrarias numa nova edição em português. A Tragédia de
um Povo — A Revolução Russa 1891-1924 regressa com o carimbo da
Dom Quixote, a mesma editora que em breve traz o autor a Portugal.

Orlando Figes é um historiador britânico que tem na história russa a


sua mais importante área de estudo, sobre a qual se fez, a longo dos
anos, um autor de referência. Nesta pré-publicação que o Observador
apresenta, revelamos parte do capítulo que recorda a forma como o
regime soviético começou a impor-se a partir de Smolny, em São
Petersburgo, com a tomada de decisões fundamentais para o futuro da
União Soviética.

“A Tragédia de um Povo”, de Orlando Figes (D. Quixote)

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“Passados cinco dias da invasão do Palácio de Inverno, Alexandra


Kollontai, a nova Comissária do Povo para o Bem-Estar Social, conduziu
até à entrada de um grande edifício público na rua Kazan. Durante o
Governo Provisório, o endereço tinha sido a sede dos escritórios da
repartição que ela acabara de assumir. Um porteiro idoso e de libré
abriu a porta e examinou-a da cabeça aos pés. Na Rússia, nunca uma
mulher tinha sido nomeada para a chefia de um ministério e, ao vê-la
pela primeira vez, o porteiro deve ter pensado que se tratava de mais
uma viúva pobre em busca de ajuda governamental. Kollontai exigiu ser
recebida pelo funcionário de mais alto posto ali presente, mas o velho
replicou que o horário de atendimento ao público já tinha acabado.
Insistindo, ela anunciou quem era. O porteiro limitou-se a informar que
os visitantes só tinham acesso ao local entre as 13 e as 15 horas. E já
eram quase 17 horas. A Comissária do Povo tentou entrar à força. O
porteiro bloqueou a passagem e fechou o edifício.

Não foi um começo auspicioso para o novo regime. Os funcionários do


ministério tinham-se juntado a uma greve de funcionários públicos
contra a ascensão dos bolcheviques ao poder. Na manhã seguinte, ao
regressar com um pequeno destacamento de soldados, Kollontai
constatou que o imóvel estava quase deserto. Literalmente todo o
pessoal aderira à paralisação e apenas os porteiros, pessoal de limpeza e
mensageiros tinham comparecido ao trabalho. Uma vez que não fazia
sentido instalar-se num escritório totalmente vazio, a comissária voltou
ao Smolny, onde ocupou uma sala. O velho porteiro do ministério
ganhou a incumbência de encaminhar para o quartel-general
bolchevique as viúvas e crianças esfarrapadas, os camponeses
refugiados e os arruinados que procuravam as dependências vazias da
rua Kazan.

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A Tragédia de um Povo: a Revolução Russa


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Greves semelhantes e campanhas de sabotagem nos principais


ministérios e serviços públicos (bancos, correios e telégrafos,
administração de caminhos-de-ferro, órgãos municipais, tribunais,
escolas, universidades e outras instituições vitais) marcaram as
primeiras semanas do governo bolchevique. Embora entre os
funcionários houvesse diferentes visões políticas, quase todos pareciam
concordar quanto à ilegalidade do regime e à necessidade de contestá-
lo. Ao apresentar-se numa reunião de funcionários do Ministério dos
Negócios Estrangeiros, para o qual fora escolhido, Trótski mereceu risos
irónicos. Quando os mandou retomar o trabalho, eles abandonaram
simplesmente o edifício em protesto. No Palácio Anichkov, responsável
pela gestão dos stocks alimentares do país, os empregados retiraram a

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mobília e trancaram os livros de contabilidade no cofre. Na sede dos


correios e telégrafos, desapareceram as listas telefónicas e as pilhas de
formulários para telegramas (mais tarde, serviriam de rascunho para
que alguns destes funcionários escrevessem memórias). Os grevistas do
Departamento Médico foram mais longe, arrancando o bico de pena de
todas as canetas.

Para os seus opositores, a maior fraqueza dos novos


donos do poder residia nestes primeiros passos
trôpegos visando domar os principais organismos do
Estado. Poucas pessoas apostavam na perpetuação
do regime. «Califas por uma hora», foi o veredicto de
boa parte da imprensa.

A ameaça mais séria veio com a recusa do Banco do Estado e do Tesouro


em aceitar as exigências de fundos apresentadas pelo governo recém-
instaurado. Sem dinheiro para pagar as suas contas, os bolcheviques
não tinham como se conservar no poder. O Conselho de Comissários do
Povo encaminhou várias solicitações, exigindo a transferência de dez
milhões de rublos, mas todos os pedidos foram negados e devolvidos
com o carimbo de «remetente desconhecido». A 7 de novembro, o novo
Comissário de Finanças, V. R. Menzhinsky, apareceu à porta da
instituição com um destacamento de marinheiros e reclamou a quantia.
Os tesoureiros mantiveram-se firmes e, apesar da ameaça armada e de
promessas de demissão e ultimatos, persistiram na recusa. Só dez dias
depois os bolcheviques conseguiram assumir o controlo do banco e, com
uma arma apontada, obrigaram os funcionários a abrir os cofres,
carregando cinco milhões de rublos em bolsas de veludo. O valor foi
colocado sobre a mesa de Lénine, no Instituto Smolny. Toda a operação
pareceu um assalto, mas foi assim que os bolcheviques puseram as mãos
no erário nacional, embora nenhum deles fizesse a mínima ideia de

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como funcionava uma grande instituição financeira. «Entre nós, havia


gente que conhecia o sistema bancário pela leitura de livros e manuais,
mas ninguém que entendesse os procedimentos técnicos operacionais.
Penetrámos nos enormes corredores deste estabelecimento como se
entrássemos numa floresta virgem», recordou um dos novos diretores.

