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https://revistacult.uol.com.br/home/estetica-e-descentramento-do-sujeito/
Acessado a 2019/10/29
Tania Rivera
Em 1885 Mallarmé afirmava que o moderno desdenha imaginar. A partir daí e ao longo
de todo o século 20, a relação do homem com a imagem viu-se radicalmente
problematizada, provocando reviravoltas na literatura e nas artes visuais. No domínio da
psicanálise, Lacan foi sem dúvida o teórico da crise da imagem: o grande crítico e,
paradoxalmente, o maior teórico do imaginário.
Isso não impede que uma vanguarda da primeira metade do século como o Surrealismo
tenha recorrido ao inconsciente em busca do maravilhoso, da surrealidade capaz de unir,
de maneira revolucionária, o mundo do sonho ao da razão. Os desencontros entre o pai
da psicanálise e o líder do movimento surrealista, André Breton, refletem a condição
desencontrada que a própria psicanálise revela ao homem. O eu não é mais senhor de
sua própria casa, brada Freud – ao mesmo tempo em que a arte moderna, com um
Cézanne, mostra que o eu não é mais senhor do espaço de representação pictórica. A
partir daí o eu não encontrará mais, na arte, a posição central que lhe era dada, desde o
Renascimento, na construção de um espaço de representação ilusionista.
Quando jovem, Lacan freqüenta os surrealistas e chega a ser médico pessoal de Picasso.
Sua tese de doutorado traz um diálogo com idéias de Salvador Dali, e obtém maior
reconhecimento no meio artístico do que no psiquiátrico e psicanalítico de então. A
historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, biógrafa de Lacan, chega a afirmar
que ele teria sido influenciado em igual medida pelo freudismo, pela psiquiatria e pelo
Surrealismo.
Em seu “Discurso de Roma”, de 1953, Lacan nota que o Surrealismo toma por tarefa o
que seria uma “marca de nossa época”: o desvelamento das relações do homem com a
ordem simbólica. Basta jogar com o simbólico, nas brincadeiras caras aos surrealistas,
para atingir a poesia – afinal, como diria Lacan, o sujeito não é mais do que um efeito
desse jogo. A escrita automática, o acoplamento aleatório de palavras ou imagens e o
“acaso objetivo” seguem essa lógica. Como outra emergência dessa marca, o ensino de
Lacan buscará esvaziar o predomínio imaginário que os pós-freudianos, sob a batuta de
Melanie Klein, haviam construído na clínica e na teoria psicanalítica, povoando-a de
objetos bons, objetos maus, seios, fezes e interpretações capazes de revelar o sentido
oculto da fala do analisando. Trata-se aí, com o apoio da lingüística e da antropologia
estrutural de Lévi-Strauss, de defender a primazia do significante e o domínio do
Simbólico. E, na clínica, de restituir a singularidade da fala do analisando e defender o
lugar da intervenção do analista como suspensão do sentido, como abalo no discurso do
analisando capaz de abri-lo para a força (poética) do efeito de sujeito.
A um primeiro olhar, essa famosa fórmula pode parecer referir-se à arte clássica e às
quimeras estéticas de um Belo harmônico. Mas Lacan mostra o avesso dessa
idealização. A Coisa é pura perda, seu lugar é um vazio, seu modelo é o vaso, objeto
que só se define por conformar um oco. Elevar algo a essa (in)dignidade comporta,
portanto, uma terrível ameaça. O quadro Os embaixadores, de Holbein, serve a Lacan
de modelo, no uso que é aí feito da anamorfose, o trompe l’oeil construído pelo uso
deformado da perspectiva. Ao lado de elementos representando o mais alto refinamento
cultural, acha-se nessa pintura, se a vemos de frente, um objeto alongado que não deixa
de evocar um falo em ereção. É apenas ao olharmos para o quadro de viés que tal objeto
transforma-se em uma caveira.
O sublime está portanto ligado a uma pungente revelação, a tal dignidade da Coisa não
é apaziguadora, mas nos joga na cara nossa frágil e violenta condição humana. Lacan
acentua, assim, o que a estética do Romantismo já apontava ao mesclar o Belo ao
Terrível. Mas é a concepção de objeto implicada na fórmula lacaniana da sublimação
que merece especial destaque: trata-se de um objeto qualquer, um objeto decaído.
Indigno. Uma roda de bicicleta, por exemplo, no primeiro ready-made realizado por
Marcel Duchamp, já em 1913. Ou um urinol, um tanto abjeto, na célebre Fonte, de
1917. Duchamp não faz mais do que um giro significante, ele deita um urinol típico de
banheiros públicos de modo a pôr na horizontal a face que costuma ser fixada na
parede, assina R. Mutt e lhe dá seu título, para em seguida enviá-la ao Salão dos
Independentes em Nova York. Um urinol qualquer, objeto industrializado e um tanto
abjeto, é assim elevado à condição de obra de arte.
Nos anos seguintes à sua elaboração da sublimação, Lacan se dedicará a refletir sobre o
objeto que ele nomeará como não mais que uma letra, o objeto a. Tal objeto se extrai
radicalmente do campo do imaginário. Concebê-lo é um desafio, pois para tanto seria
necessário imaginá-lo – ele nos obriga, portanto, como diz o psicanalista no Seminário
10, a “um outro modo de imaginarização”. Esse objeto rasga o espelho, a tela ilusionista
onde o eu se pinta como centro do olhar. Como um espinho incômodo, ele faz um rasgo
no tecido imaginário, forçando-o a se revirar e deixar entrever o Real, registro do que
não se simboliza.
Se a caixa fosse aberta, a sublimação mostraria sua face terrível e a fantasia se revelaria
como o que relaciona o objeto caído, resto, lixo, com o sujeito irremediavelmente
dividido, limitado.
Avesso do imaginário