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O JUDICIÁRIO E O DISCURSO

DOS DIREITOS HUMANOS

Volume dois

O JUDICIÁRIO E O DISCURSO
DOS DIREITOS HUMANOS

Volume dois

Enoque Feitosa
Lorena Freitas
Artur Stamford da Silva
Adrualdo Catão
Eduardo Rabenhorst
(organizadores)

Recife – 2012
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou
processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos
e vídeográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial em qualquer sistema de
processamento de dados e a inclusão de qualquer parte da obra em qualquer programa juscibernético.
Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração.

Créditos:

Capa:
Carolina Leal

Ilustração: “Kuilt Texture” de John Wisbey – (www.sxc.hu)

Responsabilidade pelo conteúdo, redação e formatação de cada artigo:


O Autor do Capítulo

Formatação:
Artur Stamford da Silva

Impressão e acabamento:
EDUFPE

Catalogação na fonte:
Bibliotecária Joselly de Barros Gonçalves, CRB4-1748

J92 O judiciário e o discurso dos direitos humanos : volume 2 /


organizadores: Enoque Feitosa... [et al.]. – Recife : Ed.
Universitária da UFPE, 2012.
279 p.

Inclui referências.
ISBN 978-85-415-0143-9 (broch.)

1. Função judicial. 2. Direito – Filosofia. 3. Hermenêutica


(Direito). 4. Direitos humanos. 5. Análise do discurso. I. Feitosa,
Enoque, 1955- (Org.).

347 CDD (23.ed.) UFPE (BC2012-167)


Aos autores
“não sei se minha vida foi inútil e apenas um mal entendido
ou se ela tem um sentido. Se ela tem um sentido, só pode
ser o seguinte: o conhecimento e a experiência claríssima e
dolorosíssima de um homem concreto, singular, de nosso
tempo, da distância colossal que separa Castália de sua
pátria; ou talvez, inversamente enunciado, de como nosso
país se tornou alheio e infiel à sua nobre Província e ao
espírito dessa Província, com em nosso país alma e corpo
estão divorciados, quão pouco querem saber e na realidade
sabem um do outro. Se eu tinha uma missão e um ideal
na vida, era o de fazer de minha pessoa uma síntese dos
dois princípios, ser um intermediário, um intérprete e um
conciliador entre os dois. Tentei e malogrei”
Hermann Hesse
(O jogo das contas de vidro. Rio de Janeiro/São Paulo:Record, 2003, p. 354)

“- imposible - afirmó Maurício”. Ese argumento está fuera


de discusión. Francesca no abandonaría Arabia por ningún
motivo, puedo assegurártelo. Como te decia, las cerraduras
de las puertas no están forzadas”
Florencia Bonelli
(Lo que dicen los ojos. Buenos Aires: SUMA DE LETRAS, 2012, p. 228)
AGRADECIMENTOS

A Carolina Leal pela disponibilidade de, nas urgências solicitadas,


promover cada ação, organização, digitação e realização deste segundo volume.

Aos autores pela integração e efetivação da união dos Programas de


Pós-graduação envolvidos neste PROCAD.

À CAPES, por estimular a formação de equipes nacionais de pesquisa


através do programa PROCAD.

À UFPE especialmente à EdUFPE em nome da Diretora Maria José de


Matos Luna,por sua sensibilidade e estímulo ao debate dos direitos humanos
e força na publicação deste livro, bem como a Adriana Rosa e Sérgio Siqueira,
pelas constantes respostas, informações sem as quais este livro não teria sido
possível.

A todos os administradores de Centros Acadêmicos, Departamentos e


Programas de Pós-Graduação.

A Lorena Freitas e a Enoque Feitosa pela dedicação dispensada na


realização do III Encontro PROCAD, O Judiciário e o Discurso dos Direitos
Humanos, sem os quais teria sido impossível o evento e este segundo volume,
sabemos o quanto não é fácil “cobrar” insistir nas cobrançase continuar
insistindo para que todos enviem suas contribuições viabilizando um livro
coletivo.
SUMÁRIO

1.Claude Lefort e a democracia: Uma visão contra o senso comum...............15


Luciano Oliveira

2. Ética e direito: acerca da (suposta) existência de valores prévios


e superiores na forma jurídica...............................................................................25
Enoque Feitosa

3. As bases do realismo jurídico norte-americano no pragmatismo


filosófico...................................................................................................................43
Lorena Freitas

4. Interpretação e aplicação do direito fundamental à liberdade


de expressão e imprensa: Uma abordagem pragmática comparativa
entre o TJ/AL e o STF.............................................................................................65
Adrualdo de Lima Catão; Lívia Falcão de Almeida; Caroline Maria Costa Barros

5. Literalidade como trabalho social:


A decisão judicial como constructo do direito da sociedade............................91
Artur Stamford da Silva

6. A educação em direitos humanos e a promoção da cidadania brasileira..113


George Sarmento

7. Advocacia pública e democracia: Reflexões entre o direito e a política....129


Gustavo Ferreira Santos

8. Para além do fornecimento de medicamento para indivíduos -


O exercício da cidadania jurídica como resposta à falta de efetivação
dos direitos fundamentais sociais: em defesa de um ativismo judicial
moderado no controle de políticas públicas......................................................135
Andreas J. Krell

9. A vítima no processo penal e o protagonismo do juiz criminal.................181


Alberto Jorge Correia de Barros Lima

10. Justiça de transição na América do Sul: Possíveis lições da Argentina


e do Chile ao processo constitucional de transição no Brasil.........................197
Bruno Galindo
APRESENTAÇÃO
 

O Judiciário e o Discurso dos Direitos Humanos é o nome atribuído


ao PROCAD UFAL - UFPB - UFPE, título que tornou viável integrar
pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Direito das referidas IFES
justo pela pluralidade temática que suporta. Essa pluralidade, contudo, não se
confunde com infinitude nem ausência de limites, com se pode constatar da
leitura de cada capítulo deste livro, cuja interligação está na reflexão sobre o
Poder Judiciário, a decisão jurídica e direitos humanos.

O II Encontro deste PROCAD, realizado no período de 23 a 25 de


novembro de 2011, nas dependências da Faculdade de Direito do Recife,
Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco,
propiciou o lançamento do volume primeiro desta obra. Agora, com a
realização do III Encontro PROCAD, no Centro de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal da Paraíba, apresentamos, à comunidade acadêmica,
este segundo volume igualmente dedicado à reflexão sobre direitos humanos
e a decisão jurídica.

A sequência dos artigos se inicia com um excerto da palestra do


prof. Luciano Oliveira e também temática de seu recente livro, O enigma da
democracia: O pensamento de Claude Lefort, apresentando sua visão de como
o pensamento de Claude Lefort contribui para o pensar a democracia. Como
diz o próprio autor sobre essa dimensão não devidamente trabalhada da obra
lefortiana: “longe de significar um desalento em relação à democracia, ela põe
em relevo a sua importância ao advertir contra os perigos de tentar ‘realizá-la’
num regime sem fissuras que superaria as divisões e os conflitos sociais, que
ele vê como constitutivos da própria democracia”.

Na sequência, as contribuições foram organizadas considerando a


proximidade temática, tentando-se equilibrar reflexões consideradas mais
abstratas daquelas mais empíricas, o que não implica separar teoria de prática,

13
  afinal todos os artigostematizam questões relativas ao judiciário
e o discurso dos direitos humanos a partir das preocupações teóricas dos
professores membros do PROCAD.

Os textos mais teóricos dão início ao livro,seguidos dos textos mais


empíricos, por explorar dados das práticas do direito. Assim, têm lugar artigos
sobre moralidade e direito a partir da reflexão marxista; sobre pragmatismo
e realismo jurídico e uma análise empírica a partir deste mesmo referencial;
sobre a literalidade e teoria da decisão; sobre educação em direitos humanos
destacando o papel do sujeito de direitos e sobre o papel da advocacia pública.
Estes dois últimos artigos, mais orientados por um viés prático de percepção
de problemas teóricos, preparam a sequencia da leitura que segue com artigos
sobre o ativismo judicial moderado no controle de políticas públicas, sobre os
papeis da vítima e do juiz nos processos penais e sobre processo constitucional
de transição no Brasil a partir das lições possíveis na experiência argentina e
chilena.

Assim, o presente livro realiza a função de levar ao público reflexões


com variados olhares, relacionando direitos humanos à decisão jurídica.

Os organizadores

14
CLAUDE LEFORT E A DEMOCRACIA:
Uma visão contra o senso comum*

Luciano Oliveira 1

Nascido em 1924 e falecido em 2010, Claude Lefort teve uma


significativa audiência no Brasil na década de 80 do século que passou –
sobretudo na sua primeira metade. Seu livro mais conhecido, A Invenção
Democrática, foi aqui traduzido e muito lido nesses anos. Vivia-se o processo
de “abertura” política do general Figueiredo e os temas da democracia e dos
direitos humanos, nele tratados, favoreceram a acolhida que teve. Eu, que
cursara a universidade nos “anos de chumbo” da ditadura militar e tivera
alguns colegas presos e torturados, acalentava um tanto vagamente a idéia de
escrever uma tese sobre a questão dos direitos humanos no Brasil. Ter vivido
sob um regime que fazia da violação de tais direitos um de seus pilares, tinha-
nos ensinado, a mim e à minha geração, a valorizar, na prática, o que significava
a sua vigência. Havia, entretanto, um problema teórico a resolver.
Havíamos aprendido, com o marxismo, que os “direitos naturais
e imprescritíveis” das gloriosas Declarações da Revolução Francesa – que,
obviamente, todos identificávamos com alguma arrogância e escasso preparo
como sendo simplesmente uma “revolução burguesa” – não eram senão os
direitos do “homem egoísta [...], um indivíduo fechado sobre si mesmo,
sobre seu interesse privado e seu capricho privado” como diz o próprio Marx
num texto famoso2. A minha ideia era fazer uma análise crítica dessa leitura,
considerando-a, à luz da experiência da minha geração, empobrecedora.

* Este texto foi preparado para o III Encontro Procad (UFAL-UFPB-UFPE) realizado entre 12
e 14 de dezembro de 2012 em João Pessoa (PB). Agradeço aos amigos e colegas Lorena Freitas e
Artur Stamford o estímulo para escrevê-lo e, agora, a oportunidade de publicá-lo. O seu conteúdo
retoma questões mais longamente desenvolvidas no meu livro O Enigma da Democracia: o
pensamento de Claude Lefort, Piracicaba, S. Paulo, Ed. Jacintha, 2010.
1 Professor Associado da UFPE, Depto. de Sociologia. Professor do Programa de Pós-
graduação em Direito da UFPE.
2 Karl Marx, “A propos de la question juive”, em Oeuvres, vol. III, Paris, Gallimard, 1982, p. 368.
Observo que a leitura de Marx tem por base o texto de uma segunda Declaração proclamada em 1791,
e não o da Declaração de 1789, a qual, talvez por ter sido a primeira, tornou-se a mais conhecida.

15
Sentia-me, entretanto, um tanto tolhido na minha pretensão: quem era eu
para criticar Marx? Numa palavra, meus botões eram meus privilegiados
interlocutores... Um dia, por causa do seu título, tive minha atenção atraída
para o artigo de Claude Lefort: “Direitos do Homem e Política” que abre seu
livro mais conhecido3 . Nele, Lefort aponta algumas omissões importantes
na leitura de Marx. O que mais me chamou a atenção naquele momento,
considerando os meus propósitos, foi a crítica ao silêncio de Marx sobre os
artigos 7°, 8° e 9° da Declaração, os quais, respectivamente, interditam a prisão
arbitrária, instituem o princípio da reserva legal e o da presunção de inocência
de todo acusado, em relação ao qual,
caso se julgue indispensável prendê-lo, todo rigor
desnecessário à vigilância de sua pessoa deve ser
severamente reprimido pela lei” (art. 9°). O regime militar
tinha de tal forma espezinhado esses princípios, que o seu
simples enunciado – uma banalidade em tempos normais
– tinha naqueles anos adquirido um valor incalculável
para nós. Lefort criticava a miopia de Marx em não
ver nesses dispositivos “uma aquisição irreversível do
pensamento político4 .

A leitura desse texto foi para mim um acontecimento no sentido forte


do termo. Nesses momentos é reconfortante encontrar um autor importante
que diz aquilo que não sabemos ou não temos a ousadia de dizer. No contexto
de elaboração de um projeto de tese, tinha descoberto meu marco teórico!5
Mas não foi apenas esse apontamento das omissões de Marx que me mostrou a
potencialidade analítica da reflexão lefortiana para o meu próprio projeto. Seu
texto, afinal, não se resumia a isso. A crítica dos vieses na leitura marxista servia
na verdade de mote para Lefort retomar um dos tópicos mais recorrentes na sua
obra: o “desintrincamento” – para usar um termo bem seu – que se opera no
3 O artigo está publicado em A Invenção Democrática. São Paulo: Brasiliense, 1983. Neste
texto usarei, sempre que possível, as traduções brasileiras dos livros de Lefort. O uso eventual de
textos não traduzidos no Brasil será oportunamente assinalado. Nesses casos, a tradução para o
português terá sido minha.
4 Claude Lefort, op. cit., p. 51.
5 A tese, sob a orientação do próprio Claude Lefort, foi feita num doutorado na Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais, Paris. Alguns de seus achados estão publicados no livro Do
Nunca Mais ao Eterno Retorno – Uma reflexão sobre a tortura. São Paulo: Brasiliense, 2009.

16
fenômeno democrático entre a lei e o poder. Como diz ele, “o poder se encontra
confinado a limites e o direito plenamente reconhecido em exterioridade ao
poder”6 . Essa visão pareceu-me bem adequada para “enquadrar” o objeto
empírico que queria circunscrever, a saber: o aparecimento, no Brasil, de um
movimento de defesa dos direitos humanos opondo-se à ditadura militar e à
sua ordem legal em nome de um direito a ela não submisso. Mas o que haveria
de novo no que dizia Lefort? Até aqui, nada que não pudesse ser subscrito por
um jurista convencionalmente liberal. Qual, então, a novidade? Ocorre que o
texto que tinha em mãos não se esgotava aí. Nas reflexões que em seguida fazia
sobre o significado político de uma sociedade que acolhe os direitos do homem
como seu fundamento, Lefort revelava-se um autor nada convencional.
A propósito das Declarações e da base em que se assentam, diz ele:
um novo ancoradouro é fixado: o homem. E fixado, além
disso, em virtude de uma Constituição escrita: o direito
encontra-se categoricamente estabelecido na natureza do
homem, uma natureza presente em cada indivíduo. Mas
que ancoradouro é esse?” 7

É aqui onde começam os problemas: tão logo fazemos um esforço no


sentido de pensar empiricamente o que é esse homem, verificamos que essa
imagem se esvanece. O próprio Lefort, logo no início do seu texto, se põe a
questão: “Se julgamos que há direitos inerentes à natureza humana podemos
economizar uma definição daquilo que é próprio do homem?” E prudentemente
esquiva-se de propor tal definição, observando que, “sem dúvida, a resposta se
esconderia”8 . “Ora – continua Lefort –, a idéia de homem sem determinação
não se dissocia da [idéia] do indeterminável. Os direitos do homem reenviam o
direito a um fundamento que, a despeito de sua denominação, não tem figura”9.
Essa indeterminação, além disso, percorre também outras tantas figuras
míticas como Sociedade, Povo, Nação – que são, nas democracias, “entidades
indefiníveis”10 . Ou, dizendo de uma maneira mais exata, a sua “definição” está
sempre sujeita ao questionamento, num debate público que é sem fim.
6 Idem, op. cit., p. 52 – itálicos meus.
7 Idem, op. cit., p. 54.
8 Idem, op. cit., p. 37.
9 Idem, op. cit., p. 55 – em itálico no original.
10 Idem, op. cit., p. 68.

17
Usando uma forma de expressão que surge diversas vezes nos seus textos,
a democracia moderna aparece como um “regime fundado na legitimidade de
um debate sobre o legítimo e o ilegítimo – debate necessariamente sem fiador
e sem termo”11 . Ao ir coerentemente até o fim nessa vertente de pensamento,
Lefort, valer-se-á de fórmulas que na ocasião de minhas primeiras leituras achei
um tanto desconcertantes e recepcionei com estranhamento. Por exemplo,
a da democracia como um regime que se institui – o que à primeira vista
parece um paradoxo – em oposição à “boa sociedade”, ou seja, uma sociedade
que pretendesse ter abolido a “divisão social”12 . O alvo de sua reflexão, já se
percebe, é o projeto comunista de construção de uma sociedade sem classes,
empreendimento que, por onde passou, degenerou em totalitarismo.
Lefort foi discípulo, colaborador e depois testamenteiro de Merleau-
Ponty, cujo método fenomenológico adotou na análise dos dois fenômenos
que constituem o cerne de suas reflexões: o totalitarismo de um lado e, contra
seu pano de fundo sombrio, o que chama de “invenção democrática”. No seu
percurso, ainda jovem, encontrou o pensamento marxista, do qual tornou-
se um ativo militante, tendo fundado em 1948, juntamente com Castoriadis,
o grupo Socialismo ou Barbárie, cuja revista com o mesmo nome tornou-se
uma referência obrigatória no debate contemporâneo em torno do marxismo,
tendo sido a primeira publicação de esquerda na França a fazer uma crítica
sistemática e qualificada do stalinismo então no apogeu. Concomitantemente,
dá-se o seu terceiro encontro decisivo: a obra de Maquiavel, cuja leitura
despertou nele a convicção de que foi o conflito, e não a sua eliminação, que
fez a glória da república romana. A partir daí, Lefort, sem por isso deixar de
ser um leitor atento de Marx, abandona a perspectiva da construção de uma
sociedade socialista na qual o conflito seria abolido, vendo nesse projeto o
perigo da tentação totalitária, e passa a dirigir o seu pensamento a interrogar o
que considera essencial no fenômeno democrático: a construção de uma mise-
en-scène fundada sobre a legitimidade do conflito.
A longa convivência com o autor d’O Príncipe marcou definitivamente
a concepção lefortiana sobre o fenômeno político, provocando uma reviravolta
no significado que ele passou a atribuir à democracia – daí em diante uma ideia
11 Pensando o político. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 57 – itálicos no original.
12 A Invenção..., p. 67 e 68.

18
fixa nos seus trabalhos. Para ser mais exato, significou uma mudança de objeto
na sua reflexão: do afrontamento entre capitalismo e socialismo, preocupação
da época de Socialismo ou Barbárie, Lefort passou a exercitar uma reflexão
ininterrupta sobre a oposição entre totalitarismo e democracia. Se de Merleau-
Ponty nosso autor reteve, por assim dizer, o modo fenomenológico de olhar,
junto com o florentino Lefort desenvolveu a visão da “irredutibilidade da
divisão social”, abandonando, de modo definitivo, “a ideia de uma sociedade
harmoniosa”. O estranhamento que se sente ao ler Lefort pela primeira vez é
mais do que compreensível: o abandono da ideia de “boa sociedade”, afinal,
não seria exatamente o oposto do que se entende por democracia? A resposta
lefortiana, surpreendente e original, é não!
Indo ao essencial da sua leitura de Maquiavel, diz Lefort:
Maquiavel observa que a grandeza de Roma não foi o
produto de uma sábia legislação, mas que ela se edificou ao
sabor dos acontecimentos. [...] Os felizes acontecimentos
dos quais Roma se beneficiou, ele os relaciona aos conflitos
que opuseram o Senado e a plebe, chegando a descobrir
nesses últimos o fundamento da grandeza da República, e a
celebrar a virtude da discórdia, da desunione. Ele se levanta
contra a opinião mais espalhada, a opinione de molti, para
afirmar em seu próprio nome (io dico) que ‘aqueles que
condenam os tumultos da nobreza e da plebe maldizem
aquilo que foi a causa primeira da existência da liberdade
romana e prestam mais atenção ao barulho e gritos que eles
ocasionaram do que aos bons efeitos que produziram’13

Deixando de lado a clássica questão acerca das verdadeiras intenções


de Maquiavel – finalmente, teria ele sido “maquiavélico”, ou não? –, Lefort
retém insistentemente uma observação do florentino acerca de “duas
tendências diversas” que se encontram em todas as Cidades no sentido de
polis: “o povo não deseja ser governado nem oprimido pelos grandes, e estes
desejam governar e oprimir o povo”14. Com isso, observa nosso autor, “o

13 Machiavel et la veritá effetuale. In: Écrire – À l´épreuve du politique. Paris: Calman-Lévy,


1992, p. 144 – itálicos no original.
14 Maquiavel. O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os Pensadores), 1973, p. 45.

19
filósofo florentino havia, bem antes de Marx, percebido a divisão de classes
em todas as sociedades históricas”15. Só que, à diferença de Marx, ele não cria
na possibilidade de sua superação. Mais do que isso, via nessa divisão a razão
mesma da polis, vale dizer, de um espaço público agenciado em sua função.
Noutros termos, foi lançando um olhar positivo sobre os “bons efeitos que
produziram” os tumultos opondo o Senado e a plebe romana que, segundo
Lefort, Maquiavel fez uma “leitura singular” do regime que eles instituíram:
uma polis que, ao invés de se fechar sobre si mesma,
acolhe o conflito e inventa, submetendo-se à prova dos
acontecimentos e dos tumultos, ‘respostas’ que impedem
ao mesmo tempo a ameaça constante da tirania e a
ameaça constante da licenciosidade.16

Daí a hipótese – embrião sem dúvida da crítica lefortiana à “boa


sociedade” – de que “o elogio da República romana recobre uma crítica
corrosiva do bom regime, tal qual o concebiam os autores clássicos”17. Numa
palavra, Lefort retém de Maquiavel a visão de que a divisão social, longe de
significar a sua negação, é “constitutiva da polis, de toda sociedade política”18 –
sociedade política democrática, acrescentaria eu para tornar mais claro o seu
pensamento.
Marcada pelo contexto do início dos anos 80, a recepção do pensamento
lefortiano entre nós permaneceu muitas vezes num primeiro nível de leitura, o
da defesa do regime democrático nas suas formas institucionais. Nesse nível, ele
não é um autor diferenciado. Num nível menos superficial, entretanto, a visão
lefortiana da democracia chega a desconcertar. Para Lefort, e simplificando
bastante, a democracia não é um regime que traz consigo a solução para o
problema da convivência humana, colocando o “povo” no poder e instituindo
assim a “boa sociedade”. Observando que o conceito de povo remete a algo
como uma unidade dotada de identidade – numa palavra, a uma “totalidade
orgânica” -, Lefort lembra que tal entidade não existe empiricamente, existe
apenas simbolicamente. No fatos, que “figura” corporificaria o indefinível

15 Claude Lefort. Repensar o Político. In: Le temps présent. Paris: Éditions Belin, 2007, p. 360.
16 Écrire..., op. cit., p. 145.
17 Idem, op. cit., p. 143 – itálico meu.
18 Idem, op. cit., p. 166.

20
povo? As respostas que foram dadas no século XX incluíram a raça ariana, no
caso do nazismo, e, no caso do comunismo, o proletariado.
Essa dimensão da obra de Lefort - na verdade a sua verdadeira dimensão
- merece ser mais e melhor conhecida. Longe de significar um desalento em
relação à democracia, ela põe em relevo a sua importância ao advertir contra
os perigos de tentar “realizá-la” num regime sem fissuras que superaria
as divisões e os conflitos sociais, que ele vê como constitutivos da própria
democracia. Trata-se, a meu ver, de uma visão particularmente importante nos
momentos em que a decepção e uma descrença difusa, mas generalizada em
relação às instituições da chamada democracia formal – sentimento comum e
corriqueiro nas democracias – podem levar às miragens da “boa sociedade” e
da “verdadeira democracia” - noutros termos, à tentação totalitária.
Didaticamente, Lefort convida a reparar no desintrincamento que se
opera entre a instância do poder e a instância da lei, a partir do momento em
que se apaga a identidade do corpo político. Na verdade – e aqui tocamos
numa da fórmulas lefortianas mais famosas – “o poder aparece como
um lugar vazio”, e aqueles que o exercem, “como simples mortais que só o
ocupam temporariamente”. De outro lado, “não há lei que possa se fixar cujos
enunciados não sejam contestáveis, cujos fundamentos não sejam suscetíveis
de serem repostos em questão”. Já não é possível “apagar a divisão social.” Em
resumo, “a democracia inaugura a experiência de uma sociedade inapreensível,
indomesticável, na qual o povo será dito soberano, certamente, mas onde não
cessará de questionar sua identidade”19 . A democracia recusa, como diz Lefort
numa outra feliz expressão, um “ponto de sobrevôo do saber e do poder”20 .
É interessante notar que Lefort recupera aqui o mesmo termo que Merleau-
Ponty utiliza para fazer a crítica à ciência moderna, acusando-a de ser um
“pensamento de sobrevôo” em relação ao mundo, com isso pretendendo
dominá-lo, ao invés de habitá-lo. O termo é um desses bastante caros a Lefort,
que aqui e ali dele lança mão. Essa recorrência não é um mero gosto estilístico:
ela dá conta, a meu ver, da antiga e nunca desmentida ancoragem lefortiana
na fenomenologia existencial, de onde se precavê contra a tentação que
ronda todo teórico de olhar o mundo como um objeto que ele pode conhecer
19 Idem, op. cit., p. 118 – itálicos meus.
20 Élements d´une critique de la bureaucratie. Paris: Éditions Gallimard, 1979, p. 24 – itálico meu.

21
inteiramente e manipular a seu bel-prazer. Se na física isso é possível – mesmo
com o risco de se produzir a bomba atômica! –, na política isso pode levar
– não como um risco, mas como uma consequência lógica – à tentação e,
portanto, à dominação totalitária.
Eis por que Lefort insiste repetidamente na visão da democracia
como um regime “desincorporado” colocado entre dois outros cuja “matriz
simbólica” seria uma incorporação: no caso da monarquia absoluta, “o corpo
do rei”; no caso do totalitarismo, “o corpo do povo”. Se, no caso deste último,
a palavra “corpo” vem grafada em itálico, é por uma razão que também não
releva de um cacoete estilístico, mas por um motivo que aqui se esclarece:
enquanto que no caso da monarquia absoluta o titular da soberania, o rei,
tem efetivamente um corpo no sentido físico, empírico do termo, no caso do
totalitarismo o titular da soberania, o povo, é uma abstração. E isso não é um
detalhe sem importância.
Para melhor exprimir o que quero dizer, vou recorrer a uma citação
um tanto longa de um de seus intérpretes. Diz ele:
todo o pensamento político ocidental é dominado pelo
pressuposto, frequentemente implícito, [de que] existe uma
solução racional para o problema da convivência humana.
[...] Segundo esse approach, a concepção de uma solução
harmoniosa, justa, portadora de paz civil e de amizade
entre os membros da coletividade é, em princípio, possível.

Numa palavra, estamos falando da “boa sociedade”. Ora, sem que isso
signifique uma celebração da “má sociedade”, o pensamento de Lefort, ainda
segundo o seu intérprete, erige-se contra esse projeto:
o sonho racionalista de uma sociedade reconciliada
consigo própria e liberta do conflito é, no melhor dos
casos, uma utopia inconsistente alimentada por alguns
pensadores sem o pé na realidade efetiva; no pior
dos casos, um projeto mortífero cuja realização leva
necessariamente ao esmagamento da sociedade em seu
conjunto21 .

21 Hugues Poltier. Claude Lefort, la découverte du politique. Paris: Éditions Michalon, 1997, p. 35 e 39.

22
Concordando com essa leitura, acho que a visão lefortiana que dela
se extrai infiltrou-se na minha própria maneira de encarar a realidade e
contribuiu, em alguma medida, para minha própria concepção de que, no
fundo, e globalmente considerado, o mundo é um problema sem solução!
Atenção: dizer isso não significa afirmar que não haja solução para os
problemas do mundo... Explico-me. Fascina-me, ao mesmo tempo que
me assusta, a complicada dinâmica dos conflitos. Quase sempre, senão
sempre, a solução para um problema termina gerando um novo problema.
Aumenta a longevidade dos seres humanos, e surge o problema de gestão da
“terceira idade” – tanto mais que, com a libertação das mulheres do jugo da
família patriarcal – algo positivo –, já não há aquelas que aceitam o status
de solteironas e são condenadas a cuidar dos pais idosos, os quais, aliás, a
depender da condição social, são despachados para os asilos ou as “casas de
repouso” – o lado negativo do processo; as populações rurais, atraídas pelas
luzes fascinantes das cidades, abandonam de bom grado a vida embrutecedora
do campo, e as metrópoles viram megalópoles inadministráveis; aumenta a
riqueza da sociedade e a classe trabalhadora passa a ter acesso ao automóvel
– resultado: surgem os estressantes engarrafamentos. E assim por diante,
e assim sem fim. Ou seja: não apenas a solução de um problema gera outro
problema, mas chega a ser constitutivo deste! É, para um espírito apressado,
desalentador. Mas a democracia nutre-se desse desalento, das imperfeições e
do inacabamento essencial da experiência humana, e suportar a consciência
disso é um dos fardos do homem moderno.