Para os seus opositores, a maior fraqueza dos novos donos do poder


residia nestes primeiros passos trôpegos visando domar os principais
organismos do Estado. Poucas pessoas apostavam na perpetuação do
regime. «Califas por uma hora», foi o veredicto de boa parte da
imprensa. Gots, o líder SR, deu aos bolcheviques «não mais do que
alguns dias»; Gorki apostou duas semanas; Tsereteli, três; Nabokov
recusava-se a «crer na força do regime bolchevique e esperava que
ruísse em breve». Muitos dos bolcheviques menos sanguíneos já não
demonstravam otimismo. «A situação revela-se tão instável que, ao
terminar cada carta, não sei se será a última. A qualquer momento
posso ser atirado para a prisão», escreveu Lunatcharski à mulher a 29
de outubro.

A oposição dos funcionários e a falta de experiência bolchevique em


gerir a complexa engrenagem do Estado não eram os únicos sinais de

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derrocada iminente. O regime revolucionário enfrentava dificuldades


para abastecer as cidades de comida e para deter o colapso económico.
E estava também isolado dos camponeses, que representavam a grande
maioria da população e tendiam a votar contra os novos governantes
nas eleições para a Assembleia Constituinte. Tal como a Comuna de
Paris de 1871, Petrogrado parecia uma pequenina ilha rubra no meio de
um vasto oceano verde. Além disso, os bolcheviques também
precisavam de encarar a crítica das potências ocidentais e do resto da
intelectualidade socialista. Durante o outono e o inverno, o jornal de
Gorki, Novaia zhizn’, foi o porta-voz mais importante e dedicado no
combate aos rumos tomados pela Rússia. Graças às capacidades
políticas do editor e escritor, o jornal conseguiu escapar às garras dos
censores bolcheviques, ao contrário do que aconteceu com boa parte da
imprensa oposicionista. A coluna assinada por Gorki, «Reflexões
extemporâneas», contendo denúncias amargas contra a «nova
autocracia», deve ter abalado a simpatia indulgente com que Lénine o
agraciava. Frequentemente, Gorki expressava surpresa pelo facto de a
publicação ainda não ter sido fechada. «Lénine e Trótski nem imaginam
o significado que têm as palavras liberdade e direitos humanos. Ambos
estão contaminados pelo veneno malévolo do poder, e isto é patente na
atitude vergonhosa que manifestam em relação à liberdade de expressão
individual e a todas as liberdades democráticas», registou a 7 de
novembro.

Apesar de um isolamento aparentemente fatal, nos três primeiros meses


pós-revolução, os bolcheviques conseguiram consolidar a sua ditadura.
Em janeiro de 1918, ao ser convocada, a Assembleia Constituinte –
esperança da oposição democrática – já constituía um corpo impotente,
fruto de um Estado unipartidário e da disseminação do poder dos
sovietes provinciais. Como é que os bolcheviques alcançaram esta
proeza? Uma parte deste sucesso deveu-se à inexistência de uma
oposição militar séria durante este período crítico, quando o regime
ainda se mostrava frágil. Não existiam os grandes Exércitos Brancos e as
principais forças antibolcheviques eram pequenas tropas cossacas
envolvidas em conflitos locais na periferia do império. No centro do
país, quase não havia quem desafiasse os homens do Smolny. Os

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candidatos mais prováveis à chefia da oposição – SR e kadets – estavam


tão certos da ruína inevitável do regime que se abstiveram de se
organizar contra ele. Naturalmente, todos presumiam que os
bolcheviques implodiriam por conta própria, vítimas da sua fragilidade.
Sendo assim, ninguém moveu uma palha contra eles. Organizado por
SR logo nos primeiros dias do poder bolchevique, o Comité de Salvação
da Rússia e da Revolução era quase um organismo de fachada, sem
ingerência efetiva. Elaborado por Chernov – ainda instalado no Stavka,
o velho quartel-general do exército –, o plano destinado à formação de
um governo socialista rival nunca saiu do papel.

O ponto crucial do sucesso bolchevique foi um


programa de construção e desestruturação do
Estado. Nos escalões administrativos mais elevados,
procuraram centralizar todo o poder nas mãos do
partido e, recorrendo ao terror, exterminaram toda e
qualquer oposição política. 

Mas o ponto crucial do sucesso bolchevique foi um programa de


construção e desestruturação do Estado. Nos escalões administrativos
mais elevados, procuraram centralizar todo o poder nas mãos do
partido e, recorrendo ao terror, exterminaram toda e qualquer oposição
política. Nos escalões mais baixos, deram cabo das antigas hierarquias,
entregando a ascendência aos sovietes locais, organizações de fábrica,
comités de soldados e outras entidades descentralizadas ligadas aos
interesses classistas. O vazio de poder surgido desta iniciativa ajudaria a
minar a democracia em pontos-chave, enquanto as massas seriam
neutralizadas pelo exercício do poder sobre os seus velhos inimigos de
classe ou etnia, no âmbito das comunidades em que viviam. Não existia,
obviamente, um plano diretor a orientar esta mudança. Tudo era feito
de improviso, a exemplo do que ocorrera na revolução. Porém, Lénine

