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Enzo G.

Kohlert

O silêncio do inimigo
Ao meu irmão, Michael, por toda a ajuda.
É mais claro que o sol, que Deus criou a mulher para domar o homem.
Voltaire

Parte I
Condição desumana.
1. Precariedade

Daquela vez, tudo ocorreu de uma forma diferente.


Não houve o lento bater de cílios, o bocejo demorado e a tentativa típica de
acostumar-se com a volta da consciência. Nem mesmo ficou frustrada por não
estar mais dormindo, o que, para ela, era bem anormal. A ideia de despreguiçar-
se até passou por sua mente, mas desistiu logo: enquanto estivesse naquela
condição extenuada, seria muito trabalhoso. Tão trabalhoso quanto coçar os
olhos, algo que, por sua vez, sequer foi cogitado em meio aos seus confusos
pensamentos de quem acabou de acordar.
Faltava-lhe o impulso necessário para fazer qualquer uma das coisas que
geralmente fazia imediatamente após ter acordado. O resultado era inevitável:
apenas lhe restava permanecer daquele mesmíssimo jeito. Ou seja, apenas podia
continuar imóvel, como se fosse um objeto inanimado. Se houvesse uma
oportunidade de retrospecto, com certeza absoluta julgaria aquilo como uma
ação tanto quanto mecânica. Estranhamente mecânica. O emergir súbito do
vazio escuro do sono e a abrupta recolocação da consciência em si. Apenas
essas duas coisas, sem qualquer pré-sinalização da sua volta à consciência e
muito menos algum acompanhamento ao ato.
De qualquer maneira, ainda encontrava-se sonolenta e esgotada. Também
não percebia nada se expondo como o porquê de ter acordado. Sentia-se
estranha e não era apenas pelo jeito distinto do seu acordar. Havia algo há mais,
algo desconhecido. Tal perspectiva era assustadora e a fez piscar os olhos
inúmeras vezes. Não tinha em mente o motivo que a induzia a crer que isso lhe
teria alguma valia, mas o fez mesmo assim. Era como se pudesse ajudá-la de
com alguma coisa que ainda precisava ser identificada.
Uma concepção de vida curta. Somente momentânea. Foi embora quando
ela notou ser infundada e isso levou a um suspiro profundo. Ao terminar a ação,
percebeu que a garganta estava seca, muito seca, assim como a boca. Esta, por
sinal, estava horrivelmente amarga, como se a saliva tivesse se transmutado em
uma gosma de péssimo gosto.
Teria sido bom se fosse só isso. Mas, evidentemente, não era: também
sentiu que saíra da imersão no calor que a envolvera enquanto dormia. O
perdera quase completamente, como quem perde areia por entre os dedos. Não
saberia confirmar isso dali alguns minutos, mas demorou pouquíssimo tempo e
o frio já a incomodava enormemente. Já havia tomado-a. Ela toda.
Normalmente, quando se tratando dela, ele chegava de forma lenta e suave, mas
logo se fazia presente em toda a sua voraz capacidade. Passou longe de ser
assim dessa vez: no instante em que acometeu nela, já se mostrava feroz por
inteiro.
O frio não era dos mais agradáveis. Na verdade, era completa e
horrivelmente desagradável. Mas, infelizmente, não podia usar-se de nada para
retrucá-lo. Faltavam-lhe opções e, então, somente pôde deixá-lo percorrer a sua
pele, passando lentamente pelos desníveis de seu corpo, cruzando todos os
lugares onde podia cruzar. Fazia dela a fonte de sua diversão. Alguns segundos
bastaram para que começassem a surtir efeitos nas regiões mais sensíveis. Os
pelos dos braços subiram num arrepio incontrolável, os das pernas também e o
nariz pareceu congelado como um picolé.
Era terrível. Principalmente para alguém com gostos tão pouco mutáveis
como os dela. Odiava temperaturas amenas e isso era visivelmente inalterável.
Talvez esse ódio se desse por sempre ter morado no Rio de Janeiro, uma cidade
das mais calorosas. Talvez fosse por isso que o frio a incomodava tanto. E
como incomodava. Incomodava muito. Muito mesmo.
Suspirou de novo e, no mesmo momento, algo lhe passou pela mente.
Sempre era assim, ela se fez lembrar, sem qualquer traço de sorriso em seu
rosto. Mas lembrou. Suas ideias sempre apareciam por formas não planejadas.
Com a aquela situação não era diferente. O pensamento que teve era quase uma
tentativa de distração contra o tempo hibernal. Julgou-o como acertado: apesar
de incômoda, não era a temperatura baixa que tinha tomado a sua atenção. Não.
Não era. Definitivamente. Obviamente carregava uma dose de incômodo, mas
não era a dona de sua atenção. O recebedor desse título foi outra coisa, não o
frio, mas sim o fato de perceber como estava ofegante e fraca, precisando
perdidamente de mais oxigênio do que tinha em seu organismo. Agora que
reparara, percebia que ofegava como uma corredora após terminar uma
maratona.
Ela tentou respirar pela boca, mas, devido à sequidão da garganta, fazê-lo
doía. E também não ajudaria em muita coisa. De tal forma, voltou a respirar
através do caminho normal, pelo nariz. Respirou o mais fundo que pôde,
exigindo o máximo de sua capacidade respiratória. Buscou o ar pelo menos três
vezes em golfadas antes de soltá-lo e, quando finalmente deixou que ele fosse
embora, observou que precisava de muito mais se não quisesse ofegar de novo.
Receosa, encheu os pulmões mais uma vez, com calma, aproveitando todo o ar
que conseguira. Depois, liberou o resto do processo lentamente, sentindo-o
passar caloroso pelas narinas.
Fez isso repetidas vezes. Puxando o ar e soltando lentamente. Puxando e
soltando bem lentamente. Puxando e soltando, puxando e soltando.
Acabou sentindo-se menos ofegante a cada uma das repetições. Mais
algumas vezes e sentiu que praticamente não ofegava mais. Continuou assim
por mais alguns segundos, apenas para garantir que não haveria nenhuma mais
carência de ar. Quando, por fim, parou com a respiração exagerada, viu que
suava em bicas. Aflorou-se a percepção de que era por isso que a roupa aderira
ao seu corpo tal qual uma segunda camada de pele. Aproximou o nariz da axila
esquerda e percebeu que fedia a suor. O cheiro era bem forte e característico.
Ela quis que ele sumisse, mas, utilizando-se de uma obviedade frugal, ele não
obedeceu.
Completamente desorientada e com as pálpebras pesadas como se feitas de
chumbo, limitou-se a continuar piscando em meio à escuridão total. Esperava
que o sentido da visão lhe indicasse o que havia para ser indicado e levasse-a,
dessa forma, de volta a total consciência acerca de tudo o que a circundava.
Mas o problema é que ela não conseguia ver nada. Nem mesmo um palmo à
frente dos próprios olhos. Pensando bem, era quase como se ainda estivesse
envolta no breu do sono, quando as pálpebras fechadas resumiam o seu mudo
ao monótono crepúsculo da falta de discernimento e reflexões. E ela não queria
