Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
V.
de uma ~udança. A obra de Sade multiplica pontes, abismos,
claustros, ilhas - lugares quer de passagem, quer de encerramento,
mas que portam, todos~ o sentido de uma transformação em curso,
figurada pela translaçao espacial, e com freqüência também o
sentido de uma cofcentração que adensa as experiências novas
reveladas no texto. Mas, ao mesmo tempo que na própria obra
lemos esses trajetos, sucede também em nós, leitores, alguma sorte
de passagem, de iniciação. O texto de Sade, apresentado por Eliane
na boa, ainda que recente, tradição de um século que deu ao
marquês uma popularidade e simpatia antes desconhecidas, não
mais se arrasta na repetição ou monotonia de que tanto foi acusado:
toma-se o veículo de uma novidade, de uma revelação leiga.
Aqui, a segunda conclusão. Apostando no materialismo de Sade,
Eliane Robert Moraes pode então libertá-lo da imagem assustadora
que dele construíram os séculos XVIII e xrx. Não, é certo, para
compor um marquês bem-pensante, por exemplo, o apóstolo pre-
coce e incompreendido da liberdade se:xual.4legar-lhe a identifica-
ção com o Mal não significa reduzi-lo a um casto e quem sabe
castrado anjo de presépi~ Mas era pr~ciso afastar os preconceitos,
sair do plano do bem e do mal, para apreender o vigor sensual de
uma obra como a de Sade. Dizendo de outro modo, é a perspectiva
resolutamente materialista de Eliane que abre caminho para uma
leitura que fará mais justiça ao erotismo sadiano do que as leituras
assustadas do passado. Para a ficção do marquês expor toda a sua
sensualidade, era pois necessário esposar os ritmos de seu pensa-
mento; sem o materialismo, que é de sua filosofia, não será legível
o erotismo, que é de sua fantasia. Um repertório de alguns temas
seletos assim se mostra especialmente rico para se ingressar no
pensamento e na ficção de Sade. E, para te~~r _numa nota
pessoal, minha impressão de leitor que teve o _pnvilegio de acom-
panhar a escrita deste livro: raras vezes, acredito, o prazer que se
tem em ler deverá tanto ao prazer que teve a autora em escrever.
1 Citado por Gilbert Lcly, Vie du Marquis de Sade, Paris, Gallimard, 1957, tomo
D, p. 659.
18 Nota Introdutória
mais. m
. tensas , inspirando o temperamento
d . . passional
. . . dos persona-
gens stendhalianos, que, não_ S<:_ dobran o a 1e1 nem a moral, deixaltl
fluir o curso livre de suas paixoes.
/,Energia é um conceito-cha;e tant~ ~~ Stendhal quan~? em Sacte,
correspondendo para ambos as possibilidades
. d de..expenencias Pro.
fundas nas quais irrompe uma força interna o su1e1to, uma vontade
de potência, que põe em questão, i~c_essantemente~ a~ limitações
das convenções sociais. Quanto mais intensas as paixoes, maior a
energia, e é dela que decorre a felicidade. Entretanto, se Stendhal
encontra o máximo de energia no campo dos sentimentos (é na
emoção - advinda do amor, da arte - que ela se revela),~ ade vai
reconhecê-la tão-so?1ente nos se?tido_s: a energia J e c~necta com 0
movimento da materia, com a v1braçao da carne. A viagem, sendo
movimento e portanto elemento deflagrador de paixões, abre a
cena para tais experiências; a viagem à Itália, lugar por excelência
da energia, é a garantia de sua realização.
É verdade que a Itália, ao lado da Espanha, ocupa um lugar
especial no imaginário europeu já bem antes de Stendhal e mesmo
de Sade; a tradição de viagens para o sul desde o século xv vai
criando uma mística em tomo desses países, associando ao clima
quente a sensualidade e, às tradições, a sensibilidade artística, o que
será enfatizado nos livros de viagem dos séculos seguintes. 17 Há uma
fantasia recorrente que descreve os países do sul ora como o lugar
das paixões desenfreadas e dos excessos passionais, ora como os
espaços paradisíacos da dolce víta. Palco da paixão, cenário infalível
do desastre, mas também convite à alegria, à sensualidade, à aven-
18
tura. Itália e Espanha são "mundos imaginários", como lembra Rui
19
Coelho, que no século XVIII abrigam toda sorte de paixões, dos
amantes obstinados de Radcli.ff e Walpole à sedução frívola dos
26 Sadc, "Idéc sur les romans", em Les crimes de l'amour, em OEuvres complete~,
~ , PaUVttt, t. 10, p. 74 (grifos do autor).