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tinha uma perceção instintiva da direção geral a ser tomada, algo que
chamava de «dialética revolucionária». Sob muitos aspetos, esta
constituía a essência do seu talento para a vida pública. A influência dos
sovietes locais no campo levaria os camponeses a ver a Assembleia
Constituinte como dispensável e, portanto, minaria a base política dos
SR. Afinal, para quê uma Assembleia Constituinte se os agricultores
tinham autonomia quase total, podendo autogovernar-se e dividir a
terra da nobreza como quisessem? O «controlo operário» nos comités
de fábrica contribuiria para o desmantelamento da velha infraestrutura
industrial – o que os bolcheviques chamavam de «sistema capitalista»
–, transferindo para os trabalhadores a responsabilidade parcial pela
crise económica. Dar mais voz aos soldados e estimular iniciativas
pacifistas na frente de batalha acabariam com os projetos de antigos
comandantes desejosos de mobilizar as tropas contra o novo regime e de
retomar a guerra. Por fim, garantir autonomia às fronteiras do falecido
império completaria o desmembramento do velho Estado. Segundo
Lénine, ajudaria também ao desaparecimento das relações feudais.

Sem dúvida que Lénine considerava todos estes movimentos uma


fórmula capaz de extinguir o velho sistema político e abrir caminho para
a criação da ditadura do partido. Vale a pena ressalvar que não há
provas para esta afirmação – apenas indícios corroborados pelos factos,
acrescentados a tudo o resto que sabemos a respeito dos pensamentos e
ações de Lénine. É difícil aceitar a ideia defendida por alguns
historiadores, segundo os quais o futuro ditador era um libertário e
encorajava as formas localizadas de poder na tentativa de construir um
novo tipo de Estado, descentralizado, exatamente como consta em O
Estado e a revolução. Segundo esta versão, tratar-se-ia de um plano
muito bem-intencionado, desviado da rota por força das necessidades
concentradoras da guerra. No entanto, a conceção do Estado
revolucionário de Lénine sempre foi visceralmente centralista. Ele
valeu-se dos movimentos locais para aniquilar o velho regime e a frágil
democracia de 1917. Simultaneamente, tencionava destruir estes
mesmos movimentos, mantendo-os como forças políticas fragmentadas.
Ao apoiar o campesinato contra os senhores de terra, tinha por objetivo
substituir o sistema de pequenas propriedades rurais pelas fazendas

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coletivizadas. Ao apelar ao «controlo operário», fazia-o sabendo que o


resultado seria o caos, assim reforçando a necessidade de um governo
centralizado sob a batuta do partido. Ao endossar o poder dos soldados
como forma de abalar a velha estrutura militar imperial, sem dúvida
que pretendia construir o Exército Vermelho com base nas estruturas
convencionais. Ao dar voz a diversos movimentos pela independência
em relação à Rússia, o seu propósito era acabar totalmente com os
estados nacionais. Toda e qualquer ação de Lénine tinha o poder como
objetivo. Para ele, o poder não se resumia a um meio – era o fim último.
Parafraseando George Orwell, Lénine não articulou uma ditadura do
proletariado para salvaguardar a revolução; ele fez a revolução para
instituir uma ditadura.

O autor, Orlando Figes

O objectivo prioritário dos bolcheviques consistia em manter controlo


absoluto sobre o funcionamento da máquina estatal. Foram necessárias
várias semanas para romper a resistência dos funcionários públicos. Os
líderes da greve e alguns funcionários de maior destaque acabaram

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presos; comissários políticos passaram a supervisionar o trabalho das


repartições; sedentos em servir os novos donos do poder, burocratas de
menor expressão foram promovidos para escalões superiores. Em 1918,
em todos os escalões, mas especialmente nos mais altos, a maioria do
funcionalismo era formada por pessoal que já trabalhava para o governo
no ano anterior. Todavia, nos locais onde havia desconfiança em relação
aos antigos funcionários (o exemplo mais famoso foi no Ministério dos
Negócios Estrangeiros), houve uma grande purga. O padrão repetir-se-
ia ao longo dos primeiros anos de construção do Estado soviético. O que
se viu foi o casamento de conveniências entre a exigência de lealdade
apresentada pelos bolcheviques e as ambições da base partidária, que
crescia cada vez mais. Um dos resultados de tal simbiose foi a ascensão
de mercenários de terceira classe, oportunistas corruptos e elementos
semianalfabetos, catapultados da sarjeta para posições de grande
importância. O baixo nível cultural da burocracia soviética seria um
legado eterno de outubro, uma herança que, posteriormente,
assombraria as chefias bolcheviques.