continuar no escuro.
Tinha que sair o mais depressa dele.
Para que conseguisse esse objetivo, compreendeu com facilidade que seria
melhor procurar por algum feixe de luz no ambiente. Assim o fez. Abriu bem os
olhos, esbugalhando-os e fazendo com que explorassem o mundo ao seu redor.
Fez o seu melhor, esforçando-se em sua procura: dava a canto fitado o máximo
de sua atenção. Mas não adiantou em nada, afinal não foi capaz de encontrar
qualquer claridade. Pensou que devia ter servido apenas para que parecesse uma
personagem cômica de caricatura de jornal.
Apesar disso, não se abalou. Concentrou-se um pouco mais, determinada
que haveria uma faísca de luz — umazinha que fosse — para ajudá-la a sair
daquele estado aborrecível de menininha assustada pelo clima soturno do
quarto. Esbugalhou os olhos ainda mais do que antes e atentou-se para tudo. E,
para seu alívio, pensou ter achado um lugarzinho iluminado no cômodo. Lá
está, pensou ao ver uma boneca de pano em cima de uma mesinha de cabeceira
ao lado da cama. Logo ali, do seu lado, praticamente ao alcance de suas mãos.
Era uma daquelas bonecas de pano comuns: costurada com tecido
vagabundo, olhos feitos com dois botões de alguma camisa velha, cabelo
formado pelos pêlos de alguma vassoura sem uso. Muito simples,
aparentemente sem nada de especial. Os únicos enfeites eram a roupinha
vermelha e as fitas lilás que representavam os elásticos de cabelo.
“Isso”, disse para si mesma. “Isso”, repetiu. “Luz...”
Sentiu-se grata pela luz e pela visão e achou que devia ficar feliz. Ela tentou
sorrir. O sorriso infelizmente não veio. Tentou de novo. Nada. De novo. Nada.
De novo, de novo e de novo. Não conseguiu em nenhuma das ocasiões. Merda.
Ela tinha achado luz, algo para guiá-la em meio à escuridão, mas por que tanta
indiferença? Era para ser algo bom. Extremamente bom. Ou não era?
Havia alguma coisa impedindo que fosse. No fundo, ela tinha suas suspeitas
acerca da visão. Desconfiava do fato de uma boneca estar ao lado de sua cama.
Pôs-se a raciocinar e percebeu de imediato o motivo da desconfiança. Quis
xingar, mas desistiu porque seria desnecessário fazê-lo em voz alta. Era
simples... As visões da mesinha e da boneca em cima dela eram apenas visões
falsas. Eram feitas da coisa mais irreal possível, duas visões imprecisas,
pequenas alucinações formadas por sua mente aturdida. Ela o descobriu porque
já havia visto aquele mesmo lugar com as luzes acesas. E bem lembrava que
não havia nenhuma mesinha de cabeceira ao lado da cama. E também não havia
nenhuma boneca.
Não podia ser outra coisa senão uma alucinação e, no mesmo instante em
que concluiu isso, ela temeu que ter coisas desse tipo rondando as gavetas de
seu cérebro não fosse nada bom. Por deus. Se fosse levar em consideração
todos aqueles acontecimentos que tiveram lugar em sua vida, uma alucinação
não podia ser encarada somente como algo vindo da sua imaginação fértil.
A ideia surgiu de súbito em sua mente e deixou-a apavorada. Não queria
que fosse verdade, mas... Será que estava começando a ficar louca? Será que o
que ele lhe causara já era capaz de deixá-la num estado emocional tão... frágil?
Era bem provável, afinal ela se sentia péssima em tudo, tanto na sua parte física
quanto na mental, mas, de qualquer forma, ela esperava que pudesse aguentar
mais. Porra. Poucos dias atrás achara que poderia se manter com a cabeça no
lugar e totalmente sã por um bom tempo, mas agora não podia dizer se essa
certeza permanecia em si.
Sentiu os olhos começando a ficar marejados pelas lágrimas e tratou de
controlá-los. Chorar estava fora de cogitação. Eram coisas assim, como o
simples e aparentemente não nocivo ato de sucumbir a uma emoção tão
primordial do ser humano como o medo, que poderiam levá-la à loucura. E ela
não queria ir para o mundo da loucura. Não queria e não podia. Tinha que estar
sempre com o máximo da sua capacidade de pensamento e o ápice de sua
sagacidade para conseguir suportar o que vinha suportando e aderir a loucura
não seria conveniente. E era por isso que chorar estava fora de cogitação. Se
fosse sucumbir ao sofrimento, acabaria vendo-se sem forças para lutar e, assim,
baixaria a guarda para que outros pensamentos surgissem além do de querer
escapar com vida. E, com eles, viria mais medo, mais temor, mais incertezas e
várias possibilidades angustiantes. Ela soube claramente que não podia
sucumbir pelas emoções que investiam contra ela.
E, se não podia fazê-lo perante as emoções, tampouco deveria pelas
sensações espalhadas por seu corpo. Devia lembrar que, em muitos aspectos,
eram até piores do que emoções como o próprio medo.
Envolta no breu que ainda persistia no quartinho úmido e pequeno, teve um
raciocínio que a levou a uma certeza cáustica: enquanto o medo é a incerteza e
o suspense pelo que virá, as sensações, como a fraqueza e a dor — a mais
profunda dor —, já estão impostas e já são reais. São coisas palpáveis e era por
isso que não podia se deixar levar por elas. Mas, apesar de bem verdadeiro, ela
tinha a consciência de que todo esse pensamento não importava muito.
Somente devia não sucumbir a nada, nem a emoções e nem a sensações.
Seria difícil, mas poderia ser mais simples se pudesse ter a ajuda de uma
iluminação para espantar todo aquele ar pernicioso que a envolvia.
Tendo isso em mente, voltou à sua busca por luz.
E, mais uma vez, não conseguiu distinguir nada. Talvez fosse mais fácil
acender uma lâmpada. Claro, por que não fazer isso? E também: por que ainda
não o fizera? Só tinha que levantar e achar o interruptor. Ela tentou se levantar
— um tímido sorriso aflorando em seus lábios —, mas não conseguiu. Tentou
de novo, mas o corpo foi refreado outra vez. E de novo. E de novo. E mais uma
vez. Mas que porra! Ela não podia se levantar, o que significava que não podia
acender a lâmpada.
A ideia de apertar o interruptor que ela sabia estar ao lado da porta do
quarto foi embora com a mesma velocidade com a qual foi concebida.
Desapareceu num instante. Não poderia acender nada enquanto permanecesse
daquele jeito, feito um animal mal criado, um cachorro que se voltara contra o
seu dono e mordera a sua perna.
Ela se lembrou da situação em que estava e do porquê de ter que procurar a
luz virando o pescoço para um lado e para outro, levando os olhos a acharem
novos lugares escuros para perscrutarem.
E foi seguindo essa redescoberta que ela se lembrou de tudo o mais: da sua
condição precária e de outras coisas que a afligiam, entre os quais o fato de que
estava com os braços virados por detrás da cama e com as mãos amarradas à
cabeceira por aquelas cordas grossas.
2.
O Monstro