23
ÉTICA E DIREITO: ACERCA DA (SUPOSTA) EXISTÊNCIA
DE VALORES PRÉVIOS E SUPERIORES
NA FORMA JURÍDICA

Enoque Feitosa 1

1. Ética, direito e práxis social

Para se chegar à conquista de uma moral realmente


humana, subtraída de todo antagonismo de classe
teremos, antes, que alcançar um tipo de sociedade na qual
não tenha somente sido abolido o antagonismo de classes,
mas que também esse antagonismo tenha sido afastado
das práticas da vida. (ENGELS. Anti-Duhring. 1877).

Foi o sentido fundamental da citação que abre o presente artigo o que


veio a ser resgatado pela tradição que interpretou e defendeu um trato marxista
aos negócios concernentes à ação humana, tanto no âmbito do enquadramento
do problema teórico da moral quanto pelo seu aspecto prático.
Ou seja, ao enfatizar, por um lado, que tanto o direito quanto a moral
são formas de práticas sociais, na medida em que é a própria dialética dessas
relações que engendra e transforma as concepções morais e jurídicas2 quanto,
por outro, na própria preocupação em aclarar conceitualmente tais práticas
enquanto (também) categorias filosóficas3 .
Como se chamou atenção, desde o resumo, pensar no problema das
opções morais e jurídicas, isto é, das escolhas do agir, pelo foco da prática
não pode significar o entendimento do marxismo como uma variante de
pragmatismo, visto que esse termo (a prática) aqui é referido como atividade

1 Doutor em Direito pela UFPE e em Filosofia; Professor dos Programas de Pós-Graduação


em Direito e em Filosofia da UFPB, membro do PROCAD UFPB-UFPE-UFAL.
2 BESSE, Guy. Práctica social y teoria. México: Grijalbo, 1969, p. 31.
3 BARATA-MOURA, José. Prática: Para uma aclaração do seu sentido como categoria
filosófica. Lisboa: Colibri, 1994, p. 25-26, 91, 92, 94. VIEIRA, Antonio Rufino. Marxismo e
libertação. João Pessoa: UFPB, 2000, p. 101.

25
reflexiva e não meramente reiterativa, o que a confundiria com uma forma de
poiesis, daí resultando em ser, como a enxerga Marx e os marxistas, referida
como práxis.
Para os gregos, práxis era ação livre e, consequentemente, nobre. Nela,
o homem não transforma a natureza, mas unicamente a si mesmo. Já a poiesis
era típica dos servos, ligada ao esforço físico e à produção de objetos exteriores.
Mas, ao considerar o trabalho constitutivo do ser humano e ao denunciar a
alienação, Marx não apenas inverte a prioridade como funda teoricamente a
necessidade de também a produção objetiva ser reflexiva e se libertar de suas
amarras. Nesse aspecto, ele promove uma revolução na filosofia ao alterar o
status que, desde os gregos, se atribuía a poiesis.
O novo trato que deram ao problema se expressa não apenas pela
argumentação desenvolvida, que desce a moral “do céu para a terra”, como
também por uma operação de inversão - pelo que aparece, ainda que não
explicitada, a oposição contra todas as formas de idealismo - no sentido
de tratar de forma material as questões concernentes à ética, aqui também
concorrendo para a superação da dialética hegeliana que, conforme o célebre
topos argumentativo, de cabeça para cima ou, mais exatamente, recolocada
sobre seus pés4 .
É na concepção marxista sobre o direito e a moral - nem sempre
explícitas5 , mas quando abordada, vista como expressão prática da ação
humana - que serão focadas as formulações desenvolvidas por essa corrente
de pensamento. E essa abordagem visa demonstrar que os desenvolvimentos
teóricos e as reflexões acerca das questões ligadas à moralidade, especialmente
nos textos pós-1845, do que se convencionou chamar de Marx “maduro”6 ,
deram-se norteados por um ceticismo esclarecido ou ceticismo metódico em
relação às crenças majoritariamente estabelecidas de que valores morais eram
dados prévios e encontráveis pela razão.
4 ENGELS, Friedrich. Ludwig Fuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. [1886] In :Marx e
Engels. v. 1. São Paulo: Edições Sociais, 1987, p. 104.
5 “Não há, em Marx, propriamente, uma moral, no sentido do estabelecimento de princípios
normativos para a ação”. OLIVEIRA, Manfredo. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1997, p. 285.
6 A divisão da produção de Marx em duas fases – obras de juventude e da maturidade – será
aqui usada tão só para fins metodológicos. Ver: ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979, p. 22-30.

26
Não custa salientar que, para Marx, a produção das ideias e
representações da consciência está, antes de tudo, diretamente ligada à
atividade material dos seres humanos. Dessa forma, as representações (nela
inclusa as representações acerca da moral, da religião, do direito etc.., como se
verá adiante), o pensamento e o intercâmbio intelectual dos homens surgem
como emanação de seu comportamento material.
E o mesmo acontece com a elaboração intelectual quando esta manifesta
na linguagem das leis, da política, da moral, da religião, metafísica etc.., de um
povo. São os homens que produzem suas representações, suas ideias, mas esses
homens reais tais como condicionados por um dado desenvolvimento das
forcas produtivas e das relações que lhes correspondem, incluindo as formas
mais amplas que estas possam vir a tomar7 .
Essa cautela metódica quanto a entender o caráter das representações
ideais da vida material é compreensível numa pessoa que elegeu como sua
máxima predileta a famosa sentença de Terêncio: duvidar de tudo8 , embora
afastasse - como notou West - o ceticismo epistemológico ou outras formas de
agnosticismo e niilismo9 .
Com esse foco se opta em seguir, desde já, uma direção oposta à
maioria das análises correntes acerca da obra de Marx e por um afastamento
de uma atitude rigidamente determinista10 .
Nas formulações de Adam Smith um dos teóricos mais citados
dentre os clássicos da economia política que se debruçaram acerca do
funcionamento da sociedade capitalista, as questões morais não são produtos
da razão, sendo, portanto, vãs as tentativas de compreendê-las racionalmente,
visto só serem inteligíveis pela ótica dos sentimentos11 . Com essa visão da
7 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 93-94.
8 Esta máxima - que, num questionário respondido para suas filhas, Marx assume como a
sua predileta - foi cunhada por Publius Terentius (+185 a.C. – 159 a.C.), dramaturgo e poeta
romano, sendo atribuída, incorretamente, ao pensador Alemão.
9 WEST, Cornel. The ethical dimensions of marxist thought. New York: Monthly Review
Press, 1992, p. xxi-xxii.
10 Esse ponto de vista aqui defendido, da inexistência de um determinismo rígido em Marx é
compartilhado por: MOURA, Mauro Castelo Branco de. Marx e o ceticismo. In: Ensaios sobre o
ceticismo. Plínio Junqueira Smith e Waldomiro Silva Filho (orgs.). São Paulo: Alameda, 2007, p. 173-194.
11 Na “Teoria dos sentimentos morais”, de Adam Smith, a escolha moral é justificada por
preferências puramente intuitivas. SMITH, Adam. Teoria de los sentimientos Morales.

27
moral, aquilo que seria um aspecto fundamental no exame desse elemento
específico da sociabilidade, isto é, os mecanismos de alienação e de exploração,
muitos dos quais justificados exatamente pelas mesmas teorias morais e seus
correspondentes jurídicos, eram claramente ocultados em sua inversão (ou,
mais provavelmente, não percebidos pelo fato de que não se pode apartar a
compreensão do real de uma forma científica, dos interesses de classe que tal
compreensão envolve).
E a inversão mencionada acontece porque, em tais formações, isto é,
na sociedade burguesa, como vista na formulação desenvolvida pelos teóricos
fundadores do chamado socialismo científico, o passado domina o presente na
medida em que nelas o capital, como numa hipóstase, adquire independência
e individualidade. Assim, o que ocorre é que, por esse processo de inversão,
as pessoas são dependentes e destituídas de qualquer individualidade, e
cuja gênese apontou-se magistralmente no “Manifesto Comunista”. Nesse
texto, eles explicitam a antítese, apontando que, ao contrário da vivência
burguesa, numa sociedade sem classes, o presente é quem domina o passado,
opostamente ao mundo cindido, onde o capital é independente como se fosse
uma individualidade12 .
É evidente que, apesar da afirmação de Smith de que valores morais não
são compreensíveis pela razão e sim pelos sentimentos, não se pode atribuir a
essa formulação a pecha de “irracional”. Ela tem, como qualquer teoria, uma
racionalidade, no caso, a razão do mercado, o que se evidencia por sua mais
famosa obra e que é uma consequência de sua teoria moral (por pretender
explicar o funcionamento da economia através de uma concepção moral, ao
invés de Marx, que explica as ideias pela vida social).
Na “Riqueza das nações”, Smith nos permite perceber (ainda que não
fosse esse seu objetivo) que uma teoria econômica resultante de uma concepção
moral não seria, só por isso, mais comprometida como o ser humano, ao
contrário, ela serve para justificar a vida social pelo viés do frio interesse. Ali,

Mexico: FCE, 2004, p. 115-116. Tal afirmação não nos deve levar a uma associação dessa teoria
com o que veio a se constituir no “emotivismo”, visto ser esta uma teoria meta-ética que aborda
a linguagem moral e que se opõe às éticas normativas.
12 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.Manifesto of the Communist Party.In: Great Books of
the Western World. London: Encyclopaedia Britannica, 1978, p. 426.

28
ele lembra que não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do dono
da padaria que podemos esperar o nosso jantar, mas das suas preocupações
com os próprios interesses. E completa: “dirigimo-nos, portanto, não aos seus
espíritos humanísticos, mas aos seus interesses pessoais, jamais lhes falamos
de nossas necessidades, mas das vantagens que eles auferirão”13 .
A questão é, portanto, situar o ponto de partida da análise marxista da
chamada vida espiritual da sociedade, aqui incluso a experiência moral e como
se dá a concretização de uma parte dela na chamada “forma jurídica”.
Isso porque, no âmbito da filosofia, falar do caráter “ético” do direito
tornou-se um topos extremamente eficaz. Depois do decreto do “fim da
história”, das “grandes narrativas” e da “globalização”, descobriu-se que a
“ética” virou um tema da moda, levando à paradoxos tais como se decretar que
alguém não é ético, em ampla degeneração de toda uma construção filosófica,
histórica e social em torno do termo.
Tal visão contaminou o direito (que em algum momento se pretendeu
substitutivo das demandas sociais) e da mesma forma que se propagou a “ética
na política” - sem mesmo se explicitar de a sua abordagem é de caráter formal
ou material- passou-se a falar em ética como se fosse sinônimo do bem.
Por uma via ou outra de compreensão – isto é, como sinônimo de
“correção, do bom, do certo e do justo” - tal termo é algo deslocado no âmbito
jurídico, que se guia por razão instrumental / estratégica e cuja eficácia se
mede pelos resultados e não pelos métodos (desde – óbvio - que eles não firam
ao ordenamento no qual o conflito é subsumido).
O dilema dos moralistas que pretendem reformar não apenas as práticas
dos que operam no âmbito jurídico, mas o próprio caráter retórico-estratégico
do direito tem as mesmas bases daquele que conflitava a mentalidade moralista
com a da crua economia política, conforme Marx assinalara nos “Manuscritos
de 1844”.
É o que se verá a seguir, quando se discute os elementos da abordagem
marxista da moral, com suas consequências no compêndio de ilusões que
formam as crenças quanto ao caráter supostamente justo do direito.
13 SMITH, Adam. A riqueza das nações: Investigação sobre sua natureza e suas causas. São
Paulo: Nova Cultural, 1985, volume I, p. 50.

29
2. A abordagem marxista da moral e do direito

Portanto, o ponto de partida para o exame que se faz consiste em


conceber a abordagem do marxismo, priorizando o seu aspecto de filosofia da
práxis, isto é, filosofia da ação humana, ética e política, mas vista como uma
perspectiva classista.
Diga-se, ainda, que se deva ter cautela com a amplitude do termo
“marxismo”, problemático na medida em que os próprios fundadores dessa
corrente em mais de uma ocasião cuidaram de lembrar, com algum sarcasmo
(mas também para evitar o autoelogio e o cabotinismo típicos de um
jacobinismo vulgar), que “não eram marxistas”14 e que guardavam cautela
tanto com as deformações de sua elaboração devido a uma leitura vulgar de
sua teoria, notadamente no campo das relações entre fenômenos estruturais e
seus desdobramentos no campo da vida espiritual.
Acentue-se que, para Marx, a convergência rígida entre aparência e
essência tornaria, por um lado, a ciência, enquanto atividade explicativa /
compreensiva do mundo, desprovida de qualquer papel15 e, por outro lado,
desnecessário qualquer esforço na busca de transformações sociais visto que,
se inevitáveis, dispensariam qualquer ação humana.
Como tal mudança não ocorre deterministicamente, o projeto de
transformação do mundo (explicitado na 11ª tese sobre Feuerbach) impõe,
enquanto necessidade radical, a reflexão acerca dos pressupostos filosóficos em
que se assentam o tratamento dos problemas de escolha moral no pensamento
de Marx e na produção filosófica de alguns dos seus comentadores.
Diga-se desde logo que aqui se entende “necessidades radicais”
enquanto aquelas que encarnam deveres coletivos que, por sua natureza,
transcendem o capitalismo e, mesmo geradas em seu interior, não podem
ser satisfeitas em tal regime social. Neste sentido, entendemos de situar uma
moralidade verdadeiramente humana como necessidade radical16 e, do mesmo

14 Carta de Marx a Engels em 11 de novembro de 1882; também o mesmo comentário


numa carta de Engels dirigida a Paul Lafargue em 27 de agosto de 1890. Disponível em <www.
marxists.org/letters>. Acesso: 26/08/2005.
15 MARX, Karl. O Capital. Livro III, 2º Tomo. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 271.
16 HELLER, Agnes. Teoría de las necesidades em Marx. Barcelona: Península, 1986, p. 87, 102.

30
modo é necessidade radical de uma sociedade verdadeiramente humana, a
superação de suas esferas parciais, notadamente aquelas que se expressam pela
ilusão jurídica.
Tal forma de refletir acerca do problema da escolha moral e de suas
determinações no que concerne a forma jurídica, vista de uma maneira
mais ampla, rompe o cerco da crítica que considera o pensamento de Marx
uma forma de determinismo vulgar, esquema teórico que corta e simplifica
a realidade e que só teria validade para explicar as sociedades pretéritas,
e que hoje – no que se convencionou chamar, de forma vaga e acrítica, de
pós-modernidade, conceituação que também se critica enquanto forma de
enquadramento da realidade social – não seria dotado de nenhum interesse, a
não ser meramente histórico17 .
Assim, muitos dos que criticam tal visão dita reducionista, do
marxismo, acusam-no de dominado pela ideia de uma causalidade restrita ao
invés de trabalhar com o conceito de possibilidade18 . Do mesmo modo, e no
mesmo âmbito dessa crítica, o pensamento de Marx seria nada mais que uma
visão de mundo movida por um determinismo tacanho e inapto a perceber
questões subjetivas, o que servia tão só para abrir caminho e justificar uma
concepção total da sociedade e de seus fenômenos19 .
A limitação de tais críticas é que a ideia de causalidade, nas formulações
de Marx, não era estrita e muito menos mecânica, mas plena de uma série de
pressupostos e condicionamentos. Como chamou atenção Engels, numa carta
enviada a Bloch, a produção das ideias e valores (incluindo aqui a moral, a
consciência jurídica) não pode ser tomado como reflexo mecânico da base
econômica, pois como deixa claro uma visão materialista da história, o

17 No fundamental, ainda que - pela época em que foi escrita sua tese de doutorado - não
fosse possível para Kamenka contextualizar e categorizar o que se chama “pós-modernidade”,
o seu diagnóstico da filosofia de Marx vai na mesma direção exposta no parágrafo supra. Ver:
KAMENKA, Eugene. Los fundamentos eticos del marxismo. Buenos Aires: Paidos, 1969, p.
29s. O ponto de vista de Kamenka, construído a partir dos referenciais da filosofia analítica, é
examinado em: WILDE, Lawrence. Marxism’s ethical thinkers. New York: Palgrave, 1988, p. 7-11.
18 BOBBIO, Norberto. Qual socialismo?.In: O Marxismo e o Estado. Rio de Janeiro: Graal,
1979, p. 233-251.
19 Como exemplo mais característico dessa interpretação temos POPPER, Karl. A sociedade
aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 88-95 e p. 124-140, ambas as citações
no 2º volume.

31
elemento determinante final na história se situa na produção e na reprodução
da vida real.
Por isso ele afirma, em complemento: “se alguém deforma isso
dizendo que o elemento econômico é o único determinante, transforma aquela
proposição numa frase abstrata e sem sentido”20 .
Para ele, a situação econômica é a base, mas os vários elementos da
superestrutura – formas políticas da luta de classes, formas jurídicas e até
os reflexos de todas essas lutas na consciência dos participantes exercem
influência sobre o curso das lutas históricas e em muitos casos preponderam,
determinando-lhes a forma.
Ora, visto dessa forma, a tese marxista pela qual a existência social dos
humanos determina, em última instância, sua consciência é válida, mas não num
sentido mecanicamente determinista. O que o marxismo não postula é que a ética
caracterizadora de uma sociedade baseada num modo de produção excludente da
maioria seja transformada unicamente pelo esforço moral de indivíduos, ainda que
bem intencionados e no restrito âmbito de suas relações pessoais21 .
O argumento, geralmente utilizado, de que as ideias de Marx só
seriam dotadas de valor histórico não apenas embute certo preconceito, como
significa um fechamento às possibilidades e contribuições que o conjunto
de tal formulação pode dar às ciências humanas em geral e ao pensamento
filosófico em particular. Tal argumento, além de algo simplificado, pode
ser tomado como cientificamente questionável, visto que – especialmente
nas humanidades – o pensamento sempre progrediu ao levar em conta os
acúmulos anteriores, independente do espaço cronológico que nos separa de
tal ou qual formulação.
E ainda que os atos concernentes a tais escolhas resultem de opções
políticas e de uma visão de mundo que já é - ela mesma - uma escolha, a
aplicabilidade de tais formulações ao campo específico da filosofia e, ainda
mais da filosofia moral, torna-se questão de monta na medida em que se
constituem também em formas de justificar o direito e a ação política.

20 ENGELS, Friedrich. Carta a Joseph Bloch, em 22 de setembro de 1890. Disponível em


<http://www.marxists.org/espanol/marx-engels/cartas/e.htm>. Acesso em 23/12/2008.
21 ASH, William. Marxismo e moral. Rio de Janeiro: Zahar, 1965, p. 138.

32
O afastamento de um moralismo rígido pode ser compreendido na
medida em que, se olhado em sua origem, os fundadores de tal corrente de
pensamento já lembravam que no âmbito de uma atividade verdadeiramente
científica e na compreensão do funcionamento da sociedade, bem como os
meios necessários à sua transformação, deve o cientista se abster de usar termos
rigidamente dogmáticos como os de verdade e erro22 . Esses conceitos, como
se sabe, aplicam-se em campos restritos da atividade humana, visto que não
podem ser tratados como antíteses estáticas e sim como limites determinados
no interior dos quais os fenômenos enquanto tais, e em sua concretude, se
manifestam. Dito de outra forma trata-se de analisar filosoficamente os
fenômenos sociais, fazendo-o sob o foco da relação entre moralidade e práxis
individual e/ou social, discutindo-se qual o papel e o caráter da filosofia
marxista, seu conteúdo e papel nas sociedades contemporâneas.
O marxismo é, de fato, e isto já se encontra claramente demarcado
neste trabalho, uma filosofia voltada para a prática, mas aqui trata de fixá-
lo como percepção da filosofia não como atividade contemplativa, mas
caminhando da abstração para a realidade, ou seja, para solucionar e enfrentar
os problemas centrais do agir do indivíduo perante o mundo da vida. E é a
partir do marxismo, entendido como uma filosofia posicionada socialmente
e comprometida com a transformação do estado de coisas existente, que fica
claro o fim prático que a filosofia deve ter23 .
O materialismo dialético, como filosofia do comunismo, se põe
exatamente como teoria dialética da realidade e também se coloca contra
qualquer interpretação contemplativa da filosofia. Sua principal característica
é a de se reivindicar como uma filosofia da ação humana. Quando se localiza
o marxismo a partir deste viés, não se quer dizer com isso que apenas esta

22 ENGELS, Friedrich. Anti-Duhring. [1877-1878].Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 75-77.


23 Alguns comentadores, embora apontando autores que prefiguram o que viria a ser uma
“filosofia da práxis”, reconhecem que sua verdadeira descoberta se dá com Marx. Por todos,
ver: MAGALHÃES, Fernando. A linguagem da transformação: Maquiavel, Marx e a poesia
do futuro. Recife: [sem indicação], [sem data]. Mas note-se que o termo tem sua primeira
referência não em Marx e sim um jovem hegeliano, August von Ciezskowski, discípulo de
Michelet, ortodoxo hegeliano. Para ele a práxis era a síntese de pensamento e ação. Ver, sobre
Ciezskowski: MACLELLAN, David. Marx y los jovenes hegelianos. Barcelona: Martinez Roca,
1969, p. 23; SCHAFF, Adam. O marxismo e o indivíduo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1967, p. 77.

33
corrente teve isoladamente esta inquietação epistemológica e social. Apenas
vislumbra-se nela um maior grau de coesão de foco nela em detrimento de
pensadores, que apesar de toda contribuição dada, estavam mais preocupados
com a filosofia em seu elemento contemplativo, se assim se pode dizer, num
momento histórico do desenvolvimento da filosofia, como se verá na terceira
e última parte deste artigo.

3. Moralidade implícita e a negação de valores em si, prévios e


superiores na forma jurídica

Assim, e munido de uma visão histórica da moral, da ética e do direito,


Marx intentou o enfrentamento de problemas concernentes ao agir humano
tanto em textos da juventude como em sua fase madura, embora quanto mais
longe de seu amadurecimento intelectual mais esses textos se aproximam das
concepções que viria a criticar na maturidade que se podem colocar sobre a
rubrica de um idealismo filosófico. Para alguns, só nos escritos de juventude
de Marx se explícita uma crença na ética e que a moralidade pode se valer
de regras efetivas para transformar mundo, sendo sua teoria da revolução de
então, fundada sobre uma teoria ética24 .
Desses textos de juventude, dedicaram-se, Marx e Engels, a esse
empreendimento, de forma mais concentrada, entre outros escritos, na Critica
da Filosofia do Direito de Hegel; nos Manuscritos econômico-filosóficos, no
Manifesto Comunista, em passagens de O Capital, na Miséria da Filosofia,
Sagrada família e Ideologia Alemã. Engels aborda-as mais especificamente no
“Anti-Duhring” (1877-1878) e no “Sobre a autoridade” (1873), dentre outros.
A concepção marxista acerca de tal questão começou a delinear-se já
em textos de juventude, tais como a “Carta ao pai”, escrita em 1837 – e que, junto
com outros textos da fase até 1845, foi objeto de nossa dissertação de mestrado,
versando sobre o direito no jovem Marx. Mas, o conjunto da formulação de
ambos só atingiu plenitude numa das obras de transição entre o que se chama
jovem Marx e o Marx maduro, a supracitada “Ideologia Alemã”, escrita em
parceria com Engels, em 1845, e a partir da qual não apenas uma visão do

24 KAIN, Philip J. Marx and ethics. Oxford University Press: New York, 1991, p. 12.

34
caráter parcial da moralidade classista se consolida, mas fundamentalmente
se estabelece uma concepção própria e original de se interpretar a ação
humana, exatamente porque se propõe como condição prévia não se limitar
à interpretação25 .
Note-se, no entanto, em Marx, uma crítica explícita, veemente e
radical da moral vigente, isto é, da moral positiva, constituindo-se numa
negação dialética da moral posta e enquanto forma de conduta descrita
e examinada na condição de um dado prévio, o que não significa como
resultante em prescrição de um sistema moral alternativo à moralidade
burguesa26. O que não quer dizer que eles não percebessem um dado comum
à vida social, percebido com extrema clareza por Gramsci: não pode existir
associação humana que se pretenda permanente e com capacidade de
desenvolvimento que não se sustente em determinados princípios éticos27.
A questão que diferencia um tipo de sociedade de outra é exatamente quais
são esses princípios.
Por isso, as indicações, ainda que esparsas e não sistemáticas, da
realização de um reino da liberdade não é senão uma consequência ética
de sua análise econômica, sendo a nova sociedade em que reina a liberdade
comunista compreendida como forma ética de ultrapassagem da opressão28 .
Por outro lado - e isso permite distinguir as críticas de Marx feitas ao
padrão moral positivo, daquelas observações que ele faz e que constitui uma ética
normativa - há que se diferenciarem numa sociedade duas moralidades: uma,
comum e difusa, resultante do sistema econômico e de relações historicamente
existentes e outra na forma de incipiente ética superior e que é projeção de um

25 MARX, Karl. Teses contra Feuerbach [1845]. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 49-53,
XI Tese.
26 “A ideia de uma vocação moral do proletariado, a ideia de que a luta do proletariado se
identifica à luta pela libertação plena do ser humano, é solidamente enraizada no pensamento
marxista”. Ver: GORZ, André. La morale de l’histoire. Paris: Éditions du seuil, 1997, p. 147. Já
para outros autores, “a rejeição dos marxistas à moralidade começa com o próprio Marx”. Ver:
WOOD, Allen. Marx against morality.In: A companion to ethics. (Edited by: Peter Singer).
Massachusetts: Blackwell, 1991, p. 511.
27 GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere. (volume secondo, q. 6-II: 1930-1933). Torino:
Einaudi, 2007, p. 750.
28 É esse o sentido que VIEIRA aponta na leitura de Marx por Dussel. Ver: VIEIRA, Antonio
Rufino. Marxismo e libertação. João Pessoa: UFPB, 2000, p. 102 e 104.

35
mundo em gestação nas entranhas da própria sociedade atual e que poderá vir
a ser, a depender dos esforços individuais e coletivos, o sistema que poderá vir
a se instaurar como nova moralidade de um agrupamento dado29 .
Veja-se que, por isso mesmo, que em Marx a moral é relativa dado sua
intersecção com a história e a consciência de classe (óbvio que aqui se refere
a uma consciência para si), o que não o impede de, ainda que com uma base
científica, adentrar em considerações, no fundo, morais, acerca dos fenômenos
da sociedade de classes, por exemplo, quando afirma que, do ponto de vista de
uma sociedade superior, a propriedade privada da terra é tão absurda quanto
a propriedade privada de um ser humano por outro. Para ele, as pessoas são
“apenas possuidoras, usufrutuárias da terra e, como bons pais de família,
devem legá-la, melhorada, às gerações posteriores”30 .
O que Marx não se preocupa é com a síntese, com a negação da negação,
isto é, com a formulação de um sistema ou de como a moral deveria ser, o que
implicaria numa moral normativa ou moral de segunda ordem, entendida esta
como um discurso prescritivo sobre uma moral a ser constituída.
Por isso a crítica mais recorrente ao marxismo – embora, chame
atenção que tal crítica, em geral, não se estende a Marx – situa-se acerca de
um reducionismo explicativo e interpretativo do mundo, de um determinismo
finalista pelo qual seu ponto de chegada já estaria contido no próprio início da
formulação.
Situar Marx em tal perspectiva – de um pensamento fundamentalmente
descritivo e interpretativo e não uma filosofia ingenuamente prescritiva – pode
levar a uma recepção contemporânea de tal pensador, no sentido muito mais
do aproveitamento desse campo teórico no estudo dos problemas de nosso
tempo.
Os problemas da relação entre escolha moral e o caráter científico da
teoria podem ser vistos em Marx sob um duplo aspecto:
Em primeiro lugar deve-se assinalar que a questão da moralidade, em
Marx, situa-se no campo da crítica ao caráter parcial da moral burguesa e não
da crítica a toda e qualquer moral, o que seria um contrassenso, se se percebe
29 PENATI, Eugenio. L’etica e il marxismo. Firenze: la Nuova Italia, 1948, p. 160.
30 MARX, Karl. O capital. (Livro III, 2º volume). São Paulo: Abril, 1983, p. 239.

