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A linguagem
sem cessar
arma
armadilhas
O amor
Sem cessar
arma
armadilhas
Resta saber
se as armadilhas
são as mesmas
A metapoesia, a reflexão sobre o fazer poético e suas nuances, sempre foi, desde os
gregos da antiguidade, um assunto bastante caro aos poetas do ocidente. Homero
inaugurou o assunto, pois
Declaro desde já que não será possível fazer uma análise mais profunda de seus
poemas. Tive de fazer uma escolha; optei por apresentar um maior número de poemas
que abordam os assuntos a serem tratados em detrimento de poucos poemas com
análises detalhadas. Ajo assim, ambicionando ofertar um panorama da obra da autora
supramencionada.
Ana Martins Marques. Apenas o poema da epígrafe deveria ser o suficiente para
apresentar essa poetisa ilustre que desde 2009 passou a integrar o cenário literário do
Brasil, com seu livro de estréia, A vida submarina. Esse livro reúne dois conjuntos de
poemas que renderam à autora, em 2007 e 2008, o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de
Literatura. A literata referida nasceu em novembro de 1977, na capital mineira. É
graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais; mestre em Literatura
Brasileira; e doutora em Literatura Comparada pela mesma universidade.
Recentemente, em 2011, lançou novo livro de poesia, Da arte das artimanhas, que está
entre os finalistas do prêmio Telecom 2012, em Portugal; o poema da epígrafe pertence
a ele. E como não poderia deixar de mencionar, esse poema ilustra os temas que serão
estudados. Na primeira estrofe, é efetuada uma consideração sobre a natureza
problemática da linguagem. A reflexão se pauta atrás dessa consideração. Demonstra-se
o fato de a linguagem armar “armadilhas”, o que permite interpretar como a revelação
de seu caráter ambíguo. A polissemia da linguagem pode enredar os sujeitos em
“armadilhas”, que podem ser as complicações da comunicação cotidiana. Nesse caráter
problemático da linguagem, é possível ainda vislumbrar uma consideração sobre o fazer
poético: pode-se argumentar sobre a dificuldade do fazer poético, com todas as suas
complicações e incertezas, ou pode-se ressaltar a capacidade de criar mundos, gerar
efeitos de sentido e ambigüidades intencionais. Nessas interpretações acerca da
linguagem, esbarra-se na distinção “proposta por Roman Jackobson das funções da
linguagem, sendo mais relevante a distinção entre a função referencial e a poética”(
JACOMEL e PAGOTO, 2009). Na função referencial, ocorrem as complicações da
comunicação cotidiana. Na função poética, as ambigüidades intencionais. Na última
estrofe, os sujeitos, indicados pelo uso do pronome “nós”, são considerados “presas”.
Isso, por si só, já pode ser considerado uma construção de sujeitos líricos, pois eles são
concebidos como “presas”, termo ambíguo que, aqui, pode designar tanto “prisioneiro”,
quanto “vítima” de um predador; nesse caso, a “linguagem” que os enredam em
“armadilhas”. Ou até mesmo, ambos os sentidos podem ocorrer simultaneamente.
Esclareço que os poemas contemplados neste trabalho pertencem ao livro A vida
submarina. Muitos deles fazem referências a algum aspecto do mundo marítimo,
conforme o título do livro. Entretanto, não é objetivo deste estudo destacar isso. Apenas
os temas referidos serão ressaltados, bem como alguns aspectos da poética dela que
julgar pertinentes. Utilizei um poema de Da arte das armadilhas para iniciar este texto
somente para demonstrar que esses temas são recorrentes em sua obra.
Para estudar AMM, adotarei os métodos que Annita utilizou para apreender a obra
de Ana Cristina César, ou Ana C, como gostava de assinar; essa Ana com quem AMM
demonstrou possuir várias afinidades. AMM, inclusive, fez uma carta-poema
endereçada a Ana C:
Ciganas
passeando
com um rosto escolhido
por paisagens cegas de palavras
traduzidas
inconfessas
rabiscos
ao sol.
Cotidianas
vivendo dias de diários
e mentindo descaradamente
no silêncio das cartas
(selos postais
unhas postiças
versos pós-tudo).
