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Charles de Foucauld
Ano XLVI - Nº 173 - Setembro - Dezembro de 2019
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EXPEDIENTE:
Equipe de redação:
Benedito Prezia (preziabenedito@gmail.com);
Roberto Delgado de Carvalho (delcarv@uol.com.br);
Gislene Delgado de Carvalho (giscarv@hotmail.com);
Miguel Savietto (saviprof@ig.com.br);
Renato Bicudo (renatojbicudo@yahoo.com.br);
Regina Mariano (reginafrater@yahoo.com.br);
Maria Júlia A. Lima (Ribeirão Pires).
Editoração e impressão: Renata Lima - A.N.Gráfica Ltda.(11) 3975-9262
Expedição: Roberto Delgado de Carvalho e Márcia Sanches Venturi.
Enviar notícias de seu grupo ou de sua região por e-mail para Benedito Prezia:
preziabenedito@gmail.com
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APRESENTANDO
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no Amazonas. Deste singular evento surgiu um renovado “Pacto
das Catacumbas pela Casa Comum” elaborado e assinado por
bispos, leigos e membros de outros credos, aproximadamente
200 pessoas, 80 delas bispos, junto ao Papa, num compromisso
real com os povos originários, os pobres e a casa comum. Por
falta de espaço, publicaremos sobre isso no próximo número.
Não poderia faltar aqui a nossa homenagem aos 90 anos
de vida do irmãozinho João Cara, que vive atuando junto aos
moradores em situação de rua de Salvador (BA).
Aproveito para recordar o nosso Encontro Nacional, em
Alagoinha (BA), em julho do ano que vem. Preparemo-nos para
ele e para a eleição da nova coordenação.
No dia 1º de dezembro, na Celebração do Martírio de
Charles de Foucauld em São Paulo, será realizado um evento
especial para a abertura da comemoração dos 60 anos da
Fraternidade Leiga no Brasil, junto aos moradores em situação
de rua. Informem-se conosco e participem!
Contamos também com belos textos de Patrick, nosso amigo
e padre próximo, de frei Inácio do Vale, da irmãzinha Marga,
entre outros depoimentos e notícias.
Que o Pai siga animando-nos na união fraterna em Jesus de
Nazaré e na espiritualidade do nosso irmão Carlos de Foucauld.
Um abraço fraterno,
Marcia
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Por estarmos próximo ao Natal,
trazemos textos sobre Maria, escritos
por nossos irmãos evangélicos,
seguindo a tradição ecumênica de
nossa Fraternidade.
Texto em que a autora procurou imaginar Maria diante da surpreendente revelação do anjo.
O resumo do artigo foi feito por Roberto Delgado de Carvalho, da Fraternidade Patriarca-Ari-
canduva, São Paulo. In: ULTIMATO, revista evangélica não denominacional, março/abril de
2019, p. 21-22.
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MARIA, NO OLHAR EVANGÉLICO
Pastor Hermes C. Fernandes
CORTINA, A. Aporofobia, el rechazo al pobre. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2017, p. 22.
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MENSAGEM DA FRATERNIDADE
A ATENÇÃO NAZARENA
Ir. Marga, Irmãzinha do Sagrado Coração *
Ir ao encontro do outro requer
uma forma especial de atenção "uma
atenção nazarena". Chamados a nos
descalçar2 para acolher Deus que se
revela a nós sobre a terra do nosso
cotidiano, convidados a embarcar ao
ritmo de uma vida pacífica que nos
permite de centralizar nosso coração
no essencial... Tudo isto exige nascer
em nós, pouco a pouco, uma “atenção” especial.
Os evangelhos mostram Jesus como um homem extremamente atencioso, capaz
de perceber detalhes que passam despercebidos a outros. Esta atenção pede uma ca-
pacidade que leva uma longa aprendizagem e bons mestres. Maria e José ensinaram
a Jesus a não se prender às aparências, mas sim ao interior das pessoas e perceber
valores nos pequenos gestos de total generosidade que são as partilhas dos pobres
(ver a viúva do Templo).
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Descalçar: no mundo mulçumano para rezar é necessário tirar os sapatos, deixando-os na entrada da
mesquita.
