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Enzo G.

Kohlert

A regra da noite
Para o meu irmão
A ordem das coisas é sempre baseada em alguma forma de poder; onde não há o
poder, estabelece-se o caos.
Rubem Fonseca, A Grande Arte

Parte 1
Reunidos
(1995-6)
1.

Era uma sexta-feira de julho, a primeira do mês, e o céu nublado prenunciava a


chuva que provavelmente cairia mais tarde. Através da ampla janela de seu escritório,
Maurílio Lacerda observava com atenção todo o cenário que fora armado para o dia:
primeiro, notava o tom acinzentado com o qual a abóbada celeste fora pintada já há umas
três horas e, depois, trocando a direção de seu olhar para o que ocorria dez andares
abaixo, na altura da rua, reparava também as formiguinhas humanas zanzando pela
Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no bairro de Copacabana, os ônibus e micro-
ônibus expelindo gás carbônico enquanto carregavam dezenas de passageiros
provavelmente enfadados pelo desconforto das cadeiras de plástico e provavelmente
desejosos por chegar logo aos seus respectivos destinos, os ambulantes que começavam a
tomar as calçadas com seus produtos baratos e pirateados e os grupos de jovens com
uniforme escolar conversando e rindo alto. Não era um dia atípico para a Cidade
Maravilhosa, pelo contrário, era um dia totalmente típico, mais um dos tantos já
vivenciados pelo Rio de Janeiro, e isso era reconfortante. Até certo ponto.
Maurílio olhou de soslaio para o relógio em seu pulso: meio-dia e quarenta. Isso
mesmo, notou, meio-dia e quarenta, hora do almoço. Finalmente ela chegara, o que, para
ele, significava o tempo livre para resolver algumas pendências. Antes de sair de seu
escritório, ligou do telefone fixo — que ficava sobre uma mesa de tampo de vidro que
ocupava toda a região central do ambiente — para Laura Esteves, sendo atendido apenas
no terceiro toque:
“Olá, é a Laura?”
“E quem gostaria de falar com ela?”
“Maurílio Lacerda.”
“Ah, Maurílio!”
As introduções de praxe em uma conversa — Tudo bem com você? Como estão as
crianças? O que você está fazendo de bom? — foram quase que totalmente suprimidas e os
dois decidiram, em um acordo implícito, ir direto ao assunto, o que fez com que
desligassem logo. Ambos anuíram o fato de que seria bom se pudessem conversar em um
local discreto para discutir aquele assunto que persistia em seus encargos e, dessa forma, a
ligação terminou com os dois marcando de se encontrar às oito horas da noite da terça-
feira seguinte no Pionnier, um restaurante francês localizado em um bairro nada francês
— Copacabana. Como era do feitio de um bom gentleman, Maurílio disse que esperaria
ansioso pelo encontro.

Mas, por enquanto, havia coisas mais importantes a se tratar do que o encontro com
Laura. Ele ocorreria apenas na terça e, antes mesmo disso, já havia fatores importantes a
serem eliminados da equação. Obviamente, o mais importante de todos era o
representado pelo caso Victor e, assim sendo, Maurílio se obrigou a chegar ao Circo
Barbosa pontualmente às oito horas e vinte minutos da noite de sábado. Ainda na direção
de seu Honda Civic, ele olhou entusiasmado para as tendas do circo, e este ato foi o
responsável por lhe entregar a incrível sensação de diversão no trabalho. Uma sensação
que, sobretudo, podia ser sentida através da animação que perpassava o seu corpo, tal
qual ondas de energia perpassam os fios de cobre das tomadas. Sem se deixar levar pelos
devaneios que poderiam surgir a partir disso, ele estacionou o carro rente a calçada do
outro lado da rua, desligou o motor, saiu batendo a porta atrás de si e atravessou.
