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Kohlert
O silêncio do inimigo
Ao meu irmão, Michael, por toda a ajuda.
É mais claro que o sol, que Deus criou a mulher para domar o homem.
Voltaire
Parte I
Condição desumana.
1. Precariedade
Que ironia. A luz que minutos antes desejara de todo o coração veio com o
abrir da porta — que dava para o banheiro aonde o monstro disse que passaria a
noite —, mas não da maneira que queria. Veio de lá e logo materializou em sua
claridade aquela silueta. Aquela maldita silueta. A silueta dele. Do monstro.
Não pôde controlar a nova onda de choro. Ela se acentuou enormemente e
pareceu que os seus olhos tinham se tornado duas bombas de lágrima. A visão
embaçou-se e ela perdeu totalmente o controle. E assim ficou, tal qual uma
criancinha indefesa, refém de um homem maldito, chorando e chorando, sem
força alguma perante a situação.
A voz dele soou retumbante:
“Ah, qual é? De novo isso... Mas que merda!”, ela ouviu o som vindo lá de
onde se encontrava o contorno daquele corpo maldito.
Conseguiu vê-lo saindo da soleira da porta e chutando qualquer coisa
próxima, causando um barulho que a deixou de imediato desesperada. Tentou
se contorcer num ato impensado, como se isso pudesse fazer com que se
soltasse das cordas. Só a machucou ainda mais. Por um momento se esquecera
que as pernas também estavam amarradas, o que dificultaria ainda mais
qualquer tentativa de se libertar.
Voltou a ter em mente que estavam amarradas pelo mesmo tipo de corda
que o monstro usara para amarrar as suas mãos, só que ele fizera os seus nós na
madeira da outra extremidade da cama, obviamente. E, falando no imbecil...
“Que porra, que saco!”, disse ele e chutou novamente aquela mesma coisa
que havia golpeado antes. O novo barulho causado soou como um mau
presságio, uma forma de demonstrar com clareza o quanto ele estava nervoso
por ela o ter acordado. Tinha medo quando o via assim. “Será possível que você
vai passar esses dias inteiros choramingando igual uma puta?”, continuou ele e
foi em sua direção, enfurecido. Chegou à cama. “Os seus pais não te ensinaram
a ser adulta? Por Deus! Imagino a criação que devem ter te dado. Eu achei que
você era diferente... É a quarta noite seguida que eu sou acordado pelo seu
choro. Eu tinha achado que nós poderíamos ter um bom convívio, que
poderíamos desfrutar um da companhia do outro, mas... mas... eu não sabia que
você era uma criança que ainda precisa aprender a ser adulta.”
Isso apenas fez com que o medo se acentuasse ainda mais. Lágrimas
brotaram de seus olhos mais uma vez.
“Não... não...”, disse. “Por favor, me deixa em paz.”
Sabia que seria em vão.
O monstro andou de um lado para o outro no quartinho, aquela expressão
de fúria em cada canto de seu rosto.
Ele voltou a falar:
“Me deixa em paz, me deixa paz, me deixa em paz”, replicou, fazendo uma
voz estereotipada de mulher. “Que idiotice! Para de falar isso. Seja mais adulta,
mais madura, pare de implorar como se fosse uma criança. Você não é uma
criança, você precisa me mostrar que eu posso confiar na sua maturidade.
Evolua. Será que você consegue fazer isso? Ser mais adulta? Heim? Me
responde!”
Ela gaguejou:
“Eu sou madura”, tentou argumentar. “Eu só estava procurando...”
E ele a interrompeu:
“Sem gaguejar! Adultos têm que ser seguros de sua razão. A partir do
momento que as sua formulações de ideia são tão entrecortadas, fica difícil te
encarar de forma séria. Não gagueje. Que foi? Você precisa gaguejar quando te
perguntam se você é adulta?”
“Não é isso... Eu... eu... só queria luz... e... e... não... consegui...”
Ele revirou os olhos.
“Cala a boca!”, o monstro bradou. “Cala a boca! Sem desculpas
esfarrapadas. Adultos se calam quando fazem coisas erradas e escutam os
outros. Você consegue compreender o quanto esse choro é irritante? Alias, não
só o choro, mas tudo o que você fez desde que nós nos unimos. Isso faz
acumular irritação em mim, entende? Eu já estou cansada de você. Seja mais
adulta quando falar comigo. Aprenda a ser adulta!”
Ele a olhou fundo nos olhos e ela teve certeza de que nunca mais esqueceria
aquele olhar. Era penetrante, furioso e, acima de tudo, frio. Frio como gelo.