36
que o apelo pela transformação do mundo tem também forte teor ético. Desse
viés ético é exemplo o trato da mediação feita pelo dinheiro, entre a necessidade
e objeto. Para Marx, o dinheiro é o proxeneta entre as necessidades humanas e
os meios de subsistência31 .
Por isso, se neste trabalho comparece a tese pela qual há, no continente
teórico fundado por Marx, uma ampla teoria descritiva do movimento de
realização do capital, também nela comparece, ainda que em nível menor,
não sistematizada e nem sempre explicitada, um conjunto de prescrições
acerca de como as pessoas e o mundo devem ser, isto é, asserções de caráter
prescritivo.
No ponto de vista que aqui se defende, é plenamente possível advogar
uma visão unitária da primeira questão, isto é, da descrição do real, por se
tratar, em Marx, de ciência e por essa comportar a exclusão das teorias erradas
e sua substituição por outra, mais coerente com os fatos que pretende explicar
e uma pluralidade de prescrições, pois aqui se trata de escolhas com base em
valores, ou seja, de como sistemas morais os mais diversos podem ser propostos
a depender da perspectiva social na qual cada indivíduo se coloca.
A questão então é perceber que essa diferenciação de visão acerca
do problema da distinção entre descrição do real e como o ser humano deve
agir diante dele, ocorre por algum fator e a hipótese desta tese aponta para a
questão da chamada consciência de classe acerca dos problemas, o que não
exclui, em não sendo determinista, a questão das escolhas, fator que Marx
nunca subestimou, embora não fosse centro de seus estudos32 .
Em segundo lugar, suas formulações, especialmente as que – mesmo
de forma indireta – dizem respeito aos problemas do agir, chocam-se tanto
com as visões idealistas quanto com aquelas tendentes a eliminara hipótese
de que a moralidade tem uma inserção na consciência de cada grupo social,
dado que para estas concepções (de teor também idealista) a moral e o direito
seriam resultantes da evolução geral do espírito humano e não fenômenos
socialmente constituídos. Ressalve-se que, no tocante às visões idealistas, a
31 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. In: FROMM, Erich. Conceito marxista
do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 145.
32 Veja-se, por exemplo, sua constante preocupação com o papel e funções da ideologia,
notadamente na Ideologia Alemã e em A sagrada família.

37
moral e o direito são dados prévios e fora da história, algo que uma teoria
materialista do direito e da moral devem rejeitar, na medida em que relações
sociais (bem como a moral e o direito estruturados por tais relações) não
podem ser compreendidas por si mesmas.
A postura aqui defendida interdita uma análise superficial que
enquadre a concepção de Marx tanto como uma rendição a um sensualismo/
empirismo estreito bem como se afasta de uma atitude idealista que coloca em
última instância a moral como um dado prévio a qualquer fator social. Por
isso não se trata de uma contradição lógica se ter um Marx advogando que
as relações sociais – e, por consequência, a própria moralidade – evoluem e
transformam-se, e esse mesmo pensador, ao mesmo tempo, advogar o caráter
científico de sua teoria que, ao ver dessa tese, também pode oferecer um
modelo explicativo para a própria escolha moral, a partir da consciência de
classe, dado que, se somos parte de um mundo objetivo, isto também significa
que agimos objetivamente ou, nos termos do próprio Marx:
o ser que é objetivo age objetivamente, e não agiria
objetivamente se o objetivo não fosse parte da natureza
mesma de seu ser. Ele cria e estabelece objetos porque é
estabelecido pelos mesmos – porque no fundo é natureza.
No ato de estabelecer este ser objetivo não desce de uma
“atividade pura” para a criação do objeto. Ao contrário,
seu produto objetivo é apenas a confirmação de sua
atividade objetiva33 .

O ser humano se expressa, conforme sua natureza social, no esforço -


que é também social - de produção das condições de reprodução da vida. Se ele
produz socialmente, mas não se apropria do mesmo modo é porque ainda não
descobriu, em todos os terrenos, inclusive no que concerne ao âmbito moral,
que outra forma de sociabilidade é possível.
Isso gera um conflito entre as diversas formas de justificação do
existente (políticas, morais, jurídicas) e as escolhas (políticas, morais, jurídicas)
em favor de outra forma de vivência que, em tendo se tornado classe para si,
e não apenas classe em si, torna-se possível pelo fato de que, para Marx, o

33 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 126-127.

38
desenvolvimento das contradições de uma forma de produção histórica é a
única via que conduz, ao mesmo tempo, à sua dissolução e à estruturação de
uma nova configuração34 .
Assim, ainda que não sistemática e não explícita, a sua concepção de
moral, ética e direito era concreta e afastada de qualquer idealismo. E por isso
sua recusa a fundar sua visão de mundo numa concepção de moral como fez
Smith, que partiu de uma teoria moral para constituir uma explicação da vida
econômica. Sua opção está em explicar a moral pela infraestrutura, na medida
em que os sistemas morais resultam de relações sociais fundadas em interesses
concretos, boa parte dos quais têm expressão econômica em negócios e
relações mercantis.
Note-se que em Marx esses interesses são tratados como fenômenos
concretos na medida em que eles não constituem uma categoria filosófico-
social de caráter geral (o que reduziria o marxismo a uma variante do
utilitarismo), além do que, como observa Agnes Heller, a generalização
filosófica do primado do interesse nada mais do que refletir o ponto de vista
espiritual da sociedade capitalista35 .
O problema, conforme ele mesmo aponta, é que as mercadorias não
têm vida autônoma e não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocarem.
Sendo assim, lembra que nosso olhar deve se voltar para os seus possuidores: as
mercadorias são coisas, e para que se refiram umas às outras é preciso que seus
proprietários se relacionem entre si como pessoas e, portanto, reconheçam-se
reciprocamente como proprietários privados36 . E isto se dá porque a ética, cuja
matéria central é o valor e a escolha, não é susceptível dos mesmos métodos de
confirmação científica de outros ramos científicos.
A afirmação do caráter de classe da moral e do direito não pode ser
refutada como uma fixação dos marxistas é demarcar tudo com o selo da luta
de classes. Pensadores que não podem ser acusados sequer de afinidade com o
campo de reflexão fundado por Marx ou mesmo outros que já não se colocam

34 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. [1867]. São Paulo: Abril Cultural,
1983. Volume I, Livro 1°, Tomo 2, p. 90.
35 HELLER, Agnes. Teoría de las necesidades en Marx. Barcelona: Península, 1986, p. 66.
36 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. [1867]. São Paulo: Abril Cultural,
1983. Volume I, Livro 1°, Tomo 2, p. 79.

39
como marxistas, chegam, por outros caminhos, a conclusões semelhantes.
E, neste final do trabalho, nos limitaremos a dois: Nietzsche, ao tratar do
problema em uma de suas obras, discorre duramente acerca da pretensão em
se abordar uma “história natural do bem e do mal”. Ele chama atenção para
o fato de que aquilo que os filósofos entendem como fundamento da moral
nada mais era que uma forma da moral dominante. Em outras palavras,
os filósofos, desejando estabelecer os fundamentos da moral, acabam por
tratá-la como algo dado e previamente determinado. Como ele criticou com
extrema precisão: nas chamadas ciências morais faltam os próprios problemas
morais37 . O outro, Habermas, alerta que a ética obtém seu conhecimento
num diverso enquadramento metodológico não nos cabendo encobrir que as
racionalizações acerca da mesma servem, muitas vezes, para mascarar com
pretextos legitimadores os motivos reais de nossas ações38.
Como Marx (e os marxistas, em geral) sempre criticaram
veementemente os sistemas morais que ignoravam (ou procuravam justificar)
as divisões de classe na sociedade, os movimentos e ativistas que incorporaram
esse projeto de transformação radical da sociedade foram frequentemente
acusados, como notou um estudioso do problema, de não terem princípios
éticos39 . Ocorre que quando ele e Engels afirmam que os comunistas não
pregam nenhuma moral e nem impõem mandamentos morais do tipo ‘amai-
vos uns aos outros’ ou não centram sua atividade em apregoar que as pessoas
não devem ser egoístas é porque tinham claro que “em certas condições,
egoísmo ou abnegação são tão somente formas pessoais e necessárias à luta
pela sobrevivência”40 .
Com tal crítica não se está, parece óbvio, criticando toda e qualquer forma
de moralidade e sim sua forma hipócrita, visto que não se trata de julgar pessoas
por agirem da forma a qual estão socialmente condicionadas e sim de criticar e
superar as condições mesmas que as fazem agir de um e não de outro modo.

37 NIETZSCHE, Friedrich W. Para além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do


futuro (Tradução: Marcio Pugliesi). São Paulo: Hemus: 2001, p. 98-99.
38 HABERMAS, Jurgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa: Edições 70, 1997, p.
138-140; HABERMAS, Jurgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p.
344-345.
39 ASH, William. Marxismo e moral. Rio de Janeiro: Zahar, 1965, p. 159.
40 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 241-242.

40
Por não ser uma escatologia em que o fim já esteja pré-fixado, a
concepção fundada por Marx, ainda que seja uma interpretação científica do
real, depende da ação humana (portanto, de escolhas de como agir), pois, como
ele mesmo adverte, examinando a experiência de humanização, da mesma
forma que o selvagem, o ser humano socializado também deve lutar com a
natureza para que obtenha satisfação de suas necessidades, para que mantenha
e reproduza a própria vida, em todas as formações sociais e em todos os modos
de produção.
Com o seu desenvolvimento, esse reino das necessidades se expande
em consequência de seus desejos, mas, ao mesmo tempo, as forças produtivas
que satisfazem a esses desejos também se desenvolvem. A liberdade, nesse
âmbito, só pode consistir do homem socializado, dos produtores associados
regulando racionalmente seu intercâmbio com a natureza.
Isso se dá, prossegue Marx, com o desgaste mínimo de energia e sob
condições mais favoráveis e dignas de sua natureza humana. Mas tal reino continua,
apesar disso, um reino da necessidade. Além dele começa o desenvolvimento
da energia humana que em si um fim, o verdadeiro reino da liberdade que, no
entanto, só pode florescer tendo por base esse reino da necessidade41 .
Esse quadro de produção e reprodução de valores a partir de uma
referência social e de forma imanente poderia instaurar um relativismo moral
pelo qual qualquer moralidade - mesmo a mais antissocial - estaria justificada?
Desde já antecipamos que nosso entendimento é pela negativa da questão. A
moral relativista - assim entendida como a concepção pela qual toda atitude,
qualquer que seja, é válida, pelo que nada tem em comum com a posição que
defende que a moral é relativa historicamente, ou seja, que cada sociedade
constrói sua moral - já foi apropriada pela cultura burguesa onde se instaurou
o vale-tudo.
E é disso que se trata quando se examina o contexto contemporâneo e
o relativismo moral dele resultante e se há uma aptidão, descritiva e prescritiva,
do continente teórico fundado por Marx, para responder aos problemas éticos
enquanto reflexos do estranhamento produzido pela separação do produtor
do produto de sua criação.
41 MARX, Karl. O capital. São Paulo: Abril, 1983, Livro III, 2º volume, p. 273.

41
Por isso é que a tradição marxista adotou uma atitude de reserva em
relação ao trato idealizado tanto da moralidade quanto do direito, em razão do
caráter centralmente instrumental – e não como valor fundante – de ambos.
E, embora focando seus esforços no desnudamento do caráter de classe (e
– também – por essa razão, instrumental) do direito, bem como mantendo
reserva nos projetos de uma moral universal, construída por cima e por fora
dos antagonismos sociais, a concepção marxista, ainda que de forma nem
sempre explícita, não tem posição rigidamente de princípio contra toda e
qualquer moral.
O que a formulação dos fundadores dessa corrente sempre chamou
atenção é que a abstração da moral conduziria a modelos de fusão, por exemplo,
entre as concepções materialistas e históricas da moral com éticas de matriz
não materialista (a de Kant, por exemplo) que tendem a substituir a luta aberta
pela transformação da sociedade pela crença segundo a qual a emancipação
seria alcançada pela via da reforma moral e de imperativos éticos pelos quais o
que deve ser necessariamente seria/será.
Tal modelo de um imperativo ético em favor do socialismo nubla a
questão que a teoria de Marx é uma práxis de transformação em torno de
sujeitos coletivos os quais, ainda que movidas por escolhas de contra quem e
a favor de quem pugnar (portanto, em um dado aspecto, escolhas morais) o
fazem em razão do lugar que ocupam na luta social.

42
AS BASES DO REALISMO JURÍDICO
NORTE-AMERICANO NO PRAGMATISMO FILOSÓFICO

Lorena Freitas1

1. DOS FUNDAMENTOS DO REALISMO JURÍDICO NORTE-AMERICANO


EM SUAS ARTICULAÇÕES COM A FILOSOFIA PRAGMÁTICA: a rejeição
aos dualismos como característica do pragmatismo se expressando na
rejeição realista ao legalismo e ao decisionismo

Para tratar do realismo jurídico norte-americano e do pragmatismo,


um primeiro corte epistemológico se faz necessário que diz respeito à própria
filosofia pragmática. A pretensão de discutir o campo de aplicação dessa filosofia
no direito padeceria de incompletude se antes não se percebesse o movimento
maior e que lhe dá sustentáculo, qual seja, o pragmatismo filosófico.
Não é aqui o propósito estudar os meandros linguísticos em que a
pragmática se desenvolve, mas tão-somente o campo da Filosofia e da Filosofia
do Direito.
Esta vertente da filosofia prática2 , dado que sua principal característica

1 Professora Adjunta II UFPB; Professora Permanente e Coordenadora da Área de Direitos


Humanos do Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas – UFPB.
2 O termo entrou em uso por ocasião do debate recente, resultante da recepção do neo-
aristotelismo, acerca das teorias éticas e políticas designa a retomada de intuições da filosofia
prática aristotélica, recorrendo-se ao saber prático tal como Aristóteles o definiu em relação
ao seu objeto. A reabilitação da filosofia prática se desenvolve sob a influência de textos como
Verdade método (Gadamer) e Vita activa (Arendt), cada um a seu modo, estes contribuíram
para a redescoberta da concepção aristotélica de saber prático, desembocando na década de 70
passada com a discussão da atualidade dos problemas da racionalidade prática e seu aspecto
mais significativo é a reabilitação da inteligência prática (ou fronesis). Fora toda referência a
Aristóteles é possível encontrar na história dos sistemas de saber a permanência constante de
um saber chamado filosofia prática – ainda que não compareça tal divisão explícita - dividida
em ética, economia e política, distinta da filosofia puramente teorética, metafísica por exemplo.
Cf. VOLPI, Franco. Filosofia prática. In: Monique Canto-sperber (org.). Dicionário de ética e
filosofia moral. São Leopoldo: Unisinos, v. 1, 2003, p. 642-648.
Ainda sobre esta racionalidade prática, outro possível desdobramento desta tese é explorando o
referencial habermasiano ao debater que num ambiente ideal, as decisões poderiam ser tomadas
num contexto de racionalidade discursiva. HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre
facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, vol. 1, passim.

43
é a de “se reivindicar como uma filosofia da ação”3 , tem caráter genuinamente
estadunidense, deitando suas raízes na própria história dos EUA4 .
Filosoficamente o pragmatismo constitui um dos alicerces culturais
da nova mentalidade americana pós-guerra civil, é natural, portanto que
tenha exercido igualmente papel relevante na reformulação do sistema
jurídico, particularmente no que concerne ao chamado realismo jurídico
norte-americano.5 Desenvolveu-se, pois, a partir de alguns ensaios clássicos,
de autoria de Charles Sanders Peirce, de William James, de John Dewey
e de Oliver Wendell Holmes Jr.6 , juiz da suprema corte norte-americana,
precursor do realismo jurídico e representante do pragmatismo no ambiente
forense.
O pragmatismo é fundamentalmente uma teoria do conhecimento que
visa a dar uma resposta à pergunta “Como se dá o conhecimento?” 7.
Pode-se dizer que Cardozo inspirou-se numa pergunta semelhante,
questionando como se dá o conhecimento jurídico nos tribunais tomando
conhecimento não no sentido de ciência estritamente, mas como aquisição do
saber/ conhecimento/ experiência acerca do que é direito.

3 FEITOSA. Enoque. Direito e Humanismo nas Obras de Marx no período de 1839-


1845. Dissertação de Mestrado. Recife: UFPE, 2004, p. 154. Neste sentido pode-se arguir uma
aproximação entre pragmatismo e marxismo na medida em que ambas têm como preocupação
central se voltar à prática, bastas lembrar a 11ª tese: “Os filósofos têm apenas interpretado o
mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”, cf. MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. Teses sobre Feuerbach (11ª tese). In: A ideologia alemã. São Paulo: Centauro, 2005,
p. 124.
4 Aléxis de Tocqueville já advertia que, o estudo da política se inicia com uma investigação
das condições sociais de cada nação, que esta é o produto de um fato e que se nós quisermos nos
tornar familiarizados com a legislação e os hábitos de uma nação devemos começar pelo estudo
de suas condições sociais. Cf. TOCQUEVILLE, Aléxis de. Democracy in América. New York:
Mentos books, 1960, p. 49; JASMIN, Marcelo Gantus. História e retórica política. In: Alexis de
Tocqueville: A historiografia como ciência da política. 2.ed. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro:
UFMG/ IUPERJ, 2005, p. 243 ss.
5 REGO, George Browne. Considerações em torno do pragmatismo e da filosofia jurídico-
pragmática de Oliver Wendell Holmes Jr. In: Anuário dos cursos de pós-graduação e direito
da UFPE. N. 17. Recife: EdUFPE, 2007, p. 63.
6 REGO, George Browne. Considerações em torno do pragmatismo e da filosofia jurídico-
pragmática de Oliver Wendell Holmes Jr. In: Anuário dos cursos de pós-graduação e direito
da UFPE. N. 17. Recife: EdUFPE, 2007, p. 41 ss.
7 SHOOK, John. Os pioneiros do pragmatismo americano. Rio de Janeiro: DPeA, 2002, p. 11.

44
O texto que inaugura e inspira o movimento intitula-se Como tornar
claras as nossas ideias, escrito por Peirce em 1878. No artigo tem-se a máxima
de que “a ação do pensamento é exercida pela irritação da dúvida, e que cessa
quando se atinge a crença; de modo que a produção da crença é a única função
do pensamento” 8. Aduz ainda que:

a função global do pensamento consiste em produzir


hábitos de ação [...]. Então chegamos ao que é tangível e
concebivelmente prático como sendo a raiz de qualquer
distinção real do pensamento [...] e não há distinção de
significado por mais fina que seja que não consista numa
possível diferença da prática9 .

Assim, o significado de um conceito está nas suas consequências


práticas, nas possibilidades de ação que ele define, do que podemos concluir
que a clareza de uma ideia reside na sua utilidade.
James acabou trazendo polêmica quando em Thewill to believe propõe
um ensaio sobre a justificação da fé. Na verdade o problema surgido não foi
exatamente ao fazer esta justificativa, mas a forma que ela tomou, que em
síntese apertada pode ser simplificada na ideia de que é melhor acreditar em
deus frente às danosas consequências práticas de uma descrença se por acaso
deus existir.10
Desta forma James acaba por promover uma alusão do pragmatismo
ao utilitarismo, associação esta que rigorosamente não corresponde à essência
do método pragmático, mas que, todavia, não deixa de ser-lhe elemento
característico.

8 “The action of thought is excited by the irriation of doubt, and ceases when belief is attained;
so that the production of belief is the sole function of thought”. PEIRCE, Charles Sanders.How
to make our ideas clear.Disponível em <http://www.peirce.org/writings/p119.html>.Acesso
em 17/5/05, p. 3 de 12.
9 “the function of thought is to produce habits of action [...]. Thus, we come down to what
is tangible and conceivably practical, as the root of every real distinction of thought [...] and
there is no distinction of meaning so fine as to consist in anything but a possible difference of
practice”. PEIRCE, Charles Sanders.How to make our ideas clear.Disponível em <http://www.
peirce.org/writings/p119.html>.Acesso em 17/5/05, p. 5 de 12.
10 JAMES, William. A vontade de crer. São Paulo: Loyola, 2001, p. 49-50.

45
O pragmatismo no direito teve sua primeira representação com Oliver
Wendell Holmes Jr. e é dele o mais famoso aforismo jurídico norte-americano,
que nos dá conta de que o direito não é lógica, é experiência.11
Por pragmatismo jurídico delimita-se a expressão da perspectiva
compartilhada por Oliver Holmes, Roscoe Pound e Benjamin Cardozo,
principalmente, de que a lei não seria um processo de deduções de decisões
corretas dos princípios jurídicos estabelecidos, mas, antes, um contínuo
processo ou adaptação experimental de tomada de decisão em determinados
casos, numa tentativa de chegar a soluções que sejam corretas apenas no
sentido de que realmente funcionaram no contexto social em que agiram.12
Evidencia-se aí uma crítica implícita ao programa da Exegese e ao
formalismo jurídico então predominante, que viam, fundamentalmente,
o processo de formação da decisão como mera operação silogística na qual
uma relação puramente reflexiva entre norma abstrata e caso concreto é quem
produziria, dedutivamente, a decisão.
Contextualmente, o pragmatismo jurídico é uma escola da teoria
do direito que nasceu nos EUA no início do século XX tendo por principal
característica o esforço de aplicar a tradição filosófica do pragmatismo ao
problema da interpretação jurídica.
13

No âmbito do direito o pragmatismo fez suas primeiras incursões


por meio daquilo que ficou conhecido como o realismo jurídico do próprio
Holmes, além dos demais citados, Roscoe Pound e Benjamin Cardozo. O
termo realismo jurídico é utilizado para descrever a teoria e a prática desses
juristas devido à resistência que demonstraram ao formalismo excessivo da
tradição jurídica americana.
Para os pioneiros do juspragmatismo norte-americano as instituições
jurídicas deviam ser realistas quanto às necessidades sociais que têm por objetivo
saciar, só assim as decisões jurídicas estariam mais próximas da comunidade.

11 “The life of the law hás not been logic: it hás been experience”. Cf. HOLMES, Oliver
Wendell.The path of law and the common law.New York: Kaplan, 2009, p. 31; LATORRE,
Angel. Introdução ao Direito. Coimbra: Almedina, 1979, p. 175.
12 LLOYD, Denis. A ideia da lei. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 267.
13 EISENBERG, José. Pragmatismo jurídico. In: Dicionáriode filosofia do direito. Vicente
de Paulo Barretto (org). São Leopoldo/ Rio de janeiro: Unisinos / Renovar, 2006, p. 656-657.

46
Ainda que não seja preocupação deste estudo, mas resta citar que
contemporaneamente, o pragmatismo jurídico é representado por Richard
Posner, Thomas Grey, Daniel Farber e Martha Monow, que procuram fazer
uma atualização do realismo jurídico nos seus primórdios.
Posner argumenta que o eixo comum do juspragmatismo são três
elementos complementares; a) desconfiança dos instrumentos metafísicos
de justificação ética, b) a insistência de que a verdade de uma proposição
deve ser testada por suas consequências, e c) a insistência que projetos
políticos, éticos e jurídicos sejam avaliados e julgados por sua conformidade
com as necessidades humanas e sociais e não por critérios ditos objetivos e
impessoais.

14

Com base no dito, ser pragmatista ao analisar o direito significa


considerar que as teorias se tornam impraticáveis quando o seu grau de
abstração é excessivo.
Assim, o realismo jurídico seria um movimento doutrinário de cunho
anti-metafísico que se desenvolveu nos EUA e países escandinavos e situa-se
na linha de concepções que rechaçam a jurisprudência mecanicista da escola
da Exegese e se caracteriza por um ceticismo frente às normas e conceitos
jurídicos.
Esse ceticismo é uma forma de reação contra a atitude de um legalismo
normativista. Assim o realismo não se limitou apenas em dizer que as normas
jurídicas não são dotadas de virtudes prévias assinaladas pelo formalismo
jurídico. E quanto à sua a atitude anti-metafísica, acima mencionada, tal
postura o leva, segundo alguns autores, a buscar constituir uma ciência
empírica do direito voltada a descrever a realidade jurídica.15
Acerca desta concepção sobre a pretensão científica do realismo,
se assim se puder considerar, é – em certa medida – contrária à tese aqui

14 POSNER, Richard A. Cardozo: A study in reputation. Chicago and London: The University
of Chicago, 1990, passim; FERREIRA, Fernando Galvão de A. Realismo jurídico. In: Dicionário
de filosofia do direito. Vicente de Paulo Barretto (org). São Leopoldo/ Rio de janeiro: Unisinos
/ Renovar, 2006, p. 700.
15 FERREIRA, Fernando Galvão. Realismo Jurídico. In: BARRETO, Vicente (coord.).
Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo/ Rio de Janeiro: Unisinos/ Renovar, 2006, p.
701-702.

47
defendida. Defende-se neste trabalho que, ainda que o ceticismo seja uma
característica fundamental do realismo, este cariz não significa, todavia, que o
realismo se pretenda como uma escola ou teoria!
Neste mesmo sentido, Karl Llewellyn em resposta a carta para Roscoe
Pound é direito e objetivo ao dizer que não há uma escola realista, mas um
movimento.16
Em razão desta consideração exposta é que o entendimento nesta tese
é que o realismo jurídico revela-se como uma metodologia do direito, e esta
percepção é signatária do entendimento assente no pragmatismo filosófico
que se propõe como um caminho para assentar disputas metafísicas.17 E é
neste sentido - de ser uma metodologia - que se pode compreender a pretensão
científica
do realismo.
Enfim, o pragmatismo jurídico, na medida em que herda do
pragmatismo filosófico uma rejeição aos dualismos, rechaça igualmente o
puro decisionismo como o outro extremo do legalismo.
Enquanto o legalismo exegeta enfatiza o legislador e desprivilegia
o julgador que seria apenas a boca da lei, é correto perceber que o realismo
acentua o papel judicante. Todavia, é exagero assemelhar o realismo ao
decisionismo, pois este último sim é quem concebe o direito como fruto
exclusivo da arbitrariedade do julgador, ao passo que para o realismo o direito
é fruto não da arbitrariedade, mas da discricionariedade do julgador.

16 “There is no school of realists. There is, however, a moviment in thought and work about
law. The movement, the method of attack, is wider than the number of its adherents…”
LLEWELLYN, Karl. Some realism about realism: Responding to Dean Pound. In: FISHER,
William; HORWITZ, Morton; REED, Thomas. American legal realism.New York: Oxford
University, p. 1993, p. 72.
17 Ainda que autores como Cornelis de Waal, na esteira do próprio James tragam a menção
à método, isto é, não utilizem a expressão metodologia, mas sim método para identificar o
pragmatismo. Todavia, de acordo com as noções de método, metodologia e metódica
detalhadas por João Maurício, a tese considerou mais adequada a terminologia metodologia
que significaria um caminho ou meta-linguagem que se perfaz a partir da linguagem-objeto
(ou método). Sobre os três níveis retóricos e distinções entre metódica, metodologia e método,
ver: ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional: Sobre tolerâcia, direitos humanos
e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 6, 35-39, 142; Sobre
a conepção de pragmatismo como método, destaca-se o tópico, dentro do capítulo 1: “Método,
não teoria”, onde argumenta que o pragmatismo é um método para fazer filosofia e não uma
teoria filosófica. Cf. WAAL, Cornelis de. Sobre pragmatismo. São Paulo: Loyola, 2007, p. 22 ss.

48
Assim, o realismo concebe que direito é o que o juiz diz que é direito,
mas não faz de forma irracional e sim a partir da moldura normativa, - esta é
uma das teses específicas aqui defendida - que no caso do realismo é enfatizado
com o apego ao precedente (vale ressaltar que o realismo jurídico se referencia
no sistema do common law).
É comum se confundir as teorias realistas com o decisionismo na medida
em que a versão americana do movimento enfatizou o elemento psicológico, ou
seja, a influência dos elementos subconscientes na construção da decisão.
O decisionismo vai se diferenciar do realismo18 , pois para este último
não é qualquer decisão que vale, esta concepção caracteriza o primeiro e daí
deriva sua irracionalidade.
A perspectiva hermenêutica dos decisionistas é oriunda dos Estados
totalitários, v.g. leia-se Nazismo, em que o Estado ao estabelecer o direito não
poderia admitir oposição e nenhum indivíduo dentro dele teria autonomia. A
fonte de todo direito não é o comando enquanto comando, mas a autoridade
ou soberania de uma decisão final que vem tomada junto com o comando.
A ênfase concedida ao problema da decisão em Carl Schmitt na filosofia
política fez com que o seu pensamento viesse a ser indissociado da ideia de
decisionismo.19
O realismo entende o direito como aquilo que decidem juízes e tribunais,
tendo em vista suas crenças, ideologias, idiossincrasias etc.. Fundamental é
perceber, todavia, que eles decidem em um determinado contexto e tal é aquilo
que pode ser justificado normativamente, portanto, o realismo se subsume na
ideia de moldura, logo, eu posso decidir o que quiser, desde que justifique
normativamente.
A questão aqui é - e o realismo jurídico norte-americano coloca bem isso
- como as decisões são tomadas! Para os realistas decide-se e depois se justifica.

18 ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional: Sobre tolerância, direitos


humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 144, 151.
19 MACEDO JR., Ronaldo Porto. Carl Schmitt. In: Dicionário de filosofia do direito. Vicente
de Paulo Barretto (org). São Leopoldo/ Rio de janeiro: Unisinos / Renovar, 2006, pp. 755-757;
Sobre a filosofia política de Schmitt ver também: ADEODATO, João Maurício. A retórica
constitucional: Sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito
positivo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 113-114.