Fulanas
de nomes reversíveis
para ir e voltar
sem sair do lugar:
self safári
por essa paisagem toda
que no fundo
Ana
nada tem a ver conosco.
(MARQUES, 2009, p.121)
Desta forma, AMM se afilia ao modo de Ana C conceber a poesia. Pelo poema
acima, observo que AMM também pretende “falsificar o real e não de responder a ele”
(MALUFE, 2004); o que é possível notar nos versos “vivendo dias de diários/e
mentindo descaradamente/nos silêncios das cartas”. Também, AMM, em A vida
submarina, fez uma seção de poemas sucintos, mas de grande conteúdo, intitulada
“Diário (verão de 2007)”; esses poemas são intitulados pelos dias. O que corresponde
ao “dia 8, manhã” será comentado aqui posteriormente. Penso que talvez, AMM teve
em mente dialogar com Ana C quando fez essa seção, pois segundo Malufe, ao falar de
Ana C, “ficcionando correspondências e diários, ela “brinca diretamente com o que
chama de „obscurantismo biografílico‟”(MALUFE, 2004). De modo que a autora em
questão, além de dialogar com a outra Ana, brinca com o leitor, confundindo-o,
inventando um diário para que ele possa pensar que é real. “A liberdade de se poder
dizer e inventar tudo, criar a realidade que se quiser, justamente porque o real do texto é
de outra ordem – ou justamente porque o texto é texto” (MALUFE, 2004). Assim será
vista a poesia de AMM. Não buscarei encontrar o que está dito nas “entrelinhas”, pois
essas não existem. Acompanhemos, agora, a própria Ana C, um pouco:
A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui
escrito outra, e o autor está insinuando uma terceira. Não tem
insinuação nenhuma, não (...) Eu acho que, no meu texto e acho
que em poesia, em geral, não existe entrelinha (...) Existe a linha
mesmo, o verso mesmo. O que é uma entrelinha? Você está
buscando o quê? O que não está ali?
(CÉSAR, Crítica e tradução, p. 262-263)
Após os devidos esclarecimentos, passo aos poemas. Começo pelos que permitem
ver como o eu – lírico compreende a poesia:
Margem
No final da página
como no final do mundo antigo
há um despenhadeiro.
Embora os que leem prosa em geral
se arrisquem mais
porque chegam quase à beira do abismo
cuidado ao chegar à borda do poema.
(MARQUES, 2009, p.15)
Na primeira estrofe, observo que independente de ser prosa ou poesia, no final da
página “há um despenhadeiro”, ou seja, um abismo. Na segunda estrofe, vem o grande
fecho. Uma contraposição entre prosa e poesia é feita: a prosa é apenas arriscada;
enquanto que a poesia é perigosa. Há uma elevação da poesia sobre a prosa, a meu ver,
nessa parte, ressaltada na advertência “cuidado”. É como se a poesia fosse mais
poderosa, como se tivesse o poder de sugar o indivíduo para dentro de si, e aquela não
possuísse esse poder. Portanto, não representasse ameaça, embora seja arriscada. Disso
apreendo que a poesia é vista como algo perigoso; o que é ratificado por “Lição de
casa” e “Caravelas”:
Lição de casa
Se os professores soubessem
dos riscos
não mandavam escolares
escreverem poesia.
Ao contrário
nos livros de poesia
deveria estar escrito:
não tente fazer em casa.