O ingresso havia sido comprado de antemão, de modo que Maurílio não foi obrigado
a esperar na enorme fila da bilheteria para comprar o seu. Apenas precisou ir à outra fila,
exponencialmente menor, localizada junto a entrada do circo, para entregar o ingresso a
outro funcionário. Ao fazê-lo, não pôde deixar de reparar os dizeres “AQUI TEM MÁGICA,
AQUI TEM FELICIDADE” no uniforme deste. Em se tratando do nível do Circo Barbosa,
não era algo que pudesse ser tido como muito criativo.
Quando já estava se pondo novamente em movimento para alcançar a entrada, o
funcionário, que até então nem sequer havia olhado com atenção para Maurílio, lhe disse:
“Muito obrigado por vir. E aproveite o show.”
E ele, maliciosamente, retribuiu:
“Sou eu que tenho que pedir obrigado. Adoro esse circo.”

Lá dentro, quase todos os lugares estavam ocupados e somente um dos camarotes à


beira do picadeiro ainda estava sem ocupantes. Mal encontrou um lugar vazio, as luzes se
apagaram de uma vez, anunciando o espetáculo. Ele procurou por uma posição melhor na
cadeira e a orquestra, paralelamente às suas ações, iniciou uma estridente e aguda
abertura musical, enquanto os primeiros artistas entravam no picadeiro.
“Boa noite.”
Maurílio sabia que a voz viera atrás de si. Victor — um homem na casa dos quarenta
anos, de porte arrumado, queixo largo e quadrado, mãos enormes e voz grossa —
entrara, sem ser pressentido, e sentara-se numa cadeira ao seu lado. Maurílio virou-se
para ele e percebeu que Victor estava vestido informalmente, de uma maneira incomum
para alguém de sua estirpe: camisa estampada de flores, bermuda jeans larga e tênis All
Star.
“Boa noite para você também.” E voltou-se novamente para o picadeiro lá embaixo.
“E obrigado por ter vindo.”
O outro recebeu o cumprimento com um abaixar de cabeça cordial.
“Você sabe que eu sempre estarei ao seu inteiro dispor, Maurílio.” Com o canto do
olho, ele percebeu que Victor também precisou procurar por uma posição mais agradável
no assento. “Mas, se você permitir a curiosidade de um leigo, eu gostaria de saber o
porquê deste...”, pensou na melhor palavra, “... lugar.”
“Eu adoro circo”, Maurílio respondeu rapidamente, sem precisar pensar antes. “Do
fundo do meu coração. E, bem, explicar isso me fará ter que contar uma longa história...”,
disse Maurílio calmamente. “Quer escutá-la?”
“Adoraria.”
“Você que sabe.” Ele cuspiu, no chão, o catarro que estava preso em sua garganta e
ficou observando a gosma esverdeada por alguns segundos. “A vida”, voltou a falar, sua
voz pouco mais do que um sussurro, “é muito irônica, compreende? As pessoas nascem,
crescem e descobrem as suas potencialidades, os seus gostos, seu gênero literário
predileto, banda preferida, música inesquecível. Invariavelmente, serão apenas gostos
passageiros, predileções que serão esquecidas com as responsabilidades que aguardam a
todos nós quando nos tornamos adultos. Comigo não foi diferente. Mas, antes de eu
contar o lado ruim da história, tenho que contar o lado bom. Bem... Quando eu tinha dez
anos, o meu pai me levou pela primeira vez a um circo. Lembro-me até hoje do nome do
circo: Circo Beija-Flor. Estranho, né? É muito comum encontrar circos nomeados com os
sobrenomes de seus fundadores. Barbosa é um exemplo, mas um animal... Não é muito
comum. Circo Beija-Flor. O primeiro circo em que fui. Eu fiquei simplesmente fascinado
por aquilo: fascinado com a técnica dos artistas — lembro-me especialmente de um cara
que fez um espetáculo com tochas —, com os truques maravilhosos e inesperados, com a
mágica crescente que envolvia o lugar na forma de bizarrices lúdicas e cômicas, com a
felicidade de todos se avolumando ao meu redor, com o tempo passado sob a
companhia...,” houve um rápido momento de hesitação, “de meu pai.”
Maurílio podia apostar no fato de que sua expressão ficara momentaneamente vazia.
