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A “arte de perambular”
de João do Rio
•••

Maria Viana

A rua é a transformadora das línguas.


João do Rio

J oão Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto ou simples-


mente João do Rio, um dos vários pseudônimos usados pelo escritor
que tão bem retratou a sociedade do Rio de Janeiro no início do
século xx, felizmente tem sido bastante visitado pela crítica na
atualidade. ¶  Para alguns de sua época era apenas um jornalista com
ares de dândi, que usava a literatura e os jornais para angariar o prestígio
nas rodas dos requintados e endinheirados de seu tempo. Mas como bem
aponta Antonio Candido: “[...] no escritor superficial e brilhante corriam
diversos filões, alguns curiosos, alguns desagradáveis e outros que revelam
um inesperado observador da miséria, podendo a seus momentos denun-
ciar a sociedade com um senso de justiça e uma coragem lúcida que não
encontramos nos que se diziam adeptos ou simpatizantes do socialismo
e do anarquismo; que não encontramos também em nenhum dos seus
detratores”1. ¶  Aos dezesseis anos iniciou sua carreira como jornalista,
nesse ramo de atividade foi repórter, editor, diretor de redação e, não por
acaso, é considerado o criador da crônica social moderna. ¶  Segundo
seus biógrafos, o pseudônimo João do Rio foi adotado por volta de 1903,
quando trabalhava na redação da Gazeta de Notícias, à Rua do Ouvidor,
localizada no coração da então Capital Federal. Dali ele palmilhava as
ruas, atento aos pormenores que a cidade em transformação oferecia, em
busca de histórias e personagens que revelassem a cidade de seu tempo.

1. Antonio Candido, “Radicais de Ocasião”, Teresina etc, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980,
pp. 89-90.

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O livro a Alma Encantadora das Ruas, de


onde extraímos o texto copilado a seguir, é
composto de 25 narrativas, organizadas em
três blocos: “O que se Vê nas Ruas”, “Três
Aspectos da Miséria” e “Onde às Vezes Ter-
mina a Rua”. Como desfecho da obra vem
uma recolha de versos populares, inspirados
na rua e em suas personagens, ou entoados
por aqueles que por ela transitam. Trata-se
de matéria publicada originalmente sob o
título “A Musa Urbana”, na revista Kosmos,
em 1905, e que na versão em livro recebeu
o título de “Musa das Ruas”.
Uma espécie de prólogo, intitulado
“Rua”, abre a antologia. Ali o escritor não
apenas declara seu amor explícito à rua,
apresentando-a como o grande cenário onde
João do Rio foi retratado por vários caricaturistas seus protagonistas atuarão nas 25 crônicas
cariocas no início do século xix. As reproduzidas seguintes, como também apresenta-se como
mostradas neste artigo foram incluídas na re- flâneur, termo assim por ele explicado:
edição de A profissão de Jacques Pedreira, edição
organizada por Flora Süssekind e Rachel Teixeira
Para compreender a psicologia da rua não
de Mendonça. São Paulo/Rio de Janeiro, Scipione/
basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor
Casa Rui Barbosa, 1992.
do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito
vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e ner-
A partir de 1907, João do Rio cria e assina vos com um perpétuo desejo incompreensível,
regularmente a coluna “Cinematógrafo”, na é preciso ser aquele que chamamos flâneur. E
já mencionada Gazeta de Notícias, onde já praticar o mais interessante dos esportes – a arte
revelara o olhar aguçado que tinha sobre de flanar2.
a cidade. Em sua obra, a crônica ganha a
força da imagem. É como se o escritor fi- João do Rio cita os que antes dele pra-
zesse instantâneos da realidade. A cidade ticaram a arte de “perambular com inteli-
é o cenário, onde cada espectador tem um gência”, como Horácio, Sterne, Hoffmann,
papel a protagonizar, inclusive o próprio Balzac... É nessa crônica-prólogo que tam-
cronista. Por isso, ninguém melhor que ele bém tangencia o sentido do poético título, A
retratou o Rio de Janeiro do primeiro quartel Alma Encantadora das Ruas, ao proclamar:
do século xx.
O cronista viveu intensamente a Belle Oh! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas,
Époque carioca e por meio de suas ativi- ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delica-
dades como escritor e jornalista ajudou a das, trágicas, depravadas, puras infames, ruas sem
configurá-la. Sua obra é um valioso regis- história, ruas tão velhas que bastam para contar a
tro das transformações socioculturais que
pontuaram a transição do Império para a 2. João do Rio, A Alma Encantadora das Ruas, Rio
República na então Capital Federal. de Janeiro/Paris, H. Garnier, livreiro-editor, 1910, p. 8.