49
Para os normativistas - como herdeiros mais próximos da tradição
positivista, decide-se por meio do leque de opções dadas a partir da moldura
normativa (e, neste mesmo sentido, os realistas diriam: “eu justifico pelo leque
de opções da moldura”).
A distinção é apenas quanto à forma de justificação e os caminhos de
chegar à decisão.
Eis que, pois, a confusão entre realismo e decisionismo se desfaz quando
vemos que o elemento psicologista no realismo é forma de chamar a atenção
para a natureza do processo judicial como sendo “uma infusão”20 na qual se
agrega ao precedente (elemento normativo) outros elementos inarticulados, até
inconscientes, valores que Benjamin Nathan Cardozo identifica como sendo a
natureza do processo judicial, daí a razão do título de sua principal obra.
Talvez a melhor forma de considerar a relação entre decisionismo e
realismo seja tomar aquele como uma “sub-escola” do realismo, como se tenta
ilustrar:

Realismo jurídico

Norte-americano Escandinavo Decisionismo

Ressalte-se que as distinções entre realismo norte-americano e


escandinavo, trabalhadas suoerficialmente no último tópico deste capítulo,
visto não ser objeto central deste. Por ora, cumpre ressaltar e pormenorizar as
características do realismo jurídico norte-americano.
Esta principal corrente no realismo jurídico é a que tem origem nos
EUA, na década de 1920 e teve como expoentes Karl Llewellyn, Benjamin
Nathan Cardozo e Jerome Frank, ambos influenciados por John Gray e por
Oliver Wendell Holmes Jr., concebem direito como aquilo que é aplicado nos
tribunais. A realidade jurídica assim se fundaria na conduta efetiva dos juízes,
sendo decisivo o estudo de como agem, independentemente do que declaram.
20 Termo caro ao pensamento de Cardozo: “Some principle, however unavowed and
inarticulate and subconscious, has regulated the infusion”. CARDOZO, Benjamin Nathan. The
nature of judicial process. New York: Dover, 2005, p. 7.

50
O realismo jurídico americano foi influenciado por duas correntes
doutrinárias: jurisprudência analítica e a jurisprudência sociológica – esta
segunda principalmente desenvolvida por Roscoe Pound.
A influência da jurisprudência analítica é considerada por alguns
autores como decisiva para um certo renascimento do pragmatismo nos
EUA21.
Quando se reflete no que, durante vários decênios,
foi a audiência de um William James ou de um John
Dewey, fica-se espantado com o recuo que as suas ideias
conheceram logo depois da Segunda Guerra Mundial.
As circunstâncias são, no entanto, relativamente claras.
Cronologicamente, o recuo do pragmatismo acompanhou
a ascensão do pensamento analítico no mundo anglo-
saxônico, a crescente influência que então exerceram as
ideias de Frege, Moore, Russell e Wittgenstein e mais
particularmente o desenvolvimento do empirismo lógico
originário do Círculo de Viena. 22

A influência da filosofia analítica sobremaneira marca os anos 50 e 60,


período que viu “o empirismo lógico oriundo do Círculo de Viena guindar-se
a uma posição filosófica e academicamente dominante”23 , assim o empirismo
lógico constituirá nos EUA o componente principal do movimento analítico
em filosofia.
O fator decisivo que promove o resgate do pragmatismo pelas mãos da
filosofia analítica é identificado com “o espírito de abertura e de discussão que
presidiu às relações que o pragmatismo e o empirismo lógico primeiramente
estabeleceram foi um dos eclipses fundamentais das ideias pragmatistas”24 .
Carnap conta em autobiografia que o clima intelectual americano lhe
parecera muito mais favorável a concepções científicas como as do Círculo
21 Tese defendida por Frederic Kellogg especialmente no curso proferido no PPGD/ FDR/
UFPE, organizado pela autora juntamente com os professores Enoque Feitosa e George Browne.
KELLOGG, Frederic. Oliver Wendell Holmes Jr.: Legal theory and judicial restraint. Reading
for lecture.N.3. chapters 1-3. S.n.: Mimeo, 2008, p. 30 ss.
22 COMETTI, J. P. Filosofia sem privilégios. Coimbra: ASA, 1994, p. 9.
23 COMETTI, J. P. Filosofia sem privilégios. Coimbra: ASA, 1994, p. 61.
24 Idem, p. 61-62.

51
e nas suas palavras o pragmatismo não representava uma opção filosófica
fundamentalmente estranha às ideias daquele25.
Esta impressão encontra uma confirmação histórica no intercâmbio
que teve lugar entre filósofos que como Morris pertenciam ao movimento
pragmatista e os principais representantes do positivismo lógico.
Sobre tais relações entre filosofia analítica e realismo jurídico e em que
a primeira teria contribuído para o “ressurgir” do segundo, pode-se considerar
que a filosofia analítica contribui para a crítica da metafísica (e da filosofia
em geral) ao afirmar, Wittgenstein à frente, que a maioria dos problemas
filosóficos são “falsos problemas”, que seriam resolvidos pela compreensão do
caráter convencional da linguagem, de suas vaguezas e ambiguidades.
Note-se que tal crítica cabe à filosofia do direito como um todo, visto
que boa parte dos problemas dela - dualismo ser x dever-ser, caráter prévio da
essência do direito etc., são mal entendidos linguísticos, na medida em que se
considera que estas discussões não querem dizer nada.
O realismo jurídico “corre por fora” disso, ao considerar que o modo
como decidem juízes e tribunais não é um problema de direito - mesmo que o
direito não o reconheça ou não compartilhe desta visão realista - mas um dado
de fato: é assim que os juízes agem influenciados por elementos subconscientes.
E na mesma esteira de Cardozo que acertou, ao afirmar que isso
independe deles terem autorização26 , esta tese não pretende provar quais
elementos subconscientes são estes – esta é uma prova impossível!27 e não é
pretensão desta tese.
Daí que há uma aproximação maior entre realismo jurídico e
jurisprudência sociológica, pois ela trata essas questões como dados de fato e
os analisa sociologicamente e não em termos de filosofia jurídica.
O emprego do termo realista significa a recusa da teoria oficial do
commonlaw segundo a qual o juiz não cria direito e sim aplica regras pré-
25 Idem, p. 62.
26 “I am not concerned to inquire whether judges ought to be allowed to brew such a
compound at all. I take judge-made-law as one of the existing realities of life”. CARDOZO,
Benjamin Nathan. The nature of judicial process. New York: Dover, 2005, p. 6.
27 Como destacou prof. Torquato Castro em arguição oral no exame de qualificação desta
tese, ocorrida em 13 out. 2009, PPGD/UFPE.

52
estabelecidas. Este ceticismo dos realistas em relação às normas também evolui
para um ceticismo quanto aos fatos.
Em relação às questões de fato (tanto quanto à prova e sua
qualificação) a forma como são tratados na sentença podem não coincidir
com o que aconteceu, implicando que a escolha da norma jurídica assume
uma característica de justificação a posteriori, ou seja, “da conclusão tomada
com fundamento na íntima convicção do magistrado. Daí que para o realismo
americano a certeza do direito só existiria plenamente se os juízes fossem seres
estereotipados”.28

2. A CONCEPÇÃO PRAGMÁTICA DE EFEITOS PRÁTICOS COMO UMA


CATEGORIA ÚTIL PARA A COMPREENSÃO DO DIREITO

Tendo por objetivo fundamentar a tese de que o realismo americano


é expressão do pragmatismo, e como tal, é antes um método que uma pura
corrente teórica. Desta forma, foge dos extremos que na teoria hermenêutica
pode ser representado pelo legalismo exegético por um lado e pelas teorias
decisionistas por outro.
Assim sendo, antes de discutir o pragmatismo no direito, é de bom
alvitre discorrer sobre as bases desta corrente filosófica cujo eixo central é a
ênfase na utilidade prática da filosofia. As considerações iniciais aqui abordadas
cumprem o objetivo de mostrar em linhas gerais o aspecto em comum no
pensamento de Peirce, James e Dewey no tocante às consequências práticas
dos conceitos, para então localizarmos o juspragmatismo de Cardozo.
A intensa influência destes e de outros pensadores não poderia ser
desconsiderada se temos como objetivo trabalhar a concepção pragmática de
efeitos práticos como uma categoria útil para a compreensão das normas jurídicas.
Após esta análise prospectiva procurara-se então dar conta de uma das
vicissitudes do pragmatismo frente a um dos problemas chaves do direito e da
teoria do conhecimento: a interpretação dos fatos. É exatamente na discussão
da hermenêutica jurídica que o trabalho tem como pressuposto investigar

28 FERREIRA, Fernando Galvão. Realismo Jurídico. In: BARRETO, Vicente (coord.). Dicionário
de filosofia do direito. São Leopoldo/ Rio de Janeiro: Unisinos/ Renovar, 2006, p. 700-702.

53
como a interpretação judicial desenvolvida na construção da sentença ou na
natureza do processo judicial, nas palavras de Cardozo, expressa o raciocínio
abdutivo de Peirce por introduzir ideias novas.
O objetivo é, pois, fundamentar a tese de que as ideias do realismo
jurídico são um desenvolvimento da filosofia pragmática aplicadas ao direito,
apesar da teoria tradicional desconhecer este raciocínio abdutivo e apenas
conceber a dedução como operação lógica de subsunção da norma ao caso.
Analisar a lógica da decisão judicial é perceber dois principais
momentos: o contexto da descoberta e o da justificação. Este segundo é o
exercício formal da dedução, pois a ratio decidendi parte de uma premissa
geral (a norma) até a premissa particular (o caso), assim, a conclusão é um
silogismo apresentado na sentença. Entretanto, a interpretação se desenvolve
mesclada com elementos subconscientes – nas ideias de Cardozo – e se realiza
no contexto da descoberta, momento em que se estudam fatos e se cria uma
teoria para explicá-los. A dedução é momento a posteriori para cumprir
requisito dogmático fundamental da inegabilidade dos pontos de partida29 .
Com o artigo Como tornar claras nossas ideias, Peirce formulou o
pragmatismo pelo qual não pretendia propriamente fazer filosofia, metafísica
ou uma teoria da verdade, mas discutir como os conceitos são poucos claros,
com o que podemos situar sua problemática no campo do método, no caso um
método de como assentar disputas metafísicas.30
Assim criticava como muitos termos usados pelo discurso filosófico
são imprecisos. Dizia que nossas ideias se apresentam obscuras, herméticas
ao entendimento, logo era preciso traduzi-las em fatos empíricos para que se
tornassem claras.31
E só assim se poderia saber se elas são verdadeiras ou falsas, já que
há ideias claras, mas falsas. Com isto vemos que o princípio do pragmatismo
estabelece uma precisão lógica, não a verdade.32

29 ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: Para uma teoria da dogmática jurídica.
2.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 175.
30 JAMES, William. Pragmatism. Philosofical classics. New York: Dover, 2005, p. 18.
31 BROWNE, George. O pragmatismo de Charles Sanders Peirce: conceitos e distinções. In:
Anuário do curso de pós-graduação em direito. Nº13, Recife: UFPE, 2003, p. 237.
32 Idem, p. 237.

54
Em decorrência, para os pragmatistas deveria haver ligação entre
pensamento e ação, conceber o que seja uma coisa equivaleria a conceber
como funciona ou pra que se serve.
Esta preocupação teórica fez com que buscassem um método para
aproximar a filosofia do rigor dos procedimentos científicos, tal método foi o
pragmatismo. A significação proposta pelo pragmatismo se liga intrinsecamente
a uma contextualização da ideia com determinada situação prática. Nas
palavras de Peirce o significado de uma ideia consiste nas suas consequências
práticas, logo, saber o que um termo significa equivale a determinar isto.33
Nesse âmbito, o pragmatismo critica a lógica e a ciência moderna
ao dizer que necessitam de uma plataforma diferente. Diz que o espírito do
cartesianismo falha porque não podemos começar a buscar o conhecimento
com a dúvida completa, pois os preconceitos não podem ser banidos por uma
máxima.34 Neste ponto temos uma ligação, por analogia, com a discussão de
Cardozo, pois, não negar os preconceitos estaria para Peirce como o não negar
da interferência de elementos subconscientes na decisão está para Cardozo.
Enquanto Charles Peirce tratava o conhecimento como um
procedimento lógico-instrumental, William James estava preocupado com o
voluntarismo, isto é, com a finalidade dessas ações. Acreditava que todas as
realidades influenciavam nossa prática e que essa influência é na verdade o
significado que lhe damos.35
James ratifica em suas conferências uma postura crítica ao propor
a filosofia prática – o pragmatismo - como método de assentar disputas
metafísicas que, de outro modo, estender-se-iam interminavelmente, como
já citamos mais acima36. Ele relata como é espantoso ver quantas destas não
dão em nada no momento em que a submetemos ao simples teste de traçar

33 PEIRCE, Charles Sanders.How to make our ideas clear.Disponível em <http://www.


peirce.org/writings/p119.html>. Acesso em 17/5/05, p. 5 de 12.
34 Complementa ainda nesse sentido que “não podemos duvidar em filosofia daquilo que
não duvidamos em nossos corações”. Cf. PEIRCE, Charles Sanders. Algumas consequências
das quatro incapacidades. Col. Pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1980, p. 71.
35 JAMES, William. What pragmatism means. In: Pragmatism. Philosofical classics. New
York: Dover, 2005, p. 19.
36 JAMES, William. What pragmatism means. In: Pragmatism. Philosofical classics. New
York: Dover, 2005, p. 18.

55
uma consequência concreta.37 Este é um dos pontos de concordância entre o
pensamento de James e de Peirce.38
O idealismo está em crer e manter ilusões referenciais quanto ao
direito quando constrói definições conteudistas como, por exemplo, definir
direito em torno do ideal de justiça, encobrindo por outro lado que direito é
expressão de força para manutenção de uma situação ou simplesmente é além
de controle-disciplina, também poder-dominação.
Cardozo, ao expor como o juiz deve proceder diz que:
[...] deve pôr na balança todos os seus ingredientes: sua
filosofia, sua lógica, suas analogias, sua história, seus
costumes, seu senso de direito e tudo o mais; e, ajuntando um
pouco aqui e tirando um pouco ali, o mais sabiamente que
puder, determinará o peso que há de equilibrar a balança39 .

Esta defesa por uma atuação/criação e interferência na decisão


representa o principal cariz da postura realista – logo, oposta àquela idealista
- quanto ao direito. É realista porque, antes de tudo, declara a existência de
elementos subconscientes, nas palavras de Cardozo.
Por fim, Dewey40 também vê esse caráter instrumental dos conceitos,
numa passagem diz que quando o “conceito” de uma máquina, seu significado
ou essência gera dedutivamente planos para uma nova máquina, sua “essência
é frutífera porque foi primeiramente planejada para um propósito”, o sucesso
ou não nas consequências desejadas só significa que ela tem um curso e
consequências próprios41 .
37 JAMES, William. What pragmatism means. In: Pragmatism. Philosofical classics. New
York: Dover, 2005, p. 19.
38 BROWNE, George. William James e outra vertente do pragmatismo: o
psicologismofenomenológico. In: Anuário dos cursos de pós-graduação em direito. Nº 13,
Recife: UFPE, 2003, p. 212.
39 CARDOZO, Benjamin Nathan.The nature of judicial process.New York: Dover, 2005, p. 158.
40 O que queremos, contudo, ressaltar em Dewey, é o início de uma reflexão pragmática sobre o
direito. My Philosophy of Law, publicada em 1941, é um sumário de suas opiniões sobre o direito.
Se causa estranhamento ele, um educador, nutrindo interesse pela psicologia assim como James,
e ainda discorrendo sobre o direito, resta explicado quando vemos lendo sua biografia vemos
curiosidades sobre sua inteligência extraordinária , como o fato de escrever prodigiosamente,
cerca de cinco mil palavras por dia, mas que não revisava e se não gostasse do resultado desistia
de tudo pra recomeçar do zero. Muito de seus escritos foram perdidos assim. Cf. MORRIS,
Clarence (org.). Os grandes filósofos do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 504.
41 DEWEY, John. Experiência e natureza. Col.Os Pensadores, São Paulo: Abril cultural, 1974, p. 208.

56
Cardozo juntamente com Oliver Holmes e Roscoe Pound, desenvolvem
o pragmatismo por um viés jurídico, apesar de muitos autores não admitirem
tal denominação ou preferirem chamá-los de realistas jurídicos sem sequer
mencionar o pragmatismo.
Estudar uma possível postura pragmática tanto no âmbito de suas
preocupações acadêmicas, quanto na atividade de jurista, como marca de seu
trabalho, é um dos objetivos específicos e que se justifica porque o mesmo se
via não como teórico ou amante da perfeição, mas como homem prático.42
Cardozo, além de ter substituído Oliver Holmes43 na Suprema Corte, também
deu prosseguimento ao pensamento deste. Com isso nos referimos às discussões
teóricas sobre o direito chamando atenção para uma perspectiva realista sobre
o jurídico quando atentam para que os juristas percebam a “necessidade de se
alhearem dos tradicionais exercícios conceituais e de se meterem dentro das
exigências e realidades da vida”44 . E já em Holmes tem-se uma discussão sobre
ideologia na magistratura45 , mesmo que ele não a expressasse nesses termos
exatos, quando diz que:
a vida do direito não tem sido lógica, mas sim
experiência. As necessidades sentidas na época, a moral
e as teorias políticas predominantes, as intenções da
política pública confessadas ou inconscientes, e até os
preconceitos que os juízes compartilham com os seus
concidadãos têm tido muito mais influência do que o

42 BOECHAT, Leda. Notícia bibliográfica. In: CARDOZO, Benjamin. A natureza do processo


judicial e A evolução dodireito. Trad. Lêda Boechat. 3.ed. Porto Alegre: AJURIS, 1978, p. 39.
43 O juiz Cardozo substituiu Holmes - seu ídolo judicial - na Corte Suprema dos Estados
Unidos em 1932. Cf. MORRIS, Clarence (org.). Os grandes filósofos do direito. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 523. Ainda sobre o lugar de Holmes ter sido física e espiritualmente
tomado por Cardozo, ver: BOECHAT, Leda. Notícia bibliográfica. In: CARDOZO, Benjamin. A
natureza do processo judicial e A evolução dodireito. Trad. Lêda Boechat. 3.ed. Porto Alegre:
AJURIS, 1978, p.38.
44 HOLMES, Oliver Wendell. The common law.Boston: Little Brown, 1881, p. 1; LATORRE,
Angel. Introdução ao Direito. Coimbra: Livraria Almedina, 1978, p. 189.
45 FREITAS, Lorena. Além da toga: uma pesquisa empírica sobre ideologia e direito.
Recife: Bagaço, 2009, p. 91. Sobre ideologia dos juízes, Gramsci alude a esta categoria como
a aristocracia togada ao dizer que todas as classes formam seus intelectuais orgânicos e que
estas várias categorias de intelectuais tradicionais se consideram autônomas e independentes do
grupo social dominante. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura.5.ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasiliense, 1985, p. 6.

57
silogismo ao determinar as regras pelas quais os homens
devem ser governados46.

A lição de Holmes, de que o direito é, sobretudo, experiência e


não lógica pura, guarda a essência do método sociológico. O pensamento
compartilhado aí era no sentido de que o elemento político-social deve
interferir na interpretação da lei, com vistas à satisfação do interesse público e
dos superiores interesses da coletividade.
Aqui já se entende uma postura crente quanto aos fatores externos
interferindo no processo de julgamento, pois defende que em nome de alguns
interesses – o público – o elemento político-social resta como a evidência de
uma inexistente neutralidade.
Cardozo vai mais além na discussão de aspectos externos que
interferem na decisão judicial. Nas conferências ele expõe o direito como um
fenômeno social, intimamente relacionado a todos os outros aspectos da vida
humana, não podendo o juiz, por conseguinte, ficar alheio às contribuições
das outras ciências sociais.
Tal preocupação de cunho psicológico presente nestes teóricos citados
vai caracterizar apenas o realismo na sua versão americana. Para dirimir
eventuais dúvidas, especificando o objeto da tese, segue-se agora uma análise
distintiva destas duas manifestações do realismo.

3. DISTINÇÕES ENTRE REALISMO AMERICANO E O REALISMO


ESCANDINAVO

Este tópico interessa à discussão da tese por se fazer imprescindível


diferenciar dentre os tipos de realismo, qual é objeto de estudo aqui.
A tese, ao defender que o realismo é forma de expressão do
pragmatismo no direito, propõe o realismo jurídico americano como uma
postura metodológica, um método assim como o pragmatismo o é. Dessa
forma, transcende-se aqui a percepção pura e simples que vê o realismo como
uma corrente jusfilosófica.

46 HOLMES, Oliver Wendell. The common law.Boston: Little Brown, 1881, p. 2.

58
Ademais, afastam-se as confusões referenciais quanto às denominações
ou mesmo as inclusões dos pensamentos dos realistas americanos em outros
movimentos distintos, como identificá-los como iniciadores do Critical legal
studies.
Para os realistas, o direito é fato social. Pode-se de antemão trazer
este ponto como o elemento central do qual partilham as inúmeras teorias
que poderíamos assim denominar de realistas – citando-se, pois, Eugen
Ehrlich, Alf Ross, Olivecrona, Holmes – ainda que guardem divergências
substanciais.
Mas, ainda ressaltando esta visão comum, genericamente para estes
autores, não é possível estudar o direito como mero ordenamento jurídico
composto de normas coordenadas e em relação de hierarquia umas com as
outras; ou seja, eles não admitem uma especulação puramente dogmática
acerca das normas jurídicas. Consideram, sim, que tais normas na verdade
não subsistem e sequer são possíveis sem a realidade de que efetivamente
resultam.
É comum identificar os teóricos do realismo americano com a
jurisprudência sociológica de Roscoe Pound. Nos dicionários jurídicos
especializados tal confusão tem sede própria.
Faz-se questão de citar, ipisis literis, algumas passagens em que se vê
uma identificação não linear entre continente e conteúdo para pensar nos
desenvolvimentos das escolas, sobretudo, como por ora se destaca, entre a
sociological jurisprudence e o realismo norte-americano.
“Cardozo foi um dos principais representantes da teoria
sociológica do Direito (sociological jurisprudence) [...]”47
“[sobre sociological jurisrudence] O conceito foi utilizado
pela primeira vez, ao que parece, por Roscoe Pound, mas
a escola havia nascido com a obra de Oliver Wendell
Holmes Jr. cerca de 20 anos antes”.48

47 GIUSTI, Ernesto. Benjamin Nathan Cardozo. In: Dicionário de filosofia do direito.


Vicente de Paulo Barretto (org). São Leopoldo/ Rio de janeiro: Unisinos / Renovar, 2006, p. 119.
48 ARNOUD, André-Jean etalii (dir.). Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia
do direito. Trad. Vicente P. Barretto. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 763.

59
“No âmbito do direito, o pragmatismo fez suas primeiras
incursões por meio daquilo que ficou conhecido como
o realismo jurídico do próprio Oliver Wendell Holmes,
além de Roscoe Pound e Benjamin N. Cardozo”.49
“Embora seja classificado como realista jurídico ora,
sobretudo, como membro da teoria sociológica do direito
(sociological jurisprudence), o pensamento de Oliver
Wendell Holmes é antes o resultado original da influência
de diversas correntes de pensamento do final do séc.
XIX e pode ser visto como a transposição para o campo
jurídico de uma série de traços típicos do pragmatismo
norte-americano.”50
“[sobre o realismo jurídico americano] Muitas vezes
confundido com a escola da sociological jurisprudence,
sobre a base da qual ele se expandiu[...]”.51
“A obra de Pound constitui uma reação contra a Escola
Anlítica de John Austin, e deve ser classificada dentro do
que se convencionou chamar de Teoria sociológica do
direito (sociological jurisprudence). Embora semelhante
em algumas orientações, é errôneo identificar as posições
desta corrente com o que mais tarde será denominado
realismo jurídico norte-americano. As influências na
formação intelectual de Pound são a nascente sociologia
e o pragmatismo oriundo de William James”.52

A tese compartilha da definição trazida pelo dicionário de Arnaud quando


diz que o realismo não se confunde exatamente com a jurisprudência sociológica
de Pound – e ao dizê-lo explica parte da confusão que existe – pois o realismo
teria sua base na jurisprudência sociológica, a partir do qual se desenvolve.

49 EISENBERG, José. Pragmatismo jurídico. In: Dicionário de filosofia do direito. Vicente


de Paulo Barretto (org). São Leopoldo/ Rio de janeiro: Unisinos / Renovar, 2006, p.656.
50 GIUSTI, Ernesto.Oliver Wendell Holmes Jr.In: Dicionário de filosofia do direito. Vicente
de Paulo Barretto (org). São Leopoldo/ Rio de janeiro: Unisinos / Renovar, 2006, p. 449.
51 ARNOUD, André-Jean etalii (dir.). Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do
direito. Trad. Vicente P. Barretto. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 668.
52 GIUSTI, Ernesto.Oliver Wendell Holmes Jr.In: Dicionário de filosofia do direito. Vicente
de Paulo Barretto (org). São Leopoldo/ Rio de janeiro: Unisinos / Renovar, 2006, p. 654.

60
Ainda adentrando nas distinções entre realismo americano e outros
movimentos e já especificando de que realismo esta tese trata, o corte se faz
agora distinguindo as duas perspectivas realistas quanto ao direito, são elas o
realismo jurídico escandinavo - Escola de Upsala – e o realismo jurídico norte-
americano.
A tese tem seu objeto de estudo centrado nesta última versão,
estadunidense, do realismo. Urge, contudo, preliminarmente perceber no que
se diferenciam.
Em termos gerais se pode identificar uma ênfase maior na perspectiva
linguística como característica do realismo jurídico escandinavo e cujos
expoentes são Axel Hägerstrom, Karl Olivercrona, Alf Ross etc..
Tem em comum com o realismo norte-americano a atitude empírica
em relação ao direito, expressando-se na aversão à discussão sobre valores,
considerada metafísica.
Considera-se que as variantes realistas se deve às distintas matizes ou
inspirações filosóficas das quais sofreram influência, sendo sistema jurídico do
common lawo paradigma sobre o qual se desenvolve a vertente estadunidense
e o direito codificado a fonte inspiradora do escandinavo.53
Ao passo que o escandinavo tem caráter mais especulativo, o realismo
americano teve uma preocupação centrada no que se pode chamar de
psicologismo, de cuja inegável influência é James, inclusive sendo razão esta
que corrobora a presente tese de que o realismo seria um viés do pragmatismo,
logo um método para compreensão do direito.
Alguns de seus expoentes do realismo jurídico norte-americano
foram: Oliver Wendel Holmes Jr, Benjamin Nathan Cardozo, Louis Brandois,
Jerome Frank, Karl N. Llewellyn etc..
Citando um teórico que estaria nos meandros do realismo escandinavo
para explicar as várias tendências de realismos jurídicos, Alf Ross inicia
dizendo que o pensamento que se encontra na base do realismo jusfilosófico
está vinculado ao desejo de entender o conhecimento do direito de acordo com
53 Sobre a diferente ligação das vertentes realistas com o positivismo jurídico, ver: FERREIRA,
Fernando Galvão. Realismo Jurídico. In: BARRETO, Vicente (coord.). Dicionário de filosofia
do direito. São Leopoldo/ Rio de Janeiro: Unisinos/ Renovar, 2006, p. 701-702.

61
as ideias sobre a natureza, problemas e método da ciência. Várias tendências
filosóficas – o empirismo lógico, a escola de Upsala, a escola de Cambridge e
outras – têm fundamento comum na rejeição da metafísica54 . Aduz que todas
as teorias realistas concordam em interpretar a vigência do direito como em
termos de efetividade social das normas jurídicas e que há duas abordagens
principais do realismo quais sejam o ramo psicologista e o comportamentista.
O primeiro descobre a realidade do direito nos fatos psicológicos.
O realismo comportamentista encontra a realidade do direito nas ações dos
tribunais. Uma norma é vigente se houver fundamentos suficientes para se
supor que será aceitas pelos tribunais como base de suas decisões.55
A autora entende que estas duas ramificações propostas por Ross são
espécies do mesmo gênero realismo jurídico norte-americano, pois tanto a
preocupação psicológica quanto comportamentista estão imbrincadas nas
preocupações de Cardozo, Gray, Llewellyn etc..
Para corroborar esta tese afirmada no parágrafo anterior pode-
se recorrer a Llewelyn quando diz que os mais significativos aspectos da
relação entre direito e sociedade está no campo do comportamento e como
comportamento, por seu turno, refletem influências de outros comportamentos,
e por que não dizer de elementos psicológicos.56
O Juiz Oliver Wendel Holmes, no artigo The Path of the Law, expôs
o seu ponto de vista, segundo o qual a tarefa da ciência do direito estaria em
prever o que os tribunais farão. São suas palavras, ipsis litteris:
as pessoas querem saber sob que circunstâncias e até
que ponto correrão o risco de ir contra o que é tão
mais forte que elas mesmas, e, portanto, torna-se um
objetivo descobrir quando esse perigo deve ser temido.
O objeto do nosso estudo, então, é previsão, a previsão

54 ROSS, Alf. Direito e justiça. 2.ed. São Paulo: EDIPRO, 2007, p. 94.
55 Idem, p. 100.
56 “The most significant (I do not say only significant) aspects of the relations of law and society
lie in the field of behavior, and that words take on important either because and insofar as they
are behavior , or because and insofar as they demonstrably reflect or influence other behavior”.
LLEWELLYN, Karl. A realistic jurisprudence: the next step. In: FISHER, William; HORWITZ,
Morton; REED, Thomas. American legal realism. New York: Oxford University, p. 1993, p. 56.