Assustadoramente despido de emoções. O olhar de alguém que incapaz de ver
outra pessoa como sendo seu semelhante.
A raiva fervilhou nela.
“Filho da puta!”, disse num impulso.
Arrependeu-se disso no mesmo instante. Se o monstro ainda possuía
qualquer controle sobre si, perdeu-o quando ela o xingou.
“Filho da puta?”, perguntou ele, como se horrorizado por tal afronta. “Filho
da puta?” Cerrou os punhos. “Adultos não falam assim uns com os outros. Você
não compreende? Adulta! É isso que eu quero que você seja. Adulta, adulta,
adulta! Crianças me dão raiva. E esse choro infantil foi... a última gota. Será
que eu vou ter que te ensinar o que é ter maturidade?”
Sentiu um nó na garganta,
Oh, não. Oh, não. Por favor, não.
Ela sabia muito bem o que essa última frase significava. Já detectara um
padrão nele. Sempre que estava com raiva e a perguntava se “teria que lhe
ensinar algo” alguma coisa ruim acontecia. Sabia que os próximos segundos —
ou minutos — seriam um castigo. Sabia que a sua situação pioraria. Sabia que a
piora seria exponencial. O monstro não fazia qualquer esforço para controlar-se
nos momentos de raiva. Mas, mesmo tendo tudo isso em mente, nada poderia
ter a deixado preparada para o que ocorreu a seguir.
Ele contornou a cama velozmente. Violento e determinado.
Puxou-a pelos cabelos com força, segurando-os na palma da mão.
Arremessou a sua cabeça brutalmente contra a quina da cabeceira. Um rasgo
enorme surgiu no meio de sua testa e o sangue escorreu, escuro.
Ele não parou por aí. Pegou-a pelos cabelos de novo. Jogou-a contra aquela
mesma quina. Ela pode sentir o sangue jorrando do recém-formado ferimento.
Esvoaçava para todos os lados. Ele repetiu o movimento mais uma, duas, três
vezes. O barulho dos baques era seco, quase surdo, mas parecia ricochetear em
seus ouvidos. E, por fim, foi jogada contra a quina de novo. Algumas gotas de
sangue escorreram lentamente pela testa e chegaram às bochechas, contornando
as maçãs proeminentes de seu rosto; já as outras passaram pelo bloqueio dos
cílios e entraram nos seus olhos, unindo-se as lágrimas e tingindo tudo com o
vermelho. A visão embaçou-se e ela não chegou sentir a pancada em sua boca e
os dois fortes tapas dados em seu rosto. Não pôde ver nenhum dos golpes da
série aplicada sobre o seu corpo inteiro: seios, barriga, pernas, têmporas. O
monstro cerrava os punhos e espancava-lhe descontroladamente, como um
animal selvagem e violento.
Quando ele terminou, suas próprias roupas estavam ensopadas do liquido
vital de Bárbara Meireles, que, por sua vez, já não tinha mais consciência. E os
lençóis brancos encardidos de urina — do mesmo modo que os travesseiros
brancos e a coberta também branca — estavam empapados de sangue.
Parte II
Mudança de Vida.
Lavínia olhou para o exterior pela janela da cozinha. Dava para o jardim
bem cuidado de sua casa e, para lá dele, podia ver as casas do outro lado da rua.
Apenas uma mostra do gigantesco mundo que estendia indefinidamente, até
lugares inalcançáveis por sua visão. Àquela hora da noite, a Rua Inglês de
Souza, no bairro do Jardim Botânico, estava completamente vazia.
Compreensível, afinal já era bem tarde — ela calculou que devia ser mais ou
menos 23h00. O significado disso se mostrou com bastante obviedade: já
passara da hora de ir dormir. Nos tempos da juventude, ela raramente ia dormir
antes da madrugada começar e tinha uma grande disposição para tudo. Só que
muita coisa mudara desde aquela época — isso nada mais era uma maneira de
expressão, uma vez que não era tão velha assim, fez questão de lembrar a si
mesmo — e, agora, era mais uma das mulheres que compartilhavam o adjetivo
de trabalhadora. Não estava reclamando do seu trabalho de forma alguma.
Apenas raciocinava sobre os vícios cansativos da profissão.
Lavínia terminou a sua xícara de chá, sorvendo todo o líquido do recipiente.
Até a última gota. Ela adorava a doçura e a suavidade do chá de erva-cidreira e
a matéria-prima para prepará-lo, a própria erva, tinha acabado no seu estoque.