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evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do
revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas desespero – interminável rua da Amargura”4.
aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que A crônica transcrita a seguir figura no
ficam sem pinga de sangue3. primeiro bloco do livro e intitula-se “O que
se Vê nas Ruas”. Nessa narrativa temos não
Passa, então, a percorrer algumas ruas apenas a descrição do trabalho dos vende-
cariocas das quais descreve a “alma”, como dores ambulantes de livros, mas uma arguta
se já preparasse o leitor para os encantos e apresentação do que lia parte da população
desencantos que serão descobertos a cada naquele período.
esquina cruzada, a cada calçada trilhada nas Os que querem compreender o negócio do
páginas seguintes. livro feito por esses camelôs no período, terão
A rua, essa espécie de entidade, não é pe- a oportunidade de saber que esses livreiros
recível como os seres humanos, posto que ambulantes compravam essas obras a um valor
esses são mortais, as ruas são transformadas, baratíssimo e ganhavam no mínimo, seiscen-
têm sua arquitetura modificada pelas novas tos por cento na venda de cada exemplar aos
construções, com frequência seus nomes são transeuntes. Os que vendiam orações e modi-
alterados, mas sobrevivem aos que por elas nhas podiam faturar até dez mil réis por dia.
peregrinaram. Por isso, o cronista arrisca uma Já os pesquisadores que se debruçaram so-
profecia: “Talvez que extinto o mundo, apaga- bre os resultados recentes da terceira edição
dos todos os astros, feito o universo treva, talvez, da pesquisa que diagnosticou os hábitos de
ela ainda exista, e os seus soluços sinistramente leitura no Brasil, e constataram a importância

3. Idem, p. 10. 4. Idem, p. 34.

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da Bíblia e de livros religiosos entre o contin- não há dúvida de que são seres humanos que
gente de entrevistados, poderão verificar que tiveram a memória do seu ofício perpetuada
à época os livros religiosos aparecem entre os nas linhas traçadas pelo cronista.
mais vendidos por esses livreiros ambulantes. Observem que há nessa crônica uma certa
Mas o cronista vai além, os vendedores por preocupação do escritor quanto a essa produ-
ele descritos têm nacionalidade, nomes, ape- ção literária feita pelos poetas populares para
lidos. Há os solenes, os escandalosos, os que os seus iguais. Chega a creditar à leitura des-
enlouqueceram, os negociantes fracassados, sas obras a indisciplina e a marginalização.
os apregoadores. Então, não estamos diante Apesar desse exagero do atento observador,
de uma massa uniforme, mas de pessoas que e de certo grau de preconceito quanto à essa
encontraram no ofício da venda de livros pe- produção popular, sobre o que não nos de-
las calçadas uma maneira de ganhar a vida, teremos aqui, a crônica é um bom retrato,
mas também de embalar sonhos e curar dores não apenas do que se lia nos primeiros anos
da alma. Os descritos podem ser analfabetos da República, mas como se dava essa impor-
ou declamadores do I canto do Lusíadas, mas tante circulação de impressos.

• Os mercadores de livros •
e a leitura das ruas5
João do Rio

Exatamente na esquina do teatro S. Pedro, e de Antônio de Pádua8, o Evangelho de um