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Esta atenção fez de Jesus um homem contemplativo que descobre a ação de
Deus no mundo, a presença do Reino no meio dos homens apesar de todas as apa-
rências. Graças a esta atenção contemplativa, Jesus percebe as dores mais profundas
da humanidade ferida e encontra a palavra e o gesto oportunos para curar e consolar.
A espiritualidade de
Nazaré é uma escola privile-
giada de atenção, a atenção
profunda do coração. Existe
efetivamente uma forma de
"atenção" necessária para
viver em sociedade, mas,
finalmente, é superficial e
se reduz à cortesia e às boas
maneiras. Uma pessoa pode
ter outra “certa atenção”, que responde a códigos precisos de urbanidade, sem por
isto estar verdadeiramente atenta ao que o outro vive ou sofre.
A atenção profunda que nos ensina Nazaré nasce da paz interior e não pode se
desenvolver no meio do stress. Por isto, uma “higiene de vida” psicológica e uma
espiritualidade de relações, é tão importante... Não devemos nos acumular de com-
promissos, de encontros, de leituras, de formação...
Buscar uma atenção que permite encontrar o outro, de acolhê-lo, de escutá-lo
em profundidade.. Quantas vezes vemos sem olhar, e ouvimos sem escutar! Nossa
cultura, cheia de estímulos visuais e sonoros, não nos ajuda muito. É porque a aten-
ção que Nazaré propõe é um valor contra cultural que nos anima a viver bem inseri-
dos no cotidiano. Veja alguns exemplos cotidianos desta atenção que me permite ir
ao encontro do outro no “meu Nazaré”. E cada um pode encontrar outros exemplos:
1- Não posso dar um pedaço de pão a todas as pessoas que pedem no metrô,
mas posso fechar o meu romance ou deixar o meu celular e escutar o que a pessoa do
meu lado diz; ou escutar a conversa de cada um, mesmo que seja monótona e pouco
verossímil. Posso me deixar penetrar por aquilo que a pessoa diz, posso acolher seu
sofrimento ou seu desespero, posso apresentar esta pessoa a Jesus...
2- Não posso evitar as guerras nem os confrontos sociais, mas posso estar atento
a salvar a proposta de cada um, em benefício da dúvida. Posso não intervir para não
colocar “lenha na fogueira”, numa discussão que não vai levar a nada.
3- Posso ajudar um irmão ou uma irmã sem que eles me peçam. Posso responder
com humor e não com irritação a uma pessoa que fica no meu pé o dia todo...
Essas são algumas formas de atenção cotidiana, com o pé na realidade, mas que
mostram concretamente e com realismo os grandes valores que estamos engajados
a viver.
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Certamente, a atenção mútua da Santa Família de Nazaré conheceu também
situações que, na sua banalidade e sua pouca importância, forjaram pouco a pouco o
olhar contemplativo de Jesus.
*As Irmãzinhas do Sagrado Coração formaram o primeiro grupo religioso que seguiu irmão Carlos.
Este texto foi publicado no boletim Les Petites Soeurs du Sacré-Coeur (jan. 2018, p. 27-28) e enviado
por Pedro Paulo, da Fraternidade de São José do Rio Preto.
Agora sei que a Fraternidade não pode existir sem a fragilidade e sem os limites
de seus membros que lhe dão ‘carne e osso’. E é exatamente esta Fraternidade que
eu amo desde o início. Ela é um tesouro, mas repleta de fragilidade, de humildade e,
frequentemente, de pecados.
O verdadeiro carisma é então o de ser feliz de pertencer à multidão desses po-
bres e pecadores que Deus ama. Se existe, portanto, uma mensagem profética da
parte da Fraternidade, é de testemunhar que na banalidade do ordinário se realiza o
Reino de Deus. A vida ordinária é o lugar onde Deus vem ao nosso encontro e nós O
encontramos em torno dos acontecimen-
tos e sob os olhares de nossos irmãos hu- O verdadeiro
manos. Esse ‘carisma de Nazaré’ não nos carisma é então o de ser
pertence. Ele existe semeado nos sulcos feliz de pertencer
de milhões de vidas de pobres e pequenos à multidão desses
que não sabem mesmo que eles restituem
pobres e pecadores
a Nazaré sempre presente nos espaços e
no tempo pelas suas vidas. que Deus
A nós compete nos deixar evangelizar ama.
por eles e acolher a revelação que Deus
encaminha pela experiência desses múlti-
plos Nazarés onde a vida faz seus cami-
nhos até Deus e onde o Reino acontece.