Demorou alguns segundos e logo se lembrou que os pulsos também


estavam machucados. E isso mesmo não podendo olhar para eles. Era uma dor
forte acompanhada de uma ardência insuportável em volta das mãos. Ardia
muito.
E, ainda assim, era algo da menor importância perto de todo o resto que
incidia sobre ela. Um cheiro encardido pairava no ar e era inconfundível: urina.
Devia ter ficado desacordada por um bom tempo e feito suas necessidades ali
mesmo, no colchão. Fora isso, não se via com força alguma e percebia uma
série de escoriações e ferimentos por sua pele. Atraiam, devido ao cheiro
pungente de sangue e pus, um sem número de mosquitos e moscas irritantes.
Era algo bem preocupante, afinal a possibilidade de uma infecção só fazia
aumentava.
Deu-lhe vontade de chorar de novo, mas decidiu que não choraria. Deu-lhe
vontade de gritar, mas decidiu que não gritaria.
Ela era uma mulher forte, muito forte, e não demonstraria fraqueza perante
algumas feridas no pulso. Era verdade que não era apenas no pulso, mas, de
qualquer forma, não queria abaixar-se ao ponto de uma vergonhosa humilhação.
Não daria um grito ou choraria. Não xingaria e não imploraria ao monstro que
fizera aquilo com ela para soltá-la. Ela era uma vencedora e vencedoras não
desmoronam por uma provação. E aquilo não passava disso. Uma provação.
Uma provação da qual sairia vitoriosa.
Ela desejou acreditar nisso com todas as suas forças, mas, infelizmente,
nada poderia ser tão simples. Logo observou tudo o que sentia se
potencializando por alguma coisa que surgiu do nada e de forma tanto quanto
inexplicável e, então, ela pôde sentir o medo, a angústia, o sofrimento e a dor se
multiplicando.
Tudo junto, de uma única e horripilante vez.
A sensação foi sucinta, mas suficiente. Suficiente para fazê-la estremecer.
Ainda acreditava ser uma vencedora, mas foi obrigada a admitir: até mesmo
os maiores vencedores perdem às vezes.
Ela também podia perder.
Não havia dúvidas.

Como seria bom se somente a força de vontade conseguisse vencer algo.


Foi com esse pensamento que estava em mente quase dez minutos depois do
momento em que sucumbira ao choro. E ela chorava até agora. Não conseguia
parar. Mesmo com as lágrimas descendo feito ácido por sua bochecha,
escorrendo quentes e desconfortáveis, não tinha forças para parar. Nenhuma
força de vontade no mundo seria capaz de fazê-la ficar com as emoções
controladas. A sua força de vontade não sairia vitoriosa naquela situação e ela
percebeu isso no instante em que uma das portas do pequeno e úmido quartinho
foi aberta.
Merda, merda, merda. O seu choro devia tê-lo acordado. E ele perdia
totalmente o controle quando o acordavam...