62
da incidência da força pública através do instrumento
dos tribunais... As profecias do que os tribunais farão, de
fato, e nada de mais pretensioso, são o que quero designar
como Direito57 .

De conformidade com essa linha de pensamento, Holmes não vê nos


conceitos de direito e dever outra coisa senão previsão, profecia, Diz ele que
um dever jurídico seria a previsão de que, se um homem fizer ou se abstiver de
fazer certa coisa, ele terá de sofrer, de algum modo, uma consequência imposta
por um tribunal. O direito jurídico seria a previsão de que, se um homem se
comportasse dessa ou daquela maneira, ou se se encontrasse em determinada
situação, experimentaria um benefício atribuído por um tribunal58 .
O desenvolvimento teórico do realismo de Jerome Frank é uma crítica
à doutrina da segurança e certeza do direito, sustentada pela dogmática
tradicional. Para Frank, o único direito certo é o revelado na sentença, a qual
depende da dieta do juiz.59
Por fim, ainda que não seja o objetivo aqui traçar um paralelo exaustivo
entre o realismo jurídico e a jurisprudência sociológica, mas considerando
as semelhanças visto que ambas pensam o direito como fato, urge clarear as
distinções.
Para além desta aproximação, é cediço que para o sociologismo o direito
era definido pela eficácia e para os realistas ele o era pela sentença judicial.
Eis aqui o ponto de diferenciação. Segundo os aqueles, a própria convivência
social - através da eficácia - determina o direito, haja vista que direito é, para
eles, aquilo que como tal se realiza. Os realistas, por seu turno, entendiam que
o direito era aquilo que a sentença judicial dizia que era.

57 HOLMES, Oliver Wendell. The path of the law.In: FISHER, William; HORWITZ, Morton;
REED, Thomas (edt.). American Legal realism. New York: Oxford University Press, 1993, p. 16.
58 HOLMES JR, Oliver Wendell. The path of the law.In: FISHER, William; HORWITZ,
Morton; REED, Thomas (edt.). American Legal realism. New York: Oxford University Press,
1993, p. 15-16.
59 FRANK, Jerome. Law and the modern mind. New York: Transaction Pub, 2009, p.51 e 52.
No mesmo sentido de Cardozo, considera que “psychological forces, including personal biases
buried so deep in the unconscious that the judge was unaware of their existence, might influence
the decision”.

63
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo tinha um objetivo modesto, antes se pretendeu com um


caráter mais didático que problematizante no sentido filosófico de propor
questões investigativas. Diante da imensa confusão ainda existente acerca
do realismo jurídico, especialmente em tempos em que é moda a questão do
ativismo judicial, este artigo se propôs a apresentar as bases filosóficas – o
pragmatismo - em que se fundamenta o realismo jurídico norte-americano,
bem como trazer elementos característicos e distintivos desta perspectiva
hermenêutico-teórica que não se confunde com decisionismo, realismo
escandinavo etc..

64
INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO
FUNDAMENTAL À LIBERDADE
DE EXPRESSÃO E IMPRENSA:
Uma abordagem pragmática comparativa entre o TJ/AL e o STF

Prof. Dr. Adrualdo de Lima Catão 1


Lívia Lemos Falcão de Almeida 2
Caroline Maria Costa Barros 3

Introdução

O trabalho pretende expor resultado de pesquisa realizada entre 2010


e 2012 que verificou a aplicabilidade do direito à liberdade de expressão e
imprensa no judiciário alagoano e no Supremo Tribunal Federal. Depois de
feita a coleta de decisões sobre o tema, verificou-se nos fundamentos das
decisões analisadas, tanto do STF, quanto do TJ/AL, que a análise pragmática
com estudo da fundamentação das decisões coletadas aleatoriamente num
determinado período é eficaz para entendermos o estado atual da posição
do judiciário quanto ao tema, destacando-se que a análise pragmática não
se pretende estatística, mas sim uma visão qualitativa sobre o tema e os
argumentos usados para delinear judicialmente o conteúdo do direito à
liberdade de expressão e imprensa.
A pesquisa teve como fundamentação teórica a filosofia pragmatista
do direito, também conhecida simplesmente como “pragmatismo jurídico”,
ancorado no pensamento dos teóricos Oliver Wendell Holmes Jr. e Benjamin
Cardozo. Tais autores tratam o direito numa perspectiva pragmática, ou seja,
defendem que a investigação sobre questões jurídicas envolve uma análise da
realidade que, no direito, manifesta-se de forma mais evidente nas decisões dos
tribunais e não simplesmente nos textos abstratos produzidos pela autoridade
legislativa. A ideia é usar o pragmatismo jurídico como método, e, assim,

1 Professor Adjunto da UFAL, professor do Programa de Pós-graduação em Direito


da UFAL.
2 Mestranda em Direito pela UFAL.
3 Graduanda em Direito pela UFAL.

65
promover a pesquisa jurídica como análise da realidade das decisões judiciais
no âmbito do direito fundamental à liberdade de expressão e imprensa.
No âmbito específico da liberdade de expressão e imprensa, portanto,
foram realizadas pesquisas documentais, com a análise das decisões judiciais
em que havia controvérsias sobre o conteúdo e aplicabilidade de tal direito.
Assim, além de verificar o conteúdo das interpretações por parte dos tribunais,
a pesquisa teve como preocupação as justificações que o STF e o Tribunal de
Justiça de Alagoas usaram ao interpretar o direito à liberdade de expressão e
imprensa.
Pretende-se, assim, mostrar as bases teóricas segundo as quais o STF
concretiza as abstrações que são os direitos fundamentais, em específico, o
direito à liberdade de expressão e imprensa. No que diz respeito ao resultado, a
pesquisa encontrou o uso de argumentos baseados na técnica de ponderação4 ,
tendo como premissa a ideia de que a liberdade de expressão não é um direito
absoluto. Essa consideração levou, no casos analisados, o TJ/AL a julgar a
matéria jornalística em análise, verificando seus possíveis excessos ou abusos
do direito de informar.
Obviamente, houve muitas considerações de caráter eminentemente
subjetivo. Para o TJ/AL, o conceito a ser verificado em casos de pedido de
indenização por danos é o “interesse público ou social” da matéria jornalística.
Havendo o interesse público, não caberia a indenização. Em alguns casos, até
mesmo matérias jornalísticas consideradas verdadeiras foram consideradas
ofensivas por não atender ao requisito do “interesse público”.
Por sua vez, o STF consolidou o entendimento de que a liberdade
de expressão não deve ser concebida como direito absoluto, insuscetível de
restrição. Isso porque, o texto constitucional não exclui a possibilidade de
limitações à liberdade de expressão e de comunicação, estabelecendo que o
exercício dessas liberdades há de se fazer com observância ao disposto na
Constituição Federal.
Porém, partindo do princípio da proteção do núcleo essencial do
direito fundamental, o tribunal tende a evitar o esvaziamento do conteúdo
4 BRASIL, Apelação Cível n.º 2009.004259-3, Origem: Maceió/12ª Vara Cível da Capital,
Relator: Des. Tutmés Airan de Albuquerque Melo, 15 de dezembro de 2010.

66
do direito fundamental em virtude de restrições desproporcionais. Dessa
maneira, eventuais abusos da liberdade de expressão que possam causar
danos individuais ou coletivos devem ser objeto deresponsabilização civil e
penal a posteriori. Assim, o que não poderia haver, no âmbito da liberdade de
expressão, seria um controle prévio a ser justificado pela “ameaça ao direito”,
já que, assim, como já explanado, se estaria falando de uma legitimação da
censura prévia, que não se admite em nossa ordem constitucional.
O resultado, além de analisar o método pragmático, usa efetivamente
o próprio método do ponto de vista científico, resultando em importantes
efeitos práticos, trazendo uma referência de como as pautas relacionadas com
o direito fundamental à liberdade de expressão e imprensa são efetivamente
interpretadas pelo STF e pelo judiciário alagoano.

1. O pragmatismo jurídico como método de análise de decisões judiciais

O pragmatismo jurídico é uma corrente teórica antipositivista,


aproveitando o postulado da separação entre direito e moral, mas prevendo
uma decisão baseada não apenas na lei, mas na construção coletiva pelos
precedentes judiciais e costumes arraigados na história.
No entendimento de teóricos como Benjamim Cardozo e Oliver
Holmes Jr. a abstração das leis e dos princípios constitucionais não resolveria,
por si só, o caso concreto. Eles sugerem uma análise da história dos casos
anteriores semelhantes. Isso porque, para os autores, a decisão judicial é uma
decisão histórica e coletiva, o que deve ser entendido no sentido de saber
coletivo não planejado.
Deve-se destacar, contudo, que os autores não desprezam a lei positiva,
apenas afirmam que elas em si mesmas não solucionam os casos concretos.
Esse entendimento pode ser exemplificado quando um mesmo princípio geral
pode fundamentar decisões em sentidos opostos. O método pragmático dos
autores se propõe, assim, a resolver a questão por meio de uma análise do
histórico das decisões, dos fatos do caso e das consequências da decisão.
No livro “A natureza do processo judicial”, Benjamin Cardozo ratifica
esse pensamento ao afirmar que a lei também assume um papel fundamental

67
no âmbito decisório por ser o paradigma objetivo seguido, inicialmente, pelo
juiz. Essa lei se mostra pela Constituição e demais normas do poder legislativo.
Nessa concepção, o direito criado pelos juízes seria secundário e
subordinado ao dos legisladores, contudo, tais leis não seriam capazes de
dispensar o trabalho do juiz visto esse não ser mecânico e tampouco superficial.
Ora, há lacunas, dúvidas, ambiguidades a esclarecer5 . A lei, por vezes, pode ser
fragmentada, inadequada e injusta, cabendo ao juiz, em sua interpretação, suprir
esse problema ao corrigir incertezas e ao harmonizar os resultados com justiça.
Na opinião de Cardozo, mesmo que em alguns casos as leis sejam
determinantemente claras, onde, em tese, não haveria maiores dificuldades,
haveria ainda assim um elemento de mistério que acompanha a energia
criativa. Justamente nessas imprecisões, quando a lei escrita nada diz, que o
juiz precisaria buscar no Common Law a norma que se ajusta ao caso, fazendo
uso de precedentes e de concepções jurídicas básicas e tradicionais.6
Ademais, o costume aparece em sua obra como um costume de decisão
judicial e não de simples prática popular. Eles são usados para buscar critérios
e padrões que devem determinar como as normas estabelecidas serão aplicadas
(energia criativa dos costumes), ou seja, os padrões gerais de direito e dever estão
estabelecidos. O costume, assim, deve determinar se houve adesão ou desvio.7
No tocante aos tribunais, Cardozo ressalta que os mesmos devem ter
conhecimento de que as leis escritas devem ser vistas não de maneira isolada
ou in vacuo, como pronunciamento de princípios abstratos para orientar uma
comunidade ideal, mas, sim, contextualizando-as às condições atuais.8
Não obstante, vale ressaltar, na opinião do supracitado autor, a
necessidade de um equilíbrio de todos os ingredientes (sua filosofia, sua
lógica, analogias, histórias, costumes, senso do que é certo e errado, e etc.)
para determinar de que lado fará a balança pender, mas de modo sábio:9 esse
é o chamado “equilíbrio de julgamento”. 10
5 CARDOZO, Benjamim. A natureza do processo judicial: palestras da universidade de
Yale. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.5
6 CARDOZO, Benjamim. Ob. Cit., p.9 e 10
7 Idem, p.45
8 Idem, p.58
9 Idem, p.120
10 Idem, p.123

68
As excentricidades dos juízes se equilibram. Do atrito entre diversas
mentes cria-se algo que tem uma constância, uma uniformidade e um valor
médio maiores do que seus elementos componentes.11 Desse modo, o trabalho
do juiz é em parte duradouro (o que é de bom permanece) e também efêmero
(o que é errôneo perece).12 É esse desenvolvimento que de maneira silenciosa
e constante dissipa os erros e as excentricidades.13
Além disso, outra vertente relevante para o melhor desenvolver do
estudo se encontra na linha do consequencialismo judicial, pelo fato de toda
decisão judicial ser orientada pelo direito e não numa visão essencialista.
Explique-se, o direito, em sua realidade, seria objetivo, separando-se da moral
(a não focalizar o que é ‘certo’ ou ‘errado’ moralmente) visto observar sim os
diferentes resultados daquela decisão. Dessa maneira, quando falássemos de
interpretação constitucional pelos juízes de direito, para Catão, essa deveria:
[...]ser encarada de um ponto de vista antiessencialista.
Uma visão essencialista sobre o Direito ignora o fato de
que as divergências interpretativas não se dão por erro,
mas sim pela característica complexa que o Direito
apresenta, por lidar com temas cuja incomensurabilidade
não admite respostas únicas[...]14

Em seu livro, “The path of the Law”, Homes aconselha aos estudantes
de direito que não vejam a lei como fonte única fonte para as decisões, visto
ela precisar de um intérprete para sua melhor aplicabilidade, que seria a
comunidade jurídica. O teórico ainda descreve a metáfora do “bad man”15
ao relatar que o direito deveria ser visto sob os olhos de um homem sem

11 Idem, p..131
12 Idem, p.132
13 Idem, p.133
14 CATÃO, Adrualdo de Lima. BARROS, Caroline Maria Costa. ALMEIDA, Lívia Lemos
Falcão de. Projeto PIBIC “Interpretação e Aplicação dos Direitos Fundamentais: Uma
Abordagem Pragmática Comparativa entre o TJ/AL e o STF”.
15 “[...] Pode se ver que um criminoso tem tanta razão quanto tem um homem correto para
evitar as forças públicas, que representam a justiça, e disso consequentemente pode se deduzir
a importância prática da distinção entre moralidade e direito. Um homem que não liga nada
para uma regra ética praticada por seus vizinhos, provavelmente não ligará muito para evitar ser
forçado a pagar alguma coisa na tentativa de ficar fora da cadeia, se isso conseguir (HOLMES
JR., Oliver Wendell. The Essential Holmes. Chicago: Chicago University Press, 1992., p. 161).

69
escrúpulos, nefasto, pois só assim poderia o mesmo se desenvolver de forma
inteligente. Trata-se de uma tentativa de separar os campos da moral e do
direito (ex. Lei de Responsabilidade Fiscal que trata o servidor sempre sob a
vista suspeita).
Deve-se destacar em Holmes o repúdio às justificações baseadas em
proposições gerais, sem contato com questões empíricas, visto que seriam
as verdadeiras proposições concretas capazes de relacionar a decisão do
caso (hard cases) com o cotidiano. Nessa seara, entrariam diversos fatores
importantes na hora do julgamento, como os parâmetros históricos, os
princípios e a Constituição; observando quais efeitos isso geraria para o futuro
e quais demandas se desenvolveriam.
Isso é plenamente verificável nas decisões analisadas no âmbito deste
trabalho. Com efeito, em todos os julgados havia a presença de precedentes
como forma de melhor justificar e embasar as decisões. Nesses casos difíceis,
a lei não determina nada, a própria Constituição deixa a questão aberta,
devendo-se observar qual o “caminho certo” a seguir, ou seja, aquele que
geraria a melhor consequência possível.
Os pragmáticos não negam a importância dos princípios, nem
tampouco que haveria alguns mais valiosos que outros. Nesse sentido, o
direito à liberdade de expressão, assegurado constitucionalmente, não poderia
sofrer o que chamamos de censura prévia sob o fundamento de “ameaça de
direito”. Ora, para alcançarmos o tão almejado modelo de democracia e suas
reais garantias, não se poderia admitir que antes mesmo de uma matéria
jornalística ser publicada, a mesma fosse impedida de circular, mediante uma
possível ofensa à esfera dos direitos de personalidade.
Tal entendimento se encontrou fixado no voto do Ministro Gilmar
Mendes, quando do julgamento da não recepção do ar. 4º, V do Decreto-Lei
972/1969, que exigia diploma de curso superior para o exercício da profissão
de jornalista. Em sua fundamentação, o referido Ministro esclareceu que:
[...] o abuso da liberdade de expressão não pode ser
objeto de controle prévio, mas de responsabilização civil
e penal, a posteriori[...] não há razão para se acreditar que
a exigência de diploma de curso superior de jornalismo

70
seja uma medida adequada e eficaz para evitar o exercício
abusivo da profissão. De toda forma, caracterizada essa
exigência como típica forma de controle prévio das
liberdades de expressão e informação [...].

Na situação disposta, seria incabível aceitar que, antes mesmo de se


verificar quais os efeitos que aquela informação pudesse ocasionar, impedisse
a mesma de ser publicada; tal atitude representaria um verdadeiro retrocesso.
Este foi, basicamente, o entendimento do STF, como veremos agora.

2. A não exigência do diploma para jornalista como instrumento de


concretização da liberdade de expressão

No âmbito da liberdade de profissão que envolve o profissional


jornalístico, faz-se importante destacar a discussão sobre a exigência de
diploma de curso superior para o exercício do jornalismo, que resultou na
decisão do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o art. 4º, inciso V, do
Decreto-Lei nº 972 de 1969 não foi recepcionado pela Constituição de 1988.16
Essa decisão é importante, pois consolida o entendimento radical do
STF contra a censura prévia. Os argumentos do MPF, ao ajuizar a ação civil
pública defendendo a não recepção do Decreto-Lei nº 972, se basearam na
premissa de que o estabelecimento de condições para o exercício da liberdade
de exercício profissional não pode constituir restrições indevidas ou não
razoáveis, como seria a exigência de diploma do curso superior de jornalismo.
Ressaltou, ainda, o MPF que essa exigência viola o art. 13 da Convenção
Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992.17
Quando do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, o relator Gilmar
Mendes, em seu voto, explicou que o objetivo da ação civil pública impetrada
pelo MPF, não era apenas protegeros interesses individuais homogêneos dos
profissionais do jornalismo que atuam sem diploma, mas os direitos fundamentais
de toda a sociedade à plena liberdade de expressão e de informação.18

16 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO. Ministro/Relator: Gilmar Mendes.


Julgamento: 17 de Junho de 2009.
17 Idem
18 Idem

71
Na análise do mérito dos recursos, o referido Ministro coloca como
questão a ser solucionada a constitucionalidade ou não da exigência de diploma
de curso superior de jornalismo, registrado pelo Ministério da Educação, para
o exercício da profissão de jornalista.19
Partindo, então, das duas perspectivas de análise seguidas no trâmite
da ação, quais sejam, a que enfatiza o aspecto relacional-comparativo entre o
Decreto-Lei nº 972/1969 e a Constituição de 1988, e aquela que questiona o
decreto-lei em face do art. 13 da Convenção Americana de Direito Humanos,
o Ministro desenvolveu sua linha argumentativa.20
Gilmar Mendes começa seu estudo pela análise do Decreto-Lei nº
972, de 1969, em especial o art. 4º, inciso V, em face da Constituição de 1988,
estabelecendo como primeira linha de análise a delimitação do âmbito de
proteção da liberdade de exercício profissional e a identificação das restrições
e conformações legais constitucionalmente permitidas.21
A definição do âmbito/núcleo de proteção do direito fundamental
é um dos pontos de partida nas observações do Ministro. Isso porque, nas
palavras de Gilmar Mendes, “o exame das restrições aos direitos individuais
pressupõe a identificação do âmbito de proteção do direito fundamental ou o
seu núcleo.”22
No art. 5º, inciso XIII, da Carta Magna de 1988, se encontra disposto
que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer” (grifo nosso). O Ministro
esclarece que o preceito sob comento trata de uma inequívoca reserva legal
qualificada, tendo em vista que a Constituição remete à lei o estabelecimento
das qualificações profissionais como restrições ao livre exercício profissional.23
A discussão sobre a razoabilidade e proporcionalidade das leis
restritivas, especificamente sobre a reserva legal do art.5, XIII, é um dos pontos
chave do voto do relator. Isso porque, a reserva legal não pode ser tão restritiva

19 Idem
20 Idem
21 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO. Ministro/Relator: Gilmar Mendes.
Julgamento: 17 de Junho de 2009.
22 Idem
23 Idem

72
a ponto de atingir o núcleo de proteção do direito. Neste ponto se vê que a
argumentação com base na ideia de ponderação tem um limite.24
O ministro-relator desenvolve seu argumento partindo do princípio
da proteção do núcleo essencial, destinado a evitar o esvaziamento do
conteúdo do direito fundamental em virtude de restrições desproporcionais.
E segue explicando que deve haver uma admissibilidade constitucional da
restrição fixada e uma compatibilidade das restrições com o princípio da
proporcionalidade. Conclui o raciocínio, ao afirmar que, essa orientação
converteu o princípio da reserva legal no princípio da reserva legal
proporcional. 25
Do princípio da reserva legal proporcional se segue o fundamento nos
subprincípios da adequação e da necessidade. Devendo haver, ainda, na opinião
do referido Ministro, uma ponderação entre o significado da intervenção para
o atingido e os objetivos do legislador.26
Por fim, segundo a linha de pensamento de Gilmar Mendes, a
controvérsia central está em analisar se a lei restritiva da liberdade de exercício
profissional, ao definir qualificações profissionais, ultrapassa os limites da ideia
de proporcionalidade e atinge o núcleo essencial dessa liberdade.27
Nesse contexto, faz-se importante destacar o julgamento da
Representação nº 930, por meio do qual o Supremo fixou o entendimento de
que as restrições legais à liberdade de exercício profissional somente teriam
lugar quanto às qualificações profissionais.28
O relator buscou analisar se o exercício da profissão de jornalista exige
qualificações profissionais e capacidades técnicas específicas e especiais e se,
então, estaria o estado legitimado constitucionalmente a regulamentar o tema
em defesa da coletividade.
O parecer emitido pelo Ministro Eros Grau respondeu a questão acima
suscitada afirmando que “a profissão de jornalista não reclama qualificações
24 Idem
25 Idem
26 Idem
27 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO. Ministro/Relator: Gilmar Mendes.
Julgamento: 17 de Junho de 2009.
28 Idem

73
profissionais específicas, indispensáveis à proteção á coletividade, de modo
que ela não seja exposta a riscos (...)”.29
Nesse mesmo sentido entendeu o Ministro Gilmar Mendes. E para
justificar seu posicionamento, utilizou como argumento o entendimento de
que as qualificações profissionais somente podem ser exigidas de profissões
que podem trazer perigo de dano à coletividade ou prejuízos diretos a direitos
de terceiros, sem culpa das vítimas. Concluiu, portanto, que a exigência dessas
qualificações não se aplicaria à profissão de jornalista.30
Outro argumento abordado pelo Ministro diz respeito à
desproporcionalidade da exigência do diploma de jornalismo para o
exercício da profissão. A falta de adequação da medida, na sua opinião, se
encontra justificada no fato de que a formação específica em curso superior
de jornalismo não é meio idôneo para evitar riscos à coletividade ou danos
efetivos a terceiros. Seguindo o raciocínio, eventuais violações à honra, à
intimidade, à imagem ou a outros direitos da personalidade não constituiriam
riscos inerentes ao exercício do jornalismo; mas, sim, resultado do exercício
abusivo e antiético da profissão.31
Deve-se mencionar a diferença estabelecida por Gilmar Mendes entre
jornalismo despreparado e jornalismo abusivo. O primeiro tem como resultadoa
ausência de leitores, a dificuldade de divulgação e de contratação pelos meios
de comunicação, mas não o prejuízo direito de terceiros. Já o jornalismo
abusivo, que se expressa por meio de notícias falaciosas e inverídicas, a calúnia,
a injúria e a difamação, atingem não só os profissionais despreparados como
também os jornalistas profissionais. Trata-se se um desvio de conduta ética
que deve ser objeto de responsabilidade civil e penal.32
Por outro lado, ressalta que os cursos de graduação em jornalismo
deverão continuar existindo e que têm muita importância para o preparo
técnico e ético dos profissionais do ramo. Como exemplo a justificar seus
argumentos, ele aponta:

29 Idem
30 Idem
31 Idem
32 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO. Ministro/Relator: Gilmar Mendes.
Julgamento: 17 de Junho de 2009.

74
“os cursos de publicidade e de cinema, por exemplo,
igualmente inseridos no âmbito mais amplo da
comunicação social, tal como o jornalismo, são
extremamente importantes para a formação do
profissional que atuará nessas áreas, mas não constituem
requisito básico e indispensável para o exercício regular
das profissões de publicitário e cineasta.”33

Ao fim de tais considerações, em uma análise de proporcionalidade,


o Ministro concluiu que, num âmbito de livre expressão, o requisito da
qualificação profissional é proibido pela Constituição, de modo que, uma lei
que assim proceda, afronta o art. 5º, XIII da Carta Magna. O ponto crucial
do debate, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, é que “o jornalismo é
uma profissão diferenciada por sua estreita vinculação ao pleno exercício das
liberdades de expressão e informação.”34
Em virtude do exposto, a interpretação do art. 5º, inciso XIII, da
Constituição, em relação à profissão de jornalista, deve-se fazer em conjunto
com os preceitos do art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e do art. 220. Uma das soluções
apontadas no voto em análise, é que haja uma autorregulação dos jornalistas,
de modo que os próprios meios de comunicação estabeleçam os mecanismos
de controle quanto à contratação, avaliação, desempenho e conduta ética
dos profissionais da área. Dessa maneira, dar-se-ia um maior respaldo aos
jornalistas com formação universitária, já que, as empresas de comunicação
poderiam adotar como critério para a contratação a exigência do diploma de
curso superior de jornalismo.35
Cumpre lembrar o notável trabalho na atividade jornalística de algumas
conhecidas personalidades, citadas pelo Ministro em seu voto, que exerceram
o jornalismo sem a correspondente formação superior. García Marques, Mario
Vargas Llosa, Carlos Chagas, Nelson Rodrigues, Barbosa Lima Sobrinho são
alguns exemplos; assim como também, o conhecido Caco Barcelos, que apesar
de não possuir diploma superior de jornalista, tem um brilhante currículo em
jornalismo investigativo.36
33 Idem
34 Idem
35 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO. Ministro/Relator: Gilmar Mendes.
Julgamento: 17 de Junho de 2009.
36 Idem

75
Ademais, o voto do Relator faz menção à interpretação adotada pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “La colegiación obligatoria
de periodistas” por meio de uma Opinião Consultiva solicitada pelo Governo
da Costa Rica. Em sua decisão, a Corte se pronunciou declarando que a
obrigatoriedade do diploma universitário e da inscrição em ordem profissional
para o exercício da profissão de jornalista viola o art. 13 da Convenção
Americana de Direitos Humanos, que protege a liberdade de expressão.37
A decisão do relator faz importante referência histórica – tipicamente
pragmatista – ao fato de que o Decreto-Lei nº 972, de 1969 foi editado sob a
égide do regime ditatorial instituído pelo Ato Institucional nº 5, de 1968, tendo
o claro objetivo de afastar dos meios de comunicação os intelectuais, políticos
e artistas.38
Por fim, em virtude de todos os argumentos apresentados, o relator
Gilmar Mendes decidiu que o artigo 4º, inciso V, do Decreto-Lei nº 972, de
1969, não foi recepcionado pela Constituição de 1988.
Em voto divergente, defendeu o Senhor Ministro Marco Aurélio não
haver conflito entre o art. 4º, inciso V, do Decreto-Lei nº 972, de 1969 e a atual
Constituição Federal. Em sua fundamentação de mérito, o Ministro Marco
Aurélio defendeu não conceber, sob o ângulo formal, a inconstitucionalidade
superveniente do dispositivo em análise, alegando estar o diploma em vigor há
quarenta anos, dos quais vinte, simultaneamente, com a Carta Magna de 1988.39
O posicionamento do Ministro, favorável à exigência legal de diploma
superior para o exercício da profissão de jornalista, se pautou em argumentos
que, em sua maioria, se referiam à relevância social da profissão. Para ele,
a exigência do diploma tem em vista a prestação de serviço de maior valor,
de serviço que serve à formação de convencimento sobre temas, passando,
inclusive, a ser orientação na vida dos indivíduos.40
No que concerne ao direito à liberdade de expressão, ele argumenta
que a exigência do art. 4º do decreto sob comento não é desproporcional a
37 Idem
38 Idem
39 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO. Ministro/Relator: Gilmar Mendes.
Julgamento: 17 de Junho de 2009
40 Idem

76
ponto de ser declarada incompatível com o artigo 220, § 1º e com o art. 5º,
inciso XIII da CRFB/88. Em seu voto, o Ministro questiona se a restrição em
foco deixa de atender à sociedade em termos de veiculação de ideias ou se a
mesma é extravagante e, então, responde que não.41
Na opinião de Marco Aurélio, o jornalista deve ter uma formação
básica para que exerça sua atividade profissionalmente, e para isso, acredita
que a formação universitária é aquela que serve a este fim. Defende, ainda,
que tornar o diploma facultativo para o exercício da profissão é frustrar
inúmeras pessoas que acreditaram na ordem jurídica e cursaram faculdades de
jornalismo ao longo de todos esses anos, numa clara referência à expectativa
de uma reserva de mercado.42
O Ministro argumentou que a norma que exige formação superior
para jornalistas representa uma maior segurança jurídica quanto ao que é
publicado nos meios de comunicação, especialmente aqueles de repercussão
nacional. Dessa forma, a restrição imposta pela norma seria uma salvaguarda
da sociedade face aos possíveis danos advindos de abusos da liberdade de
expressão.43
Feitas tais considerações argumentativas em prol da recepção do artigo
4º, inciso V, do Decreto-lei nº 972/1969, o Ministro Marco Aurélio votou pelo
desprovimento dos recursos extraordinários.
Ao fim do julgamento, o Tribunal, por maioria e nos termos do voto
do Relator, Ministro Gilmar Mendes, conheceu e deu provimento aos recursos
extraordinários, declarando a não-recepção do artigo 4º, inciso V, do Decreto-
lei nº 972/1969, vencido o Ministro Marco Aurélio.