Devido à greve do funcionalismo, que tornou impossível a formação de


um governo nos moldes tradicionais, até meados de novembro o Comité
Militar Revolucionário continuou a exercer a função de governo de
facto. Só após um mês de governo é que os Comissários do Povo
obtiveram controlo suficiente sobre as suas pastas, podendo, então,
transferir autoridade executiva para o Sovnarkom. E este seria um
gabinete diferente de tudo o que tinha sido visto antes. Não havia
divisão precisa entre os interesses do partido e os do governo. As
reuniões do Conselho de Comissários do Povo presididas por Lénine, na
sede bolchevique, o Instituto Smolny, abrangiam questões partidárias e
nacionais; as resoluções do Comité Central travestiam-se de decretos
governamentais. Todos os primeiros procedimentos deste gabinete
careciam de planeamento. Não havia ordem de trabalhos para os
encontros e tudo era discutido como «assunto urgente», enquanto
Lénine rabiscava as deliberações que lhe convinham. No instante
oportuno, comunicava-as, para que fossem aprovadas sem mais
delongas, pois poucos ousavam questioná-lo. Segundo muitos
observadores, estas reuniões ocorriam numa atmosfera conspirativa,

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como se os bolcheviques fossem psicologicamente incapazes de transitar


de uma organização política clandestina para um partido responsável
pela vida de um país inteiro. Nem sequer haviam trocado os casacos de
couro por fatos. Simon Liberman, de vez em quando presente nas
discussões do Sovnarkom, registou:

Apesar dos esforços de um secretário obsequioso para imprimir a cada


sessão o caráter solene de uma reunião de governo, não podíamos
deixar de sentir que estávamos a participar em mais uma ronda de um
comité revolucionário na clandestinidade! Durante anos, pertencemos
a inúmeras organizações sigilosas. E, nos encontros do Sovnarkom,
tudo nos parecia familiar. Muitos comissários sentavam-se à mesa
sem tirarem os sobretudos e casacos; a maioria insistia em vestir
medonhos casacos de couro.

O baixo nível cultural da burocracia soviética seria um


legado eterno de outubro, uma herança que,
posteriormente, assombraria as che as bolcheviques.

Os bolcheviques nunca conseguiram livrar-se dos hábitos da


clandestinidade. Em 1921, Lénine ainda dava a impressão de ser um
conspirador, não um estadista. O fenómeno nada tinha de
extraordinário – poder-se-ia considerar uma síndrome jacobina –, o que
explica, em parte, a tendência do Estado revolucionário para perpetuar
a violência e o terror. Mas os bolcheviques foram um passo além dos
franceses, constituindo a primeira ditadura do século XX (seguiram-se
as de Mussolini, Hitler, Franco e Castro) a usar a propaganda para
glorificar o seu próprio passado cruel e a adotar símbolos e emblemas
militares. Este culto à violência – entendida como um fim em si mesma,
não um meio para qualquer alvo – serviu de eixo à autoimagem
soviética.

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Assim como o partido ofuscou o trabalho do Sovnarkom, este fez


sombra ao Comité Executivo do Soviete. Embora a tomada do poder
tivesse sido empreendida em nome do Congresso do Soviete, não
agradava a Lénine governar ao lado deste ou da sua cúpula. Ele não
acreditava no princípio da soberania parlamentar, nem mesmo quando
o parlamento em questão era um soviete no qual, pelo menos em teoria,
a maioria era bolchevique. Nas primeiras semanas após o golpe de
outubro, o Comité Executivo do Soviete refreou o Sovnarkom. SR de
esquerda, anarquistas e o pequeno grupo de mencheviques
internacionalistas, agrupados em torno do Novaia zhizn’, cumpriram o
papel da oposição. Na eventualidade de bolcheviques mais comedidos se
agregarem ao seu coro, a vantagem de Lénine ficaria ameaçada. Em
meados de novembro, quando os líderes da ala esquerda do Soviete
Camponês se incorporaram no Comité Executivo do Soviete de Todas as
Rússias, esse antagonismo tornou-se ainda mais perigoso. A 24 de
novembro, a moção de censura à Duma municipal, patrocinada pelos
bolcheviques oito dias antes, obteve maioria por um único voto. E, na
recontagem, foi derrotada.

A junção com o Soviete Camponês foi um fator crucial na derrocada do


Comité Executivo, enquanto instituição legislativa (mais uma vez, e sem
muita margem de erro, pode-se afirmar que não era outra a intenção de
Lénine). Aos 108 delegados camponeses acrescentaram-se uma centena,
saídos de organizações revolucionárias do exército e da marinha, e
outros 50 vindos dos sindicatos. De uma hora para a outra, o Comité
Executivo mais que triplicara, passando a conter 366 membros,
demasiados para um órgão de cúpula conseguir operar com eficiência.
Em consequência, o fardo da tomada de decisões acabou transferido
para o Sovnarkom.

Passado um mês da revolução, o Comité Executivo do Soviete só se


reunia de vez em quando (uma ou duas vezes por semana), enquanto as
discussões do Conselho de Comissários do Povo se tornavam mais
constantes (uma ou duas vezes por dia). O volume de atos legislativos
submetido ao Comité Executivo também diminuiu muito, pois o
Sovnarkom começou a governar por decreto. A 4 de novembro, num

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desafio claro ao poder do soviete, o governo de Lénine arrogou-se o


direito de criar leis urgentes sem, para isso, precisar de consultar quem
quer que fosse. Os bolcheviques moderados votaram do lado da
oposição, colocando-se contra o decreto. Porém, a proposta do
Sovnarkom vingou, graças à diferença de dois votos no Comité
Executivo, cujo presidente, Kamenev, se afastou do cargo e se associou à
oposição, num esforço concentrado em defesa da soberania do soviete.
Mas os leninistas persistiram.

Passado um mês da revolução, o Comité Executivo


do Soviete só se reunia de vez em quando (uma ou
duas vezes por semana), enquanto as discussões do
Conselho de Comissários do Povo se tornavam mais
constantes (uma ou duas vezes por dia).