há dez anos, Arcanjo, italiano, analfabeto, Triste e os Desafogos Líricos. Estavam em
vende jornais e livros. É gordo, desconfia- exposição, cheios de pó, com as capas en-
do e pançudo. Ao parar outro dia ali, tive tortadas pelo sol.
curiosidade de ver os volumes dessa biblio- – Vende-se tudo isso?
teca popular. Havia algumas patriotadas, a – Oh! não. Há quase um ano os tenho.
Questão da Bandeira, o Holocausto6, a Dona Os outros sim – modinhas, orações, livros de
Carmen, de B. Lopes7, a Vida do Mercador
em Dona Carmen e Sinhá Flor. A segunda, que se
distingue por certa feição de afetada religiosidade e
5. Usamos como base para estabelecimento do texto a pretendido misticismo, é que se costuma prender ao
edição A Alma Encantadora das Ruas, Rio de Janeiro/ chamado simbolismo. Achamos preferível a primeira.
Paris, H. Garnier, livreiro-editor, 1910. Seus versos foram reunidos nos livros: Cromos (1881),
6. Refere-se ao romance Holocausto, de Francisco Pizzicatos (1886), Dona Carmen (1890), Brasões (1895),
Xavier Ferreira Marques, publicado pela H. Garnier, Sinhá Flor (1899), Val dos Lírios (1900) e Plumário
livreiro-editor, em 1900. (1905).” (Sílvio Romero, História da Literatura Brasi-
7. “Bernardo da Costa Lopes (1859-1916) nasceu em leira, Rio de Janeiro, José Olympio, 1960, t. v., p. 1683.)
Rio Bonito, província do Rio de Janeiro. Foi funcio- 8. O cronista refere-se a Antônio de Lisboa (1191-1195?),
nário público e jornalista. À época da recepção de também conhecido como Antônio de Pádua, cidade
sua obra Sílvio Romero escreveu: “Tem atravessado italiana onde faleceu. Foi canonizado como santo
duas fases e possui duas maneiras de poetar. A Pri- pela igreja católica pouco depois da sua morte. Ainda
meira, mais espontânea e brilhante, pode-se filiar é venerado por muito brasileiros, pois é um dos santos
no parnasianismo e acha-se em Cromos, Pizzicatos, do ciclo junino, certamente foi tema de livros sobre a
e em grande parte dos Brasões, e também em parte vida dos santos ainda comuns nos dias atuais.

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sonhos, a História da Princesa Magalona9, O atilados, os mais argutos, os mais incansáveis


Carlos Magno10, Os testamentos dos bichos... são os vendedores de Bíblias protestantes,
Levantei as mãos para o céu como pedin- com os bolsos das velhas sobrecasacas ajou-
do testemunho do alto. As obras vendáveis jados de brochuras edificantes.
ao povo deste começo de século eram as – Ó rapaz, por que não fica com essa Bí-
mesmas devoradas pelo povo meados do blia? Dou-lha por dez tostões. É o livro de
século passado! Deus, onde estão as eternas verdades. E se
– Mas não é possível... ficar com ela vai mais este volume de quebra
– Pode perguntar aos outros vendedores. sobre as feras que devoram o homem, as feras
Atirei-me a esse inquérito psicológico. Os morais...
vendedores de livros são uma chusma incon- Os outros não pairam em regiões tão
tável que todas as manhãs se espalha pela espirituais. Há os solenes – o velho Maia,
cidade, entra nas casas comerciais, sobe os que aprecia as encadernações vermelhas;
morros percorre aos subúrbios, estacionados foi guarda-livros e virou para a infelicidade
nos lugares de movimento. Há alguns anos, quando, um dia, se lembrou de decorar todo
esses vendedores não passavam de meia dú- o dicionário latino Saraiva. Há os que têm
zia de africanos, espaçados preguiçosamente apelido –espelho de Psique, pobre homem,
como o João Brandão na praça do mercado. negociante, que a má sorte faz andar agora
Hoje, há de todas as cores, de todos os fei- de cesta ao braço, com uma fita verde no
tios, desde os velhos maníacos aos rapazolas chapelinho. Há os escandalosos relapsos,
indolentes e os propagandistas da fé. A venda – O Conegundes, negralhão de cavanha-
não é franca senão em alguns pontos onde que, gritador. Há os que durante o trabalho
se exibem os tabuleiros com as edições fal- percorrem as tabernas, e para impingir aos
sificadas do Melro, de Jungueiro, e da Noite caixeiros um dos volumes ingerem em cada
da Taverna. Os outros batem a cidade, ofere- uma duas da branca – o Artur. Há os que têm
cendo as obras. E há então toda uma gama admirações literárias – o Camões, zanaga,
de maneiras para passar a fazenda. Os mais que nos recita o I canto dos Lusíadas de
cor. Há os alegres, um turbilhão deles, que
9. Segundo Câmara Cascudo, trata-se de uma novela apregoam dois dias na semana para descan-
espanhola editada pela primeira vez em Sevilha, em
sar outros cinco. Há os que têm a arte do
1519, sob o título: La História de la Linda Magalona,
Fija del Rey de Nápoles, y del muy Esforçado Caval- pregão e, longe de ir com um embrulhinho
lero Pierres de Provença. Quando transferiu-se para perguntar à casa do comprador se quer ficar
Portugal, dois anos depois, foi também o responsável
com a História de Carlos Magno, soltam a
pela primeira edição em língua lusa (Luís da Câmara
Cascudo, Os Cinco Livros do Povo, Rio de Janeiro, José voz em gorjeios estentóricos, como o Noite
Olympio, 1953, p. 225). Sonorosa.
10. Sobre essa novela de origem francesa, Câmara
Cascudo nos informa sobre a existência de uma tra-
dução feita para o castelhano, em 152, por Nicolás de Meu Deus, que note sonorosa!
Piamonte e editada pelo alemão Jacob Cromberger, O céu está todo estrelado.
então radicado em Sevilha. Cascudo menciona ainda Eu com o cavaquinho na mão.
uma edição lisboeta de 1615, feita por Domingos Fon-
seca, mas em castelhano. A primeira tradução para E a morena ao lado.
o português teria sido realizada apenas em 1728, por Isto em pleno dia.
Jerônimo Moreira de Carvalho. É ainda esse estudioso
que nos informa sobre a primeira edição brasileira,
que veio a lume pela casa Laemmert, na década de Cada sujeito desses pode passar a vida
1840 (Luís da Câmara Cascudo, op. cit., pp. 443-444). bem. As livrarias vendem baratíssimo os livre-