3. O STF delimita um conceito essencial de liberdade de expressão

Mais importante do que as considerações sobre proporcionalidade e


ponderação foi a ideia de que o direito fundamental à liberdade de expressão
tem um conteúdo essencial mínimo, que não pode ser relativizado. O direito
41 Idem
42 Idem
43 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO. Ministro/Relator: Gilmar Mendes.
Julgamento: 17 de Junho de 2009.

77
à liberdade de expressão se encontra regulado na Carta Magna de 1988 no
art. 5º, inciso IV da seguinte maneira: “é livre a manifestação do pensamento,
sendo vedado o anonimato”, bem como no inciso XIV do mesmo artigo, no
qual “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da
fonte, quando necessário ao exercício profissional” e também no art. 220,
quando dispõe que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e
a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
Os parágrafos §1º e 2º do art. 220 esclarecem ainda que “nenhuma
lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de
informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado
o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”, e que “é vedada toda e qualquer
censura de natureza política, ideológica e artística”.
No julgamento da ADPF nº130, na qual se declarou a não recepção
da Lei de Imprensa, o Supremo Tribunal Federal deixou consignado o
entendimento segundo o qual as liberdades de expressão e de informação, em
especial, a liberdade de imprensa, somente poderiam ser restringidas pela lei
em hipóteses excepcionalíssimas, justificadas pela necessidade de resguardo
de outros valores constitucionais.44
Por outro lado, o Ministro Gilmar Mendes explicou que, de nenhuma
maneira, se concebeu a liberdade de expressão como direito absoluto,
insuscetível de restrição. Isso porque, o texto constitucional não exclui a
possibilidade de limitações à liberdade de expressão e de comunicação,
estabelecendo que o exercício dessas liberdades há de se fazer com observância
ao disposto na Constituição Federal.45
Nesse sentido, importante ressaltar, ainda, a discussão a respeito do
controle estatal sobre a profissão de jornalista. A partir do voto do Ministro
supracitado, pode-se extrair o entendimento de que qualquer controle no
acesso à atividade jornalística configura controle prévio, que caracteriza
censura prévia das liberdades de expressão e de informação, vedada pelo art.
44 Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=107402>
Acesso em: 31 out. 2010.
45 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO. Ministro/Relator: Gilmar Mendes.
Julgamento: 17 de Junho de 2009.

78
5º, IX da CRFB/88. Do mesmo modo, o estado não estaria legitimado a criar
uma ordem ou um conselho profissional para a fiscalização dessa profissão.46
Gilmar Mendes ressaltou que a proibição ao controle estatal prévio,
estabelecido pela Constituição, não ignora a potencialidade danosa da
atividade da comunicação em geral, nem tampouco o poder da imprensa e
de seus agentes na sociedade. Ao contrário, a Carta Magna de 1988 assegura
as liberdades de expressão e de informação sem permitir violações à honra,
à intimidade e à dignidade humana. Em outros termos, pode-se dizer que a
ordem constitucional garante a liberdade de imprensa, e também a liberdade
do indivíduo em relação à imprensa.47
Dessa maneira, eventuais abusos da liberdade de expressão que possam
causar danos individuais ou coletivos devem ser objeto de responsabilização
civil e penal a posteriori. Não podendo haver, no âmbito da profissão de
jornalista, um controle prévio a ser justificado pela “ameaça ao direito”, já que,
assim, como já explanado, se estaria falando de uma legitimação da censura
prévia, que não se admite em nossa ordem constitucional.48
Deve-se, portanto, evitar que num “excesso” aos direitos de
personalidade se crie uma verdadeira censura ao impedir que denúncias sejam
feitas sob o argumento de invadir a vida privada do cidadão pela agressão à sua
honra ou imagem. Daí porque, dever-se-ia analisar as peculiaridades do caso
concreto quando presente a colisão de princípios e/ou direitos fundamentais,
devendo-se, ainda, sopesar os direitos envolvidos ao observar quais as
consequências que determinada decisão é capaz de produzir. E isso só pode
ser feito em uma análise posterior à ocorrência da suposta violação ou abuso.

4. A análise a posteriori do Tribunal de Justiça de Alagoas: liberdade


de expressão, verdade e interesse público

Também ganha destaque na jurisprudência do Tribunal de Justiça


de Alagoas, a utilização do argumento intitulado de “juízo de ponderação”,
lastreado pelo princípio da proporcionalidade, no intuito de analisar qual
46 Idem
47 Idem
48 Idem

79
direito fundamental deveria prevalecer no caso concreto, o da preservação da
honra e da boa imagem (CF, art. 5º, inciso X) ou os direitos de informação (CF,
art. 5º, inciso IX) e de liberdade de imprensa (CF, art. 222, inciso IX).
Em todos os casos analisados, parte-se do pressuposto de que a
Constituição da República garante o exercício da liberdade de informação
jornalística, mas também impõe e delimita o âmbito de seu exercício no intuito
de proteger os direitos à integridade moral à preservação da intimidade, da
vida privada, da honra imagem das pessoas.
Em verdade, os argumentos encontrados partem da doutrina de que
os princípios funcionariam como mandados de otimização, possuindo caráter
prima facie, uma vez que o conhecimento de sua total abrangência – seu
significado jurídico – não advém da leitura imediata da norma que o consagra,
mas deve ser complementado pela consideração de outros fatores49 , isto é, sua
normatividade seria provisória, “potencial, com virtualidade de se adaptar à
situação fática, na busca de uma solução ótima.”50
Daí que, prima facie, o direito à privacidade impede a divulgação de
dados não autorizados acerca de uma pessoa a terceiros, porém, esse direito
pode ceder, em certas ocasiões, a um valor, como a liberdade de expressão, que
no caso concreto pode se revelar preponderante. É nesse sentido, que Gonet
Branco afirma que o “juízo de ponderação a ser exercido liga-se ao princípio
da proporcionalidade, que exige que o sacrifício de um direito seja útil para a
solução do problema, que não haja outro meio danoso de atingir o resultado
desejado e que seja proporcional em sentido estrito, isto é, que o ônus imposto
ao sacrificado não sobreleve o benefício que se pretende obter com a solução.
Devem-se comprimir no menor grau possível os direitos em causa, preservando-
se a sua essência, o seu núcleo essencial.”51

49 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.in MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito


Constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet
Branco. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.363.
50 MATOS, Varela de. Conflito de direitos fundamentais em direito constitucional e
conflitos de direitos em direito civil. Porto: Almeida e Leitão, 1998, p. 18.
51 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. in MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito
Constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet
Branco. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. p.364.

80
Corroborando a aplicação do ‘juízo de ponderação’, o tribunal
alagoano, em uma das decisões recentemente analisadas, utiliza-se da referida
técnica, quando afirma:
(...) Nessa perspectiva, ressalto que, embora seja livre a
manifestação do pensamento, tal direito, como qualquer
outro direito fundamental, não é absoluto. Ao contrário,
encontra rédeas tão necessárias para a consolidação do
Estado Democrático de Direito quanto o direito à livre
manifestação do pensamento: trata-se dos direitos à
honra e à imagem, ambos condensados na máxima
constitucional da dignidade da pessoa humana (...)52.

De fato, após a análise do supracitado acórdão, a busca pela


fundamentação dos critérios de ponderação faz com que a análise do caso
concreto ganhe força, o que aproxima a abordagem de um dos requisitos do
método pragmático de tomada de decisões, em razão da crítica e minuciosa
análise do caso concreto. Ou seja, ainda que tenha sido utilizado proposições
gerais – conceitos dos referidos direitos constitucionais – elas não se mostraram
como o fundamento único para a resolução do mérito, haja vista seu caráter
eminentemente abstrato, pelo menos nas decisões analisadas.53
A questão fundamental está, portanto, em delimitar quais os critérios
usados para caracterizar o abuso no direito de informar. Da análise dos casos,
tem-se quatro exigências fundamentais: a veracidade dos fatos narrados, a
necessidade de oitiva da parte interessada, a disposição não sensacionalista
do texto e a existência de interesse público ou social na veiculação da
matéria.
Neste caso, restou confirmada pelo tribunal que determinado
procurador da república apenas noticiou o ajuizamento de uma ação civil
pública pelo Ministério Público Federal contra o apelante e outros, em virtude
de supostas irregularidades a estes atribuídas quando no exercício da gestão
administrativa do Tribunal Regional do Trabalho de Alagoas, sem presença de

52 BRASIL, Apelação Cível n.º 2009.004259-3, Origem: Maceió/12ª Vara Cível da Capital,
Relator: Des. Tutmés Airan de Albuquerque Melo, 15 de dezembro de 2010.
53 In HOLMES JR., Oliver Wendell.The Essential Holmes. Chicago: Chicago University
Press, 1992., p.306.

81
expressões ofensivas ou opiniões pessoais emitidas por parte do agente público
sobre os fatos ou sobre os envolvidos. Foi ressaltado a inexistência de excessos
por parte da pessoa que prestou informações à imprensa.
Apesar disso, ressaltou o Tribunal que, embora as declarações prestadas
pelo procurador fossem em tom afirmativo, e até acusatório, a imprensa teria
por obrigação ouvir e divulgar a versão do acusado, informando à sociedade os
dois pontos de vista – em atenção ao contraditório e ampla defesa –, para que
ela julgasse e retirasse suas próprias conclusões, ao invés de selecionar o que
vai divulgar ou omitir informações para dar contornos de escândalo ao que se
está divulgando, daí porque a responsabilização judicial pela ofensa a honra e
imagem do ofendido deve ocorrer quando há abuso no direito de informar.
Assim, como medida para um jornalismo legítimo, faz-se necessária a oitiva
do acusado em reportagem, haja vista essa ser sabedora da grande repercussão
que possuem determinadas matérias jornalísticas, mormente quando se
trata de atitudes e posicionamentos que envolvam o erário e a probidade
administrativa, uma vez que há um interesse maior da sociedade em saber
detalhes de como está sendo utilizado (ou desviado) o dinheiro público.54
Em diferente decisão do TJ/AL, que se referia a “possíveis” acusações de
nepotismo de antigo presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas, entendeu-
se que a integralidade da reportagem em questão apresentava uma disposição
capciosa das referidas frases, evidenciando a pretensão de distorcer os fatos, o
que tornaria inegável a feição ofensiva da reportagem.55
Analisando a abordagem e não os fatos, entendeu-se que a honra
e a imagem do Apelado, enredando-o em situações desabonadoras da
reputação de qualquer cidadão comum e, ainda mais, de alguém que, naquela
ocasião, ocupava o cargo máximo do Judiciário Estadual, sendo, portanto,
potencializada, com relação àquele, a expectativa e cobrança de uma conduta
proba e ilibada.
54 “(...) O privilégio sempre há de ser da vida privada. Isso por uma razão óbvia: esse
direito, se lesado, jamais poderá ser recomposto em forma específica: ao contrário, o
exercício do direito à informação sempre será possível ‘a posteriori’, ainda que, então, a
notícia não tenha mais o mesmo impacto”. In ARENHART, Sérgio Cruz. A Tutela Inibitória da
Vida Privada, RT, p. 95.
55 BRASIL, Apelação Cível n° 2011.000524-8, Origem: Comarca de Maceió / 5ª Vara Cível
da Capital, Relator: Juiz convocado Ivan Vasconcelos Brito Júnior, 25 de abril de 2011.

82
Isto é, no caso em análise, especificamente, entendeu o Tribunal
de Justiça de Alagoas que as diferentes formas possíveis de se redigir uma
reportagem poderiam fazer com que um mesmo fato fosse noticiado, ora de
forma ofensiva, ora de modo em que apenas se vislumbrasse o legítimo caráter
informativo, e seria nessa medida que matéria jornalística estaria repleta de
construções frasais que, na forma como dispostas na matéria, evidenciariam
o seu cunho sensacionalista e ofensivo.
O relator do caso, inclusive, chega a afirmar que a situação estava
“cristalinamente demonstrada na forma como dispostos o título e o subtítulo
da matéria em questão”, não esmiuçando, por sua vez, os argumentos fáticos
e até o conjunto probatório disposto no caso em perspectiva, no qual poderia
ser possível se vislumbrar o interesse público para a divulgação da matéria,
apenas justificando o mérito da demanda e o evidente conflito de direitos
fundamentais em cognição parcial e juízos indiciários.
Tal mérito tem sua aplicação em outros julgados que votaram pela
liberdade de expressão e imprensa, no sentido de averiguarem no caso concreto
a presença do interesse público ou até do legítimo animus narrandi da empresa
jornalística.
Foi o caso da Apelação Cível n° 2007.002726-5 na qual o tribunal
buscou analisar a fita de vídeo colacionada aos autos, onde se encontrava as
declarações feitas pelo apelante em comício eleitoral, entendendo, por sua
vez, que elas não eram capazes de afetar a imagem, honra e reputação do
autor, pois somente haviam tecidos críticas e acusações a sua atuação, como
prefeito do Município de Estrela de Alagoas, não havendo excesso algum,
eis que é sabido que, em se tratando de disputa eleitoral, tal comportamento
entre os candidatos é comum. As informações trazidas apenas têm o condão
de formação da convicção do eleitorado. Assim, calha transcrever trecho do
julgado ora analisado:
(...) No presente caso, entendo que a razoabilidade não
foi ultrapassada. Pois bem, a mera crítica, proferida
durante um discurso com intuito eminentemente político
de participação popular no processo democrático e
vigilância da moralidade administrativa, não é capaz de

83
gerar Dano Moral, uma vez que não houve comprovação
de que a ação fosse revestida de Dolo, logo, não há que se
falar em ato ilícito, inexistindo, assim, a Responsabilidade
Civil do Apelante.(...) De fato, o Autor/Recorrido, como
homem público, que à época era prefeito municipal e
candidato à reeleição, sujeita-se a situações de exposição
públicas diversas e mais exacerbadas que um cidadão
do comum do povo, principalmente, no período de
eleições. (...) Ademais, entendimentos jurisprudenciais,
em casos análogos aos dos autos, dão conta de que os atos
praticados por adversários políticos durante o período de
eleição, mesmo que aparentemente ofendam a imagem
ou a honra do candidato adversário, são admissíveis,
porque dizem com o interesse público e com a condição
de exposição a que o próprio candidato se submete, pois
que exerce ou pretende exercer mandato eletivo sabe que
está sujeito a exposição pública de seus atos (...)56.

Nesse mesmo sentido, na Apelação Cível nº 2010.000268-9 restou


verificado a inexistência de abuso de liberdade de expressão na medida em
que determinados panfletos publicados por estudantes universitários não
seriam capazes de atingir a honra e imagem do apelado, à época candidato ao
cargo de reitor da Universidade Federal de Alagoas, haja vista que nada mais
natural do que se tornar alvo de comentários, principalmente por aqueles que
o conheciam mais de perto, uma vez que os apelantes foram alunos do então
apelado no curso de Engenharia Civil.57
Além de que, essa manifestação tinha como objetivo levar a público
a forma como o professor em questão se comportava em sala de aula, bem
como explanava suas ideias, e, por não concordarem com tal pensamento,
resolveram publicá-lo, com a única finalidade de o pretenso candidato não
lograr êxito nas eleições para o cargo de reitor da Universidade Federal de
Alagoas, pois assim estariam exercendo o livre direito de manifestação que é
inerente ao estado democrático de direito.

56 APELAÇÃO CÍVEL N° 2007.002726-5, Órgão:3ª Câmara Cível, Desa. Nelma Torres


Padilha, 14 de março de 2011.
57 BRASIL, Apelação Cível nº 2010.000268-9, Des. Estácio Luiz Gama De Lima.

84
Já no que se refere à comprovação da veracidade da notícia veiculada,
impende analisar a fundamentação de julgado do Tribunal de Justiça de
Alagoas, em que o próprio Ministério Público instaurou inquérito para apurar
os fatos, concluindo, ao final, pela impossibilidade de se dar credibilidade às
insinuações do jornal, por absoluta falta de fundamento, em razão de que
alguns cuidados mínimos devem ser tomados e jamais podem ser deixados de
lado, notadamente quando a informação pode macular de forma irremediável
a honra e imagem das pessoas.58
O caso em questão trata de uma matéria na seção “Sururu da Redação”
do semanário ‘EXTRA’. A Relatora na lide em tela não apenas faz o sopesamento
entre os princípios envolvidos, mas analisa também a veracidade e suficiência
das provas do que foi divulgado. O que se destaca desse entendimento é a
exigência de provas plausíveis que justifique a divulgação da notícia. Utilizar-
se de meras conjecturas ou insinuações não seria argumento suficiente
que legitimasse a comunicação desses fatos, surgindo daí o dever de se
responsabilizar.59 Foi o convencimento do Tribunal:
Diante do contexto probatório dos autos, restou
demonstrado que os Apelantes não agiram com cautela,
responsabilidade e seriedade ao publicarem nota de
cunho tão ofensivo à imagem e à honra do Apelado sem
que estivessem de posse de provas inequívocas acerca da
veracidade do fato, onde somente de posse delas é que
se permitida a veiculação da notícia em obediência ao
principio constitucional do direito de informar.
[...]extrapolando, sem sobra de dúvidas, o direito de
informar (animus narrandi). Desta forma, não há como
negar que o Autor tenha sofrido dano de natureza moral
diante dos fatos ofensivos publicados no jornal, não
havendo como respaldar a tese de que os Réus agiram em
estrito exercício constitucional da liberdade de imprensa,
da comunicação e da manifestação do pensamento

58 BRASIL, Apelação Cível N.º 2009.004259-3, Origem: Maceió/12ª Vara Cível da Capital,
Relator: Des. Tutmés Airan de Albuquerque Melo, 15 de dezembro de 2010.
59 BRASIL, Apelação Cível n.° 2005.000765-2. COMARCA DE MACEIÓ. Relatora:
Desembargadora Elisabeth Carvalho Nascimento. Julgamento: 27 de Abril de 2006.

85
posto que certamente extrapolaram os limites do
permitido, ao veicularem notícia sem embasamento que
a sustentasse[...]60 ( grifo nosso).

Vê-se que, aqui, a exigência para configurar o abuso foi a não


apuração dos fatos. Assim, o direito à informação é o direito de informar e de
receber livremente informações sobre dados objetivamente apurados, desde
que, comprometidos com a verdade e com a imparcialidade61 , sendo vedado
à imprensa o papel de prejulgador, que condena perante a opinião pública,
sem que os próprios órgãos apuradores tenham emitido qualquer opinamento
anterior sobre a temática62 .
Por outro lado, numa decisão que tratava da exibição, por uma empresa
de comunicação, de confusão instalada na frente da loja de propriedade de um
dos recorridos pela tentativa de uma senhora de fotografar um vestido na vitrine
sem permissão, observou-se que o Tribunal buscou se basear no argumento de
que o problema ocorrido na loja era uma situação corriqueira, de modo a ser
legítima a vontade de se evitar que o caso ganhasse tamanhas proporções63 .
Em seu julgado, o magistrado relator negou que houvesse verdadeiro
interesse público envolvido no caso para justificar a informação veiculada,
apesar de verdadeira! A matéria, em sua opinião, acabaria por extrapolar
o próprio direito à liberdade de expressão, posto que, a insistência dos
funcionários da empresa de comunicação em continuar registrando imagens
dos apelados mesmo após diversos pedidos em sentido contrário e a sua
posterior divulgação em telejornais, caracterizariam uma violação ao direito
de imagem dos autores da demanda, haja vista que o veículo de comunicação
não procedeu a um juízo prévio acerca do conteúdo da matéria, conduta
esta que, ao ver do desembargador relator, deve anteceder a publicação e a
veiculação de qualquer reportagem64 .
60 Idem.
61 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil.8 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 109.
62 FERNANDES, Isabelle de Carvalho. O papel da imprensa na divulgação da crise política
e a responsabilidade civil por danos aos direitos da personalidade. Jus Navigandi, Teresina,
ano 9, n. 751, 25 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7060>.
Acesso em: 22 out. 2010.
63 BRASIL, Apelação Cível nº 2006.001433-7. Desembargador Presidente/Relator Estácio Luiz
Gama de Lima. Julgamento: 4 de novembro de 2010.
64 BRASIL, Apelação Cível nº 2006.001433-7. Desembargador Presidente/Relator Estácio Luiz

86
Em outra demanda julgada, o TJ/AL foi explícito em sua fundamentação
e deixou claro que, mesmo que a notícia tivesse sido verdadeira, ainda assim
haveria dano moral visto a forma como tal informação foi noticiada ao ferir a
honra e imagem do apelado que levou à responsabilidade por danos morais da
empresa jornalística e seu administrador65 .
Como se vê, para evitar a necessidade de indenização por danos, mais
do que a informação ser verdadeira, ela precisa ter interesse público. Assim,
ao contrário da maioria dos doutrinadores, que afirma que apenas a verdade
seria o limite da liberdade de expressão, em razão de que a publicação de
fato prejudicial a alguém gera o dever de indenizar, porém sua conduta fica
resguardada com a devida comprovação da ‘acusação’ feita, ou seja, admite-
se a prova da verdade como um fator excludente da responsabilidade. Isso
representa o dever de cautela do comunicador, mas não pode ser levado
a extremos, visto a possibilidade de se inviabilizar o próprio trabalho do
jornalista66 .
Nesse sentido, Barroso67 afirma que, no caso da honra – também
caracterizada como direito de personalidade previsto na Constituição Federal,
protegendo a dignidade pessoal do indivíduo, sua reputação diante de si e dos
outros, além do meio social no qual está inserido –, apresenta limites, pela
doutrina, legislação e jurisprudência, particularmente no que concerne a
circunstância de ser verdadeiro o fato imputado ao indivíduo, ainda que haja
exceção para doutrina, impedindo a divulgação de fatos verdadeiros, mas que
são detratores da honra individual: é o que se denomina segredo de desonra68 .

Gama de Lima. Julgamento: 4 de novembro de 2010.


65 BRASIL, Apelação Cível n.º  2009.002234-0. Maceió/7ª Vara Cível da Capital. Relator: Juiz
Conv. José Cícero Alves da Silva. Julgamento: 30 de setembro de 2010.
66 MENDES, Gilmar Ferreira. Idem. p.371.
67 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade.
Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do código civil e da lei de
imprensa. Revista Direito Administrativo. Jan/Mar. 2004. Editora Renovar nº235:I-IV; 1-435.
Rio de Janeiro, p.14-15.
68 MENDES, Gilmar Ferreira. Idem. p.371.

87
5. Conclusão

Ao se observar todo o decorrer da pesquisa, inclusive iniciada em 2010,


constatou-se que os direitos fundamentais possuem alto nível de complexidade
em relação ao seu conteúdo e principalmente, no que concerne a sua aplicação
no caso concreto quando evidenciado o conflito de direitos e garantias, como
no caso da liberdade de expressão e imprensa e os direitos de personalidade.
Isso porque, como já explicado, a liberdade de manifestação de
pensamento e de informação pode ser exercida desde que não se configure
ofensa aos direitos constitucionais dos indivíduos, tendo em vista a dignidade
da pessoa humana, devendo a imprensa zelar pela qualidade e veracidade
das informações que veicula, sendo responsável pela divulgação de notícias
difamantes.
Em que pese o STF assumir em certos casos postura mais retilínea
em suas argumentações, é perceptível a ausência de uma observação mais
detalhada sobre o seu processo decisório. Daí que, estudar o processo
decisório do STF e TJ/AL não é uma questão meramente formal, uma vez
que compreender melhor como os ministros votam é fundamental para que
se exerça um controle democrático mais apurado de suas decisões. A leitura
minuciosa de casos difíceis mostrou que a falta de clareza ou até a dificuldade
de se encontrar a ratio decidendi (a linha argumentativa da decisão) são
obstáculos a essa função.
Do ponto de vista teórico, a pesquisa também ressalta o entendimento
pragmático ao estudar uma de suas mais célebres frases: “proposições gerais não
decidem casos concretos”69, em que Holmes afirma a imagem de que o direito
não é lógica, mas experiência.70
69 HOLMES JR., Oliver Wendell. The Essential Holmes. Chicago: Chicago University Press,
1992., p.306.
70 Nesse sentido: “A vida do direito não tem sido lógica: tem sido experiência. As necessidades
sentidas em todas as épocas, as teorias morais e políticas que prevalecem, as intuições das
políticas públicas, claras ou inconscientes, e até mesmo os preconceitos com os quais os juízes
julgam, têm importância muito maior do que silogismos na determinação das regras pelas quais
os homens devem ser governados. O direito incorpora a história do desenvolvimento de uma
nação através dos séculos e não pode ser tratado como se compreendesse tão somente axiomas
e corolários de livros de matemática. De modo a se saber o que é o direito, deve se saber o que
ele tem sido e qual a tendência que há de se transformar. Deve se consultar alternativamente a

88
Analisar como as proposições gerais dos direitos fundamentais,
previstas na Constituição , são de fato aplicadas no caso concreto nos mostra
como o pragmatismo jurídico pode ser útil como metodologia. Identificando os
fatores que pesam efetivamente e possibilitando deixar claro quais argumentos
e provas pesam de fato sobre o caso.
Indo além do que já se transformou em lugar comum – alegar que
nenhum direito é absoluto – o pragmatismo permite mostrar como os
tribunais na interpretam as proposições gerais e as integram com argumentos
da experiência e com elementos do senso comum. Afirmar simplesmente que
a liberdade de expressão deve ser garantida, mas não deve servir para ferir
direitos da personalidade não resolve os problemas jurídicos reais sobre até
que ponto devemos entender os limites da liberdade de expressão.
Evidentemente, alguns desses julgados limitam a sua fundamentação
a afirmações genéricas e abstratas, sem contato com a realidade específica
do caso em análise, como nessa passagem do acórdão da Apelação Civil Nº
2006.001433-7, em que se afirma que “[...] faz-se relevante sopesar os dois bens
juridicamente tutelados, no caso, a liberdade de imprensa e a inviolabilidade
da intimidade, cabendo a imposição do dever de indenizar na hipótese de o
último ser indevidamente atingido. [...]”71.
Porém, em muitas decisões analisadas foi possível encontrar um padrão
argumentativo capaz de ao menos orientar a comunidade jurídica sobre os
contornos que a dogmática da liberdade de expressão e imprensa tem hoje.
Há uma supervalorização da “forma e da linguagem” utilizada no momento
de veiculação da notícia dos acórdãos do tribunal estadual, haja vista que esses
fatores eram sempre determinantes para a resolução do mérito da causa.
Isso fica claro quando analisamos os requisitos para uma matéria
jornalística legal. A veracidade dos fatos narrados, como requisito objetivo,
na verdade pode significar a verossimilhança da narrativa, o que não deixa
de ser um elemento objetivo. Assim também a necessidade de oitiva da parte
interessada, o que deve ser, inclusive exigência ética do próprio jornalismo.
história e as teorias jurídicas existentes” inHOLMES JR., Oliver Wendell.The Common Law.
New York: Dover, 1991. p.1
71 BRASIL, Apelação Cível nº 2006.001433-7. Desembargador Presidente/Relator Estácio
Luiz Gama de Lima. Julgamento: 4 de novembro de 2010.