Que ironia. A luz que minutos antes desejara de todo o coração veio com o
abrir da porta — que dava para o banheiro aonde o monstro disse que passaria a
noite —, mas não da maneira que queria. Veio de lá e logo materializou em sua
claridade aquela silueta. Aquela maldita silueta. A silueta dele. Do monstro.
Não pôde controlar a nova onda de choro. Ela se acentuou enormemente e
pareceu que os seus olhos tinham se tornado duas bombas de lágrima. A visão
embaçou-se e ela perdeu totalmente o controle. E assim ficou, tal qual uma
criancinha indefesa, refém de um homem maldito, chorando e chorando, sem
força alguma perante a situação.
A voz dele soou retumbante:
“Ah, qual é? De novo isso... Mas que merda!”, ela ouviu o som vindo lá de
onde se encontrava o contorno daquele corpo maldito.
Conseguiu vê-lo saindo da soleira da porta e chutando qualquer coisa
próxima, causando um barulho que a deixou de imediato desesperada. Tentou
se contorcer num ato impensado, como se isso pudesse fazer com que se
soltasse das cordas. Só a machucou ainda mais. Por um momento se esquecera
que as pernas também estavam amarradas, o que dificultaria ainda mais
qualquer tentativa de se libertar.
Voltou a ter em mente que estavam amarradas pelo mesmo tipo de corda
que o monstro usara para amarrar as suas mãos, só que ele fizera os seus nós na
madeira da outra extremidade da cama, obviamente. E, falando no imbecil...
“Que porra, que saco!”, disse ele e chutou novamente aquela mesma coisa
que havia golpeado antes. O novo barulho causado soou como um mau
presságio, uma forma de demonstrar com clareza o quanto ele estava nervoso
por ela o ter acordado. Tinha medo quando o via assim. “Será possível que você
vai passar esses dias inteiros choramingando igual uma puta?”, continuou ele e
foi em sua direção, enfurecido. Chegou à cama. “Os seus pais não te ensinaram
a ser adulta? Por Deus! Imagino a criação que devem ter te dado. Eu achei que
você era diferente... É a quarta noite seguida que eu sou acordado pelo seu
choro. Eu tinha achado que nós poderíamos ter um bom convívio, que
poderíamos desfrutar um da companhia do outro, mas... mas... eu não sabia que
você era uma criança que ainda precisa aprender a ser adulta.”
Isso apenas fez com que o medo se acentuasse ainda mais. Lágrimas
brotaram de seus olhos mais uma vez.
“Não... não...”, disse. “Por favor, me deixa em paz.”
Sabia que seria em vão.
O monstro andou de um lado para o outro no quartinho, aquela expressão
de fúria em cada canto de seu rosto.
Ele voltou a falar:
“Me deixa em paz, me deixa paz, me deixa em paz”, replicou, fazendo uma
voz estereotipada de mulher. “Que idiotice! Para de falar isso. Seja mais adulta,
mais madura, pare de implorar como se fosse uma criança. Você não é uma
criança, você precisa me mostrar que eu posso confiar na sua maturidade.
Evolua. Será que você consegue fazer isso? Ser mais adulta? Heim? Me
responde!”
Ela gaguejou:
“Eu sou madura”, tentou argumentar. “Eu só estava procurando...”
E ele a interrompeu:
“Sem gaguejar! Adultos têm que ser seguros de sua razão. A partir do
momento que as sua formulações de ideia são tão entrecortadas, fica difícil te
encarar de forma séria. Não gagueje. Que foi? Você precisa gaguejar quando te
perguntam se você é adulta?”
“Não é isso... Eu... eu... só queria luz... e... e... não... consegui...”
Ele revirou os olhos.
“Cala a boca!”, o monstro bradou. “Cala a boca! Sem desculpas
esfarrapadas. Adultos se calam quando fazem coisas erradas e escutam os
outros. Você consegue compreender o quanto esse choro é irritante? Alias, não
só o choro, mas tudo o que você fez desde que nós nos unimos. Isso faz
acumular irritação em mim, entende? Eu já estou cansada de você. Seja mais
adulta quando falar comigo. Aprenda a ser adulta!”
Ele a olhou fundo nos olhos e ela teve certeza de que nunca mais esqueceria
aquele olhar. Era penetrante, furioso e, acima de tudo, frio. Frio como gelo.
Assustadoramente despido de emoções. O olhar de alguém que incapaz de ver
outra pessoa como sendo seu semelhante.
A raiva fervilhou nela.
“Filho da puta!”, disse num impulso.
Arrependeu-se disso no mesmo instante. Se o monstro ainda possuía
qualquer controle sobre si, perdeu-o quando ela o xingou.
“Filho da puta?”, perguntou ele, como se horrorizado por tal afronta. “Filho
da puta?” Cerrou os punhos. “Adultos não falam assim uns com os outros. Você
não compreende? Adulta! É isso que eu quero que você seja. Adulta, adulta,
adulta! Crianças me dão raiva. E esse choro infantil foi... a última gota. Será
que eu vou ter que te ensinar o que é ter maturidade?”
Sentiu um nó na garganta,
Oh, não. Oh, não. Por favor, não.
Ela sabia muito bem o que essa última frase significava. Já detectara um
padrão nele. Sempre que estava com raiva e a perguntava se “teria que lhe
ensinar algo” alguma coisa ruim acontecia. Sabia que os próximos segundos —
ou minutos — seriam um castigo. Sabia que a sua situação pioraria. Sabia que a
piora seria exponencial. O monstro não fazia qualquer esforço para controlar-se
nos momentos de raiva. Mas, mesmo tendo tudo isso em mente, nada poderia
ter a deixado preparada para o que ocorreu a seguir.
Ele contornou a cama velozmente. Violento e determinado.
Puxou-a pelos cabelos com força, segurando-os na palma da mão.
Arremessou a sua cabeça brutalmente contra a quina da cabeceira. Um rasgo
enorme surgiu no meio de sua testa e o sangue escorreu, escuro.
Ele não parou por aí. Pegou-a pelos cabelos de novo. Jogou-a contra aquela
mesma quina. Ela pode sentir o sangue jorrando do recém-formado ferimento.
Esvoaçava para todos os lados. Ele repetiu o movimento mais uma, duas, três
vezes. O barulho dos baques era seco, quase surdo, mas parecia ricochetear em
seus ouvidos. E, por fim, foi jogada contra a quina de novo. Algumas gotas de
sangue escorreram lentamente pela testa e chegaram às bochechas, contornando
as maçãs proeminentes de seu rosto; já as outras passaram pelo bloqueio dos
cílios e entraram nos seus olhos, unindo-se as lágrimas e tingindo tudo com o
vermelho. A visão embaçou-se e ela não chegou sentir a pancada em sua boca e
os dois fortes tapas dados em seu rosto. Não pôde ver nenhum dos golpes da
série aplicada sobre o seu corpo inteiro: seios, barriga, pernas, têmporas. O
monstro cerrava os punhos e espancava-lhe descontroladamente, como um
animal selvagem e violento.
Quando ele terminou, suas próprias roupas estavam ensopadas do liquido
vital de Bárbara Meireles, que, por sua vez, já não tinha mais consciência. E os
lençóis brancos encardidos de urina — do mesmo modo que os travesseiros
brancos e a coberta também branca — estavam empapados de sangue.
Parte II
Mudança de Vida.

Muitos anos depois.


3.
Mensagem.

“Vamos, me diga logo. É grave?”


