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Este artigo analisa as funções político-ideológicas do uso do conceito de


profissionalização na política de formação de professores no Brasil
elaborada no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Busca
evidenciar a articulação de dois eixos da reforma educacional em curso:
formação de professores e gestão. Lança a hipótese de que a proposta
oficial de profissionalização docente não visa o aprimoramento da
categoria de professores e sim sua segmentação e desintelectualização. A
profissionalização, nesses moldes, conjuga-se à nova ideologia que se
dissemina no campo educacional, o gerencialismo. Tal associação visa
modelar novos perfis profissionais de educadores, tecnicamente
competentes e inofensivos politicamente.

Palavras-chave: profissionalização, gerencialismo,


professor, política educacional

This article analyses the political and ideological functions of the use of the
concept of professionalization within the teachers’ training policy in Brazil
during Fernando Henrique Cardoso’s government (1995-2002). It intends to
evidence the connection between two axes of the current educational reform:
teachers’ training and management. The hypothesis presented is that the
official proposal of teacher’s professionalization was developed not to
promote teacher’s qualification but, on contrary, its segmentation and
de-intellectualization. In these terms, professionalization is combined
with a new ideology diffused in the educational area, managerialism.
This association aims to design new professional profiles of educators,
technically competent but politically inoffensive.

Key-words: Professionalization, Managerialism,

64 Teacher, Educational policy

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003.
Política de
Profissionalização
Aprimoramento ou
Desintelectualização do Professor?
*

Eneida Oto Introdução


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Shiroma A década de 1990 foi profícua na produção de docu-


Doutora em Educação pela mentos oficiais, relatórios e diretrizes reformadoras da
UNICAMP (1993). educação no cenário mundial. Particularmente no Bra-
Professora Adjunta do sil, as leis, decretos, pareceres e medidas implementadas
Departamento de Estudos
Especializados em Educação durante o governo de Fernando Henrique Cardoso cau-
(EED) do Centro de Ciências saram grande mal-estar entre os educadores. A perple-
da Educação (CED/UFSC) e xidade diante do conteúdo das propostas, e da forma
Pesquisadora CNPq autoritária com que foram comunicadas, provocou a
eneida@ced.ufsc.br um só tempo indignação, ira e sentimento de impotên-
cia. Fomos surpreendidos pela rapidez com que a com-
petição entre pares e a “remuneração por produtivida-
de”, tão comuns no setor produtivo, tornaram-se mas-
*
Este artigo deriva do cotes da política educacional afetando, de modo peculi-
estudo desenvolvido no ar, a vida cotidiana nas instituições educativas.
pós-doutorado, realizado na Os professores, desconfiando ou contrários a mui-
Universidade de Nottingham tas das diretrizes propostas pelo Ministério da Educa-
(UK) em 2000-01 como
bolsista CAPES, do qual ção, temiam os efeitos decorrentes de sua implantação.
se originou o projeto No entanto, pareciam ressentir-se da falta de referên-
‘‘Profissionalismo e cias que permitissem compreender e debater, sem su-
gerencialismo na educação’’. cumbir ao projeto oficial.
que coordeno, com apoio
do CNPq.
Pode-se observar que as justificativas para a refor-
ma educativa de diferentes países valem-se de uma
retórica semelhante, elaborada a partir de vocábulos
Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003. 65
adequados para construir um consenso Aparentemente a política de profis-
em torno da reforma e arrebanhar adep- sionalização atende antigas reivindica-
tos. Utilizam conceitos como competên- ções da categoria, porém, um olhar mais
cia, excelência, mérito, produtividade, demorado e radical, permite perceber
que muito mobilizam os professores. A que são tomadas com outra perspectiva
dificuldade de se contrapor a este dis- e interesses. Isto se expressa no emba-
curso deve-se ao fato de que inseridos te de propostas sobre a formação inicial
na “cultura da avaliação” implementada de docentes. De um lado, as diretrizes
do Ministério da

para os resultados almejados pela reforma em curso:


Educação, regula-
As propagandas oficiais direcionam nossa atenção mentadas pelos do-
cumentos do Conse-
lho Nacional da
formar professores mais competentes para fornecer Educação, avan-
çam na direção de
os conhecimentos úteis para “o mundo real”. uma formação de
professores mais
nas instituições educacionais durante prática, menos teórica, um ensino profis-
os governos de FHC, estes termos ad- sionalizante. De outro, várias entidades
quirem tal valoração positiva que nin- de educadores se organizaram em defe-
guém quer ser identificado com os sa de uma formação universitária a to-
antônimos: incompetente, medíocre, im- dos os professores, com sólida base do-
produtivo. Ademais, a retórica da refor- cente onde teoria e prática estejam arti-
ma encontra um terreno fértil em meio culadas. Sem entrar neste debate, o pre-
aos apaixonados pelo conhecimento, sente ensaio pretende tecer uma análi-
saber, pelo trabalho acadêmico. A sedu- se a partir de outro ângulo, discutindo
ção das palavras e seus efeitos sobre o as funções político-ideológicas exercidas
imaginário dos trabalhadores da educa- pelo conceito de profissionalização da
ção não devem ser desprezados nos es- política de formação de professores para
tudos de política educacional. a educação básica no Brasil elaborada
Trataremos, no âmbito deste tra- no governo Cardoso (1995-2002).
balho, de uma dessas palavras: a As propagandas oficiais direcionam
profissionalização. Eleito o conceito nossa atenção para os resultados al-
chave da reforma educacional na mejados pela reforma em curso, qual
América Latina nos anos de 1990, seja : formar professores mais compe-
este termo tornou-se muito veicula- tentes para fornecer de forma efici-
do porém pouco tratado no debate ente os conhecimentos úteis para “o
recente sobre a formação de profes- mundo real”. Este ensaio teve como
sores. Incluído no rol dos “vocábulos ponto de partida não os resultados
positivos” que alicerçam o discurso anunciados mas a investigação dos
reformador, o termo “profissional” objetivos velados deste processo e suas
alude às noções de competências, cre- implicações. Trata-se de uma reflexão
denciais, autoridade legitimada por no campo da política e da ideologia e
um conhecimento específico e auto- não das práticas formativas, mas que
nomia para exercer um ofício; reme- p r e t e n d e o fe r e c e r s u b s í d i o s p a r a
te à experiência prática e altos salá- reorientações e debates sobre elas.
rios. No senso comum, ao qualificar
um trabalho de “profissional” se está
elogiando e atribuindo um juízo de A (re) formação dos
valor segundo o qual aquele é um bom
t r a b a l h o. N e s s e s t e r m o s , p r o fi s - professores no Brasil
sionalizar a docência seria um inte- A última versão do documento Pro-