Z7 •Jdée sur lcs romans", texto de abertura de Les a t,nes de l'amour f0 • s r h
A Viagem 37
Não é de estranhar que ela seja citada por Buõuel num filme
sobre peregrinação, La Voie Lactée. 33 Por onde andam os peregri-
nos senão por tortuosas estradas? O que encontram senão infortú-
nios? Se, para alguns desses viajantes, a terra prometida, o lugar
santo ou o paraíso terreal acenam com uma promessa, um fim de
percurso venturoso, para outros a verdadeira chegada só ocorre
depois da morte. Um dos sentidos da peregrinação - e justamente
aquele que pressupõe talvez a maior devoção religiosa - é o da vida
enquanto viagem e a viagem enquanto uma cadeia sem fim de
sofrimentos. 34
Assim concebida, a verdadeira peregrinação só termina com a
morte. Não está nesse mundo a recompensa que o peregrino almeja;
aqui tudo o contraria. É significativo o desfecho dejustine: quando
enfim ela termina reconhecida e abrigada pela irmã, quando a
virtude parece contemplada e a paz restaurada, um raio atravessa-
lhe o corpo. A própria natureza se opõe a ela - os cenários sinistros
deixam de ser cenários para participar do acontecimento. A Natu-
,, ,,
reza e ma.
"Justine é uma prisioneira perpétua e uma viajante etema." 35 Em
vão ela viaja na esperança de encontrar o abrigo da virtude. Quime-
ras, ilusões - advertirão centenas de vezes seus algozes, e ela nunca
aprenderá: de infortúnio a infortúnio, de cárcere em cárcere, pro-
longa-se uma repetição sem fim, se ela nunca aprende, nem com os
reiterados discursos dos devassos, nem com seu desventurado
itinerário - lembremo-nos de que suas experiências anteriores
nada valem, nada ensinam e não operam a menor mudança em seu
comportamento - é porque a vítima não é, por natureza, predis-
posta ao aprendizado; está condenada ao Mesmo~
Um outro viajante infortunado, que se torna bastante con h e cido
no século XVIII, Xariar, o sultão das Mil e uma noites, d á sentido
36 Poderíamos elencar aí as d • . -
o arrependim d . uas primeiras versoes de justtne que terminam con1
t;
que O de Justi:;t~ JW!ette, e~bora este seja um castigo infinitamente menor
livro que traz · fi rceu-a ve?ao, no entanto, contradiz tal desfecho. Um outro
Fwmce, últim:11 ina.l moral e Histoire secrete de IsabeUe de Baviere, reine tle
rcs. romance de Sade e bastante atípico cm relação às obras anterio
37 Convém lembrar que u novelas
A Viagem 45
e, através ~
das
A
alteridades,
." .
tenta estabelecer O s ct·iversos graus de
civilizaçao. nova . c1enc1a
,. do homem funda u ma nova c1enc1a. . . . de
viagem que exige metodo na observação e pede ct· ~ .
~ ' il Ih 1staneia em
relaçao aqu .
o
po que se o a para
. garantir O rigor e a exat·d~
1 ao.
A
0 bservat ion , . uco a pouco vai se tornando analyse.
O mundo
, . . e um vasto teatro . mas também um Iaborato"r·o 1 : por tras,.
dos cenanos procuram-se leis universais e as explorações científicas
cont:acenam com a aventura. Talvez seja justamente essa a riqueza
do Seculo das Luzes: o teatro e o laboratório dialogam um com 0
outro, e os saberes literário e científico, embora comecem a se
tornar antagônicos, ainda mantêm estreita convivência. Se encon-
tramos essa liberdade em pensadores como Voltaire e Diderot, que
circulam com desenvoltura entre esses saberes, vamos encontrá-la
com igual força na literatura filosófica de Sade.
67 Jacques Guicharnaud, "Toe wreathed columns of St. Peter", Yale French Studies
- Sade, New Haven, Eastem Press, 1965, n. 35, p. 38.
68 Marcel Hénaff, L'invention ... , dt., p. 72-73. "
69 Conforme Jean Deprun, "Sadc et la philosophic biologiquc de son temps , em
Le Marquú de Sat1e, cit., p. 190-191, ~ 6 e 1 2 ~ ~ que o
50 Capítulo 1
---
assa afirma Jean Deprun ' "como se a. natureza dispusesSt c1
P ' "'nicos em quantidade finita e a permanência t
ele~e:°toesÇ,eº~:mente presentes sobre nosso globo, no Ptitn:ôl.1
espec1es 1 1
t,, • . 1rll
comand o da espécie humana, lhe furtasse
~ • d
a ma er1a-pr1ma
,, 70 indisp tn.
sável ao desdobramento de sua açao cria ora .