Se quisesse mais, teria que ir à casa da mãe para colher o que restava. E, como a
sua rotina ultimamente estava muito corrida, não tinha tempo para fazê-lo. A
rotina casa-trabalho a deixava totalmente moída.
Após concluir que todo o liquido da xícara tinha sido aproveitado, colocou-
a na pia da cozinha, tendo em mente que lavaria todas as louças que estavam lá
amanhã de manhã. Os pratos, copos, talheres e panelas avolumavam-se numa
única, gigantesca e assustadora pilha. Definitivamente não estava com paciência
e ânimo para lavá-las agora e, além do mais, aquela não era hora de estar
lavando vasilhas. As costas doíam-lhe e a melhor opção para ela no momento
era mesmo dormir. Isso não era ser preguiçosa: apenas delegava tarefas para
outra hora.
Quando estava saindo da cozinha, lembrou de apagar a luz.
Encaminhou-se até o interruptor e o apertou. No mesmo segundo, tudo ficou
escuro como a noite. Uma péssima ideia, pensando sob o ponto de vista da luz
da cozinha ser a única acesa em todo o primeiro andar. Ela não gostava muito
de escuro — ele a fazia lembrar o clima dos filmes de terror —, mas dane-se.
Era apenas um medo infantil, bobo e desprovido de qualquer embasamento
retórico. A luz e a escuridão possuíam o mesmo nível de perigo, a única coisa
que mudava é que uma era bem encarada e a outra, não.
Com passos suaves e lentos, foi para o corredor e, de lá, pegou a escada
para o segundo andar. Estava descalça e o chão aos seus pés encontrava-se
muito frio. Andou nas pontas dos dedos com o intuito de ter a menos região de
contato possível com o chão. Logo que chegou ao segundo patamar, procurou o
banheiro. A porta de madeira estava fechada. Lavínia pegou a maçaneta —
igualmente fria, o que era estranho, uma vez que o ar do ambiente era quente —
e girou-a. A porta se abriu com um ranger silencioso e discreto, revelando a
escuridão total que persistia lá. Acendeu a luz e entrou, fechando a porta no
meio do caminho. Tratou de ir o mais rápido que pôde, afinal ansiava
desesperadamente pelo sono. E realmente foi veloz: fez o que devia fazer e saiu
rapidamente da completa penumbra que era o banheiro. Por que tanto medo de
escuro? Dirigiu-se ao quarto.
Júlio já estava na cama, quase que totalmente debaixo das cobertas — se
não fosse a cabeça e os braços para fora, não veria nada dele. As luzes estavam
apagadas e a única iluminação era a do abajur ao lado da cama. Lavínia, de pé
na região da soleira que era a divisória entre o quarto e o corredor, percebeu que
ele lia um livro. Era grosso, realmente grosso, o que acabou lhe chamando a
atenção: achava livros grossos charmosos, os volumes grandes e lindos. Prestou
atenção nele e viu o nome na capa: David Copperfield.
Pisou no chão ainda frio — Júlio sempre colocava o ar-condicionado em
quinze graus —, se aproximou da cama e perguntou:
“Que livro é esse?”
O noivo levantou os olhos para ela, com um olhar de estranheza.
“David Copperfield, ora.”
Lavínia deu um riso debochado e se deitou na cama, logo indo para debaixo
das cobertas também. Remexeu-se na procura de uma posição melhor e voltou a
falar:
“O nome eu já tinha visto na capa. Eu não estou perguntando do nome, eu
estou perguntando sobre o que é”, esclareceu.
Ele voltou a dar-lhe um olhar interrogativo, estilo “Como você é capaz de
não conhecer esse livro?”. Júlio era como muitos outros leitores assíduos:
quando gostava de um livro, achava que todo mundo deveria conhecê-lo. Ela
apostou que ele faria uma pergunta que comprovaria essa percepção. E acertou:
“Sério que você não conhece?”, ele perguntou.
Lavínia recostou a cabeça no travesseiro, os cabelos castanhos soltos
desarrumando-se e espraiando-se sobre as fronhas. Fez um gesto afirmativo.
“Sim”, disse. Pensou mais um pouco a respeito. “Ou talvez já tenha ouvido
falar, sei lá... Esse nome... David Copperfield. Eu acho que já ouvi um nome
assim em algum lugar.” Fez uma pausa, raciocinando sobre o título. “Por acaso
esse livro é do Dickens?”