O substituto de Kamenev, Sverdlov, era um defensor ardente da


ditadura partidária e cumpriu à risca as determinações do chefe, de
modo a concentrar todo o poder nas mãos do Conselho de Comissários
do Povo. A 17 de novembro, apresentou ao Comité Executivo uma
«instrução constitucional». Formalmente, o texto reiterava que o
Sovnarkom devia obediência ao soviete e precisava de submeter à
aprovação deste todos os atos legislativos.

Onde estava a armadilha? No facto de o documento não estipular


quando é que tal sujeição deveria acontecer. Por outras palavras, o
Sovnarkom podia publicar um decreto totalmente legal sem apreciação
prévia do soviete, prática que se tornou cada vez mais recorrente. A 12
de dezembro, o Comité Executivo reuniu-se pela primeira vez, em duas
semanas. Entretanto, o Conselho de Comissários do Povo iniciara
conversações de paz com as Potências Centrais, declarara guerra à
Ucrânia e instituíra lei marcial em Petrogrado e Moscovo. De acordo

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com Sukhanov, todas essas medidas tinham sido implementadas sem


qualquer discussão com o soviete. O princípio do poder do soviete,
através do qual os bolcheviques alegavam o seu direito de governar,
tinha sido sepultado. O Comité Executivo reduzira-se a uma «triste
paródia de parlamento revolucionário».

Desde os primórdios do novo regime, os donos do poder dedicaram-se a


combater todos os partidos que se tinham pronunciado contra os
acontecimentos de outubro. Para os bolcheviques, bastava apelidar estes
partidos de «contrarrevolucionários». A 27 de outubro, o Sovnarkom
baniu os jornais da oposição, provocando grande alarido em vários
setores. A 4 de novembro, quando a matéria foi submetida ao Comité
Executivo do Soviete, os bolcheviques mais moderados votaram contra a
ideia. Em parte, a censura à imprensa provocou os cinco despedimentos
de membros do Comité Central e outros cinco do Sovnarkom registados
naquele dia. O Sindicato dos Gráficos anunciou uma greve nacional,
caso a liberdade de imprensa não voltasse a vigorar. Mas nada evitou
que o Comité Militar Revolucionário mandasse esquadrões
bolcheviques para partir as impressoras, confiscar papel e prender os
editores. A maioria das publicações contrárias a Lénine mergulhou na
clandestinidade e reapareceu logo depois com o nome levemente

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modificado. O boletim SR, Volia naroda, ressurgiu no dia seguinte como


Volia, sendo posteriormente rebatizado de Narod. O jornal socialista,
Den’ (Dia), voltou como Manhã, Meio Dia, Tarde, Vesperino, Noite,
Meia-Noite, e por aí em diante.

Os partidos de oposição mantinham-se em atividade apoiados apenas


na esperança de salvação política bafejada pela Assembleia Constituinte,
vista como a verdadeira voz da democracia. Afinal, ali cada cidadão
estaria representado, independentemente da classe a que pertencesse,
enquanto os sovietes espelhavam apenas a vontade dos trabalhadores,
camponeses e soldados. Os adversários de Lénine acreditavam que a
Assembleia Constituinte estava destinada a ser reconhecida como o
mais alto poder soberano: nem mesmo os bolcheviques ousariam
desafiá-la. Na verdade, os líderes bolcheviques dividiam‑se quanto à
melhor atitude frente a esta ameaça, embora ainda desconheçamos
detalhes importantes dos debates internos ocorridos a este respeito.
Lénine sempre se mostrara desdenhoso para com as urnas e, já por
ocasião das Teses de Abril, deixara claro que considerava o poder do
soviete uma fórmula democrática superior à Assembleia Constituinte.
Nos sovietes, não havia espaço para a «burguesia». E, no entender de
Lénine, nem na revolução. Mas a tomada das rédeas do país apoiara-se,
também, no pretexto de que era necessário garantir a convocação de
eleições: muito se falou sobre a maneira como o Governo Provisório
planeava convocá-las e sobre o facto de apenas um governo do soviete
ter condições de conduzir a Rússia a objetivo tão nobre. Se o negassem
antes de alcançar o poder, os bolcheviques deixariam cair a máscara.
Além disso, os elementos mais circunspectos do partido estavam, em
diferentes graus, comprometidos com o princípio de um órgão amplo
mandatário de toda a Rússia. Kamenev era um defensor ferrenho da
ideia de que os bolcheviques deviam lutar pelo poder no âmbito da
Constituinte. E, como alguns SR de esquerda, propunha um modelo
híbrido: o poder do soviete a atuar a nível local e a Assembleia
Constituinte a agir como parlamento nacional soberano.

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29/06/2019 1917. Dos autocratas de Smolny à tragédia de um povo – Observador

Desde os primórdios do novo regime, os donos do


poder dedicaram-se a combater todos os partidos
que se tinham pronunciado contra os acontecimentos
de outubro. Para os bolcheviques, bastava apelidar
estes partidos de «contrarrevolucionários».