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SÍNODO
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PROFETAS DA AMAZÔNIA
Trazemos aqui relatos e depoimentos de pessoas que doaram sua vida pelos povos
da Amazônia, no seguimento de Jesus de Nazaré.
Brutalmente assassinada às
margens do rio Paciá, em Lábrea
(AM), onde trabalhava junto ao
povo Apurinã, irmã Cleusa era
radical na opção pelos pobres e
intransigente na defesa dos di-
reitos indígenas, gerando a ira
dos poderosos locais.
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Irmã Cleusa Carolina Rody Coelho tinha 52 anos quando foi cruelmente assas-
sinada, em 28 de abril de 1985. Morreu há 34 anos em defesa da terra indígena e
buscando a paz na conturbada região às margens do rio Paciá, na Prelazia de Lábrea.
Coordenava o sub-regional Norte I do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que
abrangia as Prelazias de Lábrea e Coari. Atuava para minorar a difícil situação dos
Apurinã, que coincidia com a história do extrativismo no rio Purus. A morte dela não
se constituiu num fato isolado, fazendo parte da história regional alimentada pela
cobiça, onde os indígenas foram as maiores vítimas. O martírio de irmã Cleusa se
confundiu com o martírio histórico do povo Apurinã, que ela morreu defendendo.
Natural do Espírito Santo, irmã Cleusa dedicou 32 anos de sua vida missionária
a serviço dos mais empobrecidos, integrando a Congregação das Missionárias Agos-
tinianas Recoletas (MAR). Em 1954 foi uma das fundadoras da casa da congregação,
em Lábrea. Passou um tempo no Espírito Santo, retornando à Lábrea em 1979 e
passou a acompanhar os Apurinã até sua morte, encomendada por latifundiários e
castanheiros, que tinham interesses nas terras indígenas.
Acompanhava e apoiava os indígenas da região de Caititu, onde se dirigiu ao
encontro da morte, após saber do assassinato da esposa e de um filho do cacique
Agostinho Mulato dos Santos. O responsável direto pelos crimes, o Apurinã Rai-
mundo Podivem, que tinha sido policial em Manaus, vinha tentando acabar com a
vida do combativo tuxaua. E irmã Cleusa era uma pedra no caminho e por isso foi
martirizada barbaramente em sua missão de paz. Ao contratar um indígena para exe-
cutar a ação macabra, os poderosos de Lábrea tramaram gerar mais discórdia na área,
emperrando ainda mais o conturbado processo de demarcação das terras indígenas,
para se apropriarem das áreas.
“Comprometer-se com o ín-
dio, o mais pobre, desprezado e “A justiça tem que estar na base de toda
explorado, é assumir firme a sua convivência humana”
caminhada, confiante num futu-
ro certo e que já se vai tornan-
do presente, nas pequenas lutas
e vitórias, reconhecimento dos
próprios valores e direitos, bus-
ca de união e autodeterminação.
VALE ARRISCAR-SE.” Irmã
Cleusa escreveu esta mensagem
profética poucos dias antes de
ser assassinada.
Por causa do compromisso total com os menos favorecidos, tramita no Vaticano a
causa da beatificação dessa mártir da justiça e da paz. E agora no Sínodo da Amazônia,
os bispos da região Norte levaram ao papa Francisco o pedido de sua canonização.
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PROCLAMAÇÃO-TESTAMENTO
DE PEDRO CASALDÁLIGA
“O homem é a mais insana das espécies. Adora um Deus invisível e mata uma Natu-
reza visível. Sem perceber que a Natureza que ele mata é esse Deus que ele adora.”
Hubert Reeves, astrofísico canadense
OS PRIMÓRDIOS DA FRATERNIDADE
SECULAR NO BRASIL
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A FRATERNIDADE DE LUCÉLIA
Antônio Celso Escada, membro do grupo fundador
e da Fraternidade de São José dos Campos
Durante mais de um ano acompanhei esse grupo de médicos. Uma vez por mês
ia à Lucélia. Saia na sexta feira e voltava na segunda-feira. Tomava o trem da Com-
panhia. Paulista de Estrada de Ferro, na Estação da Luz, às 8 h da manhã, e lá
chegava às l8 h. Apesar de longa, era uma viagem muito agradável. Eu ficava no
carro-restaurante, onde podia ler a viagem toda.
