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RUTE RODRIGUES DOS REIS

AS VOZES QUE FAZEM O GÊNERO

O feminino e o masculino nas famílias negras

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

PUC –SP

2011
RUTE RODRIGUES DOS REIS

AS VOZES QUE FAZEM O GÊNERO

O feminino e o masculino nas famílias negras

Tese apresentada à Banca Examinadora


como exigência parcial para obtenção do
título de Doutora em Ciências Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo sob a orientação da Professora Livre
Docente Teresinha Bernardo.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO

2011
BANCA EXAMINADORA

________________________________________

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________________________________________

________________________________________
Agradecimentos

As vozes que deram corpo a esse trabalho.


A minha mãe que com suas narrativas me apresentou a possibilidade de mergulho nas histórias contadas
em cada família negra.
Pedro, irmão e amigo, que de suas poucas palavras, o apoio foi imenso.
Ao Núcleo Relações Raciais: Memória, Identidade e Imaginário, que semanalmente nos preenche de
força para continuarmos pesquisando.
Aos amigos que ao longo dos vintes anos partilhamos a luta diária no trabalho na Educação.
Aos amigos de taça e fé, Solange Maria, Neusa e Fernando pelo apoio e paciência.
Ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, na pessoa da Prof. Sofia A’boim, que me
acolheu no estágio de doutoramento
À Minha Orientadora Prof. Teresinha Bernardo, que a vinte anos me surpreende pela paciência e
dedicação na orientação de cada linha escrita. Confesso que já estou com saudades das orientações
regadas ao suco de uva. Minha admiração.
À CAPES, pela bolsa concedida e pelo Estágio de Doutoramento realizado no exterior.

À todos minha eterna gratidão


Resumo

Neste estudo investigo a vida familiar negra no contexto da Cidade de São Paulo
e a construção e lugar do feminino e do masculino nessas famílias. Compreende-se que
há diversidade de modelos de família e que a experiência histórica da ascendência
africana e os resultados das situações de cativeiro do negro, a matrifocalidade no
modelo familiar foi e tem sido marca fundamental.
Busca-se percorrer os caminhos de construção da família negra através de dados
históricos e de análises contemporâneas que ligam este debate ao das relações de
gênero.
A opção teórica aqui adotada refere-se as abordagens sobre identidade de gênero
e identidade racial e também sobre o enfoque dado pela Ciências Sociais ao tratar da
questão familiar. O caminho de abordagem foi a História de Vida em que mulheres e
homens narram suas experiências nas relações familiares.
O estudo insere-se num universo que estabelece a intersecção de gênero e
raça/etnia, vinculando ao universo pouco explorado, que é o da feminilidade e da
masculinidade.
Abstract

The present study proposes to investigate black family life within the context of
the city of São Paulo as well as the construction of both female and male places within
these families. Throughout this work it is possible to notice that there is a conspicuous
diversity of family patterns and that the historical experience of the African ascendance,
the results of black captivity, and especially the matrifocality in their family patterns
were and still are remarkable boundaries.
This work aims to run through the ways of the construction of the black family
throughout historical data and contemporary analysis which connect this debate to the
one of gender relations.
The theoretical choice for this study is based on the approaches about gender
identity and racial identity, and also on the approach given by the Social Sciences as
they deal with family relations.
This study refers to a universe which settles the insertion of gender and
race/ethnicity, relating it to a little explored universe, the one of femininity and
masculinity.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………..……………………………………………………….…………….9

Capítulo 1 PERCORRENDO OS CAMINHOS DA FAMÍLIA NEGRA

1.1 Famílias negras: algumas imersões necessárias….…………………………………...…..37


1.2 A diáspora como possibilidade de compreensão dos aspectos culturais na formação da
família negra…………………………………………….………………….…………………...41
1.3 Matrifocalidade: entre categoria analítica e realidade empírica para o entendimento das
famílias negra………………………………...............................................................................56
1.4 O sagrado da família, a família do sagrado……….………………………………………63

Capítulo 2 (DES) e (RE) DOS FEMININOS

2.1 Aspectos históricos de um feminino hegemônico….………………….…………………66


2.3 Sobre a mulher popular.…………………………….………………….…………………70
2.3 Com quantos tabuleiros se faz a luta? A construção do feminino negro no
Brasil............……………….……………………………………………………………………74
2.4 O feminisno no campo analítico: das diferenças à estruturação das
desigualdades……………..………………………………..…………………………………...79
2.5 Movimento feminista negro: luta política e pensamento em movimento…..……...……86
2.6 Reflexos e imersões do pensamento feminista negro no Brasil……………..…………..90

Capítulo 3 MULHERES QUE SOU EU: MEMÓRIAS QUE SE ENTRECRUZAM

3.1 Tempos narrados……………….……………………………………………………….93


3.2 Imagens da famiília e figuras masculinas……………………………………………..105
3.3 Espaços e vivências………………………………….………………………………..117
3.4 Das formas de violência………………………………….…………………………...123
3.5 Das relações e desejos………………………………………..……………………….127

Capítulo 4 NOS CONTORNOS DA MASCULINIDADE

4.1 Masculinidade como expressão do ideário da sociedade burguesa……………..…….130


4.2 Ciência, corpo e a masculinidade………………………………………………..……133
4.3 Controvérsias sobre a crise da masculinidade………………………………………..134
4.4 Do masculino às masculinidades: contornos dissonantes…………………………….139
4.5 Fragmentos e fissuras: elementos históricos de “outro” masculino…………………..144
4.6 Da luta contra hegemônica a construção de outras hegemonias…………………..….150

Capítulo 5 VOZES DE UM LUGAR DA MASCULINIDADE

5.1 Tempos narrados………………………………………………………………………..157


5.2 A família na memória masculina negra…………………………………………............171
5.3 Aspectos de uma autoridade silenciada…………………………………………............175
5.4 Histórias das mulheres que os homens contam………………………………..............176
5.5 Sobre o referencial de masculinidade…………………………………………………...181
5.6 Quem é quem no mundo da rua?......................................................................................184
5.7 Sobre ser homem negro…………………………………………………………………190

CONSIDERAÇÕE FINAIS …………………………………………………………………198


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………………………………………..201
Introdução

A escolha de uma temática de estudo revela o pesquisador que se propõe a fazê-lo,


mesmo que não conscientemente, levando-o a articular sua biografia e experiências pessoais à
história e aos processos sociais mais amplos. A escolha da temática existe antes da formulação da
problemática proposta, e foi esse o processo que ocorreu comigo. A pesquisa se forja muito antes
de tornar-se um estudo propriamente dito, mas pude apreender essa dimensão somente à medida
em que fui consolidando-a como uma questão a ser pensada com instrumentais analíticos e
empíricos.
Por que pensar a família negra e a questão das construção do masculino e do feminino
nessas famílias? Muitas são as histórias que revelam lugares da feminilidade e masculinidade, e
como ambas forjam-se nas suas construções.
Recordo de algumas histórias vivenciadas em minha família, contadas por Vó Erotides:
“Sambei a noite toda quando soube da morte dele. Ele não prestava, eu não sou fingida. Eu que
sempre sustentei a casa, ele nunca quis saber de nada”. Quando inquirida sobre tamanha falta de
sensibilidade diante da morte do marido, ela reafirmava: “Chorar pelo que não presta! Esses
trastes não fazem falta, só serve para encher a cara”.
Essa era a avó diante de olhar atento dos netos, revelando algo que conhecíamos ou a que
nunca tínhamos atentado: uma personalidade dura e cruel, narrando o fim trágico de nosso avô.
Um de nós ali, atento às histórias, perguntou quem se encarregou do supultamento. Prontamente,
ela respondeu: “O diabo”. Depois de alguns segundos, complementou a resposta: “Os amigos
dele. Só voltei pra casa quando já tinham enterrado. Gastei tudo o que tinha ganhado na venda do
Muncunza. E se eu tivesse mais, gastaria também. Sambei muito, muito mesmo”. Ela levantou-se
diante de nós e, com passos de samba de roda, começou a demonstrar como tinha festajado a
morte do marido.
Outra narrativa familiar é muito presente em minha memória. Esta é constantemente
reapresentada à família, indicando que memórias devem permanecer.

Minha mãe era uma mulher linda, mas muito triste. Coitada, teve 24 filhos.
Alguns morriam quando nasciam, outros cresciam mais um pouco, mas acabavam
morrendo, diziam que era insolação. Hoje, somos só dois. A vida era muito dura.

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Meu pai saía e sumia vários dias, não deixava nem comida nem querozene para o
lampião. Quem assumia tudo era minha avó. Minha mãe morreu de tristeza. Ma
minha avó dizia que ele ia pagar tudo o que ele fez com minha mãe. Não sei o que
seria se não fosse minha avó. Quando ela morrreu, fui trabalhar na casa daquelas
brancas. Elas colocavam um banco pra eu subir e passar a roupa, eu era pequena
não alcançava, e o ferro era muito pesado. Sofri tanto quando era pequena e ainda
casei com um traste desses, que agora está no inferno.

Em ambas as narrativas, o inferno não somente aparece como destino final dos homens,
mas indica uma ameaça para uma determinada masculinidade expressa por essa mulheres.
Fui questionada, em algum momento, sobre o que teriam esses relatos de expressão de
uma identidade negra. Ou melhor, não poderiam estar presentes em qualquer grupo familiar? Tal
questionamento me levou a pensar em como a relação dessas histórias de minha vida familiar e a
relação com o papel de pesquisadora dialogam e ganham sentidos no que homens e mulheres de
minha e de outras famílias revelam. Ao revelarem suas histórias, elas exprimem como negras e
negros vivenciam individual e coletivamente sua negritude.
Mas esse processo só foi possível ao passo em que me reconheço nessa família e nas
memórias que fizeram e fazem parte da minha existência, inclusive como pesquisadora.
Os fragmentos das histórias de família trazidas por essas mulheres apresentam, nas várias
gerações, um enredo do papel que estas tinham e os lugares que ocupavam. O silêncio do
masculino negro e sua ausência nos relatos históricos revelam a negação da condição de homem,
mas também consolida uma imagem construída e consolidada da sua existência. O que terá esse
silêncio a nos revelar?
Se tais inqueitações surgem dentro da própria família, elas ganham espaço ao longo da
trajetória de formação, militância e do mundo do trabalho. Este útimo será frutífero para a
ampliação das inquietações e sentidos diversos da questão, tanto do ponto de vista da realidade
concreta, como das possibilidades analíticas capazes de explicações da mesma.
Nos vinte anos de minha atuação como professora de educação básica, posso afirmar
categoricamente que o debate central que gira em torno da educação para além dos debates
pedagógicos é o debate sobre a família. Em Perrot (1988), no livro Os excluídos da História,
esse contato entre escola e família é parte de instituições que foram forjadas ao mesmo tempo,

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com forte ligações na modernidade. Essa ligação se acentua quando uma das duas parece não
cumprir seu papel social quando, nos momentos de crise, uma busca resposta e solução na outra.
O discurso recorrente, no campo escolar, é de que há uma desestruturação familiar e que
essa é responsável por sujeitos que chegam à escola sem um mínimo de regras sociais de
convivência. Isto afeta a instituição, que deixa de cumprir seu papel primordial, que é o de lidar
com o conhecimento.
Na escola e fora dela consolidam-se discursos e práticas em nome da estrutura familiar,
que corresponde ao modelo nuclear, monogâmico e heterossexual, ou seja, o modelo padrão. O
que está fora desse modelo hegemônico (ao menos no campo da idealização) é considerado
desestruturado ou desestruturante, já que dali decorre uma série de outras desestrutras no campo
social.
O discurso da “família desestruturada” é fortemente marcado nos espaços escolares,
realocando sujeitos escolares como fora ou dentro dessas famílias. O que se define como
famílias desestruturas? A variedade é grande. São famílias em situação de pobreza grave, que
tenham membros envolvidos com a criminalidade, com usuários de drogas lícitas e ilícitas, que
partilham espaços de moradia com outros membros familiares, filhos criados sem a presença do
pai, crianças criadas pelos avós. Enfim, cabe tudo que não seja a família do modelo burguês.
Dessa forma, os dicursos e práticas ali referendadas legitimam um modelo idealizado e
idealizante de família.
Algumas questões me chamaram a atenção. A primeira diz respeito à própria ideia de
desestrutura tão propalada pelo grupo, condição da qual poucos daquela realidade escapavam. A
segunda é o fato de como “cabe de tudo” nessa ideia. Terceiro, a é que a “desestrutura mais
comum” eram famílias compostas de mães e filhos. Tais inqueitações se juntam às percepções
iniciais com o objetivo de transformá-la em apropriações para a análise social.
É a partir desse universo que começo o contato com os meus entrevistados. As primeiras
conversar informais com alunos, mães e funcionários da escola pública ajudaram a ir defindo o
campo de pesquisa, e a ir visualizando que esse perfil de família poderia ser identificado em
outros grupos sociais para além daquela realidade. Em conversas com algumas professoras,
observei que, de alguma forma, elas também faziam parte desse universo de “famílias
desestruturadas”, por também fazerem parte de um contingente de mulheres arrimos de família,
fundamentais na manutenção de pais e irmãos. Quando casadas, mesmo na presença do marido-

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pai, a situação pouco se alterava do ponto de vista econômico e das relações de poder. Essas falas
indicavam uma relação fortemente marcada pela presença dos filhos, e do peso que estes têm no
núcleo familiar. Ali se revelavam mulheres em que a história não diferenciava daquelas
apresentadas na condição de mães/avós/tias/madrinhas dos alunos. Isso indicava a proximidade
de realidades. Mas quando indossavam o papel de professoras, apresentavam outra roupagem e
certo distanciamento ao falar do “outro”, o que as histórias de vida vão desvelando em cada caso
narrado, em cada situação relatada.
Involuntariamente, essas mulheres tornam-se fontes importantes de informações
preliminares para uma pesquisadora ainda não consciente do que os dados podiam revelar.
Porém, ao passo em que a questão se consolidava como objeto de pesquisa, ganhava sentido e
possibilitava leituras e entendimentos. O que se apresentava era um perfil de matrifocalidade,
nessas famílias.
Feita essa identificação, recoloco-me as questões anteriores: por que estudar as famílias
que se identificam como negras? Os conflitos de gênero não poderiam ser identificados em
qualquer família? A primeira assertiva é que a construção da família negra se deu a partir de um
processo histórico diferente. Segundo, pensar sobre a família negra é identificar outros padrões
de estrutura familiar que não correspondem ao modelo padrão de relação de poder. Terceiro, ao
passo que interfere nas relações de poder, estamos falando de papéis sociais deslocados do
modelo hegemônico. Tais premissas são hipóteses que este trabalho buscou estudar através das
histórias de vida.
As primeiras informantes foram as mulheres/mães. A partir desses contatos, foram
realizadas algumas entrevistas para (re)definir o objeto de estudo e qual a melhor forma de
apropriação dos dados que se buscavam. Feitas as entrevistas, uma delas foi fundamental para
que eu me deparar com os erros cometidos pelo pesquisador, e que podem alterar fortemente a
informação que se busca. Percebi que o caminho do questiónario não daria conta das informações
que buscava.
Após essa experiência, procurei redefinir os instrumentos de pesquisa, bem como os
informantes. Optou-se pelas histórias de vida através de suas narrativas. As memórias de
mulheres e homens negros revelaram a família na matrifocalidade e os processos de
ressignificação dos poderes que permeam as masculinidades e as feminilidades. Define-se
“história de vida” como o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando

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reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu. Queiroz
(2008) afirma que a história de vida possibilita que através dela se delineiem as relações com os
membros do seu grupo, de sua profissão, de sua camada social, de sua sociedade global, que cabe
ao pesquisador desvendar (p. 43).
Em estudo realizado por Bernardo (1998), Memória em branco e preto, a autora identifica
um outro movimento:

A coleta de dados sobre a memória não segue uma linearidade, revelando os


seus próprios mecanismos. É um ir e vir constantes. Os caminhos são de
profunda complexidade, demonstrando aspectos multifacetados das
potencialidade do lembrar. Associações são realizadas entre dados do passado e
do presente, bem como em outros diferentes aspectos ( p. 39).

O universo da pesquisa foi composto por 12 homens e 12 mulheres que se declararam de


famílias negras. O número não se refere a uma estrutura pré-estabelecida para a coleta dos dados,
apenas indica que, nesses relatos, começou a haver uma certa regularidade nas narrativas.
A primeira preocupação era contemplar a diversidade geracional; a segunda dizia respeito
à diversidade dos estratos sociais. Para isso foi definido como marcador central a idade, seguida
pela variável escolaridade, para que se tivesse um universo representativo. Optou-se pela
organização de cinco grupos etários de referência, que correspondessem à idade de 30 a 40 anos
, de 41 a 50, de 51 a 60, de 61 a 70 e de mais de 70 anos.
A partir dessas redefinições, fui a campo e os resultados se mostraram mais positivos. As
entrevistas fluíram, as questões que deveriam ser abordadas não foram limitadoras nas narrativas,
mas motivarm para que novas revelações e caminhos fossem abertos.
É importante ressaltar que houve mais facilidade em se conseguir entrevistadas do que
entrevistados. As entrevistas com as mulheres foram cercadas de ansiedade, o que se traduzia em
longas narrativas, sempre com a indicação de outras(os) para serem entrevistados. Os homens se
mostraram mais resistentes e somente depois de mais de uma tentativa se disponibilizavam a
falar. Mas ao passo em que as narrativas iam fluindo, eles revelavam que também tinham o que
falar e necessidade de falar, e que suas memórias revelavam sensibilidades sobre o masculino
tanto quanto o feminino, no universo da família negra.
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As entrevistas foram momentos em que as memórias da pesquisadora interagiram nos
relatos das(os) entrevistadas(os). Porém, a presença destes eram sustentáculos das emoções da
pesquisadora.
O mesmo não ocorreu durante o processo de transcrição, em que os vários sentidos estão
mobilizados e atentos para cada som, silêncio e lágrima dos entrevistados, que não estão
fisicamente presentes para controlar as emoções que envolvem a pesquisadora. Desabei.
Momentos de solidão em que os pensamentos confusos, sem sentido, angustiantes, compõe a
cada instante cenas de um filme de que todos somos protagonistas. Aqui compreendi o que me
mostrava a primeira frase do primeiro capítulo da Memória coletiva, de Maurice Halbwachs
(2006) mostrava-me:

Fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também, mas
também para completar o que sabemos de um evento do qual já estamos
informados de alguma forma, embora muitas circunstâncias nos permaneçam
obscuras. Ora, a primeira testemunha à qual podemos sempre apelar é a nós
próprios (p. 25).

Em que medida o debate sofre família está relacionado aos relativos a questões de gênero,
é o que será apresentado a seguir.

1. Imersões no campo de gênero: muito mais que uma caixa de Pandora

Os primeiros estudos de gênero se dedicaram a pensar a condição feminina. Numa


perspectiva sócio-antropológica, esses estudos possibilitaram uma dupla análise. A primeira diz
respeito aos avanços alcançados através da organização e luta das mulheres; a segunda, ao
avanço teórico/metodológico que possibilitou uma apreensão mais adequada da realidade,
ampliando o debate e o espaço de análise.
Segundo Rachel Soihet (1997), em História da Mulheres demostra que os primeiros
estudos sobre as mulheres realçam, de forma coerente com o pensamento dominante da época, a
identificação desse sexo com a esfera privada. Na medida em que a mulher aspira à atuação no
âmbito público, usurpando os papéis masculinos, transmuta-se em força do mal e da infelicidade,

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dando lugar ao desequilíbrio da história. É respeitada, porém, a identificação mulher/natureza, em
oposição àquela de homem/cultura.
Momento fundamental para os estudos sobre a condição da mulher é a obra O segundo
sexo, de Simone de Beauvoir (1968), em que a autora argumenta que a mulher, ao viver em
função do outro, não tem projeto de vida própria, atuando a serviço do patriarcado, sujeitando-se
ao protagonista e agente da história: o homem.
Gênero tem sido, desde a década de 1970, o termo usado para teorizar a questão da
diferença sexual. Foi inicialmente utilizado pelas feministas americanas com vistas a acentuar o
caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indica rejeição ao
determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”. Gênero
pode ser compreendido como uma relação de interdependência, o aspecto relacional entre as
mulheres e os homens, ou seja, nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir
através de um estudo que os considere totalmente em separado. Em O poder do macho Saffiot
(1987) aponta que pensar a diferença, assim como a igualdade isoladamente, envolve sérias
armadilhas. Atribui-se o mesmo valor à igualdade e à diferença, na medida em que não
constituem um par dicotômico mutuamente exclusivo, mas são cada uma a condição da outra.
Ademais, similaridade e diferenciação são duas dimensões de um mesmo processo, razão pela
qual não se pode mencionar uma na ausência da outra.
Nessa perspectiva, o conceito de gênero, enquanto categoria de análise, situa-se em dois
níveis: o da representação e o real. Portanto, o gênero é tanto um construto sociocultural quanto
um aparelho semiótico, um sistema de representação que atribui significado a indivíduos dentro
da sociedade.
Não somente o sujeito do feminismo, que é um construto teórico, como também as
mulheres historicamente situadas são concebidas simultaneamente dentro e fora do gênero,
dentro e fora da representação. O sujeito do feminismo também deve ser concebido como
múltiplo e construído através de discursos, posições e significados frequentemente em conflito
uns com os outros e simultaneamente (historicamente) contraditórios. Isso equivale a dizer que o
sujeito construído em gênero o é também em classe social e em raça/etnia.
Um sujeito apresenta, simultaneamente, uma identidade de classe e uma étnico-racial,
convivendo em maior ou menor harmonia. Ou melhor: cada conjuntura específica exigirá do
sujeito um posicionamento mais acentuado de sua identidade de gênero, de classe ou de

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raça/etnia. A concepção da multiplicidade do sujeito representa um enorme avanço científico.
Isto posto, o gênero se caracteriza, ao mesmo tempo, como representação e como auto-
representação. Obviamente, enquanto representação participa de sua própria construção.
Joan Scott (1992) em História das Mulheres, considera e reconhece que a introdução da
categoria gênero representou um considerável avanço no que até então era tratado essencialmente
como história das mulheres e, portanto, uma alternativa à forma politizada como vinha se
construindo o conhecimento sobre as mulheres, aqueles que saudavam seu caráter relacional.
Para Scott, duas questões são fundamentais: a primeira, que a categoria gênero havia
sofrido um processo de absorção, passando a ser sinônimo de história das mulheres,
contradizendo explicitamente considerações como a de Michelle Perrot, para quem “a categoria
relacional de gênero substitui internacionalmente a perspectiva de uma ‘história das mulheres”.
A segunda refere-se à utilização da noção de gênero que não substitui a constituição do
campo reconhecido como história das mulheres, mas sim que deve ser compreendida como a
história da construção social das categorias do masculino e feminino, por meio de discursos e
práticas. Muitos trabalhos que se apresentam como focalizados nos aspectos de gênero acabavam
por não reconstruir a contraparte das representações do masculino (p. 77).
Aguiar (1997) em Gênero e Ciências Sociais, aponta que essa questão tem gerado um
grande debate na análise das desigualdades sociais no Brasil e no mundo, não apenas enquanto
perspectiva teórica, mas também na pesquisa empírica.
A discussão em torno da masculinidade expressa mudanças em relação à aceitação social
do arbitrário poder masculino e de sua hegemonia dentro do regime de gênero vigente nas
culturas contemporâneas ocidentais, tornando-se exemplo contundente dessa nova perspectiva.
Os mecanismos sociais que possibilitam privilégios se tornam invisíveis para aqueles que
são por eles favorecidos. Assim, os homens brancos de classe média, quando se olham nos
espelho, se veem como seres humanos universalmente generalizáveis. Eles não estão capacitados
a enxergar como o gênero, a raça e a classe afetam suas experiências.
Em sua análise a respeito dos caminhos do conceito de gênero, Badinter (2005) em su
livro Rumo Equivocado identifica que persiste um duplo sentimento de mal-estar, tanto com
respeito ao diagnóstico quanto acerca dos remédios propostos. Segundo a autora, digam o que
disserem os pessimistas, a situação das mulheres ocidentais modificou-se consideravelmente, e
seu comportamento também.

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Badinter formula algumas questões: seriam os homens a única parte da humanidade
incapaz de evoluir? Seria imutável a entidade masculina? Há um mal-estar diante da
generalização, em dois blocos opostos: a classe das mulheres e a classe dos homens. Isso não
equivale a recair na armadilha do essencialismo, contra o qual as próprias feministas tanto
lutaram? Sua afirmativa é a de que não existe uma masculinidade universal, mas masculinidades
múltiplas, assim como existem múltiplas feminilidades. As categorias binárias são perigosas,
porque apagam complexidade do real em benefício de esquemas simplistas e restritivos.
Assim como as feminilidades, as masculinidades ocupam um lugar na dimensão
simbólica e têm papel importante na definição das atitudes e comportamentos masculinos
relacionados à sexualidade e à reprodução, bem como nas relações sociais e institucionais. A
masculinidade, assim como a feminilidade, é construída socialmente, é histórica, mutável e
relacional.
Há uma diversidade de tipos de masculinidades, que correspondem a diferentes inserções
dos homens na estrutura social, política, econômica e cultural, assim como a trajetórias e estágios
diferentes do seu ciclo vital.

2. O gênero como estrutura das práticas sociais

O gênero é uma forma de ordenamento de prática social. Os processos de gênero – ou a


vida cotidiana – estão organizados em torno do cenário reprodutivo, definido pelas estruturas
corporais e pelos processos de reprodução humana. O cenário inclui o despertar sexual e a
relação sexual, o cuidado com as crianças e as diferenças e similitudes sexuais corporais. O
gênero é uma prática social que constantemente se refere aos corpos e ao que os corpos fazem,
porém não à prática sexual reduzida ao corpo.
O gênero existe precisamente na medida em que a biologia não determina o social, e
marca um desses pontos de transição em que o processo histórico substitui a evolução biológica
como forma de mudança.
A prática social é criadora e inventiva, porém não autônoma. Responde a situações
particulares e se generaliza dentro das estruturas definidas de relações sociais. As relações de
gênero e aquelas entre pessoas e grupos organizados no cenário produtivo formam uma das
estruturas principais de todas as sociedades documentadas. As ações se configuram em unidades

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maiores, e quando falamos de masculinidade e feminilidade estamos designando configurações e
práticas e gênero.
Uma visão dinâmica da organização da prática expressa a compreensão de masculinidade
e de feminilidade como projetos de gênero. Estes são processos de configuração da prática
através do tempo, que transformam seus pontos de partida em estruturas de gênero. Encontramos
a configuração genérica da prática em qualquer forma que dividamos o mundo social, e em
qualquer unidade de análise que selecionamos. A mais conhecida é a vida individual, base das
noções de sentido comum de masculinidade e feminilidade.
A configuração da prática é o que os psicólogos têm chamado, tradicionalmente, de
“personalidade” ou “caráter”. Tal enfoque é responsável por expressar a coerência da prática que
se pode alcançar em qualquer lugar. O gênero se organiza em práticas simbólicas que podem
permanecer por mais tempo que a vida individual.
Desde os anos 70 do século passado tem ficado claro que gênero é uma estrutura
internamente complexa, em que se sobrepõe várias lógicas diferentes. Este é um fato de grande
importância para a análise tanto das masculinidades quanto das feminilidades.
Podemos identificar três grandes eixos, apresentados por Badinter (2005), através dos
quais a desigualdade de gênero se estrutura. O primeiro são as relações de poder. A principal
expressão de poder no sistema de gênero contemporâneo é a subordinação geral das mulheres à
dominação dos homens, estrutura denominada como patriarcado. Ele persiste, apesar da
resistência que o feminismo articula, impondo contínuas dificuldades para o poder patriarcal.
Elas definem um problema de legitimidade, que tem grande importância para a política da
masculinidade.
As relações de produção, através das divisões genéricas do trabalho e na forma de
atribuição de tarefas, compreendem, muitas vezes, detalhes extremamente sutis, o que dificulta
nossa percepção da desigualdade. Deve-se dar igual atenção às consequências econômicas da
divisão do trabalho e ao dividendo acumulado para os homens, resultante da partilha desigual dos
produtos do trabalho social. Isso se discute mais frequentemente nos termos da discriminação
salarial. Porém, deve-se considerar também o caráter de gênero do capital e como, a partir daí, se
perpetuam as relações de dominação. Dessa forma é parte da construção social da masculinidade,
que sejam homens e não mulheres quem controla as principais corporações e as grandes fortunas
privadas.

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A Cathexis, onde o desejo sexual é visto constantemente como natural, normalmente é
excluída da teoria social. As práticas que dão forma e atualizam o desejo são, assim, aspectos de
ordem genérica. Nesse sentido, podemos formular questões políticas acerca da relações, e
questionar se elas são consensuais, coercitivas, ou se o prazer é igualmente dado e recebido.
Compartilhando dessa perspectiva, Connell (1995) em La organización social de la masculinidad
assinala que:

Dado que el gênero es una manera de estructurar la práctica social en general, no


un tipo especial de práctica, está inevitablemente involucrada com otras
estructuras sociales. Actualmente es común decir que el género intersecta – mejor
dicho, interactúa- com la raza y la classe. Podemos agregar que constantemente
interactua con la naciolanalidad o la posición en el ordem mundial (p. 10).

Segundo Almeida (2004) , em Senhores de si: um interpretação Antropológica da


masculinidade, o gênero, enquanto área de estudos e do real introduz significativa novidade
espistemológica já que, ao contrário da classe ou das intituições sociais como a família, o gênero
as cruza transversalmente. A distinção entre sexo e gênero é o ponto de partida fundamental para
investigar a masculinidade. Baseada na distinção que a Antropologia sempre promoveu entre
biologia e cultura, e elaboração conceitual entre sexo e gênero dá a entender que o segundo é a
elaboração cultural do primeiro.
Cabe, portanto, afirmar que a variação cultural dos papéis femininos e masculinos, bem
como dos traços de cultura trazia o determinismo cultural para o campo do sexualidade. Ou seja:
o que os homens são ou o que as mulheres são e o tipo de relação entre eles não se constitui em
simples dados “biológicos”, mas em produtos de processos sociais. Segundo Almeida:

Entendo por gênero as categorizações de pesssoas, artefatos, eventos, sequência


etc., que se baseiam numa imagética sexual, nos modos como o caráter distintivo
das características macho e fêmea concretizam as ideias das pessoas acerca da
natureza das relações sociais (p. 129).

19
Um sistema de sexo/gênero não é apenas o momento reprodutivo e um modo de
produção. A formação da identidade de gênero é um exemplo de produção no reino do sistema
sexual.
Rubin (1975) procura, na área do parentesco, o lócus para a reprodução do sistema de
sexo/gênero, afirmando que os sistemas podem ser muitas coisas, mas aquilo de que são feitos e
aquilo que de fato reproduzem são, antes de mais nada, formas concretas de sexualidade
organizada. Para a autora, existe uma economia do sexo e do gênero. A divisão do trabalho pelos
sexos seria um tabu contra a semelhança de homens e mulheres, exarcebando as diferenças
biológicas entre os sexos, sendo os sistemas de parentesco formas empíricas e observáveis de
sistemas de sexo/gênero. Entende que:

Os sistemas de parentesco requerem uma divisão dos sexos. A fase edipiana


divide os sexos. Os sistemas de parentesco incluem conjuntos de regras que
governam a sexualidade. A crise edipiana é a assimilação dessas regras e tabus. A
heterossexualidade obrigatória é o produto do parentesco. A fase edipiana
constitui o desejo heterossexual. O parentesco assenta numa diferença radical
entre os direitos de homens e mulheres. O complexo de Édipo confere direitos
masculinos ao rapaz e força à rapariga a acomodar-se a menos direitos”
(ALMEIDA at al RUBIN, 1975, p. 198).

Ao passo que vários campos de conhecimento são mobilizados, contribuindo para a


bricolagem do campo de gênero, este permeia as epistemologias, contribuindo para o
entendimento dos mecanismos pelos quais sua identificação se consolida e vai se fazendo nas
contradições de campos de atores.

3. Identidade como percepção do mundo, a ordem da dominação masculina

É na análise de Bourdieu (1999), em A dominação masculina que encontramos o


entendimento dos mecanismos nos quais a dominação masculina se consolida. Segundo ele, a
divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, entendida como algo natural, normal e
inevitável. Está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por

20
exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado,
nos corpos e nos hábitos dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de
pensamento e de ação (p.17).
A ordem simbólica funciona como uma imensa máquina que tende a ratificar a dominação
masculina sobre a qual se alicerça. Esse processo se estrutura a partir da divisão social do
trabalho, desde as atividades atribuídas ao sexo aos instrumentos mobilizados por cada um. Essa
divisão refere-se e é percebida através dos espaços, em que o lugar do coletivo, da decisão e da
rua é reservado aos homens e a casa, às mulheres. O espaço da casa também será o reflexo dessa
divisão. Para Bourdieu, mais do que expressar uma dinâmica mecânica de atribuições, esse
processo inscreve uma estrutura de tempo, de jornada de ciclo da vida. Para o autor, são
esquemas de pensamento que associam elementos tanto ao masculino quanto ao feminino. O
mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão
e de divisão sexualizantes. Segundo o autor:

Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que


diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos traços
distintivos (por exemplo, em matéria corporal) que eles contribuem para fazer
existir, ao mesmo tempo que as “naturalizam”, inscrevendo-as em um sistema de
diferenças, todas igualmente naturais em aparência; de modo que as previsões que
elas engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do mundo, sobretudo
por todos os ciclos biológicos e cósmico (ibid.,p. 16).

Essa percepção incorpora todas as coisas do mundo e, antes de tudo, o próprio corpo. Em
sua realidade biológica, é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-as
aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos
homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da ordem
social.
A diferença entre o corpo masculino e o feminino e, especificamente, a diferença
anatômica entre os órgãos sexuais é vista como justificativa natural da diferença socialmente
construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho.
A virilidade, em seu aspecto ético, como questão de honra, princípio de sua conservação e
incremento, mantém-se indissociável da virilidade física através, sobretudo, das provas de
21
potência sexual – “defloração da noiva, progenitura masculina abundante etc.” – que são
esperadas de um homem “que seja realmente homem” (ibid, p. 20).
Essa dominação, através dos pensamentos e de suas percepções, está estruturada em
conformidade com o que lhe é imposto. O ato de conhecer (e esse conhecimento se dá nas
práticas naturalizadas) são atos de reconhecimento da submissão. Aqui se consolida a imposição
simbólica.
Assim, a definição social dos órgãos sexuais não é um simples registro de propriedades
naturais, diretamente expostas à percepção, mas é produto de uma construção efetuada à custa de
uma série de escolhas orientadas, ou melhor, através da acentuação de certas diferenças, ou do
obscurecimento de certas semelhanças. Em outros termos:

(…) as diferenças visíveis entre os órgãos sexuais masculinos e femininos são


uma construção social que encontra seu princípio nos princípios de divisão da
razão androcêntrica, ela própria fundamentada na divisão dos estatutos sociais
atribuídos ao homem e à mulher (ibid., p. 24).

Nas palavras de Bourdieu, a expressão da dominação pode ser observada no próprio ato
sexual, que é pensado em função do princípio do primado da masculinidade. A oposição entre os
sexos se inscreve na série de oposições mítico-rituais.

(…) resulta daí que a posição considerada normal é, logicamente, aquela em que o
homem “fica por cima”. Assim como a vagina deve, sem dúvida, seu caráter
funesto, maléfico, ao fato de que não só é vista como vazia, mas também como
inverso, o negativo do falo, a posição amorosa na qual a mulher se põe por sobre o
homem é também explicitamente condenada em inúmera civilizações (p. 27).

A posse é sempre ato do masculino. Em inúmeras sociedades, a posse homossexual é


vista como uma manifestação de “potência”, um ato de dominação. Para os gregos, ela leva
aquele que sofre a desonra, a perda do estatuto de homem-cidadão. Para os romanos, a
homossexualidade “passiva” com um escravo era considerada algo desonroso para quem a
praticava.

22
Nessa ligação entre sexualidade e poder, a pior humilhação, para um homem, é ser
“transformado em mulher”, mesmo do ponto de vista simbólico. Almeida (2000) chama a
atenção para o fato de como as brincadeiras e deboches verbais, nos espaços masculinos, são
utilizados, colocando em dúvida a virilidade, ainda com acusações de homossexualidade. O
resultado é a aproximação da feminilidade e o despoderamento que ela representa.
Na busca de entendimento das questões aqui apontadas, cabe identificar o que podemos
definir como família e quais os acúmulos sobre o debate nas Ciências Sociais

4. A família no debate das Ciências Sociais

Na definição de Levi-Strauss (1956), família é uma grupo social que possui algumas
características: sua origem é o casamento, é constituído pelo marido, esposa e filhos provenientes
de sua união, outros parentes podem encontrar seu lugar próximo ao núcleo do grupo; os
membros da família se unem por laços legais, direitos e obrigações econômicas, religiosas ou de
outra espécie, um entrelaçamento definido de direitos e proibições sexuais e uma quantidade
variada e diversificada de sentimentos psicológicos tais como amor, afeto, respeito, medo etc.
Compreender a família através dessa descrição relacional apontada por Levi-Strauss foi
resultado de uma trajetória nas perspectivas analíticas antropológicas, em que compreender as
instituições e os povos a partir de determinantes pautadas no modelo de sociedade ocidental e
industrial foram superadas. Agora busca-se compreender as instituições a partir de suas conexões
socias mais gerais, que respondem a sua realidade. Segundo Strauss, o (…) estudo comparativo
da família entre muitos povos diferentes deu origem a aguns dos mais acirrados debates em toda
a história do pensamento antropológico e, provavelmente, à sua invençao espetacular (p.309).
Ou seja, a vida familiar está presente em todas as sociedades. Em raríssimos casos não se pode
admitir a existência dos laços familiares.1

1
O autor descreva a sociedade Naires, da Índia, em que a vida guerreira dos homens não lhe permitia construir
família, sendo o casamento puramente simbólico, sem nenhum laço permanente entre homens e mulheres,
permitindo que as mulheres casadas tivessem amantes. A criança pertencia à linha materna, e toda a autoridade era
exercida pelo irmão da mãe. Descreve, ainda, dois grupos na África: os Massais e os Jagas, que reconheciam a
família como unidade social. No entanto, aos jovens dedicados às ativiadades guerreiras não era permitido casar e
constituir família, permitindo-se somente que mantivessem relações com mulheres jovens do grupo adulto. Strauss
identifica a existência da família lado a lado com um tipo não-familiar.

23
Após terem sustentado durante cerca de cinquenta anos que a família, tal como existe nas
sociedades modernas, somente poderia ser um desenvolvimento recente, resultante de uma
evolução lenta e duradoura, os antropólogos agora se inclinam para uma convicção oposta, isto é,
que a família, consistindo de uma união mais ou menos duradoura, socialmente aprovada, entre
um homem, uma mulher e seus filhos, constitui fenômeno universal presente em todo e qualquer
tipo de sociedade (Id., ibid).
Ele nos alerta para o fato de que devemos relativizar quando se fala em família
poligâmica, dizendo que o termo “poligamia” refere-se a poliginia, isto é, um sistema no qual o
homem tem direito a várias esposas, bom como à poliandria, sistema complementar em que
vários maridos compartilham de uma mesma esposa.
É bem verdade que, em vários casos observados, famílias poligâmicas nada mais são do
que uma combinação de várias famílias monogâmicas, se bem que a mesma pessoa desempenha
o papel de vários cônjuges. Por exemplo, em algumas tribos banto da África, cada esposa vive
com seus filhos em uma choupana separada, sendo que a única diferença em relação à família
monogâmica é o fato de que o mesmo homem desempenha a função de marido com relação a
todas as suas esposas (ibid.,p. 312).
No livro A família africana (1966), Eduardo Gomes descreve os modelos de família. A
poligamia se divide em poliandria e poliginia, a primeira como a união de uma só mulher com
mais de um homem, e a última como a união de um só homem com mais de uma mulher. A
poliginia sucessiva é uma sucessão de casamentos monógamos temporários. Os indivíduos
podem facilmente divorciar-se e contrair novos casamentos sem qualquer censura da opinião
pública. O casamento de grupo traduz uma exogamia no sentido de os homens e as mulheres a ela
pertencentes não se casarem entre si, mas sim com mulheres e homens de outra divisão do
mesmo grupo. A monogamia é, sem dúvida, a forma de união conjugal mais difundida, praticada,
de um modo geral, pelos caçadores inferiores e agricultores rudimentares. Embora seu fim
primário seja a geração e a educação dos filhos, no entanto essa geração e educação carecem de
elemento formal, que é aumentar a comunidade. O fim secundário do casamento em sociedades
ditas civilizadas está longe de coincidir com o fim secundário do casamento tradicional africano,
que toma aspectos totalmente diversos, conforme os direitos e os deveres da mulher e do
homem.

24
Levi-Strauss ressalta que a poliandria pode, por vezes, assumir formas extremas, em que
vários homens, geralmente irmãos, compartilham de uma esposa, ficando como pai legítimo das
crianças aquele que cumpre um cerimonial específico. Assim, ele permanece o pai legal de todas
as que nascerem, até que outro assuma pelo mesmo processo. Para o autor, se é possível manter a
identidade legal, econômica e sentimental da família, mesmo em um esquema poligínico ou
poliândrico, não é tão certo que o mesmo ocorra quando a poliandria coexiste com a poligamia.
Pode-se dizer que o laço entre a mulher e seu marido legal diferia mais em grau do que em
espécie, de uma gama de outros laços que se poderiam ordenar em ordem decrescente de solidez:
desde aqueles que ligam os amantes reais e semipermanentes ao que ligam os amantes
ocasionais. Entretanto, mesmo nesse caso, a posição das crianças era definida pelo casamento
legal e não por outros tipos de união (ibid.,p. 313).
Assim como Levi-Strauss, Gomes partilha da premisssa de que a família conjugal
monogâmica é mais ou menos frequente. Sempre que ela parece ter sido superada por tipos
diferentes de organização, isto se dá em sociedades muito especializadas e sofisticadas e não,
como anteriormente se esperava, nos tipos mais rudes e simples.
O casamento, no dizer de Levi-Strauss, envolve não apenas um homem e uma mulher,
mas uma mulher e dois homens: aquele que a recebe e aquele ao qual ela é negada, em função do
tabu do incesto. Nessa concepção, o casamento é visto não apenas como elemento de constituição
de grupos familiares e de parentesco, mas fundamentalmente como mecanismo de comunicação
entre esses grupos, estabelecendo uma troca de mulheres. Segundo Strauss, há uma
predominância do casamento monogâmico nas sociedades humanas, não como inscrição da
natureza humana, mas como equilíbrio de gênero, a não ser que haja alguma condição especial, o
que, na sociedade moderna, compreende razões de ordem econômica, moral e religiosa. Ou seja,
o casamento é meio pelo qual se estabelece aliança.
O casamento é um mecanismo regulado pelo tabu do incesto, que atribui
responsabilidades e direitos específicos sobre a prole de uma mulher a homens determinados.
Nesse sentido, o parentesco não pode ser concebido como uma extensão dos laços familiares.
A importância central do tabu do incesto, na reflexão sobre a família e o parentesco, está
em que, distinguindo conceitualmente entre parceiros proibidos e permitidos, este destrói a
possibilidade de uma manifestação natural da sexualidade, submetendo-a a regras e tornando-a
um instrumento de criação e vínculos sociais.

25
Durham (1983), em Família e reprodução humana diz que uma fonte importante de
variabilidade dos sistemas de parentesco está em que os vínculos entre mães e filhos podem ser
concebidos como essencialmente diferentes daqueles que ocorrem entre pais e filhos (p. 23).
Para Strauss parte da premissa de que existe um instinto materno que obriga a mãe a
cuidar de seus filhos e faz com que ela sinta intensa satisfação no desempenho de tais atividades,
enquanto que, entre os homens, existem impulsos psicológicos pelos quais eles podem nutrir
sentimentos afetivos para com a prole. Isso independe da paternidade fisiológica, conquanto
verdadeiro que a família conjugal limitada a mãe e filhos seja praticamente universal, baseada na
dependência fisiológica e psicológica existente entre seus membros, ao menos durante algum
tempo, e que a família conjugal consistindo de marido, esposa e filhos seja quase tão frequente,
por razões psicológicas e econômicas, que se devem acrescentar às já mencionadas o processo
histórico que entre nós conduziu ao reconhecimento legal da família conjugal é muito complexo
(ibid.,p. 320)
Em sua obra História social da criança e da família, Philippe Ariès (1978), através do
estudo da iconografia a partir do século XV, alinhava a construção do padrão de família que será
definida como família moderna. Nas iconografias analisadas no século XV, o casal não é mais
apenas aquele imaginário do amor cortês, mas a mulher e a família paticipam do trabalho e vivem
perto do homem, na sala ou nos campos. O autor alerta para o fato de que não se tratam
propriamente de cenas de família, uma vez que as crianças ainda estão ausentes, no século XV.
Mas nessas cenas o artista exprime discretamente a colaboração da família, dos homens e das
mulheres da casa no trabalho quotidiano, com uma preocupação de intimidade outrora
desconhecida (pp. 197-198)
É ao longo do século XVI que essa iconografia sofre transformação muito significativa,
quando se torna uma iconografia da família e, ao mesmo tempo, expressa as idades de vida. O
aparecimento do tema família na iconografia não foi um simples episódio, mas traria uma
revolução a toda a iconografia dos séculos XVI e XVII: ao quarto e à sala passa a corresponder
uma tendência nova de sentimento, voltando-se para a intimidade da vida privada.

(…) a família seria retratada num instantâneo, numa cena viva, num certo
momento de sua vida cotidiana: os homens reunidos em torno da lareira, uma
mulher tirando um caldeirão do fogo, uma menina dando de comer ao irmãozinho.

26
Daí em diante, torna-se difícil distinguir um retrato de família de uma cena de
gênero que evoca a vida em família (ibid., p. 207).

Nas palavras de Ariès esse sentimento já parecia tão moderno que para nós é difícil
compreender o quanto era novo.
Uma questão fulcral dessa análise é a compreensão de que é dessa nova realidade de
nascimento do sentimento de família que também nasce uma forma de expressão da virilidade.
Esta é ilustrada pela refeição que reúne toda a família em torno da mesa. Para o autor, a
iconografia leva-nos a concluir que o sentimento da família era desconhecido da Idade Média, e
nasceu entre os séculos XV e XVI, para se exprimir com um vigor definitivo no século XVII, a
idade viril é sempre a família (ibid., p. 208).
O sentimento de família que está ligado à casa, ao governo da casa e à vida na casa, o que
não foi conhecido na Idade Média. Já nesse período a concepção de família estava ligada à
linhagem, e também era expressa através da degradação da situação da mulher no lar. Ao passo
que a casa se fecha, a mulher torna-se incapaz e todos os atos que faz sem ser autorizada pelo
marido ou pela justiça. Há um enfraquecimento dos laços de linhagem e o fortalecimento da
autoridade do marido dentro da casa torna-se maior e a mulher e os filhos submissos a seu poder.
Esse modelo torna-se a célula social, e um elemento importante para a religião. Atributos de
virilidade e casamento tornan-se pilares religiosos fundamentais.
Oliveira (2004) em A construção social da masculinidade contribui para melhor
entendimento sobre a questão:

Ainda que pudesse também estimular e valorizar atributos guerreiros, no século


XIX, a religião se incumbia, principalmente, de promover a moralidade
tipicamente burguesa, enquanto o exécito e os esportes cultivavam valores
masculinos para a educação da virilidade. Umas das instituições mais importantes
e que serviu de modo fundamental para veicular esse tipo de moralidade foi o
casamento, visto como consequência natural na vida do cidadão comum e também
como uma barreira contra os vícios e a degeneração (OLIVEIRARA, p. 49).

Segundo Strauss, entre a maioria dos povos, o casamento pouco tem a ver com a
satisfação do desejo sexual, uma vez que a estrutura social proporciona várias oportunidades para
27
isto, as quais podem ser não só externas ao casamento, mas até contrárias ao mesmo. É a
moralidade cristã que considera o casamento e a constituição da família como os únicos meios de
evitar que a satisfação sexual seja pecaminosa.
Nas palavras de Ariès:

O sacramento do casamento poderia ter tido a função de enobrecer a união


conjugal, de lhe dar um valor espiritual, bem como à família. Mas, na realidade,
ele apenas legitimava a união. Durante muito tempo, o casamento foi apenas um
contrato (p. 214).

O novo sentimento de família (reunião em torno da mesa), vinculado diretamente ao


sentimento de infância (a crianças menores) e religiosidade, torna-se um valor a ser exaltado.
Este se estabeleceu em torno da família conjugal, formada pelos pais e seus filhos como um
novo lugar, assumido pela família na vida sentimental dos séculos XVI e XVII.
Aqui também é ressaltada a marca de classe na estruturação do modelo de família. No
caso das famílias pobres, ela não correspondia a nada além da instalação material do casal no seio
de um meio mais amplo, quer fosse a aldeia, a fazenda, o pátio ou a casa dos amos e dos
senhores, onde esses pobres passavam mais tempo do que em sua própria casa. Nos meios ricos,
a família se confundia com a prosperidade do patrimônio, a honra do nome. A família quase não
existia sentimentalmente entre os pobres. Quando havia riqueza e ambição, o sentimento se
inspirava no mesmo sentimento provocado pelas antigas relações de linhagem (ARIÈS, p. 231)
Na análise de Michelle Perrot (1988), o modo de vida popular pressupõe a mulher em
casa, o que não significa absolutamente no interior do lar. Ao analisar a dona de casa no espaço
parisiense no século XIX, Ariès informa que as mulheres desse universo mantinham toda uma
rede de sociabilidade e econômicas paralelas para a manutenção e o sustento familiar. Aqui
aparece a dimensão do espaço público e do espaço privado. Sendo o segundo lugar da família, é
fortemente identificado com a casa e a mulher, agente central nesse espaço, que aqui parece não
corresponder tão fielmente à realidade das camadas mais pobres, a não ser como ideário e
modelo.
Convém ressaltar que esse novo sentimento de família trará a busca pela igualdade entre
os filhos. Ao passo que esse sentimento se amplia, diminui e até substitui sentimentos de
fidelidade, de comunidade, seguindo os progressos da vida privada e da intimidade doméstica.
28
Ou seja, esse sentimento só se desenvovolve quando a casa não está muito aberta para o exterior.
O mínimo de segredo que consolida a privacidade. Como afirma Ariès, a primeira família
moderna foi a família desses homens ricos e importantes.
No século XVIII, a família começou a manter a sociedade à distância, a confiná-la a um
espaço limitado, aquém de uma zona cada vez mais extensa de vida particular.
A esse respeito Ariès contribui informando que:

A organização da casa passou a corresponder a essa nova preocupação de defesa


contra o mundo. (…) Essa especialização dos cômodos da habitação, surgida
inicialmente entre a burguesia e a nobreza, foi certamente uma das maiores
mudanças da vida cotidiana. Correspondeu a uma necessidade de isolamento (p.
265).

A reorganização da casa e a reforma dos costumes deixaram um espaço maior para a


intimidade, que foi preenchida por uma família reduzida aos pais e às crianças, em que o gosto
moderno pela intimidade opõe a casa ao mundo exterior. Esse grupo de pais e filhos felizes com
sua solidão e estranhos ao resto da sociedade não é mais a família do século XVII, aberta para o
mundo invasor dos amigos, clientes e servidores: é a família moderna (ibid., p. 270).
A família moderna, ao contrário, separa-se do mundo e se opõe à sociedade, formando o
grupo solitário de pais e filhos. Toda a energia do grupo é consumida na promoção das crianças,
cada uma em particular, e sem nenhuma ambiçao coletiva: as crianças, mais do que a família.

Essa evolução da família medieval para a família do século XVII e para a família
moderna durante muito tempo se limitou aos nobres, aos burgueses, aos artesãos e
aos lavradores ricos. Ainda no início do século XIX, uma grande parte da
população, a mais pobre e mais numerosa, vivia como as famílias medievais,
com as crianças afastadas da casa dos pais (ibid, p. 271).

Existe, portanto, uma relação entre o sentimento da família e o sentimento de classe,


elementos que se entrecruzam como já apontado na reflezão de Perrot .