Se Buffon e Robinet informam ~ade sobre a transmutação ela
matéria, é em La Mettrie, em Louis de la Caze . e sobretudo elll
d 'Holbach que ele encontra as teses fundamentais do equilíbrio e
da eletricidade como princípios da vida, sustentados ora "corno a
soma de movimentos do corpo", resultante da proporção dos
elementos, ora como o essencial "fluido elétrico que circula nos
nervos". Aderlndo às concepções da eletrobiologia - cujo conceito
a
básico é intensidade - Sade forja, a partir dela, uma noção
fundamental na libertinagem a que Deprun dá o nome de "choque.
prazer". Lê-se numa extensa nota de La nouvelle Justine: "É dos
nervos que dependem a vida e toda a harmonia da máquina; daí os ·
sentidos e as volúpias, os conhecimentos e as idéias; numa palavra:
são a sede de toda a organização e lá também se encontra a da alma,
isto é, esse princípio de vida que se extingue nos animais, crescendo
e decrescendo com eles, e que, conseqüentemente, é totalmente
material.' ' 71
li! Uma vez dissipadas as quimeras da religião e da metafísica, uma
rt. l
O Castelo 55
significados, explicitando para além do qu . _
tendia, ultrapassand o a associação primeira e a mtençao · · • pre-
m1c1al
O
ou inconscientemente, propôs através deias.que autor, consciente
Perguntado certa vez sobre sua obsessão .
Borges respondeu: "Não sou eu ... Eles é u~:~~tgres, Jorge Luis
mim". 3 Os tigres não são apenas figuras às q . obc~cados por
quais o escritor re
quando escreve, escolhendo-as num vasto r ,. . corre
~ epertorio: assumem
estatuto d e revelaçao. A resposta
. ,.. . borgeana nos dº1z que a imagem .
pode transcend er a consc1enc1a do suJ·eito que d 1 ..
· dº e a se utiliza
colocando, d e une tato,,, . outra
,. questão·· é O autor que se serve da'
D imJgem ou, ao contrano, ~ ela que,,. se impõe ao seu texto?
s ~o ca~o de Sade, essa imagem e o abismo. De várias formas ela
se enuncia: como. elemento. o_bri~atório da espacialidade sadiana;
l
como uma das paisagens pnvtleg1adas do imaginário setecentista·
como metáfora do pensamento de Sade.~ '
~ão há castelo libertino que não seja protegido por um abismo ou
algo semelhante. Não há libertinagem que não seja referida à figura
abismal. Para que o castelo seja absolutamente inviolável é necessário
prec~ar ( e em Sade este termo assume um sentido matemático) a
distância que separa o mundo exterior do universo do deboche. É
necessário evidenciá-la através de uma paisagem inóspita, que, se de
um lado representa a interdição, de outro anuncia os excessos de uma
volúpia cuja principal fonte de inspiração é essa mesma natureza, a ser
imitada em sua imponderável capacidade de destruição, e, por exigên-
cia da insaciabilidade libertina, a ser incessantemente ultrapassadl O
abismo não existe apenas para mostrar ao homem a fragilidade de sua
condição, ~ sobretudo para provar, concretamente, que é possível
transcendê-la,\
Tema filosófico que, ao eleger a natureza como campo desco-
nhecido a ser investigado, toma-a como lugar onde está depositada
uma verdade irrefutável. As paisagens dão a conhecer leis e princí-
pios imutáveis. O projeto de ler o homem atrav~s dos eleme?t_os
naturais de conhecer a natureza humana, leva o seculo XVlll a vanas
vertent;s de exploração quase todas fundamentadas num diSt ªncia-
' - "bJ·~
mento entre sujeito e objeto que pressupoe a natureza como 0
de conhecimento". Essa postura manifesta-se tanto na r;.;~:
sentação pictórica do mundo natural como na s ºª expio ç
· - brasileira.
O Castelo 59
=~
custe a cada membro a vultosa soma de dez mil francos "Vinte
ou homens de le~s serão recebidos ao preço mÓdico de
" as por ano. A Sociedade, amiga das artes outorga-lhes essa
deferencia· ela last· '
, ,, ima que seus meios não permitam a admissão por
:1empreteraestima'
preço ~echocre de wn número maior de homens pelos quais
Mas
1
d " ~
e O arf 0 9º st · essa e.ierencia não é exclusiva dos artistas
nd
dos. ";: - .,e e e ª solidariedade exposta no 7º a outros associa·
. avera sempre em re
a utilidad d serva uma soma de trinta mil libras para
e eummembroq -
má situação" .23 ue ª mao do destino houver lançado em
23 ld. Ib'
O Castelo 65
sempre
amizade.exphcaçoes para tais atitudes) , mas sim• em funçao ~ de outraª
Se há traições .entre amigos elas observam pnn·c1p1os,
,, . e nad a tem
,.
a ver com a ?ratu1dade com que os libertinos destroem suas vítimas.