Era apenas uma pergunta retórica: ele já tinha quase certeza da resposta.
Era uma impossibilidade ser algo bom, o que relegava a notícia que receberia
logo mais a condição odiosa das notícias que tratam de alguma coisa grave. E,
fora esse fator, ficava ainda mais descontente com a realidade que o dizia uma
simples coisa: ele nada podia fazer quanto à situação — não era algo que
apetecesse as suas habilidades. Merda. Tanta luta e esforço por uma belíssima
causa como a psicologia e, naquele instante, ele desejava não ter nenhum
conhecimento sobre os mecanismos humanos de ação. Por que tinham que ser
tão precisos e previsíveis? Suspirou longamente. Fitou o médico com seus olhos
fundos e observadores e se fez uma pergunta: de que lhe adiantava tanto
conhecimento e estudo se, num momento como aquele, essas duas coisas
apenas serviam para adiantar a certeza acerca de algo perceptivelmente terrível?
Perceptivelmente terrível. Ele sentiu a sonoridade das palavras.
Perceptivelmente. Terrível. Só de fazê-lo sentia-se tonto.
As interpretações que fizera dos movimentos do médico não mentiam.
Eram típicos de um médico que está tenso. Controlados e aparentemente
suaves, mas apenas tentativas frustradas de trazer calma ao paciente com a sua
quietude resoluta. Mas com Humberto não era assim. Fazia com que a sua
curiosidade potencializasse naquela espiral de observações das pequenas
minúcias. E era bem fácil captar os sinais de Henrique. Mesmo tendo se tornado
um profissional de renome, saído do subúrbio do bairro Marechal Hermes,
ganhado muito dinheiro e construído uma clínica particular em Copacabana,
ainda podia-se percebê-lo sem grandes dificuldades. Montara seu negócio na
Rua Siqueira Campos, mas ainda parecia viver na Rua Canaã, lá no seu lugar de
origem.
Também sabia que eram precisas as interpretações que obtivera através da
análise cuidadosa dos seus olhares contidos e daquele tique irritante — ficava
mordiscando o lábio inferior e, logo depois, passava a língua branca e esponjosa
sobre o superior, lambendo-o de uma maneira quase obscena. Ele já conhecia
Henrique há um bom tempo e a sua qualidade observadora permitia interpretá-
lo com grande facilidade. As suas interpretações só podiam ser precisas, o que o
induzia a crer que o neurologista à sua frente não possuía boas notícias para lhe
dar.
Humberto ajeitou-se mais uma vez na cadeira confortável e almofadada e
observou, no outro lado da grande mesa de madeira de lei — que, por sinal,
combinava bastante com o resto do escritório, acompanhando o seu visual mais
claro e suave, com quadros mais coloridos e pouco agressivos —, o Dr.
Henrique continuar a leitura dos exames que o trouxera. Observou-os
atentamente e, depois, colocou-os sobre a mesa. E ali ficaram, ao lado de um
sem número de outros papeis. Henrique digitou qualquer coisa no seu
computador.
Ele percebeu que estava começando a ficar sem paciência. Perguntara ao
médico se aquilo era grave e ele não o respondera. E pior: sequer o olhara. Por
que não respondia logo a sua dúvida?
Apoiou o queixo sobre a mão esquerda, encarou Henrique e voltou a
perguntar:
“É grave?”
Ele terminou de digitar o que quer que estivesse digitando e deu-lhe um
olhar que tentava não transmitir muita coisa. Disse:
“Bem, eu ainda estou estudando melhor esses exames, então...”
“Estudando os exames?”, Humberto o interrompeu. “Você já ficou olhando
pra esses exames um tempão e ainda não me disse nada. Eu sei que você já
estudou o que tinha que ser estudado. Me diz logo o que tem aí.”
Dessa vez, foi Henrique quem o fitou com olhos observadores.
“Humberto, você sabe que não é tão simples assim. Como seu amigo eu
adoraria explanar logo uma explicação, mas, como médico, eu não posso ler um
exame de forma porca e dar uma avaliação consequentemente porca.”
Humberto o interrompeu de novo:
“Pelo amor de Deus, Henrique. Eu sou mais inteligente do que isso e eu sei
que você disso. Assim como eu sei que você está enrolando. Então, nos faço um
favor e acabe logo com isso. É grave?”
O médico o ignorou por um momento. Alias, foi por mais do que um
momento. Pegou os exames mais uma vez e leu-os de novo, como se estivesse
se certificando do seu conteúdo. Humberto achou se tratar de mais um atraso
dele para dizer o que havia de ser dito. Henrique deu um longo bufo e
respondeu:
“Tudo bem, eu entendi. Se é assim que você quer, quem sou eu para
discordar, não é mesmo?”, fez uma pausa. “Apesar de você não ser médico,
creio eu que você já deva ter noção do que é um aneurisma cerebral, não é
mesmo?”
Finalmente Henrique deixara os rodeios de lado. Apreciou isso. Humberto
balançou a cabeça em afirmação e disse:
“Sim, eu já li alguns artigos sobre. Pelo que eu sei, é uma dilatação que se
forma na parede enfraquecida de uma artéria do cérebro, não é isso?”
Viu o médico aquiescendo com um gesto de cabeça.
“Exatamente. O que ocorre é que a pressão normal do sangue dentro da
artéria força uma região com menor resistência. O resultado é algo como um
inchaço que pode ir crescendo. Normalmente, isso se dá de uma forma lenta e
progressiva. E, com isso, temos alguns... riscos. Esse afrouxamento do tecido
vascular pode acarretar numa ruptura da artéria e consequente hemorragia.
Também pode levar a uma compressão de outras áreas do cérebro.”
Humberto suspirou de novo e voltou a ficar irritado com Henrique. Ele
estava usando aqueles termos médicos para distrair-lhe do que havia perguntado
antes.
Mas isso não ocorreria.
Humberto não ia deixar que continuasse usando-se desses artifícios.
“Tudo bem, Henrique”, ele começou. “Vamos deixar, por um momento, a
explicação do problema de lado, até porque eu sei que vai ser demorada. E não
me entenda mal: isso não é uma reclamação. Eu gosto que os médicos tenham
conhecimento acerca daquilo que estão tratando e transmitam isso ao paciente.
Só vamos deixar a explicação para depois. Agora, me responda sobre o grau de
gravidade disso, que é o que eu estou querendo saber. Julgo como algo
totalmente compreensível. Se for grave, eu vou ter que reorganizar todos os
meus projetos, mudar tudo o que eu tinha planejado fazer, percebe? Então, vá
direito ao xis da questão. Esse aneurisma é grave?”
Henrique suspirou. Fez que ia falar algo, mas hesitou. Tomou coragem
novamente e disse:
“Infelizmente, sim.” Ele coçou o queixo largo e proeminente. “Parece ser
inoperável.”