29
Todavia, em alguns níveis, o poder patriarcal no meio doméstico entrou em decadência na
última parte do século XIX. É que o domínio direto do homem sobre a casa, compreensível
quando ele era ainda o centro de um sistema de produção, enfraqueceu com a separação entre a
casa e local de trabalho. O marido detinha seguramente o poder dominante, mas uma ênfase
crescente posta na importância do envolvimento emocional entre pais e filhos diluiu o uso desse
poder. O controlo das mulheres sobre a educação dos filhos foi crescendo à medida em que as
famílias se tornaram menores e as crianças começaram a ser consideradas vulneráveis e
necessitadas de educação emocional a longo prazo. Giddens (1993) em A transformação da
intimidade: sexualidade, amor e erotismo na sociedade moderna, desenvolve de forma
minunciosa essa questão (pp. 28-29).
A divisão do trabalho é subjacente à concepção de família a divisão de trabalho. Levis-
Strauss afirma que a divisão de trabalho entre os sexos é universal. O modo pelo qual são
atribuídas a um ou outro sexo depende dos fatores culturais que definem a organização da
família. A divisão do trabalho segundo o sexo nada mais é do que um dispositivo para instituir
um estado de dependência recíproco entre os sexos. Assim, as relações entre o grupo social como
um todo, bem como as famílias restritas que parecem constituí-lo, não são estáticas, mas antes
um processo dinâmico de tensão e oposição com um ponto de equilíbrio muito difícil de
encontrar, e sujeita a variações de época para época e de sociedade para sociedade (p. 332).
Para Durham há uma tendência de naturalização do que definimos como família, que
decorre de um modelo aqui desenvolvido a partir dos dados de Ariès: a família ocidental,
burguesa e branca. É reforçada pelo fato de se tratar de uma instituição que diz respeito,
privilegiadamente, à regulação social de atividades de base nitidamente biológica: o sexo e a
reprodução.
Expressão disso é a tendência a identificar o grupo conjugal como forma básica ou
elementar de família e afirmar sua universalidade. Mais ainda, ao reconhecermos uma forma de
parentesco basicamente bilateral (embora com certa predominância da linha paterna), o próprio
parentesco é tomado como igualmente natural e concebido como extensão dos laços familiares.
Ainda em Durham, o processo de naturalização da família não se esgota em sua forma, mas inclui
também a divisão sexual do trabalho que a organiza internamente. A relação dessa divisão sexual
do trabalho com o papel da mulher no processo reprodutivo permite que se vejam todos os papéis
femininos como derivados de funções biológicas. Há dois problemas nos estudos sobre família: o

30
primeiro é dissolver essa aparência de naturalidade para percebê-la como criação humana
mutável. O segundo é identificar, em cada sociedade, maridos, esposas e filhos, e como as essas
sociedades diversas concebem e combinam de forma variável o casamento, o parentesco, a
resistência e a vida doméstica, privilegiando arranjos diversos dos nossos. “O fundamento para
‘desnaturalizar’ a família é, portanto, entender que a relação que conhecemos entre grupo
conjugal, família, parentesco e divisão sexual do trabalho pode ser dissociada, dando origem a
instituições muito distintas” (1983, p.16).
Todas as sociedades humanas conhecidas possuem uma divisão sexual do trabalho, uma
diferenciação entre papéis femininos e masculinos. É também verdade que essas divisões são
extremamente variadas, e dentro dessa diversidade há invariâncias. Não há qualquer exemplo
comprovado de sociedade propriamente matriarcal, isto é, aquela em que as decisões estejam
concentradas nas mãos das mulheres. A guerra e a política são essencialmente masculinas. No
entanto, os cuidados com as crianças e sua socialização inicial são sempre de competência
feminina, e os homens intervêm de forma auxiliar e complementar.
Parece necessário reconhecer que a variabilidade das formas concretas de divisão sexual
do trabalho se constrói em torno de uma tendência praticamente universal de separação da vida
social entre uma esfera pública, eminentemente masculina, associada à política e à guerra, e uma
esfera doméstica privada, feminina, presa à reprodução e ao cuidado com as crianças (ibid., p.
17).
Segundo a autora, para entender a universalidade desses aspectos é preciso admitir que a
construção cultural da divisão sexual do trabalho se elabora sobre diferenças biológicas, e a
cultura organiza, orienta, modifica, ressaltando ou suprimindo características que possuem
fundamentação biológica.
Esse ideário, segundo Oliveira (2004), consolidou um ideal moderno de masculinidade, e
a família assume esse ideal de masculinidade. Família e papéis de gênero se traduzem como face
de uma mesma moeda, forjada na modernidade. Observa qua há um processo em mudança:

Atualmente uma série de dados e estatísticas permite considerar a existência de


modificações que alteram substanciamente os contornos da família nuclear,
afetando diretamente os lugares sociais dispostos para as imagens idealizadas do
homem moderno. Diferentemente da crise vivenciada pelo Estado-nação, essa se
reflete imediatamente numa das estruturas basilares da masculinidade agora em
31
processo de erosão contínua, isto é, a figura patriarcal, símbolo fundamental do
poder masculino (p. 103).

Na perspectiva de Giddens (1993), a idealização da mãe constituiu um fio condutor da


construção moderna da sexualidade e alimentou indubitavelmente, de forma direta, alguns
valores então propagandeados sobre o amor romântico. A imagem de mulher e mãe reforçou um
modelo bissexual de atividades e sentimentos. As mulheres foram consideradas pelos homens
como diferentes e desconhecidas – preocupadas com um domínio particular que a eles era alheio.
A ideia de que cada sexo é um mistério para o outro é antiga e foi representada de modos
diferentes, em diferentes culturas. O elemento distintivamente novo foi a associação da
maternidade com a feminilidade enquanto qualidades da personalidade – isto, amplamente
divulgado, sustentou, sem dúvida, algumas concepções sobre a sexualidade feminina. “O amor
romântico essencialmente o amor no feminino” (p. 29). O autor faz uma distinção entre amor
romântico e amor-paixão, em que este último nunca foi uma força social genérica do modo que
foi o amor romântico, desde os finais do século XVIII até tempos relativamente recentes.

Ao contrário do amor paixão, que se desarraiga erraticamente, o amor romântico


desliga de uma forma diferente os indivíduos de circunstâncias sociais amplas.
Ele oferece uma trajetória de vida a longo prazo, orientada para um futuro
antecipado e, apesar disso, maleável, cria uma “história partilhada”, que ajuda a
separar a relação conjungal de outros aspectos da organização da família e lhe dá
uma especial primazia (ibdi., p. 30).

O carácter intrinsecamente subversivo do complexo do amor romântico foi, durante muito


tempo, contido pela associação do amor com o casamento, a maternidade, e pela ideia de que o
amor verdadeiro, uma vez encontrado, era para sempre. Enquanto o casamento, era para muitos,
efetivamente para sempre, a congruência estrutural entre o amor romântico e a parceria sexual era
clandestina distinta.
O resultado talvez tenha sido, muitas vezes, anos de infelicidade, dada a tênue conexão
entre o amor enquanto fórmula matrimonial e as exigências de lhe dar continuidade. Apesar
disso, um casamento efetivo, mesmo que não particularmente compensador, podia manter-se por

32
meio da divisão sexual do trabalho, sendo o domínio do marido, o da actividade remunerada, e o
da mulher, o da casa. Ainda em Giddens:

Podemos ver quão importante era, a este nível, o acantonamento da sexualidade


feminina ao casamento, enquanto marca da mulher “respeitável”. Porque ela
permitia simultaneamente aos homens manter a distância da esfera germinante
da intimidade e, às mulheres, guardar como principal objetivo o estado de casadas
(ibid, p. 31-35).

Devido às necessidades e à dependência física demorada, agravadas pela absoluta


necessidade de treinamento cultural sistemático para transformar um bebê em ser humano, as
mulheres passam grande parte da vida adulta cuidando de mais de uma criança. Essas
peculiaridades biológicas e culturais do processo reprodutivo dos seres humanos e o peso que
elas representam para as mulheres certamente estabelecem condicionantes para a elaboração da
divisão sexual do trabalho.
A modificação cultural desse padrão, provendo figuras substitutivas das mães ocorre, por
exemplo, nas sociedades estratificadas e especialmente nas camadas dominantes. As mulheres
são liberadas de pelo menos parte dessa tarefa com o papel desempenhado por amas-de-leite,
babás, preceptores etc. No entanto, a divisão sexual do trabalho se mantêm, ao passo que outras
mulheres se ocupam dessa função.
É preciso considerar que a divisão sexual do trabalho nunca se restringe a esses aspectos
gerais, sua própria extensão e rigidez variam de uma cultura para outra, varia também a
concepção do caráter feminino, os mesmos aspectos universais da divisão sexual do trabalho
podem estar associados a concepção que atribuem à mulheres aspectos de seres frágeis e
imaturos, como pode ser definido numa perspectiva contrária a essa. Reconhecer a existência de
aspectos gerais da divisão sexual do trabalho e a generalidade da dominância masculina não
implica aceitar que a submissão da mulher seja um fenômeno natural ou universal.
Segundo Durham:

O que a análise da diversidade cultural demonstra é a necessidade de dissolver a


definição das relações entre homens e mulheres em termos da dicotomia
dominação-submissão e começar a pensar numa complexa combinação de área de
33
influência ou autonomia, de graus diversos de imposição e aceitação de
autoridade real ou simplesmente formal (p.19).

Se existisse algum grupo natural na sociedade humana, não seria a família, mas aquele
formado por uma mulher e sua prole imatura. Gestação, amamentação prolongada, proteção,
alimentar e o carregar contribuem para criar laços relativamente duradouros entre mães e filhos.
A relação entre o pai e os filhos não cria vínculos duradouros (apesar de sua necessidade, na
procriação), ou seja, não apresenta a mesma relação que entre mães e filhos. Esse vínculo pode
ser criado através de representações incorporadas nas noções de parentesco.
O que há de mais geral no casamento é que, em todas as sociedades, ele é concebido
como pré-requisito para a legitimação da prole de uma mulher. Do mesmo modo que o tabu do
incesto destrói a naturalidade das relações sexuais, a universalidade do casamento como pré-
requisito para a procriação destrói a naturalidade das relações entre a mãe e seus filhos,
atribuindo a homens determinados a responsabilidade para com a prole de cada mulher. O
casamento, como um contrato, estabelece qual homem é responsável pelos filhos de qual mulher.
Essa responsabilidade não é atribuída necessariamente ao marido e muito menos ao parceiro
sexual. Nas sociedades matrilineares, por exemplo, grande parte dessa responsabilidade (e dos
direitos correspondentes) é investida no irmão da mãe, e não no cônjuge.
A variedade dos arranjos possíveis, constatados empiricamente, nos conduz à necessidade
de redefinir o conceito de família ou limitar sua aplicabilidade. Definir família como unidade de
parentesco significa dar ao conceito uma referência formal, mais bem preenchida pelo temo
introduzido por Levi-Strauss, “átomo de parentesco”. Significa privilegiar, no conceito, sua
referência aos grupos responsáveis pela reprodução. Em todas as sociedades humanas, as crianças
nascem e são os responsáveis imediatos e diretos pelos cuidados de que elas necessitam. A ênfase
do conceito passa a recair sobre duas noções: a de grupo, segmento empiricamente delimitável e
socialmente reconhecido, e a de reprodução (DURHAM, p. 26).
Aliança e parentesco podem ser combinados de modo diverso, dando origem a grupos
estruturalmente diferentes. Famílias, enquanto grupos, são constituídas por pessoas que mantêm
entre si relações de aliança, descendência e consaguinidade, mas não são, necessariamente as
unidades básicas de parentesco, sendo famílias aquelas que articulam relações de
consanguinidade, afinidade e descendência em núcleos de reprodução social.

34
No que tange à relação sexo e família, embora ambas as questões estejam obviamente
relacionadas, possuem certa autonomia relativa e, para a compreensão da família, a análise da
reprodução é bem mais esclarecedora que a da sexualidade. Constitui uma passagem do “estado
de natureza” para o “estado de cultura”. O sexo se apresenta como possibilidade constante e
permanente de relacionamento interindividual, e é um instrumento de vínculos sociais e de
ameaça às regras preestabelecidas. Nesse sentido, a vida familiar implica sempre alguma forma
de controle da sexualidade, mesmo que essa seja muito maior do que a problemática da família.
As famílias estão passando por processos de transformação importantes e rápidos, com
mudanças oriundas do âmbito social geral, bem como nas estruturas de relações de gênero,
consolidando outros modelos de família que não corresponde a uma estrutura heterossexual, bem
como a chamadas famílias monoparentais que são expressivas nas camadas médias e na elite
contemporânea. Compondo o que chamamos de modelos alternativos.
Como modelos são em primeiro lugar mutáveis; em segundo lugar, são construções
sintéticas, nas quais a realidade social jamais cabe por inteiro. Por isso mesmo é que a existência
de inúmeras exceções não significa necessariamente a contestação da regra; pode representar
apenas sua aplicação maleável para permitir a solução de problemas diversos. No que diz respeito
aos modelos que regulam a vida sexual e à procriação, suspeita-se, inclusive, de que a dificuldade
de seguir o modelo ou a necessidade de acomodar um número muito elevado de exceções
caracteriza não apenas a nossa, mas a grande maioria das sociedades. Parece que, nesse campo,
estamos lidando com certo tipo de comportamento particularmente renitente às imposições
sociais (ibid, p. 31).
Entretanto, em todas as sociedades as regras estão sendo constantemente quebradas e
existe flexibilidade suficiente para incorporar grande número de exceções, sendo variável a
frequência e o grau de tolerância, dimensão definida culturalmente.
No caso da sociedade brasileira, não se pode afirmar que esta fuja ao padrão de
transformações que tem se apresentado para as diversas sociedades. Assim como o critério de
classe, o componente étnico será definidor de padrões familiares e a composição desses nas
relações de poder. O que convencionou-se chamar de “modelo hegemônico de família”, aqui
também não se traduz na realidade de parte significativa da sociedade.

Da estrutura da tese

35
Este trabalho está estruturado em cinco capítulos. O primeiro apresenta o debate sobre
família, buscando compreender sua construção e sua especificidades na diáspora através de dados
históricos. Percorre os caminhos teóricos de Klauss Wortmann, Robert Slenes, Florestan
Fernandes, Philippe Ariès, Russel-Wood, Kathryn Morgan e outras análises que têm sido
refêrencia no campo das Ciências Sociais, apontando suas controvérsias e possibilidades
metodológicas para compreensão da família matrifocal contemporânea e a relação com o debate
no campo de gênero.
O segundo capítulo apresenta o feminino através das fontes discursiva. A história da
mulheres é a fonte por onde a construção desse feminino é apresentado, conforme Michelle
Perrot, Schuma Schumaher, Teresinha Bernardo, Bell Hooks e outras. Ressalta-se a diversidade
do feminino, apresentando dados desta construção, em destaque a história da mulher negra no
Brasil e na diáspora.
No terceiro capítulo, as narrativas das mulheres são apresentadas junto a suas percepções
e leituras do masculino negro, a partir da referência familiar.
O quarto capítulo tem o objetivo de revelar o masculino através das análise de Pierre
Bourdieu, Robert Connell, Zygmund Baumam, Osmundo Pinho e Antony Giddens, entre outros.
Assim como a feminilidade, a masculinidade é entendida em seu plural. Neste capítulo são
identificadas aproximações e afastamentos da dominância masculina, bem como as alternativas
de outras hegemonias.
O quinto capítulo é a voz do masculino negro que ecoa por entre as ausências e silêncios
históricos que compuseram sua construção enquanto personagem social. Emoções, sentimentos,
percepções e crenças são reveladas e desnudam masculinidades e feminilidades.

36
Capítulo 1 PERCORRENDO OS CAMINHOS DA FAMÍLIA NEGRA

1.1 Famílias negras: algumas imersões necessárias

Até a década de 1970, a promiscuidade era reconhecida como presente no dia a dia do
cativeiro, a julgar pela informação de que os casamentos entre escravos seriam pouco comuns.
Tal promiscuidade resultava do estágio de desenvolvimento do negro ou do próprio sistema, na
qual o africano desenraizado encontrava-se junto a pessoas estranhas, em condições
extremamente adversas (FREYRE, 1992).
Também a partir da década de 1970, novos estudos, baseados principalmente em novas
fontes demográficas e focalizando especialmente o Sudeste do país, têm contestado a antiga visão
da vida sexual e familiar dos escravos. Nessas novas análises coloca-se em questão o pensamento
anterior, que afirmava não haver organização na vida familiar escrava. Slenes (1999), estudo
intilulado Na senzala uma flôr realizado na região de Campinas, São Paulo, demonstra que havia
vida familiar organizada nas senzalas, ao verificar que em propriedades médias e grandes a
existência significativa de laços de parentesco que define como “parentescos simples”, aqueles
entre conjugues, pai, mãe e filhos, apesar de identificar um desequilíbrio numérico entre homens
e mulheres causado pelo tráfico de escravos. Apresenta dados qualitativos, sugerindo que a
constituição de famílias (inclusive extensas, incorporando pessoas não aparentadas) interessava
aos escravos como parte de uma estratégia de sobrevivência dentro do cativeiro.
O desequilíbrio demográfico também foi objeto de análise de Russel-Wood (2005). Em
Escravos e libertos no Brasil colonial ele observa que, na realidade peruana do início do século
XVII e as regiões de mineração do Brasil um século depois, havia uma predominância
avassaladora de homens negros tanto na área rural como na urbana, e que a ocupação e os
talentos estavam relacionados às oportunidades de mobilidade e de casamento.
No artigo de Isabel Cristina Ferreira dos Reis intitulado Uma negra que fugio, e consta
que já tem dous filhos: fuga e família entre escravos na Bahia oitocentista, resultado de estudo a
partir da coleta de anúncios de fugas de escravos em periódicos baianos e da documentação
policial de várias localidades da província no século XIX, revela que as fugas de escravos eram
constantes e a caça intensa. Seu interesse é demonstrar em que medida as fugas de um mesmo

37
engenho apresentam laços de parentesco tanto entre pai, mãe, filhos, irmãos e parentes quanto
entre casais de escravos casados legalmente ou que mantinham relação consensual – parceiros
afetivos denominados “amásios” e “camaradas” pelos anúncios. A autora apresenta uma série de
exemplos da situação que confirma sua tese. Um dos relatos apresenta a história das irmãs
crioulas Maria e Luiza. Esta última, além da criança que levava no ventre, levou consigo um filho
de um ano de idade. A autora apresenta muitos outros casos de mulheres escravas que fugiram
levando seus filhos. É ilustrativo o exemplo abaixo:

Felicidade, africana nagô, propriedade de Bartholomeo Francisco Gomes,


desapareceu com duas filhas, uma parda de nome Brígida, com 5 anos,
outra crioula, com 2 meses, de nome Maria; Eudoxia, africana nagô,
desapareceu da casa do padre José Dias com suas três filhas, Margarida de
7 anos, Omissias de 4 e Joana de 2 ( p. 34).

Esses são alguns exemplos de mulheres negras na condição de cativeiro que conseguiam
fugir levando as crianças, na esperança de criar seus filhos como se fossem pessoas livres. Para a
autora, não há indícios, no material analisado, de que a prática de fuga sem levar os filhos fosse
recorrente.
Essas mulheres expressam, no comportamento rebelde, a inconformidade da condição
servil à qual estavam submetidas, e buscam superar tal condição não na individualidade, mas em
família, que também não pode ser entendida apenas pelos laços de sangue. Outro anúncio
analisado relata a fuga de duas crioulas: Maria Joana, de 45 anos, e sua filha Custodia, de 20, que
por sua vez levou uma filha de 2 meses. Essa ligação está expressa no trecho abaixo:

Na família escrava senhorial havia mãe, filhos e irmãos apenas; note que,
em todos os casos, são mencionados mãe e irmãos. O pai quase sempre
não existe, num discurso senhorial, porque não é figura significativa da
definição do escravo, já que é o estatuto da mãe que garante aquele de
filhos. Mesmo assim, não se pode dizer que, por não estar presente no
discurso senhoria, o pai estivesse ausente da vida do escravo. Embora
mais rara, a presença do pai também aparece na cadeia de solidariedade
com o negro em fuga (REIS, 2007, p.45).

38
Para a autora, a família e as afetividades escravas são fruto de rebeldia, em lugar de serem
fator de acomodação.
Em estudo realizado na cidade de Taubaté, Maria Aparecida Papali (2003) em Escravos ,
libertos e orfãos: a construção da iberdade em Taubaté (1871-1895), apresenta a luta das mães,
na pós-abolição, pela tutela de seus filhos, já que a prática de manter as crianças sob a guarda do
senhor era estratégica para manutenção do trabalho escravo. Ao recorrerem à justiça, deparam
com um sistema a serviço das estruturas de poder que será utilizado para manter as crianças
separadas de suas mães. A identificação de liberta, preta e parda continha todos os preceitos
preconcebidos em relação a essas mulheres. Seus filhos tornam-se crianças e jovens desvalidos,
que deveriam ser dados a tutores para criá-los. A mulher negra perdia para o judiciário brasileiro
e membros da elite o direito à maternidade.
Casar ou não, eis a questão, os casais e as mães solteiras escravas no litoral sul-
fluminense, 1830-1881, um estudo de Márcia Cristina de Vasconcellos (2002) alerta para o fato
de que pensar a família cativa deve ser considerado um desequilíbrio entre os sexos, decorrente
da preferência do tráfico atlântico por homens e o desinteresse senhorial para dificultar a
comercialização dos escravos. Isso não quer dizer que, mesmo com tais elementos adversos, não
houvesse espaço para a formação de famílias e, consequentemente, para maior presença de
crianças legítimas e de cativos casados e viúvos.
Os inventários na região do litoral sul-fluminense, região cafeeira de Mambucaba,
analisados por Vasconcellos (2002), demonstram que a maior parte era de famílias matrifocais.
Dos documentos analisados, 43 famílias eram constituídas apenas pela mãe e seus filhos e 12 por
casais com ou sem filhos. Os dados acima são ilustrativos e demonstram a dinâmica e a
complexidade em compreender o movimento de constituição da família negra. A autora identifica
que, no final do século XIX, há um processo de diminuição de casamentos de mulheres crioulas e
aumento de famílias matrifocais, dados obtidos através dos inventários.
A autora ainda identifica diferença na função do casamento para os crioulos e para os
africanos. Para estes últimos, o matrimônio significava um dos caminhos para a ressocialização e
oferecia aos envolvidos vantagens emocionais, além da possibilidade de estreitar amizades e criar
laços de compadrio. Para os crioulos, o casamento geraria a ampliação e confirmação de laços
estabelecidos. Para ambos, a família seria um lugar de criação e preservação de espaço de

39
resistência dentro da sociedade escravista e legado de experiências deixadas para seus
descendentes, na elaboração de um universo próprio. Conclui que podemos entender as famílias
matrifocais como resposta à ilegitimidade, em que o nascimento de filhos era um caminho para o
estreitamento de laços de compadrio a serem estabelecidos com outros escravos, especialmente
no caso das madrinhas.
Para Slenes não se pode negar que, embora a formação da família cativa respondesse a
uma estratégia senhorial, ela também apresentou-se como espaço em que experiências e
memórias eram transmitidas e uma possibilidade de os escravos obterem o mínimo de autonomia,
com sua função desestabilizadora.
Em Filhos de estranhos, as histórias de uma família negra, Kathryn Morgan (2002)
resgata histórias de sua família e das experiências da escravidão no sul dos Estados Unidos, em
que uma das mais expressivas personagens resgatadas nas narrativas é sua tataravó Caddy. Foi
Caddy que estabeleceu na família a tradição de contar histórias oralmente, usando experiências
pessoais que iam desde estratégias de luta na fuga das fazendas até o lidar com os brancos, a
solidariedade familiar, o respeito próprio, a decência e a dignidade. Sobre o papel dessas histórias
Morgan afirma:

Dizer que conflitos internos, ódio e desprezo racial foram destruídos por
essas histórias, não seria verdadeiro. Elas serviam ao propósito de
diminuir sentimentos de inferioridade racial, imposto a nós, quando
crianças. Eu sei que falta aqui, muita sabedoria aprendida e transmitida
por outros negros a seus descendentes, pois, eu estou certa que Caddy
tinha muitos semelhantes por esta terra toda (p. 52).

Parte das histórias era baseada em experiências da vida real, disfarçadas através do “primo
anônimo” 2, para nos impedir de saber quem realmente tinha sido envolvido. Caddy expressa a
crença na família, e busca (re)construí-la, resistindo a dispersão resultante do escravismo. Ainda
criança, ela perde o contato a mãe. Com o fim da escravidão, ela a encontra vivendo em uma

2
Morgan diz que o uso do termo traduzia-se na estrategia de não nomear os membros da família envolvidos nas
situações relatadas. Fica expressa em todas as narrativas apresentadas o sofrimento vivenciado pela família diante do
racismo, o que parece poder ser amenizado quando o personagem e ocultado e a experiencia apropriada por todos.

40
fazenda, e dedica-se a cuidar dela até sua morte, aos noventa e dois anos, o que, para a época, não
era comum.
Segundo Slenes (1999) a família cativa – nuclear, extensa, intergeracional – contribui
decisivamente para a criação do que define como uma “comunidade escrava” 3, dividida pelas
condições e política da escravidão, mas unida em torno de experiências, valores e memórias
partilhadas, apesar de identificar essas famílias como matrifocais, questão que o autor não
desenvolve.
Scott (1990) em O homem na matrifocalidade: gênero, percepção e experiências do
domínio doméstico, o termo matrifocalidade identifica uma complexa teia de relações montadas
a partir do grupo doméstico em que, apesar da presença do homem na casa, é favorecido o lado
feminino do grupo (p. 39). Apesar de uma definição expressiva, é importante refletir a respeito
das controvérsias e imprecisões que envolvem o conceito de matrifocalidade.

1.2 A diáspora como possibilidade de compreensão dos aspectos culturais na formação da


família negra

A questão central colocada por Woortaman (1987) em A família das mulheres, na década
de 80 e que surge neste trabalho é compreender em que medida é relevante, para a compreensão
de padrões de parentesco e de papéis sexuais contemporâneos, o fato de que a “classe baixa”
emergiu, em grande parte, de uma situação secular de escravidão.
Para Woortman, o problema era controvertido, no entanto, lança um caminho possível de
compreender tal questão, é preciso considerar a experiência histórica como fundamental na
construção e reconstrução dos padrões de parentesco e de papeis sexuais nas famílias negras.
Nesse sentido:

Ao considerar os possíveis efeitos da escravidão, é preciso ter em mente


que, não obstante certos denominadores comuns, existiram não um, mas
vários tipos de escravidão no Brasil, e que diferentes tipos de
subordinação escrava podem ter condicionado diferentes possibilidades de
vida familiar para o escravo (Ibid.,p. 225).

3
Aspas do autor.
41
A combinação de senhorialismo, patriarcalismo, estagnação econômica (reforçando o
próprio senhorialismo) e reprodução interna (biológica) da força de trabalho favorecia o
desenvolvimento de unidades familiares relativamente estáveis entre os escravos. Nesse sentido,
é possível que tenha havido melhores chances para os escravos urbanos.
Num tal contexto, pode ser que a relação entre senhor e escravo tenha tomado um caráter
paternalista, e que tal paternalismo tenha estimulado a constituição de uma família escrava. Os
laços de compadrio entre senhores e escravos, e também entre senhores e a “mãe preta” são um
exemplo disso. Mas é muito provável, por outro lado, que tais laços afetivos estivessem
concentrados nas relações com escravos domésticos. Ademais, cuidados paternalistas com o
bem-estar do escravo não excluíam a violência ou o tratamento abusivo, identificados pela
literatura, legando-nos descrições dos castigos impostos a escravos, assim como dos instrumentos
de punição e tortura.
Independentemente de quão paternalista possa ter sido o sistema escravista, ele era
“benevolente” para com o escravo, na medida em que este se adequasse ao padrão de
subordinação e de subserviência exigido pelo senhor.
Nessa linha de pensamento, Woortman estrutura algumas questões, que nessa análise
também é relevante: em que medida existiu uma família escrava composta de marido, mulher e
filhos; se tal família existiu, em que medida poderia o pai biológico ser também pai sociológico,
isto é, em que medida poderia o “genitor” ser também o “pater”, tal como definido pelos termos
do modelo ideológico dominante; que sentido faria tal unidade “família nuclear” para o africano,
nascido e socializado num sistema social em que esta última não tinha o mesmo sentido
ideológico, tendo padrões de parentesco muito diversos que, nas interpretações etnocêntricas,
ganhava o caráter de promiscuidade.
Nesse sentido há que se considerar que, na situação de desequilíbrio demográfico
resultante da combinação entre altas taxas de mortalidade e dependência do tráfico para a
renovação da força de trabalho, é possível supor que alguma forma de “arranjo poligínico” ou
“poliândrico” tenha se configurado, ambos implicando a formação de unidades matricentrais,
mais do que famílias elementares. Esse elemento é extensamente destacado na obra de Bernardo
(2003).

42
Uma prática em voga no século XIX era a de atribuir a determinados escravos do sexo
masculino, selecionados por seus atributos biológicos, reais ou supostos, o papel de
“reprodutores”. Na realidade, tal prática dificilmente permitia que se desenvolvessem quaisquer
possibilidades de vida familiar no sentido convencional; por outro lado, provavelmente estimula
o desenvolvimento de unidade matricentradas (Woortman, p.228).
Em 1869, foi promulgada uma lei proibindo a venda separada de membros de uma mesma
família. Por outro lado, a lei preocupava-se mais com a separação dos filhos com relação à mãe
do que com relação ao pai ou do que com separação dos cônjuges. Mais uma evidência também é
revelada pelo padrão de nominação: as crianças escravas eram nominadas a partir da mãe, e não
do pai. Algumas vezes, ao nome da mãe era acrescentado o do senhor.
A Lei do Ventre Livre, de 1870, pode ser compreendida como um elemento legal que
incentivou a forma alternativa de família. Além de cunhar o termo “família” para designar a
relação dos até então definidos como filhos de escravas e mãe escrava (Bernardo, 2003).
Durante muito tempo, a economia escravista dependeu de uma contínua importação de
escravos e também, a partir de certo momento, do tráfico inter-regional, em ambos os casos
compreendendo o comércio, principalmente, de escravos masculinos.
Mas o paternalismo não eliminava a desumanização do escravo, configurando-o apenas de
forma distinta. Se de um lado o paternalismo, combinado à estabilidade demográfica, permitia a
existência de famílias escravas, é bem possível que afetasse diferencialmente a homens e
mulheres, num sistema em que a extrema dependência contradizia o próprio conceito de
masculinidade. O escravo poderia ser um “genitor”, mas dificilmente um “pater”. De fato,
dificilmente poderia ser um homem, no pleno sentido da palavra, tal como dado por uma
ideologia patriarcalista.
Até que ponto uma identidade escrava permitia a identidade de homem-pai se, de um
ponto de vista material, o sistema não o permitia? Em que medida poderia o escravo realizar os
valores e normas de proteger sua família, governá-la e transmitir status, dimensões essenciais da
categoria de marido-pai?
É possível que os escravos vivessem em “famílias nucleares”. No entanto, é igualmente
possível, de um lado, que “família nuclear” significasse uma violentação de padrões de
parentesco africanos. Por outro lado, numa ordem patriarcal seriam necessárias mais que formas

43
“pequenas” e “simbólicas” para a realização do padrão de masculinidade. Ademais, se o marido
poderia ter sido o homem da casa “de fato”, não era do de “jure”.
Ainda na esfera do simbolismo, seria possível especular sobre a relação entre humano,
condição negada ao escravo, e homem. Os dois conceitos estão evidentemente relacionados, e
parece difícil preservar o status de homem no sistema que o desumaniza. A masculinidade era
uma noção central ao sistema cultural dominante. Dado o modelo patriarcal em que “marido-pai”
significava autoridade e controle, como poderia tal papel ser desempenhado por alguém que não
“possuía” sua esposa e filhos e que não era nem ao menos proprietário de si próprio? Que papel
paterno era permitido ao escravo, se sua mulher e filhos podiam ser vendidos? Não parece muito
provável que o sistema escravista estimulasse padrões familiares organizados em torno da
autoridade paterna. Vai se consolidando a ausência de uma tradição familiar paterna, que não
chega a se afirmar plenamente, dadas as condições que se seguem à abolição.
Para algumas análises historiográficas a existência das famílias nucleares, ocorreu porque
seus senhores o permitiram e não porque o escravo tinha o direito inegável a uma vida familiar.
Também é possível que fosse uma forma de transferir para o próprio escravo os custos de sua
reprodução como pessoa e como força de trabalho, através de uma dupla jornada de trabalho.
Destaca-se que o marido-pai, separado da esposa e dos filhos, mulheres e crianças, era
considerado uma unidade, mesmo que apenas do ponto de vista comercial.
Florestan Fernandes (1978) em A integração do Negro na sociedade de classes, elabora
sua análise sobre situação da população negras nas primeiras décadas do século XX na cidade de
São Paulo. Segundo o autor, o negro emergiu da escravidão sem contar com uma tradição de
fortes laços familiares, para enfrentar uma situação que não favorecia o desenvolvimento de tais
laços. Por outro lado, emergiu de um sistema que parecia enfatizar a unidade mãe-filhos,
minimizando o status de marido-pai, para enfrentar uma situação em que dificilmente o homem
desempenha tal papel nos termos do modelo dominante, o que resulta nas famílias incompletas. A
categoria de família incompleta será relacionado as vicissitudes econômicas do ex-escravo e seus
descendentes.
Os fatores desse estado de anomia identificado pelo autor, e que dará o tom de sua análise,
não só se transformaram em interesse sociológico para compreender a integração do negro nas
sociedades de classe, bem como os efeitos deste para a ascensão social da população negra são de
enorme interesse para o estudo sociológico da integração dos negros e dos mulatos à sociedade

44
de classe. Por essa razão, o trabalho de Fernandes tornou-se uma referência, numa abordagem
que buscava compreender nos termos das estruturas de classe a reprodução da miséria que se
abateu sobre a população negra. No entanto o caminho para compreensão desses fatores
desconsidera as especificidades históricas. O que vai diferenciar tal análise daquelas
reconhecidamente racista é o fato de não ser mais na base biológica que buscará a explicação
para a desigualdade, mas sim numa defasagem cultural inerente ao grupo em questão.
Apresentaremos nos próximos parágrafos mais elementos que estruturam esse pensamento, e
compreender o peso que este teve nas análises sociais.
Nos termos de Fernandes, as condições de anomia social não só preservaram o nível de
pobreza inicial da população negra paulista, continuamente, de várias maneiras, convertendo o
pauperismo numa constante do estilo de vida do negro na cidade e no processo de seu
ajustamento normal ao mundo urbano. Tornou-se um círculo vicioso gerado pela miséria, que
aprisiona o homem em níveis de existência que se aviltam e se degradam progressivamente,
qualquer que seja a disposição ou o esforço empenhados, voluntariamente, no sentido contrário.
Ele observa que o teor melânico será um elemento de distinção nos acessos e conquistas.
Os mestiços mais claros, especialmente, quando se deparam com condições econômicas e
socioculturais favoráveis, mudam de categoria racial, classificando-se como brancos e sendo
muitas vezes aceitos com tal, inclusive para fins relacionados ao mercado matrimonial, o que será
elemento de diferenciação também em outros campos da vida social. “Por outro lado, a
identificação de ‘mulatos escuros’ e até de ‘mulatos claros’ com o grupo negro leva muitos
‘indivíduos de cor’ a se classificarem pura e simplesmente como ‘pretos’. (ibid., p. 81) Observa
que o negro e o mulato não encaram a miscigenação apenas como “técnica” de classificação e de
ascensão social, mas veem nela um “meio” de extermínio racial.
Esse processo de exclusão sofrido pela população negra a impediu de participar da vida
econômica, social e cultural daquela civilização que agora se fazia em termos urbanos. Ficavam
condenados a um isolamento disfarçado, ajustando-se deficientemente a esse mundo através da
herança sociocultural transplantada do antigo passado rústico do escravo para a condição de
liberto.
As categorias de herança sociocultural e transplante do antigo regime, soma-se às
conexões explicativas do círculo vicioso estabelecido, e a exclusão permanente do negro e do
mulato das formas de sobrevivência, nascidas da revolução urbana e industrial. Na medida em

45
que podia ser identificado por aquela herança, o negro via-se barrado daquelas formas de ganhar
a vida. Na medida em que isso acontecia, ele não tinha nenhuma possibilidade real de absorção
gradativa pela civilização urbana e industrial, elemento de perpetuação como expresso no trecho
abaixo.:

(…) Assim, a vida em condições permanentes de desorganização social


convertia-se numa tradição cultural e numa cadeia invisível. Esta só podia
ser rompida, de moldo insofismável, num ponto: quando o “negro” se
atrevia a quebrar as arestas de sai concepção rústica do mundo e a afrontar
o código ético da sociedade inclusiva (FERNARNDES, p. 111).

Essa tradição à qual o autor se refere, pode ser vista no modelo de habitação que o negro,
em suas palavras, adotou. Definido como o ideal de viver no cortiço, o qual se arraigou
profundamente, em seu entender, na gente negra. Não sabiam o que era decência e conforto,
preferindo morar assim, em habitações coletivas, na proximidade de numerosas famílias
estranhas. Essa opção afetará outras áreas da vida social do negro.
A co-habitação refletia-se de modo direto na desorganização da vida sexual. As crianças
aprendiam precocemente os segredos da vida, sabendo como os adultos procediam para ter prazer
sexual, como se perpetua a espécie e se processa o parto, quando iriam receber um novo
irmãozinho etc. O padrasto ou amásio tendia a aproveitar as oportunidades para seduzir a filha da
companheira e para entreter-se sexualmente com meninos ou rapazes do mesmo sexo (ibid,
p.112).
Fernandes vê na própria tradição cultural do meio negro a explicação para tais
identificações. Entende-se que tudo isso sucedia porque o negro e o mulato “são mais quentes,
vivem obcecados por sexo e encontram maiores facilidades para converter o sexo num derivativo
e numa fonte de prazer”. Aponta-se a promiscuidade dos porões e dos cortiços como a causa
dessas propensões e discutem-se muitos seus dois efeitos básicos: a mãe solteira e os filhos
naturais. Nesse sentido, não foi a família que se desintegrou, como instituição social, de cuja
consequência emergiram certas inconsistências na socialização dos indivíduos. Mas é a própria
família modelo que não se constitui e não faz sentir seu influxo psicossocial e sociocultural na
modelação de personalidade básica, no controle de comportamentos egoísticos ou antissociais e
na criação de laços de solidariedade moral.
46
O primeiro ponto a atacar nesta análise é centralidade em não identificar a existência da
família como instituição social integrada, tendo suas raízes numa estrutura social e psicossocial
da constituição da caráter do negro, cabe ressaltar que o caráter aqui não é compreendido como
resultado de um elemento genético, mas está tão arraigado nas práticas sociais e são reproduzidos
como elemento de uma “certa naturalidade”, exemplo disso é não serem fenômenos isolados.
Continuando na trilha do pensamento de Fernandes. O autor coloca a seguinte questão:
Qual teria sido a saída possível para tal situação? Florestan nos dá a resposta. O que poderia ter
sido corrigido se essas estivessem encontrado meios mais rápidos de “participação da herança
sociocultural da comunidade inclusiva e tivessem absorvido mais depressa seus modelos de
organização da família”, é muito provável que aqueles problemas sociais não se propagariam
nem se perpetuariam nas mesmas proporções. Ou seja, a ausência da transposição de um modelo
estruturado e conectado com a modernidade sobre o rústico seria a causa da ausência de
superação do processo de anomia. Nas palavras de Florestan: (…) em termos específicos, sua
influência negativa tópica não ia na direção de “desintegrar a família”, mas no sentido inverso,
de impedir sua rápida constituição e consolidação. Isso permite formar uma imagem global da
situação histórico-social considerada. (p.117).
A incapacidade institucional e a ausência de controle em corrigir os efeitos mais
destrutivos funcionavam como fatores de preservação ou de agravação do status quo, isto é de
perpetuação das condições vigentes de desorganização social. Isso se reflete no estado de
abandono em que viviam as crianças e os menores, largados e sem ter quem tomasse conta deles.
Ainda nas palavras de Fernandes:

A mãe solteira, quando ficava com o filho e o criava, tinha de deixá-lo no


cortiço. Alguma mulher (parente ou amiga) “toma conta da criança”. A
mãe casada ou amasiada – com o pai da criança ou com outro homem –
com frequência “trabalha fora” e “saía cedo para o serviço”. Se uma avó,
tia ou irmã mais velha morasse com eles, haveria quem assumisse certa
responsabilidade pela criança. Caso contrário, a situação seria idêntica à
anterior. A criança ficaria entregue a si mesma, pois a maneira de “tomar
conta” dos vizinhos incluía duas polarizações negativas (p. 132).

47
Aqui não se consideram os laços de solidariedade construídos como forma de resistência
da população negra e que garantiram a sobrevivência significativa dessa população. Essas trocas
solidárias, trazidas pela análise de Fernandes, mas não consideradas por ele, remetem-nos a
pensar a centralidade do papel das mulheres na manutenção da família do ponto de vista
econômico e simbólico, mas também no espaço da casa e na coletividade negra. Nesse caso, há
elementos para sustentarmos e validarmos a ideia de uma família negra e a centralidade da
mulher nessa família.
Apesar de não identificar a consolidação da família negra, Fernandes acredita ser através
dessa instituição que operava universalmente no meio negro, com condições para organizar e
orientar a manifestação dessas influências. De outro lado, a operação de influências
socializadoras mais amplas, organizadas e orientadas pela sociedade inclusiva (como através das
escolas), dependia estreitamente do grau de integração e de estabilidade do grupo doméstico. A
família torna-se o elemento irradiador de acesso e sucesso em outras instituições, dado que o
trecho abaixo apresenta:

Onde este não atingiu um mínimo de unidade e de persistência, a “criança


negra” não teve possibilidade de receber aquelas influências;
inversamente, onde o grupo doméstico alcançou um mínimo de integração
e de estabilidade, a absorção dos mecanismos de socialização da
sociedade inclusiva tornou-se mais intensa e eficaz (FERNANDES, p.
152).

Fernandes traz como exemplo a condição de imigrante em sua análise, não só como
exemplificação, mas como modelo a ser seguido, pois entre eles a família sempre servia, direta
ou indiretamente, de alicerce à rápida ascensão econômica, social e política. Embora a família
integrada não pudesse criar nem fomentar, por si mesma, as oportunidades de classificação
profissional e econômica, é indiscutível que ela se erigia sobre uma espécie de regulador do
aproveitamento ótimo dessas oportunidades. O processo de mudança histórica, com o fim da
escravidão oficial e as transformações estruturais decorrentes desta, é parcialmente compreendido
como fator determinante. O que em suas palavras ganha o seguinte significado:

48
Ora, a transplantação afetou severamente o curso do desenvolvimento da
“família negra”. Não se pense que isso ocorreu porque a mudança tenha
sido demasiado súbita e rápida. As razões são mais profundas. De um
lado, é preciso considerar que a absorção dos modelos institucionais
brasileiros de organização da família mal tinha iniciado. A instabilidade
econômica e social da “população de cor” no mundo urbano prejudicou
de várias maneiras essa tendência, retardando-a, solapando-a ou
pervertendo-a gravemente (FERNANDES, p. 153).

Nesta perspectiva analítica, a transplantação introduziu influências adversas à


consolidação da família negra, ao mesmo tempo em que restringiu ou anulou a eficácia
adaptativa dos modelos de organização da família, herdados do passado rústico. Essa família,
encontrada em São Paulo durante as três primeiras décadas do século XX, foi definida como uma
família incompleta por Fernandes, em que o arranjo mais frequente consistia no par, constituído
pela mãe solteira ou sua substituta eventual, quase sempre a avó e seus filhos ou filhas. Dessa
forma, a família tanto podia tender para um elevado grau de integração e de estabilidade (como
ocorria, normalmente, entre os negros ordeiros, também chamados na tradição cultural como
negros de elite), quanto podia exibir graus variados de desintegração e de instabilidade.
Fernandes destaca, que o amasiamento não representava, por si mesmo, um obstáculo à
estabilidade estrutural e à normalidade funcional. Mesmo entre os negros direitos e ordeiros,
ferrenhamente apegados ao código tradicionalista e à rígida etiqueta, esse tipo de arranjo
matrimonial era posto em prática. Nesses casos, somente o estatuto legal introduzia alguma
diferença característica com relação à família propriamente integrada e constituída segundo os
padrões dominantes na sociedade inclusiva.
O autor apresenta dados de que os negros e mulatos que tiveram essa oportunidade de se
transplantaram já casados (ou amasiados) para São Paulo compartilhavam de certas convicções
(como a obrigação de sustentar a mulher ou de viver com ela, de cuidar dos filhos, de manter a
vida doméstica de modo decente etc.) e estavam mais propensos a enfrentar os sacrifícios
impostos pela manutenção da família.
Os negros que superaram o estado de anomia foram influenciados pelos imigrantes,
especialmente o italiano, o negro e o mulato, descobriram no convívio ou na observação a
importância da família. A insegurança econômica e a debilidade de certos laços sociais
49
impediram uma imitação rápida e construtiva dos comportamentos do imigrante. “(…) O negro
ou o mulato ‘ordeiros’, propensos a ‘respeitar’ a família, nos porões ou nos cortiços podiam ser
estimulados nessa direção” (ibid, p. 155).
Relativo a mulher negra, Fernandes, afirma que estas não estava plenamente envolvida e
identificada com os valores sociais, que incluíam o casamento, a família e as obrigações
domésticas. Ele exemplifica com o caso da mãe solteira que procurava livrar-se dos filhos,
abandonando-os em instituições de caridade, dando-os ou entregando-os aos cuidados de
terceiros para “não perder a liberdade”. Em outro trecho relata que, em muitos casos, haveria até
a anuência dos patrões para que as empregadas criassem os filhos no serviço. Estas se recusavam,
porque teriam de “ficar presas”, tomando conta da criança durante a noite. Como a família se
achava em plena formação, os indivíduos não adquiriam, antes do casamento, do amasiamento ou
da vida sexual mais ou menos livre, associada à idade adulta, atitudes e comportamento que
suscitassem identificação ou lealdade relativamente fortes diante dos valores consagrados pela
sociedade inclusiva e das obrigações sociais deles decorrentes.
Nessa perspectiva de análise, a ausência de superação de um modelo rústico arraigado a
vida social do negro é um dos elementos estruturantes da perpetuação da sua condição, outro
ponto de destaque refere-se à receptividade sociopática que impede que outras configurações se
consolidem. No caso da composição da família negra, às interferências sociopáticas mais
frequentes associavam-se o empobrecimento permanente desse núcleo. A ausência do pai não só
impedia o funcionamento normal da instituição, privada dos papéis masculinos do marido (ou
companheiro, amásio etc.), do pai e do chefe da casa. Ela prejudicava, irremediavelmente, o
equilíbrio básico (tanto estrutural quanto funcional) do agrupamento, fazendo com que os demais
papéis se concretizassem de modo deformado: acúmulo das obrigações dos membros adultos
presentes e responsáveis (a “mãe solteira” ou sua substituta eventual, quase sempre a avó
materna; ausência de clima moral para socialização dos membros, principalmente dos mais
jovens, resultando em influências que atuavam para a desintegração.
No caso da família integrada, sua condição não está propriamente em sua estrutura e
funcionamento, mas no padrão de sua integração dinâmica à ordem social da sociedade inclusiva.
Ou seja: o processo de convivência e aproximação, as referências da família branca,
representadas aqui pelos imigrantes italianos e que criavam o ambiente que contribuía para o

50
equilíbrio da vida doméstica, como analisado anteriormente. Mas reconhece nesse universo um
tipo de família que foge à regra:

Ao lado da família incompleta ou desintegrada existia também a “família


negra” integrada. Em regra, ela tendia para o tipo de família conjugal: o
afã de manter as aparências de “bom nível de vida”, com renda mais ou
menos baixa, pressupunha uma repulsa decidida da solidariedade
agregativa (FERNANDES, p. 163).

Assim elencam-se as condições biopsíquicas não como limitadoras: faltaram ao negro o


ao mulato os suportes perceptivos e cognitivos que a herança sociocultural para alicerçar uma
boa organização do comportamento humano.

(…) Entendia-se, de modo franco, que o pauperismo, a desorganização da


família, o alcoolismo, a vagabundagem, a prostituição, a criminalidade
etc. constituíam “sintomas naturais” e, por assim dizer, o dividendo fatal
das propensões biológicas, psicológicas e antissociais do “homem de cor”
(FERNANDES, p. 189).

Sob essa perspectiva analítica, a frequência da matrifocalidade, identificada em grandes


concentrações de descendentes, não se deve ao fato de um passado escravo em si mesmo, muito
menos reconhece-a como (re)elaboração e (re)significação na diáspora de elementos da
africanidade, mas a continuidade da escravidão para a liberdade marginalizada.
Marca dessa desqualificação fica evidente nas categorias como “famílias incompletas”,
“mundo rústico”, “ideal de viver no cortiço”, “obcecados por sexo”, apresentadas
insistentemente pelo autor e que tem sido nas últimas décadas referência no campos das ciências
sociais. Mas que para nós, como demonstrado extensamento, apresenta sérios problemas tanto do
ponto de vista teórico como ideológico.
No entanto, faz-se necessário nos localizarmos e retornarmos ao referencial que
contempla nossa opção analítica e que fica expresso nas palavras de Woortman: Além de ter sido
escravo, o negro foi africano. De fato, nos termos das classificações culturais locais, muitos, se

51
não a maioria, ainda o são, como o são de também os não-negros enquanto participantes de um
sistema de crenças e de valores trazidos da África (p. 245).
Um exemplo dado por Woortman expressa esse entendimento, ao identificar que o pobre
da Bahia, independentemente de sua raça, ao participar de cultos afro-baianos, está mergulhado
em um universo simbólico que ajuda a moldar a ideologia familiar contemporânea, mesmo que
pouco ou nada saiba sobre os padrões de parentesco da ancestralidade africanos.
Bernardo (2003) salienta que uma das características fundamentais da diáspora é a
criatividade, que permite, de forma às vezes desordenada, fecundações inesperadas. Essa
desordem promove uma possibilidade sincrética que estará presente em todas as fecundações
culturais que, por sua vez, estão relacionadas também a fatores históricos e socioeconômicos (p.
37).
Aqui se propõe outra forma de olhar a realidade negra. Na esteira de Gilroy (2001), o
Atlântico é visto como uma unidade de análise única e complexa em suas discussões do mundo
moderno, devendo-se utilizá-la para produzir uma perspectiva explicitamente transnacional e
intercultural expressa nas experiências de exílios temporários, transferência e deslocamento (p.
57). Ele enfatiza que:

A propensão não-nacional da diáspora é ampliada quando o conceito é


anexado em relatos antiessencialistas da formação de identidade como um
processo histórico e político, e utilizando para conseguir uma afastamento
em relação à ideia de identidades primordiais que se estabelecem
supostamente tanto pela cultura como pela natureza. Ao aderir à diáspora,
a identidade pode ser, ao invés disso, levada à contingência, à
indeterminação e ao conflito (p 19).

Cabe destacar trechos apresentados por Gilroy quando ele pensa a constituição do
pensamento intelectual negro através de duas perspectivas. As passagens que se seguem são
ilustrativas:

Campbell via a África como sua terra-mãe (motherland), ao passo que


Delany, mesmo quando se referia à África com o pronome feminino,
persistia em chamar o continente de pátria (fatherland). Desejo sugerir

52
que essa obstinação expressa algo profundo e característico sobre a
percepção de Delany da relação necessária entre nacionalidade, cidadania
e masculinidade. Provavelmente ele tenha sido o primeiro pensador negro
a produzir o argumento de que a integridade de seus chefes masculinos de
domicílios e, secundariamente, a integridade das família sobre as quais
eles presidem. O modelo que ele propunha alinhava o poder do cabeça
masculino do domicílio na esfera privada com o status nobre do soldado-
cidadão que o complementava na esfera pública. O discurso de Delany,
hoje, é o de um supremo patriarca. Ele buscava uma variedade de poder
para o homem negro no mundo branco, que apenas poderia ser erigida nas
fundações fornecidas pelos papéis de marido e pai (ibid., p. 76).

No que se refere às mulheres, o mesmo autor informa:

As mulheres deveriam ser educadas, mas apenas para a maternidade. A


esfera pública seria domínio exclusivo de uma cidadania masculina
esclarecida, que parece ter se orientado pela concepção de Rousseau da
vida civil em Esparta. Delany pode hoje ser reconhecido como progenitor
do patriarcado do Atlântico negro (id., ibid).

O lugar central da sexualidade, nos discursos contemporâneos da particularidade racial ou


gênero é a modalidade na qual a raça é vivida.
A masculinidade ampliada e exagerada tem se tornado a peça central de uma cultura de
compensação, que timidamente afaga a miséria dos destituídos e subordinados. Essa
masculinidade e sua contraparte feminina relacional tornam-se símbolos da diferença que a raça
faz. Ambos são vividos e naturalizados nos padrões distintos de vida familiar, aos quais
supostamente recorre à reprodução das identidade raciais.
Essas identidades de gênero passam a exemplificar diferenças culturais imutáveis que
aparentemente brotam da diferença étnica absoluta. Questioná-las e à sua constituição da
subjetividade racial é imediatamente ficar sem gênero e colocar-se de fora do grupo de
parentesco racial. Vivenciar a mesma raça por meio de determinadas definições de gênero e
sexualidade também tem se mostrado eminentemente exportável.

53
As formas de ligação e identificação que isto possibilita no espaço e no
tempo não podem ser confinadas dentro das fronteiras do está-nação e
correspondem estreitamente à experiência vivida. Elas podem até criar
novas concepções de nacionalidade na interação conflituosa entre as
mulheres que silenciosa e privadamente reproduzem a comunidade
nacional negra e os homens que aspiram serem seu cidadãos-soldados
públicos ( ibid.,179).