66 resse universal. postas de diretrizes para a formação


Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003.
inicial de professores da educação bási- fessor, sobrevalorizando o conhecimen-
ca, em cursos de nível superior, foi to experiencial designado como o conhe-
publicada em abril / 2001 pelo Conse- cimento construído “na” e “pela” expe-
lho Nacional de Educação. Partindo da riência. A proposta pretende dar desta-
crítica ao preparo inadequado dos pro- que à natureza e à forma com que esse
fessores, o documento expressa as dire- conhecimento é constituído pelo sujeito.
trizes para uma “revisão criativa” dos Trata-se de um tipo de conhecimento
modelos de formação docente. Destaca- tácito que não pode ser construído de
mos algumas passagens que serão outra forma senão na prática profissio-
focadas neste estudo. nal. Segundo o documento, ensinar re-
O documento prescreve maior coerên- quer dispor e mobilizar conhecimentos
cia entre a formação oferecida e a prá- para improvisar, intuir, atribuir valo-
tica esperada do futuro professor, o que res e fazer julgamentos que fundamen-
denomina “simetria invertida”. Eviden- tem a ação mais pertinente e eficaz pos-
cia a necessidade de que “o futuro pro- sível. A partir desse argumento, o do-
fessor experiencie, como aluno, durante cumento conclui que
todo o processo de formação, as atitu- a pesquisa (ou investigação) que se desenvol-
des, modelos didáticos, capacidades e ve no âmbito do trabalho de professor não
pode ser confundida com a pesquisa acadêmi-
modos de organização que se pretende ca ou pesquisa científica. Refere-se, antes de
venham a ser concretizados nas suas mais nada, a uma atitude cotidiana de busca
práticas pedagógicas. Essa aproximação de compreensão dos processos de aprendiza-
da formação com o local onde virá a gem e desenvolvimento de seus alunos e à
autonomia na interpretação da realidade e dos
atuar remete ao modelo de formação
conhecimentos que constituem seus objetos de
tradicional na medicina, o internato ou ensino (CNE, 2001).
residência. Tal modelo foi sugerido, numa Em suma, prescreve aos futuros pro-
das versões preliminares deste docu- fessores um tipo de pesquisa desprovi-
mento, também para remodelar a for- da de teoria, distante não só do ambien-
mação de professores recebendo o nome te universitário mas também da pers-
de “residência escolar” (MELLO, 1999, pectiva científica e acadêmica.
p.17). A publicação destas novas diretri-
No que concerne à concepção de apren- zes para a formação inicial de profes-
dizagem, as recomendações apontam para sores desencadeou enormes polêmicas
a redefinição da perspectiva entre educadores. À primeira vista,
metodológica, “ propiciando situações de muitas das medidas propostas soam
aprendizagem focadas em situações-pro- como contra-senso. Por exemplo, por que
blema ou no desenvolvimento de projetos
que possibilitem a
interação dos dife-
rentes conhecimen-
Em suma, prescreve aos futuros professores um tipo
tos, que podem es- de pesquisa desprovida de teoria, distante
tar organizados em
áreas ou discipli- não só do ambiente universitário mas
nas, conforme o de- também da perspectiva científica e acadêmica.
senho curricular da
escola.” A competência profissional do este modelo de profissionalização do-
professor é traduzida como sua capaci- cente enfatiza a qualidade mas insiste
dade de criar soluções apropriadas a cada em retirar a formação de professores
uma das diferentes situações complexas da universidade ao mesmo tempo em
e singulares que enfrenta. que reafirma a necessidade da pesqui-
Todo o arrazoado caminha para apre- sa? Por que estabelece diretrizes que
sentar a “pesquisa da prática” como o privilegiam a prática e condenam a
elemento essencial na formação do pro- teoria? De onde viriam, então, a exce-

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lência e o conhecimento para reorientar das. No ano seguinte, o governo se
a prática? Como se associa esta pro- apoiou nessas críticas e em conselhei-
posta de profissionalização à crescente ros políticos neoliberais para lançar a
desqualificação e precarização vivida proposta de que parte substantiva da
pelos trabalhadores da educação? educação dos professores fosse efeti-
Com intuito de discutir essas ques- va m e n t e t r a n s fe r i d a à s e s c o l a s
tões, o presente artigo realiza um breve (TAYLOR, 1994, p.51). Em 1992, o
resgate de reformas realizadas em ou- Secretário de Estado da Educação anun-
tros países que têm servido de modelo à ciou as intenções do governo britânico
brasileira, e convida à incursão pelas com esta medida, comparando a for-
idéias de alguns de seus mentores bus- mação dos professores à de outros
cando compreender as contradições profissionais nos seguintes termos:
envolvidas na política em tela. Advogados e médicos sempre despenderam
parte substancial de seu treinamento supervi-
sionado trabalhando ao lado e sob orientação
A primazia da prática dos melhores e experientes membros de sua
profissão. Teoria não pode substituir este trei-
nas reformas inglesa e namento prático na profissão […]Estudantes
futuros-professores precisam estar mais tem-

norte-americana po em sala-de-aula orientados por professores


e menos tempo nas faculdades de educação.
Alguns autores entendem a docência (Clark apud TAYLOR, 1994, p.52).
como uma atividade prática que pode ser Com esta justificativa, o Secretário
aprendida através de treinamento obti- Kenneth Clark propôs que o tempo da
do unicamente nas escolas (HUSBANDS, formação de professores fosse alocado
1996, p.11). Esta tem sido a tônica das em 1/3 na universidade e 2/3 nas esco-
recomendações para a formação de pro- las. Houve súbita e forte reação das ins-
fessores presente nas reformas ocorri- tituições e de educadores britânicos te-
das em vários países nas últimas duas mendo a redução da qualidade da for-
décadas. Referida como school-based mação destinada aos novos professores.
teacher education, trata-se de uma for- As universidades argumentaram que
mação orientada pela prática segundo a professores das escolas elementares não
qual futuros professores deveriam pas- eram suficientemente qualificados para
sar, na opinião de alguns especialistas treinar uma nova geração de professo-
britânicos, por sucessivos treinamentos res e, mesmo que fossem, não poderiam
em serviço permitindo que os departa- se distrair da tarefa principal de ensi-
nar as crianças,
para orientar os es-
Por que este modelo de profissionalização docente tagiários. Ademais,
não tinham nem
enfatiza a qualidade mas insiste em retirar a preparo nem remu-
formação de professores da universidade ao mesmo neração adequados
para exercer o pro-
tempo em que reafirma a necessidade da pesquisa? posto papel de su-
pervisor de estágio.
mentos de educação das universidades A despeito da
fossem dissolvidos. (HUSBANDS, 1996, discordância dos educadores, essa re-
p.8; FURLONG et alli , 1996, p.27) forma foi implantada não só na Ingla-
No final dos anos de 1980, os ata- terra mas em muitos países europeus.
ques às instituições universitárias de Meses mais tarde, ao serem indagados
formação dos professores cresceram em sobre as tensões criadas entre univer-
número e virulência na Grã-Bretanha sidades e escolas pela prerrogativa da
culminando com a recomendação de formação, os ministros da Educação ace-
Lawlor (1990) de que fossem fecha- naram com possibilidades mais radi-