Quando Juliette e Clairwil, acompanhadas por Sbrigani, estão hos-
pedadas no castelo de Minski e, para fugir dele, ministram ao gigante
?111ª !º1:e dose d~ soporífero,_ a libertina recusa-se a aniquilá-lo:
pers1stmdo em minha resoluçao de jamais fazer tombfr sob meus
25
golpes aqueles que fossem tão cruéis quanto eu... " . o "respeito
aos talentos" que faz parte das regras do castelo de Silling é um
princípio constitutivo da libertinagem; não deve haver traição quan-
do o devasso está entre pares. Salvo exceções, excessos.•
Assim, podemos dizer que não apenas o libertino nunca está só,
mas também que ele insiste em se manter ao lado de seus pares,
reconhecendo talentos e desfrutando do conforto das boas compa-
nhias. As cenas de solidão - como a deJustine perambulando pelas
florestas - , Sade as reserva exclusivamente às vítimas~ sentimen-
to de ilha que une os devassos aponta outra solidão, comunitária,
que só existe para desvendar uma forma de sociabilidade que a
sociedade persiste em esconder, mascarando-a~ Afastados do mun-
.
49 Citado . hâteau.,"C... , cit., p. 237. Notável coincidência: os
em Anrue Le Brun, Lese .
1
¼ l our. também se abastecem de
antropófagos do reino de Butua: em Allndaet: r~~vel,da redação do livro é 1789;
carne humana num açougue nacional. A P
foi publi<:_ado em 1795. .. ·mes de l'amour, em OEuvres completes
50 Sade, "ldee sur les romans , em Les cri
28
Paris, Pauvert, 1988, t. 10, P· · . ,, le ~/arquis de Sade, Pari , Arman 1
51 Jean Fabre, "Sade et le Roman Noir , em ~
88 Capítulo 2
ser perfurada.
IV
90 Jean Desbordes o
1968, p. 118. i ~ro""!"'doAla,,,.,,
98 Capítulo 2
. ,, .,. . oes
a realizar, a do poeta e a d o comed 1ante - e asstm que Dider
fecha O Paradoxo, assimilando as habilidades do cortesão às ;~
comediante.44 Neste sentido, também o devasso assemelha-se aos
nobres, mesmo quando acontece - o que é raro - não ser um
deles ..lA corte e os salões lhe oferecem os modelos desse jogo dt
aparências que se desenvolve na sociabilidade do Antigo Regime: é
na simulação que a nobreza encontra seu divertimento, tanto 11
sentido vulgar dessa palavra, como no sentido mais denso que lhe
atribuiu Pascal. Apreciadores dos bailes de máscaras, das ópms e
comédias onde a platéia disputava o palco com os atores, acostu-
mados aos rígidos cerimoniais palacianos e às etiquetas, os nobres
interpretavam seu papel dando à representação o estatuto de um
dever. Os libertinos a elevarão à arte~
Privilegiando a glória, a honra, a fama e a reputação, a socieda~c
de corte se caracterizava pelo apego às imagens e pela distinçao
através das aparências: "o Antigo Regime aceitava que vivêssemos
em meio a semblantes, a máscaras, a p ersonae" .45 Não importava
43
V~, nesse s~ntido: Claude Reichler, L'age ltbertin, Paris, Minuit, 19S~: N,:,'
El~: 1 socredade de corte, Lisboa, Estampa, 1987; Renato Janine R•~' A 1
1
Glória ' em O sentido das paixões, São Paulo, Companhia da . Letras'. ~O
O Teatro 127
oderosa,
,,. • c1enc1a.~
0 s me 1cos, diz.Foucault' assumem entao - o lugar
P
de sabios; serao e 1es a mon~polizar as grandes polêmic~ Se 0
interesse de Sade pel~s espetaculas deve-se à afirmação do teatro
enquanto arte, ele tera que se dobrar ao argumento do "rem"'ct·
A e 10,,
para combater os que veem nele um "vírus" contaminador.56
A indicação do teatro como terapêutica da loucura inscreve-se
numa concepção médica que defende a utilização de "medicamen-
tos psicológicos., ou de "métodos morais" no tratamento dos doen-
tes, concepção que, a partir das últimas décadas do século XVIII, vai
ganh~do o espaço outrora ocupado pelas teorias que prescreviam
apenas medicamentos para o corpo. O psicológico vai, pouco a
pouco, substituindo o físico. Royer-Collard é um homem da "velha
escola", não vê com bons olhos essas inovações que começam a ser
ldCl~didas e sistematizadas por uma psiquiatria que propõe mais
~~~~~de" aos internos, tendências às quais Coulmier parece ser
mais sensível. Alguns anos mais tarde, Esquirol irá prescrever
a e a encenação como terapias eficazes para as doenças
, dedicando um capítulo de seu tratado ao exame do teatro
em Charenton. 57 Mas será preciso esperar ainda um século
que a idéia de cura pelo teatro seja_reivindi~a~a de fo~a mai~
E subvertida: será um artista e nao um medico a faze-lo. Sera
.....,_ "louco" a realizá-lo: Artaud.