Pode-se identificar um processo de corporificação desse universo africano. Roupas e


nomes africanos são assumidos e usados. Essas práticas corporais da sensibilidade africana
imaginada podem fornecer uma barreira contra os efeitos corrosivos do racismo, da pobreza e da
pauperização nos indivíduos e comunidades. Mas é profundamente significativo que ideias sobre
masculinidade, feminilidade e sexualidade sejam tão proeminentes nessa jornada redentora de
volta à África (ibid., p. 361).
Geração, autenticidade e autoridade política animam a crença de que as crises políticas e
econômicas contemporâneas dos negros no Ocidente são basicamente crises de autoconvicção e
identidade racial. Essas crises são vividas mais intensamente na área das relações de gênero, em
que a reconstrução simbólica da comunidade é projetada sobre a imagem do casal heterossexual
padrão.
A família patriarcal é a instituição preferida, capaz de reproduzir os papéis, a cultura e a
sensibilidade tradicional que podem solucionar esse estado de coisas. Entretanto, onde ela não é
pensada como passível de ser reconstruída: as mesmas ideias sustentam propostas políticas
controversas, como a demanda por escolas especiais nas quais os rapazes negros, sob a orientação
de modelos de papel masculino positivo, possam receber formas de educação culturalmente
apropriadas que os vão equipá-los para a vida como espécimes excelentes e decentes de virilidade
negra, “a verdadeira espinha dorsal do povo”, capazes de liberar a comunidade até sua devida
posição, como conclui Gilroy (p. 363). Aqui, a masculinidade é o centro. É possível resgatar a
masculinidade e a integridade da raça. Isto resulta em uma situação na qual as crises sociais e
econômicas de comunidades inteiras tornam-se mais facilmente inteligíveis para seus como uma
crise prolongada de masculinidade.
Gilroy (2001) e Oliveira (2004) destacam como a pós-modernidade tecnológica e capaz
de dissolver a distância e criar novas e imprevisíveis formas de identificação e afinidade cultural
54
entre grupos que residem muito afastados entre si. Ao permitir que elementos culturais
específicos da juventude negra se consolidem como linguagem de aproximação estética, musical
e corporal, possibilita que percepções de masculinidades e feminilidades dialoguem e também se
estruturem.
Nas palavras de Gilroy:

A ideia de diáspora poderia ser entendida como uma resposta a essas


incitações – um erupção utópica do espaço na ordem temporal linear da
política negra moderna, que reforça a obrigação de que espaço e tempo
devam ser considerados em relação, na sua interarticulação como o ser
racializado (p. 369).

Ao analisar a diáspora contemporânea através da obra e expressão de Bob Marley, Gilroy


(2007) em Entre campos, conclui que o poder translocal de sua voz dissonante invoca estas
possibilidades e um parentesco escolhido e reconhecidamente político que é ainda mais precioso
devido a sua distância das suposições mutiladoras da solidariedade automática fundada em
vínculos de sangue ou de terra (, p. 161).
Como alternativa à metafísica da “raça”, da nação e da cultura delimitada e codificada nos
corpos, a diáspora é um conceito que problematiza a mecânica cultural e histórica do
pertencimento. Ela perturba o poder fundamental do território na definição da localização e
consciência. Assim:

Ela identifica uma rede relacional, produzida de modo característica pela


dispersão forçada e pela saída às pressas e relutante. (…) Sob este signo,
os fatores de impulsão são uma influência dominante. A urgência deles
decorrente faz da diáspora mais do que um sinônimo em voga de
peregrinação ou nomadismo. O termo possibilita uma fissura histórica e
experiencial entre lugares de residência e lugares de pertencimento. (ibid.,
p. 152).

As diferenças de gênero se tornam extremamente importantes nessa operação antipolítica,


porque são o signo mais proeminente da irresistível hierarquia que deve ser restabelecida no

55
centro da vida diária em que a integridade da raça ou da nação, portanto, emerge como a
integridade da masculinidade. Na verdade, ela só pode ser uma nação coesa se a versão correta de
hierarquia de gênero foi instituída e reproduzida, com a família é o eixo para estas operações
tecnológicas. Ela conecta os homens e mulheres, os garotos e garotas à comunidade mais ampla a
partir da qual eles devem se orientar se quiserem possuir uma pátria real ou simbólica.
Assim, considera como um dos mais poderosos componentes daquilo que
experimentamos como identidade racial é regular e frequentemente ideias particulares sobre
sexualidade e do que experimentamos como conflito entre homens e mulheres. Nas palavras de
Gilroy, esse tom específico é, em si mesmo, expressão da diferença racial. “Essa não é a única
fonte de ideias sobre a subjetividade negra, mas muitas vezes é a mais poderosa. Por mais
tendencioso que possa parecer, acredito que isso normalmente contrabalança a importância do
racismo e seus efeitos centrípetos sobre a constituição de comunidades raciais” (GILROY, p. 376).

Um sentido precioso da particularidade negra é construído a partir de


vários temas entrelaçados que culminam nesta inesperada assinatura do
tempo. Eles fornecem os acentos, repousos, pausar e tons que possibilitam
o desempenho da identidade racial. Juntas, elas traçam a linha entre
passado e presente, que é tão importante nas culturas expressivas negras.
Elas fogem à oposição estéril entre tradição e modernidade, afirmando a
prioridade irredutível do presente (GILROY, p. 378).

1.3 Matrifocalidade: entre categoria analítica e realidade empírica para o entendimento


das famílias negras

Diversas análises ajudam a compor o conceito de matrifocalidade. Para Gonzalez (1970),


a mãe é a figura estável, com as outras pessoas do grupo doméstico funcionando ao seu redor. O
contato com os membros da família são realizados com parentes matrilineares, e a mulher tem o
poder de decidir sobre as crianças e a casa. Smith (1971) diz ser característica a relação de
proximidade entre mãe, filhas, filhos e filhas das filhas. Essa relação é baseada na atividade de
cuidar das crianças, característica encontrada nas famílias negras do novo mundo. Para ele, na
América Latina é uma questão de degradação, ou seja, é resultado de questões de ordem
56
socioeconômica do sistema. Para Stack (1970), a matrifocalidade denota tipos de laços de
parentesco entre seus membros e a relação entre homens e mulheres. Muitas análises têm
associado o conceito de matrifocalidade imediatamente à família. O primeiro alerta é não
confundir matrifocalidade como sinônimo de chefia. Para Perry Scott (1990), os índices de casas
chefiadas por mulheres são indícios de um padrão de matrifocalidade e não sinônimo deste. Uma
vez que tais padrões podem ocorrer em diversas camadas sociais, nas relações estabelecidas pelos
membros da casa entre si, bem como entre parentes e amigos fora da casa, ou seja, a grande
família, que são fundamentais para sua identificação.
Uma pista importante para a compreensão de tal processo é que a matrifocalidade tem seu
desenvolvimento na ausência de vantagens econômicas particulares decorrentes de afiliação com
parentes paternos, em que se cria um espaço propício para o desenvolvimento de relações de
parentesco matrilineares, em destaque o papel da mãe como eixo da formação das relações
familiares do grupo doméstico.

Destarte a pobreza, a incerteza do ganho e o desemprego seriam


cúmplices predominantes, favorecendo a ocorrência de famílias
matrifocais (...) À medida em que vão crescendo, as crianças começam
a abandonar a escola para ajudar nas tarefas domésticas, no trabalho no
sitio, ou fazendo mandados. “Gradativamente a mulher se livra do
trabalho constante de cuidar das crianças e, ao mesmo tempo, começa a
trabalhar contribuindo para as despesas da casa” (SCOTT, p. 39).

Nas condições de pobreza, tal relação é acentuada, tornando-se insustentável a


manutenção afetiva, em que as separações tornam-se inevitáveis. Entretanto, segundo Scott, não
fica explícito se o homem abandona a mulher ou se a mulher expulsa o homem de casa. Se na
relação conjugal há forte expressão de fragilidade, o mesmo não ocorrerá na relação entre mães e
filhos. Já que a realização da masculinidade decorrente de uma postura/vivência social patriarcal
não permite o homem de realizar o papel de provedor que lhe é designado, transfere a
marginalidade econômica que sofre na rua para dentro de casa, possibilitando a o predomínio do
papel feminino enquanto teia de relações e estruturas reais e simbólicas. Nas palavras de Scott:

57
O enfraquecimento do papel masculino é duradouro, no sentido de que é
fruto de condições econômicas que ao se alteram com a passagem dos
anos. É vivido como algo que, de um lado, é generalizado ao grupo e, de
outro, é transitório aos atores individuais, fugindo a seus padrões de
expectativas (ibid.,p. 40).

Scott coloca questões que também se apresentam com sentido para a compreensão das
famílias, hoje. Se o homem, que é o patriarca potencial, não consegue controlar o mundo da rua
(“rua” como expressão do mundo masculino, em oposição ao feminino, o mundo da casa), ele
enfrenta a própria incapacidade de controlar o mundo da rua, impedido de exercer o poder da
casa. Como é que pode transportar sua experiência de dominado, numa experiência de dominador
efetivo da casa? (p.40). As raízes culturais e históricas podem ser compreendidos a partir de
processos históricos.
Ao apresentar dados estatísticos sobre a família cativa, Slenes aponta para o fato de
termos uma discrepância entre a população de homens e mulheres como já indicado
anteriormente, inclusive por outras análises. Uma vez que havia um número muito maior de
homens, o que poderia ser indício para uma recriação e reelaboração da poliginia, mas que não
houve sucesso e expressão na sociedade brasileira. Slenes não aprofunda a centralidade do papel
feminino, sem apropriar-se das feminilidades enquanto um perfil diferenciador na família negra.
Identifica que o mercado matrimonial era decidido pelas mulheres, que em número menor, fazia
desse mercado a possibilidade de escolha e preferência.
Partilhando de uma análise próxima à apresentada por Slenes (1999), Russel-Wood
(2005) afirma a existência da família cativa com casamentos estáveis e permanentes, indicando
que os filhos cresciam em famílias grandes, e a família escrava típica tinha dois cabeças, ou seja,
pai e mãe, e o primeiro tinha um papel ativo dentro da família. Os laços de parentesco
constituíam outro elemento de consolidação da identidade, como expresso no trecho abaixo.

Os laços de parentesco familiar ou consaguíneo, dentro da mesma geração


ou entre gerações, reais ou fictícias, mostraram-se sólidos e resistentes.
Foram reforçados pelas práticas de escolha de sobrenomes, que
buscavam unir diferentes gerações de parentesco consangüíneo assim

58
como reforçar laços entre membros de grupos de parentescos ampliado
(RUSSEL-WOOD, p. 237-238).

Russel-Wood chama a atenção para os trabalhos acadêmicos que tenderam a desdenhar o


papel do pai escravo. A escolha do nome ilustra, de outra maneira, como os homens cativos
buscavam preservar conscientemente os laços com a família de origem, reafirmando uma
identidade familiar independente da família de seu senhor. Aponta para o estabelecimento da
grande família na figura dos tios e tias, da obrigação de atender às responsabilidades que,
normalmente, só seriam assumidas por parentes ligados pelo sangue ou pelo casamento. Essa
tendência se mantém entre os libertos nas colônias da América do Norte, como expresso no
trecho abaixo:

Aqui o foco está noS ex-escravos. A capacidade adaptativa do afro-


americano e a flexibilidade dos valores escravos foram desafiadas pela
Guerra Civil e pelo que a ela se seguiu, a migração voluntária de 1880, às
vezes chamada de “Grande Êxodo”, e as migrações para o Norte urbano a
partir do Sul rural, no início do século XX. Os registros censitários
indicam que, apesar de forças tão destrutivas, a família negra preservou
sua coesão tradicional. A despeito das diferenças de status e localização, a
conclusão geral é que as obrigações familiares e de parentesco, as crenças
e os arranjos domésticos presentes entre os escravos das plantations das
colônias inglesas da América do Norte antes da Revolução Americana
(…). Esses valores profundamente herdados permitiram, primeiro ao
escravo e depois ao liberto, adaptar-se a realidades sociais, políticas e
econômicas em mutação (p. 441).

Ambas as análises apresentam as lutas cotidianas dos senhores e das instituições que os
respaldavam – Estado, Igreja – com o propósito de impedir ou ao menos manter o controle sobre
tais casamentos. Mas a resistência negra, que segundo Slenes e Russel-Wood, não nasceu em
terras americanas, mas aqui foram reinventadas, perpetuando elementos de ascendência africana.
Outro elemento comum nas análises é a identificação de que fatos/momentos/registros
apontam para o incentivo que muitos senhores davam para o casamento entre os cativos que,
segundo Slenes, poderia ser uma estratégia de “minar” a consciência coletiva da condição de
59
escravos, aproximando ao modelo branco/ocidental/cristão/católico de família e, por
consequência, afastando esses sujeitos de uma luta coletiva de superação de sua condição de
escravo. Russel-Wood cita exemplos de donos de escravos que os encorajavam a casar-se, dando
presentes e dotes a escravas por ocasião do matrimônio deixando legados para os escravos seus
filhos. É importante destacar que tais práticas são identificadas em toda a América colonial com
maior ou menor intensidade, de acordo com tempo/espaço.
Outro indício importante a respeito da matrifocalidade é apresentado por Russel-Wood,
que identifica o que define como pressões sociossexuais impetradas pelos senhores contra a
família cativa integrada, composta de pai, mãe e filhos, intensificando o papel da mãe e a
tendência das famílias escravas a serem matrifocais. Não eram garantidos a mulheres negras
casadas os mesmos estatutos que contemplavam as mulheres brancas, pois na dimensão
comercial dos processos típicos do escravismo, o fato de serem casados ou não, não tinha peso
nas decisões tomadas. A condição de casada, quer abençoada ou não pela Igreja, não dava à
escrava os privilégios e o reconhecimento do novo estado civil. Ou seja, as famílias eram
vendidas separadamente, mas geralmente os filhos ficavam com as mães.
Desse processo de pressão resultava desproteção e significativa incidência, segundo
Russel-Wood, de adultério ou concubinato praticados por donos brancos e que se apresentavam
com mais incidência em lares encabeçados por mulheres. O autor aponta que estas poderiam se
beneficiar da alforria, com seus filhos, além de usufruir das vantagens de embranquecerem. (p.
262).
A família matrifocal era mais a norma que a exceção. Era comum que mulheres negras e
mulatas encabeçassem lares nos quais não havia homem, devido ao abandono ou à morte. A
incidência do matrifocalidade passa a ser determinada pelas condições sociais, econômicas e
demográficas predominantes, produto das sociedades escravocratas. Podem-se encontrar, aqui,
um ponto de ruptura entre a perspectiva analítica de Slenes e Russel-Wood em que, para o
primeiro, a matrifocalidade não é apenas fruto das condições do cativeiro, e sim um processo
próprio de reelaborar, do outro lado do Atlântico, as sociedade africanas, suas casas e suas
memórias.
Outro elemento de distinção, no pensamento de Russel-Wood, diz respeito à negação da
maternidade, no cativeiro, como negação da reprodução do sofrimento. Segundo o autor, os
escravos tomavam medidas conscientes para impedir que os donos aumentassem suas posses pela

60
reprodução do cativeiro, e o aborto fazia parte dessa medida consciente para impedir que os
filhos tivessem uma vida de servidão para benefício financeiro de qualquer proprietário.
Tal problemática também é identificada no trabalho de Bernardo (2003). Ela observa que,
durante o século XVIII, o universo de mulheres negras livres era superior aos homens, e que o
teor da lei (no caso, a Lei do Ventre Livre, de 1870), referia-se à família negra como composta de
mulher e filhos. Para a autora, a Lei do Ventre-Livre acentuou uma forma alternativa de família,
que tem suas origens na diáspora e seus desdobramentos na escravidão e no pós-abolição. A
autora conclui que: Se na África as mulheres viviam com seus respectivos filhos emcasas
conjugadas à grande casa do esposo, num sistema poligínico, no Brasil, rompeu-se a relação da
mulher com o homem, permanecendo a mãe com seus filhos, florescendo a matrifocalidade ( p.
43).
Segundo Klass Woortmann (1987), a relação entre a noção de família e a de
respeitabilidade parece indicar que a primeira é, na cultura brasileira, aquilo que poderíamos
chamar de símbolo forte. A família é uma virtude moral. Dentro dela, o comportamento sexual é
mais notório no que se refere às mulheres. Em larga medida, tais diferenças culturais são
respostas adaptativas às condições concretas impostas por uma situação de classe. A forma da
vida familiar, da organização doméstica e das redes de parentesco diferem com relação aos
padrões dos “ricos” (pp. 58-59).
O próprio conceito de família, segundo o autor, pode muitas coisas: pode designar a
família doméstica, seja de socialização ou de procriação, e pode significar rede de parentesco. A
organização da família e seu funcionamento devem ser relacionados às relações de parentesco
mais amplas, mas o grupo doméstico é, não obstante, um ponto focal importante para o
entendimento da ideologia de papéis sexuais, elemento definidor da noção de família.
O modelo cultural brasileiro dominante, tal como a cultura ocidental em geral, estabelece
que o chefe do grupo doméstico é o marido-pai. O modelo traz implícito que grupo doméstico e
família são co-extensivos e equivalentes. Em outras palavras, o princípio governante é o sexo.
Mas a chefia, assim como a autoridade, são ambas relacionadas pelo modelo cultural ao
desempenho do papel de ganha-pão, por sua vez ligado ao de “doador de status”. Se a cultura
atribui a chefia ao marido-pai, concebido como realização do princípio masculino no contexto
das relações de família, a sociedade espera dele que sustente a família.

61
É necessário enfatizar que, no nível do modelo dominante, o fator crucial é o sexo: o
marido-pai é o chefe porque é do sexo masculino, tal como expresso pela noção de “cabeça do
casal”, incorporada pelo próprio sistema jurídico (WOORTMANN,1987. p. 65) .
Nos diversos casos analisados por Papali (2003) a respeito dos processos de libertas que
buscavam manter-se junto aos filhos, fica explícito o fato de que, quando da sentença positiva em
favor da mãe, esta muitas vezes tem que simular uma relação estável para conseguir a guarda de
seu filho. Muitos homens são incapazes de desempenhar seu papel de acordo com um modelo
ideal. Ademais, a chefia como categoria formal deve ser diferenciada da autoridade real: nem
sempre é o chefe do grupo doméstico quem efetivamente dá as ordens. Tal distinção vincula-se a
outra – a diferença entre chefe do grupo doméstico e chefe de família.
Woortmann nos ajuda a compreender tal distinção. Em casas onde vivem vários casais,
em famílias extensas, o marido é o chefe da família conjugal, mas não do grupo doméstico. As
famílias extensas tendem a ser matrilocais, fator adicional na redução da autoridade do marido.
Muitas vezes, a chefia da casa depende da propriedade da casa. Aqui se estabelece outra distinção
entre chefe da casa e chefe de família, em que só há equivalência nos dois casos: na situação de
uniões estáveis e chefia masculina. Essa situação é vivenciada pelo homem como sentimento de
diminuição, humilhação e constrangimento. Outro elemento importante é a questão da união
estável, sancionada pelo casamento formal, em que tanto o homem como a mulher partilham da
mesma família, o que pode ser compreendido como uma unidade ideológica, em contraste com o
grupo doméstico. Ao existirem diferentes tipos de famílias estáveis, a chefia deve ser distinguida
da dominância, pois mesmo nesses casos é a mulher que efetivamente organiza o campo
doméstico e toma as decisões relativas aos filhos. Dessa forma, grupo doméstico e família são
categorias culturais distintas. Segundo Woortmann, o casamento formal, para muitas mulheres, é
algo a ser evitado, pelo medo de perderem a independência e de ficarem subordinadas à
manutenção do próprio homem.
É importante considerar, a esse respeito, que os filhos são definidos, primariamente, como
sendo filhos da mulher. De fato, pode-se dizer que a noção de pai sociológico é relativamente
fraca. Se existe, obviamente, a noção de “genitor”, não se segue que exista necessariamente a
noção de “pater”. De qualquer forma, a “mater” tem procedência ideológica sobre o “pater”. Tal
concepção conduz a duas importantes consequências: a autoridade sobre os filhos concentra-se na
mãe, e os pais têm relativamente pouco a ver com eles. Os filhos permanecem com a mãe se e

62
quando a relação conjugal é dissolvida (ibid.,p.75). Aqui se remete novamente ao que
Woortmann definiu como modelo ideal “desistido”. Na cultura brasileira, assim como na cultura
ocidental de modo geral, ao as regras prescritivas e preferenciais estabelecidas não expressam
outros padrões matrimoniais existentes na sociedade.
Ademais, é preciso lembrar que todo o modelo ideológico é permeado, de forma
congruente, pelo fato de ser o status de “pater” e o princípio de “pater potestas”, severamente
limitado pela impossibilidade frequente de poder o marido “cantar de galo”. Mesmo durante a
permanência do vínculo conjugal, é duvidosa sua responsabilidade real, assim como sua
autoridade.
Subjacente a esses princípios e ao uso estratégico das relações de parentesco está a ideia
geral de que a prerrogativa é feminina, mais especificamente, da mãe. Os outros membros apenas
ajudam, mas não decidem. Já foi visto que “família” é um conceito mulher-centrado, e que o
mesmo pode ser distinguido do grupo doméstico. Este último poderá ser chefiado pelo homem,
caso se trate de um “homem de recursos”, mas será sempre gerenciado pela mulher, e é ela quem
toma as decisões. Entre estas, aquelas relacionadas aos filhos são consideradas as mais
importantes, principalmente as decisões sobre o número de filhos e sobre sua educação.
Na situação de pobreza, o homem não controla nada na sociedade. Em geral, é porque é
pobre – um “jogado fora”. A mulher pobre também pouco o faz, mas ela tem um domínio que é
seu próprio – a família. Assim, as mulheres usam certos símbolos tradicionais – “mãe”, “casa”,
“lar”, “rua” – redefinindo-os em seu modelo ideológico de sexo/raça/classe. (ibid.,p. 105).

1.4 O sagrado da família, a família do sagrado

O negro que veio para o Brasil não era apenas escravo, mas também africano. O navio
negreiro transportava não apenas corpos, mas também mentes e, com elas, padrões culturais.
Aqui vale retomar uma analogia feita por Gilroy, de que a imagem do navio em movimento, um
navio como sistema vivo, microcultural e micropolítico. Um processo contínuo de fluxos de
africanos significou uma contínua renovação de cultura africana, até meados dos século XIX.
Essas culturas africanas permaneceram e forneceram uma base ideológica para as
rebeliões, língua e religião, não exclui desse processo componentes ideológicos da organização
de parentesco trazidas da África, ainda que ressignificados

63
No entanto, o parentesco não é apenas organização. O parentesco e suas categorias são
parte de um modelo cosmológico que foi replicado através dos mitos, do ritual e da organização
do culto.
Segundo Woortmann, se a linhagem (instituição) não poderia sobreviver num meio social
incongruente – a não ser como integrante do parentesco metafórico dos grupos-de-cultos. Isto
retoma a perspectiva de Lévi-Strauss, que faz a distinção entre forma institucional e princípio
estrutural, em que a transposição da forma institucional não foi possível, e a estrutural foi através
da reincorporação ao sistema religioso, substituindo-se a linhagem pelo grupo-de-culto, expressos
por linhagem de parentesco.
Aqui, novamente, fica expresso que a pobreza e a demografia são variáveis para a
explicação de padrões familiares, inclusive do conceito de família centrada na mulher. No
entanto, ela não pode se sobrepor à possibilidade de influências africanas na explicação de certas
formas contemporâneas de família, consequentemente, de matrifocalidade.
Bernardo (2003) resgata diversos exemplos que indicam que a poliginia parece ter sido a
forma de família existente em grande parte da África negra. As mulheres africanas, pertencentes
às etnias fons e iorubás, exerceram em seus respectivos reinos um poder político. Durante a
escravidão, esse poder deve ter sido ressignificado. Bernardo afirma:

Percebe-se, assim, que o papel da mulher iorubá vai além do


desempenhado nas atividades econômicas. Ela é mediadora, não só das
trocas de bens econômicos, como também das de bens simbólicos. O
lugar social ocupado pela mulher iorubá, sem sombra de dúvida,
possibilita-lhe o exercício de um poder fundamental para a vida africana
(p. 34).

A autora alerta para a contradição com a situação no plano do real. O que indica que pode
ter ocorrido uma transformação: se não existiam condições de exercício do poder real, exercia-se
no plano do imaginário, através da religião (ibid., p. 50).
A preservação de princípios culturais e organizatórios de origem iorubá foi realizada na
Bahia através das casas de candomblé e das associações egbe. O grupo de culto é muito mais que
um agregado de pessoas que cultuam uma ou mais divindades e a casa é muito mais que o local
onde esse culto se realiza. Woortmann destaca:
64
De um lado, ele é um espaço ritual-simbólico que encerra, em sua própria
estrutura espacial, toda a cosmologia; de outro, é uma replicação, um
microcosmo, do espaço social africano. E, além disso, o “terreiro” é uma
verdadeira comunidade, ou um núcleo de comunidade, onde se socializam
as várias gerações (1987, p. 256).

Aqui também há a dominância é feminina no sistema de parentesco. São as mulheres que


concentram o poder nas organizações. Os Candomblés Baianos, o Tambor de Mina e a Casa
Nagô possuem suas origens no feminino. A família de santo é uma unidade matrifocal,
representada na base da unidade mãe-filhas. Mas também é uma linhagem, recriada no Brasil
como matrilinhagem, já que na tradição iorubá era patrilinear.
Não se quer, aqui, negar a existência de conflitos mais contemporâneos a respeito da
ampliação do papel masculino dentro das religiões de matrizes africana. Bem como o perfil de
classe em alteração, e as posições mais ou menos ortodoxas que envolvem essas questões, no
entanto, o foco deste trabalho é identificar os processos pelos quais a percepção e a realidade
familiar foi se consolidando tanto na família profana como na família sagrada, e em que medida a
família sagrada foi paradigma para a família profana.
O que se destaca é que os terreiros, fundados por mulheres de peso em suas sociedades de
origem, assim como entre os negros no Brasil, e a sua sucessão, continuaram a seguir
predominantemente a linha feminina. Na hierarquia da casa de culto, a mulher desempenha uma
série de funções centrais nos ritos e na presidência das cerimônias, bem como o zelo pela
organização da sua família de santo (seus filhos).
Tal ideologia não é “puramente” africana, mas antes um complexo processo histórico
envolvendo tanto componentes africanos quantos outros, ou reinterpretações dos primeiros, num
contexto de severas privações materiais.
O grupo de culto persiste e se expande porque preenche certas necessidades. Para o
antigo escravo, assim como para o negro libertado mas marginalizado, tal grupo com seu sistema
de crenças provê uma identidade, uma interpretação do mundo, uma verdade.
A casa de culto é um núcleo de integração, solidariedade e sociabilidade onde o indivíduo
que lá fora não é ninguém pode viver seu próprio mundo reintegrado, e onde laços de parentesco
são recriados, garantindo ao sujeito uma lugar social na estrutura familiar.
65
Capítulo 2

(DES) E (RE) CONSTRUÇÃO DOS FEMININOS

2.1 Aspectos históricos de um feminino hegemônico

O lugar das mulheres na sociedade Ocidental foi marcado, historicamente, pelo silêncio
que a elas era imputado, refletido também na ausência de registros históricos. Confinadas ao
silêncio, as mulheres inscrevem-se nele como ornamentos, estritamente disciplinadas pela moda
que codifica sua aparência, roupas e cuidados, principalmente para as mulheres burguesas, a fim
de significar a fortuna e posição do marido.
Os arquivos privados foram e têm sido considerados fontes essenciais, na medida em que
as mulheres se expressam muito neles de forma muito mais efusiva. Pelo fato de serem
secretárias da família, elas foram produtoras desses arquivos. Livros de anotações,
correspondências familiares, diários íntimos (prática recomendada às moças por seu confessores
e, mais tarde, por seus pedagogos) como um meio de controle de si mesmas constituem um
abrigo para os escritos das mulheres. Assim como a escrita, a leitura era elemento proibido. Nas
palavras de Perrot:

A morte súbita, os armários esquecidos das grandes casas provinciais são


os únicos guarda-fogos deste incêndio. A imagem das mulheres atando
fogo em seus cadernos íntimos ou em suas cartas de amor na noite de
sua vida sugere a dificuldade feminina de existir de outra forma além do
fugaz instante da palavra e, consequentemente, a dificuldade de
reencontrar uma memória desprovida de traços (2005, p. 37).

Essa história é encoberta por uma espessa mortalha tecida pelo desejo e pelo medo dos
homens. No século XIX, a mulher está no centro de um discurso abundante, repetitivo, obsessivo,
amplamente fantasioso, que toma emprestado aos elementos as suas dimensões.

As vezes é a mulher fogo, devastadora das rotinas familiares e da ordem


burguesa, devoradora, calcinando as energias viris, mulher das febres e
66
das paixões românticas, que a psicanálise, guardiã da paz das famílias,
colocará na categoria de neuróticas. Filhas do diabo, mulher louca,
histérica, herdeira das feiticeiras de antanho. Outras vezes a mulher água,
fonte de frescor para o guerreiro, de inspiração para o poeta, rio
sombreado e tranquilo onde podemos nos banhar, onda lânguida cúmplice
dos almoços sobre a relva; mas também, água dormente, lisa como um
espelho, estagnada como belo lago submisso; mulher doce, passiva,
amorosa, quieta, instintiva e paciente, misteriosa, um tanto traidora, sonho
dos pintores impressionistas (2005, pp.199-200).

Segundo a historiografia, no século XIX a bibliografia é uma atividade masculina. As


mulheres se retraem em matérias mais humilde, compreendidas como ninharia, presentes
recebidos em um aniversário ou festa. Bibelôs trazidos de uma viagem preenchem vitrines,
definidas por Perrot (2005) como “pequenos museus da lembrança feminina”, como os estojos,
as caixinhas e medalhões em que elas guardam seus tesouros: mechas de cabelo, flores secas,
jóias de família, miniaturas, depositários de lembranças e emoções. Ainda nas palavras de Perrot,

Estas práticas implicam na ideia de uma capitalização do tempo, cujos


instantes privilegiados podem ser revividos pela rememoração,
reinterpretados, com uma peça de teatro representada sem cessar. Elas
inscrevem-se em um século XIX que faz do privado o lugar da felicidade
imóvel, cujo palco é a casa, os atores, os membros da família e as
mulheres as testemunhas e as cronistas (p. 38).

Se a moça solteira se atreve timidamente a apropriar-se de seu diário, a mulher casada, no


entanto, renuncia a ele. Não há espaço para tal forma de escrita e de pensamento no espaço
conjugal. Como a escrita, a memória feminina é familiar, semi-oficial.

(…) quantitativamente pequena, a escrita feminina é estreitamente


específica: livros de cozinha, manuais de educação, contos recreativos ou
morais constituem sua maioria. Trabalhadora ou ociosa, doente,
manifestante, a mulher é observada e descrita pelo homem. Militante, ela
67
tem dificuldade em se fazer ouvir pro seus camaradas masculinos que
consideram como normal ser porta-vozes. A carência de fontes diretas
ligada a esta perpétua e indiscreta mediação forma um quadro temível.
Mulheres emparedadas, como encontrar-vos? (2005, p.198).

Assim, os modos de registro das mulheres estão ligados à sua condição, a seu lugar na
família e na sociedade, mesmo acontece com seu modo de rememoração, da encenação
propriamente dita do teatro da memória. Ao menos para as mulheres de outrora e para o que
resta do passado nas mulheres de hoje, é a memória do privado, voltada para a família e para o
íntimo, aos quais elas estão de certa forma relegada. A transmissão das histórias de família, feita
geralmente de mãe para filha, os álbuns de fotografias, ao quais, juntas, elas acrescentam um
nome, uma data, destinados a fixar identidades. “As memórias das mulheres é verbo. Ela está
ligada à oralidade das sociedades tradicionais que lhe confiavam a missão de contadora da
comunidade da aldeia” (2005, p. 40).
Com relação a essa marca da oralidade, Perrot discorre sobre a complexidade que
acompanha essa discussão:

Essas experiências permitirão talvez um dia analisar mais precisamente o


funcionamento da memória das mulheres. Há, no fundo, uma
especificidade? Não, sem dúvida, caso tentemos ancorá-la em uma
natureza que não se poder encontrar e no substrato biológico. Sim,
provavelmente, na medida em que as práticas socioculturais em ação na
tripla operação que constitui a memória – acumulação primitiva,
rememoração, ordenamento do relato – estão imbricadas com as relações
masculinas/femininas reais e, como elas, são produtos de uma história
(2005, p. 43).

No Brasil do século XIX, presenciamos o nascimento de uma nova mulher nas relações da
chamada família burguesa, agora marcada pela valorização da intimidade e da maternidade. Um
sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos educados e esposa dedicada ao marido, às
crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo representavam o ideal de retidão e
probidade, um tesouro social imprescindível.

68
Nesses lugares, a ideia de intimidade se ampliava e a família, em especial a mulher,
submetia-se à avaliação e opinião dos “outros”. A mulher de elite passou a marcar presença nos
cafés, bailes, teatros e certos acontecimentos da vida social. Se agora era mais livre – “a
convivência social dá mais liberalidade às emoções” , não somente o marido ou o pai vigiavam
seus passos, mas sua conduta era também submetida aos olhares atentos da sociedade. Essas
mulheres tiveram de aprender a comportar-se em público e a conviver de maneira educada, como
atesta o trecho abaixo:

Cada vez mais é forçada a ideia de que ser mulher é ser quase
integralmente mãe dedicada e atenciosa, um ideal que só pode ser
plenamente atingido dentro da esfera da família “burguesa e higienizada”.
Os cuidados e a supervisão da mãe passam a ser muito valorizados nessa
época, ganha força a ideia de que é muito importante que as próprias
mães cuidem da primeira educação dos filhos e não os deixem
simplesmente soltos sob influência de amas, negras ou “estranhos”,
“moleques” da rua (D’Incao, 2002, p. 229).

Dessa dependência mitificada, o rico comerciante ou o profissional liberal, o grande


proprietário investidor ou o alto funcionário do governo, todos passam a depender das mulheres
no que tange ao sucesso da família, seja em manter seu elevado nível e prestígio social já
existentes, ou em empurrar o status do grupo familiar para cima.
Num certo sentido, os homens eram bastante dependentes da imagem que suas mulheres
pudessem traduzir para o restante das pessoas de seu grupo de convívio. Em outras palavras,
significavam um capital simbólico importante, embora a autoridade familiar se mantivesse em
mãos masculinas do pai ou do marido, esposas, tias, filhas, irmãs, sobrinhas (e serviçais)
cuidavam da imagem do homem público; esse homem aparentemente autônomo nas questão de
política e economia, era rodeado por um conjunto de mulheres das quais esperava que o
ajudassem a manter sua posição social.
A qualidade dos sentimentos também passou por transformações importantes no século
XIX. Convém não esquecer que a emergência da família burguesa, ao reforçar no imaginário a
importância do amor familiar e do cuidado com marido e filhos. O papel feminino foi redefinido
e, ao mesmo tempo, reservou para a mulher novas e absorventes atividades no interior do espaço
69
doméstico, o que envolvia outras instituições para além da família, como expresso na citação
abaixo:

Percebe-se o endosso desse papel por parte dos meios médicos,


educativos e da imprensa na formulação de uma série de propostas que
visavam “educar” a mulher para seu papel de guardiã do lar e da família –
a medicina, por exemplo, combatia severamente o ócio e sugeria que as
mulheres se ocupassem ao máximo do afazeres domésticos. Considerada
base moral da sociedade, a mulher de elite, esposa e mãe da família
burguesa deveria adotar regras castas no encontro sexual com o marido,
vigiar a castidade das filhas, constituir uma descendência saudável e
cuidar do comportamento da prole (D’Incao, 2002, p.230).

O costume da vigilância e do controle exercido sobre as mulheres e seu posterior


afrouxamento no decorrer do século XIX, com a ascensão dos valores burgueses, estavam
condicionados ao sistema de casamento por interesse. O afrouxamento da vigilância e do controle
sobre os movimentos femininos foi possível porque as próprias pessoas, especialmente as
mulheres, passaram a se autovigiar. Aprenderam a se comportar. Ao passo que garantir a
virgindade, que esse era um dispositivo para manter o status da noiva como objeto de valor
econômico e político, era sustentar o sistema de herança da propriedade que garantia linhagem da
parentela.

2.2 Sobre a mulher popular

Quanto às mulheres do povo, fala-se delas somente quando seus murmúrios inquietam as
estruturas sociais, e quando essas ameaçam subverter com violência.
O século XIX levou à divisão das tarefas e à segregação sexual dos espaços a seu ponto
máximo, em que o lugar das mulheres, restrito à maternidade e ao lar a delimitam totalmente. A
participação no trabalho assalariado é temporária, ritmada pelas necessidades da família, que a
comanda. A mulher é remunerada com um salário complementar, condicionada às tarefas
chamadas não-qualificadas, subordinadas e tecnologicamente específicas.

70
Diferentemente da “fazendeira” (rural) e da “patroa” (burguesa), a dona-de-casa é, na
cidade do século XIX, um tipo de mulher importante e relativamente recente. Sua relevância está
ligada à importância fundamental da família, velha realidade investida de múltiplas missões,
entre quais a gestão da vida cotidiana. Sua novidade reside em sua vocação quase exclusiva para
os “trabalhadores domésticos”, no sentido mais amplo do termo. A unidade de lugar, associando
em um mesmo espaço domicílio e trabalho, produção e consumo, é favorável a essa alternância,
de resto, limitada. Por outro lado, o chefe da família é o homem. O “dono-de-casa” – o termo
cunhado no século XVI – designa o chefe dessa empresa que é família (Perrot, 2005, p. 201).
As mulheres empregam uma extrema engenhosidade para encontrar, no múltiplos tráfico
das cidades das quais elas conhecem todos os recantos, recursos complementares que elas
empregam para fechar o orçamento da família, para dar-lhe alguns pequenos prazeres ou ainda
que elas separam como reserva para os dias e estações difíceis. Em tempos de crise ou de guerra,
essa contribuição marginal torna-se essencial. As mulheres ativam-se, então, em todos os
sentidos. Elas nunca trabalham tanto quanto nas situações em que os homens estão sem trabalho.
Elas vivenciam diferentemente o tempo econômico, as crises e as guerras. “Apesar de tudo, a
dona-de-casa depende do salário de seu homem. Ela sofre com isso e recrimina, chegando até a
ser agredida” (ibid., p. 202).
Nas revoltas, as mulheres intervêm coletivamente. Jamais armadas, é com seus corpos que
elas lutam, com o rosto descoberto, as mãos para a frente. Mas, sobretudo, elas usam sua voz, que
soa nas multidões famintas.

Iniciadoras de revoltas, as mulheres estão, além disso, presentes na


maioria dos tumultos populares na primeira metade do século: revoltas
florestais em que as mulheres defendem o direito à lenha, tão importante
quanto o pão, para os pobres; revoltas fiscais, tumultos urbanos de todo o
tipo (ibid., p. 210).

A rede sonora se amplia e desestrutura:

(…) as mulheres falam, inicialmente entre elas, na sombra do gineceu ou


da casa; mas também no mercado, no lavadouro, local de mexericos
temido pelos homens, que têm medo de suas confidências. O incessante
71
murmúrio acompanha, na surdina, na vida cotidiana. Ele exerce múltiplas
funções: de transmissão e de controle, de troca e de rumor. As mulheres
contam, dizem – e maldizem – cantam e choram, suplicam e rezam,
clamam e protestam, tagarelam e zombam, gritam e vociferam. A voz das
mulheres é um modo de expressão e uma forma de regulação das
sociedade tradicionais onde predomina a oralidade (ibid, p. 317).

O que é recusado às mulheres é a palavra pública. Sobre ela pesa uma dupla proibição,
cidadã e religiosa. No entanto, elas são o coro da cidade. Requisitadas, elas aclamam os heróis,
lamentam-se nos cortejos fúnebres; mas sempre em grupo anônimos e não como uma pessoa
singular.
A mulher do povo tem mais independência gestual. Seu corpo continua livre, sem
espartilho, suas amplas saias prestam-se à fraude, em que as mulheres simulavam a gravidez para
passar sal sob o nariz dos guardas da alfândega de pagamento de imposto; a dona-de-casa com
os cabelos à mostra, essa mulher é um artigo inflamável cujas reações são temidas pelas
autoridades, e que devem ser controladas:

(…) homens mudos, que esqueceram quase tudo o que não tem relação
com a vida do trabalho; mulheres falantes, que devem apenas deixar
brotar as lembranças, desde que as interroguemos sozinhas: o homem tem
demais o hábito de impor o silêncio às mulheres, de taxar suas afirmações
como bobagens, para que as mulheres não ousem falar em sua presença
(2005, p. 217).

No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, grande parte do proletariado é constituído
por mulheres e crianças. Apesar das muitas greves e mobilizações políticas que realizaram contra
a exploração do trabalho nos estabelecimentos fabris entre 1890 e1930, as operárias foram, na
grande maioria das vezes, descritas como “mocinhas infelizes e frágeis”, desprotegidas e
emocionalmente vulneráveis aos olhos da sociedade. Segundo Margareth Rago (2002) em
Trabalho feminino e sexualidade, as mulheres eram vistas como Frágeis e infelizes para os
jornalistas, perigosas e ‘indesejáveis’ para os patrões, passivas e inconscientes para os

72
militantes políticos, perdidas e “degeneradas” para os médicos e juristas, as trabalhadoras
eram percebidas de vários modos. (p. 579).
A maior parte da documentação disponível sobre o universo fabril foi produzida por
autoridades públicas, como médicos higienistas, responsáveis também pela definição dos códigos
normativos de conduta, por policiais, responsáveis pela segurança pública; por industriais,
receosos das mobilizações operárias e por militantes anarquistas, socialistas e posteriormente,
comunistas, preocupados em organizar e conscientizar politicamente o proletariado. Isso significa
que lidamos muito mais com a construção masculina da identidade das mulheres trabalhadoras do
que com sua própria percepção de sua condição social, sexual e individual.
Sem rosto, sem corpo, a operária foi transformada numa figura passiva, sem expressão
política nem contorno pessoal. Um expressão do trabalho feminino branco, composto por povos
de diversas origens européia, contingente parte do processo de imigração incentivado pelo
governo brasileiro, com a abolição da escravatura.
O mundo do trabalho, para essas mulheres, se restringia à indústria de fiação e tecelagem,
que possuía escassa mecanização. Em 1901, um dos primeiros levantamentos sobre a situação da
indústria no estado de São Paulo constata que as mulheres representavam cerca de 49,95% do
operariado têxtil, enquanto as crianças respondiam por 22,79%. Em outras palavras, 72,74% dos
trabalhadores têxteis eram mulheres e criança. À medida em que avançam a industrialização e a
incorporação da força de trabalho masculina, as mulheres vão sendo expulsas.
Da variação salarial à intimidação física, da desqualificação intelectual ao assédio sexual,
elas tiveram sempre de lutar contra inúmeros obstáculos, que não se limitavam ao processo de
produção, começavam pela própria hostilidade com que o trabalho feminino fora do lar era
tratado, no interior da família. Os pais desejavam que as filhas encontrassem um “bom partido”
para casar e assegurar o futuro, e isso batia de frente com as aspirações de trabalhar fora e obter
êxito em suas profissões.
Após a abolição, as mulheres negras dos escravos continuaram trabalhando nos setores
mais desqualificados, recebendo salários baixíssimos e péssimo tratamento, questão de que
trataremos minuciosamente no próximo item.
Segundo Rago, os documentos oficiais e as estatísticas fornecidas por médicos e
autoridades policiais revelam um grande número de negras e mulatas entre empregadas

73
domésticas, cozinheiras, lavadeiras, doceiras, vendedoras de rua e prostitutas, e suas fotos não se
encontram nos jornais de grande circulação do período (p. 582).
Contrastando com o texto das notícias que relatavam crimes passionais ou “batidas
policiais” nos bordéis e casas de tolerância, nos jornais, as fotos ilustrativas revelavam meretrizes
brancas, finas e elegantes, lembrando muitas vezes as atrizes famosas da época.
Usavam todos os recursos de uma farmacopéia multissecular, conhecem cem maneiras de
aliviar as pequenas dores cotidianas que deixam tantas vezes a medicina erudita desarmada. Os
“remédios de mulheres” revelam uma possibilidade real ao sofrimento do povo, mas também em
conservar sua autonomia corporal. Dissonante em relação ao discurso do progresso, ela é
perigosa não somente por ser sempre suscetível de alimentar uma resistência, mas ainda mais por
manter na dissidência aos olhos do poder.

2.3 Com quantos tabuleiros se faz a luta? A construção do feminino negro no Brasil

Apesar de a mulher negra fazer parte de um universo em que ela pode ser definida como
“mulher popular”, cabe ressaltar as condições vivenciadas por ela numa sociedade que conjuga
exclusão social e racismo.
No Brasil, a colonização absorveu aproximadamente quatro milhões de homens e
mulheres, de diversas populações africanas para exercerem múltiplas atividades e funções na
construção de cada região do país.
As africanas desempenharam os mais diferentes papéis, desde de tarefas domésticas até a
lida diária nas terras. No interior das casas-grandes, preparavam a comida, lavavam e efetuavam
todos os afazeres cotidianos para as famílias escravocratas. Em todas as atividades havia a
presença da mulher escravizada.
Como extensamente ilustrado na iconografia, dos primeiros quatro séculos, essas
mulheres de origem africana remontaram na diáspora o universo de “cores, sons, mistérios,
aromas e sabores que guardavam na memória” (SCHUMAHER; BRAZIL,2007, p. 61).
As vendedeiras constituíam um grupo bastante heterogêneo que, no dia-a-dia, circulavam
e apropriavam-se dos espaços urbanos, quase sempre criando rimas e equilibrando seus
tabuleiros, gamelas e cestos sobre a cabeça. As mulheres livres e libertas, presenças mais
numerosas no vaivém desse comércio, experimentavam uma situação diferente daquelas

74
escravizadas, pois não sofriam interferências em seus negócios e nos resultados dos produtos
comercializados (Ibid., p. 62).
Seu papel econômico era fundamental, transformavam-se assim em única ou a mais
importante fonte de renda das famílias de pequenos produtores que habitavam nos núcleos
urbanos do Brasil escravista. Conseguindo inclusive ao final da jornada ou da semana de trabalho
nas ruas e mercados, pagar ao “senhor” o valor previamente estipulado pelos produtos, guardar a
quantia necessária para comprar sua própria alforria como a de seus filhos e companheiros.
Para além do aspecto econômico, o cotidiano das “ganhadeiras” significava também a
possibilidade concreta de se manterem distantes dos rígidos controles e vigilâncias senhoriais,
através destes serviços alcançavam uma relativa liberdade de ir e vir, quando e para onde
queriam.
Cabe aqui um trecho que expressa o papel desestabilizador na sociedade escravista que
essas mulheres tiveram:

A forra Eva Maria do Bonsucesso, em julho de 1811, armou, como fazia


todos os dias, seu tabuleiro de couves e bananas na antiga rua da
Misericórdia, na cidade do Rio de Janeiro. Importunada por uma cabra
que comeu seus produtos, a quitandeira reagiu espancando o animal, que,
para sua surpresa, pertencia ao príncipe Dom Pedro. Irritado com a
situação, o funcionário responsável pelo animal esbofeteou a mulher, e a
questão foi parar na justiça. Após enfrentar corajosamente o processo e
contar com mais testemunhas a seu favor, Eva conseguiu meter na cadeia
o homem branco que a agredia. Em 1849, Joana Francisca da Conceição,
de 60 anos, reclamava do pagamento de altíssimos impostos, “onerosos
para uma pobre velha”. Em Salvador, no ano de 1850, a africana liberta
Margarida Ignácio de Medeiros recorria ao presidente da província baiana
para “aliviá-la das multas onerosas” (SCHUMAHER; BRAZIL, pp. 64-
65).

Elas eram vistas como um grande perigo e ameaça pelas autoridade escravocratas, por
terem liberdade de circulação, representavam elo de integração, resistência e comunicação das

75
relações da população negra. Espalhadas por regiões estratégicas das cidades, elas percorriam
ruas e vielas não só anunciando os mais variados produtos, mas também propalando ideias.

De um continente ao outro, as mulheres negras movimentaram e


deslocaram um mundo. Vinham e voltaram pelos seus sentimentos e
saberes, transformavam memórias em rimas e maneiras de ser.
Certamente poder-se supor que das lembranças que trouxeram da vida na
África, estas atividades eram uma das saudades que mais gostavam de ter
(idi., ibid).

Ao estudar os mundos femininos nas primeiras décadas da República, na cidade de


Salvador, Alberto Heráclito Ferreira Filho (2003) identifica elementos presentes naquela
realidade, também presentes em São Paulo e Rio de Janeiro no que tange à presença da mulher
negra no mercado de trabalho.
O preparo de muitas iguarias para a mercância, antes de a matéria-prima ser beneficiada
pela indústria, demandava esforços e conhecimentos particulares, e eram transmitidos como
segredos cochichados de geração em geração por uma legião de parentas, comadres e amigas. O
milho e o arroz do mingau, depois de bem catados, eram moídos numa pedra retangular com a
superfície marcada por sulcos e uma “mão” – a peça suplementar que favorecia o atrito, também
de pedra e de formato roliço (FILHO, 2003, p. 44). Recorre-me a receita do mucunzá de Vó
Erotides:

O milho deve ser colocado de molho um dia antes. Coloque na panela o


milho, o açúcar, a água e um pouco de manteiga. Não esqueça daquela
pitada de sal – isso é o que dá o sabor. Não cozinhe em fogo alto para não
pegar no fundo da panela. Deixe ficar bem macio – a pior coisa é
mucunzá duro. Tempere com leite, coco, canela e cravo. Deixe ferver para
pegar os temperos (aos 80 anos, em algum momento da década de 1970).

As mulheres negras comercializavam o acarajé ou abará – bolinhos feitos de feijão –em


folhas novas de bananeira.

76
Heráclito Filho destaca o fato de que o trabalho feminino é incorporado no Candomblé
em sua estratégia de sobrevivência, uma vez que prescrevia que as atividades de ganho fossem
diversificadas como forma de as filhas-de-santo arranjarem dinheiro para o cumprimento das
obrigações rituais. De acordo com o orixá, a atividade variava. Assim, as filhas de Iansã e Xangô
vendiam acarajé; as de Ogum, vísceras de boi; as de Omolu, sarapatel e moqueca de peixe. Já
Oxalufã, Oxaguiã e Oxalá prescreviam o acaçá, o cuzcuz, o mingau e a cocada branca, e Oxum a
venda dos doces.
O trabalho doméstico, outro espaço fortemente marcado pela presença dessas mulheres,
era atividade de quatro de ou cinco mulheres que declaram profissão. Esse trabalho constituía-se
no mais aviltante, visto ser o que mais diretamente evocava a ascendência da antiga realidade do
escravismo urbano.

O adágio popular “a conversa ainda não chegou na cozinha” espelha, em


termos das sociabilidades, a desqualificação das relações que se
desenvolviam em torno do fogão”. Reconhecer-se “no seu lugar”, isto é,
como habitante do território da cozinha, era condição mais que necessária
para a manutenção da criada na rígida hierarquia de poderes do lar
(FILHO, 2003, p. 53).

Essa atividade se iniciava com meninas da mais tenra idade, para que elas fossem
aprendendo o ofício. Chamadas de “catarinas”, essas meninas tinham de aprender a cozinhar,
lavar, arrumar, engomar, raciocinar como pessoa adulta, ter língua freada e jamais se lembrar de
que eram crianças.
Dentre as várias lembranças familiares das mulheres, o trabalho doméstico está
indubitavelmente entre as mais marcantes:

Eu era tão pequena quando fui trabalhar na casa das brancas que elas
colocavam um banquinho pra eu subir para passar roupa, com aquele
ferro à lenha pesado. Eu cuidava da roupa das crianças. Tinha que ser toda
engomada e não podia ter nenhuma manchinha. Eu nem sabia o que era
brincar (memórias do cotidiano familiar).

77
Esses espaços representavam lugares de resistência. O desmazelo no trabalho e a
suspensão das tarefas cotidianas também foram modos de pressionar. Muitas cozinheiras e
arrumadeiras não executavam satisfatoriamente um serviço quando ficavam sob a brutalidade da
casa grande.
A participação dessas mulheres em revoltas começam a ter destaque nas análises do
período. Em 1823, por volta dos seus 20 anos, Maria Felipe de Oliveira liderou cerca de quatro
dezenas de mulheres, conhecidas como “vedetes”, homens e índios na queima de quarenta e duas
embarcações portuguesas de guerra que estavam aportadas na Praia do Convento, em Salvador.
No Rio de Janeiro, na cidade de Vassouras, foram presos 21 escravizados e um grande número de
mulheres, no qual se destacava Mariana Crioula, mucama e costureira, que assumiu a liderança
do quilombo das montanhas da Mantiqueira. Em 1835, tia Ana mobilizou outros cativos para um
dos levantes do Ceará, ocorrido numa propriedade no município de Viçosa, onde a propriedade
foi saqueada e incendiada. A destruição foi tamanha que seu proprietário se enforcou, de
desespero. Sem dúvida, o levante mais conhecido na historiografia, com participação feminina,
foi a Revolta dos Malês. A figura mais emblemática foi Luiza Mahin, quitandeira que se dizia
princesa africana da região hoje conhecida como Benin. Como quitandeira, tinha grande
mobilidade e conhecia as vielas de Salvador. “O fato de dominar o funcionamento das ruas
tornava relativamente fácil sua atuação como articuladora dos revoltosos, trocando bilhetes entre
eles, sob a proteção de crianças que, a pretexto de comprar suas iguarias, ajudavam na missão
(SCHUMAHER; BRAZIL, p. 95).
Segundo os dados do período apresentados por Schumaher e Brazil (2007),
correspondente ao censo de 1849, havia na capital do Império 6.042 libertas (56%) para 4.690
libertos (44%). Esses dados estavam relacionados a vários fatores, entre eles o fato de as
mulheres mais velhas custarem menos que os homens e que necessitava de menos dinheiro para a
compra da alforria, mesmo que tivessem que trabalhar muito mais devido à desvalorização do seu
trabalho.
Essas mulheres inventaram, recriaram e experimentaram em seus afazeres cotidianos, nas
ruas, nas matas, senzalas, casas-grande e tribunais, diferentes maneiras de sentir e imprimir
outros significados para a palavra liberdade e das lutas empreendidas para consegui-la.