68 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003.
cais do tipo: “as escolas básicas deve- century, publicada pela Carnegie Task
riam receber financiamento para trei- Force e o Tomorrow’s Teachers elabora-
namento e compra de cursos de ‘teoria do pelo Holme Group. Ambos os relatóri-
educacional’ para seus treinandos, for- os concluíram que a qualidade da educa-
necido pelas instituições de ensino su- ção pública só poderia melhorar se a
perior mais próximas” (Hughes 1992 docência fosse transformada em profis-
apud TAYLOR, 1994, p. 57). Era a re- são. Na busca da excelência através da
comendação explí-
cita de que as fa-
culdades, centros e Argumentam, os apologistas das reformas inglesa e
departamentos de
educação fossem norte-americana, que a ênfase na prática advém da
transformados em necessidade de familiarizar o futuro professor às
vendedores de pa-
cotes educativos. situações concretas do cotidiano das escolas...
Num curto período,
os professores das escolas receberam educação, diz o Relatório Carnegie, “a
treinamento e tornaram-se tutores dos chave do sucesso está em criar uma pro-
futuros professores e, com esta justifi- fissão identificada à tarefa1 – uma pro-
cativa, parte dos recursos das univer- fissão de professores bem educados, pre-
sidades foram transferidos às escolas. parados para assumir novos poderes e
Com menor dotação orçamentária, os responsabilidades para redesenhar es-
departamentos e faculdades de educa- colas para o futuro. A partir dessa reco-
ção viram-se forçados a inventar ou- mendação, a prioridade da reforma foi a
tras formas de arrecadação para man- “formação profissional” dos professores,
terem suas atividades, promovendo a, um passo que significaria eliminar os
já criticada, mercantilização da educa- programas de graduação (undergraduate
ção. As escolas, por sua vez, para fa- level) que oferecessem certificados para
zerem jus aos novos recursos que lhe elevar o treinamento profissional para
foram destinados, foram forçadas a se o nível da pós-graduação (graduate
reorganizarem para responder às no- level). (LABAREE, 1992, p.124)
vas demandas com eficiência e respon- Argumentam, os apologistas das re-
sabilidade. Sem a formação adequada formas inglesa e norte-americana, que
para assumir o novo papel, os profes- a ênfase na prática advém da necessi-
sores acabaram imersos numa supera- dade de familiarizar o futuro professor,
bundância de funções e numa desle- formado na universidade por vezes em
gitimação para assumí-las (ORTEGA, nível de pós-graduação,2 às situações
1992). concretas do cotidiano das escolas e
Implicações semelhantes foram capacitá-los, como práticos reflexivos, à
verificadas, nos anos de 1980, nos Esta- resolução de problemas.
dos Unidos. Dois foram os principais do- Segundo David Hargreaves,3 diretor
cumentos que deslancharam a reforma executivo do QCA (Qualifications Cur-
educacional naquele país, a saber: A riculum Authority) britânico, é preciso
nation prepared: teachers for the 21th estimular um novo jeito para que pro-

1
Uma versão deste modelo também está presente na reforma brasileira, na idéia de simetria invertida
entre formação e exercício profissional apresentada no documento Formação inicial de professores
para a Educação básica: uma (re)visão radical de autoria de Guiomar Namo de Mello (1999).
2
A exemplo dos PGCE (Postgraduate Certificate in Education) britânicos.
3
Professor de Educação da Universidade de Cambridge, autor de best sellers na Grã-Bretanha e um dos
apologistas da chamada Terceira Via, presidente do Comitê de Treinamento e Desenvolvimento de
Professores Universitários. Membro da Task Force on Standards in Education (Ozga, 2000, p.28).

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003. 69
fessores possam criar um conhecimen- bilitação específica (em vez da forma-
to profissional que inclua as habilida- ção polivalente ou da educação geral
des práticas a ele associadas. Um co- do professor), treinamento em “ciên-
nhecimento ligado ao trabalho. O autor cia do ensino” que idealmente deveria
propõe um novo modelo de criação de conduzir ao grau de mestre (novo ní-
conhecimento baseado em evidências de vel de entrada para credenciamento
de professores) e
A nova educação de professores deveria incluir: graduação um extenso perío-
do de “internato
em uma habilitação específica (...) treinamento em “ciência clínico” (nos mol-
des das escolas de
do ensino” que idealmente deveria conduzir ao grau de medicina) em esco-
mestre (...) e um extenso período de "internato clínico"(...) la de desenvolvi-
mento profissional
que poderiam ser
sucesso em outros setores da sociedade análogas aos hospitais-escola dos cur-
como nas empresas (1998, p.13). sos de medicina. Em suma, recomen-
Hargreaves estava preocupado com o da-se a criação de “escolas-escola”.
conhecimento útil. Para esclarecer sua O modelo de formação médica é, na
proposta, utiliza a tipologia de Gibbons visão dos mentores da reforma inglesa,
(1998) que faz distinção entre dois mo- o melhor exemplo de profissionalização
dos de produção de conhecimento. O Modo bem sucedida. Considerada tipo-ideal, a
1 é produzido na universidade, mais vol- medicina foi a profissão mais investigada
tado à pesquisa básica, guiado pela no século XIX. Agora, no século XXI, o
criatividade individual. Segundo o au- modelo do internato clínico volta a ser o
tor, há uma marcada fronteira entre a mais recomendado para formação pro-
produção e a utilização do conhecimen- fissional. Além desta explicação centrada
to. O Modo 2 é focado em um problema, modelo formativo, outras aproximações
dirigido pela demanda, fortemente preo- são almejadas entre a organização hos-
cupado com o conhecimento que seja útil pitalar e a escolar.
aos policy makers ou aos educadores. David Hargreaves advoga que a for-
Mais próximo da pesquisa aplicada, diz ma de melhorar a eficiência e eficácia
respeito ao conhecimento que pode ser das escolas é adotando o modelo de divi-
utilizado em algum lugar no “mundo são do trabalho presente nos hospitais.
real” (sic) por profissionais, para resol- Aponta como principal diferença o fato
ver problemas. Hargreaves afirma que de que, nas escolas, professores gradu-
parte das pesquisas educacionais está ados e qualificados constituem a maio-
se transferindo para o Modo 2 fato que, ria do quadro funcional e realizam a
em sua opinião, representa uma mu- maior parte do trabalho, enquanto que,
dança desejável. nos hospitais, os doutores são a minoria
Este viés em que a pesquisa é toma- e executam somente partes especia-
da para solução de problemas imediatos lizadas do trabalho total. Hargreaves
suscitados pela prática é recomendado explicita sua proposta:
por Hargreaves por ser o exemplo que Primeiro, as escolas devem desenvolver dire-
floresceu nas indústrias, estimulado por tores não-docentes para administrar e gerenciar
a escola, liberando os professores para gastar
esforços para inovação. Transferido do mais tempo e energia ensinando. Devemos
setor produtivo, torna-se o modelo hege- abandonar a crença de que um talentoso pro-
mônico de profissionalização na educa- fessor necessariamente será um bom diretor…
ção britânica. (HARGRAVES, 1997, p.148) .
Segundo, as escolas devem adquirir o equiva-
Segundo os reformadores internaci-
lente as enfermeiras, isto é, assistentes do pro-
onais, a nova educação de professores fessor que trabalhem sob sua supervisão, se-
deveria incluir: graduação em uma ha- jam menos qualificadas mas dêem suporte es-

70 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003.
sencial aos estudantes, deixando o design do latório Holmes (LABAREE, 1992, p.
currículo e a organização do ensino-aprendiza- 124). Este novo estrato de educadores
gem aos especializados e comprovadamente
competente professores. Atualmente, professo- constituiria a elite da profissão, assu-
res gastam muito de seu tempo na supervisão, miria maiores responsabilidades que os
gerenciamento e controle das crianças na clas- professores regulares e receberia, con-
se e pela escola: tal tarefa não requer uma seqüentemente, maior remuneração.
pessoa com status de graduado. Assistentes de
Suas obrigações incluiriam: consultoria
professores não precisam ser graduados e po-
dem ser preparados para o serviço comum com a professores do “escalão inferior”, su-
um treinamento relativamente curto. Eles re- pervisão de futuros-professores “inter-
ceberiam menores salários que os professores. nos”, desenvolvimento curricular,
Como os professores altamente qualificados e envolvimento com a formação de pro-
habilitados seriam poucos, eles poderiam ser
melhor remunerados. Jovens de 18 anos ou fessores nas universidades/cursos su-
mais poderiam se tornar assistentes de profes- periores e um papel com o ensino em
sores para testar se eles gostam da idéia de ser sala-de-aula. Para atingir esta posição,
professor.[…] Um hospital tocado inteiramen- o professor precisaria demonstrar “ex-
te por médicos sem o suporte de enfermeiros
celência instrucional” (LABAREE,
seria um total desperdício. Por que não vemos
escolas sem assistentes de professores como 1992, p.124)
semelhante extravagância frente aos escassos A estratégia de segmentação para atin-
recursos?” (HARGRAVES, 1997, p.149-150) gir a redução de custos é antiga no setor
A despeito da impropriedade da com- produtivo cujos reflexos fizeram-se sen-
paração, estes argumentos trazem à tir, como veremos a seguir, no setor edu-
luz os objetivos de racionalização ocul- cacional tendo influenciado a profis-
tos na retórica da reforma: redução de sionalização docente desde seus pri-
custos e investimentos em educação, mórdios.
intensificação do trabalho, procedimen-
tos que visam otimizar o potencial das
escolas como provedoras de ensino, bus-
cando a forma mais rápida e barata de
Restituindo a dualidade na
fornecer certificados. Para tanto, convo- formação de professores
ca-se voluntários, amigos da escola, pais, Em 1885 professores eram treinados em sa-
ajudantes, entre outros para-profissio- las de aula para realizar funções específicas
nais que vão constituir o grande contin- de instrução e controle. No decorrer do sé-
gente de trabalhadores não-professores, culo seguinte, tornaram-se profissionais al-
tamente educados. Até 1985, enquanto ain-
presentes nas escolas, muitas vezes, sem
da continuavam com instrução e controle
vínculo ou remuneração. Se efetivado, da sala de aula, professores tornaram-se um
esse processo viabilizaria a consecu- grupo altamente versado em teoria e prática
ção de outra meta
velada da reforma:
a segmentação da Os relatórios internacionais recomendaram o