No sábado atendia as pessoas individualmente, e no domingo, tínhamos oração
à tarde toda. E à noite fazíamos uma confraternização.
A experiência desse grupo era muito bonita, onde tudo que recebiam ficava em
comum, como uma comunidade de trabalho e de vida. Era uma coisa meio utópica,
mas era bonito. Alguns já se preocupavam com o futuro, quando os filhos cresces-
sem. Será que iriam aceitar aquela forma de vida que eles haviam escolhido?
Desde o início ficou muito clara a opção do grupo pelo espírito da Fraternidade
Charles de Foucauld. Podemos dizer que três coisas caracterizaram o grupo: o com-
promisso com os pobres, a partilha total de vida e a oração, com acento na eucaristia.
O serviço aos pobres fez com que o trabalho que desenvolviam na Santa Casa
fosse combatido, por uma espécie de ciúmes, de inveja, por parte dos outros médicos
locais, sendo que vários deles eram japoneses [nisseis]. Como o prefeito era também
japonês [nissei], ele apoiou mais os médicos que defendiam suas clínicas particula-
res que ficaram prejudicadas. Como o atendimento dos médicos da Fraternidade era
de melhor qualidade e de graça, é claro que o povo não ia para os médicos particula-
res. Foi assim que foram pressionados a deixar a cidade.
Outro ponto importante na vida do grupo foi a oração. Além de terem momen-
tos de oração próprios, participavam também da paróquia, organizando a liturgia. A
vida deles ali era como “o fermento na massa”.
O terceiro ponto foi o desprendimento pelo dinheiro. Era um grupo jovem e
idealista. Alguns ainda nem eram casados, como o João e a Priscila.
Quando ocorreu a saída deles de lá, um amigo meu, o dr. Paulo Savaya, que tra-
balhava no Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo e que tinha uma
casa em São Sebastião, convidou-me para ir ao litoral passar uns dias.
Naquela época era uma aventura a viagem até São Sebastião. A estrada era pés-
sima, de terra e com muita curva. Pouca gente ia até lá. Tanto é que o governo tinha
construído uma Santa Casa, mas que não funcionava por falta de médico. Isso foi
no início dos anos 60. Contei para dr. Paulo, sobre este grupo de médicos de Lucélia,
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que estava sendo obrigado a deixar a cidade,. Foi então que ele propôs para que fos-
sem para lá para assumir a Santa Casa local.
Foram para conhecer o lugar e ficaram encantados. Ainda me lembro do Zaire,
indo à noite pescar de barco, com lanterna...
Foi assim que começou a experiência da Fraternidade em São Sebastião. Como
fui transferido para Recife, onde devia começar uma comunidade dos dominicanos,
deixei de acompanhar o grupo.
Lembro-me que nesta época começou a funcionar em São Paulo uma espécie de
Fraternidade Leiga, com oração eucarística e revisão de vida. Depois não tive mais
notícias desse grupo3.
OS ANJOS DA
TRINDADE
Benedito Prezia, Fraternidade
de São Paulo - grupo Centro
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Dra. Deise, que mais tarde formou um grupo de Fraternidade em São Lourenço da Serra, fez parte
dessa primeira Fraternidade Leiga de São Paulo.
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briel, com suas mensagens; outra, com a reprodução do famoso ícone dos três anjos
que visitaram Abraão, mas redesenhado num contexto nordestino. Ambas as ima-
gens foram de muito significado para todos. A foto de Gabriel nos recordará sempre
como Deus fala pela boca dos “pequeninos”. Dele é a frase: “Aqui oro por toda a
humanidade sofrida”. E essa imagem bíblica dos anjos, no sertão do Nordeste, que
está na Igreja da Trindade, foi uma preparação para entrarmos no clima da visita
que ocorreu no dia seguinte. Se no relato bíblico, os anjos comunicaram a Abraão o
nascimento de um filho, na visita que fizemos à igreja da Trindade, pudemos ver um
local onde os excluídos de nossa sociedade, da zona do porto, da região do meretrí-
cio tornaram-se os “escolhidos de Deus”.