78
2.4 O feminino no campo analítico, das diferenças à estruturação das desigualdades

As mulheres entram no espaço público e nos espaços do saber transformando


inevitavelmente estes campos, recolocando as questões, questionando, colocando novas questões,
transformando radicalmente. Para Rago (1998), há um aporte feminista feminino/feminista
específico, diferenciador, energizantes, libertário, que rompe com um enquadramento conceitual
normativo. Talvez daí mesmo a dificuldade de nomear o campo da epistemologia feminista.
Esse aporte se pauta no questionamento da produção do conhecimento entendida como
processo racional e objetivo para se atingir a verdade pura e universal, e a busca de novos
parâmetros da produção do conhecimento. Aponta, então, para a sua superação do conhecimento
como um processo meramente racional: as mulheres incorporam a dimensão subjetiva, emotiva,
intuitiva no processo de conhecimento, questionando a divisão corpo/mente, sentimento/razão.
O feminismo propõe uma nova relação entre teoria e prática. Delineia-se um novo agente
espistêmico, não isolado do mundo, mas inserido no coração dele, não isento e imparcial, mas
subjetivo e afirmando sua particularidade. Segundo Rago:

(…) um processo de conhecimento construído por indivíduos em


interação, em diálogo crítico, contrastando seus diferentes pontos de
vista, alterando suas observações, teorias e hipóteses, sem um método
pronto. Reafirma-se a ideia de que o caminho se constrói caminhando e
interagindo (1998, p.12).

Feministas assumidas ou não, as mulheres forçam a inclusão do temas que falam de si,
que contam sua própria história e de suas antepassadas e que permitem entender as origens de
muitas crenças e valores, de muitas práticas sociais frequentemente opressivas e de inúmeras
formas de desclassificação e estigmatização. De certo modo, o passado já não nos dizia e
precisava ser re-interrogado a partir de novos olhares e problematizações, através de outras
categorias interpretativas, criadas fora da estrutura falocêntrica espetacular. O campo das
experiências históricas consideradas dignas de serem narradas ampliou-se consideravelmente e
juntamente à emergência dos novos temas de estudo, isto é, com a visibilidade e dizibilidade que
ganharam inúmeras práticas sociais, culturais, religiosas, antes silenciadas, novos sujeitos
femininos foram incluídos no discurso histórico, partindo-se inicialmente das trabalhadoras e
79
militantes, para incluir-se em seguida, as bruxas, as prostitutas, as freiras, as parteiras, as loucas,
as domesticas, as professoras, entre outras (ibd., pp.13- 14).

Assim como outras correntes de pensamento, a teoria feminista propunha


que se pensasse a construção cultural das diferenças sexuais, negando
radicalmente o determinismo natural e biológico. Portanto, a dimensão
simbólica, o imaginário social, a construção dos múltiplos sentidos e
interpretações no interior de uma dada cultura passavam a ser priorizados
em relação às explicações econômicas ou políticas (RAGO, 1998, p.15).

O campo do conhecimento torna-se lugar privilegiado de construção das identidades. É o


que nos aponta Birulés (1992). Segue trecho de sua reflexão:

Pero nuestra identidad no depende exclusivamente de la capacidad que


mostremos para re-propiarmos del pasado, no sólo nos medimos com los
fragmentos de lo “ya sido”, sino que, gracias al rodeo de la narración,
expresamos también lo que “todavía no es”. Es dicer, en el mismo gesto
nos decimos a nosotras las cosas y de cómo nos gustaría que fuesen.
Desde este punto de vista, quizás no tenga nada de contradictorio
afirmar que las mujeres, en cierto sentido, debemos entrar en el futuro
retrocediendo (p. 17).

A busca da origem da supremacia do masculino no pensamento ocidental tornou possível


compreender que lugar o feminino ocupa na raiz desse pensamento.
A partir da análise de Perrot (2005), Rago (1998), Birulés (1992) e Wilshire (1997), e
outras, segue-se o argumento de que historicamente consolidou-se que o conhecimento somente
poderia ser apropriado e verificado a partir de um lugar público.
É na análise de Bernardo (2003) e Wilshire (1997) que o mito é retomado como
possibilidade de compreensão e percepção da realidade social no que tange aos lugares de/para
homens e mulheres. Segundo Wilshire, muito dos conhecimentos no mito primordial, arcaico,
foram criados a partir de lugares privados, como os sonhos e o corpo das mulheres, e podem ser
comunicados e compreendidos através de enormes distâncias geográficas e diferenças culturais –

80
mesmo que seus criadores estejam separados de seus ouvintes modernos por milhares de anos (p.
107).
Entretanto, reconhece que, na cultura ocidental, a antiga sabedoria do mito é,
infelizmente, fechada em código, escondida da maioria dos leitores modernos. Embora as
palavras sejam reconhecíveis e aparentemente inteligíveis, o valor escapa. O Mito, como o sonho,
usa a linguagem simbólica de imagens e metáforas para revelar suas verdades, em vez da
linguagem da Literatura, a única em que se espera e se respeita nesta época de exatidão
matemática e científica. O que só uma consciência não literal, ampliada, pode interpretar as
imagens e metáforas do Mito.
No Mito, o conhecimento é frequentemente expresso numa abundância de metáforas
inexatas constantemente em mudança, aparentemente ilógicas. Os mitos, como os sonhos,
seguem uma linha sinuosa. Na palavras de Bernardo, “ele revela escondendo”. Até que comecem
a surgir os padrões maiores, as imagens do Mito começarão a fazer sentido. Vejamos o que revela
o mito a seguir:

Em certa ocasião, os homens estavam preparando grandes festas em


homenagem aos Orixás. Por um descuido inexplicável, se esqueceram de
Iemanjá. Iemanjá, furiosa, conjurou o mar e o mar começou engolir a
terra. Dava medo ver Iemanjá, lívida, cavalgar a mais alta das ondas com
seu abebé de prata na mão direita e o ofá da guerreira preso às costas. Os
homens, assustados, não sabiam o que fazer e imploraram ajuda a
Obatalá. Quando a estrondosa imensidão de Iemanjá já se precipitava
sobre o que restava do mundo, Obatalá se interpôs, levantou seu apaxoró e
ordenou a Iemanjá que se detivesse. Obatalá criou os homens e não
consentiria na sua destruição. Por respeito ao criado, a dona do mar
acalmou suas águas e deu por finda sua cólera revanche. Já estava
satisfeita com o castigo imposto aos imprudentes mortais (PRANDI,
2001, p. 395).

Reconhecidamente, é diferente do tipo de sentido ao qual estamos acostumados, porque o


Mito, tal qual a física moderna, não tem nenhum compromisso inflexível com a lógica. No
entanto, revela o que as estruturas escondem. O poder, como sinônimo de masculino, consolidado
81
no pensamento ocidental, é desmontado na sua expressão de permanência e ausência de
temporalidade. O Mito revela que há um processo de luta permanente pelo poder, e uma luta
maior ainda para que ele seja mantido:

No começo do mundo, eram a mulheres que mandavam na Terra e eram


elas que dominavam os homens. A mulher manejava o homem com o
dedo mindinho. As mulheres tinha inventado o mistério das sociedade
do egungns, a sociedade de culto aos antepassados, e os homens estava
sempre submissos ao poder feminino. Quando as mulheres queriam
humilhar seus maridos, elas se reuniam com Iansã debaixo de uma
árvore. Iansã tinha um macaco ensinado. Ela o fazia aterrorizar os
homens. Sim, mandava que ele fizesse coisa para assustar os maridos.
Quando viam ali na árvore o macaco fazendo as coisas a mando de Iansã,
os homens se apavoraram e se submetiam ao poder feminino.
Finalmente, um dia os homens resolveram acabar com aquela humilhação
de estarem sempre submisso ao poder de suas mulheres. Os homens
consultaram Orunmilá e ele mandou fazer um ebó. O sacrifício era de
galos, uma roupa, uma espada, um chapéu. Ogum era quem deveria levar
o sacrifício, a ser oferecido sob à árvore, antes da chegada das mulheres.
Ali ofereceu os galos, vestiu a roupa e o chapéu e empunhou a espada.
Quando as mulheres chegaram e viram aquele homem forte vestido como
um poderoso e armando até os dentes, exibindo aos quatro ventos seu
porte guerreiro, elas saíram a correr e a correr num pânico incontrolável.
A vista do homem assumindo o poder era terrificante. As mulheres não
suportaram tal visão. Iansã foi a primeira a fugir de espanto. Uma das
mulheres, de medo, correu tanto que desapareceu da face da Terra para
sempre. Desde esse dia o poder pertence aos homens. E os homens
expulsaram as mulheres da sociedade secreta. Porque a posse do segredo
agora é dos homens. Iansã, no entanto, ainda é a rainha do culto dos
egunguns (PRANDI, 2001, p. 107).

No mito aqui apresentado, o poder advém do segredo da invenção e da criação que


pertenciam a mulher. O medo e o pavor eram as armas da submissão. Uma vez que os homens
82
tomam para si o domínio sobre o segredo, também se fez necessário incorporar símbolos,
elementos fundamentais da expressão da identidade. A identidade, em si, carrega elemento de
disputa e contradição.
Bauman (2005) ao refletir sobre identidade nos lança uma série de inquietações e ao
mesmo tempo dialoga com a perspectiva analítica de Hall (2006) a respeito. Para Bauman
vivemos num momento que temos consciência que pertencimento e identidade não tem a solidez
e não são garantidos para toda a vida, são bastantes negociáveis e revogáveis, e que as decisões
dos indivíduos e os caminhos percorridos por esses são fatores cruciais tanto para o
pertencimento quanto para a identidade, (…) a identidade só nos é revelada como algo a ser
inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, “um objetivo”; como uma coisa que
ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e
protegê-la lutando ainda mais (…) (pp. 21-22).
Em outros termos, a idéia de identidade nasceu com a crise do pertencimento que perdeu
seu poder de sedução e sua função integradora e disciplinadora. Diversas âncoras sociais foram
criadas, sendo que gênero, raça e classe e heranças colônias comuns, na percepção de Bauman
são as mais seguras e promissoras, de forma a criar uma rede de conexões com o compromisso de
torná-la segura.
O termo “identidade” alcançou, em tempos recentes, uma grande ressonância, tanto dentro
quanto fora do mundo acadêmico. Ele oferece muito mais do que uma maneira óbvia e de senso
comum para se falar sobre individualidade, comunidade e solidariedade, proporcionando um
modo para se entender a interação entre as experiências subjetivas frágeis e significativas.
(GILROY, 2007, p. 124).
A identidade é tomada como central em relação a várias questões teóricas e políticas
urgentes, dentre as principais: pertencimento, etnicidade e nacionalidade. Os conflitos
racializados, por exemplo, são agora compreendidos pelos analistas como um problema de
identidades incompatíveis que demarcam conflitos mais profundos entre culturas e civilizações.
Nas palavras de Gilroy, esse diagnóstico estabelece ou talvez confirme a crença ainda
mais difundida de que as formas de conflito político, às quais a divisão racial tem sido associada,
são de algum modo irreais ou não substanciais, secundárias ou periféricas, ponto que se pretende
contestar neste trabalho. Essas inflexões – algumas das quais adaptadas a partir de usos
acadêmicos altamente especializados – são condensadas e entrelaçadas à medida que o termo

83
circula. Somos constantemente informados que compartilhar uma identidade é o mesmo que estar
vinculado nos níveis mais fundamentais: nacional, “racial”, étnico, regional e local. A identidade
é sempre delimitada e particular. Ela circunscreve as divisões e os subconjuntos em nossa vida
social e ajuda a definir as fronteiras entre nossas tentativas locais e irregulares de dar sentido ao
mundo (id.,ibid.).
A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de
devorar e ao mesmo tempo uma recusa a ser devorado. Em nosso mundo de “individualização”
em excesso, as identidades são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há
como dizer quando um se transforma no outro. Pode ser um grito de guerra de indivíduos ou das
comunidades que desejam ser por estes imaginadas.
Enquanto tema de pesquisa contemporânea, a identidade proporcionou ao pensamento
acadêmico uma rota importante de retorno às lutas e incertezas da vida cotidiana, em que a ideia
de identidade tornou-se especialmente ressonante. Ela forneceu também as rubricas
características de uma virada implosiva e interna que leva ao fim as tarefas difíceis da política na
medida que as faz parecer irrelevantes diante de poderes mais fundamentais e profundos que
regulam a conduta humana independente de superficialidades governamentais. Se a identidade e
a diferença são fundamentais, então não são passíveis de serem reinstrumentalizadas por métodos
políticos rudimentares que não conseguem chegar ao âmago de ontologias primordiais, destinos e
sinais (GILROY, 2007, p. 131).
Ao apresentar argumentos que validam o uso da categoria de identidade, Hall (1992) em
Identidades culturais na pós modernidade refere-se a momentos fundamentais no campo do
pensamento. O primeiro diz respeito a crise do modelo cartesiano de pensar os sujeitos e as
identidades passa a ser questionado, e são estabelecidos alguns momentos fundamentais de
mudança na perspectiva analítica.
Para Hall, um segundo momento importante veio da Psicanálise. Nossas identidades,
sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formados com base em processos psíquicos e
simbólicos do inconsciente. Esse inteiro e unificado (“penso, logo existo”) não se desenvolve a
partir de um núcleo de ser criança, mas é formado em relação com os outros – inconsciente, na
primeira infância, e de fantasias com as figuras materna e paterna.
É através de sua entrada nos sistemas de representação simbólica (a língua, a cultura e a
diferença sexual) que a identidade vai se consolidando. No entanto, esse processo são

84
sentimentos contraditórios e não resolvidos – o sujeito é sempre partido e dividido, mas vivencia
sua própria identidade como se estivesse reunida e resolvida ou unificada. Esse sujeito se constrói
identificando-se. Portanto, a identidade não é só como me vejo, mas como me veem.

Assim, a identidade é realmente algo formado, ao logo do tempo, através


de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência
no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou
fantasioso sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está
sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. As partes “femininas”
do eu masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem com ele e
encontram expressão inconsciente em muitas formas não reconhecidas,
na vida adulta. Assim, em vez de falar em identidade como uma coisa
acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em
andamento” (HALL, 2006. p. 38).

Uma terceira intervenção vem com os filósofos da linguagem. Em Derrida (1981), as


palavras são multimoduladas, carregam ecos de outros significados que elas colocam em
movimento. Tudo o que dizemos tem um antes e um depois, uma margem na qual as outras
pessoas podem escrever. O significado é instável, constantemente perturbado, e não temos
qualquer controle sobre o que surgirá e subverterá a tentativa para criar mundos fixos e estáveis.
O feminismo é considerado por Hall o quarto elemento de desconcentramento. Este surge
tanto como crítica teórica quanto como movimento social. Opunha-se tanto ao capitalismo
Ocidental como ao Stalinismo do Oriente; afirmava tanto as dimensões subjetivas quanto
objetivas; apelava-se para identidade social de seus sustentadores, mulheres, sexualidade
transgressora, as lutas sociais, movimento pacifista e antibelicista. Trata-se de um movimento
histórico que veio a ser conhecido como política de identidade, uma identidade para cada
movimento.
Pode-se identificar, aqui, uma relação direta com o deslocamento conceitual do sujeito
cartesiano. O sujeito do Iluminismo visto como uma identidade fixa e estável, foi descentrado,
resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas e fragmentadas do sujeito pós-
moderno.

85
2.5 Movimento feminista negro: luta política e pensamento em movimento

Deste o final dos anos 70, mulheres não brancas na Inglaterra, no Canadá e nos Estados
Unidos desafiaram modelos unitários de gênero, exigindo noções sobre o ser mulher que
levassem em conta raça, etnia, classe e sexualidade. Nas décadas de 80 e 90 é que foram
desafiados os paradigmas unitários de gênero desenvolvidos por feministas brancas e de classe
média, nos anos 60 e 70.
A crítica centra-se nos seguintes aspectos: 1º) enfoque exclusivo nega e apaga outros
aspectos da identidade de mulheres e suas experiências, inclusive raça, sexualidade e classe; 2º) o
tratamento inadequado as diferenças dentro da categoria mulher e os modos pelo quais ser mulher
se define em relação a mulheres de outras raças, etnias, classes e culturas, e não só em relação a
homens; 3º) a necessidade de delimitar a análise de gênero a contextos locais, e de fazê-la
levando em conta a especificidade social, cultural e histórica das experiências e das identidades
das mulheres.
As críticas de feministas não brancas, desenvolvidas nos anos 1970 e 1980, começaram a
ter um impacto visível na teoria feminista na década de 1990. Nos Estados Unidos, o movimento
feminista negro cresceu, em resposta também ao Movimento Negro de Libertação, num esforço
para atender às necessidades de mulheres oprimidas racialmente. A “negra” foi igualada aos
homens negros e a “mulher” foi igualada às mulheres brancas. Como resultado, as mulheres
negras eram um grupo invisível de existência, e suas necessidades foram ignoradas.
A tarefa a que se dispunham essas mulheres afrontaram adversidades inclusive entre as
mulheres negras. Poucas mulheres negras, no início dos anos 1970, estavam dispostas a
identificar-se como feministas. No processo de disputa, as explicações tendiam para o
afastamento dessas mulheres. Os argumentos eram diversos: afirmava-se que o racismo era a
principal opressão que as mulheres negras tinham de enfrentar; o feminismo não tinha
fundamentação, apenas ódio contra os homens; as questões das mulheres eram questões menores,
além de a heterossexualidade das feministas ser colocada em dúvida.
No que tange aos debates travados no movimento negro, a luta se dava em oposição à
construção de um patriarcalismo que direcionava a luta pelos direitos civis. Uma das vertentes de
luta contra o racismo está diretamente vinculada à consolidação da masculinidade negra, já que

86
racismo e patriarcado são elementos indissociáveis, e a luta pela destruição das estruturas racistas
estar na consolidação de uma masculinidade negra de cunho patriarcal.
Confrontado o sexismo dos homens negros e o racismo dos brancos, as mulheres negras,
em seus respectivos movimentos, tinham duas escolhas: permanecer nos movimentos e tentar
educar não-negros ou camaradas não-femininas sobre suas necessidades, ou poderiam formar um
movimento próprio. A primeira alternativa, apesar de nobre em sua intenção, não foi a opção
viável. Embora seja verdade que os homens negros precisavam ser educados sobre os efeitos do
sexismo e as mulheres brancas sobre os efeitos do racismo na vida das mulheres negras, fazê-lo
não era responsabilidade exclusiva das mulheres negras.
A radicalidade, nesse pensamento, está em lidar com raça, sexo, classe e identidade
sexual de uma só vez. O pensamento feminista negro promove mudanças paradigmáticas
fundamentais ao rejeitar abordagens aditivas à opressão. Raça, classe e gênero constituem eixos e
opressão que caracterizam as experiências das mulheres negras dentro de uma matriz mais
generalizada de dominação.
Bell Hooks etiqueta essa matriz como política de dominação, e descreve como ela opera
ao longo dos eixos interligados de raça, classe e opressão de gênero. Esta política de dominação
refere-se ao terreno ideológico que elas compartilham, que é a crença na dominação e nas noções
de superior e inferior, que são componentes de todos os sistemas.
Collins (1991) fornece uma importante conceituação da relação entre estrutura e discurso,
fundamentada na investigação da experiências de mulheres negras, chamando a atenção para a
relação entre relações discursivas e condições materiais na produção e reprodução da dominação
de gênero, raça e classe. Realça os modos como representações culturais de negras norte-
americanas serviram para justificar estruturas dominantes de desigualdade. Collins argumenta
que essas representações foram essenciais para a “economia política de dominação que nutre a
opressão de mulheres negras” (p. 67).
O conceito de imagens controladoras, proposto por Collins, liga representações culturais
a formas estruturais de desigualdades. A autora sustenta que as imagens controladoras da
mulheres negras “são projetadas para fazer racismo, sexismo e pobreza parecerem naturais,
normais, como uma parte inevitável da vida cotidiana” (p. 68). Essas imagens controladoras
servem para naturalizar práticas históricas e contemporâneas de dominação racial e de gênero.

87
Em suma, o que é essencial sobre o feminismo negro é seu enraizamento na articulação
da multiplicidade, interseccionalidade relacional e simultaneidade de opressões. Esse quadro
intelectual não só desafia estudos tradicionais de raça e racismo, estudos sobre as mulheres,
estudos éticos e outras disciplinas que tratam essas desigualdades em isolamento analítico. Esses
estudos negros afetaram diversos campos do conhecimento. Mesmo antes da visibilidade do
feminismo negro nas salas da academia, havia uma longa história de mulheres negras e
envolvimento no debates de gênero e raça.
No entanto, as dificuldades de compreensão multiplicidade nas comunidades negras, de
corte transversal por idade, região, etnia e classe não são resolvidos. As feministas negras têm
colocado gênero no centro das análises de raça e classe. Esta intervenção está mudando a forma
como a raça está sendo conceituada e como a vida do negro tem sido pensada por intelectuais
negras e negros.
Além de ser estruturada ao longo dos eixos como raça, gênero e classe social, a matriz
da dominação é estruturada em vários níveis. As pessoas vivenciam e resistem à opressão em três
níveis: o nível da biografia pessoal, do grupo ou comunidade através dos contexto cultural criado
por raça, classe e gênero e ao nível sistêmico das instituições sociais. O pensamento feminista
enfatiza os três níveis, como elemento de dominação e como lugares potenciais de resistência.
A radicalidade do pensamento também se apresenta ao eleger as biografias individuais
como espaço de potencialidade e compreensão das condições da mulher negra e de seu grupo.
Cada indivíduo tem uma biografia pessoal única, composta de experiências concretas, valores,
motivações e emoções. Não há duas pessoas que ocupam o mesmo espaço social. Portanto, não
existe biografias idênticas.
O contexto cultural, formado por essas experiências e ideias compartilhadas com outros
membros de um grupo ou comunidade, dão sentido às biografias. Cada biografia individual está
enraizada em vários contextos culturais específicos. A existência de longa data de uma cultura de
resistência das mulheres negras, expressa através das relações de suas diversas vozes, atestam a
dificuldade de eliminar o contexto cultual como um lugar fundamental de resistência.
Tradicionalmente, essas mulheres têm sido poetas, contadoras de histórias e oradoras.
Entretanto, a epistemologia eurocêntrica machista não a reconhece. Aqui se funda a necessidade
de outra epistemologia que reconheça esses outros lugares de expressão, questões tratadas como
centrais pelas pensamento feminista negro.

88
Os desafios e resistência encontrados pelas estudiosas negras foram diversos. O primeiro
diz respeito ao reconhecimento de seu pensamento pelas mulheres comuns, para ser credível aos
olhos deste grupo, que ao ver-se representado nessas análises devem reconhece-se e legitimar o
intelectual como interlocutor de sua realidade.
Em segundo lugar, o pensamento feminista negro também dever ser aceito pela
comunidade de estudiosas das mulheres negras e das comunidades negras. Reconhecendo o lugar
de importância assumidos por estas na rearticulação de um ponto de vista das mulheres negras,
utilizando uma epistemologia feminista negra.
Em terceiro lugar, o pensamento feminista negro, dentro da academia, dever estar
preparado para enfrentar as exigências de um pensamento epistemológico eurocêntrico e
androcêntrico, assim como os desafios políticos dele decorrente.
Ao teorizar a partir da base, ou seja, através da análise da estrutura da vida cotidiana das
mulheres negras, e de cima para baixo através da análise da estrutura social e economia política, a
explicação da interação as duas dimensões é central para a teoria e a prática feminista negra,
também chamada de “simultaneidade de opressão”.
Esses sistemas de desigualdade estão em jogo, ao mesmo tempo, mas devem ser vistos
no contexto histórico. Raça, por exemplo, funciona como um significante mestre em uma
sociedade de supremacia branca, mas não sem ser profundamente moldada pela classe e gênero.
Essa é a base conceitual de grande parte das conceituações feministas negras sobre vida. Gênero
deve ser articulado e teorizado no contexto da raça e racismo.
Os temas trabalhados no Movimento Feminista Negro foram: direitos reprodutivos, abuso
da esterilização, igualdade de acesso ao aborto, saúde, cuidado da criança, direitos, violência
contra a mulher, assédio sexual, direitos sociais, direitos de diversidade sexual, envelhecimento, a
brutalidade policial, a organização do trabalho, as lutas antiimperialistas, organização anti-racista,
o desarmamento nuclear e preservação ambiental.
Noções afrocêntricas feministas da família refletem esse processo de reconceitualização.
A mítica do casal heterossexual, da família nuclear, do marido provedor está longe de ser natural,
universal e preferencial. Em vez disso, esse modelo é profundamente enraizado num padrão
cultural e racial específico, qualificado hegemonicamente.
Experiências das mulheres negras como mães, educadores, líderes religiosas, líderes
sindicais e trabalhadoras parecem sugerir que a energia pode promover atos criativos de

89
resistência, e que esse outro lugar de resistência é fonte de conhecimento profundo que revela
mulheres, homens e crianças negras na diáspora ontem e hoje.

2.6 Reflexos do pensamento feminista negro no Brasil

No Brasil, a ausência da relação entre raça e gênero no feminismo acadêmico brasileiro se


deve, em grande parte, à forma como se desenvolveu o campo dos estudos sobre mulheres no
país. Os primeiro núcleos de estudos sobre mulheres no Brasil foram inspirados em modelos
estrangeiros, especialmente os norte-americanos. No entanto, as críticas ao racismo que estavam
sendo feitas nos Estados Unidos ao feminismo ocidental nos serviram de inspiração.
Desde os anos 1980, as feministas negras brasileiras tentam trabalhar com as
especificidades das mulheres negras, mas passaram despercebidas pela maioria das intelectuais
da área, no país. Seu trabalho político e acadêmico destaca o modo como os discursos
universalizantes influenciaram a maioria dos estudos sobre mulheres brasileiras. Ao negar a
relação entre dominação racial e de gênero, esses estudos esconderam a cumplicidade de
mulheres brancas com seu privilégio racial e reforçou o status subalterno das mulheres negras.
Mas não se recusaram a fazer essa tarefa intelectuais como Lélia Gonzáles, Sueli Carneiro,
Thereza Santos entre outras.
Desses estudos, destaca-se o de Carneiro e Santos, que oferece uma análise das mulheres
negras na área metropolitana de São Paulo. Além de apresentar estatísticas raras da posição
socioeconômica de mulheres negras, oferece também uma base para se entender o quanto os
perfis socioeconômicos divergentes de mulheres brancas e negras têm gerado tensões e conflitos,
mais do que uma pretensa unidade fundada numa noção compartilhada da feminilidade, uma vez
que as mulheres brancas foram as maiores beneficiárias dos acessos sociais ocorridos no período
de 1960 a 1980. “(...) as desigualdades apontadas entre negras e brancas antecipam por si só as
tensões que política e ideologicamente acarretam, colocando na maioria das vezes brancas e
negras em contradição politicamente, malgrado a condição feminina” (CARNEIRO e SANTOS,
1982, p. 40).
Alguns fatos vão marcar as ações e divergências das mulheres negras e brancas no Brasil.
Em 1975, a apresentação do Manifesto das mulheres negras, durante o Congresso de Mulheres

90
Brasileiras, marca o reconhecimento formal de divisões raciais dentro do movimento feminista
brasileiro.
O manifesto chamou atenção para as especificidades das experiências de vida, das
representações e das identidades sociais das mulheres negras, e sublinhou o impacto da
dominação racial em sua vida, além de desmascarar o quanto a dominação racial e o gênero são
marcados pela raça.
É a partir daí que as preocupações ganham melhor articulação. Em 1979, no Encontro
Nacional de Mulheres no Rio de Janeiro, Lélia González lamenta que não houvesse, na época,
unanimidade com relação à questão racial como identificadas em outras questões. Observa,
ainda, que durante esse encontro, feministas de orientação progressista e de esquerda negaram o
significado da raça. Assim, diferenças em termos de experiências e lugares sociais tornaram-se
fonte de conflito e divisão no movimento feminista. Apesar das adversidades políticas, as
feministas negras tentaram ganhar voz dentro do movimento, defendendo questões de sua
especificidade, não como sub-tema, mas como centralidade.
A tarefa a que se propõem as pensadores negras no Brasil é proporcional a sua história
de tragédias, lutas e resistência, ontem e hoje. Desde o período colonial, as mulheres foram
diferenciadas por práticas patriarcais que associaram matrimônio a mulheres brancas e relações
sexuais ilícitas às não brancas. Enquanto as brancas eram designadas à sexualidade legítima e
honrada no papel de esposas e mães, as mulheres africanas escravizadas, e depois mulatas, eram
associadas a práticas sexuais ilegítimas e desonrosas. Nas palavras de Sueli Carneiro:

O que poderia ser considerado como história ou reminiscência do período


colonial permanece, entretanto, vivo no imaginário social e adquiri novos
contornos e funções em uma ordem social supostamente democrática, que
mantém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça instituídas
no período da escravidão (2003, p. 49).

Em grande parte por causa de sua relação privilegiada com o patriarcado e com a
hegemonia racial, as mulheres brancas se tornaram o ponto de referência para as construções
idealizadas de mulher e da identidade feminina, no Brasil.

91
A utopia que hoje perseguimos consiste em buscar um atalho entre uma
negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental
hegemônica que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro,
ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente
mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é converter-se em um ser
humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para além de sua
condição de raça e de gênero. Esse é o sentido final dessa luta (Idem, p.
58).

Aqui, como a tradição do pensamento feminista negro externo, compreende-se que


somente é possível apreender o conhecimento a partir do lugar dessas mulheres. Nosso
entendimento de lugar não se refere somente aos espaços sociais, mas diz respeito aos lugares
dissonantes revelados através de suas biografias e narrativas, sentimentos, emoções e percepções
advindas desse lugar desconhecido, mas que se quer ser conhecido.

92
CAPITULO 3

MULHERES QUE SOU EU: MEMÓRIAS QUE SE ENTRECRUZAM

Ao falar de suas histórias de vida, as mulheres negras não falam somente de si, mas
lançam pontos de luz que iluminam toda a história do povo negro. A possibilidade de dar eco a
essas narrativas nos fez pensar sobre a disposição dessas apresentações. Dado o montante de
entrevistas, optou-se por apresentar a história dessas mulheres de forma a contemplar gerações
diferentes. Cabe ressaltar que essas histórias apresentam situações, posições e percepções de um
determinado tempo, que emergem também em outras histórias de vida. Aqui, a escolha ilustra
mulheres negras em seus tempos, estes determinado por sua própria existência e que se
entrecruza na permanência dos fatos relatados.

3.1 Tempos narrados

Tempo narrado I

Nas memórias de D. Lazinha, de 81 anos, a infância está estritamente vinculada à figura


paterna, funcionário da Ferrovia Sorocabana. Ao ficar viúvo, seu pai colocou-se o desafio de
manter a família composta de pai e filhos, contrariando os membros da família materna, que
defendiam que as crianças fossem dadas em doação. Em seu relato, ela vê vitoriosa a tarefa do
pai, que teve como resultado filhos trabalhadores e honestos.
Ela se refere-se a uma vizinha como sua referência como mulher, e se emociona ao
lembrar que essa os tratava como filhos: “tudo que ela fazia para os filhos dela, fazia para nós”.
Nhá Lica, assim chamada porque tinha o nome comprido, era uma mulher branca, de uma família
importante da cidade.
As inúmeras madrastas também estão presentes nos relatos de D. Lazinha. Descrito
como namorador inveterado, seu pai costumava alertar a todas com quem planejava uma vida
conjugal: “Olha, você está vendo meus quatro negrinhos? De tudo o que eles fizerem, não é pra
dar um tapa neles. Eles não têm mãe, só têm pai. Veja bem como eles são. Já vou avisando: a

93
porta da rua é a serventia da casa. Se bater nos meus filhos...”. Ela conta, orgulhosa, de nunca ter
levado um tapa de madrasta, mesmo que, de acordo com seus cálculos, lembre-se de ter tido 21
delas. Ela se recorda das palavras de defesa incondicional do pai: “Se meus negrinhos estão
incomodando, você não está nem presa nem amarrada, aqui”. As frase a remete às imagens da
teledramaturgia Sinhá Moça, em que um personagem escravocrata se refere aos negros no
diminutivo. O termo “negrinho” é uma marca de linguagem que se fixa como expressão de uma
condição. No entanto, a forma com que o pai de D. Lazinha usa o termo difere daquele da
teledramaturgia, pois o uso que ele fazia demarcava a importância dos filhos em detrimento de
uma relação.
Ao se referir à família estendida, a entrevistada menciona a Revolução
Constitucionalista de 32, quando alguns soldados ficavam hospedados em sua casa, alguns sendo
seus parentes. “Lembro direitinho que eles entravam, tinha um canhão montado na serra lá da
Mantiqueira, que despejava bala do nosso lado da fronteira, porque ali era fronteira, não é?
Divisa do Paraná com o Estado de São Paulo. Então eles vinham, comiam em casa.”
“Não havia luza elétrica, somente lampião de querosene, eu lembro direitinho”. Como o
pai era sedutor, chegou a presidente do Treze de Maio, o clube dos negros. “O 1º de Maio era dos
brancos, e o Treze de Maio, dos negros. O treze de Maio, dos negros, era mais frequentado que o
dos brancos, era baile de crioulo”. Ela lembra, ainda, que os brancos também queriam entrar no
13 de Maio: “branco gosta de se enfiar no meio dos pretos”.
Novamente, ela se recorda de Nhá Lica:

Por isso eu chorei por causa dessa mulher que eu lembro tão bem, dela e
do marido dela. Cuidaram da gente como se a gente fosse sangue deles, a
gente não esquece. Se deitavam tudo num lugar, os filhos dela, que às
vezes se acocoravam tudo com nós. Ela ia olhar um por um, se estava
tudo ali. É uma coisa que a gente guarda no coração, não é?

Sua vinda para São Paulo ocorre depois de casada, pois o pai se opunha a sua vinda. São
Paulo não a seduzia, ela vinha à cidade com o pai somente para fazer compras. Ela conta que,
quando veio, já com dois filhos, o sofrimento da partida foi presenciado pelo irmão que a levou à
estação. O mundo da cidade a assustava, pois ela tinha sido criada no mato, com uma boa vida,
era conhecida de todo mundo. As imagens da infância, na cidadezinha, vêm à tona: quando os
94
caminhões vinham do Paraná e do Rio Grande do Sul, carregados de madeira para uma
serralheria perto de sua casa, ela se pendurava nas carrocerias. Quando chegava à porta de casa,
pulava para que o pai não a visse. É por essas coisas que ela não queria vir para São Paulo – ela
veio casada e com raiva, raiva que se mantém até hoje.
O pai faleceu aos 76 anos, e ela já não sabe se os irmãos estão vivos. D. Lazinha se
lembra do momento de ruptura com uma irmã, quando esta ameaçou bater em sua filha mais
velha. Na ocasião, mesmo grávida novamente, ela foi à estação de trem para acertar as contas:
“nunca levei um tapa de meu pai”, ela garante. “A minha escola, que sou a caçula, foi exigência
da Sorocabana. Antigamente, filha mulher não precisava estudar, que estudava e ficava
mandando cartinha pra namorado. A Sorocabana exigiu que ele pusesse nós na escola,
pegávamos trem e tudo”.
Os estudos se seguiram no ritmo do trabalho do pai. Como funcionário da Sorocabana,
ele ficava à disposição da empresa para a transferência. Assim, o processo de escolarização era
feito por etapas. Estudou quatro anos e terminou o então primeiro grau. Isso só foi possível
quando o pai fixou-se por mais tempo em um posto de trabalho.
Depois de adulta, D. Lazinha voltou a estudar, na Igreja Santa Rita, no Brás, por motivo
de emprego. “Do pouco que eu estudei nessas andanças, guardei muita coisa. E não era só ler e
escrever, a gente aprendia outras coisas: artesanato, coisa manual. Hoje não se aprende mais
nada, aprende?”
Ao relembrar da juventude, aparece Tio Antônio, que tinha a tarefa de ficar cuidando
enquanto ela noivava. Esse é o único parente mais próximo ao núcleo familiar de que ela se
recorda e com quem, depois, perdeu o contato. A juventude foi considerada boa. Como era muito
“danada”, ela aproveitou bastante. Mas a felicidade terminou aos 15 anos, com divisor de águas
em sua vida:

“Eu não casei. Eu caguei e me limpei c’a merda, porque o cara não valia
bosta nenhuma. Ô, menina, a pior coisa que eu fiz na vida foi casar.
Dezesseis anos... Você sabe o que é não gostar da pessoa? Eu tinha nojo
dele, já na época do namoro. A gente era tapada, viu? Até hoje eu não sei
por quê. Ele não podia pôr a mão nimim, eu tinha nojo dele. A gente era
tapada, não tinha informação nenhuma. Às vezes uma sabia qualquer
informaçãozinha, besteira, a gente conversava tudo cochichando. E ficava
95
aquela coisa sem esclarecer, sem nada, a gente não sabia nada. Quando fui
ter o meu primeiro filho, eu não sabia por onde o filho saía! Aí fui
perguntar pra Dona Ana, uma conhecida do meu pai. Eu passava por
baixo de uma cerca, ela começou a brigar comigo, o barrigão
dest’amanho. Ela brigou comigo, falou: “Na hora do neném nascer,
atrapalha”. Fui perguntar pro marido, ele falou: “Você vem perguntar pra
mim? Vai perguntar pra uma pessoa que já teve neném”. Aí fui perguntar
pra ela, outra vez, e ela falou pra mim: “Por onde o neném entrou, ele vai
ter que sair”. Ô, menina... Pra mim foi a pior coisa do mundo. Era tapada,
viu?
D. Lazinha relembra que o pai se opunha ao casamento, mas mesmo assim deixou-a
decidir. Ela se pergunta insistentemente o porquê dessa escolha, e retrata o marido como um
sujeito bem claro, bonito, de olhos verdes, resultado da união de mãe loira com pai negro.
Assim como o casamento não foi uma escolha consciente, a maternidade também não o
foi. A entrevistada conta que nunca teve grandes amores por crianças, sendo a maternidade
resultado de mais uma “besteira” de sua vida. Hoje ela tem sete filhos vivos, tendo sido mãe de
21.

Tempo narrado II

Aos 61 anos, formada em Pedagogia e Ciências Sociais, a segunda entrevistada para este
estudo se apresenta como sindicalista aposentada na rede estadual de ensino e em exercício na
rede municipal. Ela divide seu tempo com a militância política e no trabalho de formação sobre a
questão racial, a partir das leis 10.639 e 11.645, junto ao grupo de professores. É mãe de dois
meninos, uma menina e tem oito netos. Casou-se três vezes, e os filhos são do segundo
casamento. Sua mãe que está com 90 anos. Os filhos, hoje, são todos casados, tenho cada um tem
sua vida. O caçula é músico, já jogou basquete e fez propagandas de televisão. A filha é
cabeleireira especializada em cabelos afro. Em suas andanças por gurpos de estudo e formação,
ela lembra que às vezes, levava a mãe para falar de ervas. Filha única, quando da separação dos
pais tinha 9 anos, e foi morar no emprego com a mãe até seus 18 anos. Na entrevista de seleção
para a vaga de empregada doméstica, já avisou à patroa que iria estudar.

96
A patroa disse: “Ah, a senhora vai ganhar menos, porque a menina vai
comer, e tudo mais”. Então pedi licença, porque sempre fui muito
educada, e disse que eu podia lavar cachorro, lavar quintal... E como eles
tinham crianças, eu podia ser babá. Mas avisei logo que eu não ia ficar a
vida inteira limpando a merda dos filhos dela, não, porque eu queria
estudar. Ela falou: “Não quero ficar com essa mulher, porque a filha dela
é pernóstica, é não sei o quê”. Aí o patrão disse: “É com ela que você vai
ficar”, e dispensou as outras.”

O resultado de tanta ousadia foi a implacável perseguição que a patroa implementou.


Mesmo assim, ela conseguiu estudar e só saiu dessa casa aos 18 anos.
À tarde, ao chegar da escola, jogava a mala num canto e trabalhava, além de fazer os
trabalhos escolares da filha da patroa. A situação piorou quando a filha da patroa foi reprovada,
um ano. Um professor que assistia os exames orais dizia que ela sim, se expressava bem,
enquanto que a filha da patroa não falava nada, um dos motivos da reprovação. Era o Instituto
Rangel Pestana, só para meninas.
A mãe contava que, quando sua avó morreu, sua mãe tinha quinze dias de vida. Quando
da morte da avó, saiu uma cobrinha de sua boca. O avô era “um quimbandeiro daqueles bravos,
de ter o pó de pereira, candomblé forte”. A entrevistada destaca que isto não era sequer
candomblé, mas magia, mesmo. O avô se casou sete vezes, e sua mãe era filha do sexto
casamento dele. Quando a avó morreu, ele já estava de olho em outra. Pela história que sua mãe
conta, suspeita-se que o avô tinha feito alguma coisa para levar a esposa à morte.
O avô casou-se novamente, mas não quis as filhas morando com ele em casa. Uma tia de
sua mãe levou-a embora para morar com parentes. Mas havia uma problema: como sua mãe
chamava a própria tia de mãe, acabava afastando seus pretendentes. Então a tia entregou sua mãe
ao delegado da cidade, quando esta tinha sete anos, e dali ela saiu para o casamento. A
entrevistada retoma a narrativa: “Casei grávida. Eu não queria casar, não, queria só ter um filho.
Aí foram minha mãe e minha sogra e marcaram o casamento. Diziam que eu era professora, que
eu não podia chegar na escola sem ser casada. Elas é que fizeram meu casamento, não fui eu”.
Dos familiares próximos, lembra de uma prima e um primo, e da proximidade entre eles
durante a infância. Quando cresceram, cada um foi cuidar da própria vida. Da prima, chegou a ser

97
madrinha de casamento. Porém, quando a entrevistada se separou do marido, a prima não a quis
mais em sua casa, dizendo-lhe que não aparecesse mais, já que era uma mulher separada.
Com o fim do casamento de seus pais, sua mãe teve só um relacionamento, que também
não deu certo. Era um vizinho viúvo e mantinha uma boa relação com a entrevistada, sua mãe e
sua mãe com os filhos dele, o que não impediu que ele arrumasse outra.
Ela se considera uma pessoa namoradeira, não sabendo contabilizar o tanto de
relacionamentos que teve: “Graças a Deus, eu namorei bas-tan-te”. Ressalta que sempre namorou
homem negro, nunca homem branco. Com relação aos relacionamentos mais duradouros, o
primeiro foi muito especial. Foram morar juntos, e havia cumplicidade da relação.
O primeiro marido é descrito como “um sujeito legal”. Os momentos de partilha são boas
recordações, de como descreve o apartamento do casal na Av. Nove de Julho até momentos em
que o café é preparado, enquanto atividade conjugal, tudo prazeirosamente relatado. Porém existe
a mãe, que agora passa a dividir espaço, emoção e relação. “Aí, ‘Vamos tomar café?’, minha mãe
trazia o café. Ou: ‘Neguinha, você por acaso viu aquela minha camiseta?’ ‘Vou pegar’, mas
minha mãe já vinha e trazia. Entendeu?”
Agora o marido deveria ser dividido, e sua mãe (a sogra) também desejava cuidar dele,
até que o sujeito, ele mesmo alvo desses cuidados, pediu para que a entrevistada escolhesse entre
ele e a mãe. O fato de ser um sujeito tranquilo, trabalhador, que estudava e que era negro não foi
o suficiente. Ele parecia estar sufocado entre duas mulheres fortes, determinadas, destemidas.
“Não era para eu casar.”
A situação tornou-se difícil. Como filha única, como poderia “jogar a mãe fora”? O casal
passou a não sair junto, para que a mãe não ficasse sozinha em casa. Ele saía sem a companheira,
e isso não passava despercebido para a mãe: “Tá vendo, ele está saindo sozinho”. Na
possibilidade de saírem todos juntos, nos finais de semana, a mãe adoecia, mas subitamente se
recuperava, quando ele já tinha partido sozinho. Em um desses passeios solitários, ele foi à
quadra da escola de samba Camisa Verde e Branco e se meteu em uma briga. A mãe, como uma
“espírita forte, daquelas poderosas”, pressentiu, contente: “Vai ver que se meteu numa encrenca”.
Apesar de não ser do tipo que gostasse de briga, naquele dia ele se envolveu num atrito e levou
uma “bordada” na cabeça, conforme o pressentimento da sogra. A escolha tinha sido feita: “Aí,
nós sozinhas de novo: eu e você”.

98
Depois dessa primeira relação, a entrevistada ficou “namorando ali e namorando acolá”.
Como a mãe era filha de santo, conheceu o Nenê, fez amizade com ele e fez questão que a filha
também passasse a frequentar os trabalhos, já que estava muito triste. Foi assim que ela conheceu
Nenê e se casou com ele. Tudo corria bem até que Nenê percebeu sua condição nessa relação, na
casa das mulheres. “Depois o Nenê também viu que ela não era flor que se cheire. Ela fazia a
mesma coisa: pedia uma camisa, ela dava, e ele dizia: ‘Casei com você ou com sua mãe?’ Foi
dando aquela confusão danada, o Nenê faleceu e acabou.”
A professora recorda, com certa raiva, que para a mãe era ótimo quando seus
relacionamentos acabavam. Assim, passou a não contar-lhe mais nada de sua vida amorosa, já
que sabia ter uma opositora em casa, que sonegava as informações recebidas pelo telefone,
sempre desqualificando seus namorados.
Essa situação levou-a procurar um especialista que pudesse ajudá-la a entender esse
conflito. A explicação é que, na mente de sua mãe, já existia o casamento perfeito: a filha como
chefe da família, a mãe e os netos. Efetivamente, até os 49 anos, essa filha deu seu salário nas
mãos da mãe.

Tempo narrado III

Aos 57 anos, Ana foi casada e já está separada há 24 anos. É mãe de três filhos. Casou-se
aos 16, e define o casamento como “uma vida de pancadaria”. Descreve o ex-marido como um
homem violento, que impunha à família uma vida de pânico, não respeitando nem os filhos. Seu
pai tentava interferir, mas ele mesmo tornava-se vítima da violêcia. Certa vez ele ficou ferido, ao
intervir numa das brigas. “Aí ele vinha para dar conselho: ‘Olha, você tomou um golinho, deixa
que amanhã você fala com ela, você discute com ela’, e aí ele se revoltava contra meu pai”.
Refere-se ao tempo de violência como sendo o tempo de ausência de garantias para as
mulheres. Diz que se houvesse a delegacia das mulheres e a lei Maria da Penha, na época, tudo
teria sido diferente. Ela chama a atenção para o fato dessas confusões ocorrerem quando da
ausência de sua mãe. “Meu ex-marido tinha medo da minha mãe”. Quando ela estava presente e
ele chegava alcoolizado, ela logo alertava para que ele se comportasse, pois ela estava em casa.
Prontamente ele se retirava, sem nenhuma reação, e a paz se mantinha. “Minha mãe só falava
para ele, assim: ‘Você vai começar? Espera eu chegar aí para você ver’”. Num momento de

99
descontração, ao relatar essas situações, ela brinca que, com a autoridade que a mãe tinha, ela
poderia ter sido delegada, porque falava uma vez só e mais nada.
Ao falar de sua história, os momentos de mudanças por vários bairros de São Paulo são
relembrados. As dificuldades da mãe que vive sozinha também são destaque na narrativa. Ela diz
que, ao se separar, passou a ser pai e mãe. Mas só isso não era suficiente, ela tinha que ser
advogada, psicóloga, enfermeira e, dependendo da necessidade, pedreiro. Mas garante que tudo
isso só tem lhe dado experiência. Ela ressalta que os filhos estão moços, mas que o trabalho é o
mesmo, já que não existem “ex-filhos”, somente ex-maridos.
Ela faz trabalhos diversos como limpeza e reciclage, e é essa renda que garante boa parte
das dispesas da casa.
Ana vê a necessidade de prosseguir seus estudos. Ela cursou até o ensino fundamental e
deseja fazer o curso de técnico de enfermagem, do ensino médio. Costuma acordar cedo para
pegar aulas de telecurso pela televisão, inclusive de conteúdos que nunca estudou, como
Química, e gostaria de fazer o ensino superior, se for possível conseguir uma bolsa.
Filha mais velha de três mulheres, sua mãe sempre trabalhou como doméstica e diarista
depois do casamento. Antes, dedicava-se ao trabalho na lavoura. O pai trabalhava em chácaras,
no cultivo de verduras e na criação de galinhas. Sua mãe nunca foi à escola, mas sabia escrever,
ler muito pouco. Ana destaca sua sofisticação. “Era uma senhora muito fina, de uma sabedoria
enorme. Sempre trabalhou com gente rica, com os Tanaka e com os Yashika, aqueles que têm os
eletro-domésticos e as máquinas de tirar fotografia”. A mãe exigia postura correta dos filhos
tanto no trato com os vizinhos com no trabalho, para que nunca “mexssem” em nada dos outros.
Reservada, vivia da casa para o trabalho, exigindo que os filhos não ficassem “pela casa dos
outros”.
A autoridade da mãe era algo de destaque. Sua palavra era a primeira e a última. O pai
tinha as obrigações dele como chefe da casa, na alimentação, mas a palavra final ficava com a
mãe. Ela que decidia tudo. “‘Ô pai, você não vai fazer tal coisa hoje?’ ‘Não, porque sua mãe não
quer, achou melhor deixar para outro dia’”. Essa autoridade incidia também sob os filhos.
A renda da mãe era importante, o que ajudou a garantir a compra do terreno que Ana
herdou e onde mora com os filhos e outros membros da família. “Eles trabalharam em conjunto,
construíram, faleceram e quem usufrui somos nós, os filhos.”

100
Nos finais de semana, a mãe ía à feira. Os cheiros e sabores são relembrados: o frango
com polenta, a panela de ferro cheia de mandioca, a chaleira de café, ingredientes sagrados aos
domingos, tudo cozido nas labaredas do fogão de lenha, que também recebia o toucinho no
fumeiro e que se transformava no bacon, como conhecemos hoje. Assim eram sustentados os
filhos. O pão chegava apenas uma vez por semana, através do padeiro que o trazia na carrocinha.
A família também é apresentada como extensa. Dividia-se a casa e inclusive a cama.
Parentes e conhecidos, quando passavem por momentos de dificuldade, eram recebidos para
dividir o espaço da casa, até que pudessem tocar a própria vida de novo. De agregados, alguns
passaram a fazer parte da família. Ela se refere aos tios que moram no fundo do quintal, sempre
muito presentes, sempre morando por perto. Isso se mantém com a novas gerações entre tios,
primos e cunhados que ocupam praticamente um quarteirão. Ela descreve a relação com os
primos, na infância, como um momento familiar significativo: “Eu me alembro dos primos,
quando éramos pequenininhos, eles também se alembram”, e destaca a história de um tio casado
com uma irmã de sua minha mãe, já falecida, que morou muitos anos dentro do aeroporto de
Cumbica, trabalhando para os coronéis. Ele cuidava dos porcos, das galinhas, das verduras. Ele
vinha para São Paulo com os tenentes, com os coronéis, para fazer compra de alimentos. Criou
todos os filhos dele lá dentro. Para se fazer uma visita, precisava deixar a identidade na portaria,
pois em área militar “não entrava qualquer um. É lá pros fundão. Quem passa por lá, nem vê nada
disso. Se ele ainda morasse lá, eu iria sempre. Adoro ver avião”.
Se essas lembranças são boas, o desânimo, o casanço e a desilução aparecem quando ela
trata da situação vivenciada com um filhos, cuja trajetória é marcada pela idas e vindas do
sistema prisional. Essa situação, que se arrasta por dez anos, implica o sacrifício de destinar parte
de sua renda para garantir as visitas e o envio da manutenção necessária do filho, dentro do
presídio. Ela lamenta que esse dinheiro poderia ser investido na melhoria da casa e das condições
de vida da família. Ela destaca a humilhação imposta aos familiares e visitantes: “Eu não sei mais
onde é que está o erro, porque não sei onde está a explicação”. E diz que precisa retomar sua
vida, voltar a viver.
A maternidade era consequência do processo de turbulência da relação. Entre idas e
vindas, a volta do marido resultava em nova gravidez. A prevenção e o planejamento familiar não
era política pública. “Quem tinha dinheiro, comprava”. Mas a gravidez não a impedia que
trabalhasse praticamente até o dia de as crianças nascerem. Ela trabalhava em serviços

101
domésticos, depois passou a trazer trabalho para casa, como costura de guarda-chuvas, costura de
bolas e empacotamento de figurinhas. Costumava levantar-se às seis horas da manhã e dividia a
jornada em tarefas domésticas e o trabalho que trazido para casa.
Ela se identifica como herdeira da autoridade da mãe. “Quando ela morreu, eu já não
tinha mais pai. Então eu tive que assumir o comando”. A irmã que já faleceu tinha anemia
falciforme. Quanto à irmã solteira, sua palavra também é a primeira e a última. Mas quando a
mãe faleceu, ela era a menor. Hoje em dia, elas procuram fazer reunião da família para resolver
os problemas. “Vou até ela, passo os problemas, pergunto sua opinião, e a gente decide dentro de
casa, entre nós. Se um não tem para comer, todo mundo vai ajudar”.
Vê na vida religiosa dos filhos um distanciando daquela deixada de herança pela mãe,
que era da Umbanda. Os filhos frequentam igrejas evangélicas e, aos poucos, todos os da família
seguem o mesmo percurso. De todo os do grupo, a entrevistada foi a última a aderir.
Ela buscou consolidar outro relacionamento, mas não deu certo. A interferência dos
filhos se dava através “caras feia, reclamação, xingamentos”, e a “outra pessoa” não se sentia
bem. Qualifica como egoísta a atitude de seus filhos, que não é a mesma em relação ao pai,
quando este se envolve em outra relacão. “Aí deixei tudo pra lá”. Mas reafirma ter tido o desejo
de ter uma pessoa que quisesse bem aos seus filhos “e que os meus filhos o quisessem”.
Ao sair para trabalhar, costuma repetir algumas frases para si mesma: “Eu me amo”, “Eu
me acho bonita”, “Sou chique”, “Gosto de me vestir bem”, “Gosto de ser cheirosa”. Considera-se
vitoriosa, uma negra que luta no dia a dia: “Ainda me vejo, assim toda-toda pensando: lutei para
chegar onde cheguei, e vou chegar, acompanhada de meus filhos.”