(MARQUES, 2009, p.22)
Caravelas
é feita uma analogia entre o mar e o poema. Os primeiros versos são intensamente
imagéticos; visualizo os peixes no fundo do mar, as ondas “batendo contra os cascos
desfeitos do navio”. O poder das marés é revelado, pois elas “fabricam”. O dístico no
fim de “Caravelas” reafirma a condição do poema de perigoso. Ele “aprende com o mar
/a colocar os corpos em perigo”. Então, o mar pode destruir os navios, assim como o
poema as pessoas. Aqui, além de ser perigoso, há um aspecto destrutivo do poema; ele
pode ser, ele se quer ser, destruidor, sinal de uma característica nociva. Assim sendo, “o
poema é um ser real, e como tal, é capaz de interferir no mundo, nas pessoas, nos
corpos, como qualquer outro objeto da realidade” (MALUFE, 2004, p.33-34). Nesse
caso, como o mar. AMM se afilia a toda uma corrente de poetas que pensam o texto
“enquanto produtor de realidade, criador – de povos, culturas, vidas – e não apenas
criatura „o poema é uma produção, um modo de produzir significação mediante o
fingimento poético, e não uma nobre tradução do indizível‟”(MALUFE, 2004, p32). O
fingimento poético corresponderia ao “fingi-dor”, como já queria Pessoa.
Barcos de papel
Os poemas em geral são feitos de palavras
no papel
ou de madeira
no papel
tomar chuva
lançam-se no mundo
Caixa de Costura
Linhas soltas
brancas rubras
negras
emaranhadas:
a confusão é sempre enredar-se
em si mesmo.
Não há ternura
nos olhos do gato
que fita o novelo:
apenas atenção
para a narrativa.
O poema cerze
o que não tem reparo.
(MARQUES, 2009, p.18)
há uma analogia entre o trabalho de costura e o fazer poético que toma como matéria o
“eu”, pois “a confusão é sempre enredar-se/em si mesmo”. A “confusão”, denota tanto o
“ato ou efeito de identificar uma coisa com outra até torná-las indistintas, mistura
confusa”, quanto conota “falta de clareza, falta de ordem, bagunça” (HOUAISS,2009,
p.180). O enredar também é ambíguo; pode ser tanto enganar, iludir, o que está de
acordo com a poética do “fingi-dor”, quanto intrigar ou indispor, e complicar-se. Ao
fingir, o sujeito se complica. As “linhas” também é ambíguo. Na verdade, “Caixa de
costura” é todo pautado na ambigüidade. “Linha” pode ser a linha de tecido que se usa
para costurar, conforme o título do poema, ou pode ser a linha de um caderno sobre o
qual se escreve, por exemplo. E, elas se confundem, problematizando a dificuldade do
fazer poético, ou a dificuldade do ato de costurar. Terminam “emaranhadas”,
misturadas, confundindo-se, como as atividades citadas. “Narrativa” pode designar tanto
o trabalho da costura, quanto o ato de alguém compor uma história, pois narrativas são
histórias de ações; tudo o que acontece pode virar uma narrativa. De modo que o
próprio ato de escrever é uma narrativa. No dístico que termina “Caixa de costura”, é
empregado um verbo característico da atividade de costurar, cerzir: “o poema cerze/o
que não tem reparo”; o poema “costura”, junta as incongruências, as coisas sem solução.
Lanternas
Na noite
aceso
o poema se consome.
(MARQUES, 2009, p.25)
Aqui, “consome” possui sentido duplo: o poema é seu próprio alimento; ele se
alimenta de si, ou ele mesmo se autodestrói. Isso vai de encontro com seu caráter
destrutivo, como vimos anteriormente, em “Caravelas”. Em “Lanternas”, o poema pode
ser nefasto a si próprio.
Trapézio
Uma vez vendo um número de circo
apenas razoável
à noite
numa praça do interior
(tédio e susto, alcoóis fortes, lua baça)
foi que eu me dei conta de que
nunca houve um trapezista
que não estivesse apaixonado.
Relógios
Marinha
Mas dizer
“há sempre um copo de mar
para um homem navegar”
vale mais do que quase todas as marinhas
e quase tanto quanto um barco
(embora certamente menos que o mar).