Que grata surpresa quando ali chegamos, ao sermos recebidos por aqueles “anjos”.
Os antigos moradores de rua, com suas neuroses e transtornos mentais parecem que aos
poucos vão encontrando uma nova vida. Muitos nos acolheram com um grande sorriso,
perguntando nossos nomes... Outros seguiam no seu mundo, meio ausentes...
Logo fomos conduzidos à nave da igreja, onde o “arcanjo” João Cara, da Frater-
nidade dos Irmãos do Evangelho, nos fez sentar no chão para uma pequena apresen-
tação. Um pouco mais magro, com o cajado de pastor, mas com voz forte, nos falou
sobre o que foi aquele “milagre” da recuperação da igreja abandonada.
Esse templo era o retrato da situação em que viviam os moradores de rua da-
quela grande cidade, não muito diferente do que se vê nos grandes centros urbanos
do Brasil. Aquela área do porto tinha um ambiente semelhante às áreas degradadas de
muitas cidades brasileiras: dependentes químicos, moradores de rua, prostitutas... e pe-
quenos assaltantes. O abandono da igreja era a imagem do abandono dos “verdadeiros
templos” ocupados pelo Espírito Santo, mas que estavam jogados na sarjeta...
Até que um grupo resolveu mudar aquele local. Henrique, o peregrino, o Irmão
João Cara e mais alguns voluntários decidiram recuperar a igreja, transformando-a
em local de acolhida para os pobres. Decisão tomada, foram ao cardeal dom Geraldo
Majela solicitar a autorização para ocupar a velha igreja. Num mutirão de limpeza,
retiraram mais de 300 sacos de lixo! Não foi fácil negociar a saída dos viciados e de
pessoas que usavam a igreja para “encontros amorosos”...
Aos poucos o santuário tornou-se um novo espaço de convivência para os mo-
radores de rua. A pedido desse grupo, João, que morava sozinho na sua Fraternidade,
em outro bairro de Salvador, decidiu mudar-se para lá. Solicitou a autorização de
seus superiores, sendo-lhe construída uma casinha entre algumas árvores que exis-
tem ao lado da igreja. E assim passou a ter sua nova Fraternidade... junto com o povo
em situação de rua.
O grupo tem uma dinâmica própria, fazendo a sopa todos os dias, a partir de
restos de verdura recolhidos numa grande feira, que fica próxima à igreja. E às 5ª.
feiras, no final da tarde, é celebrada a eucaristia durante o “sopão”. A missa não é
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antes e nem depois, mas durante o “sopão”, recuperando o que fez Jesus na última
ceia e o que faziam os apóstolos no início do cristianismo.
E nessa visita, nosso grupo, atento, ouviu João Cara explicar a dinâmica des-
se centro de convivência. A semente está dando frutos, sendo uma referência de
trabalho social com essas pessoas, procurando devolver-lhes a dignidade, sem pa-
ternalismo ou assistencialismo. No último dia daquele ano, convidaram o cardeal
dom Geraldo Majela para celebrar uma missa. Foi algo inexprimível, que certa-
mente marcou a vida do cardeal, pois a partir daí, todo final de ano ele passou a
visitar a comunidade, celebrando aí o “réveillon”, de forma bem diferente dos
demais locais de Salvador.
Aquela igreja não é um templo igual aos outros. Com exceção do belo quadro
dos anjos visitando Abraão, que está na frente, sobre uma espécie de altar, o local
não tem mais o ar de templo, tornando-se um grande espaço comunitário. Em cada
nave lateral, dormem separadamente os homens e as mulheres que fizeram dali sua
casa. Ali mesmo guardam seus pertences, o que deixa o local parecendo uma grande
oficina, como devia ser a casa de Jesus, em Nazaré.
Acredito que o Senhor está contente de ver sua casa ocupada pelos “eleitos do
Pai”, bem diferente das outras igrejas do centro histórico de Salvador, que mais pare-
cem museus do que “casa de oração”. Naquelas outras igrejas históricas tínhamos que
pagar a entrada para apreciar as obras de arte. Nessa, fomos acolhidos fraternalmente
para conhecer essas novas obras de “arte viva”, oriundas das sarjetas e das marquises.