Tempo narrado IV

Bárbara, 41 anos, nascida em São Paulo. Filha de alfaiate e dona-de-casa, baianos que
vieram em retirada na década de 60, buscando melhores condições de vida na cidade das
oportunidades. A mãe conta que partiram ela, o marido e dois filhos no pau de arara. A criança
mais velha tinha um ano, mas ela já estava grávida do filho que viria a nascer em São Paulo.
Ao chegarem, foram morar com uma cunhada descrita como uma mulher muito ruim, o
que não deixou boas recordações. Logo o pai arruma emprego como alfaiate, e vai com a família
morar num cortiço. A vida não era nada fácil, e a mãe ajudava no orçamento como lavadeira. Não

102
tardou para que o terceiro filhos viesse. A situação não se estabilizava, seu pai não se fixava no
trabalho. As mudanças de cortiço eram frequentes, já que eles ficavam sem condição para bancar
os aluguéis. As situação não tinha se alterado, quando nasceu o quarto filho, que apresentava
saúde frágil. De todas as histórias contadas por sua mãe, o falar sobre os momentos de aflição em
relação à saúde do filho ainda a faz chorar. Um dos vizinhos de cortiço, ao olhar para o menino,
dizia que ele não passaria daquele dia e que todos tomariam o café, referindo-se ao velório
iminente. Mas o menino vingou.
Quando o pai conseguiu se enstabilizar-se no emprego, comprar um terreno e iniciar a
construção da casa, nasceu a quinta filha. “Costuma-se dizer, na família, que nasci em berço de
ouro, a única a ter berço e enxoval, não precisando usar roupas doadas”. A relação entre seus
pais não era nada boa. O pai é descrito como um homem negro muito sedutor e vaidoso, com
muitas aventuras amorosas. Quando tinha 15 os pais se separaram, mudando a situação
econômica da família. Três dos irmãos mais velhos já não moravam mais em casa, eram somente
os dois mais novos e a mãe. Somente o irmão trabalhava, e foi com o pouco que ganhava que ele
manteve o sustento da família.
A infância não é somente marcada pelas crises familiares, pois eles morava em uma casa
“boa” com um grande quintal que tinha árvores frutíferas, ideal para as brincadeiras de balanço.
A rua também é lembrada como espaço onde a meninada se encontrava para o famoso jogo de
queimada. O pai proporcinava alguns brinquedos que os colegas não podiam ter e as brincadeiras
se tornavam uma festa coletiva, já que todos usufruiam. As bonecas a pilha eram o grande fetiche
entre as meninas, tão importantes que eram organizadas festas para comemorar os aniversários. A
mãe preparava tortas, bolos e doces e assim se fazia a festa da boneca. Bárbara se diverte-se ao
lembrar que as filhinhas eram todas nórdicas.
As condições favoráveis também se refletiam na vida escolar. Nunca lhes faltou nada
daquilo que precisavam para estudar. Mas a entrevistada destaca que apenas a mãe acompanhava
todos os momentos dos filhos. Mesmo quando de alguma comemoração em casa, o pai se retiva
cedo. Muitas pessoas, amigas dos irmãos mais velhos, nunca o conheceram, pois ele era
absolutamente ausente.
Mesmo com condições mais favoráveis, os irmãos não tiveram acesso ao ensino
superior. A mãe culpa o pai pela falta de incentivo, já que todas as responsabilidades recaíam
sobre ela, e ele nunca se manifestava nem para elogiar ou cobrar. Entretanto, se alguma coisa

103
andava mal, a culpa era da mãe. Nesse jogo, a mãe muitas vezes era a “carrasca” e o pai era o
“gente boa”.
Desde de muito cedo, ela participava da comunidade, com a igreja de Nossa Senhora
Aparecida como ponto irradiador de diversas atividades. Ela se lembra com carinho da Irmã Ana,
freira Salesiana que se diferenciava da postura da congregação. Devido às coisas que fazia, era
sempre punida. “Era uma rebelde”. Lembra que a irmã reunia as meninas da comunidade para
ensinar tricô. Mas o assunto, durante a tricotagem, eram os pobres que ela tinha visitado na favela
e da punição que tinha recebido por chegar atrasada para o almoço. Quando havia a
possibilidade, a freira convidava para que elas fossem às atividades no Sede Sapientae, onde
invariavelmente Frei Beto, Leonardo Boff e outros costumavam falar. Bárbara não tinha
consciência disso, mas estava mergulhada no universo da teologia da libertação.
Foi a partir do contato com a igreja que se iniciou sua militância, primeiro na Pastoral do
Menor, e depois, com o advento do ECA, Estatuto do Menor e do Adolescente, quando a pastoral
foi transformada em Pastoral da Criança e do Adolescente. Bárbara conta com detalhes os
momentos de encontro em que o ECA era debatido pela sociedade civil. Com o amadurecimento,
o movimento negro passa a ser alvo de sua atenção, e passa a tomar boa parte do tempo na
militância.
Aí se desenha uma atuação, na militância, que se intensificou durante a graduação. Ela
lembra que, na graduação, a militância tinha como objetivo garantir a permanência de alunos
carentes na Universidade, mas também ajudava, com um grupo de estudantes, a trazer o debate
sobre a questão racial para dentro da Universide. “Éramos poucos os negros, mas foi uma turma
que marcou o movimento estudantil dentro da Universidade”. Foi também na universidade que
ela teve contato com as religiões afro-brasileiras, em especial o candomblé. Alguns amigos já
eram iniciados, e frequentemente a convidavam para as festas. Além de consolidar o respeito pela
religião, foi-se criando uma verdadeira paixão, e ela não perdia a oportunidade de entender
sempre mais.
Apesar de estar sempre muito envolvida em diversas atividades, Bárbara não teve
muitos relacionamentos afetivos. Descreve poucas relações e de períodos muito curtos: “Acho
que racionalizei demais. Se fosse hoje, não faria isso, namoraria muito mais, mesmo porque não
foi por falta de oportunidade”.

104
A vida profissional demorou para se consolidar. Mas mesmo exercia atividades ainda de
maneira irregular, sua renda era a maior da família, e seu lugar de provedora foi se consolidando
a cada dia, e se mantém até hoje. Ela não somente é referência no núcleo, mas também junto às
irmãs e sobrinhos, atuando sempre como “salva vidas” financeiro e agindo igualmente na tomada
de decisões, nos assuntos familiares. Por essa causa ela expressa um certo cansado por ter vivido
a vida dos outros, até agora. “Preciso dar um rumo para minha vida, com menos dependência por
parte da família. Preciso viver minha vida”. O próprio espaço é parte desse desejo. Mesmo que a
casa em que mora tenha recebido grande investimento seu, isto não é suficiente para a
consolidação de seu espaço. Ela conta que, quando o fez, seu objetivo era o de dar mais conforto
à mãe. “Adoro casa cheia de sobrinhos, sobrinhos-netos, mas também preciso de isolamento”.
A maternidade é um desejo que aos poucos vai se afastando. Ela diz que, quando era
mais nova, pensava em ter uma filha, mas isso não tinha relação com um casamento. Hoje,
porém, ela já não se vê na maternidade. “Ajudei a criar os sobrinhos, acho que casei”. Mas
lembra que, em todos os jogos de búzios que consultou aparecem filhos. E brinca, dizendo que
devem ser os filhos dos sobrinhos, que já estão chegando.

3.2 Imagens da família e figuras masculinas

Ao falar de suas histórias, as mulheres negras revelam o que são os homens e seu ideal
de homem. Através de suas experiências de vida na condição de filhas, mães e tias, elas nos
ajudam a tecer o que é o masculino e o feminino negro, bem como jogo discursivo e de disputa
nas relações sociais que envolvem esse processo.
A a figura do pai aparece descrita por sua presença marcante e elemento estrutural da
família, como nos revela uma das informantes, hoje com 81 anos. Ela relembrar a luta do pai para
conseguir permanecer com seus filhos e criá-los sozinho:

Meu pai era muito enérgico. Não admitia que ninguém dissesse que ele tinha que
nos dar nós para os outros. Ele achava que tinha capacidade de criar os quatro
filhos, como teve mesmo. Deu todo mundo trabalhador e honesto. São dois
homens e duas mulheres (D. Lazinha, 81 anos).

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Ela conta, ainda, que o pai se opunha à proposta da avó materna, de doar as crianças, já
que reputava impossível um homem cuidar das crianças sem a presença de uma mulher.

Minha avó materna queria pegar nós e dar pros outros, como cachorro. Meu pai
nem tinha amizade com ela e nunca admitiu isso. Quem dava uma mãozinha era a
madrasta do meu pai, uma senhora muito boa, que até hoje lembro dela, e uma
vizinha que tenho no coração até hoje. Meu pai trabalhava na Sorocabana, com o
seu Joaquim. Ela tinha um monte de filho, mas falava pro meu pai: “O senhor
pode sair”. E ela ia pro baile, levava aquele monte de criança, inclusive nós, com
os filhos dela, tudo junto. Tinha a Florinda, que era a sua caçula, e eu, as duas
grudadas na saia dela [chora] (D. Lazinha).

Essa postura também se revelava no que tange às relações amorosas, como relata D.
Lazinha:

Hoje as crianças são tristes. Nós, naquele tempo, éramos santos, mas quem não
tinha filho não queria aguentar sem poder corrigir. Talvez nem corrigir, mas
desabafar alguma coisa em nós. Meu pai não admitia. Meu pai também era muito
galinha. E se a pessoa dissesse que ele tinha feito alguma coisa, ele falava: “Eu
não fiz, só que agora vou fazer”. Tinha uma vida boa, que ele era bem empregado,
mas não admitia que o questionassem. “E se você acha que não está bem com
meus negrinhos” – eu vejo a novela Sinhá Moça, lembro bem que meu pai falava
– “Se meus negrinhos estão incomodando, você não está presa aqui, nem
amarrada” (D. Lazinha).

Isso não o impedia de ter seus relacionamentos, desde que não interferissem na vida
familiar e em sua relação de autoridade e de referência com os filhos.

Branca, preta, italiana. Essa última madrasta minha era italiana. Ela veio da Itália
escondida no porão de um navio, com quatro anos de idade. Tenho a foto dela, aí.
O nome dela era Deodina Portella. A família dela era dos Arantes Portella,
fabricantes do Mate Leão, o chá mate do Paraná. A mãe dela ficou viúva, casou...

106
O padrasto dela era todo condecorado, marechal, não sei o quê, todo cheio de
divisa (D. Lazinha)

A imagem que apresenta do pai é de um homem sedutor e de acesso aos espaços sociais
da cidade. O que está diretamente ligado ao acesso as mulheres, como expresso nas lembranças
da última madrasta:

Ela foi amiga de um amigo, compadre do meu pai, foi inquilina do meu pai. Meu
pai tomou ela de lá, quase se mataram na estrada Sorocabana, ele com o amigo
dele. Meu pai era danado. Mas ele tinha o meio, o outro não tinha. “Eu vou com
quem dá mais”, foi o que aconteceu com a minha madrasta. Essa ficou até o final
da vida dele, cuidou dele. Ele não morreu por causa dela. Uns bandidos daqui de
São Paulo foram assaltar lá na minha terra. Bateram nele, deram muita pancada na
cabeça dele. Estavam dando uma festa lá, ele era o organizador da festa, o
padrinho. Daí foram chamar ela, estava tudo fechado, porque meu tio, que estava
com meu pai, morreu. Ela entrou correndo, pegou ele no colo. Quando viu que o
coração dele estava batendo, ela arrancou da boca dele a dentadura, osso, sangue,
dente, e ele voltou a respirar. Então ela ficou com ele até o fim da vida dele. Ela
tinha uma vida boa com meu pai, boa mesmo (D. Lazinha).

Os espaços conquistados pelo pai terão reflexos na vida dos filhos adultos, como
expresso na narrativa abaixo:

Era vaidoso, limpo, charmoso, magrinho, bem-feitinho de corpo... Onde quer que
fosse, chamava a atenção. Foi um dos primeirões lá na minha terra, na divisa do
Paraná. Era muito respeitado. Colaborava com o asilo, Santa Casa. Era uma
pessoa muito querida, um dos primeirões da Ferrovia Sorocabana. Todos eles
foram empregados da Sorocabana: meu pai, meu irmão mais velho Francisco, e o
Neném, esse que é acima de mim (D. Lazinha).

D. Lazinha recorda os momentos de lazer de família, em que o pai fazia questão de levar
todos os filhos, sem distinção entre meninos e meninas, e destaca que a responsabilidade era
cobrada igualmente.
107
Os filhos tinham os mesmos direitos, as mesmas obrigações, responsabilidades.
Podia sair, mas não tinha esse negócio de sair sozinha com uma bandeira. Ia meu
pai, meus tios, ia todo mundo junto. Baile? Tinha um baile? Ia todo mundo junto,
inclusive meu pai (D. Lazinha).

Outra imagem da figura paterna é apresentada de forma muito diversa da relatada


anteriormente, na memória da informante Neusa:

Do meu pai não tenho muita memória. Tinha muita briga, na minha casa, ele
judiava muito da minha mãe. Quando eu era pequena, eu lembro muito bem que
se falava assim: “Quem é aquela mocinha?” “Ah, é a namorada do papai”. Meus
pais eram caseiros de um médico, na Penha. De lá, mudamos. Parecíamos
ciganos, vivíamos mudando. Depois, ele foi embora e nós fomos morar no
emprego. Daí ele aparecia, dava dinheiro, deu um Lego Universal, lembra? Ele
sempre dava as coisas no começo do ano. Estava sempre com a carteira recheada.
Na formatura do ginásio, não sei por que ele não pôde comparecer. Mas ele me
deu o dinheiro do vestido, o anel de treze lascas de brilhante e tudo. Ele tinha um
bom emprego, mas era coisa lá dele e da minha mãe.

Situação semelhante nos é relatada por Bárbara:


Minha infância teve muitas dificuldades. Não eram financeiras, eram relativas
ao relacionamento dos meus pais. Meu pai tinha conseguido uma certa estrutura
financeira e era um homem muito charmoso e sedutor. Quando muito criança eu
não compreendia muito bem o motivo das brigas, mas eram brigas muito feias, de
agressão física. A presença dele só se fazia na manutenção da casa, ele nunca
participou de nada. Às vezes minha mãe fazia os aniversários para os filhos, mas
ele nunca estava em casa (Bárbara).

A imagem do homem sedutor parece recorrente.

Só na adolêscencia que pude compreender os motivos das brigas. Ele tinha sido
amante da melhor amiga de minha mãe, considerada como tia por nós. Além dos

108
outros casos. Lembro que ela nunca mais veio em casa, perguntávamos pra minha
mãe e ela não respondia. Quando ela ficou muito doente, ela pediu pra ver minha
mãe antes de morrer. Sei que fomos todos ao hospital, e não entrei porque era
pequena. Mas minha mãe foi vê-la, e nunca disse nada dessa visita.

A sedução aqui está estritamente ligada à condição financeira. Eram sedutores porque
tinham uma determinada posição, primeiro no mundo do trabalho, e depois o acesso a outros
lugares sociais que isso lhes permitia. O acesso ao capital de relacionamento com as mulheres,
sem que eles fizessem distinção de cor explicita, dessa forma, a determinação econômica no
sistema das relações amorosas não reconhecida pelo modelo monogâmico, mas recorrente a ele.

Para a informante Ana (56 anos), as recordações de seu pai estão sempre associadas à
figura da mãe.

Tem aproximadamente 22 anos que meu pai faleceu. Minha mãe faleceu há 21,
nem um ano de diferença, praticamente 22 anos os dois. Meu pai brincava que,
quando ele morresse, viria buscar minha mãe, e ela ficou com aquilo na cabeça.
Dizíamos “Tira isso da cabeça”. Era na hora do ciúme, na hora do nervoso. Meu
pai foi um homem muito bão. Para nós ele foi um pai, um psicólogo, um doutor.
Sabia entender a gente. Ele nos criou na dificuldade, porque morávamos de
aluguel na vila Matilde. Mas foi um pai presente, nunca nos abandonou. Ele era
contra a violência, contra uma mãe pegar o filho e bater. Eu não esqueço que, até
então eu nem sabia o que era o Carandiru. Ele dizia “Não bata em seus filhos, dê
conselhos. Couro não endireita ninguém. Se endireitasse, o Carandiru não viveria
cheio” (Ana).

Ao recordar dos conselhos do pai, Ana analisa sua condição de mãe, e o uso que faz da
experiência deixada pelo pai:

Eu dou conselho, porque você sabe que a tendência é piorar cada vez mais. Você
vai fazer coisa errada, você vai preso, a polícia vai te bater, fica um homem mal-
falado, um homem que não tem honra. Mas eles não ouvem, ouvem os colegas de
rua. Fico me perguntando qual seria a solução. Quem sabe, se tivessem o pai
109
presente, talvez o pai conversasse, falasse. Mas a gente vê casos aí de pai que
lutou tanto pelo filho e não adiantou. Me pergunto onde está a cura, que caminho
seguir (Ana).

Ela relata a inserção precária do pai no mundo do trabalho, a fragilidade dos direitos
sociais e a situação degradante que desse processo desencadeia. E que apesar da comunidade
japonesa não fazer parte das primeiras levas de imigrantes a ingressar no país, esses já ocupavam
lugares sociais e econômicos privilegiados, assim como os imigrantes italianos anteriormente,
agora são patrões dos homens negros. Aqui se explicita o processo de reprodução das
desigualdade sob a população negra. As dificuldades, segundo Ana, foram muitas:

Ah, enfrentou muita dificuldade, por não ter muita leitura. Acredito que, por causa
do seu problema de epilepsia, que ele pegou no serviço, ele teria que ter tido uma
indenização, mas não teve. Eu lembro o nome da firma, até hoje. Chamava-se
Rações Sócio, e os donos eram japoneses. Mas é o progresso. Hoje a gente sabe
onde deve ir, que para tudo tem lei, que tem assistente social, tem isso e tem
aquilo. Antigamente não tinha essas coisas. E por não termos uma pessoa para nos
orientar.Ele teria direito a uma indenização, mas o dinheiro deve ter ficado para o
governo, lógico (Ana).

Chama atenção o fato de a figura da mãe não aparecer dissociada da imagem do pai. Aqui,
a família nuclear, apesar de todos os contratempos, parece persistir e ser elemento de admiração
de nossa interlocutora. Ainda sugere que a ideia da existência de uma cumplicidade muito forte
entre o casal, no qual cada um, do seu lugar, obtinham o respeito dos filhos.

Meu pai devia ter uns 62 anos, quando faleceu, e minha mãe uns 56. O que
acabou com meu pai foi a cirrose hepática. Com minha mãe foi problema de
coração. Ela Fez a cirurgia, mas não podia ter tomado anestesia geral.
Antigamente, não havia a tecnologia como a de hoje, e ela acabou falecendo, teve
um choque (Ana).

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A figura do pai-avô aparece como uma imagem estendida, no relato. A imagem aparece
com a do pai, mas se confunde com a imagem do avô, hora representando a mesma coisa. Outro
elemento que merece destaque é que a imagem do pai-avô não é a cosolidada como homem
provedor, mas sua figura mantém uma relação afetiva forte, em que o alcoolismo parece não ser
um incômodo, como nos relata nossa informante:

Como meus filhos cresceram aqui, com todos juntos, para eles meus pais também
eram pai e mãe. Eles me chamavam pelo nome. Mãe, para eles, era a minha mãe,
e pai era o meu pai. Lembro que meu pai cansou de ensinar, coitado, morreu
ensinando que o que era vovô e papai. “Eu sou o vovô”. Mas não adiantava,
cresceram assim. O pai, também chamavam pelo nome. Meu pai deu apelido a
todos. Quando ele chegava alcoolizado, vinha brincar com as crianças. Acho que
enrolava a língua, não lembrava os nomes. Para a menina, dizia: “Ti, vovô
chegou”. O Biu é o segundo (Ana).

Quando nos falam do envolvimento desses homens com o alcoolismo, a históra de


Neusa, Lazinha e Bárbara se encontram seja na figura paterna, do marido ou companheiro como
experiências vivida a partir dos filhos.

Eu dizia: “Seu avô vai chegar bêbado. Não vão no colo dele, que ele pode cair
com vocês e machucar”. Mas imagina. Meu pai vinha que vinha trançando as
pernas, era o mesmo que falar: “Vão no colo dele”. O Biu, aqui? Quantas e
quantas vezes ele não caiu com o Biu no colo? Quando eu via o tombo, eu botava
a mão na cara, assim: “Ai, meu Deus, matou”. Pois ele se arranhava todinho, meu
pai, com o Biu no colo. “Biu, ve’mbora c’a mãe”. “Não, vou ficar com o avô”,
não vinha. O Ito foi a mesma coisa. Meu pai bêbado, acho que esquecia o nome,
dizia: “Ah, Ito, Ito, vovô chegou”. Quantos tombos meu pai não caiu, segurava
na parede, se arranhava todinho. Eu dizia: “Vem comigo”, e ele: “Não, não
quero”. Com a menina foi a mesma coisa. Apesar de tudo, de o pai deles ser
alcoólatra, era um homem muito honesto. Violento, sim, mas honesto. A
honestidade, eles herdaram do pai. Isso, quando a gente é pequeno, serve de
referência (Ana).

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A experiência com alcoolismo aparecerá em várias gerações. No caso de nossa informante
Lazinha, apesar de ela não ter vivido tal experiência na infância, ela o enfrentou na vida adulta
através de um dos filhos, com todos os outros problemas decorreentes de sua condição de
alcoólatra. Em dois trechos da entrevista ela revela como essa problemática afetava a vida
familiar.

Eles me obedeciam, concordavam comigo, todos eles. O Mamai me ajudava


bastante. O Osni, não. Quando pegou uma certa idade, já ficou meio zueiro e
gostava de beber, também. Mas os outros, não (D. Lazinha).

Ao falar da relação com os filhos, elenca mais uma vez o acoolismo como esse elemento
desestruturador.

Ah, os meninos, viu, gostava tudo de beber e era briguentos, também, era
briguentos. Mas as meninas não me deram trabalho (D. Lazinha).

No entanto outra preocupação aparece nos relato dessas mulheres-mães. Para algumas
delas, a droga ronda a vida familiar como um fantasma persistente. Uma ameaça muito próxima,
e que acreditam poder-se evitar estando próximas e acompanhando os filhos nas suas escolhas.
Aqui o tempo histórico vivido por cada uma delas dará a intensidade desse drama.

É aquela que temos, hoje em dia com a violência, com as drogas. Naquela época,
não existia tanto. Hoje a gente tem que se preocupar mais (D. Lazinha).

Tinha todos os medos. Eu tinha medo que se envolvessem com drogas, que
fossem por um caminho que eu não desejava para eles. Mas graças a Deus, está
tudo na paz (Sueli).

Assim, a trancos e barrancos, ele foi embora de casa porque não largava das
drogas, de jeito nenhum. Saiu de casa, foi morar por perto, sozinho. Por quê?
Interna, foge, interna, foge, interna, foge. Em casa com criança, com minha mãe, a
noite inteira acordado, a noite inteira pra rua, tem que dar um basta. Você corre,
112
leva pro médico, ele foge. Chega um momento em que você diz: “É isso o que
você quer? Tchau” (Neusa).

Na fala desses mulheres, os filhos homens estão mais vulneráveis aos dramas da droga e
da violência. As possibilidades de experimentação social, mais abertas para aos homens do que
para as mulheres coloca-os mais próximos ao desconhecido que poderá ser descoberto. Uma das
nossas informantes, que sofreu intensamente com o filho envolvido com drogas, traz uma
reflexão.

Quanto às drogas, os homens. A criação da mulher, independentemente de etnia, a


torna mais recatada. Elas têm mais medo. Os homens são mais aventureiros, eles
vão conhecer tudo. Sob esse aspecto, eu me preocuparia mais com os meninos.
Mas como fui sempre muito aberta com relação a todos os assuntos, se eles
fossem por qualquer caminho, seria pela cabeça deles, porque eu expliquei tudo.
Somos negros, é isso e isso. O mundão está aí. Independentemente de etnia, é isso
e isso. Uns deram umas quebradas, mas porque quiseram. Não foi por falta de
conhecimento, mas por curiosidade. Expliquei tudo, tudo, tudo. Criei meus filhos
de forma muito aberta. Agora o caminho é deles, está tudo explicadinho. Eu dizia:
“A ação é direta sobre você. Eu vou sofrer por tabela, mas quem vai sofrer mais
as consequências de escolhas erradas são vocês” (Neusa).

Minha casa parecia um local de treino, para eu poder ficar de olho nos amigos.
Mas a gente esquece que, quando eles abrem a porta e saem de casa, eles fazem o
que eles querem. Nossos olhos não conseguem ir além do muro de casa. Mas eu
sempre tentei conhecer os amigos que eles tinham. Como eu trabalhava o dia
inteiro, a gente saía junto, ia pro samba junto, pra festa junto, ia proCorinthians
junto, tudo junto. Tentei ter os amigos deles sempre perto, conhecer a família dos
amigos (Idem).

Essas mulheres, que mantém laços de proximidade por serem mulheres negras, e que
passaram parte ou totalidade da vida somente com os filhos, revelam seus sentimentos sobre a
condição de mãe. Alegrias, orgulho, medo, dúvida e frustação fazem parte das narrativas desses
mulheres. Elas se reconhecem com elemento estrutura e esteio fundamental nessas famílias, mas
113
expressam dúvida se o resultado dessa condição foi suficiente e se poderia ser melhor. A dúvida
aqui não está diretamente ligada a suas ações, mas advém do fato de de elas se confrontarem com
uma sociedade em que a família nonogâmica nuclear é o modelo universalizante “digno” do
estatuto de família. Nesse universo de pensamento, essas mulheres esboçam, em suas falas,
também a dúvida da completude de suas famílias, ora referindo-se ao fato da ausência masculina
como elemento simbólico de estrutura de poder, ora buscando elas mesmas assumir essa
condição, ou ainda concebendo a presença masculina como uma interferência na sua relação com
os filhos. Nesse sentido, vale ressaltar que a figura masculina é “solicitada” como uma imagem
simbólica de estrutura de poder, não o poder real, pois esse já está consolidado na relação mãe e
filho.

Uma ilusão. Ou você faz o seu papel de mãe, ou de pai. Você não consegue ter
duas cabeças, metade pensando o masculino, metade pensando o feminino
(Neusa).

Minha preocupação era que eles fossem bem criados, independentemente de


terem um pai. Eu tinha lhes mostrar o mundo fazendo o papel de pai e mãe, ao
mesmo tempo, e é difícil. Ou se é pai, ou se é mãe. Quando você se separa, quer
ser os dois, mas não consegue. Acho que toda mulher que se separa, tenta. Às
vezes arrumam outro marido para suprir a presença paterna. Eu não quis, porque
sempre fui muito cuidadona dos meus filhos. Se uma pessoa que não fosse o pai
deles lhes fizesse alguma coisa, eu iria parar no Cadeião de Pinheiros, não é?
Preferi ficar sozinha, para ninguém bater nos meus filhos (Lazinha).

Eu não precisava dele. Ele não foi o exemplo que eu queria para meus filhos. Com
ele em casa, eu não ia criar meus filhos com valores. Não vou dizer que, se criado
com pai e mãe, um filho vai seguir valores porque, depois que crescem, eles
fazem o que bem entendem. Mas você tem que assentar os alicerces para eles. O
pai, do jeito que era, não era exemplo para meus filhos. Tanto é que fiquei
sozinha. Quando fui arrumar outra pessoa, eles já tinham dezenove, vinte anos.
Ele enchia a cara, bebia todas, chegava bêbado em casa, estudou até a 5a série. Era
trabalhador, mas o dinheiro dele era todo para a rua. Ele trabalhou na Telesp. A
Telesp mandava para a escola, mas ele não ia, eu é que fazia os trabalhos dele, e
114
então não era exemplo para os meus filhos. Quando eu larguei dele, dei graças a
Deus. Eu já os vinha preparando: “Um dia seu pai vai embora, um dia seu pai vai
embora”. Não foi muito sofrimento, eles eram pequenos: cinco, quatro e três.
Resolvi não arrumar ninguém, ficar sozinha e somente criar meus filhos. Não
paquerava ninguém. Onde quer que eu fosse, levava meus filhos para samba, para
as palestras, para os congressos. Piqueniques nos finais de semana, para tudo
quanto é canto. Não ia colocar ninguém na minha casa para judiar dos meus
filhos. Minha mãe morava com umas amigas, depois voltou a morar comigo.
“Não faça isso”. “Ah, mas minha avó deixou”. Eu dava uma ordem, ela dava
outra. Mãe e avó na mesma casa cria confusão na criança. “Vou seguir minha mãe
ou minha avó?” (Neusa).

Quando meus pais se separam eu estava com 15 anos, eu era a caçula, e logo
arrumei trabalho perto de casa. Eu dava reforço escolar para as crianças da obra
social Dom Bosco. Na época não era tão precário o mundo do trabalho, eu
ganhava o salário mínimo para trabalhar na parte de tarde, e estudava na parte da
manhã. Quando meu pai saiu de casa, ele não se preocupou em ajudar em nada.
Minha mãe também começou a trabalhar na creche da comunidade. Quando
alguém dizia para ela ir atrás da pensão que ele deveria dar, ela dizia, que não
precisava dele. E que ela conseguiria vencer sem a ajuda dele. Sempre foi muito
orgulhosa nesse sentido, mas sempre dizia que os vizinhos respeitavam menos
quando percebiam que não tinha um homem em casa, dizia que até mesmo as
mulheres vizinhas quando estavam com o marido não cumprimentava (…) a gente
bricando falava assim “mãe arruma um namorado”, ela dizia que tinha se livrado
de um cão, e não não queria outro para atormentar a vida dela. São mais de 25
anos que está só. Agora além dos netos já tem os bisnetos (Bárbara).

Um certo “reconhecimento social” de uma determinada “fragilidade social” dessa família


composta de mãe e filhos se expressa em práticas de diferenciação e discriminação. O cotidiano
dessas famílias está repleto de fatos que demonstram como isso vai ocorrer no local de trabalho,
de moradia, de estudo, de lazer.

115
Tinha. Porque tudo o que acontecia aqui no quintal, ou na rua, com os vizinhos...
se aparecesse uma vidraça quebrada, uma parede riscada, já diziam que eram
meus filhos. Então eu estava sempre ali. Quando eles saiam na rua para brincar de
bola, eu falava: “Cuidado com a janela, cuidado com a porta do Fulano de Tal”.
Eu já sabia que tudo era nas costas dos meus filhos por eu ser separada, por eles
não terem pai. Muitas vezes, deixei meus filhos dentro de casa, para não
brincarem no quintal, para ninguém falar de meus filhos. Nisso eu fui mãe,
mesmo. Às vezes, com o maior calor, eu deixava dentro de casa, brincando em
cima da cama, sem nem sair no quintal (Ana).

Na minha formatura da 8ª série, minha mãe teve que ir até a escola para que
deixasse meu irmão mais velho entrar comigo na cerimônia para receber meu
diploma, porque a comissão de formatura dizia que tinha que ser o pai, ou EU
entrava sozinha. Eu não queria entrar sozinha. Era até vergonhoso entrar sozinha.
Depois que minha mãe foi lá e falou um nonte, deixando que as pessoas que não
tinham pai entrassem com irmãos, avôs, tios. Imagine que não queriam deixar
nem os avôs entrarem com as netas (Bárbara).

O medo da morte e a retirada dos filhos são situações ainda vivenciadas de forma
angustiada. A voz trêmula e as palavras soletradas devido à forte emoção denunciam que a
realidade relatada poderia ter se concretizado. Esses são os momentos que aparecem com maior
expressão de sofrimento por essas mulheres.

O que mais me preocupava era eu morrer enquanto eles era pequeno, eles ir
apanhar de madrasta e o pai poder não respeitar as menina. Quantas vezes eu
escutava: “Foi Fulano de Tal”, e: “Pudera, não tem pai! Vou bater nele, porque a
mãe não dá educação”. Não pus filho no mundo para apanhar de ninguém, eu os
ensinei a ter vergonha na cara. Até hoje. “Você viu o caminho pelo qual Fulano
está indo? Foi criado de qualquer jeito pela mãe...”. A mãe leva a culpa de tudo
(D. Lazinha).

Elas apontam que mudanças ocorreram, é que hoje há uma relação do ponto de vista legal
diferente em lidar com a questão.

116
Hoje existe o Conselho Tutelar. Mas quando eles eram pequenos, e como éramos
muito pobres, eu tinha medo de que eles fossem para a Febem. Eu tinha medo de
que alguém denunciasse que eu não podia suster meus filhos, e de que a Febem
viesse buscá-los. Porque filho criado sem pai, só com a mãe, todo mundo punha
defeito (Ana).

3.3 Espaços e vivências

A rua, o esporte e o baile aparecem como espaços de vivência dessas masculinidades.


Quando se trata dos espaços de construção desse referência masculina, ela se diversifica, bem
como se expressa uma disputa dessas referências. Ao passo que uma de nossas entrevistadas diz
que a referência masculina para seus filhos foi ela e sua mãe, cabe refletir sobre o fato de que a
referência enquanto símbolo só faz sentido quando concatenada nas relações de poder. Estando o
poder deslocado do símbolo, ele pode transitar entre um referencial e outro. Assim, parece que o
falo, nessa realidade, sobrevive como uma marca d’água que que não escapa à condição de pano
de fundo que insiste em não se apagar. Aqui, a disputa pela referência de masculinidade se dá no
campo da matrifocalidade que também é um campo em disputa, como fica explícito no
fragmentos abaixo:

Não, a referência masculina era eu mesma. As conversas que eles teriam que ter
com o pai, eu tinha. Na questão sexual, por exemplo, expliquei tudo para os
meninos e para a menina. Era sempre eu. Bem matriarcal, mesmo. Minha mãe
era matriarcal, a dona do poder. O que ela não fez para mim, porque fui rejeitada,
ela foi fazer para as crianças. Isso me incomodou muito (Neusa).

Isso não significa que a figura masculina não entra nesse espaço de poder, mas não
altera as definições dessas mulheres.

Porque eu achei que não estava dando conta. Como ele jogava basquete, precisava
das notas e precisava ter bom comportamento, não podia isso, não podia aquilo,
era rígido. Precisava conversar com ele. Eu já tinha conversado, mas não estava

117
dando conta sozinha. Precisava internar e ele não aceitava. Aí o professor de
basquete conversou muito com ele, dava muito conselho. Do resto, eu dava conta
do meu jeito, porque eu ia na porrada. Batia mesmo, de ir às “bocas” com pedaço
de pau, andando a noite inteira atrás dele. Entrava nas bocas e dava em todo
mundo. Não o amarrava à mesa, como essas mães amarram, não é? Eu o deixava
ir para a rua, mas eu ia atrás. Ele ficava nervoso, bravo, queria bater na gente. Eu
dizia: “Me bate, que eu te mato, porque não te abortei quando podia. Vem pra
cima. Se vier, vou pra cima também”. Ele nunca veio pra cima de mim, porque
tudo o que eu tivesse na mão, eu mandava (Neusa).

Afirma ainda que a procura por ajuda, antes uma ajuda masculina, não revelava a busca
pela autoridade masculina, mas sim uma forma diferente e com conhecimento em lidar com a
questão, como revela o trecho abaixo:

Porque as mulheres ficam: “Ai, meu Deus, coitada de você”. Mas não é o caso de
ter dó da pessoa que está com um problema. Tem que chegar junto: “É assim
mesmo, vai ser assim, vai ser assado”. Meus amigos professores conviviam
com crianças na mesma situação, ou com alunos, ou na família. Então sabiam
daquelas conversas que eu não conseguia ter. Eles tinham mais conhecimento do
que eu. Sabe que isso é uma doença, mas você acha que não: “Com meu filho não
vai acontecer isso”. Mas acontece, a gente não está livre dessas coisas. Então eu
recorri a esses meus amigos para ter outra palavra, para que indicassem
uma ação diferenciada das que eu estava tendo e para ver se eu estava certa,
agindo daquela maneira. A gente precisa conversar com as pessoas que têm mais
conhecimento. Eu li muito a respeito e conversei com pessoas que tinham passado
por essa situação. Porque eu tinha que ser forte, tinha que dar conta. Não tanto
pela “figura masculina”. Eu conversaria com uma mulher sobre isso. Mas a
mulherada é muito emotiva. Em vez de ajudar, elas te derrubam: “Ah, não, não é
tudo isso. Ah, que judiação”. Homem, não. Nesse sentido, eles são mais frios. Era
mais fácil conversar com uma pessoa forte que já lidava com os alunos no centro
esportivo, com um conhecimento de causa que eu não tinha, para me dizer dos
estágios pelos quais eu teria de passar (Neusa).

118
Ela revela que o esporte era esse espaço da figura masculina, e que servia de referência:

Difícil, porque meus parentes não moravam aqui. Eram o professor do


Corinthians, o treinador do basquete... E quando eu precisava que uma figura
masculina falasse com meus filhos, eu pedia para os treinadores: “Conversa com
eles, que estou precisando de uma presença masculina”. Outras referências eram
os professores de judô, karatê... Eu não tenho parente homem. Com meu mais
velho precisei bastante, quando ele se envolveu com drogas. E o pessoal, assim,
meus amigos do sindicato conversavam, mas comigo (Neusa).

Uma das grandes queixas da minha mãe era o fato de meu pai não ter dado
atenção nenhuma aos filhos. Ela sempre se referia ao fato de ele nunca ter
ensinado meus irmãos a dirigir. Apesar de ter dois carros, só ele podia dirigir.
Usava um dos carros para trabalhar e outro nos finais de semana. Na verdade, ele
nunca esteve preocupado com a educação dos filhos, independente de ser menino
e menina. Mas que me recordo das falas da minha mãe, de ele não ter ajudado os
meninos a se consolidarem em uma profissão, isso a deixou muito magoada
(Bárbara).

No cotidiano, a figura masculina:

Com meu pai. Como avô, ele deu o carinho a meus filhos, que o pai deles não
deu. Meu pai deu muito conselho, brincou muito com eles. Por exemplo: brigou
na escola. Meu pai me dizia: “Não bata, sente e converse com ele. Pergunta por
que ele brigou, por que bateu, por que o menino bateu nele. Escuta, primeiro”.
Eles são assim, hoje, aprenderam com meu pai. O avô foi avô e pai. Meu pai não
era de bater, e então eles cresceram na sabedoria do avô (Ana).

Ele nunca foi um pai presente. Por exemplo: se meu pai estivesse vivo agora, essa
minha sobrinha-neta que nasceu iria pelo mesmo caminho. Ele já ia pôr apelido,
ela ia viver sempre no colo... Meu pai pitava no cachimbo. Ele vinha no fogão de
lenha, enterrava o cachimbo, colocava o fumo e pegava uma brasa em cima. Eles
todos queimaram a mão, que queriam pegar o cachimbo, do primeiro ao último,
119
pois meu pai pitava no cachimbo e eles queriam segurar. Eu dizia: “Me dá aqui a
criança. Depois que o senhor pitar, eu dou”. “Não, deixa ele pôr a mão, que depois
ele não põe mais”. Aí eles queimavam a mão, depois não pegavam mais (Idem).

Os lugares de referência da masculinidade são tantos como tantas como são inúmeros os
lugares que estes elegem como referência. Almeida (2002) em seu estudo, não tem dúvida de
dizer que na realidade estudada por ele, ser a taberna o lugar onde a masculinidade se construia e
se expressava.
Aqui não é posível fazer a mesma afirmação e dizer que há um lugar exclusivo de
construção da masculinidade, uma vez que esses espaços são também espaços simbólicos e
permanentemente em disputa.

Ele teve aqui, eu não esqueço, um senhor que morava aqui em frente, que eles
conversavam muito. Apesar de ele ser adolescente, ele ouvia muito esse senhor. E
eu ficava daqui, observando. Eu não sei se foi bem uma referência ou se foi
conselho... eu não sei explicar, mas ele ouviu muito esse senhor. A referência
que eu acho que ele teve foi essa, que era o pai da Marlene. Ele ficava sentadinho
ali (Sueli).

O elemento esporte, exceto o futebol no campo de várzea, será um elemento de distinção


econômica entre os sujeitos aos quais os relatos se referem. É demonstrado que o acesso a outros
esportes só foi permitido para aqueles cujas mães estavam numa condição mais favorável, o que
significa dizer que essas mulheres já apresentavam mlhor situação no mundo do trabalho e com
profissão definida. O anseio por esses esportes não era necessariamente desejo dos filhos, mas
uma expectativa da mãe preocupada, a princípio, que eles ocupassem o tempo deles, mas
vislumbrando, posteriormente uma carreira. O que nos interessa é, como já trabalhado nos
capítulos anteriores, através da análise de Oliveira (2004) é o que se observa no caráter másculo
do esporte moderno, o fato de que ele foi criado por homens e para homens, e que acaba
simbolizando valores masculinos. Por toda a modernidade e também hoje, o esporte é uma das
vias em que a masculinidade se estende e se consolidava como valor simbólico, ultrapassando
barreiras de classe, religião e todas as outras diferenças que poderiam impossibilitar a
homogeneização de sua valorização. Aqui, a percepção de ser um esporte um caminho possível
120
para essa masculinidade negra fica evidente, e os projetos superam aqueles iniciais de apenas
ocupar o tempo.

Eles fizeram judô, capoeira e karatê, para não ficar na rua. O mais velho jogava
basquete. Jogou no Corinthians, no Esperia, tudo. Na nossa cabeça, das amigas,
seria um futuro atleta. Foi convidado para jogar no Palmeiras mas não foi, porque
é corinthiano. A única expectativa que tive em torno dele era que ele fosse um
grande atleta, mas não deu certo. O mais novo, como toca muito bem, era de que
ele fosse um grande artista. Quando sentei os três para mandar para a faculdade,
para eu trabalhar mais um pouco, a menina decidiu ser cabeleireira, o outro
decidiu ser músico e o outro ia continuar fazendo o que quisesse. Minha
expectativa era que tivessem uma educação boa, eu trabalharia até mais para
ajudar. Na minha cabeça, uma faculdade um deles faria, mas ninguém foi. A
primazia, para mim, era estudar (Neusa).

Eles faziam todo o tipo de esporte. Têm medalha de ouro de judô, de karatê, todos
os cordões da capoeira, balé, tudo o que eles quiseram fazer. Daí a turma do
basquete e do futebol ia toda para a minha casa. “Diz-me com quem andas e te
direi quem és”, não é verdade? Os trabalhos de escola eram feitos em casa. Eu
ligava para pai, tio, avó de quem vinha em casa. Quando me separei, meu marido
disse que eu não ia dar conta de educar as crianças (Idem).

Ele deveria ir para os Estados Unidos fazer high school, ia tentar jogar basquete
lá... Tinha dezoito. Aí me culpa porque queria que fossem a namorada e ele, você
acha? Eu era diretora de escola, na época. Ele ia ficar na casa da minha vice, cujo
irmão morava lá. Como é que eu ia mandar uma mulher grávida e ele? Ele diz que
prejudiquei a careira dele, e por isso é que ele entrou nas drogas. Mas não foi por
isso. Ele entrou porque quis (Idem).

O baile aparece nas narrativas como o lugar de lazer desses filhos-homens, espaços de
reunião de jovens negros. O que unificava era o samba, o samba rock e a black music, em suas
várias vertendes. Portanto, pode-se afirmar que esses espaços era o espaço de afirmação do jovem
negro.

121
Só bailinho, quando tinha. O Mamai, que gostava de bailinho, ia tomar conta das
menina. Os bailinho na vila, assim pertinho. Outras coisa, mais longe, não. Jogo
de futebol na vila, nos campinho perto, só (D. Lazinha).

O que me preocupava era que, às vezes eles iam aos bailinhos, e não me falavam
que iam passar a noite, não me avisavam. Eu não dormia, enquanto eles não
chegavam. Antes mesmo de ter acontecido alguma coisa, eu pensava: “Vai que
tem uma briga lá, sai um tiroteio...” Enquanto não chegava o último dentro de
casa, eu não dormia. De tanto eu falar “Eu não estou proibindo, vocês só têm
que me avisar”, eles começaram a avisar. O Biu, muitas vezes, ia para a casa dos
colegas e dormia lá. Quando eu voltava do trabalho, achava aqui um bilhete, com
o telefone: “Só volto amanhã”. A Nanci já ia para a casa das irmãs da igreja, para
as vigílias, mas também me avisava (Ana).

A escolarização aparece como o meio pelo qual a situação da populção negra, e em


especial a do homem negro, pode ser alterada.

A sociedade cria a diferença. Acho que se tem que criar como ser humano,
independentemente de gênero. Mas a sociedade classifica, sim. É histórico, isso,
para não dizer que é bíblico: criaram primeiro o homem, e depois a mulher. A
sociedade discrimina, sim, com uma criação machista. Na Educação, os alunos
obedecem, primeiro, o professor branco; depois, a professora branca; daí vem o
professor negro, e só depois a professora negra. E você tem que estar muito bem
vestido, não pode andar de qualquer jeito. Eles vêm muito o estereótipo, o jeito
como você anda e fala. Eles me suportam porque são obrigados, porque ando do
jeito que quero, com meu cabelo grandão, com minhas roupas afro. No começo,
eles se assustavam. Aí fui explicando a minha história, a minha sexualidade, que
eu sigo os meus costumes. Mas é difícil, porque a sociedade rotula a mulher e o
homem também (Neusa).

122
3.4 Das formas de violência

As diversar expressões da violência unificam essas narrativas. Seja como elemento


constante de preocupação, ou como experiência vivênciada de práticas racista veladas ou
explícitas, as falas indicam a centralidade da questão na condição de homens e mulheres em suas
realidades familiares.

O medo era o seguinte: eu não tinha estudo. Por não ter estudo, você não tem
poder aquisitivo. Se eu tivesse estudo e poder aquisitivo, colocaria meus filhos
para estudar num bom colégio. Mas eu não tinha e você sabe, quem sofre é o
pobre. Pobre e negro são marginalizados. Eu, hoje, ainda sofro por ser pobre e
negra. Outro dia fui à igreja de Santa Tereza, na João Cachoeira, no Itaim Bibi. Eu
trabalho um pouquinho pra cá. A cunhada da mulher para quem trabalho é
voluntária lá me ofereceu uma cesta básica e eu fui buscar. Eu estava de pé na
porta da igreja, quando passaram duas madames, levando brinquedos e roupas.
Uma me olhou de cima abaixo, não na minha cara, mas reparando na minha
roupa. Eu ainda sofro, por ser negra e pobre: em shopping, às vezes na condução,
de gente que não quer sentar perto de mim. Ainda existe o preconceito (Ana).

O Ito, que agora é motoboy, já foi barrado não sei quantas vezes, por ser negro. O
negro não pode ter nada. Tudo o que ele tem, a polícia acha que é roubado (Idem).

Verifica-se que elas depositam esperança no poder de superação obtido com o processo de
escolarização. Essa ansiedade não é vista de forma ingênua, pois percebe-se que a instituição
escola, assim como todas as outras, é fruto de uma estrutura racista e que as práticas internas
também perpetuam a discriminação através de seus agentes. Mas apesar de dubiedade, é atráves
dela que lugares sociais de poder podem ser ocupados.

Quer homem negro ou mulher, você tem que estudar. Tem que ocupar lugar nessa
sociedade, tem que dar a cara à tapa, tem que forçar e ir em frente. Eles não
fizeram isso. Eles conhecem a história deles, são militantes, mas não forçaram o
ocupar lugar nessa sociedade. Por isso eu queria um filho gênio, ele iria longe, a
gente iria trabalhar num ambiente propício. Porém, a gente não deve ter muita
123
expectativa. A vida é deles, mas eu queria além. Mas eles entendem a cultura, têm
orgulho de ser negros. Tanto é que a menina trabalha com cabelo afro, o caçula
trabalha com cultura afro (Neusa).

Eu gostaria que todos eles tivessem estudado, embora não houvesse nada de
graça, naquele tempo, como tem agora. Eu queria que eles já fossem se
encaminhando, que pegassem uma profissão para sobreviver, porque pai e mãe
não duram para o resto da vida. Nem que fossem gráficos, pedreiros, mecânicos
ou o que fosse (Ana).

Não, o branco tem mais chances. Numa fila de trabalho, meu filho pode ter
qualificação e muita experiência e currículo. Mas o que vai acontecer, que já
aconteceu, é que ele passa na entrevista, mas não o chamam para trabalhar.
Aquele que menos sabe, mas é branco, é o que fica. Todos nós já passamos por
isso, todos nós. Mas eu digo todos os dias: sou negra e me orgulho disso, porque
ultrapassei todas as barreiras. Adoro a minha cor, o meu cabelinho duro. Adoro a
minha raça, eu não renego. Eu não tenho vergonha de ser negra, e nem de ser
pobre também (Sueli).

Nosso projeto de vida se resumia a pensar o futuro dele. Além de bons colégios,
cursos, viagens, tudo o que podíamos oferecer. Mas não depende apenas da nossa
vontade, né (Valdete).

Também são muitos os casos em que, na fala dessas mulheres aparece o elemento
fracasso, em que as lágrimas, a voz embargada e o olhar perdido expressam a condição de
alguém derrotado diante da luta. Mais do que o sonho desses filhos, aqui está o projeto dessas
mulheres que, buscando construir um lugar ao masculino negro, veem-se diante do fracasso,
adiando dessa forma a consolidação do lugar social que ela quer ver consolidado.

Sempre torci e rezei para meus filhos não sofrerem esse tipo de preconceito, mas
se sofre. Sempre falei: “Estuda, minha gente, estuda. Trabalha e estuda para não
sofrer tanto preconceito que a gente sofre. Porque o Pelé é negro, mas não sofre
preconceito porque ele tem dinheiro, tem posição social. A mídia sempre atira
pedra em jogador negro, ou porque não pagou pensão, ou porque saiu para se
124
prostituir... O próprio policial negro não dá ponto para outro negro. Ninguém dá
(Ana).

Uma das informantes, ao falar sobre a experiência de seu filho com a violência e as
drogas, diz não entender o que acontece. A pergunta recorrente é “Onde eu errei?”, mesmo na
situação em que a responsabilidade é partilhada.

Meu filho estudou nos melhores colégios, conseguiu ser expulso do Etapa. Eu não
aguentava mais de tantas as vezes que fui chamada lá, morria de vergonha. Já não
conseguia perceber se era perseguição ou não, de tanto que ele aprontava (…)
Exemplo em casa ele tem, eu fiz mestrado, o pai também. Não sei. Não falta nada.
Só sei que não consigo mais conversar. O pai se acomodou em jogar toda a
responsabilidade pra mim. Só estou esperando pelo pior, ele some na sexta-feira e
aparece na segunda. Não dá mais (Valdete).

Aqui a condição econômica parece ser testada. Não são sujeitos que passaram privações e
que não tiveram oportunidade de inserção no processo educacional desprovido de capital político.
Aqui se fala de uma classe média elitizada, mas submersa à vulnerabilidade a que, a princípio,
somente o negro pobre está fadado.

Eles entendem a cultura afro-brasileira, conhecem nossos ancestrais. Porém, na


minha cabeça, eu queria muito mais. Esse gênio, para mim, iria longe,
politicamente falando. A gente cria uma expectativa que não é isso. A criança
negra sofre demais. Eu precisava quebrar esse tabu de que somos iguais, mas que
não somos coisa nenhuma. Eu queria que eles estudassem para estourar. Queria
um filho planejado com um QI lá em cima, para que ele tivesse uma grande
visibilidade enquanto negro (Neusa).