O livro foi fechado pelas mãos fortes de Júlio e posto na mesinha de
cabeceira ao lado da cama, com cuidado. O noivo odiava amassados nos seus
livros
Ele concordou:
“Sim”, disse em tom afirmativo. “Pelo que eu ouvi falar, é uma das obras
preferidas dele. É um clássico da literatura, me admira muito você não ter lido.”
Era engraçado, pensou Lavínia. Júlio tomava conclusões como uma
facilidade incrível. Só porque ela tinha pouco mais de mil e quinhentos livros
em casa, ele achava que ela devia já ter lido toda a produção literária mundial.
O que, evidentemente, era errôneo pelo simples fato de isso ser impossível. Mil
e seiscentos e oitenta e três livros não fazem cócegas perto do montante que já
havia sido escrito.
“Não, eu nunca li nenhum David Copperfield. Alias, do Dickens, eu só li
Um conto de duas cidades.”
“Sério?”, Júlio perguntou, quase estarrecido. “Só um?”
“Sim, por quê?”
“Por nada. Só é meio estranho. Você lê muito, só por isso.”
Era óbvio que Júlio falaria isso. Mas ela não estava muito a fim de
discordar dele e, por isso, limitou-se a perguntar:
“Do que se trata?”
O noivo se aprumou todo para falar e tomou uma posição parecida com a
de um apresentador de TV. Era meio cômico. Respondeu:
“Digamos que, resumidamente, David Copperfield retrata a vida do próprio
David Copperfield, da infância até a fase adulta, passando pela adolescência.
Acompanhamos todos os conflitos dele.”
“Parece legal”, Lavínia disse. “Eu gosto de histórias em que o personagem
tem atenção e não é apenas um joguete nas mãos do autor.”
“Não parece legal”, Júlio disse. “É legal.”
Ele coçou a barba volumosa por um momento, parecendo pensativo.
Voltou-se para ela:
“E, a propósito, eu também gosto de histórias como essas.”
Lavínia sorriu um sorriso alegre e sincero. Júlio ficava tão charmoso lendo;
ela não sabia explicar o que era, mas sentia um gosto inesperado pela postura
elegante e intelectual dele. Era um homem com conteúdo e, nos dias de hoje,
homens assim eram raros. Era por esse e por outros motivos que tinha que
valorizá-lo. Não fora fácil encontrar alguém como ele e odiaria perdê-lo.
Não era uma boa hora para conceições sentimentais, mas foi obrigada a
dizer algo para si mesma. Eu o amo. E amava-o mesmo. Observando a sua pele
morena, o rosto quadrado e anguloso, os braços musculosos que a envolviam
nos momentos íntimos, os lábios grossos e o jeito inteligente, ela não conseguia
chegar a outra conclusão que não essa. Ela o adorava com todas as suas forças,
o adorava do fundo de seu coração. Que se dane o que achava o seu padrasto
quanto à idade dele. Júlio já era um quarentão — se encaminhava para a casa
dos cinquenta — e ela tinha recém-feitos trinta anos, mas não importava. O
amor não tem idade. Quando jovem, não fora muito chegada a sonhos
românticos, mas via tudo de uma forma diferente agora: havia se tornado uma
mulher bem mais sonhadora e permitia se imaginar em num conto de fadas.
Conto de fadas. Ela riu. Realmente chegara a esse ponto?
A sonolência voltou a se fazer presente nela. Deu um longo bocejo. Depois,
deu outro e disse:
“Meu amor, eu estou cansada como uma jumenta e moída como cana de
açúcar. Eu queria conversar mais com você, mas eu tenho que dormir agora. O
dia amanhã vai ser cheio. Mas não ligue pra mim. Você pode continuar a sua
leitura, tudo bem? Eu não quero te atrapalhar. Odiaria fazer isso. Você fica
muito sexy dessa forma.”
Lavínia virou para o lado e fechou os olhos, escutando o tímido riso do
noivo.
Gostar de um determinado livro pode levar a um efeito de natureza
colateral: a chamada noite em claro. Júlio olhou para o relógio sobre a mesinha
de cabeceira. Eram quase duas da manhã, o que significava que ela havia
perdido a noção do tempo enquanto lia, o que, por sua vez, demonstrava uma
grande perda no número de horas que ainda tinha para dormir. Mais uma vez,
ele passara do aceitável.
Mas não adiantava reclama pelo que não haveria mais volta. Com esse
pensamento rondado seu cérebro, percebeu-se com um sono incrível. Deu um
bocejo demorado e fechou o livro, colocando-o em seguida sobre a mesinha de
cabeceira, com muito cuidado. O livro ficou ali, ao lado do relógio e do abajur.