J34 Capítulo 3
cena, .1orça
& d os a vê-la , enquanto os .devassos
.d d têm absoluto"
. '"'"ºntr
. -
de sua v1sao, a f: zendo dela uma at1v1 .a e a serviço · . da lu"" , ()le
~Utia
.
ngor, somente esses últimos _ poderiam
d ser qualificados
. , coni.A
voyeurs,~ na medida em que sao, entre . ost que assistem
. ~ as cenas <1()
deboche, os únicos a investir erot1came~ e na ;7i~ao e , Portanto o
fru . daquilo que vêe~ Pelo menos sao os urucos a decia , , a
u lib . ~
Entendamos po,:ém ? ~oyeur!smo e1:ino como ~ma das Possibi~
l .d d s de fruiçao erot1ca e nao no sentido de desvio que a ps· ,
1 a e ~ ,, _ l'b 1cana
lise atribui à !°'ª~ão. ~ão ha pe1;7le_rslao na _1 hertinagem, tna~
preferências; nao ha desvios, mas mu tipos canun os de acesso ao
ppzer. "i'
(( Teríamos entre súditos e senhores a mesma diferença que
poderia estabelecer entre o espectador e o dir~tor d~ um espetác~~
teatral: ambos vêem, mas apena~ o seg~ndo !ntervem. o libertino
não é apenas ator em cena; ele e tambem, diretor em atividade
criar e recriar um campo visual a pa~ir, exclusivamente, de se~
desejos. Quanto ao leitor-espectador, e esperado que ele se identi-
fique completamente com a direção do espetáculo, e , nesse caso
intervenha com suas próprias imagens; se não atender a essa expec~
tativa só lhe resta a identidade com a vítima, condenada à absoluta
passividade. Sade não poupa o leitor. E aquele que imagina estar
fora da cena, evitando o desconforto das identificações, estará,
inevitavelmente, fora do texto. ~
Há um perverso tom rousseaniano no teatro do deboche: à
simples representação, que exige distanciamento entre palco e
platéia, Sade contrapõe a presença absoluta do corpo: da exibição
à manipulação, e desta ao dilaceramento - eis a composição desses
espetáculos. Sendo assim, o libertino não se obriga a manter o
afastamento que o olhar exige: se a visão é um sentido da distância,
o devasso, voyeur, além de subverter esse intervalo fazendo com
que o olhar sempre repercuta no corpo, irá também alterná-lo com
outro sentido que requer obrigatoriamente a proximidade, o tato.
A ferida exige o toque.
Ver e ferir: concomitância dos sentidos, plenitude do p razer. Em
Saló ou Os 120 dias de Sodoma, Pasolini recria a cena sadiana com
perfeição: os quatro fascistas, no final do filme, reúnem-se para
torturar seus súditos no pátio da villa o nde se hospedam; uma daS
janelas da casa J>Crmite-lhes a visão privilegiada desses suplíci~;
os quatro algo7.es se revezam entre as atividades externas e a cadet
Capítulo 3
136
70
.
,., pois se desenrola em público" . Da tortura a., ex
ostentaçao, oduz e reproduz uma verdade. Das t ec:u\¾
diz ele, c?1~ ~lhotinas do Terror, o espetáculo d~~Utiras (4;
0
constitwçao . . ue
Nietzsche vai estender para toda a --~~a~dade ao dizer q~e a terrível
técnica humana se constroi mvanavelmente atraves da dor.n
mnemo li . . . b
- ~ a formulaça~0 sadiana o sup ao Jamats se su mete a outro
Nao,"11 & 1m ,,
sentido que não seja o do mal. Ou, como pre.1ere Do ance, "daqUilo
. ,, 7 ~
que os imbecis chamam d,, ~ cnme . -~ . . ,,
Uoo ponto de vista da vitima, a crueldade libertina e sempre gratuita;
a rigor não se pode falar de castigo ou punição no mundo do deboche,
pois na tortura e no assassinato o que se visa é unicamente a fruição
do mal. Os corpos imolados não são, jamais, ~superfícies onde se
inscrevem leis, mas matéria-prima da lubricidade~A vítima nada tem a
aprender ou memorizar: prova disso é que o corpo mutilado sempre
pode, a desejo do devasso, ser reciclado. A passagem final de]uliette
é, nesse sentido, bastante significativa: o corpo de Justine, totalmente
recuperado das horriveis marcas que seus algozes lhe imprimiram,
servirá à derradeira cena lúbrica, mutilação fatal da natureza aprimo-
rada pelos devassos. Além disso os supostos cas~·s dos súditos de
Sillin - . '