340  ◆  Livro
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cos procurados. Em cada um, os vendedores Os livros, porém, de grande venda ficam
ganham, no mínimo, seiscentos por cento. sempre os mesmos.
Há alguns que, trabalhando com vontade e Nós não gostamos de mudar em coisa
sabendo lançar as orações, as modinhas ou nenhuma, nem no teatro, nem na paisa-
a infalível História da Donzela Teodora11, gem, nem na literatura. É provável que o
arranjam uma diária de dez mil réis, sem divórcio tenha caído por esse inveterado e
grande esforço. Daí, todo dia aumentar o extraordinário amor de não mudar, que nos
número de camelôs de livros, vir começando obseda. Desde 1840, o fundo das livrarias
a formar-se essa próspera profissão da miséria ambulantes, as obras de venda dos camelôs
que todas as cidades têm, ávida e lamentável, têm sido a Princesa Magalona, a Donzela
num arregimentar de pobres propagandistas Teodora, a História de Carlos Magno12, A
do Evangelho e do Espiritismo, de homens Despedida de João Brandão13 e a Conversação
que a sorte deixou de proteger, de malandros de Pai Manuel com o Pai José14. Ao todo uns
cínicos, de rapazes vadios. vinte folhetos sarrabulhentos de crimes e
de sandices. Como o esforço de invenção e
11. O título original da obra em português é História permanente êxito, apareceram, exportados
da Donzela Teodora, em que trata da sua grande formo- de Portugal, os testamentos dos bichos, o
sura e sabedoria. Segundo Luís da Câmara Cascudo a
edição mais antiga de que se tem notícia dessa novela Conselheiro dos Amantes e uma sonolenta
originalmente espanhola é de 1498, editada em Toledo
por Pedro Hagembach. A primeira edição portugue- 12. Câmara Cascudo afirma que a história do impe-
sa possivelmente é de 1712, traduzida do castelhano rador Carlos Magno e dos doze pares de França foi
para o português por Carlos Ferreira e impressa na a obra mais conhecida pelos brasileiros até início do
Casa de Miguel de Almeida e Vasconcellos, mercador século xx. Não com pouca frequência era o único
de livros na Rua Nova. Ainda segundo Câmara Cas- exemplar impresso encontrado nas casas dos rincões
cudo: “Impossível calcular-se o número das edições do país. “Nenhum sertanejo ignorava as façanhas dos
em Portugal e Brasil. Neste, a partir de 1840 as reim- pares e da imponência do imperador de braba florida”
pressões cresceram sem que diminuíssem os folhetos (Luís da Câmara Cascudo, op. cit., pp. 441).
impressos em Lisboa e Porto, com mercado fiel e sem 13. Há indicação de um folheto intitulado “Despedida
possibilidades de fraquejar. No Brasil as adulterações do degradado João da Silva Brandão que parte no dia
foram das mais numerosas e desumanas. Incluíram 9 do corrente ou A despedida de João Brandão”, no
no debate da Donzela todo o Dicionário de Flores e acervo da coleção particular do Dr. Paulino Mota Ta-
Frutos, significação amorosa, interpretação de cores vares: Disponível em: http://www.esec.pt/pagina/cdi/
para o comércio da linguagem muda dos namorados, ficheiros/docs/catalogo_cordel.pdf . Possivelmente
assuntos franceses que tiveram sua voga há mais de esse cordel de origem portuguesa inspirou a criação
meio século. Há edições horrorosas pelo acúmulo dos poetas populares brasileiros.
de indicações cabalísticas, horóscopo, curiosidade da 14. Constatamos, por meio da pesquisa de Alai Garcia
velha astrologia judiciária retiradas aos almanaques e Diniz, a existência de três cordéis com esse título:
simples opúsculos de propaganda medicamentosa”. Conversação de Pai Manoel com Pai José na Esta-
Luís da Câmara Cascudo, op. cit., pp. 41-42. Rubens ção de Cascadura por Ocasião da Rendição de Uru-
Borba de Moraes nos informa que “Em 1815 a Impres- guaiana, Conversação de Pai Manoel com Pai José e
são Régia imprimira duas novelas tradicionais que hoje um Inglez, na Estação de Cascadura sobre a questão
são publicadas constantemente: “História da Donzela Anglo-Brazileira, Conversação de Pai Manoel com
Teodora e a História verdadeira da Princesa Magalo- Pai José, na Estação de Cascadura, por Occasião da
na” (Rubem Borba de Moraes, Livros e Bibliotecas Victoria de Ihaty, no Passo dos Livres, polo Exercito
no Brasil Colonial, Rio de Janeiro/ São Paulo, Livros Alliado. Esses cordéis foram escritos em uma espécie
Técnicos e Científicos/Secretaria de Cultura, Ciência de língua crioula e têm como tema central os embates
e Tecnologia do Estado de São Paulo e Universidade que envolveram a Guerra do Paraguai. Os textos são
de São Paulo, 1979, p. 119). No Brasil a versão poética de autoria anônima (Alai Garcia Diniz, Imaginarios
ainda bastante conhecida na atualidade é a de Leandro de la Guerra de la Triple Alianza- Apuntes sobre um
Gomes de Barros (1865-1918), editada pela primeira vez “Cordel” afro-brasileño y la poesía en Paraguay. Dis-
em 1905, sob o título a História da Donzela Teodora, ponível em: http://www.corredordelasideas.org/docs/
Tirada do Grande Livro da Donzela. reflexiones/alai_garcia_diniz.pdf).