Na primeira quadra, a poesia é vista como algo que não é difícil, em comparação
com outras atividades que requerem outras habilidades, que não seja a escrita; como
pintar, por exemplo. Na estrofe seguinte, ela aparece como algo precioso, embora o
último verso dessa estrofe relativize seu valor. No primeiro dístico, a durabilidade dela é
ressaltada, assim como sua capacidade ampla de alcance. Todas essas considerações são
pautadas em comparações com a vida marítima. No último dístico, percebo que pela
percepção do eu – lírico, a poesia sobrevive. “Um verso antigo” ainda é atual, e
rentável. Disso, infiro que a poesia vai existir sempre; é atemporal. É possível notar
nesses versos sua imortalidade. A metáfora do último verso é surpreendentemente bem
construída: “que ainda navega bem”. É como se a comparação atingisse o ápice. Para
falar de um verso, utiliza de um verbo do mundo marítimo. Esse é um recurso estilístico
recorrente na obra de AMM: usar de verbos exclusivos de determinadas profissões para
falar de poemas. É o caso de “Caixa de costura”, que analisei anteriormente, em que ela
usa “cerzir”; “o poema cerze/o que não tem reparo”.
Um poema de uma única estrofe que aborda o fazer poético, e que é bastante
interessante, é “banheiro”:
banheiro
De modo que o autor estaria aprisionado às suas obras; obrigado a falar somente a
verdade;
não poderia mentir, ou seja, ter a intenção de enganar seu leitor.
Assim, o sujeito poético, que é igualmente o sujeito „real‟, é também
e, sobretudo, um sujeito „ético‟, plenamente responsável por seus atos
e palavras, e por isso mesmo, um sujeito de direito. (COMBE, online,
1996.)
Nietzsche teve sua visão corroborada pelos poetas simbolistas franceses, uma vez
que eles iniciaram o processo de ruptura do sujeito empreendido por Hegel. Charles
Baudelaire, Arthur Rimbaud e principalmente, Stéphane Mallarmé, com sua poesia
“autotélica e centrada na experiência verbal, dissocia de maneira incisiva a experiência
poética da realidade e esvazia o reduto do lírico do material biográfico articulado às
experiências de vida, tornando o sujeito lírico uma existência imanente à linguagem”
(COMBE, online, 1996).
A partir desse marco, muitos críticos apoiaram, e aprofundaram essa distância entre
o eu - lírico e o eu empírico. Chegaram ao ponto de falar que nenhum caminho da vida
conduz à poesia, como se fossem antípodas. A cisão entre real e ficcional atingiu
extremos. Não obstante, há teóricos que acreditam que
o conteúdo da lírica está inserido na experiência vivida do poeta,
porquanto para Combe „a chave da criação poética é sempre a
experiência e sua significação na experiência existencial‟. De certo
modo, o sujeito lírico é um eu sensível e o seu reconhecimento „não
parece de nenhum modo incompatível com a idéia de que a poesia,
apesar de tudo, tem a ver com a vida e tira água do poço biográfico”.
Isso condiz com a poética da escrevivência. Declaro desde já que não buscarei
identificar o que é ou não verídico nos poemas de AMM, pois esse não é o objetivo
deste estudo; e também, porque acredito que isso acrescentaria muito pouco, ou mesmo
nada, para a Literatura. O que me interessa é contemplar como os sujeitos, o eu - lírico e
seu interlocutor, constituem-se em sua lírica. Após esse resumo, passo aos poemas:
Batata quente
Bilhete
Eu deixei um bilhete sobre a mesa para quando você acordar. Eu tive
que sair muito cedo e não sabia exatamente que palavras deixar. Eu
queria te dizer várias coisas sobre a noite, coisas que começariam com
palavras claras e doces, mas ligeiramente ácidas, e depois um pequeno
segredo e uma declaração firme e discreta e por fim uma frase que
seria fria por fora e quente por dentro como uma sobremesa francesa.
Mas foi tão difícil, o sol batia de leve sobre a mesa, você dormia tão
próximo e eu ainda não tinha calçado os sapatos, o que certamente
interferiu um pouco na minha caligrafia. Seu apartamento ainda
decorado com os restos da noite. Eu não sabia o que dizer, e se a única
caneta que encontrei era vermelha você pode supor meu sobressalto e
então eu apenas escrevi
eu estou pronta
se você estiver
um pequeno veleiro.