89
Porém, a disposição não sensacionalista do texto e a existência de interesse
público ou social na veiculação da matéria são critérios excessivamente
subjetivos, que podem levar a uma relativização do direito à liberdade de
expressão.
Evidentemente, o tribunal alagoano buscou se utilizar, em todos os
acórdãos analisados, de precedentes do próprio tribunal, de tribunais de outras
regiões, bem como do STJ e STF. De alguma forma, a comparação com casos
passados deve servir para cobrar coerência e segurança jurídica. Sem essa
observância não se poderia chegar também a um grau maior de justiça nessas
decisões, se diante de casos semelhantes pudesse haver sentenças discrepantes,
o que demonstra a necessidade de promover uma coerência e continuidade
histórica do direito.
Por fim, a conclusão mais importante é o limite final para a
relativização da liberdade de expressão, encontrado na jurisprudência do STF,
qual seja, a proibição de censura prévia. Essa importante caracterização do
direito fundamental – notadamente em se tratando da leve restrição contida
na obrigatoriedade do diploma para exercer a profissão de jornalista – é um
importante indicativo de que a liberdade de expressão e imprensa é, na tradição
do judiciário brasileiro, um valor inalienável.

90
LITERALIDADE COMO TRABALHO SOCIAL:
a decisão judicial como constructo do direito da sociedade

Artur Stamford da Silva 1

Introdução

Literalidade está vinculada à escola da exegese por se pensar literalidade


com sentido do que está lá dado naturalmente nas palavras presentes em
textos legislativos e, também, relativa ao silogismo lógico formal. Devido à
literalidade: “texto claro dispensa interpretação”.
Desde a virada linguística não se fala em dado-dado, em coisa em
si, em objeto de interpretação. O desejo de negar toda ontologia levou à
invisibilidade da ontologização da linguagem. Transformada em objeto, a
linguagem evidenciava o quanto é impossível estabelecer a essência de algo,
a coisa em si, todavia a busca do conhecer a linguagem é sua ontologização.
Explicar a linguagem, o processo linguístico, a relação entre o objeto e a
palavra (o nome) se tornaram os desafios da filosofia e também da explicação
científica. Avançando a aposta no conhecer e compreender a linguagem,
caímos em ontologias como a ontologia da linguagem e na ontologia do
contexto. Voltamos, portanto, a depositar confiança no método, na técnica da
interpretação.
Sendo assim, sugerimos que a hermenêutica comporta, pelo menos,
duas perspectivas: uma epistemológica, quando hermenêutica é trabalhada
como métodos e técnicas de decisão; a outra gnoseológica, como processo
comunicativo.
Sendo método, a hermenêutica surge como alternativa ao método
explicativo de ciências como a física, a biologia, a química. No período em que

1 Professor Associado da UFPE, Faculdade de Direito do Recife, Centro de Ciências Jurídicas.


Professor dos Programas de Pós-graduação em Direito (PPGD); em Inovação Terapêutica
(PPGIT) e em Direitos Humanos (PPGDH), todos da UFPE. Vice-Presidente da ABraSD
(Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito). Coordenador do PPGDH-
UFPE. Diretor de Inovação da UFPE.

91
a razão substitui a fé dando lugar à formação das ciências, os seres humanos
se ocuparam em estabelecer uma identidade ao conhecimento científico, o
que significa estabelecer critérios ao que é esse saber. Esses esforços ficaram
conhecidos como modernidade e processo de secularização. Acontece que
a forma de experimento aplicada para explicar fenômenos da natureza não
servem para explicar os fenômenos sociais, ou seja, a produção de leis como a
lei da gravidade, a fórmula de cálculo da velocidade pela divisão da distância
pelo tempo (Δv = Δs/Δt) são fruto de observações e explicações da natureza,
leis para comportamento social não são passíveis de equacionamento preciso
e universal. Explicar a vida em sociedade, explicar como é possível vivermos
em sociedade não é possível aplicando as técnicas de pesquisas pautadas por
observações em laboratórios (experimentos voltados a observar por repetição
e produzir as CNTP = condições normais de temperatura e pressão).
Ainda que tenhamos vivido tentativas de elaboração de leis sociais
à semelhança do procedimento da física, a exemplo do positivismo de
Augusto Comte, com sua ideia de física social, bem como a sociologia de
Emile Durkheim, acabamos por reconhecer que a elaboração de explicações
da vida em sociedade não é possível nos mesmos moldes dos procedimentos
das explicações científicas utilizadas pela física. É o que levou Max Weber a
defender a hermenêutica como método das ciências sociais. Passamos a falar
em sociologia compreensiva, quando então, para explicar a vida em sociedade,
é preciso desenvolver uma compreensão do social, não apenas uma explicação
do social2 .
Ainda que não oposta, mas distinta da perspectiva epistemológica,
na hermenêutica como processo cognitivo, processo comunicativo, ouros
elementos têm lugar. Não se ocupa exclusivamente com os critérios à
explicação científica do social, mas também com a compreensão da vida em
sociedade. Distinguir explicar e compreender, portanto ciência natural de
ciência humana, quando interpretar é “um caso particular de compreensão”3,
teve lugar para que uma leitura do social não se restringisse à formulação
de leis sociais, leis do convívio social. Interpretar, portanto, um fenômeno

2 Sobre o tema, ver: DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas: tomo 1:
positivismo e hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2004.
3 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 85.

92
natural não se confunde com o interpretar um fenômeno social. Aqui não
se trata de uma questão metodológica, mas gnosiológica mesmo, ou seja,
cognitiva.
Essa dicotomia, tão pouco, resolve o problema da diversidade de
decisões jurídicas quando se trata de casos semelhantes e aplicação de leis.
Recorrer à analogia para explicar que a semelhança já é interpretação, portanto
passível de dar lugar a decisões diferentes é insuficiente porque interpretar
não é uma decisão plenamente subjetiva. Noutras palavras, interpretar não é
um ato de vontade plenamente subjetivo tanto quanto não é objeto. Sair da
dicotomia objetividade/subjetividade para explicar a decisão judicial é um de
nossos objetivos nesse texto.
As explicações da decisão jurídica alertas aos aspectos linguísticos,
no debate jurídico, ainda reduzem “texto” a documentos escritos, legislação,
doutrina, jurisprudência, peças processuais, e concluem que – sendo a
linguagem vaga e ambígua - o juiz tem poder para julgar como quer, portanto,
a decisão jurídica é arbitrária. Isso traz ao debate o limite à interpretação. O
desafio é como explicar que há limite sem recorrer à causalidade, sem cair na
inocência de frases de efeito como: “o juiz primeiro julga e só depois escolhe
uma norma jurídica para legitimar sua decisão”.
É que não atribuímos à vagueza e à ambiguidade “o ser” causal da
pluralidade de decisões, principalmente por não reconhecermos “razão
suficiente” para que a decisão jurídica não tenha limite. Insistir em razão
suficiente é um reducionismo causal que não faz mais que gerar paradoxos,
os quais reduzem a atividade do observador à escolha por um dos lados
do paradoxo. Isso sim, é o que assistimos no embate, por exemplo, entre
estruturalismo e dialogismo4 . A compreensão da linguagem não é possível em
um nem no outro lado. A dicotomia sujeito assujeitado e sujeito enunciador,
por exemplo, é um paradoxo porque o sujeito é, ao mesmo tempo, produto e
produtor da língua. A aparência de verdade é a mesma para ambas as tentativas
de explicação, insistir que o assujeitamento ou enunciação é suficiente para
uma explicação da pluralidade de leituras corretas e dos limites à interpretação
é insistir numa aparência.

4 Idem ibidem, p. 85 e ss..

93
No âmbito jurídico o debate não foge às questões acima, nem mesmo
para aqueles que acreditam ser o direito exclusivamente as normas jurídicas
estatais, como os legalistas e os formalistas. Ainda que não um normativista
com Kelsen. Afirmar que hermenêutica jurídica é interpretação não basta.
Interpretação de quê? A interpretação do texto da lei? Outra, ao interpretar
o jurista se limita a “declarar” e a “descrever” o texto da lei? Respostas a estas
questões requerem admitir hermenêutica como espaço de estudo, pesquisa,
compreensão, explicação e reflexão sobre a decisão jurídica. Sendo assim,
hermenêutica é o estudo dos métodos aplicados pelos juristas para tomar uma
decisão, bem como pesquisa sobre os discursos presentes na decisão jurídica.
Assim, damos lugar à teoria sociocognitiva da compreensão como inferência
de Marcuschi.
Sendo uma petição judicial decisão jurídica tanto quanto o é uma
sentença, um acórdão, quando um advogado se dedica a elaborar uma petição,
acaso ele se limita a dizer o que a lei já diz, o advogado é quem descreve o que
está num texto legislativo? Diga-se o mesmo sobre o promotor, o procurador,
o delegado, o magistrado.
Hermenêutica e decisão jurídica não se esgota no estudo de métodos
de interpretação justamente porque interpretar é proceder leitura de algo,
ocorre que esse algo não se esgota a um texto legislativo. As decisões tomadas
quando da elaboração do que é relevante para constar numa petição, numa
sentença, num acórdão não se limitam à descrição de textos de leis (de normas
jurídicas).
Tomar a decisão jurídica como tema implica trabalhar simultaneamente
questões jurídicas, sociológicas, linguísticas etc.., pois uma explicação da
decisão jurídica não pode ignorar os diversos aspectos presentes no processo
decisório. Por isso iniciamos localizando mitos sobre a ideia de que direito é
texto. Aceitar que direito é texto não implica reduzir “texto” a documentos, à
legislação, à doutrina e à jurisprudência. é certo que o magistrado tem poder
para julgar, mas será esse poder ilimitado? Uma decisão jurídica é, portanto,
arbitrária? Não há limite ao poder de interpretação? Será que o juiz primeiro
julga e só depois escolhe uma norma jurídica para legitimar sua decisão?
Frases como essas têm lugar nos casos de ausência de informações, como é

94
típico nos desesperos dos futurólogos (aqueles que desejam prever decisões
jurídicas) quando erram seus prognósticos e afirmam: “não há limite no poder
de decisão do juiz porque não é possível saber o que é justiça”.
Tem lugar o observador. Reduzir o papel do observador à escolha por
uma das correntes explicativas é transformar ciência em religião, porquanto
resta ao cientista adorar autores, denigrir a imagem dos opositores, defender
visões, produzir mais e mais argumentos em defesa de sua facção. Assim,
estruturalistas não dialogam com dialógicos porque têm razão suficiente para
se enxergar impondo-se como tábua de salvação.
Ocorre que a insuficiência da causalidade não implica sua eliminação,
mas sim um reconhecimento dessa insuficiência. Constatar a impossibilidade
de se conhecer ou mesmo de se verificar a origem que levou um julgador a
esta e não àquela decisão, não passa de um reconhecimento da insuficiência da
causalidade para explicar a decisão jurídica.
Como não sou pregador e não quero ficar paralisado ante os paradoxos,
não ocuparei o leitor com modelos decisórios ao como o juiz deve julgar nem
com modelos epistemológicos ao como o pesquisador deve observar. Apenas
proponho que, diante de dicotomias, enxerguemos saídas aos paradoxos.
Justamente por isso, volto a afirmar, para pesquisar a produção de sentido
do direito da sociedade partindo da decisão jurídica a teoria sociocognitiva da
compreensão como inferência de Marcuschi é uma alternativa extremamente
frutífera. Essa escolha se deve a este aporte teórico não se ocupar em apresentar
mais e mais argumentos em defesa do estruturalismo nem do dialogismo, nem
oferecer argumentos à superação de um deles e nem se propor a juntar esses
dois lados do paradoxo da teoria da linguagem. A teoria sociocognitiva da
compreensão como inferência apresenta-se como alternativa justamente por
não se permitir causalidades, como veremos.
Não espere, leitor, encontrar o caminho metodológico de interpretação
do direito, muito menos novos argumentos em defesa de algum modelo
já proposto. Não nos ocupamos em defender se dada decisão foi justa ou
injusta, correta ou incorreta nem pretendemos desenvolver uma explicação
política, que examinar relações de poder (ideologias) ou mesmo explicações
sociológicas, pois não investigamos as consequências sociais das atuações dos

95
tribunais brasileiros. Também não nos ocupamos em identificar causas das
decisões jurídicas tomadas, pois não pesquisamos a comunidade de intérpretes
ou as funções e atividades realizadas pelas profissões jurídicas.

1. Concepções de leitura e decisão jurídica

Por que ideias consideradas históricas para a linguística são tratadas


como “a maior novidade” para juristas? Assim é porque da afirmação “direito é
texto” já se conclui que não há limite ao poder de decisão por ser possível uma
infinidade de leituras simultaneamente corretas, afinal, a linguagem é vaga e
ambígua.
Ao não tematizar o que é texto para se chegar a conclusões absurdas
como as acima, afirma-se que, porque direito é texto, porque as palavras são
vagas e ambíguas, não é possível conhecer o que se está a comunicar. Há um
abismo gnosiológico, à versão kantiana, que explica tudo isso. Numa frase:
porque direito é texto, o poder de decisão do magistrado (juiz, desembargador
ou ministro) é ilimitado. Consideramos essas afirmações resultante do
desconhecimento das consequências da leitura interacionista da comunicação,
interativismo, incluindo-se aí da literalidade como trabalho social.
Para uma compreensão da decisão jurídica, portanto, usamos o
interacionismo, logo, a compreensão como trabalho social. Assim fazemos por
considerar que esse aporte teórico permite uma explicação da decisão jurídica,
uma resposta ao porque, sendo a legislação um texto, há decisões divergentes
e, até mesmo, opostas. Mais, a convivência dentre decisões contrárias, ou
meramente contraditórias, não pode ser explicada simplesmente porque a
linguagem é vaga e ambígua nem porque não há limite à interpretação. É o que
temos quando a concepção de leitura não mais tem o foco no autor nem no
texto, mas na interação autor-texto-leitor5 .
Quando o foco é no autor, diz-se a decisão jurídica é limitada pela
vontade do legislador (teoria subjetiva da interpretação jurídica) ou que não
há limite por não ser possível conhecer essa vontade; quando o foco é no texto
(teoria objetiva da interpretação jurídica), na vontade da lei, há limite porque

5 KOCH, I. e ELIAS, V. Ler e compreender. São Paulo: Contexto, 2006, p. 9-13.

96
há legislação ou, não há limite, pois não é possível conhecer o significado do
que foi enunciado ou porque é impossível limitar a capacidade de criatividade
interpretativa uma vez que a linguagem é vaga e ambígua. Acontece que
as respostas dessas duas alternativas historicamente vivenciadas pela
hermenêutica jurídica são insuficientes para explicar a decisão jurídica. O que
não ocorre com a explicação a partir do foco na interação. É o que trabalhamos
apresentando as concepções de leitura constantes no texto de Ingendor Koch
e Vanda Elias (Leitura, texto e sentido), do livro Ler e compreender, do qual
formulamos o seguinte quadro:

FOCO Língua Sujeito Texto Leitor


Capta a mente
Autor Representação Psicológico Produto Lógico
do autor
Texto Estrutura Assujeitado Codificação Decodifica
Autor/
Atores
texto/ Interação Dialógico Ativo
construtores
leitor

Como o livro de Koch e Elias está direcionado à linguística, exploramos


esse quadro para, então, promovendo sua passagem ao âmbito jurídico.
Inicialmente identificamos três momentos comunicativos relativos ao
direito: o momento comunicacional político, no qual ocorre a comunicação
entre a sociedade e a legislação, como na teoria da representatividade política,
que tem o voto como escolha dos responsáveis pela formulação das leis da
sociedade. Ao votar, portanto, dá-se a comunicação social entre sociedade
e legislação, portanto todas as consequências dessa comunicação, tal como
a obediência à legislação significar respeito pelas normas da sociedade.
O segundo é o momento comunicacional político-jurídico, no qual se
dá a comunicação entre o poder legislativo e o poder judicial, quando a
norma jurídica legislada serve de parâmetro à decisão judicial. Neste ponto
evidenciamos que todos os integrantes da comunidade jurídica participam
dessa comunicação, pois advogados, promotores, procuradores, delegados,
magistrados (juízes, desembargadores e ministros) tomam decisões jurídicas.

97
É que a escolha do que escrever numa petição, por exemplo, assim como a
escolha do que fazer constar numa sentença, num voto, esses atores jurídicos
(integrantes da comunidade jurídica) comunicam o direito da sociedade.
Por fim, referimo-nos ao momento comunicacional jurídico, no qual dá-se
a comunicação entre o judiciário e a sociedade, uma vez que uma decisão
judicial tem que ser obedecida, independente de ser considerada justa ou não,
por quem a ela diretamente atrelado.
Ainda que extremamente simplista, essa exposição é suficiente para
evidenciar a complexidade da temática. Passemos à relação entre as concepções
de leitura e a decisão jurídica. A concepção de leitura é análoga à concepção
de decisão. Leitura não se reduz a interpretação de textos escritos ou falados,
pois também compõem o termo texto, gestos, modo de olhar, tom de voz,
forma de se vestir, corte de cabelo e tudo o mais que integra uma comunicação.
Mais, texto não se reduz a algo à espera de ser codificado por um emissor e
decodificado pelo receptor, o texto está em constante produção e reprodução,
não é um dado nem predeterminado6 .
Tomada a hermenêutica como estudo da decisão, transpomos a
terminologia empregada no texto de por uma terminologia jurídica. Assim,
leitura é análoga à tomada de decisão; autor é legislador ou julgador, a depender
do momento comunicativo do direito da sociedade; o termo língua corresponde
ao direito, assim com há regras gramaticais e regras da sociedade, no direito,
há a legislação e as normas socialmente vividas numa sociedade; sujeito é um
ator jurídico; texto, norma jurídica; finalmente, leitor é o decididor, advogado,
juiz, procurador, promotor, delegado, bem como a sociedade.
Assim, a concepção de leitura que tem por foco o autor, considera
a língua uma representação mental desse autor, portanto os sujeitos em
comunicação são pensados como mentes em comunicação, já o texto é o
produto lógico resultante das relações mentais e ao leitor, nesse processo,

6 DUCROT, Oswald. El decir y lo dicho. Barcelona: Paidós, 1986; FAIRCLOUGH, Norman.


Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001; FARACO, Carlos Alberto.
Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições,
2003, p. 60; SINHÁ, Chris.. Culture, Language and the Emergence of Subjectivity. In: Culture
& Psychology, London/ Thousand Oaks/ CA and New Delhi, SAGE, Vol. 6, no. 2, 2000, p.
197–207.

98
resta decodificador a mente do autor7 . Passando essas ideias aos processos
de comunicação do direito da sociedade: o julgador é o leitor no momento
comunicacional político-jurídico, porém autor no momento comunicacional
jurídico. Por exemplo, ao juiz cabe captar a mente do legislador, bem como
é quem comunica (autor) o direito em sua sentença, na qual expressa sua
concepção mental referente ao caso sob seu julgamento. Na literatura
hermenêutica jurídica, temos a concepção exegeta do direito, para a qual lei
clara não requer interpretação, pois esta só tem lugar caso, por descuido, o
legislador tenha produzido uma lei falha, porque não clara; neste caso, ao leitor
cabe conhecer a vontade do legislador, ou seja, interpretar é conhecer a vontade
do legislador. Conhecer a mente do legislador não implica que o leitor produz
sentido, ele apenas reproduz a mente do legislador. Dessa forma, um juiz, por
exemplo, está limitado a declarar a vontade do legislador. Ao juiz cabe deduzir
(subsumir) dos fatos a norma a ser aplicada, ele não a interpreta, apenas a aplica
segundo a vontade do legislador, ou seja, declara como o legislador gostaria
que o caso jurídico fosse resolvido. Essa é a teoria subjetivista da interpretação
do direito, para a qual interpretar é captar a vontade do legislador (perspectiva
mentalista da comunicação, como na fenomenologia), nela o julgador não
tem qualquer responsabilidade por seu julgamento, pois, como leitor, ele não
passa de “vítima” da vontade do legislador, porquanto, ao julgar, está limitado
a declarar uma vontade que não é a sua, mas do legislador. A decisão jurídica
é realização da justiça substantiva porque declara o conteúdo (a substância) da
vontade do legislador. Temos, portanto, o seguinte quadro:

FOCO Língua Sujeito Texto Leitor


Capta a mente
Autor Representação Psicológico Produto lógico
do autor
Vontade do Capta a vontade
Legislador Legislação Subsunção
legislador legislador

7 KOCH, I. e ELIAS, V. Ler e compreender. São Paulo: Contexto, 2006, p. 9-10.

99
A insuficiência explicativa do foco no autor dá lugar à concepção de
leitura com foco no texto 8, como no estruturalismo.
Não nos dedicamos a esmiuçar o estruturalismo, porém
contextualizamos seu lugar na depressão do pós-segunda guerra mundial, com
a substituição o mentalismo, da explicação fenomenológica pela estrutura;
quando, então, não se credita qualquer capacidade de consciência social
ao ser humano como forma de explicação da vida em sociedade; quando a
“linguística desempenha a função de ciência-piloto”9 . Neste período, duvida-
se da racionalidade e se aposta na estrutura social, substituímos o indivíduo por
um ente coletivo, autônomo, independente do coletivo. A vida em sociedade é
possível por produzir organizações, as quais, integram o sistema social e dirigem
a vida em sociedade. Com isso temos o assujeitamento, quando sujeitos são
considerados pré-determinados pela estrutura, seja estrutura social, estrutura
das organizações, estrutura linguística. Não mais somos vítimas da vontade
de um imperador, de um legislador, mas sim vítimas da estrutura. No caso
da linguagem, a língua se produz e reproduz independente de seus usuários.
Nenhum indivíduo cria ou criou um idioma, mas sim a comunidade que o
usa para se comunicar. Idioma é, pois, o sistema de linguagem. Essa mesma
explicação é transportada ao direito, agra sistema jurídico.
Passando as ideias da concepção de leitura com foco no texto à
hermenêutica jurídica, temos a substituição da vontade do legislador pela
vontade da lei, do que resulta a subjetividade do legislador ser alterada pela
objetividade do texto legislativo (do texto da norma jurídica). Temos a teoria
objetiva da interpretação do direito, para a qual direito é um sistema de códigos
jurídicos, a ser decodificado pelo leitor (pelo aplicador do sistema de normas
jurídicas). Ao doutrinador do direito cabe esclarecer qual o conteúdo da
legislação, do texto da norma jurídica, do que resulta a “criação” dos institutos
jurídicos. A objetividade do direito está no conteúdo do que, juridicamente,
se tem por: sujeito de direito, família, propriedade, bem jurídico, constituição,
leis, norma jurídica, pena, crime etc...
Assim, as ideias da concepção de leitura focada no texto permite

8 Idem ibidem, p. 10.


9 DOSSE, François. História do estruturalismo (vol. 1). Bauru: EdUSC, 2007, p. 22.

100
uma hermenêutica jurídica voltada à compreensão da norma. A verdade
do direito deixa de estar no legislador e passa ao texto da norma. Com isso,
por exemplo, não mais se fala em prova jurídica como busca pela verdade
real, mas como produtora da verdade processual, não temos mais verdade
fática a ser desvelada, temos sim relatos de fatos integrantes de um processo
judicial (verdade processual). Assim, ao leitor compete escolher que texto
legislativo, que relato fático escrito nas peças processuais, que jurisprudência,
que documentos acostados aos autos são os relevantes à justa solução do caso
jurídico. Temos:

FOCO Língua Sujeito Texto Leitor


Texto Estrutura Assujeitado Codificação Decodificador
Norma Sistema jurídico Juridicizado Norma jurídica Decodificador

Não demora a desconfiança de a estrutura ser assim, autônoma, tão


independente do poder, do sujeito, de ela ser assim tão assujeitada. Com isso
ideias como “a lei é igual para todos”, já que o texto da norma é o mesmo para
todos, passam a ser revisitadas. Revisitadas principalmente por movimentos
sociais que não vivem nada de igualdade jurídica, ainda que tenham direitos
escritos. Desconfiamos do quanto o texto, por si só, limita um leitor em sua
leitura. A ideologia do leitor conduz sua leitura, tanto quanto a ideologia
do julgador influencia sua escolha pelo que do texto é declarado relevante.
A interpretação, como revelação da verdade presente numa norma jurídica
interpretada em vista ao caso a ser decidido, não é explicada pela concepção
de leitura com foco no texto. Talvez isso se deva pela manutenção da
confiança na metodologia de interpretação, ou seja, a interpretação é uma
questão de competência no uso dos métodos de interpretação. Assim como
a competência linguística está nos que dominam as regras gramaticais e bom
leitor é o que fazer a leitura correta por dominar as regras gramaticais; tomar
uma decisão justa é uma questão de dominar os métodos de interpretação
da norma jurídica. Quem tem melhor competência técnica no uso do jogo
decisório, necessariamente tomará a decisão correta. Correta é a decisão
justa, justa porque respeitados os procedimentos decisórios, as regras do jogo.

101
Uma decisão injusta, portanto, é uma questão de má formação intelectual do
julgador. O problema da ética é afastado da explicação da decisão jurídica.
Ao julgador, credita-se competência e honestidade em sua tomada de decisão.
Sempre que um julgador estiver diante de mais de uma leitura possível, mais
de uma decisão correta, evidente ele optará pela melhor decisão e essa será a
decisão justa. A responsabilidade decisória não é uma questão ética, mas sim
e domínio tecnológico, competência no manuseio do instrumental sistêmico
das regras de interpretação.
Acontece que o pós guerra, assim como deu lugar ao estruturalismo,
paradoxalmente, também trouxe o debate pela substituição da forma pelo
conteúdo. Reclama-se conteúdo, não forma ao Estado de Direito. Direito não
se reduz a uma questão de forma, mas de conteúdo. Trata-se do paradoxo de
se fixar critérios moldáveis às peculiaridades sociais, ou de casos jurídicos.
Quer-se uma estética mutante. Quer-se regras adaptáveis. Vivemos a criação
de organizações e normas internacionais (Organização das Nações Unidas,
Declaração dos Direitos Humanos etc..), do que resultam reclamos por
mudanças dos direitos locais (estatais). A experiência das mudanças dos
textos das normas jurídicas, com a ampliação dos direitos individuais e sociais,
geraram aumento acelerado de demandas judiciais (casos jurídicos), o que
vem a evidenciar a incapacidade de o sistema jurídico garantir a paz social.
Nesse contexto, a hermenêutica jurídica vive a insuficiência da
concepção focada no texto. Justiça procedimental não é suficiente, ao mesmo
tempo em que não sabemos que justiça substantiva estabelecer, que critérios são
aqueles universalmente aceitáveis para um mundo sem guerra. Promovemos as
guerras pela paz. A decisão jurídica como questão de competência tecnológica
deixa sem explicação a relação direito sociedade, principalmente porque
em toda sociedade a população vive e produz direitos distintos daqueles
prescritos pelo Estado. O foco no autor, assim como o foco no texto não
explicam a decisão jurídica, ainda que tenham algumas propostas de como
essa decisão deveria ser tomada. Assim é porque nenhum dos três momentos
comunicacionais – o político (comunicação sociedade-legislação), o político-
jurídico (comunicação legislação-decisão jurídica), o jurídico (comunicação
decisão-sociedade) - são explicados desde o foco no autor ou foco no texto. O

102
subjetivismo do legislador nem o objetivismo do texto normativo explicam a
convivência de decisões jurídicas contrárias. Se a legislação é uma e a mesma
para todos os leitores, como é possível, num mesmo tempo e lugar, mais de
uma decisão correta?
Uns se conformam com explicações como, já que não é possível
conhecer (o que se passa numa mente nem o conteúdo de um texto), cada um
faz a leitura que quiser. É que a relação entre o ser e o dever ser é intransponível,
assim como é a relação entre a coisa em si e a palavra a ela vinculada, ou seja,
a linguagem é uma representação da realidade, não a própria realidade, por
isso as palavras são vagas e ambíguas, por isso não há leitura errada, mas jogos
de persuasão, convencimento, é, portanto, a decisão jurídica resultado dos
jogos de linguagem da comunidade jurídica, do poder de decisão. Sendo a
linguagem vaga e ambígua, cada leitor faz a leitura que seu arbítrio deseja,
portanto, um juiz, por exemplo, primeiro julga e só depois disso é que escolhe
uma norma jurídica para citar como fundamento da decisão tomada. Assim, o
sistema jurídico funciona como legitimador da arbitrariedade decisória.
Uma alternativa a este conformismo explicativo é a concepção de leitura
com foco na interação10 . Nessa perspectiva, um pressuposto é justamente que
não é possível não comunicar. Aqui não cabe mais dicotomias como quem tem
razão, o autor ou o leitor? Quem tem mais poder, o legislador ou o julgador?
Nesta concepção de leitura, a língua (o direito) resulta da interação entre o
autor, o texto e o leitor, todos esses sujeitos responsáveis pela produção textual
(da decisão jurídica). Temos o seguinte quadro:

FOCO Língua Sujeito Texto Leitor


Atores
Autor/Texto/Leitor Interação Dialógico Ativo
construtores
direito da Atores
Comunicação Dialógico Ativo
sociedade construtores

10 KOCH, I. e ELIAS, V.. Ler e compreender. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto,
2006, p. 10-11.

103
Dessa concepção, é possível explicar a convivência entre decisões
jurídicas opostas num mesmo tempo e lugar, porque texto não é algo que “está
lá”, a ser decodificado, pois leitura “é uma atividade de produção de sentido”,
“é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e
interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o
assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc..”11 , assim, o
leitor não lê o que quer num texto, pois o sentido não está nele (leitor), mas na
interação autor-texto-leitor12 . Ao apresentar o foco na interação, Koch recorre
ao pensamento de Mikhail Bakhtin. Um ponto que me ocupo de esclarecer é
que pensar texto como algo em constante processo de formação, em constante
produção não se confunde com não haver leitura. Sobre o tema, lembramos a
ideia de conclusibilidade, presente em Bakhtin, para quem a alternância entre
os sujeitos em diálogo emoldura o enunciado e produz conclusibilidade13.
O que não se reconhece é esgotamento do debate, o que não há é “inteireza
acabada do enunciado”, mas sim responsividade, continuidade dialógica na
produção de sentido. A questão é que conclusibilidade não é acabamento (fim,
término, extinção) do que se enuncia, mas manutenção do dialogismo, pois
é justamente devido à conclusibilidade que se dá a continuidade recursiva
dentre enunciados. Assim não fosse, não haveria diálogo, mas monólogo. O
que ocorre é que “oração como unidade da língua, à semelhança da palavra,
não tem autor. Ela é de ninguém”14, não há, portanto, texto adâmico15, aquele
do qual se originou a linguagem.
Passando essa concepção à decisão jurídica, não cabe manter o debate
de se julgador decide arbitrariamente, pois a decisão, assim como o resultado
de uma leitura, é construção dialógica da interação comunicativa dentre os
atores e os textos que compuseram os debates do caso jurídico. Isso não nos
devolve à pretensão de prever a decisão que um juiz irá tomar, porém nos
permite afirmar que essa imprevisibilidade não se dá porque não há limites à
decisão, mas por impossibilidade de se antecipar como será a interação autor-

11 Idem ibidem, p. 12.


12 Idem ibidem,, p. 21.
13 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, [1979] 2003,
p. 274.
14 Idem ibidem, p.288-289.
15 Idem ibidem, p. 300.