Visitamos em seguida o pequeno bosque, onde foi construída uma capelinha, mui-
to convidativa à oração. Ao lado há também duas “celas”, próprias para os que desejam
fazer um dia de retiro. No canto está a casinha onde João morava. Infelizmente teve
que deixar o local, depois do atentado que sofreu no Natal de 2011. Foi graças aos
“anjos da Trindade” que não morreu, pois um deles ouviu seu gemido, depois que um
louco pulou o muro, entrando na casinha para roubar. Sem encontrar nada de valor,
furioso, espancou João na cabeça, que teve o queixo perfurado por um estilete. Ficou
estendido no chão das 21h às 4h da manhã. Por um milagre sobreviveu a esse atentado.
Levado para o hospital próximo e, depois de permanecer alguns dias na UTI, foi
operado. Uma nova cirurgia fez na Itália, onde moram seus parentes. Já recuperado,
pediu aos Irmãos da Fraternidade Geral para voltar à “sua Fraternidade”.
Assim está lá, recuperado, junto com seus “irmãos”. No final da visita, comen-
tou comigo: “Está vendo por que não quis ficar na Itália? Aqui está minha vida”.
De fato, aquele ambiente e os desafios do dia a dia dão muita energia a esse
“Anjo” com mais de 80 anos... Que Deus o conserve, ele e todos que trabalham na
Igreja da Trindade e que continuem sendo os “anjos” na cidade de São Salvador.
É difícil colocar no papel tudo que vivi neste encontro da Costa Rica. A partilha
do pão, das histórias de vida, do suor de cada um daqueles jovens a encontrar...
No meio deste ano de 2019 tive a oportunidade de conhecer um pouco mais da
nossa Fraternidade, a partir dos jovens. Junto com o amigo Renato Bicudo, aprendi
um pouco sobre alguns dos países da América Latina, suas diferentes economias,
seus problemas sociais, a luta da juventude que atravessa diariamente os centros
urbanos em busca de seus sonhos, nos transportes coletivos, entre universidades e os
escassos trabalhos para sobreviver.
Apesar disso, todos carregam também a esperança em outro tipo de sociedade,
formada, recriada em nossos passos. Passos, que se entrelaçaram nas montanhas da
Costa Rica e, cheios de alegria, viram que é possível acreditar em um novo tempo,
em outro mundo possível.
Fui muito bem acolhido, e rápido me adaptei às comidas, ao jeito, à língua, e,
assim, fui notando como o Amor verdadeiro rompe os muros ilusórios que por vezes
insistimos em cultivar. O café da manhã bem servido – com muito café, arroz e feijão
numa receita típica chamada “Gallo Pinto”, abacate, pão e ovos –, ficará para sempre
em minha memória como símbolo do carinho, da beleza e da presença de Deus nas
mais simples trocas, no cuidado, na busca do Bem Viver.
Percebi então que nunca haviam sido de nós desconhecidos aqueles rostos,
apenas não nos enxergávamos com total nitidez. A cada nova conversa, porém, a face
de Cristo se fazia presente, um por um, e ali nos reconhecíamos como irmãos, sem
euforia ou show pirotécnico. Era somente a graça de compartilhar nossas vidas de
peito aberto, através dos momentos de oração e da divisão das tarefas nas refeições
e limpeza do sítio que nos acolhia.
As distâncias geográficas e culturais passaram a nos aproximar, para nos
conhecermos melhor e aprendermos mais sobre os outros e sobre nós mesmos. Então
pudemos ficar à vontade para cantar e dançar “cueca”, tango, samba e saber mais
sobre o jeito de ser feliz nos vários lugares e regiões que habitamos.
Agradeço imensamente aos irmãos da Costa Rica que não poderiam ter nos
recebido melhor. Povo alegre, simpático, sempre disposto a ajudar...
Texto enviado para a Assembleia do Líbano, de 2018, mas que continua de grande
atualidade.
TEOLOGIA DO ESGOTO
Pe. Patrick Clarke*
*Pe. Patrick é o coordenador do Sítio dos Anjos, em Ribeirão Pires, e da Comunidade Oscar Romero,
na favela de Vila Prudente, em São Paulo.