li ~ sa~ _apenas formas de inflamar a volupia, do ponto de v1sta
,, ·
bertino e Justamente essa gratuidade da crueldade que fundamenta 0
prazer, Verdade última do suplício.\
70
Michet Foucau11, Vigia
71 Pierre Clastres "Da 1i r e />Unir, Petrópolis, Vozes, 1977, p. 43-44. tra
0 &t.do, Rio dcJan ?rtura nas Sociedades Primitivas", em A sociedade cm,
/J
1111ver
sofrer faz bem, ,,fazer-sofrer
. . mais bem ainda- ei·s uma frase
as um velho e sohdo axioma, humano, demasiado h
duta, m ,, . b umano ,
ue talvez até os s1rmos su -~crevessem: conta-se que na invenção
q
de crueldades bizarras ele~ Jadan~ciam e como que 'preludiam' 0
mero" _ as pa1avras sao e Nietzsche. Lançando O mal à sua
h;é-história (idade de ouro, diria Sade), "quando a humanidade não
fe envergonhava ainda de sua crueldade", quando não precisava
encobri-la de razões outras para praticá-la, Nietzsche percebe uma
substância cruel irredutível e anterior a qualquer lei humana. Nessas
épocas ancestrais "não se prescindia do fazer-sofrer, e via-se nele
um encanto de primeira ordem, um verdadeiro chamariz à vida" .7•
Esses "homens primordiais" agem movidos por uma "força
ativa", por uma avassaladora "vontade de poder": "sua obra consiste
em instintivamente criar formas, imprimir formas, eles são os mais
involuntários e inconscientes artistas - logo há algo novo onde eles
aparecem, uma estrutura de domínio que vive ... ". São criadores de
sentido, orientados por um "instinto dei liberdade" que nos outros
homens foi tomado latente à força. 75 ~ crueldade do artista, a
violência
,,,
da arte, precede a lei.
E nessas raízes, concebidas pela antropologia de Nietzsche como
"ancestrais", que a arte da libertinagem vai novamente coincidir com
a do teatro. Não só na superfície da carreira, de ator ou libertino, mas
nas profundidades, onde encontram-se o sentido primeiro e último da
atte: aos tempos nrimor~ais de Niet~che correspond~ a na~eza de
Sacie. E, por issofo espetaculo libertino pede para ser lido, nao como
espelho dos suplícios que a época ostentava publicamente, mas como
manifestação superior de uma energia que, inscrita em todos os
home11s, foi forçada a calar-se ou a manter-se nos cantos obscuros de
consciência conciliada com a lei.
148 Capítulo 4
O BOUDOIR
"Passemos
.. d . então
. , ,. para
. meu boudoir, 1,a,. estaremos mais
a .vonta
, ,. e, Jª alertei
, ,. meus criados·, asseguro-vos que
runguem ousara nos interromper."
La philosophie dans le boudoir
7
,.,..ille
Consub:ar,
ncw sentido, além de Philippe Alies, Edwud Shorter, Naissance d~
Paris c-.a 1977· EUabetb Bactintcr Um amor conqttl.,-
lllOdernt,,
-..u: o _., tio 4Ullar . . .' ,_.,.,,
.__.._, -.-...., ' ' M. hei
Rio de janeiro, Non Fronteira, 1985: ,e
,auk>. Gra~l.
O Boudoir 183
s sociais, já não mais conseguem reconhecer .
má.scar~ to materno"; Sophie, ao contrário "segu em s1mesmas
" · sun f ili ,. . , e o caminh d
o i0 ,, e encontra na am a, uruca sociedad o a
oatureza "razão de viver': is e verdadeiramente
tural, sua .
11a.u. 11ada em seu boudoir, Mme. de Saint-Ange ta b "
~rec ç ,. m em prop~
orno à natureza 1.ormulando criticas radicais , oe
tJl11 re t ~ as mulheres da
. dade. Mas seu a1vo sao aquelas que se associam .
soc~eedades filantrópicas e materna~ "não há nada mcam1 ·s t?dr;io das
soei . . n 1culo e
ao Jl1 esmo tempo mais
.
perigoso
..
do que todas essas asso . - e,. a
c1açoes·
e1as, às escolas gratuitas e as casas
. de caridade que no"s d evemos · a
-1vel desordem em que
110,~.. . . hoJe nos
~
encontramos" •16 0 assassmato .
da virtuosa Mme. ~e M1st1val, ~ae de E~génie, expressa as dimen-
sões dessa recusa. ~o boudoir, ela sera sodomizada, flagelada e
penetrada por um cnado que a contamina com um vírus venenoso
nUtllª orgia que c~mina na cena de sua filha costurando seu~
genitais para garan~rr a mo1:e __lenta, indispensável aos prazeres da
IibertiJlagem que a Jovem d1sc1pula rapidamente assimila.