mesmo status, salários e são distribuídos igualmente


carreira docente.
abandono da estrutura em que todos os professores têm o

segundo critérios de senioridade e credenciais.


Os relatórios in-
ternacionais reco-
mendaram o aban-
dono da estrutura
em que todos os
professores têm o mesmo status, salá- educacional, sociologia, teoria social, psico-
rios e são distribuídos igualmente se- logia, teoria da aprendizagem e assim por
diante. Tornaram-se competentes no conteú-
gundo critérios de senioridade e cre- do de suas disciplinas; Triunfaram como ca-
denciais. Em seu lugar, propõem um sis- tegoria profissional por estar centralmente
tema estratificado que cria um “esca- envolvidos na determinação e desenvolvimen-
lão” superior, de professores denomi- to do conteúdo curricular, práticas escolares
e política educacional em geral. Em 1995
nados “líderes”, pelo Relatório Carnegie,
parecem ter perdido, numa só década, a mai-
ou “profissionais de carreira”, pelo Re-
Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003. 71
oria dos ganhos conquistados num século princípio de Babbage4 de não pagar pes-
(Harris, 1994, p.viii apud ROBERTSON, 1996, soal capacitado para fazer um serviço
p.28)
mais simples, e sim contratá-los apenas
David Labaree, pesquisador de Mi-
para as tarefas mais complexas. Já nos
chigan, esclarece que no começo da se-
anos de 1990, esta preocupação foi
gunda década do século XX, faculdades
recolocada e atrelada à questão do não-
de educação e escolas normais norte-
desperdício priorizada pelos princípios da
americanas instituíram distintos proje-
Gerência da Qualidade Total. Essa lógica
tos de profissionalização docente. Essas
da educação “just-in-time” inspirou argu-
últimas estavam preocupadas em atra-
mentos utilitaristas que defendem, por
ir suficiente quantidade de alunos para
exemplo, o enxugamento da formação do
sobreviver, enquanto as faculdades de
professor pela extirpação dos conteúdos
educação visavam os estudantes de “alto
que não serão diretamente aplicados em
calibre” que pudessem trazer prestígio
sala de aula.
à instituição (GITLIN e LABAREE, 1996,
Os efeitos da segmentação da catego-
p.102). Essa divisão estava intimamen-
ria e do aligeiramento da formação de
te relacionada às demandas do crescen-
professores vêm exatamente ao encontro
te setor industrial que vivia, à época, a
das prescrições de organismos internaci-
implantação do taylorismo como para-
onais para a gestão da educação para o
digma da produção em série.
Com o movimento da gerência científica século XXI. A UNICEF, por exemplo, reco-
na esfera industrial, não só progrediu essa menda a redução de custos, empregando
abordagem racionalizadora que colocou as professores qualificados por baixos salá-
tarefas de concepção nas mãos de gerentes rios ou desqualificados e baratos, o que
para especificarem de maneira precisa o
seria compensado por treinamento e ser-
que os trabalhadores deveriam fazer, mas
também o mesmo processo ocorreu nas ins- viço, promovendo uma “utilização mais
tituições de formação de professores. Uni- eficiente de professores”.5
versidades encarregaram-se da tarefa de O documento da UNICEF intitulado
envolver os estudantes aos objetivos, pro- “Making quality basic education af-
pósitos e conceitos educacionais, enquanto
as Escolas Normais focavam em “como ensi- fordable: what have we learned?” afir-
nar”, no lado prático. (GITLIN e LABAREE, ma que os professores são o mais caro
1996, p.102). e mais importante, recurso no processo
Perfeitamente compatível com a pers- educativo. Por esta razão, tratam
pectiva taylorista predominante no perí- longamente do item “custo – professor”.
odo, esta divisão do trabalho atendia ao

Essa lógica da educação “just-in-time” inspirou argumen-


Alegam que administrar o custo dos pro-
fessores não impli-
ca necessariamen-
te reduzir seu sa-
lários que, em mui-
tos utilitaristas que defendem, por exemplo, o enxugamento tos casos, já são ex-
da formação do professor pela extirpação dos conteúdos que tremamente bai-
xos. Rebaixar o
não serão diretamente aplicados em sala de aula. custo dos professo-
res também envol-

4
No livro Sobre a economia de maquinaria e manufatura (1832), Babbage resgata os argumentos
clássicos de Adam Smith de que a divisão dos ofícios barateia suas partes individuais. Ao tecer sua
crítica sobre a divisão do trabalho, Braverman explica que na mitologia do capitalismo, o princípio era
apresentado como esforço para “preservar perícias escassas”ao atribuir aos trabalhadores qualificados
tarefas que “só eles podem desmepenhar”e não desperdiçar “recursos sociais”. É apresentado como uma
reação à “carência”de trabalhadores qualificados ou pessoas tecnicamente instruídas, cujo tempo é mais
bem utilizado “eficazmente” para benefício da “sociedade (BRAVERMAN, 1981, p.79).
5
Cf. na homepage www.unicef.org o texto de BUCKLAND, Peter. Making quality basic education