Eu disse a ele: “Lá, você é o empregado, e o chefe é o chefe. Se ele acha que o
que ele está falando pra você é o certo, você está sabendo que não é. Você sabe
que você é o certo, e não ele. Mas você tem que acatar a opinião dele, porque ele é
o chefe, e você o empregado”. Então ele já sofreu, sim. Na escola, também. Ele
estava na 8a série, eu fui chamada, uma vez. Na reunião, saíram todos os pais e
125
ficamos mais duas mães e eu. O professor falou que ele estava sentando no fundo,
que estava bagunçando. Ele falou: “Mãe, eu não estou fazendo isso”. “Mas
acontece que você é negro. Então, tudo de errado que os outros fizerem vai sobrar
pra você. Procure se comportar, porque o preconceito em cima de nós é grande”.
Ele me ouviu, continuou em frente e terminou os estudos dele (Sueli).

No relato de Mercedes, a luta contra a pela escolarização do filho era muito mais difícil
segundo suas palavras. Juntava ao processo histórico de exclusão da população negra a
orientação sexual, que segundo nossa informante expressava desde o início da adolescência.

Eu tinha que ficar atenta o tempo todo. Sabe como é, né, a molecada não respeita.
Ficanvam xingando ele mulherzinha desde quando estava no primário. Eu
percebia que meu filho era diferente dos outros meninos e até dos irmãos, em
casa. Os meninos gostavam de ir pra rua, naquelas brincadeiras de bola, carrinho.
Ele não não ficava dentro de casa sempre brincando numa máquina de escrever
velha, que tinha aqui. Dizia que ía ser escritor [chora]. Acho que ele conseguiu,
né, fez o mestrado dele, foi o momento mais feliz da minha vida. Mas eu sempre
defendi meu filho. É um homem de coragem. Mas não foi fácil, a família
nordestina cabeça dura, na escola eu já disse como era. Os professores, nem aí.
Mas coitados né, é tanta coisa pra eles (Mercedes).

Recorda um momento em que o filho teve o currículo selecionado por um grande colégio
privado, em São Paulo, e de como partilhou da decepção do filho.

Que felicidade, quando eu peguei aquele papel na mão. Parecia que era meu, era
meu também… Logo que ele começou mandar os currículos, ligaram pra ele e
acharam o currículo muito bom, a mulher falava por telefone. Quando ele foi até
lá, já viu que a mulher fez aquela cara e deu a desculpa de que tinha outras
entrevistas. Que nada, meu filho fala, assim: “Mãe, foi porque sou negro, não foi
porque sou gay, porque eu até passei por homem” [risos]. Até acho engraçada a
forma boa com que ele leva a vida. Ah, meu filho querido… Mas ele está muito
bem, hoje (Helena).

126
3.5 Das relações e desejos

Nessa teia de enredos, essa mulheres lançam mão daquilo que desejam para seus filhos no
que tange aos relacionamentos. Algumas, de forma mais direta, afirmam a necessidade de que os
relacionamentos sejam dentro do grupo étnico-racial. Outras dizem que a escolha é dos filhos,
mas observam que, nos momentos de crise, o conflito racial aparece, e aqui é a experiência de
vida e a consciência dessas mulheres que norteia o discurso.

Eu sempre ensinei que negro tem que casar com negro, que é pra amanhã ou
depois não jogar na cara. Por exemplo: meu filho é negro, casa com uma branca.
Um dia, ele fica desempregado, ela vai jogar na cara dele: “Seu neguinho, eu casei
com você e agora você é vagabundo”. Não vai entender que a vida tem seus altos
e baixos. Além disso, muitas vezes é tudo interesse: “Olha, ele é negro, tem
profissão, tem um carrão da hora, tem uma moto”. Tudo interesse. Por isso meus
filhos têm que casar com negros. Têm que manter a cor e a origem (Ana).

Mas olha que meu sonho era ver um filho meu casado com uma mulher negra.
Mas já sabe, né… Nenhum quis. Sempre foram as brancas que eles queriam (D.
Lazinha).

Minha mãe sempre foi a favor que nos relacionassemos com os negros. Não dizia
isso publicamente, nem pegava bem. Mas dentro de casa ela sempre alertou,
principalmente aos meninos, que procurassem namorar uma moça negra. Alertava
os meninos, porque sempre foram eles que namoravam as brancas. Todas irmãs
são casadas com homens negros, todos os meninos são casados com mulheres
brancas. E não foi por falta da mãe orientar (Bárbara).

Entre essas mulheres e mães negras e a vontade dos filhos homens negros e suas relações
matrimonias há um distanciamento.

Que eu conheci, que ele namorou muito tempo, a Andréia. Era boazinha,
quietinha. Era negra, porque nem era branca nem... só era clarinha, mas... Pra ele
é negra, é loira.(…) Não sei, porque ele nunca namorou uma mulher negra, negra,
127
negra assim como eu e suas irmãs, nunca namorou. Pelo menos que eu
conhecesse, não (Sueli).

No entanto, não deixa de expressar sua idealização, mas avalia a inutilidade de usa
opinião.

Eu acho que namoraria uma mulher negra. Se eu pudesse escolher, escolheria uma
negra pra ter os netinhos tudo negritinho, mas não tenho como opinar (Sueli).

Acho que não adianta você se expressar, porque cada um tem que ver o que é bom
ou ruim para si. Às vezes se fala “Filha, Fulano não serve pra você”. Mas isso sou
eu que estou achando. E ela? Se ela acha que serve, eu não tenho que me
envolver. Eu não me envolvo (Idem).

No processo educacional dos meninos e meninas, elas identificam a educação sexista


como elemento positivo, principalmente no cuidado destinado à mulher. Há um incentivo no
modo de se comportar, com o quê e com quem brincar, um universo cercado de cuidados
especiais em que brincadeira de menino não se misturava a brincadeira de menina.

Tem diferença. Todos merecem cuidado, mas menina é mais. Assim: até os seis
anos, no vestir, com quem brincar... Eu não deixava brincar com moleque. Eu ia
levar na escola, eu ia buscar, sempre com cuidado: “Não brinca com menino”.
Antigamente, menina brincava com menina, na escola, e menino com menino.
Em casa, era a mesma coisa. Podia ser tudo parente, que era um terreirão, e
vinham todos os primos. Mas menino brincava com menino, e menina com
menina. Menina brincava de boneca, de casinha, de pular corda... Hoje está como
eles querem. As crianças nem brincam, hoje (Ana).

Se com as meninas a preocupação estava envolta com o mundo das relações privadas e de
todo o universo que a compõe, para os meninos estava ligada àS atividades e ações no espaço
público. Aqui esses são impulsinados a ocupar esse espaço, e o mundo do trabalho aparece como
a plenitudo desse lugar na condição de homem, e de homem com capacidade provedora.

128
Com os meninos, era de que se juntassem com outros meninos peraltas, que já
entendiam de malícia. Eles iam para a escola, apareciam com um pedacinho de
lápis ou uma borracha, “Quem que deu?” “Ah, o Fulano”. No outro dia, eu ia à
escola perguntar à professora, essa era a preocupação, de ir mais além. No que
eles vão à escola para aprender, aprendem outras coisas, também. E é assim que
começam a tirar as coisas dos outros, quando tiram dos colegas. Época de
figurinha, o Biu aparecia com um monte de figurinha. “Onde você arrumou?”
“Ah, mãe, eu rapelei”, que é quando você ganha dos outros. Mas eu sempre estava
na preocupação. Com 6, 7 anos, já comecei com a preocupação de ensinar a
trabalhar. Eles iam para a feira, fazer carreto. E tinham que me dar um xis de
dinheiro (Ana).

129
Capítulo 4

NOS CONTORNOS DA MASCULINIDADE

4.1 Masculinidade como expressão do ideário da sociedade burguesa

Para a sociedade burguesa, a associação entre masculinidade e responsabilidade era algo


natural, ainda mais quando se pensava na imagem do pai dentro da célula familiar. Da mesma
forma, hoje em dia os executivos de grandes empresas são os responsáveis e comedidos chefes de
departamento, continuamente instados a ter espírito empreendedor e a tomar atitudes de risco,
valorizando a agressividade e a ousadia empresarial.
Nas palavras de Oliveira (2004), também nas instituições militares o ideal de autocontrole
sempre foi valorizado no sentido de transformar os recrutas em soldados obedientes e
disciplinados. Com se vê, ainda que aparentemente antagônicas, as características que unem o
guerreiro heróico ao homem comedido e sereno, protótipo do laborioso pai de família, não são
excludentes e impossíveis de ser cultivadas simultaneamente. Prova disso foi o entrelaçamento
dessas características que, juntas, formaram o alicerce do ideal moderno de masculinidade.
Manifestações que conjugam potência e serenidade, inquietação e equilíbrio, emergem, da
mesma forma, em conjunto a atributos como estabilidade e excitação, vigor e moderação para
integrar e constituir o ideal moderno de masculinidade.
O realce dado à figura paterna, no seio da vida familiar, foi sempre enraizado pelo cristão
das mais variadas tendências e vinha ao encontro dos emergentes ideais burgueses. Na
formulação de Oliveira, esse papel foi central na educação dos meninos:

Certas correntes de orientação evangélica tiveram papel importante na educação


das crianças do sexo masculino, ao conciliarem atributos como obediência,
responsabilidade e moderação juntamente com intrepidez, ousadia, amor aos
ideais nacionais, determinação e força de vontade na imagem idealizada do
verdadeiro patriota cristão, que seria, antes de tudo, é claro, viril e masculino ( p.
47).

130
A masculinidade patenteou-se na modernidade como símbolo de um ideal de permanência
que mantinha a vida social, a família e todas as tradições contra a loucura e o ritmo infernal das
mudanças típicas da sociedade industrial. Durante os períodos de turbulência social, era comum o
surgimento de movimentos com caráter reacionário e conservador, de cunho político e/ou
religioso, que realçavam os atributos de masculinidade. Agora, mesmo nos períodos pacificados,
crescia, com a ascensão dos valores burgueses, o enaltecimento do ideal masculino ao lado do
recrudescimento dos preconceitos e da intolerância contra aqueles que não se enquadravam no
modelo masculino socialmente sancionado.
Ainda que também pudesse estimular e valorizar atributos guerreiros, no século XIX, a
religião se incumbia, principalmente, de promover a moralidade tipicamente burguesa, enquanto
o exército e os esportes cultivavam valores masculinos para a educação da virilidade. Umas das
instituições mais importantes e que serviu de modo fundamental para veicular esse tipo de
moralidade foi o casamento, visto como consequência natural na vida do cidadão comum e
também como barreira contra os vícios e a degeneração (Ibid, p. 49).
Ter condições de desenvolver o equilíbrio e o domínio sobre si próprio era pré-requisito
para que se pudesse ter controle e autoridade sobre a família, na condição de marido e pai. Isso
terá uma influência decisiva para os processos de subjetivação modernos e também para a
questão do poder, pois “será digno de governar outros aqueles que adquiriu domínio de si”, ou
ainda, “o melhor será aquele que exercer um poder sobre si mesmo”. A estrutura recebe destaque
em Oliveira:

A assimetria de poder na família era reforçada pela disposição da nova ordem em


promover uma separação total entre homens e mulheres: pensava-se na época que
quanto mais feminina a mulher e mais masculino o homem, mais saudáveis a
sociedade e o Estado. (…) A subjugação da mulher ia ao encontro da constituição
de uma família nuclear para a qual o lar, com os afazeres domésticos e os
cuidados com as crianças, se tornaria seu espaço legítimo, enquanto aos homens
ficaria destinada a esfera pública, a esfera do poder. Na sociedade burguesa, as
funções da mulher foram postas com clareza: mãe, educadora, controladora dos
empregados (quando eles existirem), provedora de afeto e carinho (p. 49).

131
O desenvolvimento e, por fim, o estabelecimento da família nuclear caminhou pari passu
com a formação do Estado moderno. A família (burguesa) moderna tornou-se sinônimo de uma
diferenciação exarcerbada entre os sexos, de uma glorificação do laço mãe-filho e da expectativa
de que os homens sustentassem suas esposas e crianças.
A decantada ideia do pai provedor é outra criação com pouco tempo de existência
histórica, ainda que tenha conquistado foros de legitimidade semicientífica, seja no
funcionalismo parsoniano ou, mais recentemente, nos tratados de Sociologia. Mesmo nos dias
atuais, o pai-provedor nunca vingou de modo eficiente nos segmentos mais pobres, em que o
orçamento familiar demanda o trabalho de outros membros da família, incluindo mães e filhos,
realidade não muito diferente dos primórdios da Revolução Industrial, quando mulheres e
crianças eram exploradas em extenuantes regimes de trabalho (Ibid., p. 51).
Sexo, amor e família tornam-se indissociáveis, com isso, o papel do patriarca ganharia
destaque e supremacia na sociedade moderna. O sexo é o coração do casamento e o casamento, a
base fundamental da família. Nessa condição, o adultério era criticado com veemência e recebia
penalidades notadamente para as esposas, vítimas em muitos casos de assassinatos.
Apesar da hegemonia simbólica da família nuclear, as análises questionam a força e sua
própria realidade, afirmando ser ela uma ficção, já que representa uma minoria. Muitas mudanças
favoreceram outros jogos de laços familiares. No entanto, o fato é que a família burguesa é um
ideal coletivo que não precisa ser vivido pela maioria para assim se manter. Nesse sentido, nem
sempre o que é hegemônico ou que é considerado “normal” constitui a maioria numérica.
O ideal coletivo de família burguesa tem sido cultivado de diversas formas em inúmeras
narrativas, e tem como sua forte expressão a figura do pai, sacralizada como a haste
normalizadora dos processos sociais, sendo a ausência a perda do equilíbrio e do sustentáculo da
estrutura social.
A prática do esporte como valor masculino atravessou toda a modernidade e tem suas
expressões até hoje. Aqui, a centralidade da análise não é o esporte, este é apenas o caminho para
pensarmos os sentidos da construção do corpo.
A ginástica ganha maior estatuto no final do século XVIII, como forma de atingir a força
masculina. Os iluministas relacionavam sapiência e sensatez ao corpo saudável através dos
exercícios físicos. A ginástica se expande durante o século XIX, passando a ser expressão dos

132
estados nacionais, onde se tornava obrigatório o serviço militar e os treinamentos e atividades
como expressão da masculinidade.
Através dos esportes, a masculinidade se estendia e se consolidava com valor simbólico, e
ultrapassava barreiras de classe, religião e todas as outras diferenças que poderiam impossibilitar
a homogeneização de sua valorização. A função da ginástica, na política estatal, era tirar da
inércia os filhos incompetentes do proletariado, preparando o corpo para servir à função social
para qual estava destinado.
Fazia parte de um processo social mais amplo, em que métodos aplicados de forma
constante permitiam o controle minucioso das operações do corpo, realizando a sujeição de suas
forças e impondo-lhe docilidade e utilidade. Segundo Focault, esse processo está presente nas
forças armadas, nas escolas, em conventos, internatos, colégios, quartéis, presídios, fábricas,
hospitais, asilos etc.
O ideal moderno de masculinidade continua tendo o esporte como seu representante.
Elemento da indústria do entretenimento traz um novo elemento, que é ser vitrine do protótipo do
macho ideal. Hoje, os esportes fornecem espaços públicos nos quais os homens podem projetar
sua imagem heróica ainda que, muitas vezes, agentes femininos possam também traçar sua
carreira de heroísmo nesses mesmos espaços. Independentemente desse fato, mesmo quando são
mulheres que ocupam as arenas esportivas, os atributos continuam sendo os dos heróis
consagrados pelo ideal moderno de masculinidade.
A imbricação dessas diferentes esferas (esporte, ciência, mídia, mercado etc.) conserva e
valoriza os ideais societários de uma civilização capitalista, que inculca diariamente todos esses
modelos e transforma o território do mundo social numa grande arena de competição onde os
melhores, os grandes esportistas, os efetivamente masculinos são os vencedores, aqueles que
triunfam nas batalhas cotidianas do consumo e da produção.

4.2 Ciência, corpo e masculinidade

Há uma imbricação entre os ideais da racionalidade, como os postulados científicos e o


ideal moderno da masculinidade. Oliveira apresenta indícios que sustentam tal afirmação.
Segundo eles, é possível identificar tal aproximação nos anatomistas dos séculos XVIII, que
descreviam o esqueleto das mulheres, disseminando a ideia de que o cérebro masculino era mais

133
propenso a se desenvolver intelectualmente do que o feminino. Já as ideias darwinistas faziam
eco junto ao ideal moderno de masculinidade, ao fantasiar o conceito de virilidade adaptativa por
meio de uma disciplina corporal, moral e intelectual. A fisiognomia buscava descrever a índole
de uma pessoa através da análise de seus traços físicos particulares, com a qual a propensão
moral estava integralmente relacionada. Ou seja, a ciência também conspiraria para legitimar e
ratificar a supremacia androcêntrica.

Os insanos, os negros, judeus, homo-orientados e todos os que não se encaixavam


de maneira adequada no ideal burguês de masculinidade eram constantemente
classificados como diferentes e deficientes sob algum aspecto e, para justificar tal
visão, sempre havia uma teoria médica à mão. Da mesma forma, a mulher
aparecia como um ser inferior em muitos estudos (…) afirmava que a constituição
física feminina, comparada à masculinidade, era mais delicada e frágil, e isso
explicava o fato de serem as mulheres mais propensas a desenvolverem doenças
dos nervos numa frequência maior do que a dos homens (OLIVEIRA, p. 57).

Os negros foram vistos como selvagens e bárbaros. Seus atributos físicos, antes de serem
vistos como positivos, eram tidos como signos de incivilidade, como traços que os impediam de
se tornar “civilizáveis”. Sua exuberância física não estava relacionada à força do guerreiro
branco, mas a uma energia e ímpeto sexuais selvagens que os transformavam em libertinos e
devassos “por natureza” e, portanto, numa grande ameaça para as recatadas, delicadas e
“civilizadas” mulheres brancas.
O filósofo Jacques Derrida (1991) denominou nossa racionalidade como “falocêntrica”,
ao indicar o acoplamento entre o falo e o logos ocidentais, caracterizando pelo seu enaltecimento
da identidade masculina, européia, branca e heterossexual.
Ao mesmo tempo, ela torna desqualificado o contratipo feminino (ou feminilizado), não
europeu, não-branco, homo-orientado, associados ao selvagem ou ao irracional.
Quando se fala da imbricação entre postulados e proposições científicas e o enaltecimento
do ideal de masculinidade, isso se refere apenas ao modo como a ciência e todo o seu legítimo
lugar de destaque na vida ocidental foram utilizados de modo a favorecer a valorização daquele
ideal. A legitimidade daqueles que defendem uma epistemologia científica diferente daquela que

134
orientou a pesquisas científicas, por considerá-la inerentemente vinculada ao sexismo, ganha
mais um elemento de apoio, ampliando assim, fundamentos para apontar a controvérsia.
A imbricação entre ciência e o ideal moderno de masculinidade não significa deslegitimar
o empreendimento científico em si mesmo. Somente com o apoio dessas verdades parciais e
provisórias é que se desmascaram artifícios culturais e arbitrários. “A ciência é um eficiente
sistema simbólico que, como nenhum outro no Ocidente, possui um grande poder de construção
da realidade” (OLIVEIRA, 2004, p. 60).

4.3 Controvérsias sobre a crise da masculinidade

Os processos de constituição de identidade e subjetividade dos agentes estão sendo


acelerados e ampliados, verificando-se a desestruturação de uma série de instituições e certezas
que foram fundamentais para erigir os diversos ideais da modernidade, dentre os quais o de
masculinidade.
Seria importante pensar em que mediada as mudanças socioestruturais teriam, de fato,
flexibilizado ou tornado menos rígidas as prescrições sociais para o gênero masculino e se o
homem, hoje, vivencia algum tipo de crise existencial em função da inadequação entre
prescrições de gênero antiquadas e as demandas sociais atuais.
É possível afirmar que muitos fatores novos fazem parte da atual dinâmica social,
estimulando um conjunto de condutas, em certos segmentos sociais, que dificultam a hegemonia
e a permanência do ideal masculino, tal como ele se apresenta nos primórdios da modernidade.
Esse processo, entendido como pós-modernidade, tem algumas características centrais a
ele associadas, como seu dinamismo tecnológico, aliado à busca de novos mercados, em todas as
partes do globo. Isso incorporou novos grupos étnicos e culturas que passaram a compor seu
ampliado mercado de trabalho e consumo, uma variedade de culturas, dialetos e diferentes modos
de fazer as coisas, constituindo uma miscelânea de perspectivas e possibilidades que, ao lado do
consumo, traduz o cenário da emergência da sociedade pós-moderna.
É um processo que já existia anteriormente, cuja aceleração acabou por provocar um
atordoamento no atual ritmo de vida e possibilitou novas formas de sociabilidade que ainda não
estão completamente assemelhadas pelos agentes e instituições.

135
Bauman (1998) acredita que a pós-modernidade, dentro de uma perspectiva sócio-
histórica, nada mais fez do que radicalizar aspectos da própria era moderna, com a ressalva de
que o projeto universalista não tem, aí, mais nenhum sentido. Ele aponta para um movimento
contínuo de privatização e de esvaziamento do espaço público na pós-modernidade.
Da religião ao campo das artes e da política aos laços afetivos, passando pelos esportes,
ciência e tudo o mais, nada ficou incólume à “mercadificação”. Paulatinamente, as injunções
sociais mais indiscutíveis foram desmanteladas, dentre as quais aquelas presas aos
comportamentos que visam à realização dos ideais modernos de masculinidade, no bojo de uma
progressiva desregulamentação e privatização de todas as redes de seguro e proteção seculares.
Todo esse movimento e aceleração desembocam no consumidor, ele passa a ser a chave de
inteligibilidade da pós-modernidade, deslocando e substituindo a figura do soldado/trabalhador
da modernidade, tão congenial aos modernos valores masculinos. Três instituições são
representativas que expressam tais transformações, o mundo do trabalho, o estado e a família.
Há o desgaste de alguns valores associados ao ideal moderno de masculinidade
relacionado às mudanças no mundo do trabalho. As mulheres ocupam cargos que exigem
qualificações semelhantes às do homens. No entanto, os salários são menores e as possibilidades
de ocuparem posições mais elevadas são menores.
As políticas de identidade, como o feminismo, o movimento gay e todas aquelas que
visam a favorecer os mais diversos grupos étnicos, vicejam nesse caldo cultural pós-moderno.
São beneficiadas pela contínua expansão do capitalismo que aglutinava em torno do mercado um
número cada vez maior de consumidores e trabalhadores, recrutados não necessariamente de
acordo com as características do agente hegemônico, ou seja, macho, branco, ascendência
européia e heterossexual.
Essas políticas puderam se manifestar sem necessariamente defender nenhuma bandeira,
anticapitalista, o que as tornou mais ainda simpáticas aos detentores do poder econômico. Pelo
menos não suscitaram reações mais energéticas dos setores mais poderosos, exatamente os
segmentos que detêm a supremacia econômica (ibid., p. 93).
Em relação de poder macroestrutural, um processo que consagra a separação entre política
e poder, entre o poder do Estado-nação e os interesses do capital internacional, em que a
expansão do primeiro indica o esvaziamento do primeiro.

136
O capital se desterritorializa e não é mais limitado por espaço ou distância, enquanto o
Estado nacional continua preso a seu território. Na definição de Bauman, a casa da política é o
espaço. Já o ciberespaço, onde a materialidade física do espaço é abolida ou neutralizada, é o
domicílio (expressão paradoxal neste caso) do capital e da informação.
Apesar de haver um processo de derrocada da metáfora para o corpo destemido e
imponente do varão, fontes de apoio aos ideais modernos de masculinidade se mantêm e se
reelaboram. Por outro lado, o aumento da violência e da incerteza pode, em alguns contextos
específicos, revigorar os ideais guerreiros e o espírito destemido diante do perigo e mesmo da
morte junto aos segmentos da população mais afetados pela exclusão, ou seja, as camadas
populares. Isso se reflete nos ideais masculinos valorizados por gangues e inúmeros grupos
criminosos. É a volta ao guerreiro reinventado. “Assim os possíveis abalos na ideia do Estado
com metáfora para um corpo soberano autônomo e viril são compensados por uma série de
efeitos que contribui para a manutenção do lugar simbólico da masculinidade, em sua
configuração brutal e pouco flexível” (ibid., p. 103).
Como já analisado anteriormente, a família assumiu na era moderna o ideal de
masculinidade, afetando diretamente os lugares sociais dispostos para as imagens idealizadas do
homem moderno. Diferentemente da crise vivenciada pelo Estado-nação, essa se reflete
imediatamente numa das estruturas basilares da masculinidade agora em processo de erosão
contínua, isto é, a figura patriarcal, símbolo fundamental do poder masculino.
O patriarcalismo é agente central nas sociedades contemporâneas é onde se assentam
todas as sociedades. Na definição de Castells (1999) caracteriza-se pela autoridade, imposta
institucionalmente, do homem sobre a mulher e filhos no âmbito familiar. Para que essa
autoridade possa ser exercida, é necessário que o patriarcalismo permeie toda a sociedade, da
produção e do consumo à política, e da legislação à cultura. Os relacionamentos interpessoais e,
consequentemente, a personalidade, também são marcados pela dominação e violência que têm
sua origem na cultura e instituições do patriarcalismo (ibid., p. 169).
Todas essas transformações têm dado espaço para uma série de mudanças que alteram a
correlação de forças entre o masculino e o feminino, mas ainda assim pensar que isso configura
uma mudança na correlação de força entre o masculino e o feminino não é possível afirmar.

137
Esse jogo de força se constitui através de duas faces, uma estruturada, que são as
instituições, as leis, etc) e estruturantes (valores, símbolos e agentes) mais epecificamente aqueles
que sustetam as assimetrias e diferenças simbólicas presentes no regime de gênero.
Oliveira tensina ao afirmar que, se é inegável a existência em curso de um debate acerca
da insatisfação quanto aos padrões de comportamento masculino socialmente sancionados, faz-se
necessário, no entanto, avaliar o alcance e as diversas formas que esse problema pode assumir, de
acordo com a perspectiva específica de cada segmento social. A construção e o exercício da
masculinidade (no caso, aquela típica das camadas populares), constituem experiências
enriquecedoras para boa parte dos agentes masculinos que as compõem. São capazes de prover
orgulho para aqueles que as vivenciam quase como uma dádiva divina, já que ao padrão
correspondente aqui aludido se refere a uma pequena parcela de homens dos setores médios e
altos, mais especificamente junto a determinadas categorias profissionais e nunca extensíveis aos
demais segmentos com um todo (2004, p. 203).
Essa gama de possibilidades não é a mesma para os agentes dos setores populares. Isso
faz com que muitas vezes os homens desses setores só possam dispor de um leque restrito de
opções para se colocar no mercado de trabalho, de modo que suas chances de obter e manter o
emprego são limitadas. Tal fato prejudica, dessa forma, o cumprimento satisfatório do papel de
provedor da família, exemplo típico de função normalmente atribuída aos homens, mas que, nos
segmentos populares, nem sempre pode ser cumprida.
A possibilidade de ocorrência de descompasso entre declaração de adesão a novos
valores e práticas efetivas não invalida a verificação de que estejam ocorrendo transformações e
que elas sejam mais frequentes nos segmentos sociais melhor posicionados.
Os contrastes aparecem claramente em alguns costumes e atitudes mais comuns em um segmento
do que em outro. Alguns pesquisadores relatam o fato de que se verificam mais frequentemente
nos segmentos populares exibições explícitas dos signos da virilidade quando, por exemplo, se
mantêm hábitos como o de segurar nos genitais em público, demonstração de masculinidade e
poder fundado, sobretudo, no corpo. Essas expressões também são identificadas por Almeida:

A etiqueta é mais elaborada em torno do tema da masculinidade. Esta se afirma


mais pela sexualidade que pela violência ou a força física. (…). Os traços mais
evidentes são os gestos de tocar nos testículos (entendidos simbolicamente

138
como a residência corporal da masculinidade), ou as posturas corporais de
encontro à barra, mas também mostrar que há o potencial de violência, batendo
com as moedas no zinco do balcão com as peças do dominó ou com as cartas na
mesa, dando palmadas fortes nas costas dos outros, ou não cruzando as pernas
(2000, p. 189).

Percebe-se aí a necessidade de distinção, enfatizando-se traços “hipermasculinistas”


(agressividade e violência) como uma das poucas formas de afirmação positiva acessível aos
jovens do sexo masculino das camadas populares.
A busca obsessiva da identidade é, muitas vezes, uma busca típica de quem se vê
inferiorizado, ou almeja uma melhor posição ou ainda a manutenção do que já obteve dentro do
jogo de confrontações entre fatores sociais os mais variados (sexo, etnia, classe, região de
origem, profissão etc.)
Pertencer a certo grupo que consegue projetar seu valor como superior aos demais tem
importância considerável, especialmente quando se contrastam, através do agente, identidades
coletivas.
No caso da masculinidade, esta faculta aos que partilham dos valores abrangidos por seu
ideal moderno indiscutível status de superioridade frente aos grupos de agentes que mobilizam
condutas e comportamentos opostos, e relaciona-se com os ideais societários dos quais faz parte e
que ajuda a constituir do mesmo modo que estes a ela. Sua face social aparece como lugar
simbólico, transcendente, mas ela vive inscrita nos corpos, na postura, nos juízos de gosto e
percepção dos agentes, com lugar imaginário de sentido estruturante, participando dos seus
processos de subjetivação, sendo continuamente reatualizada nas vivências interacionias
masculinas.

4.4 Do masculino às masculinidades: contornos dissonantes

Robert Connell (1995) apresenta o debate sobre a masculinidade, entendendo que esse
não é um objeto isolado, mas sim um aspecto de uma estrutura maior. Adverte que todas as
sociedades contam com registros culturais de gênero, porém nem todos têm o conceito de
masculinidade, só recentemente entendida com questão relevante.
Como se observa no trecho abaixo:
139
En cualquier caso, nuestro concepto de masculinidad parece ser un producto
histórico bastante reciente, a lo máximo unos cientos de años de antiguedad. Al
hablar de masculinidad en sentido adsoluto, entonces, estamos haciendo gêrero en
una forma culturalmente especídica. Se debe tener esto en mente ante cualquiera
chamada de haber descubierto verdades transhistóricas acerca de la condición del
hombre y de lo masculino (CONNELL, p. 2).

A análise de Connell apresenta três importantes caminhos trilhados pela análise sobre a
masculinidade: a primeira diz respeito às definições essencialistas, que qualificam tipificações
relativas ao homem e à mulher, demandas acerca de um ethos de base universal da
masculinidade. As definições normativas, segunda perspectiva de análise, compreende que
diferentes homens se cerquem, em diversos graus, das normas.
Já enfoques semióticos abandonam o nível da personalidade e definem a masculinidade
mediante um sistema de diferença simbólica em que se contrastam lugares masculinos e
femininos. Masculinidade é definida como não-feminilidade. Esse enfoque segue uma fórmula da
lingüística estrutural, onde os elementos dos discursos são definidos por suas diferenças entre si.
Esse enfoque tem sido extensamente utilizado nas análises culturais feministas e pós-
estruturalista de gênero.
Mais produtiva do que um contrato abstrato de masculinidade e feminilidade, a
masculinidade é o lugar da autoridade simbólica. O falo é a propriedade significativa da
masculinidade e a feminilidade é simbolicamente definida pela carência desses. Tal definição tem
sido “útil” nas análises culturais, já que escapa da arbitrariedade do essencialismo, e dos
paradoxos das definições positivistas e normativas.
Aqui é necessário abarcar a ampla gama de tópicos acerca da masculinidade, outras
formas de expressar as relações, o lugar com correspondência de gênero na produção e no
consumo, ou instituições e lugares nas lutas sociais e militares.
O que se pode generalizar é o princípio de conexão. A ideia que um símbolo pode ser
entendido só dentro de um sistema conectado se aplica igualmente bem em outras esferas.
Nenhuma masculinidade surge, exceto em um sistema de relações de gênero. Nas palavras de
Connell,

140
En lugar de intentar definir la masculinidade como un objeto (un caráter de tipo
natural, una conduta promedio, una norma), necesitamos centrarmos en los
procesos y relaciones por medio de los cuales los hombres y mujeres llevan vidas
imbuidas en el género. La masculinidad, si se puede definir brevemente, es al
mismo tiempo la posición en las relaciones de género, las práticas por las cuales
los hombres y mujeres se comprometem con esa posición de género, y los efectos
de estas práticas en la experiencia corporal, en la personalidad y en la cultura
(1995, p. 6).

Em outro trecho, ele reafirma:

Cualquier masculinidade, como una configuración de la prática, se ubica


simultáneamente em várias estruturas de relación, que puede estar siguiendo
diferentes trayectorias históricas. Por consiguiente, la masculinidad, así como la
femineidad, siempre está asociada a contradicciones internas y rupturas históricas
(Ibid., p. 8).

Não é o falo (ou a falta dele) o fundamento dessa visão de mundo, e sim essa visão de
mundo que, estando organizada segundo a divisão em gêneros relacionais, masculino e feminino,
pode instituir o falo, constituído em símbolos da virilidade, de ponto de honra caracteristicamente
masculino. “A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e
condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma
natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada” (grifo do
autor). (BOURDIEU, p. 33).
Assim, o que o discurso mítico professa os ritos de instituições realizam da forma mais
insidiosa, sem dúvida, porém mais eficaz simbolicamente. Eles se inscrevem na série de
operações de diferenciação visando a destacar em cada agente os signos exteriores mais
imediatamente conformes à definição social de sua distinção sexual. Ou para estimular as práticas
que convêm a seu sexo, proibindo ou desencorajando as condutas impróprias, sobretudo na
relação com o outro sexo. Exemplo são os ritos de separação, que tem a função de emancipar o
menino com relação a sua mãe e garantir a progressiva masculinização.

141
As relações sociais de dominação e de exploração que estão instituídas entre os gêneros se
inscrevem, assim, progressivamente, em duas classes que Bourdieu define como habitus
diferentes, sob a forma de hexis corporais opostos e complementares e de princípios de visão e de
divisão, que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções
redutíveis à posição entre o masculino e o feminino.

As mulheres, pelo contrário, estando situadas do lado do úmido, do baixo, do


curvo e do contínuo, veem ser-lhes atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou
seja, privados e escondidos, ou até mesmo invisíveis e vergonhosos, como o
cuidado das crianças e dos animais, bem como todos os trabalhos exteriores que
lhes são destinados pela razão mítica, isto é, os que levam a lidar com a água, a
erva, o verde (como arrancar as ervas daninhas ou fazer a jardinagem), com o
leite, com a madeira e, sobretudo, os mais sujos, os mais monótonos e mais
humildes (…) é a elas que cabe a tarefa longa, ingrata e minuciosa de catar, no
chão mesmo, as azeitonas ou achas de madeira, que os homens, armados com a
vara ou com o machado, deitaram por terra; são elas que, encarregadas das
preocupações vulgares da gestão quotidiana da economia doméstica, parecem
comprazer-se com as mesquinharias do cálculo, das contas e dos ganhos que o
homem de honra deve ignorar (Ibid., p. 41).

Os homens (e as próprias mulheres) não podem senão ignorar que é a lógica da relação de
dominação que impõe e inculca nas mulheres uma visão de mundo na qual seu lugar – concreto e
simbólico – está carregado de imperativos morais que o qualifica positiva e negativamente.
As próprias estratégias simbólicas que as mulheres usam contra os homens, como as da
magia, continuam dominadas, pois o conjunto de símbolos e agentes míticos que elas põem em
ação, ou os fins que elas buscam – como o amor ou a impotência do homem amado e odiado,
respectivamente – têm seu princípio em uma visão androcêntrica em nome da qual elas são
dominadas (BOURDIEU, p. 43). Ocorre um mito ilustrativo dessa relação contraditória:

Logo que o mundo foi criado, todos os orixás vieram para a Terra e começaram a
tomar decisões e a dividir encargos entre eles, em conciliábulos dos quais somente
os homens podiam participar. Oxum não se conformava com essa situação.
Ressentida pela exclusão, ela vingou-se dos orixás masculinos. Condenou todas as
142
mulheres à esterilidade, de sorte que qualquer iniciativa masculina no sentido da
fertilidade era fadada ao fracasso. Por isso, os homens foram consultar
Olodumaré. Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer sem filhos para
criar nem herdeiros para quem deixar suas posses, sem novos braços para criar
novas riquezas e fazer as guerras e sem descendentes para não deixar morrer suas
memórias. Olodumaré soube, então, que Oxum fora excluída das reuniões. Ele
aconselhou os orixás a convidá-la, e às outras mulheres, pois sem Oxum e seu
poder sobre fecundidade nada poderia ir adiante. Os orixás seguiram os sábios
conselhos de Olodumare e assim suas iniciativas voltaram a ter sucesso. As
mulheres tornaram a gerar filhos e a vida na Terra prosperou (PRANDI, p. 345).

A dominação masculina encontra, assim, todas as condições de seu pleno exercício. A


primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e
de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção
e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos
esquemas imanentes a todos os habitus. Moldados por tais condições, eles funcionam como
matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como
transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como
transcendentes. Eles são liberados em grande medida da necessidade do recurso da força, já que a
eficácia simbólica é muito mais eficiente, como expresso no trecho abaixo: “Como o desejo, a
linguagem rompe, recusa-se a ser encerrada em fronteiras. Ela mesma fala contra nossa vontade
em palavras e pensamentos que se intrometem, até mesmo violam os mais secretos espaços da
mente e do corpo” (HOOKS, 2008, p. 857).
O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de língua etc.)
se exerce não na lógica pura das consciências, mas através dos esquemas de percepção, de
avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus. Na definição de Bourdieu, habitus é tudo
que compõe o produto de um trabalho social de dominação e de inculcação, ao término da qual
uma identidade social, que o mundo social desenha, inscreve-se em uma natureza biológica e se
torna um habitus, ou lei social incorporada.

(…) assumem muitas vezes a forma de emoções corporais – vergonha,


humilhação, timidez, ansiedade, culpa – ou de paixões e sentimentos – amor,
143
admiração, respeito –, emoções que se mostram ainda mais dolorosas, por vezes,
por se traírem em manifestações visíveis, como o enrubescer, o gaguejar, o
dasajeitamento, tremor, a cólera ou a raiva onipotente e outras tantas maneiras
de se submeter, mesmo de má vontade ou até contra a vontade (…).
(BOURDIEU, p. 51)

Pelo fato de o fundamento da violência simbólica residir não nas disposições modeladas
pelas estruturas de dominação que as produzem, só se pode chegar a uma ruptura da relação de
cumplicidade que as vítimas da dominação simbólica têm com os dominantes com uma
transformação radical das condições sociais de produção das tendências que levam os dominados
a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes
(BOURDIEU, p. 54).
Contudo, para sua perpetuação ou transformação, a e dominação depende de se manter ou
transformar as estruturas de que tais disposições são resultantes – nesse caso particular, da
estrutura de um mercado de bens simbólicos, cuja lei fundamental é que nela as mulheres são
tratadas como objetos que circulam de baixo para cima. Se as mulheres, submetidas a um
trabalho de socialização que tende a diminuí-las e negá-las, aprendem as virtudes negativas da
abnegação, da resignação e do silêncio, os homens, por sua vez, também são prisioneiros e, sem
se aperceber, tornam-se vítimas das representações dominantes.

4.5 Fragmentos e fissuras: elementos históricos de “outro” masculino

No final do século XIX e início do século XX, a homo-orientação era vista basicamente a
partir de três perspectivas: como degenerescência do instinto sexual, como anomalia indicativa de
parada na evolução sexual natural ou como resultado de algum trauma de fundo psíquico. O
receituário para a cura incluía desde a abstinência forçada com sansão penal, se fosse o caso, até
a hipnose, passando por recomendações inusitadas, tais como visitas sistemáticas a prostíbulos
para impô-la a propensão a práticas heterossexuais.
No início do século XX, uma intensa vida boêmia em algumas das capitais européias
seguia na contracorrente do ideal comportamental moralmente valorizado para os homens. Esse
estilo de vida, estigmatizado pelos bastiões tradicionais do comportamento masculino, ajudou a
constituir a imagem de artistas, escritores e os mais diversos grupos de intelectuais como sendo
144
seres frágeis e devassos, verdadeiros párias quando comparados aos homens comuns,
considerados normais pela maioria (OLIVEIRA, p. 165).
Oliveira discorre sobre o universo que se apresentava na Europa no início do século XX.
Em Berlim, o sexólogo Magnus Hirschfel listou a existência de 20 bares com frequência de
pessoas homo-orientadas. Até o início da Primeira Guerra, o número subiria para 38
estabelecimentos. A capital alemã foi, naquele período, muito mais aberta ao novo estilo de vida
e prática sexual do que as demais capitais européias, como Paris e Londres, cidades onde também
se podia conduzir um estilo de vida contrário àquele preconizado pelo ideal moderno de
masculinidade.
Mas foram os confrontos de 27 e 28 de junho de 1968, entre policiais e gays na
Greenwich Village, em Nova York, conhecidos como a rebelião de Stonewall, que estabeleceram
o início do movimento gay contemporâneo. Nos idos dos anos 1960, nos EUA, eram comuns os
ataques de policiais contra bares e locais de reunião de gays e lésbicas.
Como reação a tal arbitrariedade, legitimada pelo consenso da maioria hostil em relação
àqueles que expressavam orientação sexual não convencional, formaram-se, lá, os primeiros
grupos e frentes de resistência à intolerância, que deflagraram a mais importante luta pelos
direitos de gays e lésbicas, naquele instante, incentivando lutas semelhantes em outros países.
Os anos de 1960 e 1970, um período de intensas e variadas experimentações nos vários
campos do comportamento e, em particular, da cultura em geral, haviam deixado a impressão de
que a “revolução cultural” vivida, talvez de modo mais intenso, por parcelas da juventude e da
intelectualidade, tinha efetivamente liquidado, em caráter definitivo, certas ideias e certo
preconceitos (FERREIRA, 2004, p. 54).
É no interior desse processo que se situa a história mais recente de movimentos como o
feminista, o negro e o gay, dando voz e peso político-social às “minorias” ou aos novos sujeitos
que se afirmavam na cena cultural. Novas formas de racionalidade, novas forma de
comportamento, novas formas de contestação política, novas formas culturais; enfim, um novo
ethos se fazia presente. É nesse contexto, especialmente durante os anos 1970, que vamos ver a
consolidação de um “movimento homossexual”.
Diante dessa onda conservadora, a figura do gay, um dos símbolos da liberação sexual e
cultural dos anos 1960 e 1970, é aos poucos substituída, ao longo dos anos 1980, pela figura do
yuppie, marcado por estilo e comportamento mais controlados estilizadoa, com forte inserção no

145
mercado de trabalho (respeitando todas as regras), valorização do consumo (ainda que
contrariando as regras mais evidentes da então sociedade de consumo) e minimizando a
dimensão erótico-sexual da vida cotidiana.
O advento da Aids, nos anos 80, impulsionou ainda mais o movimento e diversificou o
espectro de atuação do mesmo, com o surgimento em seu seio de redes de auxílio aos doentes, ao
lado da criação de lobbies para forçar as autoridades públicas a investirem em pesquisa e
informação, visando ao combate e prevenção da doença (OLIVEIRA, p. 164).
Paralelamente a esse processo de consolidação de lideranças, de organizações, de espaços
de lazer e de palavras de ordem, observamos a afirmação de um “estilo de vida” gay, se uma sub-
cultura gay – a qual, ao longo dos anos 90, reinvindica o adjetivo queer como marca de sua
radicalidade política, tornando-se cada vez mais presente na moda, na publicidade e na vida
cultural em geral. Falando muito mais de homossexualidade masculina do que feminina e
desenhando os contornos de uma identidade homossexual também marcadamente masculina, esta
movimentação vai contribuir de modo especial para a ligitimação pública de sujeitos e práticas
homossexuais.
Frentes constituídas no período, como a Mattachine Action Committee, a Gay Liberation
Front e a Gay Activist Alliance foram precursoras de movimentos mais organizados surgidos nos
anos 90, como o Act-Up e a Queer Nation. Estes, junto a outros grupos, organizam as famosas
paradas americanas conhecidas como Gay Pride, responsáveis pela reunião de dezenas de
milhares de gays e lésbicas em diversas cidades dos EUA, e que constituem o formato de
expressão do orgulho gay, adotado por organizações similares na Europa e em outros países,
como o Brasil.
A luta por eles, deflagrada pelo direito à cidadania, não se restringe a um posicionamento
contrário aos conservadores e tradicionalistas que são, normalmente, os maiores defensores do
ideal moderno de masculinidade e dos valores típicos da sociedade burguesa, segundo a
tradicional cartilha política. A batalha não era apenas derrotar os que defendem bandeiras
clássicas da direita, a ideia da família, da propriedade privada e da naturalidade de assimetria de
poder e posição na sociedade, de acordo com os talentos e capacidades de cada indivíduo
justificando, assim, a desigualdade social. De acordo com Altman, a luta também era contra o
chauvinismo imperante nos partidos de esquerda, pois o estilo de vida gay desafia costumes que
estão além (ou quem sabe aquém) da problemática socioenconômica (adup OLIVEIRA, p. 54)

146
Seria, no entanto, ingênuo pensar que esses possam ser tomados como um grupo
homogêneo e sem diferenças. Não bastassem as diversas atribuições e inserções sociais que sobre
eles incidem, suficientes para justificar posicionamentos díspares diante de questões
fundamentais, eles expressam dissensões mesmo em relação à própria imagem que fazem de si
enquanto grupo e também quanto ao comportamento e às estratégias a serem adotadas para
enfrentar o preconceito de gênero, do qual são vítimas contumazes. A história de suas
divergências pode ser verificada ainda quando eles tinham a dimensão que ganharam nas últimas
décadas (ibid., p. 165).
Alguns grupos radicais chegam a reivindicar marcas distintas para uma cultura
tipicamente “homo”, defendendo uma espiritualidade gay, a vida gay coletiva, com espaços
comunitários e estruturas sociais não hierarquizadas, vivida longe das mulheres e heterossexuais.
Tal proposição causa desconforto entre as feministas, com a percepção de que, muitas vezes, essa
bandeira busca apenas ampliar o espectro da dominação masculina para nele incluir também os
homens que praticam sexo com outros homens, ao invés de desmantelar o privilégio masculino e
a cultura androcêntrica (CLATTERBAUGH apud OLIVEIRA, p. 168). Para outros, no entanto,
os gays seriam como homens comuns, diferenciando-se desses últimos apenas em suas práticas
sexuais.
A queer theory, que se inscreve como porta-voz de travestis, transexuais, bissexuais,
hermafroditas, entre outros, não deixou por menos ao eleger, como seus inimigos, os próprios
gays e lésbicas. Repudia a natureza essencialista dos códigos e modos de classificação
dominantes e se esforça para incluir qualquer um que se sinta oprimido pela voga dominante.
Celebra a diferença e a diversidade em termos de raça, classe, gênero e sexualidades entre seus
associados e critica qualquer política de identidade baseada na dualidade de orientação sexual.
Um embate entre os defensores do “assumir” (o famoso coming out), justificado por
grupos como Act-Up, nos EUA, e o OutRage, na Inglaterra, contra os teóricos queers, foi acirras
nos anos 90. Enquanto que, para os primeiros, assumir sua condição sexual favorece a causa
“homo”, os teóricos queers dizem que a divisão entre “heteros” e “homos” se baseia na dicotomia
entre o público e o privado: o público, associado à heterossexualidade; o privado, à homo-
orientação. A metáfora espacial do armário (coming out of the closet) sugere que a identidade é
alguma coisa clara, com a questão de simplesmente torná-la visível, pública e inequívoca, o que
está longe de ser verdade, segundo a queer theory (PERTENSEN apud OLIVEIRA, p. 169).

147
Torna-se bastante difícil, hoje, manter uma posição de identidade gay isenta de críticas advindas
dos próprios membros que compõem o segmento.
O movimento homossexual tem seu surgimento no Brasil, registrado pela bibliografia
sobre o tema, na segunda metade dos anos 1970. O termo movimento homossexual é aqui
entendido como o conjunto das associações e entidades, mais ou menos institucionalizadas,
constituídas como o objetivo de defender e garantir direitos relacionados à livre orientação
sexual.
Costuma-se identificar três diferentes momentos desse movimento. As iniciativas do
período estavam concentradas em São Paulo e Rio de Janeiro, e tinha a característica
antiautoritária e comunitarista. Estendeu-se até o final da década de 1980, período que coincide
com a retomada do regime democrático e o surgimento da AIDS. O final da década de 1980, foi
bem pouco tratada pela bibliografia específica, tendo sido anunciado como correspondendo a um
“declínio” do movimento, processo contrário daquele ocorrido na Europa e nos Estados Unidos.
No início dos anos 1990, houve a retomada das iniciativas militantes resultado do
processo de democratização ocorrido na década anterior. Na segunda metade da década de 1990
pode-se verificar a presença na Mídia, participação em movimento de direitos humanos, redes
sociais e vinculação a redes internacionais estatais principalmente relacionados ao tema da
DST/Aids. Formulando resposta frente a exclusão.
Focando a realidade no Brasil, Pereira (2004) sugere que a discussão em torno da questão
da homossexualidade, especialmente a masculina deve levar em conta pelo menos três grandes
eixos. Inicialmente, o impacto da AIDS tanto no plano social e político naquele das formulações
teóricas. Em seguida, a grande visibilidade de uma “cultura gay”, fortemente marcada, tanto pela
emergência de novas formas de organização e mobilização, quanto pela dinâmica da globalização
com a consequente rearticulação entre fluxos locais e globais. Finalmente, a crise de uma visão
tradicional do “masculino”, com a emergência de um debate acalorado e mobilizador tendo,
como uma de suas consequências, a consolidação de um campo de reflexão e de pesquisa (bem
como de mobilização e de organização social) já conhecido como o campo dos “estudos
masculinos” (p. 52).
Inicialmente identificada, no imaginário social, como uma “doença gay” – provocando o
aparecimento de expressões como “câncer gay” ou “peste”, carregadas de preconceito e de
verdadeira animosidade, foi sendo reconhecida como capaz de atingir os mais diferentes grupos

148
sociais sem que, entretando, essa sua proximidade simbólica com o mundo homossexual não
tenha se apagado inteiramente. Ao tomar conta do imaginário social, reacende velhos
preconceitos fazendo ressurgir um discurso violento e excludente que buscava,
desesperadamente, reconstruir barreiras e fronteiras recém derrubadas diante de sujeitos sociais
que, até há pouco, haviam vivido uma trajetória marcada por vitórias significativas e crescentes
(PEREIRA, p. 56).
No que tange ao racismo e à homossexualidade, Osmundo Pinho (2004) tem nos dados
reflexões importantes a cerca da realidade brasileira. Para Pinho, as várias dimensões do
movimento em torno da homossexualidade deve ser entendido como um horizonte de sentido,
horizonte de antecipação. Esses mundos, como conjuntos de práticas e performances sociais e
sexuais, interagem configurando como uma guerra dos mundos homossexuais, de modo que as
comunidades homossexuais são construídas através da desigualdade, através do racismo, através
da violência que as estruturam de modo determinante. Não é que a violência, a desigualdade e o
racismo sejam um acidente, uma contingência, um desvio. Essas comunidades existem, são
estruturadas, têm suas regras de convivência baseadas na desigualdade (p. 130).
Dos anos 90 até hoje, temos presenciado a configuração e a consolidação do que vem
sendo chamado, tanto aqui quanto em outros países, uma “cultura gay” ou o chamado “gay way
of life”. No conjunto da mídia (tanto na imprensa especializada – voltada para um público
basicamente constituído de gays e lésbicas – quanto na grande imprensa), a expressão “cultura
gay” e as referências a um modo de vida gay vai ganhando espaço, ligitimidade e simpatizantes,
independentemente da orientação sexual dos que com ele simpatizavam.
Os abalos sofridos pela masculinidade hegemônica, em função da desestruturação de
algumas instituições que lhe davam sustentação, não foram suficientes para provocar uma
mudança total no que diz respeito às diferenças de poder social entre homens e mulheres. Fatores
culturais são responsáveis pela permanência do atual regime de gênero, mesmo em sociedades
avançadas do ponto de vista industrial e econômico (OLIVEIRA, pp. 194-195).
É nesse ambiente que vem se somar a afirmação mais recente do campo dos estudos
masculinos, o que não apenas coloca a categoria masculino no centro do debate de gênero mas o
faz no rastro de uma longa movimentação teórico-política em torno das questões de gênero.
Pode-se discutir do ponto de vista do masculino, daquele lugar que fôra, até então, o ponto de
amarração de toda uma pesrpectiva a partir da qual foram construídas visões de gênero

149
hegemónicas e responsáveis, pelo menos de modo geral. Embora diferentes e de modo não
necessariamente consciente de parte dos diferentes agentes sociais, as razões politico-teóricas de
cada uma desta áreas forçou uma discussão muito mais consistente e aprofundada da natureza, da
dimensão (ou dimensões) e do(s) sentidos (os) da categoria de “masculino”.
O termo inglês para homossexuais – gay – sugere colorido, abertura e legitimidade. No
plano pessoal, contudo, o termo gay trouxe consigo uma referência cada vez mais voltada à
sexualidade como uma qualidade ou propriedade do self. Um indivíduo “tem” uma sexualidade,
gay ou não, que pode ser reflexivamente compreendida, interrogada e desenvolvida (GIDDENS,
1992, p. 10).
Nas palavras de Giddens, a “sexualidade” foi descoberta, exposta e tornada acessível ao
desenvolvimento de diferentes estilos de vida. É algo que cada um de nós “tem” ou cultiva e
deixou de ser uma condição natural adquirida. A sexualidade funciona como um elemento
maleável do self, um ponto de ligação essencial entre corpo, auto-identidade e normas sociais (p.
11).
Nesse sentido, a reflexão sobre masculinidade não pode se furtar de também o fazer em
relação à homo-orientação e às características simbólicas, uma vez que coloca em xeque aspectos
que atingem diretamente o valor da masculinidade enquanto lugar simbólico e que, nesse sentido,
constitui um golpe que desestabiliza o ideal moderno de masculinidade.