Olhando com o canto do olho mais uma vez, viu que Victor o devotava uma atenção
enorme. Como lhe fora dito, o sujeito era um curioso inveterado: não podia ficar sabendo
de uma história que queria escutá-la. Dentro daquele contexto, isso era algo bom.
Maurílio tratou de substituir a expressão vaga por um sorriso que ele próprio julgou
como enigmático.
Lá embaixo, os artistas começavam a entrar: malabarista, equilibrista, mulher-
barbuda. Não, mulher-barbuda não. Só malabarista e equilibrista. Maurílio não gostava
muito das mulheres-barbudas. E os palhaços ainda não haviam chegado.
“O meu pai não era muito presente, sabe, nem mesmo um bom marido para a minha
mãe, pelo menos não sempre, mas era um bom pai. Ele me amava, eu podia sentir. O
trabalho tomava todo o seu tempo e eu tinha que aproveitar os momentos em que
podíamos ficar juntos. E eu os aproveitava. Ir ao circo, especialmente, era um barato. O
resto do mundo desaparecia e só ficávamos nós dois, eu e ele, pai e filho. É clichê dizer
isso? Tanto faz. Com o tempo, o circo se tornou meu programa preferido de final de
semana. E, você sabe, todos nós temos uma tendência a querer enveredar pelos caminhos
que estão ligados com o que gostamos. Eu adorava circo, associava o picadeiro à presença
de papai, e, aos doze anos, o meu grande sonho era ser palhaço.”
Victor o encarou por um longo momento, como que sem palavras. Nem mesmo o
sujeito se equilibrando numa corda finíssima lá embaixo poderia ter atraído tanto a sua
atenção. Maurílio apostou que ele, mesmo com os seus avisos, não pudera prever que a
sua relação com o circo fosse tão profunda assim.
“Entendi...”, conseguiu dizer após esconder ligeiramente a expressão apalermada.
“Não acabou. Isso é só o começo. Tem mais.”
“Tem?”, Victor perguntou, tentando não demonstrar o interesse.
“Sim.” Pausa curta. “Você quer saber?”
“Bem... Sim.” Outra pausa. Ao redor deles, os gritos, aplausos e assovios faziam o
número decibéis irem às alturas. “Continua.”
A palavra mágica fora dada e Maurílio pensou bem nas suas próximas palavras.
Retomou cuidadosamente:
“Com o tempo, nós perdemos a noção precisa do que nos ocorreu. De tal forma, eu
não posso me lembrar com clareza, mas foi mais ou menos nessa época que alguém me
disse aquela frase famosa do Confúcio, você deve conhecê-la: Escolhe um trabalho de que
gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida. Bem, eu era apenas uma criança e
levei essa frase ao pé da letra. Eu realmente queria ser palhaço. Imagine só: meu trabalho
seria fazer palhaçada e alegrar as crianças, arrancar, até mesmo das mais tristes e
emburradas, um sorriso. Obviamente, eu não contei nada ao meu pai. Ele detestaria a
ideia. Eu bem sabia que ele se sentia frustrado pela merreca de salário que ganhava como
caminhoneiro e odiaria que eu fosse palhaço. Não era isso o que ele queria para minha
vida: seu sonho era ver o seu querido filho, único de sua prole, de sua curta prole, se
formar em algo honroso: direito, engenharia, medicina. Principalmente medicina. Queria
ter um filho médico.”
“Coisa que você se tornou.”
“É, pode-se dizer que sim.” E riu, sem saber ao certo do quê. “Mas, quando eu fiz
quinze, caí no erro de comentar o meu sonho com a minha mãe. Disse inclusive que havia
conversado com o dono de um dos circos que passavam pela minha cidade e que ele havia
me convidado para fazer alguns testes. Disse que era coisa séria, que não era brincadeira
de criança, que eu queria ser levado a sério. E aí você já sabe: ela contou tudo para o
papai. Na verdade, o criticou duramente: É tudo culpa sua, só fica levando o menino pra porra
desse circo, olha só no que deu. Eu escutei a discussão inteira. Minha mãe falava, falava e
falava. Ela era assim: quando começava, não era fácil fazê-la parar. Papai se manteve
quieto o tempo todo. Eu não sei ao certo o porquê, mas ele parou de me levar ao circo.