72 affordable: what have we learned? UNICEF PD-ED, 2000.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003.
ve sua distribuição e utilização de modo ao mesmo tempo aumentar o controle
mais eficiente assim como de para-pro- sobre esta categoria profissional pela
fissionais e membros da comunidade. via da proletarização e desqualificação
Participação e apoio comunitário tem sido dos docentes.
um fator crítico em quase todas as ini- Como, então, explicar que a este pro-
ciativas de expansão de docentes onde cesso os policy makers chamam eufe-
se visa controle de
custos. Buscam en-
volver as comuni-
dades no financia-
Como, então, explicar que a este processo os
mento de cursos ‘‘policy makers’’ chamam eufemisticamente de
para professores
não treinados e aju- política de profissionalização?
dantes de professo-
res, ou de suple-
mento de custos com salários ou alivi- misticamente de política de profis-
ando o Estado de outros gastos tais como sionalização?
construção de prédios escolares ou mo- Para responder a esta questão, apre-
radia para professores. sentamos a sistematização de um qua-
Sugere, o documento, que investimen- dro de referencias para o estudo de pro-
tos na formação em serviço apoiada fissões identificando as mudanças do
pela educação à distância são preferí- conceito, ao longo da história, assim como
veis ao treinamento inicial como estra- os critérios que distinguem uma profis-
tégia para expandir rapidamente o for- são das demais ocupações.
necimento de professores, e providen-
ciar um estoque de professores relati-
vamente baratos (sic). Afirma que é Abordagens sociológicas
possível reduzir significativamente o
custo dos professores empregando pes- dos estudos sobre
soal desqualificado ou menos qualifi-
cado e ainda alcançar boa qualidade profissionalização
de ensino, embora muito do que se A compreensão da política de
economiza com este expediente preci- profissionalização docente requer algu-
sará ser reinvestido no desenvolvimen- mas considerações acerca do conceito
to do currículo e material de apoio para de profissão. Nosso intuito com esta breve
o treinamento em serviço. recuperação de abordagens é, tão so-
Alerta, por fim, que a expansão da mente, o de salientar que alguns concei-
categoria em função da contratação de tos-chave da reforma educacional con-
professores desqualificados pode gerar temporânea, característicos de defini-
sérias e insuportáveis conseqüências ções antigas e há muito criticadas na
conforme os professores se qualificarem sociologia da profissões, foram resgata-
para obter salários mais altos. Planejar dos pelos discursos que fazem a apolo-
tal expansão precisa levar em conta este gia da profissionalização docente, porém
fator. O documento da UNICEF também sem referências às matrizes teóricas que
destaca que o apoio dos sindicatos de lhe dão sustentação.
professores pode ser um fator chave nas O estudo das profissões teve origem
estratégias para reestruturar a escala de no século XIX com o crescimento das
salários e/ou empregar professores bara- profissões em função da consolidação do
tos de baixa qualificação. Estado Moderno (HOYLE,1995; POPKE-
Argumentos desta natureza nos per- WITZ,1998 ). Um acirramento do debate
mitem lançar a hipótese de que a atual sobre profissões ocorreu nos anos de
reforma da formação de professores teve 1960 quando em função do Welfare State
o objetivo deliberado de reduzir custos e europeu e do New Deal norte-americano,
Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003. 73
houve uma profusão das profissões rela-
cionadas ao Estado, os serviços públicos.
A abordagem funcionalista
Na segunda metade da década de 1970, Autores desta vertente partiam da
a tradição histórico-sociológica de pes- premissa de que as profissões eram ne-
quisa sobre profissionalização foi ampla- cessárias para manter o funcionamento
mente difundida, tendo como expoentes tranqüilo e ordenado da sociedade,
focando a relação entre Estado e valores
morais dos cida-
dãos, a busca do
O estudo das profissões teve origem no século XIX consenso, da colabo-
ração e equilíbrio.
com o crescimento das profissões em função da Entendiam que em
consolidação do Estado Moderno. troca dos benefíci-
os que prestam, a
sociedade provê os
profissionais com
Larson (1977), Collins (1979) e Perkin altos níveis de dinheiro e status como
(1989). Posteriormente, ocorreu uma recompensa, uma forma de reconhecer o
retração, tratada na literatura como um valor de seu trabalho (PARSONS, 1949).
declínio da “sociedade das profissões”, e Esta perspectiva funcionalista não rela-
na década de 1990 presenciamos uma cionava as desigualdades sociais com as
nova ascensão do debate sobre profis- tais recompensas. Não discutia a distri-
sões e profissionalização. O conceito so- buição da riqueza e poder na sociedade.
freu, pois, historicamente uma série de As desigualdades eram interpretadas
modificações em cada momento históri- como naturais.
co como foi retratado por vários pesqui- A visão funcionalista pressupõe que
sadores (ETZIONI, 1969; Flexner apud grupos de interesses na sociedade com-
CERVERO, 1988; FREIDSON, 1986; partilham de um conjunto de valores
PERKIN,1989; DOWNIE ,1990; LARSON, que formam a base de um consenso so-
1977). bre os fins da sociedade. Nessa perspec-
No início do século XX, seis caracte- tiva, o processo de profissionalização
rísticas foram indicadas como necessá- passou a ser visto como uma forma de
rias para que uma ocupação pleiteasse melhorar a sociedade e o conhecimento
o status de profissão. Eram elas: 1) en- profissional como instrumento para
volver operações intelectuais; 2) deri- resolução de problemas (GOODE, 1969;
var seu material da ciência; 3) envol- PARSONS, 1968).
ver fins definidos e práticos; 4) possuir O conceito chave do ponto de vista funcionalista
é a competência […] Parte do suposto que pro-
uma técnica que possa ser comunicada blemas da prática são bem formulados e não-
por meio da educação; 5) buscar auto- ambíguos e que esses problemas podem ser re-
organização e 6) ser altruísta. solvidos aplicando-se o conhecimento científi-
Críticas à visão de que apenas es- co. Então, profissionais são vistos como porta-
dores de um alto grau de perícia especializada
tes elementos seriam suficientes para
para resolver problemas bem definidos.
distinguir “claramente” as ocupações (CERVERO, 1988, grifo meu).
que eram profissão das que não eram, Durante a década de 1960, essa in-
se avolumaram nos anos de 1960 des- terpretação funcionalista era predomi-
tacando a falta de consenso sobre que nante nos debates sobre as profissões.
critérios definiam uma profissão. Po- Uma visão crítica tomou vulto no final
pularizaram-se, então, naquela déca- dos anos 70, trazendo à tona a questão
da, a “abordagem funcionalista” da do poder, caracterizando uma vertente
profissionalização orientadas pelas que levava em consideração não só a
perspectivas teóricas de Emile Durk- busca de harmonia e consenso, mas tam-
heim e Talcot Parsons. bém a existência do conflito social.

74 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003.
A abordagem do conflito sadores das Ciências Humanas, a com-
preensão de que profissão deveria ser
A perspectiva do conflito sugeria que estudada como um conceito concebido
os profissionais estão em permanente historicamente (FREIDSON,1986).
conflito com outros grupos na sociedade Segundo Larson (1977), profis-
disputando poder, status e dinheiro. Eles sionalização é o processo pelo qual pro-
usam conhecimento, habilidades e “al- dutores de serviços especiais constituem
truísmo” como uma forma de barganha e controlam o mercado para seus servi-
na luta por recompensas sociais. ços. A lógica é a de que o conhecimento
Profissionalismo é visto como uma ide- formal cria qualificação para certos
ologia para controlar a ocupação mais serviços, para os quais outros que não
do que um fim ideal para o qual todas as tenham seja rotineiramente excluí-
as ocupações deveriam aspirar para o dos (Freidson, 1986, p.59 apud
melhoramento da sociedade (CERVERO, CERVERO, 1988, p.11). Estudos sobre
1988, p.27) profissionalização passaram a destacar,
O conceito central, nessa perspecti- em primeiro plano, sua função político-
va, é “poder”. Assume-se que os profis- econômica na sociedade como meio de
sionais têm o poder de prescrever. Têm assegurar o sistema social de desigual-
a autoridade para decidir o que o clien- dades.
te deve fazer. De acordo com Freidson, para que
Insatisfeitos com essas interpretações, uma ocupação pudesse ser classificada
sociólogos importantes discutiram os como profissão, deve estabelecer algu-
limites de ambas abordagens : “tentam ma quantidade de educação superior
tratar profissão como se fosse um con- como um pré-requisito. Alguns outros
ceito genérico mais do que um conceito aspectos são citados para caracterizar
histórico, em mudança, com raízes nas profissões: ter por finalidade o alcance
nações industrializadas que foram for- de bens universais como educação, saú-
temente influenciadas pelas instituições de, justiça; a realização desses fim neces-
anglo-americanas (1986, p.32). Em sita de conhecimento especializado e ha-
contrapartida, propõem uma terceira bilidades que não podem ser adquiri-
abordagem, a sócio-econômica (LARSON, das prontamente, demandam um prepa-
1977; FREIDSON, 1986). ro cuja parte essencial é a formação uni-
versitária claramente distinta de um
Abordagem sócio-econômica treinamento (STRAIN, 1995; DOWNIE,
1990; HIRST, 1996).
Freidson argumenta que as ocupa- O conceito de profissional também
ções na Inglaterra e Estados Unidos co- alude a status profissional, código de
meçaram a ser classificadas como pro- ética, treinamento especial onde se ad-
fissões no final do
século XIX, mas
constatou que o Durante a década de 1960, essa
mesmo não ocorreu
no leste europeu. interpretação funcionalista era predominante
O autor observou
que não foram os
nos debates sobre as profissões.
trabalhadores das
novas ocupações que procuraram ser quire ampla base de conhecimento es-
classificados como profissionais para pecífico que lhe permite ter controle
obter status ou algum tipo de seguran- sobre o trabalho que desenvolve. Qual-
ça, mas que esta categorização foi-lhes quer redução neste controle indica ten-
imputada pelo Estado. A partir desta dência à desqualificação. O mesmo ocor-
constatação, cresceu entre os pesqui- re quando se reduz as exigências de