Perante isto, a única saída de Lénine consistia em permitir as eleições,


marcadas para 12 de novembro e, dadas as dimensões do país, com
duração prevista de duas semanas. A campanha foi intensa, por vezes
violenta, e o número de eleitores expressivo. A maioria do povo sabia o
significado de um referendo nacional em pleno regime bolchevique. Os
SR obtiveram 16 milhões de votos (38 por cento do total), quase sempre
de camponeses da zona agrícola central e da Sibéria. No entanto, as
cédulas não diferenciavam os SR de esquerda – que tinham apoiado a
ascensão bolchevique – e os de direita. A cisão do partido acontecera há
pouco tempo e não tinha havido tempo para reimprimir os papéis de
votação (à exceção de um ou dois lugares). Portanto, é impossível saber
que parte dos votos dados aos SR exprimiu repúdio ao regime
bolchevique, embora esta fosse a questão crucial da eleição. O único
dado menos incerto é que os SR de esquerda tinham a sua principal
base de sustentação entre os soldados jovens e de origem camponesa,
enquanto a direita do partido se alicerçava nos agricultores mais idosos
ainda estabelecidos em aldeias. De acordo com a maior autoridade no
assunto, Oliver Radkey, no que tocava à preferência partidária, os
agricultores estavam tão divididos quanto as classes médias. Ainda
assim, a direita SR provavelmente desfrutava de maior prestígio
eleitoral no campo, tendo em conta a sua influência nas organizações
partidárias de província e, por conseguinte, uma campanha mais
combativa. Conforme o costume em vigor desde o surgimento das
assembleias aldeãs, cada comunidade rural dava o seu voto a um só
partido. Esta prática deve ter favorecido a direita SR, pois uma quota

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assinalável dos anciãos das aldeias eram-lhe favoráveis. Mas, mesmo na


hipótese de os SR conservadores terem conquistado a fatia mais
generosa do voto rural, ainda assim faltava-lhes a maioria na
Constituinte, possível apenas com o apoio dos mencheviques (que
obtiveram três por cento do total de votos), dos kadets (cinco por cento)
e dos SR da Ucrânia (12 por cento). Não obstante, no que diz respeito à
questão da independência nacional, o abismo entre SR russos e
ucranianos era tão grande que mesmo a fatia de 12 por cento parecia
improvável.

Contudo, os resultados da eleição representaram um profundo revés à


alegação do governo de que governava em nome do povo. Os
bolcheviques conseguiram dez milhões de votos (24 por cento),
concentrados na região norte industrial, rica em trabalhadores e
soldados. Em Petrogrado e Moscovo, obtiveram a maioria; mas no sul
agrícola, onde o partido era extremamente débil, quase não houve quem
se lembrasse deles. Imediatamente, os bolcheviques declararam os
resultados injustos: relatos locais a respeito de irregularidades
(propensas a ocorrer num território tão grande e atrasado quanto o
russo) foram escrupulosamente esmiuçados e citados como prova da
necessidade de uma nova votação. Entretanto, o partido intensificou a
campanha de intimidações e ameaças contra os defensores da
Assembleia Constituinte, que a 20 de novembro – oito dias antes da
data prevista – teve a sua sessão de abertura adiada indefinidamente
por ordem do Sovnarkom. Menos de 24 horas depois, o Conselho de
Comissários do Povo emitiu um decreto dando aos eleitores o direito de
retirarem deputados de qualquer órgão representativo, inclusive da
Constituinte, desde que com o aval de metade dos membros de um
determinado colégio eleitoral. Isso equivalia a dar aos ativistas
bolcheviques o direito de reverter o resultado de eleições democráticas,
bastando para tal granjear a adesão de fábricas e guarnições. A medida
tinha alvo certo: os kadets, que tinham tido um bom desempenho nas
cidades, concentrando os votos de centro-direita. No Comité Executivo
do Soviete, Trótski defendeu a proposta, uma alternativa «indolor» ao
encerramento da Assembleia, caso esta se opusesse ao princípio do
poder do soviete. Resumindo: uma afirmação flagrante de que os

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bolcheviques não tolerariam um parlamento hostil. «Se os kadets forem


maioria, a Assembleia Constituinte não terá poder», advertira. Para que
a insolência não caísse no vazio, a 23 de novembro, o Comité Militar
Revolucionário invadiu o Palácio Tauride e prendeu três comissários
eleitorais da Assembleia. Levados ao Smolny, enfrentaram seis dias de
interrogatórios, até serem liberados e substituídos pelo bolchevique
Uritsky.

Os partidos da oposição estavam furiosos com estes atos de intimidação.


Parecia que os bolcheviques só pensavam em duas possibilidades: adiar
a convocação da Assembleia Constituinte para um futuro muito remoto
ou fechá-la de uma vez por todas tendo em conta o mau desempenho do
seu partido nas eleições. A oposição formou imediatamente uma União
pela Defesa da Assembleia Constituinte e convocou os seus apoiantes
para uma manifestação em frente ao Palácio Tauride a 28 de novembro
para forçar a abertura do parlamento. Uma multidão saiu à rua no dia
marcado, mas nada que se comparasse com as 200 000 pessoas citadas
pela imprensa avessa a Lénine. Uma estimativa de 50 000 parece mais
verosímil, uma massa composta de estudantes e funcionários públicos
em greve, embora também houvesse trabalhadores, com destaque para
gráficos e artesãos qualificados. Liderados por Schreider, o incansável

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presidente da câmara de Petrogrado, 45 deputados eleitos para a


Assembleia abriram caminho até ao Palácio Tauride, passando os
piquetes bolcheviques formados por fuzileiros letónios. Já no interior do
edifício, debruçaram-se sobre o primeiro ponto da agenda parlamentar,
a eleição de um presidium. Sabiam obviamente que não contavam com
o quorum necessário (400 deputados), mas a iniciativa tinha valor
simbólico. No dia seguinte, o palácio foi cercado por soldados,
encarregados de manter a população longe do edifício. E, desta vez, os
parlamentares entraram, mas não puderam sair.