Talvez para me fazer desistir de ser palhaço, talvez para não entrar em atrito com
mamãe. Foi assim que eu perdi o meu programa preferido de fim de semana. E o meu pai
se distanciou ainda mais. Aquele momento de lazer que nos unia era um laço que havia
sido desfeito e eu não podia fazer nada contra isso. Entã...”
“Triste”, interveio Victor.
“Realmente”, concordou Maurílio em um murmuro. “Uma tristeza. O meu sonho
primordial foi desfeito — aí que entra aquele negócio de predileções perdidas do qual falei
— e eu fui obrigado a procurar por outras coisas, o que acabou sendo bom, não é mesmo?
Imagine se, em vez de médico prestigiado e fundador de um renomado hospital
particular, eu tivesse me tornado palhaço de circo? Um desperdício. E não estaríamos
tendo essa conversa.”
Ficaram calados por um tempo. Um tempo curto na verdade. Não demorou muito,
Victor aprumou-se para dizer algo e, pela primeira vez desde que chegaram ao circo, foi
ele quem tomou a iniciativa de falar:
“Em contrapartida, a sua vida seria mais simples, mais fácil de ser vivida. Seria até
mais alegre. Você não teria conhecido as pessoas que conheceu, não teria feito as
amizades que fez, não teria entrado nos círculos sociais que entrou e não teria fundado o
Plano. Estaria longe de jogos, de armações, de mentiras, de falcatruas. Também aplico
isso a mim. Às vezes, imagino como seria se, ao invés de deputado federal, eu fosse dono
de um mercadinho de bairro. Talvez eu fosse mais feliz, concorda comigo?”
“Concordo e discordo.” O som da orquestra aumentou bruscamente e Maurílio foi
obrigado a esperar que fosse diminuído. Ao sê-lo, retomou: “Concordo pelo fato de que,
sim, a simplicidade é companheira da felicidade, mas discordo pelo fato da simplicidade
ser companheira de uma felicidade boba e descompromissada. Prefiro ser um infeliz que
age em prol dos outros, do que ser um bobão feliz que não deixará nada de bom no
mundo quando morrer. E eu sei que você também é assim, o que me faz lembrar o porquê
de eu ter te convidado para vir a esse circo: ninguém aguenta uma total infelicidade. Eu
mesmo não sou de ferro, meu caro. E, como o mero mortal que sou, me permito ter
alguns prazeres: festas, carros, putas — ah, eu adoro putas — e circos. Ir ao circo me faz
lembrar do que eu sou primordialmente, da época em que a vida, admito, era mais
simples. E fazê-lo reafirma os meus atuais ideais: é algo bom rever o meu antigo eu, mas
prefiro o atual, o eu engajado em algo bom.”
Da mesma forma que havia ensaiado em casa, Maurílio parou de falar e virou-se para
o picadeiro de forma brusca, quase arrogante, sem dar, propositalmente, chance de fala
para Victor. Conforme sabia, a hora crítica já estava se impondo: ou convencia o deputado
ou ficaria sem o seu apoio e, pior, deixaria alguém de fora com informações confidenciais
acerca do Plano. Sua garganta secou.
Lá embaixo, o equilibrista continuava o seu show: não bastasse andar sobre uma
corda mínima, agora jogava para cima objetos aleatórios e os pegava no ar, sem deixar-se
cair.
Num cuidadoso olhar de soslaio, Maurílio notou que Victor observava o número
com interesse. Exatamente como previra.
“E isso”, recomeçou mais uma vez, “nos traz ao xis da questão: você.”
Victor não escondeu a surpresa:
“Eu?”
“Sim. E quer saber por quê?”
“Ahn?”
“Porque é acerca de você que eu estou curioso. As minhas convicções eu já conheço,
mas as suas...”
“E o que você quer saber acerca das minhas convicções? Se eu sou realmente de
esquerda ou se o meu partido não tem ideal algum e apenas finge ter?” O deputado riu em
sarcasmo. “Acho melhor você ser mais especifico.”