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003. 75
qualificações para ingresso na profis- profissional significa ser um eficiente
são ou se aligeira a formação. Deste fornecedor de um predeterminado pro-
ponto de vista, pode-se inferir que a duto (RIBBINS, 1990). Nessa perspecti-
decisão de se tirar a formação de pro- va, haveria menor autonomia, caracte-
fessores da universidade não visa ape- rística das profissões, e aumento dos
nas a redução de custos, mas também o laços de dependência uma vez que a
processo gradativo de desintelec- nova noção de profissional ressalta os
tualização do professor. A dificuldade compromissos dele com seu cliente. Nesse
em se perceber tal processo pode ser relacionamento, obrigações mútuas são
atribuída, em parte, ao fato de que o negociadas, obrigações morais do pro-
aligeiramento da formação docente fica fissional que presta “serviços”.
eclipsado pelos argumentos da racio- Vista por este ângulo, a chamada po-
nalidade técnica predominante na polí- lítica de profissionalização docente pode
tica de profissionalização, que prioriza deixar de representar um aprimoramen-
a noção de competência, orientando os to do magistério e incorrer em efeitos
debates sobre a formação do professor desastrosos à educação pública. Obser-
como expert. va-se, em alguns documentos oficiais
sobre profissionalização docente, uma
tentativa de redefinir os professores como
Um novo profissionalismo experts capazes de aceitar responsabi-
lidades; apresentar atitudes positivas à
redefine os docentes: mudança, flexibilidade, entre outros
(RASSOL, 1999, p.81).
de intelectuais a experts Contraditoriamente, esses mecanis-
Nos documentos das reformas mos propostos para aumentar a “efici-
educativas dos anos de 1990, o conceito ência”, podem redundar não num apri-
de profissional foi recontextualizado. Dis- moramento mas na proletarização e
tante do significado atribuído nas pri- desqualificação dos docentes. A proleta-
meiras definições, que aproximava o rização resulta de certas tendências da
conceito de profissão às aspirações de organização do trabalho e do processo
de trabalho no ca-
pitalismo como: a
Deste ponto de vista, pode-se inferir que a decisão de se crescente divisão
tirar a formação de professores da universidade não do trabalho; a sepa-
ração entre as ta-
visa apenas a redução de custos, mas também o processo refas de concepção
e execução, inclu-
gradativo de desintelectualização do professor. indo rotinização
das tarefas mais
natureza pública da educação, atualmen- qualificadas; o crescente controle sobre
te, funciona como um artifício para pro- cada etapa do processo de trabalho, o
clamar a independência do profissional crescente volume de trabalho e a dimi-
como especialista, detentor do saber téc- nuição dos níveis de habilidades
nico, desprovido de valores próprios, (DENSMORE, 1987). A desqualificação,
reduzido apenas à perícia de seu traba- por sua vez, visa minar o profissiona-
lho (FREIDSON, 1996, p.151). lismo subtraindo autonomia profissio-
Nas definições mais recentes, um nal, reduzindo o grau de controle sobre
profissional é identificado como aquele o trabalho que profissionais realizam,
membro de uma profissão que possui transformando-os em meros técnicos.
algumas habilidades necessárias para Esse processo caracteriza-se também
exercê-la. Tais habilidades seriam mais pela “progressiva burocratização e per-
prioritárias que o conhecimento. Ser da relativa de vantagens em salário,

76 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003.
status e privilégio” (BURBULES e DENS- planificada y administrada por la cúspide de
MORE, 1992, p.74). la dirección (Derber apud BURBLES e
DENSMORE, 1992, p.73).
Os referenciais da área de estudos do
Nesse aspecto, torna-se imprescindível
trabalho auxiliam-nos na compreensão
que a reflexão sobre a profissionalização
desta reforma que opera uma associação dos professores seja articulada às mu-
de taylorismo e gestão flexível no nível danças que ocorrem em outro eixo da
da escola. Não se trata, contudo, de uma reforma educativa em curso, ou seja, ao
reposição da divisão rigidamente marcada eixo da gestão educacional.
entre concepção e execução no ensino,
uma vez que se enfatiza a autonomia,
criatividade, inovação do professor; mas O gerencialismo na educação
do resgate da divisão do trabalho como Para se referir à nova onda geren-
uma estratégia de redução de custos que cialista, os autores ingleses utilizam a
é complementada pela gestão flexível, esta expressão managerialism. Trata-se de
sim, como forma de controle da força de uma ideologia que se difunde no campo
trabalho. Para compreender esta educacional disseminando princípios
complementaridade entre taylorismo e orientados pela eficiência financeira.
gestão flexível, é interessante estabele- Segundo Hoyle e John (1995, p.42), o
cermos uma distinção entre proletarização gerencialismo dá prioridade aos resul-
técnica e ideológica. A “proletarização tados financeiros, mesmo numa escola.
técnica” significa perda de controle das Nela, os diretores tornaram-se agentes
decisões sobre os aspectos técnicos do seu hierárquicos tanto do controle quanto
trabalho. Não é o que parece estar ocor- da implementação de mudanças e são
rendo. Contudo, a “proletarização ideoló- elementos cruciais a serem respon-
gica” refere-se à perda de controle do tra- sabilizados pela prestação de contas
balhador sobre decisões relativas às me- (accountability) da instituição.
tas e objetivos de seu próprio trabalho Alguns autores (BOTERRY, 2000;
(Derber apud DENSMORE, 1987). A pers- CONTRERAS, 2002) apontam a influên-
pectiva de Derber é que: cia do discurso gerencialista na centra-
este sistema procura alcançar disciplina dos lização e mercantilização da educação e
trabalhadores e produtividade não retirando ressaltam como estas abordagens ten-
o conhecimento técnico dos trabalhadores que
tam capturar o discurso da educação
potencialmente permite que obstruam os ob-
jetivos gerenciais, mas encorajando habilida- sugerindo que só há um jeito de ver o
des técnicas e autonomia e, ao fazê-lo, leva problema (one best way).
os trabalhadores a ideologicamente identifi- O discurso gerencialista oferece representações
car seus próprios interesses com aqueles da particulares da relação entre problemas sociais
firma e a desenvolver motivação interna e e soluções. É linear e orientado para um ‘pen-
disciplina (Derber, 1982, p.200 apud samento único’. Preocupa-se com metas e pla-
DENSMORE, 1987) nos mais que com intenções e julgamentos.
A ideologia do profissionalismo pode Refere-se à ação mais que reflexão. Concentra-
se em análises mais que em sínteses. Estabele-
assim ser vista como um constructo que
ce fronteiras entre políticas e fornecimento, ‘es-
obscurece a realidade da situação de tratégia’ e ‘implementação’, pensamento e ação.
trabalho ao mesmo tempo em que asse- Oferece um discurso tecnicista que priva o de-
gura a internalização da motivação e bate sobre suas bases políticas, de modo que a
disciplina a que Derber se refere. Se- discussão sobre os meios suplanta a dos fins.
(CLARKE e NEWMAN, 1996, p.148)
gundo o autor (1982)
las formas tradicionales de autonomia
Esta explicação ajuda a esclarecer, em
professional estan desapareciendo lentamente parte, razões pelas quais a política da
entre los empleados profesionales, suplanta- formação de professores busca reduzir a
das por un nuevo proceso de trabajo profesional base de conhecimento da docência e abo-
que guarda coherencia com la logica de las lir as análises sócio-históricas dos cur-
empresas capitalistas y estatales a gran esca-
la. Al igual que otros trabajadores, los
sos de formação, recomendando priori-
profesionales tienen ahora “empleos”, tareas dade à formação prática cada vez mais
distante do ambiente universitário.