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Disputa Divertida das Grandes Bulhas que turcos, e o livro louva-o por ir degolando a
Teve um Homem com Sua Mulher por Não cada passo um homem.
lhe Querer Deitar uns Fundilhos nos Calções Tudo quanto é inferior – a calúnia, o fal-
Velhos. so testemunho, o ódio – serve de entrecho
Essa literatura vorazmente lida na Deten- a esses romances mal escritos. Quando a
ção, nos centros de vadiagem, por homens coisa é em verso, toma proporções de puff
primitivos balbucia à luz dos candeeiros de carnavalesco. A Despedida de João Brandão
querosene nos casebres humildes, piegas, à sua Mulher, Filhos e Colegas, com um
hipócrita e mal feita, é a sugestionadora de apêndice em que se convence o leitor de
crimes, o impulso à explosão de degenera- que João podia ser um herói cristão, é lida
ções sopitadas, o abismo para a gentalha. nos cortiços com temor e pena. A primeira
Contam na Penitenciária que Carlito da quadra de despedida é assim:
saúde, preso pela primeira vez por desor-
dens, ao chegar ao cubículo, mergulhou Andando eu a passear,
na leitura de Carlos Magno. Sobreveio-lhe Com amiga do coração.
uma agitação violenta. Ao terminar a leitura Dois passos à retaguarda:
anunciou que mataria um homem ao deixar Estais preso, João Brandão.
a detenção. E no dia da saída, alguns passos
adiante, esfaqueou um tipo inteiramente Que se há de fazer diante destes versos
desconhecido. Só esse Carlos Magno tem nefelibatas? A Despedida tem quarenta e
causado mais mortes que um batalhão de nove quadras, fora a resposta da esposa. Uma
guerra. A leitura de todos os folhetos deixa, mistura paranoica de remorso, de tolices
entretanto, a mesma impressão de sangue, de religião, saudade e covardia, faz destas
de crime, de julgamento, de tribunal. Há, quadras o suprassumo da estética emotiva
por exemplo, uma obra cuja tiragem deixa e turba – cujos sentimentos oscilam entre o
numa retaguarda lamentável as consecuti- temor e ambição. João Brandão soluça:
vas edições de Cyrano de Bergerac. Intitula-
-se Maria José, ou a Filha que Assassinou, Adeus, João Brandão,
Degolou e Esquartejou sua Própria Mães, Espelho de eu me vestir,
Matilde do Rosário da Luz15, e começa como Tu mataste o menino
nas feiras: – “Atentai, e vereis um crime es- Que para ti se ficou a rir.
pantoso, um crime novo, o maior de todos
os crimes! Essa Maria ainda era só a matar Agora vou degredado,
uma só pessoa. No Carlos Magno um tal Rei- A paixão é que me mata;
naldos, ensanwichado em frases de louvor a Adeus Carolina Augusta,
Nosso senhor, mete-se num rolo doido com Já não vale a tua prata.