4.6 Da luta contra hegemônica à construção de outras hegemonias

O mito abaixo sintetiza a disputa pela manutenção da hegemonia e a luta contra


hegemônica com a finalidade de estabelecer-se hegemônica.

Xangô e Ogum sempre lutaram entre si, ora disputando o amor da mãe, Iemanjá,
ora disputando o amor da amada, Oxum, ora disputando o amor da companheira,
Iansã. Lutaram no começo do mundo e ainda lutam agora. Ogum usa da sua
força física e das armas que fabrica, Xangô usa da estratégia e da magia. Ambos
são fortes e valentes, ambos são guerreiros temidos. Mas só uma vez Xangô
venceu Ogum na luta. Numa disputa que travaram por Iansã, ora a batalha pendia
para um lado, ora pendia para o outro. Ninguém conseguia prever o final,
150
ninguém podia apostar quem seria o vencedor. Foi então que Xangô apelou para a
astúcia, como é de seu feitio numa hora dessas. Conduziu a batalha como quem
ser retirava e, sem que Ogum percebesse, Xangô o atraiu para a pedreira. Foi
então que Xangô apelou para a magia, como é de seu feitio numa hora dessas.
Quando Ogum estava bem no pé da montanha de pedra, Xangô lançou seu
machado oxé de fazer raio e um grande estrondo se ouviu. Com o trovão veio
abaixo uma avalanche de pedras e as pedras soterraram o desprevenido Ogum.
Xangô vencera Ogum na pedreira, que desde então foi considerado o elemento
de Xangô. Xangô venceu Ogum naquele dia, única vez que alguém venceu Ogum.
Mas esses dois filhos de Iemanjá seguem lutando ainda, ora disputando o amor da
mãe, Iemanjá, ora disputando o amor da amada, Oxum, ora disputando o amor da
companheira, Iansã (PRANDI, p. 286).

Com a crescente aceitação do efeito combinado entre gênero, raça e classe, reconhecem-
se múltiplas masculinidades: negro e branco, classe trabalhadora e classe média. O mito acima
revela o espaço de tensão que é a masculinidade.
Reconhecer mais de um tipo de masculinidade é só um primeiro passo. Temos que
examinar as relações entre elas, mas também separar o contexto de classe e da raça para
investigar as relações de gênero que operam dentro delas. Em Connell hay hombres gays negros
y obreros de fábrica afeminados, así como violadores de clase media y travestis burguese (1995,
p. 11). Destaca ainda que: La masculinidad hegemônica no es un tipo de caráter fijo, el mismo
siempre y en todas parte. Es, más bien, la masculinidad que ocupa la posición hegemônica en un
modelo dado de relaciones de gênero, una posición siempre disputable (id.,Ibid).
Os processos históricos apresentam a exaltação de uma forma de masculinidade em
detrimento de outras, em tempos diversos. A “masculinidade hegemônica”, formulação cunhada
por Connell, pode ser definida como a configuração de prática genérica que encarna a resposta
correntemente aceita ao problema da legitimidade do patriarcado, e que garante a posição
dominante dos homens e a subordinação das mulheres.
Connel enfatiza que a masculinidade hegemônica encarna uma estratégia correntemente
aceita. Quando mudarem as condições de resistência do patriarcado, estarão corroídas as bases
para o domínio de uma masculinidade particular. Grupos novos podem questionar as velhas
soluções e construir uma nova hegemonia. Então hegemonia é uma relação historicamente móvel.
151
Seu fluxo e refluxo constituem elementos importantes do quadro sobre o conceito de
masculinidade proposto neste trabalho. A hegemonia se refere à dominação cultural na sociedade
como um todo. Dentro desse contexto, há uma relação de gênero específica de dominação e
subordinação entre grupos de homens.
Segundo Connell, as masculinidades homossexuais, na ideologia patriarcal são o “lugar”
de tudo o que é simbolicamente descartado da masculinidade hegemônica, com assuntos que
oscilam desde um gosto enfático pela decoração até o prazer anal. Ele conclui que, do ponto de
vista da masculinidade hegemônica, a homossexualidade se assimila facilmente à feminilidade.
Apesar das definições normativas de masculinidade não representarem os homens na
totalidade – e uma vez que os homens que rigorosamente praticam os padrões hegemônicos
parecem reduzidos – a maioria dos valores ganham por hegemonia, já que esta se beneficia com o
dividendo patriarcal. Um grande número de homens tem alguma conexão com o projeto
hegemônico, porém não encarna a masculinidade hegemônica.
A hegemonia, a subordinação e a cumplicidade são relações internas à ordem de gênero.
A inter-relação do gênero com outras estruturas, tais como a classe e a raça, cria relações mais
amplas entre as masculinidades.
As elaborações de Robert Staples, aprentadas por Connell, sobre o colonialismo interno
em Black Masculinity mostram, ao mesmo tempo, o efeito das relações de classe e raça. Tal
como ele argumenta, o nível de violência entre os homens negros nos Estados Unidos só pode ser
entendido mediante a mudança de posição da força de trabalho negra no capitalismo americano e
pelos meios violentos utilizados para controlá-la. Connel desevolve a esse respeito:

La marginación es sempre relativa a una autorizacón de la masculinidad


hegemónica del grupo dominante. Así, en Estados Unidos, algunos atletas negros
pueden ser ejemplares para la masculinidad hegemónica. Pero la fama y la
riqueza de estrellas individuales no tiene un efecto de chorreo y no brinda
autoridad social a los hombres negros en general (1995, p. 15).

O debate sobre a masculinidade negra no Brasil aparece muito mais como política pública
do que na esfera da reflexão teórica. A ausência do homem negro na históriografia revela não a
ausência de importância que esse teve a estruturação da sociedade brasileira, já que na condição
de força de trabalho ou de reprodutor dessa força humana, foi elemtento central do sistema
152
escravista. A consolidação da imagem esteriotipada e fixa: o homem negro é representado com
um corpo negro, o seu próprio corpo, que emergiu simbolicamente, na História, como o corpo
para ou outro, o branco dominante. O seu é um corpo para o trabalho e corpo sexuado, de
músculos e força física. Sua sexualidade é genitalizada. Seu pênis é um símbolo falocêntrico do
“plus” ou “algo a mais”, da sensualidade que o negro representa e que significa sua recondução
ao reino dos fetiches, animados pelo olhar branco.
Esses dois tipos de relação (hegemonia, dominação/subordinação e cumplicidade por um
lado, e marginalização/autorização, por outro), integram um marco no qual podemos analisar
masculinidades específicas. São configurações de práticas gerais em situações particulares, numa
estrutura de relações e mudança.
Reconhecer a masculinidade e a feminilidade como elementos históricos é colocá-las
firmemente no mundo da ação social, o que sugere uma série de questões sobre sua historicidade.
Assim não podemos pensar masculinidade e feminilidade no singular:

Mas o que dizer de negros, pobres, mulheres, gays e todos os outros “diferentes”?
Eles sempre se olham no espelho e veem suas diferenças, sempre se apercebem
daquilo que neles é “disfuncional”. Eles são o outro dos lugares simbólicos
dominantes. (...) De fato, os homens sempre foram objeto das pesquisar em
ciências sociais. Estudos sobre a classe trabalhadora, as gangues e delinquentes,
os papéis sexuais e a família, sobre a sexualidade e identidade, além de muitos
outros, tangenciaram o tema, mas nunca chegaram a colocar o homem em sua
condição de ser masculino, enquanto tópico essencial do debate acadêmico
(OLIVEIRA, p.143).

As pesquisas recentes sobre homens e masculinidades vêm, de certo modo, seguindo os


mesmos passos teóricos e metodológicos percorridos pelos estudos de gênero de enfoque
feminista, em que a definição normativa de masculinidade é vista como dominante, mas não
como a única versão. O desafio à concepção de masculinidade hegemônica surgiu de homens
cujas masculinidades são vistas como desviantes: negros, homossexuais e de outras etnias.
Bernardo (1998), num trabalho que resgata a memória de mulheres e homens, negros e
brancos velhos em São Paulo, focaliza as narrativas dos homens negros e afirma que estes,

153
alijados da vida econômica e social da cidade, tiveram sua trajetória de vida influindo
diretamente na constituição das famílias negras.
Nesse sentido, as práticas sociais de gênero que reproduzem o poder do homem sobre a
mulher, assim como o poder de alguns homens sobre outros homens (por exemplo, a dominância
das masculinidades distintas), que reforçam a construção social do gênero baseada na hierarquia
de poder, só poderá ser autenticadas e reconhecidas quando submersa em uma dada realidade.
Uma forma dominante, heterossexual, patriarcal e compulsiva tem ascendência sobre as
outras: subordinadas (como é o caso da homossexualidade), cúmplices ou mesmo marginalizadas
(como acontece com minorias éticas ou grupos socioeconomicamente excluídos). Essas
configurações de práticas, embora plurais, organizam-se segundo uma lógica hierárquica que
opõe as hegemônicas a todas as outras.
Analisando as mudanças ocorridas em Moçambique, no período pós-colonial, nas relações
de gênero com a proibição da poligamia, Aboim (2008) chama a atenção para a dificuldade de
interpretar essas realidades à luz de uma ideia da masculinidade como sistema de oposição entre
modelos hegemônicos e outros, subordinados, marginalizados ou cúmplices. Se o significado da
hegemonia é de guiar, conduzir e dominar ideologicamente encontrasse tais lógicas no interior do
grupo masculino, a hegemonia seria obtida de um ponto de vista simbólico, mais pela negociação
de referências e pela combinação de traços por vezes contraditórios, gerando hibridismos, do que
pela dominação de determinados referentes sobre outros (p. 292).
Nesse sentido, elementos como reconhecimento e autoridade, desempenho profissional e
proventos financeiros, sexualidade e conquista, família e paternidade constituem elementos
indissociáveis do(s) modelo(s) dominante(s) de masculinidade, mas que podem se revelar de
formas diferentes, em que os contextos culturais e locais estabelecem o cenário de realização.
As masculinidades dos homens brancos se constróem não somente em relação às
mulheres brancas, mas também em relação aos homens negros. Connell, citando Paul Hoch,
ressalta esse aspecto:

(…) a permeabilidade do imaginário racial en los discursos occidentales sobre la


masculinidad. Los miedos de los blancos por la violencia de los hombres negros
tienem una larga historia en situaciones coloniales y post-coloniales. Los miedos
de los negros por el terrorismo de los hombres blancos, fundados en la historia del
colonialismo, tienem una base que se prolonga en el control de los hombres
154
blancos de la policía, de las cortes y presiones en las colonias. (Los hombres
afroamericanos están masivamente sobre-representados en las prisiones
estadounidenses, tal como sucede con los hombres aborígenes en las presiones
australianas (p.10).

Para que a masculinidade existisse como símbolo social valorizado, fez-se necessária a
“emergência de sombras e faces que desempenharam o papel de antípodas, alvos de depreciação
e anátema, signos do vil, abjeto, desprezível, verdadeiros alter ego” (OLIVEIRA, p. 70).
Embora a família seja constituinte vital da masculinidade, a alteração das relações de
gênero abalou antigos equilíbrios. É na reprodução de uma heterossexualidade liberta, por vezes
predatória, que encontramos a peça de resistência das masculinidades, pelo menos de boa parte
delas. A alusão à infidelidade conjungal, ao domínio sexual sobre as mulheres, à importância de
serem guardadas, convive com os traços mais igualitários da atualidade.
“A sexualidade é, afinal, bastante mais importante do que a divisão do trabalho para
interpretar a diferenciação de gênero”. (ABOIM, p. 292). Por outro lado, ela permanece menos
tocada por contrariedades, dela dependendo, em boa medida, o estatuto de homem adulto. É
afinal, um domínio mais favorável para a recriação do poder masculino sobre as mulheres e sobre
outros homens (Ibid., p. 293). A principal é a de que a sexualidade vai se tornando umas das
principais fontes de masculinidade, enquanto elemento autonomizado de outras formas de poder
simbólico.
A sexualidade masculina não foi problemática nas circunstâncias sociais “distintas e
desiguais” até a pouco prevalecentes, mas a sua natureza foi ocultada por um conjunto de
influência sociais que foram ou estão a ser minadas. São elas: dominação dos homens na esfera
pública – a vida dupla; a divisão, associada às mulheres, em puras (casáveis) e impuras
(prostitutas, meretrizes, concubinas e feiticeiras); o entendimento de que a diferença sexual foi
estabelecida por Deus, pela natureza ou pela biologia; a problematização das mulheres como
opacas ou irracionais em seus desejos e ações e a divisão sexual do trabalho (GIDDENS, 1992, p.
77). De acordo com Chodorow:

Pode-se afirmar que, nos primeiros anos da vida – particularmente e talvez apenas
na sociedade contemporânea – a influência da mãe suplanta a do pai e a de
outras pessoas que cuidam da criança. A primeira experiência que a criança tem
155
da mãe é realmente o oposto da imagem de uma pessoa castrada e impotente; no
plano inconsciente, o rapazinho e a rapariguinha veem a mãe como todo-
poderosa. (…) Daqui decorre que é o percurso para a masculinidade e não para a
feminilidade que constitui um desvio. As origens da auto-identidade masculina
prendem-se com um profundo sentimento de insegurança, um sentimento de perda
que inconscientemente assalta mais tarde as memórias do indivíduo (Id.,ibid., p.
80).

Desse ponto de vista, o falo, representação imaginária do pênis, retira o seu significado da
fantasia da dominação feminina. Simboliza separação, mas também revolta e liberdade. A
questão do “pai ausente”, levantada pela primeira vez na Escola de Frankfurt e, mais
recentemente, por grupos de ativistas masculinos, pode ser vista mais numa base positiva do que
negativa (Id.,ibid., p. 80).
Compreender a masculinidade nas sociedades modernas ajuda, desse modo, a esclarecer
as formas típicas de compulsividade masculina. Muitos homens são levados, através de seu
exame minucioso das mulheres, a procurar o que lhes falta – falta essa que pode manifestar-se em
raiva aberta e violência. Tornou-se lugar-comum da literatura terapêutica dizer que os homens
tendem a “ser incapazes de expressar sentimentos” ou são “intocáveis” pelas suas próprias
emoções, mas isto é demasiado cru (Id.,ibid., p. 81).
O que revelam esses “outros” da masculinidade será apresentado no próximo capítulo.

156
Capítulo 5

VOZES DE UM LUGAR DA MASCULINIDADE

5. 1 Tempos narrado

Tempo narrado I

Nascido em Sorocaba, seu João, hoje com 83 anos, foi o entrevistado que teve de ser
convencido a dar seu depoimento, convencimento este que precisou de três contatos iniciais para
que fosse agendado. Ativo no mundo do trabalho, todos os dias está na loja de auto-peças que
construiu há mais de trinta anos e que hoje mantém com os filhos.
Veio para a capital aos 20 anos, fugindo do trabalho na roça. “Eu sabia de uma coisa: eu
não servia pra roça, nunca gostei. Apanhei muito do meu pai porque ele queria que eu
trabalhasse. Vim fugido daquele trabalho, gostava de trabalhar em outras coisas”.
Filho mais novo de seis irmãos, seu pai trabalhava nas terras herdadas pelos pais e que,
por sua vez, receberam de seus senhores. Diz lembrar-se vagamente das histórias contadas por
sua mãe sobre os antepassados da família. Os relatos do cativeiro não agradavam o pai. As
histórias eram contadas na ausência dele, por insistência do meu irmão mais velho. “Ele gostava
muito dessas histórias, sempre estava do lado dos mais velhos, perguntando. Acho que ele ia ser
essa coisa de historiador, se tivesse estudado, aquele gostava de uma história.” Seu João relata
uma história que diz que o arrepia até hoje. Quando era menino era pior, não conseguia nem
dormir de tanto medo.

Minha mãe contou a história de um tio dela que tinha pacto com o bicho ruim.
Naquele tempo da escravidão, ele não queria ser explorado, né? O negro era
escravo, e então ele se metia no mato e ninguém conseguia pegar. Aí ele resolveu
ser bandido. Voltava pras fazendas, batia nos senhores e roubava prar levar pra
onde ele vivia. Ele também era metido com as coisas da magia. Antes se dizia
assim, “magia”. Agora que se fala da umbanda do candomblé, mas no meu tempo
era magia. O medo que a gente tinha era porque minha mãe disse que ele aparecia
e sumia como fumaça. Ele chegava pra visitar minha vó e, do mesmo jeito que

157
aparecia, ele sumia. Ela conta que, uma vez ele apareceu e foram contar pros
capangas quando os homens chegaram. Ele tava fumando um cigarro de palha
assim perto do fogão, e tinha uma janela. Ele deu aquele pulo pela janela e
desapareceu. Minha mãe conta que tinha muito homem na captura dele. Correram
tudo aquele mato, e cadê o hômi? Mesmo depois que ele morreu, diziam que ele
aparecia pra família, sempre pitando aquele cigarro. Mas menina, eu morria de
medo de ele vir me visitar [risos]. Mas quando era vivo, ninguém nunca
conseguiu pegar ele. Tem gente que não acredita né? Eu acredito porque minha
mãe contava.

Na narrativa de Seu João, a figura da mãe rouba a cena, na família durante sua infância e
juventude. No entanto, a participação do pai no cenário descrito tem sempre uma marcação forte.
Suas lembranças iniciam-se com a figura da mãe, descrita como uma negra muito alta. Ele conta
que, em sua cidade, não se conhecia mulher que fosse mais alta, além de instruída. Ela sabia ler e
escrever, enquanto seu pai era analfabeto. Seu João não soube explicar como sua mãe tinha
adquirido instrução num período em que a exclusão era a regra.
A mãe era quem comunicava as ordens aos filhos, mas ele se lembra de momentos em que
pai e mãe conversavam sobre determinada decisão, para depois comunicá-la à família, tarefa de
que a mãe se incumbia. A presença dela se fazia nos momentos de chamar atenção dos filhos
sobre alguma coisa errada. Mas se era alguma coisa muito séria, o pai estava junto, mas calado,
ouvindo. “Quando precisava que ele chamasse atenção, aí já viu, a conversa era séria e o couro
comia. Então a gente obedecia logo que minha mãe falava, não esperava chegar até ele”. Seu
João afirma que, apesar de pobres, a família era muito boa, viviam uma vida tranquila. Apesar
disso, ele nunca gostou do mundo rural. Desde muito moleque, fugia para andar pelo centro da
cidade, pois gostava do mundo urbano e tudo ali o atraía.
Quando teve a oportunidade de vir a São Paulo sua convicção se confirmou. “Vim embora
sem avisar pra ninguém, voltei lá depois de dois meses, e você nem sabe que levei uma coça de
minha mãe. Meu pai na época já tinha falecido”. Apanhou, mas convenceu a mãe e os irmãos que
em São Paulo estava sua vida e seu destino: até emprego ele já tinha conseguido. Ele conta que a
segunda fuga (agora oficial) foi a mais difícil, já que tinha certeza do caminho escolhido.
Recorda que a mãe não chorou, mas os irmãos e especialmente a irmã choraram muito com a
separação.
158
A nova vida trouxe muita dificuldade, e ele experimenta de forma mais explícita e frontal
a discriminação. A primeira dessas experiências foi quando foi procurar um quarto e o dono disse
que não alugava para gente de cor. “Lá na roça a gente sabia dessas coisas que acontecia com o
negro porque ele foi escravo, mas a gente saía pouco da nossa roça. Acho que foi por isso que
fiquei muito chateado. Minha mãe tinha falado que na cidade era diferente. Acho que era isso que
ela queria dizer, né?.”
Seu João conseguiu lugar para morar e foi trabalhar em uma marcenaria onde
permaneceu por treze anos, de onde saiu para ingressar numa metalúrgica no ABC Paulista.
Depois de dois anos em São Paulo, conheceu Margarida, que conseguiu namorar somente depois
de muitas tentativas. Havia forte resistência do pai da moça. “Ele não queria que ela sujasse a
família, casando com um crioulo”. A solução encontrada foi fugir para casar. Para que a família
dela não ficasse com uma filha “desonrada”, os dois se casaram, mas os parentes nunca aceitaram
o casamento, de fato. Após o primeiro filho, a vida de João passa por mudanças que ele considera
radicais, em sua vida, quando ele consegue trabalho numa indústria automobilística..
As condições de vida melhoraram muito, o que lhe garantiu uma profissão e a
continuação dos estudos através do SESI. Já em condições melhores nascem os dois outros filhos,
uma menina e um menino. “Trabalhei durante 40 na mesma empresa e cheguei a subgerente, na
minha área. Fui até pra Alemanha fazer curso e conhecer a novidades, tudo pago pela empresa”
Ele afirma que a rebeldia, na juventude, foi fundamental para que as oportunidades ocorressem
ocorrido na sua vida. “Se eu tivesse ficado lá na minha cidade, estava lá até hoje, tendo que
trabalhar na terra pra comer. Aqui tive outras oportunidades”. Todos os filhos concluíram o
ensino superior e a filha, que mora fora do país, faz seus estudos de pós-graduação nos Estados
Unidos. Orgulhoso de ter “encaminhado” a vida dos filhos, ele se diz realizado por eles. “Meu
sonho era ser doutor, mais hoje tô feliz porque meus filhos são, né”. Outro momento que relata
com muito orgulho é ter-se transformado em empresário.
Inciou nessa atividade há mais de 30 anos, ainda na ativa como metalúrgico. Como
entendia de mecânica, os amigos levavam os carros para que ele fizesse pequenos consertos, nos
finais de semana. Ele começou a disponibilizar peças para os consertos no próprio quintal de
casa. Assim surgiu uma pequena loja de auto-peças, de que sua mulher cuidava, durante a
semana. Hoje ele é dono, com seus dois filhos, de uma rede com quatro lojas de auto-peças, e
vive no bairro do Tatuapé, em São Paulo, num condomínio de classe média alta.“Graças a Deus,

159
aos deuses que consegui essa vida, minha filha”. Ao se mencionar “deuses”, ele se refere aos
Orixás. Retomando sua enigimática história familiar, do começo, ele hipotiza: “Sabe, que eu acho
que aquele parente meu era Exú [risos].”
Ele pergunta se tenho medo, até como forma de saber se tenho alguma proximidade com
as religiões de matriz africana. Respondo-lhe que Exú sempre me ajuda. Nesse momento ele se
liberta das reservas que mantinha e conta que a filha e a mulher são iniciadas no candomblé, e
que toda a família o frequenta. “Sabe filha, o engraçado é que foi minha mulher branca que levou
todo mundo. Quem devia levar era eu, que sou preto, né? Mas foi ela quem levou a gente”.
Sorrindo, ele conta que é filho de Ogum e que, por isso, ainda é tão bonito.

Tempo narrado II

Nascido em 1946 na cidade de Ilhéus, na Bahia, Gilson, conhecido no movimento negro


como Gilson Negão, diz não lembrar de quase nada da cidade onde nasceu. Ainda muito
pequeno, muda para a cidade de Belmonte, onde seus pais se separaram. Logo depois, ele e o
irmão foram levados para Vitória do Espírito Santo, para serem criados pelas tias.
Aos nove anos ele vem para São Paulo: “Vim morar com minha mãe, que eu também não
conhecia. Mas pelo menos vim morar com minha mãe, em São Paulo.”
A identificação com a nova vida ganha outras dimensões.

Aí já comecei a me identificar com a vida paulistana. Fui trabalhar numa


farmácia, depois como office-boy, que você começa a circular por São Paulo, pela
região da Aclimação, Liberdade. Daí comecei a conhecer as pessoas. Um detalhe
importante é que o pessoal que vem do Nordeste tem a mania de adotar o time da
cidade. Se moro em Ilhéus, torço pelo Ilhéus. Se estou em Belmonte, sou
Belmonte, e assim por diante. “Pra que time você torce?” Se estou em São Paulo,
vou torcer pelo São Paulo. E deu sorte porque, em 1957, o São Paulo foi campeão.
Consagrou a história de eu ser são-paulino” (GILSON).

A vida no cortiço, na Liberdade, e todos os dramas que ali se apresentavas não apagaram
o encanto da cidade, apesar de reconher os problemas que esta apresentava. A entrada do mundo

160
do trabalho representava a possibilidade de penetrar nas descobertas que a cidade poderia
oferecer.

“Esse serviço de office-boy foi importante, porque fui conhecendo as pessoas.


pelo centro da cidade, na época dos bondes, na várzea do Éden, onde é a 23 de
Maio agora. E consegui tirar o diploma nesse colégio Campos Sales, que é na São
Joaquim. Foi depois de muito sacrifício e tal, o pessoal insistia muito. Eu sentia
muita diferença do ensino de São Paulo para o ensino do Nordeste porque o
ensino lá era mais puxado, você tinha que estudar mesmo. Quando cheguei, o que
ensinavam aqui eu já tinha aprendido há três, quatro anos, lá na Bahia. Isso me
desestimulou muito. O estímulo foi para gazetear, cabular aula e fazer folia pela
Liberdade afora.”

A aproximação com a mãe só ocorreu com sua chegada em São Paulo. Até então, ela era
quase uma desconhecida, mas com o tempo eles foram ganhando maior proximidade. Com o
padrasto, a relação era conflituosa, chegando ao ponto de Gilson optar por morar nas ruas. Ele
relata com firmeza o período em que pôde definitivamente conhecer vida noturna. Dormindo no
mercado da Cantareira, durante o dia trabalhava com carregador. A lona para protejer as cargas
eram também sua proteção. Ele presenciou e viveu diversas formas de exploração, mas garante
ser a polícia a maior exploradora dos que estão na rua, . Utilizando-se da situação de fragilidade
dos que estavam na marginalidade institucionalizavam a exploração.

Esse foi um período difícil da minha vida, mas aprendi a viver e a respeitar as
pessoas em situação difícil. Como eu trabalhava com frutas – laranja, abacaxi,
manga – quando passava alguém com fome, eu sempre dava. A gente tinha
liberdade de dar pra comer uma laranja, mexerica, banana, preparava uma
sacolinha e dava. Aquilo foi criando um vínculo com o pessoal mais carente.
Como eu trabalhava ali na Cantareira, e o Carandiru era ali do lado da Estação da
Luz, o pessoal da cadeia, quando saía, vinha a pé, por ali, pra poder tentar alguma
orientação pra ir pro seu destino. E passava ali, sem dinheiro, alguns: “acabei de
sair da cadeia, agora, moro em tal lugar, não sei como faço pra ir”. Ficava preso
quatro, cinco anos, nem sabia onde estava. Aí a gente tinha essa solidariedade de
preparar o dinheiro da condução, de dar pra pessoa, um negócio pra comer. E
161
muitos, depois, voltavam pra agradecer, ou se lembravam. A gente se encontrava
em alguns lugares, aí. Diziam: “Ô, tá lembrado de mim?” “Não”. “Eu tinha saído
da cadeia, fui lá, você me ajudou. Estou aqui, pode ficar tranquilo, que ninguém
mexe com você”. Então, tinha essa convivência, foi uma experiência de vida
muito importante.”

Os quase 5 anos de rua foram marcantes. Ele vê, nessa experiência, o caminho decisivo
para as escolhas que fez durante a vida. A militância política que escolheu como forma de
atuação esteve sempre ligada à questão racial e a outras formas de exclusão. Sua narrativa
também mostra uma outra face da marginalidade, que quer afastar aqueles que elege como não
pertencentes àquele universo.

Diziam: “Não, você é um moleque novo, não pode entrar na nossa vida, nossa
vida é diferente, não serve pra você”. Não deixaram entrar, realmente. Mesmo eu
convivendo com eles dia e noite, dormindo em lona, às vezes apanhando de
polícia, mas não me deixaram entrar pra malandragem. Diziam: “Você tem
família”. Eles falavam coisas que refletiram: “Você vai ver que, quando chegar o
Natal e o Ano Novo, nós não vamos passar, porque nós não temos família”. Eu
via aquilo mesmo: no Natal a gente trabalhava, trabalhava e ia pra casa, pelo
menos passar. E esses amigos ficavam por lá. Isso foi uma coisa que marcou
muito em mim: mesmo no submundo, tinha pessoas que orientavam a gente.”

Quando volta a morar com a mãe, a relação com padrasto já é mais tranquila, e eles
tornam-se amigos. Os momentos de juventude são relembrados ao som dos batuques. “O batuque
sempre me encantou. Não podia ouvir um tambor.” O caminho foi a escola de samba e as casas
de candomblé, que no início frequentava escondido, já que a família era católica. A possibilidade
de pertencimento religioso vem com o casamento: a mulher era médium e recebia algumas
entidades, além de frequentar oficialmente uma casa de santo. Gilson, hoje, atua como assessor
parlamentar e divide o tempo com a militância no Movimento Negro.

Tempo narrado III

162
Seu Vanildo tem 56 anos e é pernanbucano, de Caruaru. Quando pedi que fosse um de
meus entrevistados, fui prontamente atendida, e ele logo sugeriu a data de nosso encontro. Ele
trabalha como manobrista e cuidador dos carros dos professores no estacionamento de um
colégio. Ao final do mês, dão-lhe uma contribuição de 20 reais, cada.
Ele veio para São Paulo no final de 1970, ainda noivo, para tentar construir a vida. A
noiva já o esperava, na cidade, e eles se casam um ano depois. “Casamos aqui, em 80. Vim em
79, em 80 eu casei, em 24 de outubro de 80. Ela é branca. Vim morar na casa da minha sogra.”
Em São Paulo, as dificuldades foram grandes. Como não tinha profissão, só consegue uma
inserção depois de muita procura. Vai trabalhar numa casa lotérica na Avenida Brigadeiro Luiz
Antonio, onde ficou por cinco anos. Os trabalho seguintes são instáveis durante muito tempo, em
diversas atividades: empacotador de loja, passador em confecção e metalúrgica.
Sua infância foi marcada pela separação dos pais: a mãe partiu para São Paulo, deixando
as crianças com o pai. Este assume um novo relacionamento, e três dos oito filhos vão morar com
com a avó e uma tia paternas. Uma dessas crianças é Vanildo. “Nem cheguei a conviver com ele,
porque quando ele largou a gente, a gente era criança. Eu sou de 56. Mas tinha os de 55, 54, um
atrás do outro, aquela escadinha.”
A avó matinha a família com a aposentadoria e com a ajuda da filha que trabalhava como
doméstica e era solteira. Descreve-as como mulheres muito sérias que exigiam dedicação nos
estudos. “Todas as duas analfabetas. Era aquele pessoal do tempo da escravidão. Comentam, na
família, que meu bisavô era aquele negro reprodutor, só vivia mesmo para fazer filho”. Outra
mulher aparece em sua narrativa sua fala é acompanhada de forte emoção.

Tinha uma figura na qual eu me espelhava, era na minha madrinha. Porque ela era
uma branca bonita, cabelão comprido. Naquele tempo era Iemanjá, Iemanjá, e
então eu me espelhava nela. Diziam: “Parece Iemanjá, parece Iemanjá”. Essa
madrinha era sempre muito carinhosa, eu era muito apegado com ela. Inclusive,
ela é professora. Eu estudava com ela, também. Ela era minha madrinha e me
ensinava.

São vários os momentos de silêncio e emoção, em que a lágrima é o único movimento


sonoro.

163
Por causa do cabelão grandão. Até hoje sou fã de Iemanjá por causa dela. Porque
comentavam muito, tem sempre esse mito. Por causa do candomblé, essas
coisas.”Entre uma frase e outra o silêncio. “Eu já cheguei a frequentar, por livre e
espontânea vontade, lá em Pernambuco. Por curiosidade. Era uma coisa assim,
diferente [Silêncio. Chora].

Diz que nunca gostou de estudar, só concluiu a oitava série. Aos 16 anos começa a
conquistar o que considera de maior liberdade. Já trabalhava e saía com os amigos depois do
trabalho. Lembra que as primeiras visitas aos cabarés foram feitas junto com os amigos mais
velhos, e que foram momentos importantes para a descoberta da sexualidade, já que vivia numa
casa de mulheres. Do namoro, na adolescência, vem o casamento. No início, houve uma por parte
da mãe da noiva, que não o aceitava por ele ser negro. Suas ações centraram-se em provar que
seria um bom marido, com o objetivo de desmontar os argumentos contrários ao casamento, até
que a sogra reconheceu que era o seu melhor genro. Do casamento nasceram dois filhos e hoje é
avó de netos.

Tempo narrado IV

Ele Inicia a entrevista apresentando-se primeiro como dentista que faz atendimento em
um UBS (Unidade Básica de Saúde) e que divide um consultório com uma amiga. Após a
apresentação profissional, vem a apresentação da pessoa. Felipe, de 45 anos, é casado e pai de
duas meninas. Filho de uma enfermeira e de um metalúrgico, é o segundo dos dois filhos do
casal. Ele lembra que, na infância morava com a avó materna.

Na casa da minha avó sempre tinha muita gente, além de todo mundo que morava
lá. Ela benzia, sempre tinha gente lá. Até cachorro o pessoal levava pra benzer
[risos]. Verdade. Esses cachorrinhos pequenos, as crianças levavam, e o pior é que
ela benzia [risos].

Apesar da descontração ao falar da avó, a emoção é forte, a voz embarga. Ele lembra que
a avó criou os sete filhos sozinha, e ajudava todo mundo quando precisava. “Até quando eu tinha

164
sete anos moramos com minha avó. Só depois meu pai comprou a nossa casa. Mas meus tios,
alguns, também moraram com a minha avó. Minha avó é linda”.
Segundo relatos de sua avó Maria, ele teria falecido depois de ser picado por uma cobra.
Ele lembra que a região de Interlargos era só mato, na época. O avô não foi socorrido e faleceu.
Para criar os filhos, a avó trabalhava de doméstica e lavava roupas para ajudar na renda. “Minha
mãe conta que, quando tinha dez anos, também foi trabalhar pra ajudar em casa.” Felipe
rememora os momentos de festa, em que toda a família se juntava. “Até hoje a gente se junta na
casa da minha avó, não tem jeito, tem que ser lá. Mesmo com pouca visão, ela quer todo mundo
lá. Aí a gente vai. É muita gente viu? Tio, primo, filhos dos primos e por aí vai”.
Como no passado, a casa da avó é o ponto de encontro para as festas e comemorações,
bem como encontro de gerações. Ele conta que, quando nasce uma criança na família, todos se
encontram para o momento em que a criança é apresentada para a matriarca da família, que a
benze.“Hoje ela já não benze pessoas de fora, só benze as crianças da família, quando nascem. Aí
já vira uma festa. É como se fosse um batizado, entende?”
Quando seus pais conseguem comprar uma casa e passam a morar sozinhos, lembra que a
maior dificuldade foi se adaptar ao “isolamento”, já que a casa da avó propriciava contato
permanente com primos e vizinhos da mesmas idade. Por outro lado, ele reconhece como uma
grande vitória os pais terem conseguido seu próprio espaço. Seus estudos são iniciados na escola
pública, onde ele permanece até o final da educação fundamental. A partir da quinta série, passa a
frequentar a escola privada do bairro. “Minha mãe já trabalhava como enfermeira e meu pai
estava estabilizado na profissão. Tinham uma renda boa e dava pra pagar escola pra nós dois”. O
ensino médio também foi concluído na escola privada.
Felipe conta que a entrada na escola privada foi o momento de consciência da
discriminação. Foi apelidado de “negrinho do pastoreio” por colegas da sala, e logo toda a escola,
que não era muito grande, passou a chamá-lo pelo apelido. “Eu não contei em casa, quem contou
foi meu irmão”. O pai foi até a escola pedir providência, mas a situação apenas se amenizou, mas
os apelidos continuaram. Ele era preterido nas formações de grupos de trabalho e convites para
festas fora da escola.

É muita gente racista, na escola particular. Era cada coisa que acontecia comigo e
meu irmão, mas nem tudo a gente contava em casa. Meus pais trabalhavam tanto

165
que não queríamos dar trabalho. E também os moleques zoavam mais ainda se os
pais fossem lá. A gente tinha melhores condições financeiras que muitos da
escola.

O pai é retratado como uma pessoa muito séria, mas também muito carinhosa e atenciosa:
“Meu pai sempre fez questão de participar das reuniões na escola. Ele sempre disse que a única
coisa que a gente tinha que fazer era estudar. E que ele faria de tudo pra gente ser o que a gente
queria. E foi o que aconteceu, eu tenho minha profissão e meu irmão é engenheiro, cada um tem
sua vida”. A imagem da mãe é associada ao universo das atividades culturais. “A primeira vez
que fui ao cinema e ao teatro foi com a minha mãe. Meu pai não gostava muito, mas ia porque
ela queria. Essa experiência foi muito importante pra minha educação”. Sua mãe começou a
pintar para passar o tempo, mas logo foi se aperfeiçoando e hoje seus quadros são uma fonte de
renda. Hoje, na condição de pai, Felipe também vive experiências no universo cultural:“Levo
minhas filhas para diversas atividades culturais, acho fundamental”.
As filhas são fruto de um relacionamento de dez anos com uma dentista que conheceu na
faculdade. Ele revela que nunca foi muito namorador e que teve apenas três namoradas, em
relacionamentos sempre com mais de três anos. Todas as namoradas tinham alguma relação com
os espaços de estudo e eram todas mulheres brancas. “Quase não tinha negro nos lugares em que
a gente estudava, e as meninas que se aproximavam eram brancas. Os negros com que a gente
convivia eram mais da família, primas e primos.” O casamento ocorre com uma dessas
namoradas, e é descrito como uma relacionamento tranquilo e sem problemas de aceitação
familiar. A irmã mais velha da esposa também era casada com um homem negro. “Eles já
estavam acostumados com a coisa preta [risos]”. Apesar do tom de brincadeira e descontração,
ele revela que, na sua família as tias falam que ninguém “quer” as mulheres negras. Mas afirma
que seu relacionamento não foi escolhido pelo fato de a parceira ser branca, mas por ter sido a
pessoa de quem realmente gostou.

Tempo narrado V

Marcelo, de 35 anos, trabalha na área do comércio na região da Estação da Luz.


Conseguiu concluir o ensino médio depois da separação do primeiro casamento. “Eu era terrível,
aprontei muito na escola, até fogo eu coloquei, fui expulso”. Casou-se muito cedo, mas o
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casamento pouco durou. Considera-se “um cara de muita sorte” com as mulheres. “Eu não sei o
que acontece, elas ficam loucas, é só dizer que sou negão e que tenho cavanhaque”.
Assíduo frequentador das salas de bate-papo, na internet, diz que não sabe mais com
quantas mulheres saiu. Apesar de manter um relacionamento sério, assume:“Gosto de me divertir
e sempre tem uma louca querendo diversão também.”
Dentre as várias histórias das suas aventuras sexuais dá destaque para uma que teve com
uma mulher casada.

Conheci uma pessoa na internet, uma negra linda, saímos várias vezes e comecei a
gostar dela. Ela era professora bem formada, trabalhava até aos sábados em
formação, na faculdade. No começo era apenas sexo, mas depois comecei a gostar
mesmo dela. Até aí eu não sabia que ela era casada, mas quando ela me contou,
fiquei triste. Ainda continuamos saindo, mas não deu pra continuar com ela. Eu já
estava noivo, e minha noiva começou a desconfiar, não consegui manter as duas
negas, mas gostava das duas. Ela tinha condições financeiras muito melhores do
que a minha, e acho que ela não largaria do marido pra ficar comigo. Mas ela
gostava do sexo comigo, eu também gostava. Nunca achei que iria gostar de uma
pessoa que conheci na internet, mas foi tudo o contrário. Acho que não deu certo
porque minha nega atual deve ter mexido os pauzinhos. Afinal ela é do
balacobaco.

Suas narrativas iniciam com suas relações afetivas/sexuais. Num segundo momento, ele
fala da família. É o filho mais velho de cinco irmãos e logo que os pais se separaram, passou a
ajudar a mãe nas tarefas e casa e também em atividades que dessem algum dinheiro para ajudar
em casa. Entre os oito e os dez anos foi trabalhar na feira fazendo carreto, ao que se seguiram
diversas atividades que pudessem render algum dinheiro que era destinado a casa. Quando
criança, morava numa favela na zona norte de São Paulo, lugar onde ainda reside, mas agora ele
ocupa um “lugar melhor”, na comunidade, na avenida em uma de suas entradas. Mais de uma vez
destaca que as irmãs mais novas, duas gêmeas hoje com 20 anos, foram buscadas por ele no
hospital. Ele fica extremamente irritado quando essas não o respeitam.

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Pude presenciar, no momento da entrevista, instantes de confronto entre ele e uma das
irmãs, que não tinha feito algo que ele queria. Ele reafirma uma postura de “homem da casa” e
que elas devem respeitá-lo: “Fui buscar elas no hospital”.
A mãe é trabalhadora doméstica conseguiu criar os cinco filhos. Os três primeiros são do
primeiro marido, e as duas filhas de um segundo relacionamento, apesar de não terem chegado a
conviver. Além do trabalho doméstico, nos finais de semana ela assume faxinas em outras
residências para não deixar faltar nada. Para ele, esse é um momento de forte emoção, quando
fala da mãe e lembra de sua luta. “Minha mãe é que construiu o barraco que a gente morava,
quando eu era pequeno”. Ao relembrar da separação dos pais e da ausência inclusive financeira
do pai, afirma que nunca perdeu contato com o mesmo. Inclusive, em alguns momentos ele
trabalhou como ajudante de pedreiro, com o pai.
Apesar da entrada desde cedo no mundo do trabalho, ele lembra dos momentos de
diversão e brincadeiras. Diz que gostava de ir para a escola por conta da quadra, quando se
juntava com outros moleques para jogar futebol. “O pessoal da escola até gostava, assim a gente
não tava na sala fazendo bagunça. Às vezes a gente fazia bagunça pra eles nos mandar pra fora e
ficar na quadra”.
Diz só lembrar de um professor de que eles e seus amigos gostavam, o professor de
Matemática que, de alguma forma, conseguia manter esses meninos na sala de aula. “Na verdade
nunca gostei muito de estudar. A gente ficava com ele porque ele ensinava Matemática jogando
dominó, maior barato.”
A conclusão do ensino médio só se deu depois de adulto. Afirma que as irmãs concluíram
o ensino médio sem parar de estudar e sem serem reprovadas, o que lhe causa orgulho, já que se
sente responsável por elas. A atual companheira está cursando Direito. Ele fala disso com
orgulho, mas também com uma certa preocupação, “o problema é saber se, depois, ela vai querer
ficar com um nego burro”.
Sua preocupação em acompanhar a evolução da atual companheira tem como foco o
mundo do trabalho que, para ele, é por onde pode estar em pé de igualdade. Revela que, nos
últimos anos, ele tem prestado vários concursos públicos, principalmente nas empresas estatais.
Marcelo acredita que a estabilidade do serviço público e o que considera bons salários podem dar
melhores condições do que se tivesse o ensino superior. “Quanta gente formada e desempregada
que tem aí, acho legal quem estuda, mas isso não é garantia”. Ele não tem logrado sucesso, nesse

168
caminho, já que sua classificação, nas provas, nunca é suficiente para assumir o cargo. Ele avalia
que as coisas poderiam ser pior se ele tivesse filhos. Mas como não os teve, nas relações
anteriores, sente-se aliviado com essa preocupação a menos. Ao falar da paternidade, expõe uma
dúvida que o incomoda, e de cuja resposta não tem certeza: “Acho estranho nenhuma mulher ter
engravidado comigo. Algumas ex já têm filhos, hoje. Tem hora que acho que tenho algum
problema, mas vou ver isso, qualquer dia. A nega quer ter filho e tenho que deixar algum
herdeiro [risos]”. Ele compartilha desse desejo com sua companheira, apesar das restrições de sua
condição sociais, atualmente.
Ele conta não ter conhecido outros parentes nem do lado materno nem do paterno.
Quando vieram para São Paulo, os pais perderam o contato com os parentes da Bahia. “A família
que eu conheço é minha mãe e meus irmãos, nem conto com meu pai”. Marcelo verbaliza a
necessidade de uma família organizada, diz que as dificuldades por que passou na vida seriam
menores se tivesse a presença do pai.

Nós tínhamos que aguentar muita folga dos moleques no pedaço, mais do que os
moleques que tinham pai aguentavam. O que nos aliviava é que tinha vários
moleques que também eram assim, sem pai. Aí a gente se juntava e botava pra
quebrar, ninguém tirava uma, não. A gente aprendia a malandragem desde cedo,
sabia se virar. Não é a malandragem como é hoje. Até existia a droga perto de
casa, mas a gente não podia chegar perto, os caras não deixavam, diziam que a
gente tinha que brincar e ir pra escola. Hoje não, a molecada cada dia mais nova já
está no nervoso.

O contato com o crime sempre esteve muito próximo, mas ele garante que tinha “uma
cabeça muito legal” e nunca se envolveu, o que não impediu que fosse amigo daqueles que, nas
suas palavras “se envolveram”. Muitos desses estão presos e outros já morreram.

Esse papo de “bandido de um lado, trabalhador de outro” não tem nada a ver.
Conheço uma pá de cara trabalhador que tem irmão bandido e vice-versa. Na
verdade, se a gente for ver, trabalhador e bandido andam juntinho, cada um na sua
função.

169
Mas ele afirma que a violência policial não faz essa distinção:

Sou trabalhador e a polícia sempre me parou pra dar uma geral. Agora menos,
acho que tô ficando véio, cabelo grisalho [risos]. Mas quando era mais novo, via
os caras vindo, eu já levantava a mão pra evitar trabalho pra eles [risos]. A gente
agora brinca, mas na hora dava o maior ódio.

Os amigos do futebol de campo, perto da casa, e os bailes são relembrados como


momentos de intensos ritos de vivências masculinas.

A gente organizava o baile já pensando com quem ia ficar. A gente preparava o


meio de campo pra pegar as gatas. No futebol, até hoje a gente não leva mulher.
Os caras falam muito palavrão, não é uma lugar legal pra levar mulher e crianças.
Tem pai que leva os meninos pequenos, é até bom pros meninos ir se enturmando.

Ao passo em que a conversa vai se desenrolando, surpreende o fato de ele ter sido ele tão
resistente em dar a entrevista, mostrando-se, agora, muito à vontade em contar sua história. Ele
parece querer deixar registrado detalhes do que sua memória guarda.
Ele pergunta no que trabalho. Q uando digo que sou professora, ele conta que, na escola,
quando ele era pequeno, as professoras o tratavam de forma diferente porque era pobre e nunca
tinha os materiais direito. Depois, com o olhar fixo, diz: “Era o neguinho da sala, neguinho
pobre”. Aqui, o ser negro se sobrepõe à condição de pobreza, percepção do entrevistado a partir
de suas memórias. Esse instante parece mexer com algo profundo, e o entrevistado muda o rumo
da conversa.
Marcelo volta a falar dos amores, casos, aventuras e outras situações que teve, na vida.
Ele diz que os relacionamentos mais sérios foram com mulheres negras.

Se me queriam, nunca neguei carinho pra ninguém: branca, nega, nova, véia. Mas
eu sempre disse que ia casar com uma nega. E meus filhos, tudo pretinhos. Já
sabe, né? Na primeira confusão, a família e até a parceira vai dizer: “Só podia ser

170
negro, né?” Não gosto nem de pensar em passar por isso, nem sei o que faço.
Acho melhor ficar entre nós mesmos”.

5.2 A Família na memória masculina

As memórias trazidas por esse homens apresentam diversas realidades de existência da


família. Um dos elementos que as aproximam é a presença da mulher como elemento unificador,
como suas mães, tias e madrinhas, que conjungam diversos papéis e tarefas, no universo familiar.
Outro dado importante é a presença da figura masculina nesses universos, seja como um
elementos centrais na estrutura de uma família nuclear monogâmica, ou como elemento flutuante
nesse espaço, na condição de pai, avô e tio. O que importa ressaltar é que, nessas narrativas, os
lugares de homens e mulheres são apresentados a partir das experiências das famílias negras.
“Tudo, tudo, tudo. Era aposentada. A gente sobrevivia dessa renda e de minha tia, que trabalhava
como doméstica, era cozinheira. Ela era solteira, até hoje é solteira” (Vanildo).

Ah. O que posso falar? [silêncio]. O homem da casa, mesmo, era minha tia. Era
ela que colocava eu no eixo, pra estudar, para castigar. E eu, como homem, seria
aquele garoto de recados: “Faz isso, faz aquilo, vai à padaria”. Só que depois,
com 16 anos, fui começar... a viver minha vida. Comecei a namorar, a estudar...
(Vanildo).

A referência eram as tias, porque eram elas que cuidavam, que adotavam uma
linha de educar a gente. Eram de uma família que tinha um pouco mais de
condições, então exigiam qualidade no estudo e no conhecimento (Gilson).

Lembro de coisa muito boa da minha família. A gente vivia pra trabalhar mais
era uma paz muito grande lá em casa. a minha família tinha ganhado uma terra e
todo mundo trabalhava nela, lá tinha meus tios e primos também. A gente tinha as
roças de mandioca, tinha feijão, tinham as criações, porco, galinha, sabe como é
né ... um sítio. Quem ajudava menos era eu, levei tanta coça. Minha mãe falava

171
“faça isso, assim, assim” eu esquecia e tudo dava errado. Não gostava daquela
lida, queria outra coisa (João).

Minha família sempre foram minha mãe e meus irmãos. Não conheci tio, primo,
nada disso. Meu pai foi embora com outra mulher quando eu tinha três anos, meu
irmão dois e o outro, um ano. Minha mãe ficou sozinha, porque nunca teve
parentes em São Paulo. Quando eu tinha 14 anos, ela começou namorar um cara e
engravidou das gêmeas. Me pergunta cadê o cara, também sumiu. Meu pai, a
gente ainda via de vez em quando, ele mora aqui perto, mas também nunca ajudou
em nada. O pai das meninas desapareceu do mapa, nem sabe se tem filhas
ou filhos (Marcelo).

Para aqueles cuja história familiar, de alguma, se forma, se perdeu, existe a necessidade
de reencontrá-la.

Queria resgatar esse período da minha vida, de Ilhéus, mas não sei de nada. Só sei
que eu era do Morro de São Sebastião de Ilhéus, só isso que eu sei. Preciso até
tentar voltar lá pra conhecer (Gilson).

Minha mãe fala pouco de quando eu era assim, bebê. Acho que ela não gosta
porque sofria muito, foi quando meu pai deixou ela e foi morar com outra
(Marcelo).

Os espaço dessas vivências são retratados, compondo o cenário onde o enredo vai sendo
forjado. No espaço rural, onde a vida nos moldes tradicionais estabelece determinadas regras de
estar e atuar, como o universo urbano, forjam-se realidades e dinâmicas dessa convivência
familiar. No mundo urbano, as regras para ocupação dos lugares parecem se acirrar. A ocupação
dos espaços urbano torna-se um dos principais marcadores dessa diferenciação como descreve o
trecho os trechos abaixo:

As vivências, no cortiço, não eram vivências normais.A exploração do português


em cima do negro era bem presente nesse período. Os portugueses é que eram
donos dos cortiços onde a gente morava. Como é que eram tratadas as mulheres,
172
por exemplo. Se atrasasse o aluguel um os dois dias, o primeiro português que
entrava passava a mão na bunda das mulheres, querendo abusar sexualmente.
Quando o aluguel estava atrasado, a paga seria que, quando o marido não
estivesse em casa, ele deitar com uma das mulheres. Isso, em geral. Com minha
mãe, não era diferente, nesse processo. Ela não dava liberdade, mas ao mesmo
tempo ela chorava, não queria contar pro meu pai para evitar o conflito e uma
tragédia. Então era um negócio que ela guardava só com ela, aquela falta de
respeito. Às vezes entrava em conflito com meu padrasto, porque ela não podia
falar o que acontecia. Mas, no final de semana, quando estava em casa, ele
via como era o tratamento com o pessoal, no cortiço. Como ali moravam bastante
famílias, ele naturalmente analisava que, com ela, não seria diferente (Gilson).

Nasci numa casa com muita gente. Na verdade, era um quital com muita gente.
Quando minha mãe casou, ficou morando na casa da minha avó, e os outros
irmãos também foram construindo suas casas ali, o famoso “puxadinho”. Só não
era tão puxadinho porque o terreno era grande e as casas tinham espaço. A gente
hoje brinca que era um cortiço familiar (Felipe).

Ao passo em que a cidade vai sendo construída, os espaços negros migram e consolidam
outros territórios.

Quando eu já estava me entrosando na Liberdade, meu padrasto conseguiu um


terreno aqui em Itaquera, que estavam formando alguns loteamentos. Um amigo
dele tinha vindo comprar um terreno, indicou, ele comprou e nós mudamos pra cá
também. Pra mim foi um negócio muito sério, porque a gente morava na
Aclimação/Liberdade, nos quartos de aluguel, os famosos cortiços. Vir pra
Itaquera era um drama mas, ao mesmo tempo não era. Então essa vinda pra
Itaquera, no final de 1959, foi um alívio, porque era algo nosso. Construímos e
mudamos pra cá (Gilson).