Maurílio não esperava a intervenção, mas não seria difícil contorná-la.
“Tudo bem, eu vou ser mais especifico então.” E imitou a risada sarcástica do outro.
“Eu quero saber da sua força, da sua convicção em fazer algo que tem que ser feito, apesar
de todos acharem que não. Eu, meu caro deputado, acredito piamente que não devemos
nos manter neutros enquanto o mundo se corrompe numa espiral de maldade e crise
moral. Seria extremamente presunçoso de minha parte esperar que outra pessoa suje as
mãos para que eu não tenha que sujar as minhas.” Maurílio pôs as mãos à frente do rosto,
de maneira ligeiramente eloquente, mas não muito. Queria parecer alguém inteligente e
com ideais, não um personagem lunático de livros da teoria da conspiração. “Se eu vejo
algo errado, eu concerto. Mesmo que, para isso, eu tenha que me sujar de sangue. E aqui
está a questão: você é dos meus, um homem à frente do seu tempo, ou é apenas mais um
rosto sorridente de campanha eleitoral? Você vai ser meu aliado ou estará contra as
coisas que eu prego?”
Victor não respondeu de imediato; em vez disso, tomou uma expressão pensativa
enquanto observava o equilibrista saindo momentaneamente do foco de todos no circo
para dar lugar ao malabarista.
“Pense bem”, disse Maurílio com o máximo de calma que pôde exprimir. “Sigmund
Freud certa vez disse: O estado proíbe ao indivíduo a prática de atos infratores, não porque
deseje aboli-los, mas sim porque quer monopolizá-los. E é justamente disso que eu tenho raiva:
de termos que nos curvar perante as proibições de políticos que, em sua maioria, são
burocratas sem ideais, seres inescrupulosos em busca de interesses individuais e
mesquinhos, pessoas detestáveis que apenas querem enricar nas costas da população. E eu
sei que você não é assim, meu caro. Eu sei que você possui ideal para o nosso querido
Brasil, posso pressenti-lo, mas preciso que você me confirme. E então, o que me diz?”
O deputado hesitou antes de responder:
“Eu não sei, eu preciso... Sei lá, pensar um pouco. Eu tenho alguma noção acerca do
Plano, como você bem sabe, mas ainda sim... Preciso pensar a respeito.”
“Pensar pode ser muito bom ou uma desgraça. Ser um homem que não age por
impulso é bom, mas ser extremamente indeciso não o é. Existem homens, alguns homens,
que já nascem com a força da ação, com o ímpeto de agir quando é necessário. E você não
precisa pensar muito para saber se é ou não um desses homens.”
Victor continuou sem responder. Mas moveu o rosto um milímetro para mostrar que
prestava atenção.
“Então, poupe nosso tempo. Ele custa muito.” As palavras de Maurílio foram
abafadas pelos gritos e aplausos da platéia para o malabarista e ele parou, aproximou a
boca do ouvido de Victor e disse: “E então?”.
Victor afastou o rosto, não porque Maurílio estivesse com bafo, ele sabia que não
estava, mas porque, pôde notar, a aproximação o deixava temeroso. Num canto do
picadeiro, quase escondido, o equilibrista que pouco atrás era atração principal agora
caminhava sobre um arame. Maurílio estava começando a ficar impaciente. O que estava
por trás da demora do deputado para responder? A demora o incitava a ter que
argumentar ainda mais.
“A guerra vai começar.” Novamente, ele teve de esperar o som da platéia diminuir.
“Ela está chegando. E vai chegar. Vai chegar destruindo tudo: pessoas, lares, famílias.
Morte, destruição, dor — tudo estará atrelada a ela. Aqueles que tentarem lutar sozinhos,
não conseguirão. Serão destruídos porque, quando chega a hora da guerra, quem não tem
aliados, quem não tem um exército ao seu redor, é destruído, massacrado, desonrado. E o
seu nome... é perdido para sempre.”
Victor continuou olhando para frente, para o espetáculo.