(MARQUES,2009,p.46)
Em “Bilhete”, não é declarado explicitamente que o ser ama. Porém, pode-se intuir
isso no relato apresentado: a ânsia do “eu” em deixar um bilhete para seu interlocutor; a
preocupação com a escolha das palavras; a situação onírica do amante dormindo ao
lado; o desejo de fazer uma “declaração”. Tudo isso contribui para que fique claro que
se o “eu” não ama, pelo menos está apaixonado, ou em via de se apaixonar. Essa idéia
de paixão é corroborada nos versos “eu estou pronta/se você estiver”. O desejo de se
entregar do eu- lírico fica nítido. É interessante que nesse poema o “eu” se constitui
como uma voz feminina. Friso isso, pois em outros poemas o “eu” é formado, ao que
tudo indica, pela voz masculina. AMM lida com essa dicotomia de vozes em seus
poemas. A seguir, abordarei alguns poemas que possuem essa voz “masculina”:
Nirvana
Não há nada no texto que personalize a voz do eu - lírico quanto ao sexo dele.
Porém, seu interlocutor é uma mulher, o que se observa por “silenciosa” e “nua”. Ora,
as relações amorosas/sexuais comuns são entre homem e mulher; e como o interlocutor
é uma mulher, o eu - lírico só pode ser um homem. Se a autora em questão pretendesse
fazer com que os sujeitos líricos desse poema fossem ambos do mesmo sexo, ela
indicaria de alguma forma. Como não o fez, isso corrobora para que se pense que os
sujeitos citados sejam um casal tradicional. “Camiseta do Nirvana” pode indicar tanto a
banda de rock, quanto aquele estado de paz. Eles, os sujeitos, estavam bem,
completavam-se e conversavam sem parar. As coisas materiais, naquela cena, não
possuíam importância. E precisamente naquele momento ele, o “eu”, “deveria ter dito/o
que hoje/porém/seria ridículo dizer”. Provavelmente ele deveria ter dito “eu amo você”.
Não há nada no poema que ratifique esse pensamento, mas a maneira pela qual os
signos estão organizados o suscitou. Parece que agora eles estão separados, por isso
todo esforço seria vão. A constituição do eu – lírico em “Nirvana”, parece ser a de um
ser nostálgico, por causa do modo pelo qual recorda aquele momento. Outro poema em
que o eu – lírico parece ser uma voz masculina é “guarda-roupa”, que está na seção
intitulada “Arquitetura de interiores”. Segundo Sabrina Sedlmayer, “Há muitos livros
dentro desse livro” (SEDMAYER, online). A vida submarina é composto por seis
seções. Infelizmente, não será possível abordar todas; isso é trabalho para trabalhos
futuros.
guarda-roupa
seu vestido de verão
sem você dentro
não é um vestido de verão
porque no vestido o verão
era você.
(MARQUES,2009,p.37)
Para “guarda-roupa” vale o que foi dito no poema anterior sobre o sexo do eu - lírico. Nesse
poema, sucinto, mas intenso, ocorre a sublimação da interlocutora. Ela, a mulher que vestia o
vestido, é que é o verão, que dá vida ao vestido, que é a própria vida.
dia 8, manhã
um gato atravessa o pátio
decido que não te amo mais
nunca ficam boas as fotografias do mar.
(MARQUES,2009,p.57)
O eu – lírico decide que não ama mais seu interlocutor, mas não parece estar bem
com essa decisão; por isso as fotografias nunca ficam boas, porque não há mais amor. O
“eu” transfere seus problemas para as fotos. Portanto, o “eu” não está bem, e não é
preciso que ele diga isso para que se perceba. Outro poema que o “eu” transfere suas
frustrações/insatisfações para algo exterior a si é “Seda”:
Seda
É tão difícil amar
neste mundo imperfeito
é difícil dizer alguma coisa
das coisas
saber nosso próprio tamanho
olhar alguns bichos nos olhos
pensar com doçura
aproveitar adequadamente a luz
Confissão
Eu já vi flamingos no descampado
contra o fundo de casas tristes
mas você é mais bonito.
Eu já me apaixonei por quinquilharias
em feiras de bairro
mas não como me apaixonei por você.
Eu já desejei ardentemente doces enjoativos,
cigarros e uma sandálias verdes
mas não como te desejei.
Eu já menti por ninharias,
capricho, necessidade
mas nunca fui tão sincera
como quando menti para você.