Lavínia olhou para o exterior pela janela da cozinha. Dava para o jardim
bem cuidado de sua casa e, para lá dele, podia ver as casas do outro lado da rua.
Apenas uma mostra do gigantesco mundo que estendia indefinidamente, até
lugares inalcançáveis por sua visão. Àquela hora da noite, a Rua Inglês de
Souza, no bairro do Jardim Botânico, estava completamente vazia.
Compreensível, afinal já era bem tarde — ela calculou que devia ser mais ou
menos 23h00. O significado disso se mostrou com bastante obviedade: já
passara da hora de ir dormir. Nos tempos da juventude, ela raramente ia dormir
antes da madrugada começar e tinha uma grande disposição para tudo. Só que
muita coisa mudara desde aquela época — isso nada mais era uma maneira de
expressão, uma vez que não era tão velha assim, fez questão de lembrar a si
mesmo — e, agora, era mais uma das mulheres que compartilhavam o adjetivo
de trabalhadora. Não estava reclamando do seu trabalho de forma alguma.
Apenas raciocinava sobre os vícios cansativos da profissão.
Lavínia terminou a sua xícara de chá, sorvendo todo o líquido do recipiente.
Até a última gota. Ela adorava a doçura e a suavidade do chá de erva-cidreira e
a matéria-prima para prepará-lo, a própria erva, tinha acabado no seu estoque.
Se quisesse mais, teria que ir à casa da mãe para colher o que restava. E, como a
sua rotina ultimamente estava muito corrida, não tinha tempo para fazê-lo. A
rotina casa-trabalho a deixava totalmente moída.
Após concluir que todo o liquido da xícara tinha sido aproveitado, colocou-
a na pia da cozinha, tendo em mente que lavaria todas as louças que estavam lá
amanhã de manhã. Os pratos, copos, talheres e panelas avolumavam-se numa
única, gigantesca e assustadora pilha. Definitivamente não estava com paciência
e ânimo para lavá-las agora e, além do mais, aquela não era hora de estar
lavando vasilhas. As costas doíam-lhe e a melhor opção para ela no momento
era mesmo dormir. Isso não era ser preguiçosa: apenas delegava tarefas para
outra hora.
Quando estava saindo da cozinha, lembrou de apagar a luz.
Encaminhou-se até o interruptor e o apertou. No mesmo segundo, tudo ficou
escuro como a noite. Uma péssima ideia, pensando sob o ponto de vista da luz
da cozinha ser a única acesa em todo o primeiro andar. Ela não gostava muito
de escuro — ele a fazia lembrar o clima dos filmes de terror —, mas dane-se.
Era apenas um medo infantil, bobo e desprovido de qualquer embasamento
retórico. A luz e a escuridão possuíam o mesmo nível de perigo, a única coisa
que mudava é que uma era bem encarada e a outra, não.
Com passos suaves e lentos, foi para o corredor e, de lá, pegou a escada
para o segundo andar. Estava descalça e o chão aos seus pés encontrava-se
muito frio. Andou nas pontas dos dedos com o intuito de ter a menos região de
contato possível com o chão. Logo que chegou ao segundo patamar, procurou o
banheiro. A porta de madeira estava fechada. Lavínia pegou a maçaneta —
igualmente fria, o que era estranho, uma vez que o ar do ambiente era quente —
e girou-a. A porta se abriu com um ranger silencioso e discreto, revelando a
escuridão total que persistia lá. Acendeu a luz e entrou, fechando a porta no
meio do caminho. Tratou de ir o mais rápido que pôde, afinal ansiava
desesperadamente pelo sono. E realmente foi veloz: fez o que devia fazer e saiu
rapidamente da completa penumbra que era o banheiro. Por que tanto medo de
escuro? Dirigiu-se ao quarto.
Júlio já estava na cama, quase que totalmente debaixo das cobertas — se
não fosse a cabeça e os braços para fora, não veria nada dele. As luzes estavam
apagadas e a única iluminação era a do abajur ao lado da cama. Lavínia, de pé
na região da soleira que era a divisória entre o quarto e o corredor, percebeu que
ele lia um livro. Era grosso, realmente grosso, o que acabou lhe chamando a
atenção: achava livros grossos charmosos, os volumes grandes e lindos. Prestou
atenção nele e viu o nome na capa: David Copperfield.
Pisou no chão ainda frio — Júlio sempre colocava o ar-condicionado em
quinze graus —, se aproximou da cama e perguntou:
“Que livro é esse?”
O noivo levantou os olhos para ela, com um olhar de estranheza.
“David Copperfield, ora.”
Lavínia deu um riso debochado e se deitou na cama, logo indo para debaixo
das cobertas também. Remexeu-se na procura de uma posição melhor e voltou a
falar:
“O nome eu já tinha visto na capa. Eu não estou perguntando do nome, eu
estou perguntando sobre o que é”, esclareceu.
Ele voltou a dar-lhe um olhar interrogativo, estilo “Como você é capaz de
não conhecer esse livro?”. Júlio era como muitos outros leitores assíduos:
quando gostava de um livro, achava que todo mundo deveria conhecê-lo. Ela
apostou que ele faria uma pergunta que comprovaria essa percepção. E acertou:
“Sério que você não conhece?”, ele perguntou.
Lavínia recostou a cabeça no travesseiro, os cabelos castanhos soltos
desarrumando-se e espraiando-se sobre as fronhas. Fez um gesto afirmativo.
“Sim”, disse. Pensou mais um pouco a respeito. “Ou talvez já tenha ouvido
falar, sei lá... Esse nome... David Copperfield. Eu acho que já ouvi um nome
assim em algum lugar.” Fez uma pausa, raciocinando sobre o título. “Por acaso
esse livro é do Dickens?”
O livro foi fechado pelas mãos fortes de Júlio e posto na mesinha de
cabeceira ao lado da cama, com cuidado. O noivo odiava amassados nos seus
livros
Ele concordou:
“Sim”, disse em tom afirmativo. “Pelo que eu ouvi falar, é uma das obras
preferidas dele. É um clássico da literatura, me admira muito você não ter lido.”
Era engraçado, pensou Lavínia. Júlio tomava conclusões como uma
facilidade incrível. Só porque ela tinha pouco mais de mil e quinhentos livros
em casa, ele achava que ela devia já ter lido toda a produção literária mundial.
O que, evidentemente, era errôneo pelo simples fato de isso ser impossível. Mil
e seiscentos e oitenta e três livros não fazem cócegas perto do montante que já
havia sido escrito.
“Não, eu nunca li nenhum David Copperfield. Alias, do Dickens, eu só li
Um conto de duas cidades.”
“Sério?”, Júlio perguntou, quase estarrecido. “Só um?”
“Sim, por quê?”
“Por nada. Só é meio estranho. Você lê muito, só por isso.”
Era óbvio que Júlio falaria isso. Mas ela não estava muito a fim de
discordar dele e, por isso, limitou-se a perguntar:
“Do que se trata?”
O noivo se aprumou todo para falar e tomou uma posição parecida com a
de um apresentador de TV. Era meio cômico. Respondeu:
“Digamos que, resumidamente, David Copperfield retrata a vida do próprio
David Copperfield, da infância até a fase adulta, passando pela adolescência.
Acompanhamos todos os conflitos dele.”
“Parece legal”, Lavínia disse. “Eu gosto de histórias em que o personagem
tem atenção e não é apenas um joguete nas mãos do autor.”
“Não parece legal”, Júlio disse. “É legal.”
Ele coçou a barba volumosa por um momento, parecendo pensativo.
Voltou-se para ela:
“E, a propósito, eu também gosto de histórias como essas.”
Lavínia sorriu um sorriso alegre e sincero. Júlio ficava tão charmoso lendo;
ela não sabia explicar o que era, mas sentia um gosto inesperado pela postura
elegante e intelectual dele. Era um homem com conteúdo e, nos dias de hoje,
homens assim eram raros. Era por esse e por outros motivos que tinha que
valorizá-lo. Não fora fácil encontrar alguém como ele e odiaria perdê-lo.
Não era uma boa hora para conceições sentimentais, mas foi obrigada a
dizer algo para si mesma. Eu o amo. E amava-o mesmo. Observando a sua pele
morena, o rosto quadrado e anguloso, os braços musculosos que a envolviam
nos momentos íntimos, os lábios grossos e o jeito inteligente, ela não conseguia
chegar a outra conclusão que não essa. Ela o adorava com todas as suas forças,
o adorava do fundo de seu coração. Que se dane o que achava o seu padrasto
quanto à idade dele. Júlio já era um quarentão — se encaminhava para a casa
dos cinquenta — e ela tinha recém-feitos trinta anos, mas não importava. O
amor não tem idade. Quando jovem, não fora muito chegada a sonhos
românticos, mas via tudo de uma forma diferente agora: havia se tornado uma
mulher bem mais sonhadora e permitia se imaginar em num conto de fadas.
Conto de fadas. Ela riu. Realmente chegara a esse ponto?
A sonolência voltou a se fazer presente nela. Deu um longo bocejo. Depois,
deu outro e disse:
“Meu amor, eu estou cansada como uma jumenta e moída como cana de
açúcar. Eu queria conversar mais com você, mas eu tenho que dormir agora. O
dia amanhã vai ser cheio. Mas não ligue pra mim. Você pode continuar a sua
leitura, tudo bem? Eu não quero te atrapalhar. Odiaria fazer isso. Você fica
muito sexy dessa forma.”
Lavínia virou para o lado e fechou os olhos, escutando o tímido riso do
noivo.
Gostar de um determinado livro pode levar a um efeito de natureza
colateral: a chamada noite em claro. Júlio olhou para o relógio sobre a mesinha
de cabeceira. Eram quase duas da manhã, o que significava que ela havia
perdido a noção do tempo enquanto lia, o que, por sua vez, demonstrava uma
grande perda no número de horas que ainda tinha para dormir. Mais uma vez,
ele passara do aceitável.
Mas não adiantava reclama pelo que não haveria mais volta. Com esse
pensamento rondado seu cérebro, percebeu-se com um sono incrível. Deu um
bocejo demorado e fechou o livro, colocando-o em seguida sobre a mesinha de
cabeceira, com muito cuidado. O livro ficou ali, ao lado do relógio e do abajur.
Júlio deixou as pálpebras se fecharem e recostou-se no travesseiro.
Já estava dormindo quando sentiu a vibração vinda debaixo do travesseiro.
Como o sono ainda era leve, acordou sem maiores dificuldades. Bocejou
novamente, esfregou os olhos e pôs-se a trabalhar. Tateou a cama em busca da
origem da vibração, mas não obteve sucesso. Lavínia trocou de posição na
cama, virando-se para ele. Em seguida, percebeu com aliviado que ela não tinha
acordado com a sua movimentação. Pensou que a vibração devia ter sido apenas
uma sensação aleatória formada em seu corpo e voltou a deitar-se.
Passaram alguns instantes de calmaria. Foram curtos, afinal terminaram
com a volta daquela mesma coisa. Somente nesse momento que Júlio se
lembrou de ter posto o celular debaixo do travesseiro. Passou a mão no local
onde sabia tê-lo colocado e o pegou.
Olhou para a tela, que indicava o recebimento de uma nova mensagem. O
número lhe era desconhecido, mas, de qualquer maneira, abriu-a.
E, no mesmo instante, as únicas seis palavras da mensagem surgiram:
Os pecadores pagarão por seus pecados.