“Agora, decida. Você vai se unir a mim para destruir os inimigos do Brasil, aqueles
que transformaram nosso país na merda que é, ou você vai optar pela presunção da
neutralidade?”
O deputado fez que ia falar algo, mas desistiu. Tomou coragem novamente e, com
um meio-sorriso acanhado, teve de tomar cuidado para não engrolar as palavras:
“Estou dentro”, disse.
Romero era o porteiro noturno do edifício Carlos Brottas há pouco mais de quatro
anos e isso era tempo mais do que suficiente para ser tido como experiente na função.
Naquela noite, porém, quando ouviu o ruído dos passos furtivos descendo as escadas,
demorou alguns segundos para atinar-se que seria bom seguir as normas e ajeitar-se.
Como era de praxe em qualquer cargo dentro de um local de alto nível como aquele,
ajeitou-se na cadeira giratória e direcionou seu olhar para a tela do computador. Devia
parecer o mais formal possível. Não era algo dito com todas as palavras por seus
superiores, mas isso seria desnecessário: tinha total noção que era uma norma implícita,
de praxe para os porteiros. Nenhum morador gostaria de ver um funcionário em plena
demonstração de preguiça e Romero o sabia perfeitamente bem. Buscou ficar com as
costas eretas e, em seguida, puxou a manga da blusa de frio para ver as horas no relógio e
teve de tentar duas vezes para consegui-lo; perdera seus óculos há três dias em algum
lugar em seu apartamento e não enxergava quase nada sem eles. Quando enfim conseguiu
fazê-lo, prendeu a respiração de súbito.
Já era madrugada.
Sim, madrugada. Já era madrugada e só havia uma identidade possível para a pessoa
que descia as escadas. Era... ele. Óbvio. Sem dúvidas. Era ele e isso significava que, sim, o
trabalho teria de ser feito. Romero sentiu um nó na garganta e forçou-se a concluir que
estava tudo em segurança e que não necessitava ficar receoso quanto o que poderia
acontecer. Ele era um homem experiente e já vira de tudo na vida, assim como já fizera de
tudo. O trabalho não seria novidade para ele. Já o fizera inúmeras outras vezes e não seria
daquela que estaria encrencado. Suspirou. Definitivamente, não seria nada agradável, mas
também não o prejudicaria grandemente. O prédio praticamente transpirava silêncio e
isso o ajudou a aceitar a realidade.
O esperado homenzarrão — com cerca de um metro e oitenta e oito e cinco de altura
e uns cento e dez quilos — chegou à recepção com ar esbaforido. Romero conseguiu
reconhecê-lo em menos de um segundo, como uma criança que reconhece
instantaneamente o cheiro da própria mãe. Chamava-se Abreu e era sabido por Romero
que não detinha os melhores motivos do mundo para estar no prédio. Pelo contrário. Era
a presença daquele homem que o obrigaria a fazer o trabalho sujo logo mais.
“Então?”, perguntou a Abreu tentando não demonstrar o temor. “Está feito?”
“Sim”, o outro respondeu sem qualquer hesitação na voz, como se não tivesse feito
nada de importante lá em cima, no quinto andar. Fez uma pequena pausa. “Pelo visto,
deve ser você o empregado que faz parte do nosso grupo... Então, o nosso amigo já
chegou?”
Amigo. Romero não se considerava amigo do sujeito a quem Abreu se referia, mas
preferiu não dizê-lo. A prudência o mandava agir assim.
“Não. Ele acabou de ligar e disse que chega em quinze minutos. No máximo. Você vai
ter que esperar um pouco.”
A expressão no rosto de Abreu se encheu de uma fúria contida.
“Esperar um pouco?”, perguntou o mais impacientemente possível. Foi somente
naquele instante que Romero pôde perceber a estranheza emanada pelo outro, uma densa
tensão que se aproximava perigosamente do medo. Veias pulsavam na testa dele,
demonstrando o quão paciente era o seu dono. “É sério isso? Eu não posso esperar um
pouco. Você sabe o que eu acabei de fazer lá em cima, na porra do quarto andar?”
“Presumo.”