E nunca fui tão feliz
quanto quando fui infeliz
a seu lado.
(MARQUES,2009,p.51)
O “eu” constrói uma imagem de si de alguém que amou e desejou intensamente seu
interlocutor; e que foi tão feliz quanto infeliz a seu lado. O “eu” possui uma relação
dicotômica de felicidade/infelicidade com seu interlocutor. Ao ler este poema, sente-se
que o “eu” possui uma consciência triste, melancólica e nostálgica de sua situação em
relação ao interlocutor. Os três últimos versos dão a entender que eles não estão mais
juntos, que o relacionamento acabou. O próximo poema demonstra um ser melancólico
que continua em um relacionamento, talvez por comodismo:
A casa
A casa sonha um jardim de roseiras desordenadas
É interessante como ela, a “casa”, é concebida como um ser vivo, pois ela “sonha”; as
coisas também são personalizadas, já que elas “testemunharam”. E nesse sonho, o
passado é rememorado, e o presente, constatado. O amor entre os sujeitos líricos
acabou, eles não se amam mais; e no entanto, permanecem juntos. Seria por
comodismo? Medo da solidão? Ou talvez uma carência afetiva intensa? Essas questões
jamais terão respostas. E “A casa” é justamente para levantar questões como essas que
não possuem respostas. Uma leitura que sanasse essas questões empobreceria o poema.
O eu – lírico reconhece que as palavras não ditas, os silêncios, talvez para evitar
discussões, torna os “corpos pesados”; em conseqüência disso é gerado um clima
pesado. Eles não se tocam mais, não falam sobre o que realmente importa, e pelo menos
o “eu” nota isso. Quem sabe se não seria melhor que não percebesse; então, não ficaria
melancólico. Para finalizar esta parte do trabalho, mostrarei outro poema que mescla
melancolia com nostalgia:
Jardim de inverno
mesmo as xícaras
que você nunca lavava
agora me lembram você
o pequeno jardim
está morto
como uma estúpida metáfora
o primeiro beijo
longe de sua boca
me deu vontade de rir
de gargalhar
às vezes me pergunto
por que as pessoas instalam em casa
um quadrado de coisas que morrem.
(MARQUES,2009,P.68)
Na primeira estrofe, a nostalgia começa por algo que o interlocutor nunca fazia: lavar
“as xícaras”. Em seguida, o “jardim morto” vira uma “estúpida metáfora”. No caso, uma
metáfora para o amor morto. Infero isso, porque o “eu” sente falta de estar com seu
interlocutor. O relacionamento deles acabou, o eu – lírico tenta outros relacionamentos,
que não dão certo, porque não consegue esquecer seu interlocutor. A tentativa de outros
relacionamentos fica evidente na quinta e sexta estrofe. E o fato de não conseguir
esquecê-lo se torna nítido na quarta estrofe. Ao longo do poema é possível perceber a
saudade/nostalgia que o “eu” sente de seu interlocutor. Na oitava estrofe, a curiosidade
alheia é representada, e o “eu” novamente sente falta dele, de rir com ele sobre isso. Na
última estrofe, uma reflexão: questiona-se sobre o porquê de as coisas acabarem; há um
quê de inconformidade com as coisas que acabam.
Para finalizar, cabe realizar uma retomada do que foi apreendido no que se refere aos
temas propostos para este texto. A poesia é vista como perigosa, destrutiva, nociva,
corajosa, frágil, preciosa, arriscada, imortal, fácil, intensa, capaz de ser agentiva, de se
autodestruir, de se alimentar de si, e de comportar dentro de si todos os temas/assuntos.
O eu – lírico é concebido como um ser apaixonado, nostálgico, insatisfeito, frustrado,
triste, melancólico, consciente, inconsciente, que se desconhece e que está aberto a um
novo relacionamento. O interlocutor possui menos construções; ele é moldado como um
ser volúvel, bonito, desejado, apaixonante, e em “guarda-roupa”, ele é sublimado. Seria
interessante, para pesquisas futuras, examinar em que medida um sujeito interfere na
constituição do outro.
Referências