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NOTÍCIAS DA FRATERNIDADE
Decidimos reproduzir um texto antigo em que nosso irmão Urbano faz uma
retrospectiva de sua vida e que foi publicado em nosso boletim (julho de 2008, p.
9). Poucos devem conhecê-lo e não sabem que a música que serviu de fundo para o
vídeo "Frutos do Deserto" é de sua autoria. Grande saxofonista, possui vários CD’s
de música religiosa.
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FRATERNIDADE DE CAMPINA GRANDE (PB)
Saudações, Fraternidade!
Somos a Fraternidade
de Campina Grande e vamos
contar nossa breve história.
Tudo teve inicio nos sonhos
de padre Paulo e de Dulce,
que desejavam uma casa
de acolhida, onde trabalha-
ríamos o acolhimento aos
pacientes e acompanhantes
dos hospitais que não têm
onde dormir, tomar um ba-
Fraternidade de Campina Grande (PB), por ocasião da visita de Euzimar, nho e fazer alguma refeição.
da Fraternidade de São Paulo, no ano passado (sentada ao centro). Vêm-se São pessoas pobres, que
Anilda e Edvando, antigos coordenadores nacionais, no canto à esquerda, e
Joana, atual coordenadora, em pé, à direita. vem de longe, sem dinheiro
e sem saber se voltam para
casa com um diagnóstico e o tratamento da sua enfermidade.
Também temos a realidade do bairro do Araxá, onde se encontra a nossa Casa
de Acolhida Rosa Mística, que faz frente a uma comunidade carente de políticas
públicas e a realidade de ver tantos jovens morrendo cedo com a violência. En-
tão abrimos espaço para atender também essa comunidade, apresentando bordado,
karatê, terapia comunitária, aulas de flauta em parceria com o SESI, e outras ati-
vidades.
Pe. Paulo já fazia parte da fraternidade sacerdotal e logo nos apresentou Charles
de Foucauld e sua vida com os mais pobres. Ficamos apaixonados pela ideia e foi
então, que em 2017, na Casa de Acolhida Rosa Mística, surge a Fraternidade Leiga.
Assim, nessa casa que acolhe a todas pessoas de Boa Vontade, independente de sua
religião, nós, leigos da Fraternidade, estamos trabalhando como voluntários.
Temos católicos carismáticos, seguidores da Teologia da Libertação, espíritas,
seguidores do candomblé e até quem não acredita muito na Bíblia por não aceitar
uma religião que só condena. Somos, pois, pessoas unidas no Amor. Em nosso grupo
algumas sabem ler, outras não. Tem gente com formação universitária e tem gente
com formação da escola da vida. Charles de Foucauld e Irmãzinha Madalena de
Jesus nos ensinaram a acolher o outro com o Amor de Jesus.
Joana D’arc Nascimento
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Lindolfo Euqueres, que já fez parte da Fraternidade dos Irmãos, mesmo morando
em João Pessoa, tem dado um grande apoio a esse grupo nascente. Em15/10 escre-
veu-nos: A Fraternidade de Campina Grande caminha bem. Dia 27/10 agendamos
nosso retiro, depois de muita conversa para encontrar uma data, quando as demandas
do dia a dia são tantas... Em geral eu animo o retiro, ajudo a organizar o roteiro a partir
de nossas conversas, pensando juntos os apelos, desafios, mas também o que celebrar.
Logo distribuímos as tarefas: liturgia-missa-adoração-deserto, alimentação, reflexão,
vivências com dança circular, contação de histórias, momentos profundos de silêncio e
muita escuta. Tudo simples, mas bonito. Estes são os tempos de contato mais forte que
tenho com a Fraternidade de lá. No retiro do ano passado, convidamos Raminho para
falar sobre a Irmandade do Servo Sofredor e sobre Alfredinho. Abraços.
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ORAÇÃO A NOSSA SENHORA APARECIDA,
PADROEIRA DO BRASIL
O Brasil religioso,
adorador do Deus da Vida,
uma grande e alegre família
de irmãs e irmãos verdadeiros.
- Ajuda-nos, ó Mãe Aparecida!
Pedro Casaldáliga
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