4.
Preparativos.
Os pecadores pagarão por seus pecados.
As palavras tinham sido escritas em itálico, o que dava um efeito há mais
em seu lado visual. A inclinação proveniente desse uso realçava todas elas de
um jeito estranho, como se adicionasse uma nova carga de sentido a todas.
Relampejavam em algo não identificado. Parecia ser alguma espécie brilho
próprio, incitando-o a tentar compreendê-las em todas as suas possibilidades de
significado. Claro, isso se realmente tivessem algum. Existiam inúmeras
interpretações possíveis a serem feitas; poderia intuir que algum amigo mandara
o texto para ele como forma de brincadeira ou, quem sabe, houvesse um
lunático observando-o. Bobagem. Devia ser apenas alguém sem ter o que fazer
mandando idiotices para os outros e obtendo daí algumas risadas.
Hoje em dia, ocorrências assim apareciam aos montes e não o surpreendia
nem um pouco que essa onda dos chamados “trotes” tivesse chegado a ele. Por
sinal, o estranho era aquela ser a primeira mensagem desse naipe a ter lhe sido
enviada. A própria Lavínia tinha uma amiga enfermeira que presenciava
diariamente isso. Quase todos os dias, tinha que lidar com os imbecis que se
punham a ter esses odiosos momentos de delito. Porque aquilo não era outra
coisa senão um delito. Algo tão criminoso quanto um latrocínio, pela lógica
dela. Afinal, invariavelmente, ambos podiam levar à consequências fatais. Certa
vez, os confidenciara não ser muito raro ambulâncias saírem do hospital para
atender casos falsos. A garotada adorava fazer coisas desse tipo: sentiam
diversão em atrapalhar o trabalho dos sérios profissionais que eram os médicos,
profissionais que não podiam ser dar ao desfrute de perder tempo com alarmes
falsos. Os minutos que perdiam poderiam significar a morte de um paciente que
realmente precisava de ajuda.
“Babacas”, dissera a amiga de Lavínia. Via-se a irritação estampada em seu
rosto. “Babacas sem noção.”
E Júlio concordava plenamente. Babaca era o único adjetivo concebível
para caracterizar qualquer pessoa responsável por mandar trotes infelizes aos
outros em uma busca do susto de seu interlocutor. Faziam isso apenas para
darem gargalhadas. Olhou indignado para a mensagem e desligou o celular.
Raciocinando sobre como eram perigosos essas falsas brincadeiras, vira-se
inconformado, o que o fazia não querer receber outro gracejo.
Colocou o celular novamente debaixo do travesseiro, voltou a deitar a
cabeça e a fechar os olhos. Dormiria agora. Dormiria e, quando acordasse, nem
se lembraria da mensagem.