Júlio deixou as pálpebras se fecharem e recostou-se no travesseiro.
Já estava dormindo quando sentiu a vibração vinda debaixo do travesseiro.
Como o sono ainda era leve, acordou sem maiores dificuldades. Bocejou
novamente, esfregou os olhos e pôs-se a trabalhar. Tateou a cama em busca da
origem da vibração, mas não obteve sucesso. Lavínia trocou de posição na
cama, virando-se para ele. Em seguida, percebeu com aliviado que ela não tinha
acordado com a sua movimentação. Pensou que a vibração devia ter sido apenas
uma sensação aleatória formada em seu corpo e voltou a deitar-se.
Passaram alguns instantes de calmaria. Foram curtos, afinal terminaram
com a volta daquela mesma coisa. Somente nesse momento que Júlio se
lembrou de ter posto o celular debaixo do travesseiro. Passou a mão no local
onde sabia tê-lo colocado e o pegou.
Olhou para a tela, que indicava o recebimento de uma nova mensagem. O
número lhe era desconhecido, mas, de qualquer maneira, abriu-a.
E, no mesmo instante, as únicas seis palavras da mensagem surgiram:
Os pecadores pagarão por seus pecados.
4.
Preparativos.
Os pecadores pagarão por seus pecados.
As palavras tinham sido escritas em itálico, o que dava um efeito há mais
em seu lado visual. A inclinação proveniente desse uso realçava todas elas de
um jeito estranho, como se adicionasse uma nova carga de sentido a todas.
Relampejavam em algo não identificado. Parecia ser alguma espécie brilho
próprio, incitando-o a tentar compreendê-las em todas as suas possibilidades de
significado. Claro, isso se realmente tivessem algum. Existiam inúmeras
interpretações possíveis a serem feitas; poderia intuir que algum amigo mandara
o texto para ele como forma de brincadeira ou, quem sabe, houvesse um
lunático observando-o. Bobagem. Devia ser apenas alguém sem ter o que fazer
mandando idiotices para os outros e obtendo daí algumas risadas.
Hoje em dia, ocorrências assim apareciam aos montes e não o surpreendia
nem um pouco que essa onda dos chamados “trotes” tivesse chegado a ele. Por
sinal, o estranho era aquela ser a primeira mensagem desse naipe a ter lhe sido
enviada. A própria Lavínia tinha uma amiga enfermeira que presenciava
diariamente isso. Quase todos os dias, tinha que lidar com os imbecis que se
punham a ter esses odiosos momentos de delito. Porque aquilo não era outra
coisa senão um delito. Algo tão criminoso quanto um latrocínio, pela lógica
dela. Afinal, invariavelmente, ambos podiam levar à consequências fatais. Certa
vez, os confidenciara não ser muito raro ambulâncias saírem do hospital para
atender casos falsos. A garotada adorava fazer coisas desse tipo: sentiam
diversão em atrapalhar o trabalho dos sérios profissionais que eram os médicos,
profissionais que não podiam ser dar ao desfrute de perder tempo com alarmes
falsos. Os minutos que perdiam poderiam significar a morte de um paciente que
realmente precisava de ajuda.
“Babacas”, dissera a amiga de Lavínia. Via-se a irritação estampada em seu
rosto. “Babacas sem noção.”
E Júlio concordava plenamente. Babaca era o único adjetivo concebível
para caracterizar qualquer pessoa responsável por mandar trotes infelizes aos
outros em uma busca do susto de seu interlocutor. Faziam isso apenas para
darem gargalhadas. Olhou indignado para a mensagem e desligou o celular.
Raciocinando sobre como eram perigosos essas falsas brincadeiras, vira-se
inconformado, o que o fazia não querer receber outro gracejo.
Colocou o celular novamente debaixo do travesseiro, voltou a deitar a
cabeça e a fechar os olhos. Dormiria agora. Dormiria e, quando acordasse, nem
se lembraria da mensagem.
“Essa é a minha conclusão. Também não podia ser outra, não é mesmo? Os
argumentos dados comprovam isso. Nós não podemos ser maniqueístas e dizer
que um indivíduo adulto é resultado apenas de suas próprias escolhas. O
ambiente em que vive é um fator modelador da personalidade e temos que levá-
lo em conta. Então, antes de julgar alguém que roubou única e simplesmente
para comer, lembre-se: você não pode vê-lo pelo seu próprio panorama de
mundo, afinal você, provavelmente, teve mais condições que o dito deliquente.”
Lavínia estava em frente ao seu computador, revendo o último vídeo que
postara na internet.