77
inscritas en una compleja división del trabajo

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003.
O gerencialismo tende também a sionalismo no que tange à noção de for-
modificar a seleção dos vocábulos que necimento eficiente e competente. Hanlon
os profissionais empregam para discu- (1998) esclarece que após 1980 foi ga-
tir a mudança. Eficiência, competência, nhando aceitação a noção de “profis-
qualidade total, inovação, cultura orga- sionalismo comercializado”, onde se des-
nizacional, empreendedorismo, gerência, tacam três tipos de habilidades: 1) téc-
liderança, entre outros, são termos trans- nica; 2) de gestão, que se refere à capa-
plantados do vocabulário da administra- cidade de gerenciar outros empregados,
ção de empresas para a educação. Essa balancear orçamento e satisfazer os cli-
absorção de conceitos influencia não só a entes e 3) de agir de forma empreende-
linguagem mas, fundamentalmente, a dora6. O sucesso profissional estaria con-
prática. dicionado à conjugação destes três fato-
Talvez, o elemento crucial no uso do ge- res. Fica claro, porém, que a medida de
rencialismo nas escolas esteja na criação de sucesso, nesta perspectiva, é a
um tipo particular de liderança planejada para
desempenhar um papel de pivô no redesenho lucratividade e não a qualidade do ser-
do setor público, deixando a direção política viço que o “cliente” necessita, ou seja
para o centro mas a responsabilidade por sua esta não é apenas uma lógica técnica,
implementação para a periferia. Ao fazê-lo, mas uma lógica comercial (HANLON,
extrai a essência da liderança local e a reduz
1998, p.54).
a uma função meramente técnico-racional
(HOYLE, 1995). Tal tipo de profissionalismo tende a
Liderança não é sinônimo de admi- aprofundar a divisão dentro da catego-
nistração, termo importado dos Estados ria de professores, entre eles e os de-
Unidos, mas uma sub-área usada para mais profissionais da escola e deles com
descrever as atividades do diretor os pais e comunidade (BURBULES e
(HOYLE, 1995). É uma versão particu- DENSMORE, 1992). Este parece consti-
lar da abordagem gerencialista que vem tuir-se num objetivo velado dessa polí-
dando o tom da políticas sociais contem- tica: o de semear o espírito de competi-
porâneas. Pesquisadores argumentam ção entre os trabalhadores da educa-
que a reforma educativa em curso visa ção, o que seria reforçado por meio da
transformar os diretores escolares em remuneração diferenciada por desem-
gerentes executivos vistos como penho, buscando minar a solidariedade
arrebanhadores de recursos e os pro- dessa categoria. Ou seja, trata-se de uma
fessores em técnicos (GRAHAM,1999; política de profissionalização menos
THODY, 1997). voltada à qualificação docente e mais à
instituição de novas e mais sutis for-
mas de regulação, forjando um “novo”
Profissionalismo e perfil de profissional responsável, com-
petente e competitivo. Os que apresen-
gerencialismo: articulando tarem melhores resultados e adequação

eficiência econômica e política ao modelo, serão estimulados a fazer


formação em liderança educacional.7
O gerencialismo está intimamente as- O líder assumirá funções não só de
sociado ao novo conceito de profis- captação e administração de recursos, mas

6
Muitos documentos da reforma reiteram que a profissionalização do professor depende de sua
competência para gerenciar seu próprio desenvolvimento profissional (Mello, 1999, p.15; Mello, 1999b,
p.22. Ou nas palavras do documento do CNE (2001) Quando a perspectiva é de que o processo de
formação garanta o desenvolvimento de competências profissionais, a avaliação […] não se presta a
punir os que não alcançam o que se pretende, mas a ajudar cada aluno a identificar melhor as suas
necessidades de formação e empreender o esforço necessário para realizar sua parcela de investimento
no próprio desenvolvimento profissional.
7
Na Inglaterra, este intento deu origem ao National College for School Leadership , criando em 2000,

78 na Universidade de Nottingham (UK).

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003.
também a responsabilidade pelo geren- tas para a educação em países cen-
ciamento de professores. trais e periféricos. Como vimos, nos
Líderes são programados para serem práticos EUA e Inglaterra a política de profis-
e não contemplativos. A atual política sionalização implicou aumento do tempo
gerencialista visa desenhar um líder que sai-
ba como fazer as coisas mais do que pensar de estágio realizado na escola articu-
de forma mais ampla nas razões pelas quais lado à elevação do nível da formação
aquela execução esta sendo requisitada. para o de pós-graduação. Em contra-
(BOTTERY, 2000, p.76) partida, no Brasil, que conta com um
Os processos de crescente burocra- imenso contingente de professores lei-
tização articulados tanto à gestão quan- gos em exercício, a reforma não só ad-
to ao profissionalismo contribuem para voga a primazia da formação prática,
constituir uma nova cultura da obedi- como tentou, pelo Decreto nº 3.276 de
ência. Interpretada por alguns como le- 1999, desvinculá-la da universidade.
aldade corporativa, essa obediência co- Em suma, prescreve-se mais prática
letiva terá impactos sobre a performance para quem já a possui, privando-lhe
organizacional (MORLEY,1999 p.73). O da formação teórica e do acesso à uni-
novo gerencialismo ancora-se em pro- versidade.
cessos burocráticos de avaliação de de- Para ganhar consentimento, esse mo-
sempenho para promover a atomização vimento de desintelectualização é
do controle. proposto por uma reforma marcada pela
Discursos gerencialistas tais como os da Ge-
eufonia, pelo discurso dos belos vocábu-
rência de Recursos Humanos ou da Qualidade
Total têm fortes paralelos com o los. Certamente, a questão não é ser con-
profissionalismo como forma de disciplinar a tra ou favor de qualidade, competência,
força de trabalho, promovendo a introjeção do produtividade ou eficiência. Não é isso
controle e procurando assegurar obediência. que está em pauta e não são estes os
Enfatiza-se a cultura ocupacional, a eficiência
e qualidade. As tensões entre individualismo e verdadeiros fins desta política. Como ten-
trabalho em grupo tornam-se rarefeita por tamos explicar, a preocupação desta re-
uma forte cultura organizacional, que cria uma forma é modelar um novo perfil de pro-
força de trabalho coesa porém não solidária fessor, competente tecnicamente e ino-
(OZGA, 1995, p.34).
fensivo politicamente, um expert preo-
Estudos sobre gestão apontam tais as-
cupado com suas produções, sua avali-
pectos como tendência da reforma edu-
ação e suas recompensas. Mas conside-
cacional em curso levando-nos a con-
rando que preparar uma geração de pro-
cluir que a conju-
gação do discurso
da profissionali- Para ganhar consentimento, esse movimento
zação com a ideolo-
gia gerencialista
de desintelectualização é proposto por uma
constitui-se numa reforma marcada pela eufonia, pelo
estratégia para
atingir dois alvos a discurso dos belos vocábulos.
um só tempo: efici-
fessores qualificados tem seu custo, e
ência financeira e política, na visão dos
não é este o interesse de governos con-
interessados na educação como big
servadores nem dos organismos inter-
business.
nacionais, as diretrizes da reforma esti-
mulam a privatização do ensino. Pressi-
onam cada professor-profissional a fi-
Em síntese… nanciar sua formação e suprir seu esto-
A profissionalização difunde-se que de competências. Obviamente, numa
como um modelo globalizador de for- sociedade com a abominável desigual-
mação de professores, meta para to- dade de renda, como é a brasileira, este
dos mas que inspira diretrizes distin- investimento para auto-reciclagem só é