“Como o senhor vai querer o seu cachorro-quente?”, perguntou-lhe o


vendedor.
“Com bastante maionese. Sem ketchup”, Humberto respondeu.
Odiava ketchup. Assim como odiava praia, o que era irônico, uma vez que
buscara justamente uma praia — a Praia de Copacabana —, para espairecer um
pouco. A cabeça parecia pesar toneladas quando acordara de manhã e decidira
vir caminhar um pouco. Podia dar um desconto a si mesmo por tamanha
burrice. Ao olhar pela janela do seu apartamento — situado em um enorme
edifício no cruzamento da Avenida Atlântica com a Rua Bolívar — para as
ondas do mar quebrando-se no encontro com a areia, a ideia não parecera tão
ruim.
Não. Não parecera nada ruim. Por sinal, seria até bom. Ficaria entretido e
esqueceria a consulta de dias atrás, aquela consulta fatídica que terminara de um
jeito horrível para ele. Mesmo antes de ir embora, sabia que permaneceria com
a notícia do aneurisma em mente por muito tempo. E, agora, lá estava ele,
descalço e com os pés afundados na areia, com a imensidão da água e a
multidão de pessoas à sua frente, tentando esquecer tudo o que ocorrera, mesmo
que temporariamente.
Por isso estava lá. Para esquecer. Para espairecer. Pelo menos, foi o que
pensou até chegar à praia, quando se lembrou do porquê de odiar aquilo tudo: as
pessoas caminhando no calçadão de Copacabana — seus pés contra as pedras
portuguesas — em uma tentativa tosca de emagrecer, os banhistas em trajes
vulgares logo de manhã, os pivetes que apareciam correndo do nada, os sorrisos
vazios de todos avolumando-se ao seu redor. O que lhe passara pela cabeça
quando comprara um apartamento tão perto daquilo?
Era tão...
Tão...
“Aqui está, senhor”, disse o homem, olhando-o por detrás do seu carrinho
de cachorro-quente. Com a mão esquerda, estendia o de Humberto. “São seis
reais. Se quiser uma bebida, eu faço por dez.”
“Não, obrigado”, Humberto obrigou-se a dizer.
Era o que as normas sociais de educação o obrigavam a fazer. Tinha que
falar “as palavrinhas mágicas”. Por favor, obrigado, de nada... Que tédio. Ele
pensou em qual seria a reação do vendedor se ele o desse as palavras que
realmente queria dar. Dez reais por um cachorro-quente e um suco? Lógico que
eu não quero porra de bebida nenhuma. Isso é um roubo, sabia disso, heim, seu
vendedor de merda? Mas não. Agiria exatamente como qualquer outra pessoa.
“Só o cachorro-quente”, disse.
Tirou uma moeda de um e uma nota amassada de cinco do bolso e entregou
ao vendedor. Este, por sua vez, o deu o salgado envolto num guardanapo.
Pingava o caldo gorduroso. Devia ser uma merda, pensou. Seis reais jogados no
lixo, gastos em algo que talvez nem conseguisse comer por inteiro. Onde fora
parar a sua cabeça naquela manhã? Primeiro, não funcionara quando teve a
decisão de ir à praia; depois, estivera em outro lugar que não em cima de seu
pescoço no momento em que fora até o vendedor e pedira-lhe o cachorro-
quente.
Logo que pôs as mãos nele percebeu que o pão era seco e velho e a
salsicha, de quinta categoria e fedorenta. E aquele molho... Era tão laranja que
mais parecia os sóis desenhados pelas crianças na escola.
Sua vontade era reclamar daquele produto fazendo um verdadeiro escarcéu.
Queria fazer com que o vendedor...
Esqueça.
Retraía-se.
Mantenha as aparências.
Não podia fazer nada contra o vendedor. Isso chamaria atenção e chamar a
atenção era a última coisa que queria.
Humberto deu de cara com o homenzinho responsável por aquilo que,
provavelmente, seria uma das piores porcarias comidas em sua vida. Era calvo e
moreno, estatura mediana, braços e pernas longos demais para o resto do corpo,
visivelmente na casa dos cinquenta. Vestia uma bermuda estampada de flores e
uma camiseta regata branca sem estampas. O fitava com os seus olhos míopes.
Percebeu que ele esperava a sua primeira mordida e, possivelmente, um
elogio.
Forçou-se a dar um sorriso e dizer:
“A aparência está boa!”
Mas o vendedor continuou observando-o.
“Eu tenho certeza que o gosto vai estar ainda melhor”, disse ele, empolgado
com o que produzira. “Quem prova o meu cachorro-quente não quer provar o
de mais ninguém. Tem gente que vem lá da Tijuca só pra comer aqui. O senhor
mesmo pode comprovar.”
Mentira deslavada. Humberto forçou outro sorriso e aproximou a boca
lentamente do salgado. O outro homem não tirava os olhos dele e isso
significava que não poderia escapar de provar o maldito cachorro-quente.
Ele deu a primeira mordida e, quando o fez, o gosto encheu-lhe a boca.
O vendedor o olhou animado. Perguntou:
“Então, o que o senhor achou?”
Humberto terminou de mastigar o pedaço que mordera e engoliu. Balançou
a cabeça para cima e para baixo, de forma afirmativa.
“Está excelente”, mentiu.

“Essa é a minha conclusão. Também não podia ser outra, não é mesmo? Os
argumentos dados comprovam isso. Nós não podemos ser maniqueístas e dizer
que um indivíduo adulto é resultado apenas de suas próprias escolhas. O
ambiente em que vive é um fator modelador da personalidade e temos que levá-
lo em conta. Então, antes de julgar alguém que roubou única e simplesmente
para comer, lembre-se: você não pode vê-lo pelo seu próprio panorama de
mundo, afinal você, provavelmente, teve mais condições que o dito deliquente.”
Lavínia estava em frente ao seu computador, revendo o último vídeo que
postara na internet.

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