A manifestação da véspera ganhara o rótulo predileto dos bolcheviques


– tratava-se de um ato «contrarrevolucionário» – orquestrado pelo
Partido Kadet, que se viu banido e denunciado como «inimigo do
povo», na mais perfeita tradição jacobina. Dezenas de líderes foram
presos, inclusive diversos deputados da Assembleia Constituinte:
Shingarev, Kokoshkin, Dolgorukov, Panina, Astrov e Rodichev. A justiça
revolucionária não reconhecia imunidade parlamentar. A maioria dos
detidos passou três meses na Fortaleza de Pedro e Paulo, em condições
bastante razoáveis. Dolgorukov pôde dedicar-se à leitura e dar vivas à
liberdade em vários telefonemas recebidos na cadeia. No entanto,
Kokoshkin e Shingarev adoeceram (o primeiro teve tuberculose) e,
tendo sido transferidos para o hospital-prisão, acabaram brutalmente
assassinados por marinheiros bolcheviques. Os SR de esquerda
opuseram-se às detenções, considerando-as um ato de terror. Gorki
apelidou-as de «desgraça da democracia». Mas os líderes bolcheviques
estavam decididos a destruir os kadets, a «força organizadora da reação
burguesa». A medida não se restringia à supressão de um partido;
servia, também, de declaração de guerra civil a toda uma classe social.
Tentando justificar o encarceramento perante o Comité Executivo do
Soviete, Lénine apelidou o Comité Central dos kadets de «estado-maior
político da burguesia». Trótski chegou a alegar que os burgueses já
estavam a desaparecer do cenário histórico e, portanto, a violência
bolchevique contra eles funcionaria apenas como um lenitivo, um tiro
de misericórdia. «Nada há de imoral no facto de o proletariado pôr fim a
uma classe que está a sucumbir», sentenciou.

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Lenta mas gradualmente, surgia a forma do futuro


Estado policial. A 5 de dezembro, o Comité Militar
Revolucionário foi extinto e, dois dias depois, as suas
incumbências passaram para a alçada da Cheka,
órgão de segurança que, posteriormente, ganharia o
título de KGB.

As detenções dos pretensos «inimigos do povo» não se limitaram


apenas aos kadets. Como no Terror Jacobino, que sempre serviu de
modelo e desculpa para os bolcheviques, os tentáculos propagaram-se
até às fileiras do movimento revolucionário. A Fortaleza de Pedro e
Paulo hospedou também grande número de líderes SR e mencheviques
(Avksentiev, Gots, Sorokin, Argunov), assim com alguns nomes
importantes do Soviete Camponês. Nem mesmo Tsereteli, Dan e
Chernov escaparam. No fim de dezembro, as celas estavam tão
abarrotadas que, para abrir espaço, os bolcheviques começaram a
libertar criminosos comuns. Alguns dos prisioneiros «políticos» mais
ricos, como o empresário Tret’iakov e o antigo ministro do Comércio e
da Indústria, Konovalov, pagaram para voltar às ruas.

Lenta mas gradualmente, surgia a forma do futuro Estado policial. A 5


de dezembro, o Comité Militar Revolucionário foi extinto e, dois dias
depois, as suas incumbências passaram para a alçada da Cheka, órgão
de segurança que, posteriormente, ganharia o título de KGB. Desde a
sua conceção, a Cheka operou fora da lei: nenhum decreto publicado
marcou o seu nascimento, produto de atas secretas do Sovnarkom, ao
qual, em tese, estaria subordinada. A realidade, porém, era que a nova
força repressiva funcionava para além de qualquer controlo político.
Lénine acentuara a necessidade de haver um «jacobino operário e
firme» à frente da nova «Okhrana» e encontrou este homem em Felix
Dzerzhinsky, um polaco nascido na cidade lituana de Vilna, que passara

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metade da vida adulta em diversas prisões czaristas e, talvez por isto,


tivesse motivos especiais para garantir que todos os «inimigos do povo»
também sofressem atrás das grades. Na infância, Dzerzhinsky
pretendera ser jesuíta, mas acabou por perder a fé religiosa. Conservou,
todavia, o espírito fanático que transpareceu nas suas campanhas de
perseguição política. Na reunião do Sovnarkom que criou a Cheka,
afirmou que a sua tarefa seria travar uma guerra sem quartel contra os
inimigos internos da revolução:

Precisamos de mandar para a frente de batalha – a mais perigosa e


cruel das frentes – camaradas determinados, duros, dedicados e
prontos a tudo na defesa da revolução. Não pensem que procuro a
justiça revolucionária: não precisamos dela. Estamos a falar de
guerra – uma guerra corpo a corpo – uma luta que deve ser levada às
últimas consequências. Uma questão de vida ou morte!