At) boudoir contém os elementos do lar: o leito, na otomana
objeto emblemático da volúpia; a educação, na rigorosa conjunçã~
de teoria e prática que orienta a atividade dos preceptores liberti-
nos; a criança, no infanticídio; a mãe e o pai, no incesto, no
matricídio, no parricídio. Numa troca de sinais, o boudoír projeta
a face noturna da família, dá-lhe segredos inconfessáveis, ao mesmo
tempo que descortina completamente o que há de mais oculto nela,
o sexo. O boudoir é o lar pelo avesso~
Contestando a vida sedentária dos apartamentos e salões, dedi-
cada à frivolidade, ao luxo e à galanteria, "prisões voluntárias" que
encemun indivíduos prisioneiros de seu interesse privad o, Rous-
seau elabü_D uma contundente crítica ao "homem fechado em si
mesmo": ro pior homem é aquele que mais se isola , que mais
concentra o coração sobre si mesmo; o melhor é o que divide
igualmente seus afetos por todos os seus semelhantes"~ A utopia
rousseaniana concebe um sujeito privado e pú b lico ao mesmo
da ignorância
. e da tirania ' a que equívocos fioram conduz·d
1
conhecimentos humanos, e a que escravidão foram cond os o,;;
. " . d . enados 0
maiores ,..genios o universo! Ousemos pois falar hoJ·e , po rque p s
mos faze-lo; e como devemos a verdade aos homens Ode.
.,. 1 40 • . , ousem
reve1a- a comp1etamente" . Mais adiante, o marquês, men 5 , os
placente, irá chamar Montesquieu de "demi-philosophe" ."1° com.
Convém, portanto, ressalvar que ~ade compartilha ape . .
cialmente das teses enciclopédicas~o segundo parágrafo~as in~-
meiraJustine, há a importante observação de que o conhecU: Pn-
buscado por ele, esse saber que os homens maus dominam im e~to
um "abuso das luzes". E abuso, na libertinagem, tem se~pr p ca
sentido superior. Do philosophe ao filósofo libertino há, senã~ um
rompimento, uma ampliação. Trata-se de uma diferença _ e e~~
fundamental - na intensidade das luzes: ali, onde O prime~ e
. d e parar-se com os limi.tes d a razo, d o que cega e portant
acred 1ta iro
não permite esclarecimento, o segundo excursiona com seguran ~
e liberdade, vendo tudo, esclarecendo tudo. Daí a importância âa
iluminação absoluta dos cenários sadianos, que não deixa nada na
obscuridade, profundamente relacionada à convicção de que "a
filosofia deve dizer tudo'' .
#sade leva a extremos o ideal da razão iluminista e, para fazê-lo )
~ Localizado
. entre o salão , onde rema
. a
onde rema o amor, o boudoir simb0 li conversação e 0
· "~ E ~ za o lug d ' quarto
e .do
,, . erotismo . nao seria tamb,,em a otoma ar e união da fiil osofia'
d1ano entre a~cama ~ e o sofá , reiterand o que refl
na um~ móvel interme-
discurso e açao sao ~
indissociáveis n a libertmagem,
. exaoEe sentimento '
mesma concepçao em Laclos, na Cart · ncontramos a
Merteuil narra uma de suas conquist ª x, em que a Marquesa de
as ao Viscond d v
"Passamos,, ao boudoir, que se apresent ava em toda suae m e almont:
nifi "
eia. Aí, um pouco por reflexão, um pouco or se . ag icen-
lh~o~ braços na cintura e, deixei-me cair ao~ seus ;~e4~to, passei-
Nao se cometa o .eqwvoco . de unaginar que as d.unensoes ~ do
pe~~eno ~poscnt? limitam a extensão dos pensamentos e das
praticas ali .produzidos;
,, _ elas apenas indicam que tudo é concenra t do
no bouá o,r. Lá serao praticadas todas as paixões libertinas, os
voluptuosos prazeres do vício. Lá, também, serão citados Suetônio,
Nero, Maquiavel, :tuffon, Alcebíades, Thomas Morus, César, Rous-
seau, Virgílio, Saf~e tantos outros pensadores com os quais discute
Dolmancé para justificar filosoficamente o crime, ora utilizando-os
para adensar suas argumentações, ora reparando suas idéias, ou
comb~endo seus princípios, sem abrir mão, jamai,s, _das luzes?ª
razãortá o libertino colocará o mundo inteiro: a Grecia, a TurqU1a,
o Império Romano o Oriente, os longínquos reinos selv~gens. ~
assado , o present~ e o futuro. E' ao entrar . . nessa imensidao que e
-~~""o',, 4s,~
P
o boudoir, Eugénie exclama: "Que delicioso Illlll• mprime
· · contra seus
6
"O ninho é um fruto que incha, que se ~o emMichelet.-!
limites" - diz Bachelard, interpretand essa unagem º
- 1 Martins fontes, 1981, p.