O processo de deslocamento passa a ter pequenas distâncias, de uma periferia para outra,
de uma ponta a outra da favela.

173
Nossa, nunca vi minha mãe tão feliz. Foi a maior conquista dela ter comprado o
barraco aqui em cima. Tudo perto né, avenida, mercado, ônibus. Fora que não
enche as casa, quando chove (Marcelo).

Os momentos de renuniões familiares para comemorações aparecem nessas memórias.


Momentos de encontro e de manutenção dos laços familiares.

Lembro das festas que tinha lá, era aquela festança, meu tio tinha um acordeon
velho que ganhou em troca de um trabalho prestado. Era ele quem animava as
festas, tocando aquele acordeon, a gente dançava até… Minha mãe e minhas tias
preparavam as comidade s e meu pai cuidava de assar os frangos e o porco,
quando matavam um. Mas sempre antes de começar tinha que fazer uma reza, era
muito bom [silêncio e choro]. Era tão bom, não sei porque eu choro, acho que é de
saudade de minha mãe, de meu pai e de todos os tios que já se foram… Daqui a
pouco eu é que vou, né? [risos]. (…) As festas eram sempre organizadas por
minha mãe e tias, ela diziam o dia da festa, como ia ser tudo direitinho e todo
mundo concordava. A melhor festa era a de São João, durava vários dias e vinham
até pessoas de mais longe, pra nossa festa. Aí dava um jeito e todo mundo dormia
por ali mesmo, todo mundo era de casa (João).

Quando eu era pequeno, nas épocas de festa, ficava esperando minha mãe trazer
algum presente que as patroas davam pra gente, tipo ovo de páscoa, panetone,
essas coisas. Minha mãe esperava porque, se elas não dessem, ela ia comprar e
dividia com a gente. Mas ela sempre lembrava desses momentos, nos aniversários
tava lá o bolo de fubá que ela fazia e a gente comia com groselha. Lembra da
groselha? Maior felicidade quando a mãe comprava uma garrafa. No final do ano,
o frango assado, um arroz enfeitado, uma sobremesa. E a roupa, o sapato novo.
No restantante do ano, a gente ganhava roupa das patroas dela e pegava aqui, na
igreja. Foi muito difícil a infância, mas teve coisa boa, também (Marcelo).

Nossa casa foi sempre muito alegre. É o jeito de minha mãe, nunca perde a
aportunidade de fazer uma festa (Evandro).

174
5.3 Aspectos de uma autoridade silenciada

É no campo das atividades cotidianas que a relação de poder e autoridade ganham


expressão. Aqui, a autoridade que parte do lugar privado e ganha o lugar público nos coloca outra
forma de olhar para as relações de poder oriundo das relações de gênero.

O que plantava e criava era pra família, mas quando a colheita de milho e
mandioca era boa, minha mãe ia vender na cidade. Tinha um mercado, a gente
chamava de armzém, ela vendia lá. Na verdade, ela trocava por querozene e outras
coisas que precisava, no sítio. Nesse armazém também ela vendia umas panelas
de barro que fazia com minha tia. Quem conhecia comprava lá no sítio mesmo.
(…) Ela que gostava de ir negociar as coisas, meu pai tava na lida né, acho que ele
não tinha tempo (João).

Aqui, a autoridade masculina é silenciosa. Quem a torna pública é a mãe:

Meu pai conversava com minha minha mãe sobre as decisões, mas quem falava
era ela, ela tinha mais outoridade, mas meu pai bastava olhar que a gente sabia o
que ele queria, ele nem precisa falar nada que a gente já tomava postura. (…) tô
lembrando aqui, não lembro muito da voz do meu pai, da minha mãe não, tem
hora que escuto a voz dela, acredita… (João).

Elemento que não significava ausência de carinho.

Ele chegava e sempre passava a mão na nossa cabeça. Falava muito pouco mas
estava sempre ali, ou trabalhando ou pitando seu cigarro de palha e mexendo
com madeira, fazia os bancos, as mesas, essas coisas. Aprendi a mexer em
marcenaria com ele, e esse foi meu primeiro trabalho na cidade (João).

Meus pais sempre foram muito cúmplices. Não cosigo falar na minha mãe sem
falar do meu pai. Ambos tiveram sempre muito presente. Meu pai foi criado por
uma tia, depois pela madrinha… na verdade ele fala muito pouco da história
dele, mas pelo que diz foi muito sofrida, talvez seja por isso que não gosta de
175
comentar. A gente respeita. (…) Acho que ele teve uma relação mais familiar
quando casou e foi morar com a minha avó, ele gosta muito dela, é como se fosse
a mãe dele (Felipe).

Nunca vi meu pai planejar algo que não fosse pensando nos filhos. Ele sempre
colocou a família em primeiro lugar. Até a decisão de comprar algo pessoal, de
uso pessoal para ele, comprava depois que não estivesse faltando nada para nós. E
na maioria das vezes era minha mãe que se preocupava em comprar uma
roupa, um sapato pra ele. A voz de minha mãe é fundamental pra ele. Se ela está
inseguro com algo, só minha mãe dizer é assim ou assado aí pronto, ganha
firmeza (Felipe).

5.4 História das mulheres que o homens contam

Pelos relatos colhidos na pesquisa, pode-se afirmar que as histórias recontadas pelos
homens que entrevistamos surgem do universo feminino. São sempre histórias que avós, mãe,
tias, madrinhas contavam. Dessa forma, essas mulheres escrevem em suas e em outras memórias
suas vidas, lugares, sentimentos e desejos. Não só são donas da histórias narradas mas destacam-
se pelo lugar ocupado nessas histórias.

Minha mãe e minhas tias contavam muitas histórias. Contavam sobre as terras
que a gente morava, minha mãe disse que a mãe dela recebeu aquele pedaço de
terra de uma senhora que ela trabalhava a muito tempo. Não sei direito, mas
acho que ainda era tempo da escravidão. Era bastante terra, e minha avó veio
morar com os filhos e foi passando pela família. Minha avó era sozinha, meu avó
saiu pro mato e nunca mais voltou. Minha mãe contava que diziam que tinha sido
bicho que comeu meu avó, e sempre quando a gente queria ir mais longe ela
lembrava dessa história, “quer ser comigo por bicho?, ela não queria que a gente
se mandasse pra cidade, ela tinha muito medo disso. Só fui entender isso depois
que vim pra São Paulo, e não conseguia lugar para morar, e não era por dinheiro,
eu tinha dinheiro era porque eu era negro. Ela sempre tentou proteger os filhos, ali
no sítio perto da família não tinha preconceito. Era uma mulher muito sábia
(João).

176
A minha vó sempre foi a matriarca da família. Até hoje com a idade que tem ela
que comanda, do jeito dela, mas comanda as coisas. A casa dela era espaço de
decisão do quintal, ela não se metia da vidas dos filhos no cotidiano, mas quando
tinha que tomar alguma decisão coletiva ela estava lá. E se precisasse “descer” o
reio ela não tinha dúvida. Lembro de que uma vez, eu tinha uns seis ou sete anos,
um tio chegou bêbado e começou a brigar com a mulher e deu uns tapas nela, pra
que? Minha avó pegou tirou a roupa dele e deu uma surra nele pelado no quintal,
lembro como se fosse hoje ela dizia assim, “quando for bater numa mulher lembre
da mulher que te bateu primeiro seu sem vergonha”, “não criei homem pra isso”,
foi uma festa no quintal, tudo mundo vendo ele apanhar pelado. Ele ficou com
tanta vergonha que passou dias fora de casa, e quando voltou teve que primeiro ir
conversar com ela na casa dela. (…) minha mãe conta uma história de quando era
criança um vizinho bateu num irmão dela porque ele tinha pulado a cerca para
pegar ameixa no quintal do homem, quando o irmão chegou em casa chorando a
minha avó ficou enfurecida e foi tirar satisfação, o homem desfez dela e chamou
de mulher da vida que tinha um monte de filhos sem pai, a nega surtou, pulou a
cerca e deixou o cara no chão de tanto bater, minha mãe disse que ninguém fazia
nenhuma gracinha com eles com medo de minha avó (Felipe).

Moramos juntos um tempo, foi um tempo legal. Enquanto ela estava grávida, tudo
bem, mas a dificuldade era que a família dela não gostava muito. Mesmo eu
assumindo as coisas, não gostavam muito. Só vim a entender depois, que a mãe
queria as filhas todas sobre o controle dela. Eu ainda não era divorciado, fomos
morar juntos, ela engravidou, eu assumi. Mas logo depois que nasceu minha filha,
a mãe dela se mudou para Mairiporã e pediu pra ela ir pra lá porque ela queria
cuidar da criança. Aí fomos ficando distantes um do outro, entrando muito em
conflito com a sogra, porque a filha não ia ficar comigo. Eu queria morar junto, e
ela “Não”, queria cuidar da filha, da neta. Ela não deixava a gente. Ela achou que
venceu o período: casou, teve o filho, acabou. Aí comecei a notar que ela tinha o
controle das filhas (Gilson).

Aqui, a família se amplia para além dos laços consanguíneos e lugar de moradia era
também de acolhida dos que precisam de ajuda espiritual.
177
Além da família que morava toda ali ao redor da minha avó. Falando nisso, era ao
redor mesmo, nunca tinha parado pra pensar nisso, a casa dela ficava no meio e as
outras casas foram construídas ao redor, até hoje é assim. [surpresa/espanto].
Então, sempre tinha gente que ia se benzer ou levar alguém. Depois que benzia ela
sempre dava as ervas que ela plantava no quintal. Hoje ela não benze mais, por
causa da idade, mas minha tia que mora no quintal herdou esse dom dela, e
continua atendendo as pessoas (Felipe).

Minha mãe sempre trabalhou desde de criança. Hoje já está aposentada, mas
continua na ativa, faz atividades na terceira idade e ainda pinta quadros,
ultimamente fez uma exposição e vendeu bastante quadros. Só meu pai
trabalhando eles não teriam conseguido tudo que tem, o salário dela sempre
foi maior do que o dele, e ela sempre teve pelo menos dois emprego. As vezes
saía de um e ia pro outro sem dormir. Meu pai sempre fez tudo em casa, lavava,
passava, fazia comida. Ela não tinha tempo (Felipe).

As lembranças e o recontar essas história também são momentos de dor e sofrimento. No


recontá-las, o narrador também se vê de outra forma em seus enredos, percepções até então
encobertas.

Não gosto de lembrar da minha infância, não. Era mais pobreza que hoje
[silêncio]. Ainda bem que passou. Morava lá embaixo, no meio da favela. Lembro
muito da minha mãe arrumando e aumentando nosso barraco. Sou o mais velho,
tava sempre ajudando, carregando as madeiras que os vizinhos davam, que a gente
achava por aí, ou dando os pregos, tava sempre por perto. (…) Minha mãe
trabalhava e, desde que me lembro por gente, eu que cuidava dos meus irmãos.
Quando eu era muito pequeno, ela diz que as vizinhas ajudavam a olhar a pivetada
que ficava sozinha. Quando fui ficando maior, aí eu tinha que me virar. Ela
deixava a comida pronta, eu esquentava e a gente comia. Com as meninas era
diferente, minha mãe conseguiu creche pra elas. Mas quando precisava, eu
cuidava das duas, também. Trocava, dava banho e tudo (Marcelo).

178
Um dia subi o escadão pra comprar pão pra minha mãe. Era uma venda e vendia
frango assado. Quando cheguei e ia atravessar a rua, senti minha barriga roncar
por causa do cheiro do frango que vinha da venda. Quando cheguei na calçada, caí
e acordei na casa de uma uma conhecida da minha mãe, ali perto, a mulher
molhando meu rosto. Disseram que desmaiei por causa das lombrigas. Os
vizinhos fizeram uma vaquinha e compraram o frango pra mim. Acredita que foi a
primeira vez que comi um galeto, desses prontos? É …era cruel (Marcelo).

Em outro momento, a imagem que descreve parece estar congelada. Num processo de
reprodução da desigualdade que passa pelo sua existência e não apresenta alteração. Em seu
relato, a imagem da mulher negra, na figura da sua mãe, trabalhadora doméstica, tem essa
representação de uma história que pouco alterou.

Engraçado né, só lembro da minha mãe trabalhando… A vida dela foi trabalhar,
até hoje. Às vezes fico bravo com ela, a patroa explora, faz as festas e minha mãe
tem que ir trabalhar, pagar que é bom nada. Ela foi no sindicato das
domésticas e dizeram que ela tem que ter jogo de cintura. Tá bom, jogo de
cintura! Minha mãe é uma guerreira (Marcelo).

Tem alguns amigos com história parecida com a minha, e fala assim: “minha
mãe foi pai e mãe”. Eu não concordo, digo pros camaradas que a minha foi só
mãe e muito mãe. Pra quê vai dar crédito pra ideia de pai, se ele não existiu? Só
existiu pra fazer. Quando foi pra assumir, sumiram (Marcelo).

Nesse lugar de vivência e percepção, a autoridade consolida-se e deve ser mantida. Gilson
negava-se a aderir à autoridade do padrasto, ao contrário da autoridade das mulheres presentes
em sua vida.

A relação com o padrasto é um negócio gozado, tem que entender, porque é o


seguinte: meu padrato era uma pessoa autoritária. Primeiro, eu podia sair, mas
tinha que chegar em casa às 10, que era a hora que ele dormia, descansava, não
queria ficar abrindo porta. Pra mim, 10 era a hora da folia, eu que fui sempre
folião. Então eu sempre passava das 10, e sempre tinha um problema, uma

179
punição. Ele trancava o portão, não me deixava entrar. E a gente viveu grande
parte da vida nesse conflito. Em alguns momentos, minha mãe me defendia, mas
também ela não queria ficar sem o companheiro. Era uma mentalidade correta,
tinha uma austeridade, disciplina. Mas o negócio de moleque era fazer folia,
curtir, zoar. Até quando fiz 16 anos, que me rebelei, uma rebeldia total. Ele veio
brigar comigo, eu dei um empurrão nele e fugi de casa. Porque tinha a questão da
obediência: o padrasto fala, você tem que obedecer e acabou, sem retrucar. Eu me
rebelei e fui pra rua. Aí ficou o ensinamento, porque eu aprendi que, por muito
ruim que fosse em casa ou que fosse o padrasto, a rua é pior. Todos os questão
na rua querem te explorar. Todos. Foi muito difícil. Passei um período no
Mercado Municipal, descarregando caminhão. Dormia no Mercado, embaixo das
lonas, e toda hora tinha alguém querendo me explorar. Eu sentia uma diferença
enorme entre estar numa casa, com um padrasto, e estar na rua (Gilson).

Fico louco quando vejo as meninas desrespeitarem minha mãe. Meu, fico doido.
Quando elas nasceram, eu e meu irmão já ajudávamos em casa com os bicos que
a gente fazia, e a gente não morava mais lá em baixo. A gente já morava aqui,
asfalto, água encanada… muito melhor. Então elas não sabem o que passamos e
não valorizam minha mãe. Eu falo isso pra elas, que nossa mãe é um
exemplo… mas sei lá, essas meninas de hoje (Marcelo).

Marcelo relata um episódio na adolecência que recoloca a questão da autoridade da mãe


frente à autoridade institucional da escola.

Nunca dei trabalho em coisa de rua pra minha mãe. Aqui tive contato com tudo,
poderia ter me envolvido nos esquemas, mas sempre tive cabeça. Aí, tem gente
que fala sem saber, muitas vezes vê o moleque pobre e preto e vai dizendo: “Deve
ser nóia, marginal, ladrão”, até mesmo na escola. Um dia quebrei vários vidros, lá
e fui expulso. Tava eu e um pá de moleque jogando com uma bola de papel no
pátio. O professor ia passando, a bola bateu nele, aí ele já foi me pegando, levando
pra diretoria e falando que eu era mesmo um marginal e tudo mais. Nem tinha
sido eu que joguei a bola que bateu nele. Meu, não prestou: quebrei uma pá de
vidro da entrada da direção e eles foram buscar minha mãe, no trabalho dela. Ela é
que conseguiu me deixar na paz. Mas eu tava com a razão. Aí, parei de estudar.
180
Minha mãe falou pra diretora que eu ajudava ela e tudo o mais, mas me
expulsaram (Marcelo).

5.5 Sobre o referencial de masculinidade

Homens que tiveram uma presença masculina com mais permanência em casa, fizeram
desse um exemplo para a construção de sua própria masculinidade. No entanto, longe de ser um
processo linear, as expressões de masculinidade têm várias fontes e não necessariamente da
figura masculina. Na fala de um dos entrevistados, seu exemplo de masculinidade tinha sido sua
madrinha, e que essa se parecia com Iemanjá. Iemanjá, por excelência, reúne todos os aspectos
femininos. Outro informante diz que sua referência de masculinidade era a mãe. O aspecto de
masculinidade a que se referem diz respeito à postura de enfrentamento da vida, na qual essas
mulheres desde sempre foram protagonistas.

Meu pai foi meu grande exemplo. Era homem de poucas palavras ele falava mais
com minha mãe. Mas sua postura já era uma forma de dizer. De autoridade e a
gente respeitava muito. Aprendi que ser homem não era ser o tal, o valentão, mas
era ser responsável e começava na própria família. sempre ensinei meus filhos
assim também não adianta ser homem na rua e irresponsável em casa (João).

Minha mãe foi fundamental na minha vida. desde que assumi ou passei a
compreender minha condição sexual ela esteve me apoiando. No começo, lá pelos
doze treze anos já estava muito claro pra mim o que eu gostava e queria, ela meio
ficava receosa né, os problemas na escola, as brigas por conta dos xingamentos e
tudo, também ela não falava abertamente mas sempre tinha uma coisa de proteção
sem repressão. Inclusive ela rompeu com a minha avó e tios por causa da disso,
eles eram os primeiros a vir com piadas, gracinhas, aquelas coisa que estamos
cansados de saber (Evandro).

Era com o camaradas que a gente vai aprendendo a ser homem. mas a ser homem
de mesmo, de responsa foi com minha mãe. Porque homem pra mim é assumir
suas coisa, não interessa o que é tem que assumir. Isso aprendi com ela , ela foi
um modelo pra mim (Marcelo).
181
A sexualidade é uma das questões centrais no debate sobre masculinidade, e aparece em
todas as narrativas. O elemento diferenciador entre elas são os tempos e gerações de quem a
vivencia.

Naquela época não se falava essas coisas com os pais não. Mas eu tinha um
primo, assim um pouco mais velho que eu, já falecido… que deus o
tenha…descobriu lá uma casa de moças, sabe né, moça da vida. Aí a gente falava
assim que ia dar uma volta na cidade, que nada, a gente ia lá. Tinha moça muito
bonita lá e era tudo animada. Era assim que a gente aprendia as coisa da vida
(João).

Meu pai explicou tudo, as informações que ele não tinha ele buscava com minha
mãe que era enfermeira mas ele fazia questão de explicar tudo. Piorou quando
meuimão que é mais velho começou a namorar, ele se preocupava dizendo que a
gente tinha que se preocupar com os estudos e que deveria respeitar a filha dos
outros (Felipe).

Os baratos sobre sexo a gente vai aprendendo meio que sozinho e com os
moleques na rua, revistinha, filme. Depois, na prática, vai desconbrindo. Nunca
falei nada disso com minha, mãe acho que também não tinha coragem. Mas ela
ficava preocupada quando chegava e encontrava as meninas vizinhas, lá em casa.
Isso é diferente para os homens. Já com as meninas, é outra coisa. Minha mãe
conversa, explica tudo e eu sempre tô de olho, né. Pra não se meterem com
qualquer vagabundo aí, que só quer aproveitar (Marcelo).

Ah, nunca fui o que se chama de pegador, sempre tranquilo. Na verdade, as


mulheres é que sempre vieram em cima. Pra você ver, minha esposa é que me
propôs namoro, ela é que teve atitude. Gosto de mulher de atitud. Ah, e não vejo
isso um problema (Felipe).

Aí era só entre amigos, mesmo. Meu pai não era de dar apoio. Já que ele estava
com outra família, não era de dar apoio. Então eu ia lá nos cabarés da vida, em
Pernambuco. Eu ia, de vez em quando tem que ir. Dezesseis anos, tem que ir, a
182
gente vai pelos amigos. No próprio serviço, onde eu trabalhava, “Sexta-feira, hoje
vamos na zona”. Antes, se chamava zona. Meio escondido, pois quem era de
menor não podia. Tinha o juizado de menores, se pegasse, já viu, era Febem na
certa (Vanildo).

A sexualidade heterossexual, que historicamente ganhou contorno de normatividade, na


fala de homens que vivenciam outras orientações do desejo, é qualificada como resultado da
reprodução feita no espaços familiares. Se não é somente a família a fazer esse papel, ela é uma
fonte privilegiada de construção e reprodução da heterossexualidade. Mas as contradições que ela
apresenta vão além. Como identifica Evandro:

Entendo que a família é uma estrutura que reproduz muita coisa que a gente quer
preservar, mas também coisas que precisa mudar. A própria ideia de papai mamãe
e filhino ser o modelo de família, pra mim, não serve. Mesmo porque esse tipo de
família eu nunca vou ter. Pode até ser um trio de papai, papai e filhinho (Evandro)

Constumo dizer que nós, gays, somos sempre jogados a ter uma uma sexualidade
marginal. Pior quando não se tem condições financeiras. Nossa, cada história…
Sabe, desde ter que transar na rua, na linha de trem, nos becos escuros, e por aí
vai. Primeiro, porque tem que fugir aos olhos dos outros. Depois, que lugar existe
para a realização dessa sexualidade? Os lugares legítimos são heterossexuais,
porque a única sexualidade permitida é a heterossexual (Evandro).

As referências flutuam diante das experiências. Como elemento da construção das


identidades, sua permanência está vinculada à significação e mobilidade que os sujeitos
determinam.

Olha, acho que nunca tive essa história de um referencial masculino. Mesmo
porque, como eu disse, fui me descobrindo muito cedo. Eu ia fazer trabalho de
escola na casa das minhas amigas e paquerar os irmãos delas [risos]. Na verdade,
não eram minha referência, eram meus desejos [risos]. É claro que sempre existe
o conflito. Tenho irmãos homens mais velhos, e os homens são sempre mais
intolerantes, eu acho. Ou talvez as mulheres são mais cínicas. Agora, o homem
183
tem que mostrar que é diferente e manter-se afastado, pra também não ser um das
bibas no olhar do outro. É assim que eu entendo. Ainda mais quando se é negro
(Evandro).

Masculinidade negra e homossexualidade, quando se aproximam, ameaçam elementos


simbólicos e reais do “macho negro”. Coloca em questão o fetiche no qual se assenta e o
deslocamento do “macho negro” em relação ao homem negro. O primeiro permeado de atributos
cristalizados no imaginário social e o segundo desprovido da pertença do modelo ideal de homem
socialmente reconhecido.

Na ideia do macho negro não se permite a ideia de uma outra sexualidade. No


geral, mas no universo negro é pior. Na escola por exemplo muitas vezes as
pioresagressões vinham dos gorotos negros. Muitas vezes os outros meninos
desafiavam eles para praticar a agressão. Como se eles tivessem que repugnar o
aquilo que os prejudicavam né, então vinham e agrediam com xingamentos e
sempre com aquela ideia “vai ser homem negão”. É interessante isso. Acho entre
os homens os negros adulto é quase a mesma coisa (Evandro).

Elemento que também se expressa nos espaços de construção e reconhecimento de uma


identidade negra.

Quer mais machista que o movimento negro? Machista e homofóbico né. Na minha
história de militância foram muitas as tentativas de colocar ao lado da luta antiracista a
questão da homofobia, impossível né. Nos últimos anos é que começa mais como uma
agência externa e uma cobrança de uma postura politicamente correta do que
envolvimento na causa. Pelo menos é assim e que vejo. (Evandro)

5.6 Quem é quem no mundo da rua?

A rua aqui é retratada não somente como espaço de vivências masculinas. Ela é o lugar
onde o corpo negro que se lança percebe-se nas suas possibilidade e fragilidades. Se para mulher

184
negra a rua consolidou-se como espaço de busca pela sobrevivência individual e coletiva, para o
homem negro é um espaço a ser descoberto e conquistado.

Os sentimentos são contraditórios. Acho que ela expressa a ideia de grupos,


territórios, posições, alternativas, caminhos. Por outro lado, pensando
minha condição ela expressa sim a ideia de perigo, ameaça, intolerância.
Aí eu acho que é contraditória porque ao mesmo tempo que ela te atrai ela
te expulsa (Evandro).

Fui trabalhar de fazer carreto na feira, conhecia todas as ruas do pedaço.


Não tinha medo não. Até hoje ando de boa na madrugada. A gente tem que
saber respeitar pra ser respeitado. Encontro os camaradas nas quebradas e
falo “e aí cara, tudo bem, bacana?”, é assim saber conviver, cada um cada
um. (Marcelo)

Sempre fui bicho solto. Ajudava, fazia o que tinha que fazer e rua. Isso é normal pro
homem né. Homem tem que ir pra rua, conhecer as coisas e saber o que é bom e o que é
ruim, fazer sua escolha. Sempre dizem que a rua não presta que tem coisas que não presta. Mas
é assim cada um faz sua escolha. Convivi com um monte de cara que se meteram em fria, eles
fizeram as escolhas deles. (Marcelo)

A rua nos ensina a nos virar. a rua é que ensina a ser homem de verdade. Porque ali você
é testado. E se o cara tem cabeça tudo certo, senão a vida ensina. A rua é assim ela te dar boas
oportunidades, mas também pode te levar pro fundo do posso. (Marcelo)

Eu queria ganhar o mundo minha filha. Aquilo não era vida não. Nunca gostei do
trabalho na terra. É um trabalho bonito mas tem que gostar. Eu sempre gostei da cidade,
daquele vai e vem que tem na cidade. Sempre dava minhas escapulidas e aí pra cidade. Mas
meus pais não gostavam, não gostava não. (João)

185
Ao discorrer sobre o tempo vivido como morador de rua Gilson desnuda a noite que o dia
esconde. As noites vividas sob a “proteção” de uma lona de caminhão é a melhor imagem para
representar corpos negros na noite da cidade. Assim ela é apresentada nas palavras de Gilson:

Fiquei muito tempo, de quatro pra cinco anos. Minha mãe chegou a ir várias vezes, pra
me buscar, queria que eu voltasse pra casa. Eu dizia “Tô bem, tô bem”. Tava nada, era
um pouco de orgulho, de não dar o braço a torcer. Eu queria que meu padrasto viesse
me chamar, mas ele não vinha. Mas eu não entendia que era ele quem mandava a mãe.
Eu queria voltar pra casa, mas não podia, porque era machão, né? Saí, fui pra rua. Isso
foi um negócio muito duro, na minha vida. Naquela época, a malandragem tava
começando, tinha uma certa influência. Dormindo embaixo da lona do Mercado,
comecei a conhecer vários aspectos e o pessoal da malandragem. Aprendi coisas muito
importantes. Primeiro, como eram os malandros mesmo, que nunca me deixaram entrar
pro lado do crime.

Os códigos de conduta estabelecidos são claros:

Você tinha que ter um padrão: não podia ser chorão porque, na rua, você
nãopode chorar. Se o cara tomar um negócio de você e você chorar, já viu. Você
tem que sentir sua dor, mas não pode chorar. A mesma coisa é o cara que rouba o
outro, na rua. Ele te rouba, mas você tem que ser duro, porque toda hora vai
encontrar o cara na rua – ele está na rua e você também, toda hora ele vai te
explorar. O patrão também te explora, você faz o serviço e ele paga o quanto ele
quer. A gente tinha que ter um padrão, um pensamento de viver, uma posição de
vida. Você vai dormir debaixo da ponte, mas tem que se preocupar com
suas coisas, se alguém vai te roubar. Você está sempre exposto à exploração, a
rua é isso.

(...)

As meninas eram acostumadas a viver tendo a paternidade de alguém. Mesmo que


não tivessem o seu cafetão, procuravam um porque, para sobreviver no mundo da
rua, à noite, tinha que trabalhar pra alguém que desse proteção pra elas. Eu
186
convivia muito com as meninas, conhecia os subúrbios. Eu sentia muito, era um
negócio muito chato, porque a gente ouvia o comentário nos jornais, e a vida era
outra: ninguém falava que era a polícia que explorava (Gilson).

A rua é a metáfora dos caminhos que esses homens buscam percorrer. Os


sentimentos que ela mobiliza é intenso e contraditório. Ela ao mesmo tempo que
encanta amedronta, afasta os desejosos da sua conquista. É assim para quem nela
se arrisca.

(...)

Chegou aqui, era um sonho. Assustou um pouco, no começo. Minha cidade era
pequenininha, no interior de Pernambuco. Chega aqui, você vê um mundo desses.
Fiquei pasmo pelo tamanho da cidade, pra se locomover. Lá era pequenininho,
você andava a cidade inteira a pé (Vanildo).

Mas sabe que fiquei assustado quando cheguei aqui. Vinha da roça e chego aqui
naquela baita cidade, nossa mãe! É de endoidar. Não é igual hoje, mas já era
muito movimentada, tinha os roubos, coisa que quase a gente não via na roça
né. Dava um pouco de medo sabe (João).

A parada é esse espaço da rua ocupado ao mesmo tempo como uma festa mas
também com um ação política. Vejo como uma grande conquista tem os seus
problemas né, como em qualquer organização, mas é um espaço conquistado
legitimamente e que precisa ser mantido (Evandro).

Esse caminho deve ser constantemente refeito pelas novas gerações como afirma o
entrevistado.

Sempre incentivei meus filhos a conhecerem as coisas. Quando eram moleques


mandava ir fazer as coisas, pagar conta, buscar alguma coisa. Minha véia ficava
brava. Ela dizia que se alguma coisa acontecesse com os garotos a culpa era
minha. Mas eu colocava eles na rua, eu falava “vai fazer isso isso, assim assim
187
pro pai”, como cria uns homens que não sabe enfrentar o mundão aí (…) pra
mulher é diferente né o perigo é maior (João).

É na rua que outros personagens entram em cena. E o olhar atento capta essas imagens na
qual a moça branca ocupa o lugar que no cotidiana estão as mulheres negras. Mas perceber a
presença da mulher branca nesse espaço não significa o entendimento do que isso representa. É
apenas um dado constatado na memória de Seu João.

Ficava na praça olhando as moças, elas se arrumavam toda e iam pro coreto.
Ficava ali, tinha a música que tocava nos alto falantes, e a gente ali papeando
olhando o movimento e paquerando também um pouco. (…) Não era fácil
chegar nas moças não, elas sempre estavam acompanhada de irmãos, sempre
tinha alguem pra tomar conta. Mas a gente sempre dava um jeitinho de chegar
um recado um elogio, era muito bom. As moças eram tudo branca. Os pretos e
brancos não ficavam junto não. E só as moças brancas passeavam ali. Lá de casa
só iam os homens, meus irmãos e meus primos. (…) As meninas ficavam em casa,
né?

Os personagens que ocupam lugar “embaixa lona” caracterizam-se por diversas


expressões. Na fala de nosso informante, são homens e mulheres, negros e brancos, adultos e
crianças. E para cada grupo uma possibilidade de exploração de uma estrutura fincadas na teia do
Estado.

É de vários tipos. Por exemplo: quem explora as meninas é a polícia, que fazem
elas se prostituir. É a polícia civil, polícia militar, todo tipo de polícia. Nós,
também. Eu era explorado ou pela polícia, ou senão pelo próprio pessoal
(inaudível). Primeiro, que a gente não era respeitado: desrespeitado,
desqualificado, desvalorizado (Gilson).

Nem sei dizer quantas vezes fui parado pela polícia. Nossa… Teve uma época que
eu tinha vontade de colocar as mãos pra cima quando via uma viatura. Só não
fazia porque não queria morar. Ia ser o passaporte pra eternidade. (Marcelo)

188
O espaço da rua revela disputas em torno das masculinidades. A rua assim como a casa é
lugar de encontro e convivência entre o mundo do trabalho e a marginalidade. E não
necessariamente há um processo constante de absorvição do primeiro em relação ao segundo. E
como isso com o passar do tempo tem mudado. É o que nos revelam Marcelo e Gilson:

Quando era moleque não era assim não, a gente nem chegava perto dos esquemas,
os cara não deixavam. Ainda brigavam com a gente e contavam na nossa casa que
a gente estava em alguma quebrada. Hoje não a pivetada desde cedo já chefiando
os esquenas. (Marcelo)

Isso aconteceu em vários momentos. “Você não, sua vida é outra. Você pode
viver com nós, mas não vai participar”, que era fumar maconha, que era
roubar... “Você está trabalhando, tem seu dinheiro lá, não tem que se envolver
aqui. Nosso negócio, aqui, é outro”. Eu participei da vida deles, como é que
era. Era um negócio difícil, toda hora apanhando de polícia (Gilson).

Os caminhos das ruas também levam e trazem as festas. Do grupo de amigo, as


agremiações, às expectativas profanas da festa religiosa, tudo é ali articulado, e ganha sentido
coletivo. O ritmo impõe a cadência a ser partilhada e o gosto pelas sonoridades ganham novos
adeptos.

Nossa… altas festa a genta dava aqui na rua. Tinha uns camaradas que davam
baile, assim, o pessoal pagava e eles iam tocas nas festas sabe. Quando não
tinham trabalho eles ligavam as caixas aqui na rua e o couro comia. Até
amanhecer black, samba, rap, era muito bom. Agora todo mundo casado com
filho (Marcelo).

Gostava das festas que fazia na Igreja. A praça ficava cheia sabe. Era sempre
festa de santo, e faziam as barracas pra vender comida, essas coisas (João).

Acho que foi um pouco dessa vida que eu tinha na rua. Convivi com o outro lado
da vida, que a turma fala que é o submundo. Nessa volta pra cá, eu sempre gostei

189
muito da escola de samba. A referência era a escola de samba, que era algo da
minha origem, que era a origem do meu padrasto, que era a origem do meu pai.
Eu não podia ouvir um batuque, que ficava fascinado. Era um negócio enraizado
por onde quer que passei. Meu pai sempre foi folião e boêmio, meu padrasto
também gostava muito dessa coisa. A referência era mais nessa linha, de você
viver com um grupo de pessoas que vivem naquele ritmo, e você vai se
consolidando naquilo e aprendendo a viver (Gilson).

5.7 Sobre ser homem negro

Ao passo que discursam sobre suas histórias, esses homens vão apresentando o que é ser
homem negro. Entre a construção do personagem “homem negro” feito socialmente e sentir-se
homem negro há conflitos relativos a conjunção dessas duas formas de pertença, de ser homem e
ser negro.
Os caminhos para lidar tal dinâmica são diversos. Desde o uso para dessa condição
cristalizada de “homem negro” até sua total respulsa no intuito de desconstruí-la são
evidenciados nessas falas a seguir:

Existe uma diferença entre ser homem negro e ser homem. Ser homem é uma
imposição: você tem que ser durão, tem que ser macho... Agora, acho que está
mudando um pouco, mas no meu período, era isso. Tinha que ser durão, macho,
não-sei-o-quê-lá, você não podia chorar, tem que dominar, tudo isso é a história
do ser homem. É um negócio gozado, porque é imposto a uma pessoa ser
homem, é uma imposição, um padrão. (Gilson)

Isso aí tem, porque é o bendito do negócio de algumas heranças da escravidão,


que o negro era para procriar. Até hoje ele é visto como o procriador, o
garanhão, a sociedade só enxerga o negro assim. O cara é namorador,
paquerador, tem vários filhos. Aqui pro Sul, Sudeste está mais desmistificado.
Mas se você vai pro Norte, Nordeste, não tem jeito: para ser bom marido, o cara
tem que ter, no mínimo, quatro filhos. Se não tiver, todo mundo desconfia dele, na
cidade. Isso vem da senzala: o cara que foi feito pra procriar, pra dar lucro

190
pro patrão. A gente que está com um pouco mais de idade, analisa bem o olhar da
mulher branca sobre o homem negro. A mulher negra reclama, mas o homem
negro termina sendo uma presa para a mulher branca, ela vai pra atacar o cara.
As negras reclamam porque não têm esse comportamento, não enxergam o
homem como uma presa (Gilson).

Esse processo elabora no processo produtivo escravista colou-se a um lugar social que
esses homens devem assumir na estrutura social. A junção entre força física e virilidade
conjugam elementos onde se assentam as noções esteriotipadas sobre o masculino negro.

Minha avó. Ela contava mais ou menos essa história, que o negócio dele não era
serviço pesado nem nada, o negócio era reproduzir negros pra fazenda (Vanildo).

Acho que a sociedade vê, no homem negro, alguém que pode fazer qualquer
serviço pesado. Só pensa nele para um serviço de pedreiro, tem que chamar um
cara pra carpir o quintal, pra carregar uma lata, essas tarefas que o outro não
cumpriria. O homem branco, não, é o coitadinho, tem problema na coluna
(Gilson).

Existe um fetiche em relação ao gay negro. Perdi as contas dos caras que se
aproximavam pra namorar e que ao poucos eu ia descobrindo que queriam uma
marido negro. Entende. Aquele negócio, eu tinha que ser o ativo, a mesma coisa
que as mulheres de modo geral vê no negro, o ativo, o cara viril essas coisa. Ah,
não tinha dúvida acabava a relação (Evandro).

Outro ponto de destaque nas falas desses homens diz respeito ao posicionamento do
feminino em relação a eles. Fazem uma distinção entre o feminino branco e o feminino negro do
jogo das conquistas e relações.

A branca vê no negro um procriador, tem aquela fama que é bom de cama. O cara
tá ali, às vezes, conversando. Do outro lado, ela está focada nele, assim. Na
primeira oportunidade, toda sorrindo: “Tô dando de graça, sou oferecida de
191
graça”. Ele não vai dizer que não, não vai deixar de arriscar. Já a mulher negra é
um pouco mais na dela, espera rolar, não tem esse negócio de ser oferecida. Na
escola de samba, vivi muito isso. Agora tem a invasão da classe branca dentro da
escola de samba, você vê o comportamento das mulheres, a atitude é diferente.
Elas chegam na atitude já de chamar o camarada (Gilson).

O olhar de estranhamento e repulsa da família branca e da sociedade relativo as relações


interraciais como demonstrada na fala de Seu João, ainda é elemento de atenção, em que olhares
denunciam formas atuais de reprovoção.

Ela foi muito corajosa, largou a família por causa de mim. Eu nem acreditava
sabe. Eu trabalhava no marcenaria e ela passava e olhava. Nem imaginava que
era pra esse negão aqui. Eu era feio que dói, muito magro sabe. Parecia uma girafa
[riso] e ela gostou. O pai dela dizia que não tinha criado filha pra casar com um
macaco. Falou isso na minha cara [silêncio] isso me machucou. Era muito
trabalhor, me virava sozinho… ouvir aquelas coisa era ruim demais (João).
(...)

A gente passava, ficavam olhando a gente na rua. Parecia que não estavam vendo
gente sabe. Olha vou dizer pra você, isso me deixava muito triste. Minha mulher
falava que eu devia levantar a cabeça e não ligar. Mas eu ficava pensando né, ela
tinha uma vida boa e vir passar dificuldade assim né. (…) Acho que ela foi mais
corajosa do que eu nisso viu (João).

Estratégias de fuga a condenação social, a muito conhecidas, são utilizadas:

Muitos querem manter uma relação mas que não seja pública. Com negão eu
vou pra cama, mas para a sala e o sofá eu levo o branco. A mesma lógica racista
heterossexual, não tem diferença nesse sentido (Evandro).

Se a noção de sofrimento fica evidente nas palavras do entrevistado acima, essa relação
ganha um outro caráter, ela também é elemento de consentimento silencioso, do qual proveitos e
vantagens podem ser obtidas.
192
É de todo o ser humano, o ser humano gosta: “Estou sendo um troféu”. A gente
ouve falar que os homens negros estão com muitas mulheres brancas. Elas
veem a presa, atacam e... Digo isso porque assisto muito o Planeta Animal e
vejo como as feras atacam suas presas. É do mesmo jeito, ficam lá olhando e pá!,
é assim que funciona. Vejo muito esses jovens que estão nos grupinhos de
pagode, como é que é. Aí já começam as facilidades, porque têm mais dinheiro...
Você tá num barzinho, passa uma, oferece carona: “Vem, que eu te levo lá”, ela
tem uma posse um pouquinho maior, isso mexe com o ego masculino. Aí vai
mudando. Primeiro, porque ele já não gosta de sua própria história. Nenhum deles
vai reconhecer que é uma presa, mas a realidade é essa (Gilson).

Quem não gosta de ser desejado? Ser olhado, admirado assim com vontade sabe,
aquele olhar que te quer, isso é bom. Mas também sei que a maioria só quer sexo,
tá lá na baladinha, enxerga o negão aí pensa “nada mal uma cama”, é assim
que funciona, aí a gente tem que aproveitar né? (Marcelo)

Constitui-se no que pode ser definido de uma lei da compensação do homem negro. Em
que sua inserção precária nos campos da relação social encontra espaço. Essa compensação é o
acesso as mulheres brancas, que historicamente foi interditada, ao menos oficialmente. E o acesso
a elas é o acesso aos espaços sociais que ao branco é permitido e legitimado. Ou seja, legitima-se
através da tutela do outro.

Se você tá com outra pessoa escurinha igual você, não da aquele impacto, de
chegar nos lugares e as pessoas olharem, admirando, entendeu? Meu namorido é
bem branquinho, a gente causa quando chega nos lugares viu. (…) o tratamento é
bem melhor. O importante pra mim é que o amor não tem cor, é amor e pronto
(André).

Outra possibilidade de entendimento desse consentimento, é pensá-lo como possibilidade


momentânea e transitória, que garantem diversidade e variações de realizações e fantasias nas
relações. Nesse caso tanto a mulher branca como homem negro levam vantagem. Para tanto é
preciso que haja promoção dessa imagem. Para Marcelo, a internet é o lugar dessa realização:
193
Eu já entro com o nick “Negrão de cavanhaque”, não dá nem pra
responder o tanto de gata que já quer conversar.(…) Aí você já escolhe
com quem você quer falar. Vou dizer uma coisa, a mulherada não é
mole não. Não dá uma trega [risos]. E se for uma negão de cavanhaque
então…nossa tá feito. Careca com cavanhaque então tem quantas quiser.
(...)
Já perdi as contas de quantas que conheci na internet e depois saí. A
maioria era branca e mais velha. Tem umas que até oferece coisas pra
ficar com elas. Tô doido, essas é só curtição. Mas tem umas que fica no
pé, não entende que é só aventura. Minha família é negra e vai continuar
(Marcelo).

Importante ressaltar que essa maleabilidade aqui expressa não reduz o peso dessa
mitificação em relação a virilidadade negra, e a perversidade que ela representa.
Identifica-se aqui que o turbilhão sonoro presente nos relatos da vida familiar em que a
mulher negra é porta voz, aqui desaparecem. A mulher negra, na dimensão dos relacionamentos
e desejos não aparecem com o mesmo protagonismo nas histórias desses homens. Na narrativa de
Felipe isso é visto como uma contingencia de uma realidade em mudança. Exemplifica com o seu
relacionamento:

Nunca namorei uma mulher negra, acho que por falta de oportunidade. As únicas
mulheres negras que tive mais contato era da família. (…) na escola que eu
estudava quase não tinha negro e na faculdade acho que eu era o único. Nosso
universo era outro. A mulher do meu irmão é e nem é brasileira (Felipe).

(...)

Com a estrutura de vida que tenho hoje sou igual a qualquer homem com a vida
estabilizada. Consigo manter minha família com tranquilidade e com qualidade,
estou realizado como homem. Aí não tem diferença negro ou branco, é tudo igual.
O que manda é o enconômico da pessoal (Felipe).

194
Identifica nesse processo um “caminho natural” que se coloca para as gerações que dessas
realidade descendem.

Nunca foi uma escolha assim “vou casar com uma mulher branca”, foi
acontecendo, os lugares, as pessoas. Acho que com os meus filhos não vai ser
diferente. Com quem eles convive? Que lugares eles frequentam? A probalidade
deles casarem com alguém do universo deles é muito grande. Concorda? Não
adianta casar negro com negro se não tem amor e estrutura né. Só pra dizer que
está junto (Felipe).

Em outra narrativa, ainda sobre os relacionamento afetivos, é identificado um traço de


personalidade nas mulheres negras, que poderia se entendido como elemento para sua não
escolha nas opções de relacionamento.

As mulheres brancas são mais seguras. Elas [negras] são discriminadas eu sei,
mas não pode também ser desculpa, tudo foi porque teve escravidão… Acabou
estamos noutra época. (…) Elas se preocupam mais em se arrumar, manter o
corpo essas coisas (André).

Minha tia Maria sempre fala “Os homens dessa família não gostam da nega”.
Quase nenhum dos meus primos casaram com mulheres negras. Também acho
que não é proposital você vai conseguindo uma coisa aqui outra ali, outras
relações e acaba acontecendo. É meio natural (Felipe).

Esse lugar ocupado pelos homens negros precisa de manutenção para sua permanência.
Dentre as estratégias de sobrevivência está o afastamente de seu grupo de origem. O cotidiano
brasileiro apresenta diversos exemplos de jovens negros bem sucedidos, invariavelmente nos
esportes, que fazem essa trajetória. O que não passou despercebido na narrativa do entrevistado,
segundo ele:

Fico olhando esses moleque jogadores. Ganham um dinheiro, compram um carrão


e levam de brinde uma loira. O brinde sai caro, tem que ter dinheiro, jóias,
viagens. Só o Dida, o goleiro, é que continuou casado com a nega dele. Vê os
195
outros, Adriano arruma as loiras, pira o cabeção, vai jogar lá fora, volta, é
encontrado na favela, né. Por que ele volta pra favela? Sabe? Porque tá perdido e
lá ele se encontra, tem os camaradas, com os pretos. Mas ele não percebe isso,
entende? (Marcelo)

No começo, teve o preconceito da minha sogra, por eu ser preto. Mas eu mostrei
pra ela que preto não é o que ela pensava. Ela não comentava comigo, mas com
minha esposa. “Ô, aí, vai casar com preto, preto, preto”. Conclusão: depois ela
veio a se resgatar e falar que o genro melhor que ela tinha era eu, porque mostrei
muita dedicação pra ela. No começo, nós namorava escondido. Eu falei: “Isso aí
não está certo, vou falar com sua mãe”. Aí eu falei: “Ô, Dona Edite, ou a senhora
deixa a gente namorar em casa, ou a gente namora escondido, a senhora é que
escolhe”, e ela aceitou. Ela viu minha dedicação, e depois reconheceu. O
engraçado é que o avô dela era preto. Peguei o álbum da família, disse: “O que é
isso, aqui?” “Ah, esse era meu avô”. Preto. Eu disse: “Não era pra sua mãe ter
preconceito, já tinha uns pretos na família”. Às vezes eu brincava, dizia: “Preto é
igual a Fusca, um dia você vai ter um” (Gilson).

Para o homem negro, o enriquecimento é a possibilidade de afastamento. No entanto o


pertencimento ao universo branco será sempre incompleto. Nas palavras de Connell (…) o
pertencimento a masculinidade hegemônica se sustenta dentro de duas váriáveis, o patriarcado e a
brancura, ambos inexistente para o negro.
O retorno, nas palavras de Gilson, vai para além do que nos sugestionou Marcelo, pode
ser entendido como:

O homem é mais nas asas da mulher, da mãe, da tia, da irmã. O menino negro é
mais carinhoso, quer carinho, tal, e termina alguém da família dando sempre um
pouco de carinho, a tia, a mãe, a irmã... Ao mesmo tempo em que o homem negro
é duro, sabe enfrentar a vida, ele quer mais carinho e é mais afetuoso. O
jovem negro tem mais essa necessidade, é devido à nossa origem. A gente só
começa a avaliar diante dessa pergunta, o que é ser homem (Gilson).

196
Os relacionamentos mistos têm sido uma questão emblemática nos debates sobre relações
raciais. No entanto, os estudos que os identificam impiricamente não avançam no sentido de
compreender os efeitos no universo de homens e mulheres negros.

197
Considerações Finais

Este trabalho se propôs a recuperar um tema pouco explorado pelas análises de gênero, no
Brasil: o feminino e o masculino nas famílias negras, tema que, por vários motivos, não foi
incluído nem na agenda do pensamento negro nem no campo das relações de gênero.
Os estudos qualitativos sobre família negra são escassos. Tornaram-se referência
fundamental estudos como de Woortmann (1987), Bernardo (1998) e Slenes (1999), estudando
especificamente a realidade brasileira e Russel-Wood (2005) os padrões familiares em várias
realidades do continente americano. Os estudos demográficos têm sido fonte privilegiada que
possibilita, através de recortes necessários, identificar os caminhos de construção da família
mesmo em situação desfavorável como o período escravista. No entanto, esses levantamentos,
ainda que fonte importante, não podem ser considerados como específicos no estudo sobre
família.
Das limitações apontadas, um campo de estudos foi reaberto com as citadas análises, e
este trabalho se pretende um estudo das memórias dessa questão no que tange aos papéis
feminino e masculinos na família negra. Além de explicitar a dinâmica de construção da família e
sua articulação com as diferenças de gênero, essas análises evidenciam a tendência à
matrifocalidade encontrada na família negra.
Na análise empreendida neste trabalho, pude identificar as ideias de desestrutura como
operadora na representação social e académica sobre as famílias matrifocais. Ideias, estas que
engendram um postura de deslegitimação ao reconhecimento de sua condição de família. O não
reconhecimento de outros modelos familiares engendra concepção e postura que advoga o não
reconhecimento da história e cultura negra como processo de ressiginificação na diáspora.
O trabalho buscou demonstrar os contornos de construção e manutenção da família negra,
como resultado da diáspora negra, e nela, lugares e papéis sociais ocupados por homens e
mulheres.
Um aspecto relevante que compõe este trabalho é a análise sobre o campo dos estudos
femininos. Aqui o feminino é compreendido na sua diversidade, dando especial atenção a
construção do feminino negro, que assumiu e assume papel de protagonistas em suas famílias no
universo da população negra. Os caminhos percorridos ao encontro dessas mulheres nos deixa a

198
convicção de que essa história precisa ser contada nas suas várias dimensões, pois elas expressa
em grande parte, a história de seu grupo de pertença, mas também contribui para novas
perspectivas para as análises das relações de gênero. Assim, a condição feminina, traduzida
através da história das mulheres como é relativizada pela contigência de ser da mulher negra na
diáspora.
A masculinidade, tema com pouca tradição no debate de gênero, ganha expressão neste
trabalho, no que concerne ao entendimento de que há um deslocamento na percepção de poder,
ao menos nos moldes que tradicionalmente tem sido tratado no campo teórico, revelando como
essas outras masculinidades se recompõe e são reconstruídas disputando espaço na masculinidade
hegemônica ou construindo outras hegemonias. Assim como nas narrativas femininas, as
masculinas desnudam não somente seu próprio universo como desnudam-se mutuamente, ou
seja, quando a mulher negra fala de si, revela o masculino negro e vice-versa.
O percurso, nestes universos, foi através das histórias de vida. As imagens reproduzidas
nessas narrativas são lembranças distantes ou próximas que permitem aproximações e
afastamentos das gerações que as apresentam, através de acontecimentos e experiências vividas.
Credita-se a memória a capacidade de encontrar pontos em comum. Nas palavras de Halbwachs:

Entre as lembranças que evocamos à vontade e aquelas que nos fogem,


encontraríamos na realidade todos os graus. As condições necessárias para que
umas e outras reapareçam não diferem a não ser pelo grau de complexidade. As
primeiras estão sempre ao nosso alcance, porque se conservam em grupos nos
quais somos livres para penetrar quando quisermos, nos pensamentos coletivos
com que permanecemos sempre em relações estreitas; tanto que todos os
seus elementos, todas as ligações entre esses elementos e as passagens nos são
menos e mais raramente acessíveis, porque os grupos as trariam a nós estão
mais distantes; não estamos em contato com eles senão de modo
intermitente (p. 49).

A memória é o ponto de chegada do caminho percorrido para estruturação do que se que


investigar, mas é muito mais um ponto de partida. É por ela que a história da família negra vai
sendo construída e onde estão protegidas as informações de sua história que podemos ter.

199
As lembranças através dos relatos de família aproximam sujeitos distantes em tempos e
espaços, mas que comungam suas vivências na cidade. As ruas, as festas, o trabalho são
metáforas onde são forjados sentidos e sentimentos. Desenhando a memória coletiva de mulheres
e homens negros inscrevendo-se na história.
As mulheres são rememoradas nas suas lideranças e sua qualidade de negociante desde os
tempos de cativeiro. Liderança que se constituía tanto no espaço da casa como no espaço da
cidade. Suas histórias são recontadas nas vozes desses homens. As vozes masculinas são
silenciadas, assim como sua autoridade. Onde a autoridade masculina existe ela precisa ser
comunicada através das vozes femininas. Nas palavras de Connerton:

Podemos afirmar, deste modo, que as nossas experiências do presente dependem


em grande medida do conhecimento que temos do passado e que as nossas
imagens dopassado servem normalmente para legitimar a ordem social presente.
(…) É que as imagens do passado e o conhecimento dele recolhido são, conforme
pretendo demonstrar, transmitidos e conservados através de performances (mais
ou menos rituais). (1993, p. 4).

É nesse jogo narrativo que esses personagens inscrevem-se numa história em construção,
e aqui encontra-se ensaios dessas conexões.

200
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