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003. 79
possível para poucos. Atende-se, assim, cado, as faculdades e centros de educa-
a um dos objetivos velados da reforma: ção das universidades são estimulados
baratear o custo-professor, processo ao a preparar e vender pacotes educativos
qual nos referimos nesse texto como para as escolas. Promove-se, com estas
proletarização. medidas, não uma parceria, mas um
A iniciativa de se retirar a formação mercado de produtos e serviços educa-
de professores da universidade contri- cionais e a disputa entre as instituições
bui para a consecução deste objetivo na de diversas naturezas - públicas, priva-
medida em que desqualifica os profes- das, empresas, ONGs, nacionais e inter-
sores, oferecendo-lhes um treinamento nacionais - que disputarão o novo nicho
mais rápido e barato de modo a formar de mercado, destinado à produção de
em menor tempo um considerável “exér- kits pedagógicos para abocanhar re-
cito pedagógico de reserva”. Fornece, cursos públicos. O empenho ou voraci-
quando necessário, treinamento em ser- dade com que os professores universi-
viço que os orienta para a busca de co- tários de faculdades e centros de Edu-
nhecimento útil, aplicável, por meio da cação se dedicarão a esta tarefa - tal-
pesquisa da prática voltada à resolução vez coma alcunha de projeto de exten-
de problemas do cotidiano. Ironicamen- são - dependerá do montante de recur-
te, subtraem-lhes formação, remunera- sos que restará aos departamentos ou
ção e lhes cobram motivação para ino- centros de origem. Caso esta se torne a
var, mudar, renovar. Estes são impera- atividade prioritária dos professores uni-
tivos da concorrência entre empresas versitários, ficará, evidentemente, com-
capitalistas onde a preocupação central prometida a produção verdadeiramente
não é o que se faz, por que ou para intelectual, as pesquisas básicas, teóri-
quem, e sim com a entrega eficiente dos cas, o livre pensar, a reflexão sobre a
produtos ou serviços. Gradativamente, sociedade em que vivemos. Atinge-se,
a educação é redefinida: de prática so- por essa via, a espinha dorsal que dis-
cial vai tornando-se prática comercial. tingue as Instituições de Ensino Superi-
A determinação, defendida pelo prin- or públicas: a produção do conhecimen-
cípio da simetria invertida, de que a to. Estará também a universidade, se-
maior parte da formação seja realizada gundo o Modo 2 da tipologia de Gibbons,
nas escolas e não nas universidades, voltada à resolução de problemas ime-
transfere às primeiras novas responsa- diatos postulados pela da prática.
Considerando-se
A iniciativa de se retirar a formação de a hipótese de que
isso não venha a
professores da universidade contribui para a ocorrer de forma
homogênea em to-
(...) desqualificação dos professores, oferecendo- das as universida-
lhes um treinamento mais rápido e barato... des, atingir-se-á o
segundo objetivo,
velado, da reforma:
bilidades assim como os recursos públi- a segmentação da categoria. Efetivan-
cos, antes destinados ao Ensino Superi- do-se a proletarização dos professores,
or. Sem a infra-estrutura e o preparo o controle fica por conta dos estímulos
adequado para, ao mesmo tempo, ensi- por produtividade, da avaliação
nar as crianças e formar os futuros do- meritocrática que justifica o pagamento
centes, além de preencher os inúmeros individualizado cabendo remuneração
relatórios destinados à prestação de con- maior aos que trazem maior retorno fi-
tas dos recursos recebidos, a escola é nanceiro à instituição, ou seja, para os
forçada a comprar cursos e contratar professores que “rendem mais”. Por isso,
consultorias. Com o orçamento desfal- argumentamos que esta reforma, sob a

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denominação de profissionalização, tem fessores e não a famigerada gestão do
como meta operar a desintelectualização conhecimento.
do professor. Diferentemente do que ocorreu no iní-
Formar um professor-profissional, cio dos anos de 1990, quando os educa-
nesses moldes, não significa que este dores repeliram o empresariamento da
venha a ser mais qualificado, mas ape- educação concretizado pela Qualidade
nas mais competente, o que vale dizer Total, a investida ocorre agora com a
“mais adequado”, ajustado, convenien- nova roupagem do gerencialismo. Essa
te, apto e adepto. Mesmo que apresente versão parece estar conseguindo pene-
maior autonomia de ação, opções dentro trar no campo educacional quase sem
do espaço de trabalho, aumento da fle- resistência. Sem a aspereza presente nos
xibilidade funcional, sua transformação discursos anteriores do tecnicismo ou
em expert impede-no de compreender da competitividade, a proposta oficial
que as soluções para os problemas não de profissionalização despista-nos com
advêm da reflexão profunda sobre eles, uma retórica que introduz sub-rep-
especialmente quando enclausurada ao ticiamente a ideologia do gerencialismo
espaço da sala de aula ou limitada pelo nas instituições educacionais, não só
muros escolares. Ou seja, a reflexão pela via da administração escolar, mas
sobre a prática é necessária, porém in- também pela formação de professores.
suficiente. A insistência dos reforma- A reforma, construída sobre o discurso
dores no primado da prática, das com- da falência do ensino público e da
petências, da pesquisa para produzir desqualificação do professor, presta-se
conhecimento útil, para resolução de pro- mais para ampliar estas mazelas do que
blemas, revela a concepção funcio- para saná-las.
nalista que norteia esta política. As possibilidades de extrapolar as
A mercantilização da educação reali- fronteiras do conhecimento prático, útil
za-se, nessa reforma, acompanhada dos e atribuir às pesquisas realizadas nos
mecanismos disciplinares para os quais cursos de graduação um caráter acadê-
concorre a política de profissionalização. mico, embora ameaçadas por essa refor-
Permite o controle à distância através ma, ainda estão abertas aos educadores.
da construção de identidade e perfil con- Convém atentar que, para nos desviar
siderados “apropriados” ao mestre. dessa meta, os reformadores de plantão
Como lembra Fournier (1999, p.286), a convocarão docentes e intelectuais para
competência profissional não é só ava- discutir os modelos de profissionalização,
liada em termos de conhecimento, mas definir as competências do professor,
em termos de conduta apropriada, o que entre tantas outras tarefas de legitimação
nos permite trabalhar com a hipótese de sua política de qualificação docente. É
de que o conceito “profissionalismo” é prudente, pois, atentarmos para que os
um constructo atrelado à noção de necessários debates pedagógicos não se
governabilidade. Constitui-se numa im- dêem desvinculados e nem sirvam para
portante estratégia do Estado para rea- eclipsar a dimensão política da formação
lizar o ordinário gerenciamento dos pro- do professor.

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