“Presume”, retrucou Abreu com uma voz de deboche. “Apenas isso?”
“Mas o faço com quase cem por cento de certeza.”
“Ah, que merda!” Abreu levou as mãos à cabeça. “Porra, cara, cê tinha que tá mais
informado. Bem mais informado. Não fez o seu dever de casa?”
“Eu não preciso, sou experiente.”
“Experiente? Ninguém é totalmente experiente para uma coisa abominável como
aquela que está lá em cima.” E apontou com o dedo indicador para o teto, simbolizando
suas falas. “Pensa um pouco. Se você não tiver preparado, daqui a pouco todos vão saber o
que aconteceu. Se a polícia me pegar, eu tô fodido. Fodido! Vou parar em cana, vou ficar
num presídio o resto da minha vida, vou sofrer horrores com os outros presos, vou virar
saco de pancada deles, você me entende?”
“Calma aí, meu chapa. Relaxa. A polícia não conseguiria chegar aqui tão rápido e
depois não vai voltar mais ninguém aqui pro edifício. O mais provável é que a polícia nem
sequer seja envolvida nisso. Os tiras nem desconfiam do que está acontecendo. Fora que
já está todo mundo dormindo, eu mesmo reparei.”
“Relaxa.” Abreu deu um curto e debochado riso. “É fácil para você falar.”
“Engano o seu. A minha parte é a pior.” E era sincero em suas palavras. “Só mais
quinze minutos”, Romero insistiu.
Lá fora, a rua estava vazia e silenciosa e qualquer mínimo ruído era possível de ser
ouvido. Nem sinal da aproximação de qualquer carro.
Abreu deu-se por convencido com um dar de ombros displicente.
“Está bem. Eu também não tenho outra opção, não é mesmo?” E deu uma risada
amarga. “Mas ele não pode demorar muito. Entendido?”
“Entendido.”
Ele realmente não demorou muito. Na verdade, chegou em treze minutos, dois a
menos do que prometera. Pela porta transparente de vidro da recepção, Romero viu
Alberto estacionar sua Toyota Hilux no outro lado da rua, sair apressadamente do carro,
cruzar a rua sem olhar para os dois lados e entrar no prédio pela recepção com a
facilidade de um leopardo em caça. Não demorou muito, começou a se aproximar a passos
largos da mesa de trabalho de Romero.
Assim que o viu, Abreu se levantou da cadeira em que se acomodara seis minutos
antes — uma das três cadeiras localizadas bem próxima das escadas, um pouco depois do
elevador — e sorriu em visível alívio.
“Finalmente”, disse. “Achei que você não viria mais.”
“Sem exageros”, replicou o recém-chegado de forma nada cordial, direcionando o
olhar para Romero. Não disse nada. Após inspecioná-lo com cuidado, voltou-se para
Abreu: “Vamos embora.”
Abreu não precisou pensar nem três segundos a respeito. Na verdade, precisou de
apenas dois segundos para se pôr em movimento, feliz por finalmente concluir que daria
tudo certo. Já caminhava em direção a saída quando percebeu que Alberto não o
acompanhava.
“O que você está esperando?”
“Eu tenho que conversar com ele aqui”, Alberto respondeu, apontando com o
indicador para Romero. “Você já pode ir. A porta direita traseira do carro está aberta. É
só entrar e esperar um momento.”
O alívio de Abreu se esvaiu um pouco.
“Esperar mais?”
Alberto também foi impaciente:
“Não precisa discordar.” Bufou. “Apenas entra na porra do carro e espera.”
Romero notou o rápido porém penetrante olhar de Abreu. Era o olhar de um homem
que não gostava de ser contrariado. Por um momento, achou que ele tomaria alguma
atitude insensata da qual se arrependeria depois, mas estava enganado. Abreu apenas se
limitou a baixar a cabeça e voltou a virar-se para a saída.
Alberto só direcionou sua atenção a Romero quando notou que Abreu já havia
entrado no carro. Sua mensagem foi sucinta e clara:
“Você vai ter que fazer o trabalho.”
Merda, merda, merda.
“Compreendo.”

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