Poder-se-ia perguntar porque é que os bolcheviques moderados,


francamente avessos ao uso do terror político, não detiveram a
intolerância dos leninistas. Afinal, a ala mais prudente do partido
contava com o apoio das bases. A resposta está certamente na fraqueza
psicológica dos moderados e na posição autocrática de Lénine junto dos
líderes bolchevistas após a «vitória» de outubro. Nenhum dos membros
da fação mais branda tinha coragem ou capacidade de liderança para
defrontar Lénine. E nenhum deles pretendia correr o risco de dividir o
partido. Os cinco homens que, a 4 de novembro, haviam sido
suficientemente ousados para abandonar o Comité Central, mais cedo
ou mais tarde fizeram as pazes com Lénine. Sempre cobarde e
oportunista, coube a Zinoviev o primeiro recuo. Foi readmitido no
Comité Central quatro dias depois de ter anunciado o seu próprio
afastamento. Kamenev, Miliutin, Nogin e Rykov resistiram por um
período mais longo: quase quatro semanas. Em maior ou menor grau, a
debilidade fundamental de todos os moderados era o seu
intelectualismo. Apesar de incomodados pela perspetiva de um Estado
terrorista, faltava-lhes ânimo para lutar contra isso com outras armas
além de palavras. Lunatcharski era o exemplo perfeito deste perfil. A 2
de novembro, num encontro do Sovnarkom, desfez-se em lágrimas e

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demitiu-se do cargo de comissário do esclarecimento ao ser informado


de que o bombardeio bolchevique destruíra a Catedral de São Basílio.
«Não aguento mais, já dei a minha quota de sacrifício. Não posso
suportar tamanha barbárie», escreveu no Novaia zhizn’. Quando as
notícias foram desmentidas, Lunatcharski voltou atrás, apesar de se
sentir frustrado com o terror bolchevique. Um dos seus aliados políticos
mais antigos, Gorki – que mais tarde o sobrecarregaria com pedidos em
nome de escritores e artistas perseguidos – resumiu a situação dos
moderados numa carta endereçada a Ekaterina, no Ano Novo:

É evidente que a Rússia ruma para uma nova autocracia, ainda mais
selvagem. Ontem visitei o «Comissário de Justiça», um homem muito
decente, porém, como todos os representantes da «autoridade»,
inteiramente impotente. Solicitei que libertasse Vernadsky, pelos vistos
sem sucesso […]. O comportamento de Lunatcharski é espantosamente
absurdo e ridículo – ele é uma figura tragicómica. Todos os
bolcheviques da sua laia se tornaram repulsivamente deploráveis e
infames.

A esquerda SR, que se juntou ao Sovnarkom a 12 de dezembro, também


estava paralisada. De entre os principais grupos políticos de maior
expressão, este fora o único a não abandonar o Congresso dos Sovietes
após a tomada do poder pelos bolcheviques. A atitude levou ao
rompimento definitivo com a fação SR de direita. Desde então, os dois
passaram a agir como partidos distintos em luta pelo controlo das
organizações SR nas províncias e pelo controlo do Soviete Camponês.
Enquanto a ala mais conservadora se mostrava disposta a manter os
bolcheviques isolados e concentrava todas as suas esperanças na
Assembleia Constituinte, a tendência mais à esquerda acreditava que,
unindo-se ao governo bolchevique – e à Cheka – poderia impedir
excessos por parte dos novos donos do poder. A maioria dos líderes SR
de esquerda ainda era muito jovem e, portanto, passível de incorrer no
idealismo insensato: Steinberg, Karelin e Kalegaev nem sequer tinham
chegado aos 30 anos, enquanto Spiridonova e Kamkov tinham apenas
22 anos. A esquerda SR inspirava-se no que considerava ser a
espontaneidade revolucionária dos sovietes, tentando conciliar o

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extremo liberalismo com o uso exacerbado do terror. A partir de


outubro, esta fação praticamente tomou conta dos sovietes locais,
expressando a vontade dos camponeses e soldados radicalizados. A 26
de outubro, no II Congresso dos Sovietes, o Decreto da Terra proposto
por Lénine, na verdade, espelhava, conforme ele próprio admitiria, o
programa agrário dos SR de esquerda. O texto deu carta-branca às
comunidades rurais para tomarem e dividirem toda a propriedade
privada no campo. Foi o suficiente para convencer a esquerda SR sobre
a viabilidade de um pacto com os bolcheviques. Em meados de
novembro, após terem levado o Soviete Camponês a fundir-se com o
Comité Executivo do Soviete de Todas as Rússias, tiveram início as
negociações para a entrada dos SR de esquerda no Sovnarkom. Kalegaev
assumiu o Comissariado da Agricultura; Steinberg, o «inoperante»
Comissariado de Justiça, tão visitado por Gorki; cinco outros membros
do partido ganharam cargos menores, incluindo a administração da
rede nacional de correios e telégrafos, bastante deteriorada. Guardando
para si os postos-chave, os bolcheviques usaram os SR de esquerda
como uma folha de parreira, para esconder a nudez da ditadura. Ao
contrário das suas ingénuas expectativas, os SR de esquerda não
tiveram como cercear os exageros despóticos da política leninista e, sob
quase todos os aspetos, a realidade afigurou-se diametralmente oposta
aos ideais revolucionários que os alimentavam. Na sua perspetiva, o
sistema semianarquista de sovietes descentralizados parecia inviável,
dada a estrutura concentrada da Ditadura do Proletariado de Lénine. O
apoio que garantiam à comuna camponesa, à organização das fábricas
em bases e à autonomia política das minorias nacionais era
incompatível com os objetivos de longo prazo do bolchevismo. E o
compromisso fervoroso com as liberdades civis (Spiridonova pregara
em tempos a destruição da Fortaleza de Pedro e Paulo, símbolo do
Estado policial) dificilmente poderia ser assimilado pelo governo
bolchevique.”

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