·sas sao pau o,
42 Michel Foucault, As palavras e as cot '
224. . ·r p. 7/8. d 38.
·O Y\'Oll Bclaval Prefácio a La philosophte--•• ~• deJaneiro, Ediouro, s/ • P·
, Laclos Relações perigosas: Rio 59
de ' . c1t., P· ·
196 Capítulo 5 ~
~ ,,
'.Podenamos dizer o mesmo do boudoír libertino: um 1
. d ,, . . . - ugar peque
no, pnva o e mtrmo CUJas dunensoes se ampliam indefmidame ·
Um espaço ao mesmo tempo confinado e ilimitado Daí a pr nte.
,, .
d os espeIhos, acessono · esença
que, ao lado da otomana, é imprescinct'
nos aposentos do deboche. ive1
Saint-Ange explica: "é que repetindo as atitudes em mil sent·d
diversos, [os espelhos] multiplicam ao infinito os mesmos praz~r~:
aos olhos daqudes que os desfrutam sobre essa otomana. Dessa
forma, não se oculta nenhuma das partes de um ou outro corpo: é
necessário que tudo se evidencie; são tantos os grupos reunidos em
volta desses que o amor encadeia, tantos os imitadores de seus
prazeres, tantos quadros deliciosos, que só fazem excitar sua lubri-
cidade e servem imediatamente para completá-la" .47 À visibilidade
absoluta proporcionada pela iluminação soma-se o efeito multipli-
cador dos espelhos. Abuso das luzes?
O dispositivo do espelho, diz Marcel Hénaff, "visa a tomar 0
espaço absolutamente circular na onivisibilidade, a garantir o fecha-
mento da cena e seu controle pelo olho libertino; ele não serve
apenas à imaginação em seu trabalho de invenção de quadros, mas
se constitui numa espécie de maquette de realização prática da
imaginação, uma projeção objetiva de suas estruturas internas".
Máquina de reflexos que automatiza a mimesis e, portanto, jamais
mero instrumento de ilusão, o espelho sadiano é "reconstruído
segundo o pensamento das Luzes, se é possível dizê-lo, despojado
de toda a metafisica". 48
O libertino é um "senhor onivoyeur": detentor de um "panótico
erótico", que lhe assegura a onipresença de um olhar sem recipro-
cidade, ele tem acesso à soma de todos os pontos de vista possíveis.
Nada se oculta à sua visão. Por isso, os espelhos sadianos não têm a
função de abrir para um novo universo - como o espelho barroco,
sinônimo de psyché, abre para os segredos da alma - mas justamen-
te o contrário: fechar o sistema, sem que nada lhe falte, sem. qu~
nada lhe escape. Por isso também, se a presença de espelhos e
.freqüente nos aposentos.sadianos, não são seus efeitos de profun·
didade que o devasso enfaaza · mas os muitip , , e, ainda ' se.
· licad o ...~es·
isso acontece, é porque o profundo veio · a, tona, o d e sconhecido foi
J 98 Capítulo 5
IV
se. o boudoir
~ d é contra a sociedade, ele represen t a, mais
. que is
.
c_n~,açao e uma •
privacidade para o indivíduo ·n E sa d e 1ns1ste
. . so, a
d uerença
. l d existente
. dº . entre cada homem , propondo que cada corp na
0
seJa eva o m• 1v1dualmente em consideração ' recusand o toda
qual quer teona que submeta a singularidade do su1·eito e
. l N . ao corpo
soc1a · . 1 este, sentido, a intimidade sadiana é uma conquist a, talvez
eqwva ente aquelas que seus contemporâneos exaltam e exi e
dando-lhes o nome de "direitos do homem" .7, \ g m,
Mas aqueles "libertinos e voluptuosos de todas as idades" a
. · d d. ,, . . quem
S-a d e .se d mge na e 1catona de La philosophie dans le boudoi·r nao ~
sao tipos que se fazem reconhecer no interior da sociedade em
· p 1 - que
vivem. e ~ menos, nao no grau de excesso com que sua obra lhes
oferece a imagem; e sobretudo pela impossibilidade que ela com-
porta. O libertino sadiano é modelo sem concretude, não se realiza
no social. Mesmo assim ele será radicalmente recusado.
As raras edições de seus livros na época, quase todas clandestinas
e proibidas, o atestam. Porém, mais que isso, os vinte e sete anos
que, no Antigo Regime e depois da Revolução, ele passou recluso
em prisões e sanatórios, onde se perderam dois terços de sua obra,
confirmam que~ intimidade que o Marquês colocou em seu bou-
doir era absolutamente insuportável para uma sociedade que atri-