15. Localizamos no acervo digital da Biblioteca Na- Para alegrar os leitores, esses crimino-
cional de Lisboa a obra intitulada História Verdadeira sos anônimos cultivaram o testamento dos
de um Acontecimento o mais Horroroso e o mais Abo-
minável que tem Aparecido no mundo, sim, foi uma bichos. Já testamento é uma ideia inteira-
Filha Chamada Maria José que Matou, Degolou e mente lúgubre. O testamento da pluga, do
Esquartejou sua Própria Mãe Matilde do Rosário da mosquito ou da saracura não seria para fazer
Luz, publicada no Porto, pelo livreiro S. J. Ferreira e
Filho, em 1852. Este cordel português pode ter dado rebentar de riso os mortais, mesmo agora,
origem ao folheto brasileiro. neste mortal período de desinfecção e higie-

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ne à outrance, mas que pensam os senhores povo, dos vadios, do grosso, enfim, da popu-
dessas quadrinhas, das quais já se vendem lação? Que se dirá desses homens que vão
mais volumes que de Canaã de Graça Ara- inconscientemente ministrando em grandes
nha? Os testamentos são uma lamentável doses aos cérebros dos simples a admiração
relação de legados, sem uma graça, sem uma pelo esfaqueamento e o respeito da tolice?
piada, sem um riso. Como eu chamasse contra essa teimosa
O galo leva quarenta quadras a deixar coi- mania de não mudar as predileções, um dos
sas; a saracura diz que levava, prazenteira, a vendedores ambulantes, o cantante Meu
cantar todo o dia dentro do brejo; o macaco Deus que noite sonorosa, esticou a perna e
fala de hora extrema sem uma careta. Só no disse-me:
testamento do papagaio há esta observação – Talvez fosse para pior...
pessoal, sempre aplicável às câmaras: Parei convencido, o curso das interroga-
ções. Já outro filósofo seu rival, Montaigne,
Há no mundo papagaios assegurava que mudar é quase sempre uma
Que falam todos os dias probabilidade para pior. Os vendedores de
E nunca sofrem desmaios testamentos passaram a vendê-los como
Comendo grossa maquias, palpites do jogo do bicho, transformando
Estes são de Pernambuco, saracura em avestruz e a mosca em borbo-
Falam muito, são mitrados; leta. Os jogadores não lêem, mas arruínam
Eu falei, mas fui maluco, as algibeiras. E de qualquer forma o mal
Logo paguei meus pecados. continua a florescer neste baixo mundo, na
literatura e fora dela, como o mais gostoso
E falam do veneno da literatura francesa, dos bens. Se nas obras populares aparecer
que perde o cérebro das meninas nervosas e alguma coisa de novo, com certeza teremos
aumenta o nosso crescido número de poetas! tolices maiores que as anteriores...
Que se dirá dessa literatura – posto mental
dos caixeiros de botequim, dos rapazes do [Gazeta de Notícias, 12.02.1906]

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