104
texto-leitor durante as comunicações a serem vivenciadas no processo judicial.
O foco na interação possibilita observar a presença de fatores que facilitam e
dificultam a decisão, a colaboração ou desinteresse dos sujeitos na produção
de uma decisão, bem como dificuldades contextuais, fáticas, textuais. Há
sim, situações de simples entendimento, situações em que todos convergem
a uma decisão, assim como há situações em que um ou mais componentes da
interação preferem impedir que se tome uma decisão.
Ao tratar do interacionismo, Marcuschi desenvolve sua teoria
sociointerativa da compreensão como inferência, com veremos, antes, cabe
uma palavras sobre o problema da leitura errada.

2. Teoria sociointerativa da compreensão como inferência de


Marcuschi e a decisão jurídica

Ao apresentar sua concepção linguística, Marcuschi explora o


sociointerativismo da cognição, tal como explorada por Vygotsky16 , do que
escreve: “compreender é uma atividade colaborativa que se dá na interação
entre autor-texto-leitor ou falante-texto-ouvinte”17; “o sentido não está no
leitor, nem no texto, nem no autor, mas se dá como um efeito das relações
entre eles e das atividades desenvolvidas”18. Luiz Antônio Marcuschi também
escreve: “compreender bem um texto não é uma atividade natural nem uma
herança genética; nem uma ação individual isolada do meio e da sociedade
em que se vive. Compreender exige habilidade, interação e trabalho”19 e, ao
desenvolver essa concepção, faz as seguintes afirmações: 1ª) “nunca exercemos
total controle sobre o que o entendimento que nosso enunciado possa vir a
ter”; 2º) “compreender é também um exercício de convivência sociocultural”;
3º) “o leitor não é um sujeito consciente e dono do texto, ele se acha inserido na
realidade social e tem que operar sobre conteúdos e contextos socioculturais”20.
16 MARCUSCHI, Luiz Antônio. Fenômenos da linguagem. Reflexões semânticas e discursivas.
Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, p. 52-75; MARCUSCHI, Luiz Antônio. Processo de compreensão.
Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008, p. 228.
17 Idem, Processo de compreensão. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola, 2008, p. 231.
18 Idem ibidem, p. 241.
19 Idem ibidem, p. 231.
20 Idem ibidem, p. 231.

105
Essas afirmações nos permite observar que, para Marcuschi, a
compreensão é um trabalho social21 por se dar sob a realização de atividade
inferencial, a qual consiste num ato de inserção num conjunto de relações22.
Arrisco, portanto, afirmar que Marcuschi propõe a teoria sociocognitiva da
compreensão como inferência, a qual tem a leitura e a compreensão como
trabalho social.
Esse risco afirmativo se pauta por localizarmos em seus textos diversas
ideias sobre a inferência com produto da interação comunicativa. Vejamos as
seguintes passagens: citando a perspectiva interacional de sentido literal (SL)
de Ariel, e a ideia de literalidade como hipótese da saliência gradual (HSG), de
Giora, Marcuschi conclui que esse debate traz de volta a questão do “status da
inferência nos processos linguísticos”23. Citando Tomasello, Marcuschi escreve
que o ser humano se distingue dos outros animais por ele entender os outros seres
humanos como seres intencionais24. Citando Brandom, ele admite que “todas
as práticas que envolvem algum tipo de raciocínio são práticas discursivas e
inferenciais”25. Citando Kleiman, Marcuschi defende que compreender é inferir,
sendo a língua uma atividade sempre interativa, “o processo de compreensão
se dá como uma construção coletiva. Ainda veremos que isso será matizado
e diversificado nas várias teorias inferenciais. Pois cabe perguntar de onde
vêm esses conhecimentos que interagem no processo de compreensão e como
são usados na suposição de partilhamento”26. Por si mesmo, escreve: “sendo
uma atividade de produção de sentidos colaborativa, a compreensão não é um
simples ato de identificação de informações, mas uma construção de sentidos
com base em atividades inferenciais”27 . Por fim, temos ainda que: “a perspectiva

21 Idem, Fenômenos da linguagem. Reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro:


Lucerna, 2007, p. 77; Idem, Processo de compreensão. Produção textual, análise de gêneros e
compreensão. São Paulo: Parábola, 2008, p. 229-279.
22 Idem, Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, p. 88.
23 Idem, Fenômenos da linguagem. Reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2007, p. 96.
24 Idem, Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, p.
83-84.
25 Idem ibidem, p. 88.
26 Idem, Processo de compreensão. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola, 2008, p. 238.
27 Processo de compreensão. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São
Paulo: Parábola, 2008, p. 233.

106
interacionista preocupa-se com os processos de produção de sentido tomando-
os sempre como situados em contextos sócio-historicamente marcados por
atividades de negociação ou por processos inferenciais”28 .
Para compreender a teoria de Marcuschi é necessário não confundir
inferência na perspectiva interacionista, com inferência como operação lógica.
Para evitar essa confusão, basta saber que, do debate sobre sentido literal, deu-
se início a “discussão do papel da interação na produção de sentido”29 e que o
interacionismo a que se refere Marcuschi, como ele mesmo esclarece, não é o
interacionismo social (como o interacionismo simbólico com George Mead e
Herbert Blumer, de cunho fenomenológico e psicosocial), mas a concepção
de “interação como processo de produção de sentidos pela relação entre seres
humanos inter-objetivamente comunicantes30.
Para entender a proposta, iniciemos com o debate sobre a distinção
entre sentido literal (SL) e sentido não literal (SNL), a distinção está baseada
na ideia que o SL é contextualmente invariante enquanto ao SNL é variável.
Todavia, essa distinção não mais se sustenta, pois a compreensão do SL
também envolve considerações da variedade contextual. Isso é o que leva a
autora Ariel a propor o abandono da distinção e a apresentar como alternativa
a noção de “sentido mínimo”, da qual se pode entender o sentido literal. Para
isso, desenvolve três perspectivas de sentido literal como sentido mínimo
(linguística, psicolinguística e interacional). Acontece que, conclui Marcuschi,
essa tentativa confunde mais que explica, pois, na prática, não há como saber
como os falantes acessam as palavras em seus sentidos enquanto buscam
entender o que se diz, como em Raymond Gibbs31 .
Sobre esse tema, Marcuschi explora a ideia de literalidade como
saliência, de Giora, para quem o contexto influencia a compreensão, a
produção de sentido segundo a saliência da literalidade. A autora equaciona o
“modelo pragmático estandar”, a “perspectiva do acesso direto” e a “hipótese
da saliência gradual (HSG)”; sua ideia básica é que quanto mais familiar uma

28 Idem, Da fala para a escrita. Atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2000, p. 34.
29 Idem, Fenômenos da linguagem. Reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2007, p. 94.
30 Idem Ibidem, p. 94.
31 Idem Ibidem, p. 85.

107
expressão, tanto mais rápido se dá a sua compreensão32. É justamente desse
debate que Marcuschi reconhece a concepção interacionista da linguagem
como a mais adequada para se compreender o processo de produção de
sentido, a língua como trabalho social. É o que observamos ao ler: “no caso
das teorias do paradigma da inferência temos uma crença generalizada
na possibilidade da comunicação intersubjetiva e no partilhamento de
conhecimentos como um dado. Acredita-se que a capacidade inferencial é mais
ou menos natural e intuitiva. Seguramente, nem tudo é assim e mais do que
isto, a compreensão, mesmo sendo em boa medida uma atividade inferencial
em que os conhecimentos partilhados vão exercer uma boa dose de influência,
seria ingênuo acreditar que isso se dá de maneira não problemática, pois o
mal entendido é um fato. Um desafio no paradigma inferencial é explicar a
suposição de expectativa de partilhamento de conhecimentos”33.
A teoria de Marcuschi nos possibilita explicar diversas situações da
tomada de decisão jurídica, principalmente por a tomarmos como parte do
processo de produção de sentido do direito da sociedade. Vejamos. Aplicando
a teoria sociocognitiva da compreensão como inferência, não cabe mais pensar
a decisão jurídica como resultado de transmissão de conhecimento, seja em
relação a algo que estaria na mente do legislador ou no texto da norma jurídica.
Assim é porque a decisão jurídica é também processo cognitivo do qual resulta
a produção de sentido produzida na interação que realiza a compreensão.
Em direito é comum ouvir e ler que “a literalidade da lei não
permite outra interpretação”; “basta saber a letra da lei para saber o direito”;
“considerando a letra da lei, não há outra solução possível”.
Não estamos polemizando o quanto a legislação é um texto, antes,
nossas reflexões se ocupam justamente em explicar porque, sendo a legislação
é um texto, há mais de uma decisão correta. Nesse intento, o texto de Marcuschi
é, mais uma vez, esclarecedor quando trabalha a questão do “sentido literal”
como aquele sentido invariante, vericondicional (semântico), mas também
como sentido contextualizado (pragmático). Assim não fosse, a distinção entre
a compreensão do sentido literal como dependente do contexto, enquanto a
32 Idem Ibidem, p. 89.
33 Idem, Processo de compreensão. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola, 2008, p. 238.

108
compreensão do sentido não literal, depende de convenções, ainda teria lugar.
A distinção entre SL e SNL perdeu lugar justamente porque se reconheceu o
quanto a compreensão de qualquer sentido depende de contextos e convenções.
Isso foi o que levou Ariel a propor que a dicotomia fosse abandonada e se
passasse a buscar outros caminhos para explicar a compreensão, a exemplo
da proposta de se pensar o idioma como atividade, não como um sistema de
códigos (instrumento)34 , do que conclui:
1º) ler e compreender são equivalentes;
2º) a compreensão de texto é um processo cognitivo complexo;
3º) compreender envolve atividades inferenciais, por envolver tanto
conhecimentos presentes no texto, como pessoais e do contexto;
4º) conhecimentos prévios exercem influências na compreensão de
um texto;
5º) compreender não equivale a decodificar mensagens35 .
Dessas afirmações, o autor desenvolve as implicações de se tomar o
texto como evento comunicativo e afirma: “texto é uma proposta de sentido
e se acha aberto a várias alternativas de compreensão”, porém “texto não é
uma caixinha de surpresas”36 . Essas ideias nos leva ao paradoxo do sentido:
o texto ao mesmo tempo em que fixa sentido, produz sentido, porquanto a
“textualidade se dá como um sistema equilibrado de relações entre forma e
conteúdo”; assim é porque “a língua é uma atividade interativa” e “o texto é
um evento comunicativo”, o qual não tem a função de transmitir informações,
antes o sentido “apresenta um alto grau de instabilidade e indeterminação
por ser um sistema complexo e com muitas relações que se completam na
atividade enunciativa”37 .
A concepção de contexto de Marcuschi não se confunde com aquela do
senso comum. Partindo de Marcelo Dascal e E. Weizman, para quem o contexto,
no processo de comunicação, funciona como ordenador interpretativo (pistas
34 Idem, Fenômenos da linguagem. Reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2007, p. 79-86; Idem, Processo de compreensão. Produção textual, análise de gêneros
e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008, p. 234-237.
35 Idem, Processo de compreensão. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola, 2008, p. 239.
36 Idem ibidem, p. 242.
37 Idem ibidem, p. 242-243.

109
contextuais empregadas para a interpretação de enunciados), portanto, por
serem opacos, os textos dependem do contexto para serem compreendidos.
Acontece que, como afirma Marcuschi, esse modelo não explica as escolhas
vivenciadas na prática de um processo de compreensão. Por isso, para sua
visão de compreensão como processo, Marcuschi identifica quatro formas
de operacionalização da compreensão: processo estratégico, aquele em que
predomina a escolha pela alternativa mais produtiva, por isso conter mais
inferências pragmáticas, semânticas e cognitivas que lógicas; processo flexível,
no qual não há uma orientação dominante, a compreensão pode ser dar em
qualquer direção; processo interativo, aquele em que a compreensão se produz
conjuntamente, é co-construída; ou como processo inferencial, quando a
produção de sentido se dá mediante a interferência de diversos fatores38 .

3. A literalidade e a decisão jurídica

Aplicando essas quatro operacionalizações do processo de


compreensão, uma primeira observação que fazemos é considerar textos de
legislação, jurisprudência, doutrina, depoimentos e documentos probatórios
como influenciadores da decisão, mas não como fontes de informações a serem
decodificadas, como se fossem portadores predeterminantes de sentido. A
lógica de tal influência não é causal, mas circular reflexiva, tal como concebida
pela cibernética da comunicação, resultante da Macy Conference39. Essa visão
de comunicação está presente no livro Laws of Form, publicado em 1979, de
autoria de George Spencer Brown, bem como na obra Sistemas que observam,
de Heinz von Foerster. Numa frase, a ideia central é que “não é possível fazer
uma indicação sem fazer uma distinção”40 .
Essa observação é fundamental para observar a decisão jurídica como
produto do trabalho social dos juristas, portanto como literalidade no sentido
proposto por Marcuschi. Assim, ao verificarmos que juristas usam muito a
expressão sentido literal com o “sentido de decodificação”, não considerando
38 Idem ibidem, p. 243.
39 A teoria cibernética da comunicação foi desenvolvida durante e após as dez reuniões da
Macy Conference. Ver: http://www.asc-cybernetics.org/foundations/history.htm.
40 KAUFFMAN. Louis H.. Self-reference and recursive forms. Journal Social Biological
Structure. vol. 10, 1987, p. 53-72.

110
a perspectiva de Ariel de sentido literal como sentido mínimo41 ou, como
em Giora, sentido literal como saliência gradual42 , sugerimos a divulgação
da teoria sociocognitiva da compreensão como inferência ao ser falar em
literalidade no direito. Do que teríamos ampliada a observação da tomada de
decisão jurídica, portanto sua compreensão.
Como produção de sentido do direito da sociedade, ou seja, como
produto próprio do direito, não mais como decodificação, nem como
produto do autor ou de leitor, mas produto da interação das vozes presentes
no caso jurídico. Assim, a literalidade é produto simultâneo das vozes das
partes processuais, dos advogados, promotores, procuradores, delegados,
testemunhas, quanto vozes da legislação, da jurisprudência, da doutrina, dos
juízes, desembargadores e ministros, sem esquecer vozes da sociedade, pois
língua é “um processo referencial como atividade criativa”, ou seja, é produto
da compreensão como interação linguística da sociedade43 .
Outra observação é a perda de lugar da explicação da multiplicidade
de decisões jurídicas devido à impossibilidade de se conhecer os significados
das palavras, das expressões jurídicas. Radicalizando o debate, a teoria
sociocognitiva da compreensão como inferência auxilia a compreensão da
decisão jurídica com resultado não da aplicação de legislação nem de arbítrio
do julgador, mas como resultado da compreensão como inferência.
Propomos, portanto, não mais se insistir em explicar a decisão jurídica
desde a concepção de representatividade, afinal texto não contém em si um
código a ser decifrado, bem como a liberdade do livre convencimento do juiz
não é implica inexistência de limite ao seu poder de decisão. Ora, se a produção
de sentido resulta da interação, então a inferência do que considerar relevante
num caso concreto não é uma questão de interesse pessoal, mas sim resultado
das tantas influências simultaneamente presentes na tomada de decisão.

41 Idem, Fenômenos da linguagem. Reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro:


Lucerna, 2007, p. 81; Idem, Processo de compreensão. Produção textual, análise de gêneros e
compreensão. São Paulo: Parábola, 2008, p. 234.
42 Idem, Fenômenos da linguagem. Reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro: Lucerna,
2007, p. 88.
43 Idem, Processo de compreensão. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola, 2008, p. 88.

111
A decisão jurídica, a literalidade do direito, não se reduz a processos
de poder, de arbitrariedade de autores nem de leitores, nem de objetividade
do textos de norma. Basear-se na existência de mal entendidos para defender
que a decisão jurídica é arbitrária seria insistir na ignorância da própria
linguagem, tanto porque mal entendidos e decisões erradas não se confundem
com haver decisão arbitrária quanto que a linguagem não é controlada se não
por linguagem.
Numa frase: a perspectiva da literalidade com trabalho social, como
esperamos ter deixado compreensível, amplifica a capacidade de explicações
da decisão jurídica ao não limitá-las às explicações causais.

112
A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E A PROMOÇÃO
DA CIDADANIA BRASILEIRA

George Sarmento1

Introdução: o despertar do sujeito de direitos

2012 termina com a divulgação de pesquisa encomendada pela


consultoria britânica Economist Intelligence Unit (EIU), que coloca o Brasil no
penúltimo lugar do ranking global de qualidade da educação. O ano começou
com o Relatório da Anistia Internacional que apontou os preocupantes índices
de execuções e torturas praticadas por policiais brasileiros, cujos crimes
permanecem impunes. Entre 176 países investigados, o Brasil ocupa a 69ª
posição no ranking elaborado pela Transparência Internacional no índice de
Percepção da Corrupção em 20122. A violência também é preocupante. A
última pesquisa da Fundação Perseu Abramo/SESC demonstrou que, a cada 5
minutos, 2 mulheres são vítimas de agressões físicas, na maioria das vezes em
sua própria residência. Segundo dados divulgados pelo Grupo Gay da Bahia,
o Brasil é o país mais homofóbico do Planeta, dado o expressivo aumento de
homicídios e agressões decorrentes da condição social das vítimas.
Os dados estatísticos são contundentes: as leis brasileiras não têm
conseguido diminuir os índices de corrupção e violência. Duas constatações
explicam esse fenômeno. De um lado, o Brasil tem se mostrado incapaz de
implantar, de forma eficiente, os direitos sociais previstos na Constituição
Federal. De outro, a defesa social tem fracassado, tanto na repressão como
na prevenção à criminalidade. O que é mais paradoxal é que tudo isso ocorre
no país que foi alçado a 6ª maior economia do mundo no ranking do banco
alemão WestLB. Em outras palavras, somos uma nação rica, mas ostentamos
índices de países com baixo desenvolvimento social.
A cidadania brasileira passa por uma crise sem precedentes, que
1 Professor Associado da UFAL/FDA; Doutor em Direito Público; Pesquisador do Laboratório
de Direitos Humanos/UFAL; Promotor de Justiça – Fazenda Pública Estadual.
2 Pesquisa divulgada em 6 de dezembro de 2012.

113
decorre da decepcionante efetividade dos direitos fundamentais. A principal
consequência disso é a descrença nas instituições democráticas, o retorno ao
individualismo egoístico do “cada um por si”, o sentimento de impotência
diante do abuso de poder e, sobretudo, a falta de ativismo político para
reivindicar o cumprimento dos deveres estatais.
A sociedade civil deposita grandes expectativas no Judiciário, que
tem desenvolvido um discurso concretizador da Constituição e conseguido
expressivos avanços na chamada tutela coletiva. Porém, quase nada foi feito
para despertar o “sujeito de direito” que existe em cada um de nós, ainda
adormecido pela acomodação, conformismo ou ignorância. E isso só é possível
com o fomento à Educação em Direitos Humanos.
Como pesquisador do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL,
coordenei uma enquete sobre o conteúdo programático das disciplinas
ofertadas no ensino fundamental e médio. Queria saber se os alunos
tinham tido algum tipo de atividade pedagógica que estimulasse a leitura,
a compreensão ou o conhecimento dos direitos e garantias previstos em
nossa Constituição Federal. Quase a totalidade dos entrevistados, estudantes
universitários, responderam que não. A temática só começa a ser abordada no
ensino superior, mesmo assim na área das ciências sociais. O ensino brasileiro
está mais voltado para o mercado de trabalho do que para a formação de
cidadãos plenos e comprometidos com a coletividade. Dessa forma, os alunos
ingressam nas universidades completamente despreparados para lutar por suas
prerrogativas individuais e coletivas. E não para por aí. O déficit educacional
também está presente nas corporações militares, na polícia judiciária, nos
meios educacionais e em alguns setores do Ministério Público e do Judiciário.
Por essa razão, o despertar do sujeito de direito passa pela educação
crítica, dialética e comprometida com a valorização da pessoa humana em
todas as suas dimensões. Essa é a missão da Educação em Direitos Humanos:
formar cidadãos ativos e conscientes de seu papel na sociedade.
A Educação em Direitos Humanos é “a prática educativa que se baseia
no reconhecimento, defesa, respeito e promoção dos direitos humanos e que tem
como objeto desenvolver nos indivíduos e nos povos as suas máximas capacidades
como sujeitos de direitos, assegurando-lhes as ferramentas necessárias para

114
fazê-los efetivos3 ”. Trata-se de uma pedagogia que se desenvolve em dois eixos:
1º) a difusão dos direitos fundamentais (liberdades públicas, direitos políticos,
direitos econômicos, sociais e culturais etc..; (2º) a difusão das garantias
constitucionais que possibilitam a efetividade de tais direitos na realidade social
(ações constitucionais, procedimentos administrativos e processuais etc..).
A ONU define EDH como o conjunto de atividades de aprendizagem,
ensino, formação e informação, destinadas a criar uma cultura universal de
direitos humanos com a finalidade de (a) fortalecer o respeito aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais; (b) desenvolver plenamente a
personalidade humana e o sentido da dignidade do ser humano; (c) promover
a compreensão, a tolerância, a igualdade entre gêneros e a amizade entre todas
as nações, povos indígenas e minorias; (d) facilitar a participação efetiva de
todas as pessoas em uma sociedade livre e democrática em que impere o Estado
de Direito; (e) fomentar e manter a paz; (f) promover o desenvolvimento
sustentável centrado nas pessoas e na justiça social4 .
Embora a Educação em Direitos Humanos tenha vocação universal,
devendo abranger a totalidade dos cidadãos, a prioridade brasileira são as
camadas mais pobres da população, historicamente as maiores vítimas do
analfabetismo, da violência policial, do abuso de poder, dos serviços públicos
de péssima qualidade, da injusta distribuição de renda, da exclusão social.
A pedagogia será mais eficiente na medida em que atingir os grupos mais
vulneráveis, sobretudo as minorias obrigadas a conviver com a intolerância e o
preconceito étnico, sexual, religioso ou econômico.

1. Supraestatalização da educação em direitos humanos

A Educação em Direitos Humanos é uma prática recente na tradição


latino-americana. É consequência da queda das ditaduras militares no final da
década de 1970 e do processo de redemocratização dos países da América do

3 MAGENDZO, Abraham. Educación en derechos humanos – un desafío para los docentes


de hoy. Santiago: LOM Ediciones, 2006, p. 23.
4 ONU. Conselho de Direitos Humanos. Projeto de Plano de Ação para a segunda etapa
(2010-2014) do Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos, p. 5. Disponível
em http://www.unesco.org .

115
Sul e Caribe. Teve como grande inspirador o sociólogo e educador brasileiro
Paulo Freire, criador da Pedagogia do Oprimido.
A sua origem está ligada ao trabalho desenvolvido por organizações
não governamentais interessadas em conscientizar as camadas populares
sobre a importância das liberdades fundamentais proclamadas nos tratados
internacionais. Durante os regimes ditatoriais, as entidades concentravam
seus esforços na denuncia das violações aos direitos humanos – assassinatos,
desaparecimentos, despejos forçados, tortura. Com o processo de
democratização, passaram a investir na educação popular. Na década de 1980,
muitas das ações foram apoiadas e financiadas pelo Instituto Interamericano
de Direitos Humanos (IIDH), que – nos anos que se seguiram – exerceu grande
protagonismo no sentido de incorporar o conteúdo de direitos humanos à
educação formal e não formal.
Em 1999, o IIDH, sediado na Costa Rica, decidiu promover ações
articuladas para a implementação da Educação em Direitos Humanos de
forma mais ampla e democrática. A iniciativa, coordenada pelo chileno
Abraham Magendzo, contou com a participação de diversos países, inclusive
o Brasil.Posteriormente, em novembro de 1999, convocou um Seminário
em Lima para discutir o tema com mais profundidade. Na capital peruana,
os pesquisadores debateram exaustivamente os principais problemas e
desafios. Foram estabelecidas diretrizes para as atividades educativas a serem
executadas, em nível regional, a partir de 2000.
A ideia era estimular o caráter transversal dos direitos humanos
nos currículos escolares, espraiando-se por todas as disciplinas mediante
estratégias educacionais dirigidas à formação política dos alunos. A educação
popular reforçaria valores constitucionais como a liberdade, igualdade,
solidariedade, democracia, justiça social, entre outros. Também introduziria
nas salas de aula temas contemporâneos controvertidos: minorias, gênero,
memória, propriedade privada, tortura, partidos políticos, meio ambiente,
patrimônio cultural etc..
Paralelamente, a ONU manifestou grande interesse em promover ações
educativas de grande amplitude visando ao fortalecimento da cidadania. Em
1993, a Declaração de Viena, editada pela Conferência Mundial de Direitos

116
Humanos, estabeleceu que “a educação, a capacitação e a informação pública
em direitos humanos são indispensáveis para estabelecer e promover relações
estáveis e harmoniosas entre as comunidades e para fomentar a formação
mútua, a tolerância e a paz”.
As Nações Unidas fixaram a Década das Nações Unidas para a Educação
em Direitos Humanos no período compreendido entre 1ºde janeiro de 1995 a
31 de dezembro de 2004. Em 10 de dezembro de 2004, A Assembleia Geral das
Nações Unidas criou o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos,
cuja missão foi a de contribuir em escala mundial para o “desenvolvimento
de uma cultura em direitos humanos”. A primeira etapa daria prioridade à
educação primária e secundária; a segunda etapa concentraria seus esforços
na educação universitária.
As atividades previstas no Programa tinham como objetivos centrais:

(a) promover a interdependência, a indivisibilidade e a


universalidade dos direitos humanos, inclusive dos direitos
civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, bem como
o direito ao desenvolvimento;
(b) fomentar o respeito e a valorização das diferenças,
bem como a oposição à discriminação por motivos de raça,
sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra índole,
bem como origem nacional, étnica ou social, condição
física ou mental, ou por outros motivos;
(c) encorajar a análise de problemas crônicos e incipientes
em matéria de direitos humanos, em particular a pobreza, os
conflitos violentos e a discriminação, para encontrar soluções
compatíveis com as normas relativas aos direitos humanos;
(d) atribuir às comunidades e às pessoas os meios
necessários para determinar suas necessidades em matéria
de direitos humanos e assegurar sua satisfação;
(e) inspirar-se nos princípios de direitos humanos
consagrados nos diferentes contextos culturais e levar em
conta os acontecimentos históricos e sociais de cada país;

117
(f) fomentar os conhecimentos sobre instrumentos
e mecanismos para a proteção dos direitos humanos e
a capacidade de aplicá-los nos âmbitos mundial, local,
nacional e regional;
(g) utilizar métodos pedagógicos participativos que
incluam conhecimentos, análises críticas e técnicas para
promover os direitos humanos;
(h) fomentar ambientes de aprendizado e ensino sem
temores nem carências, que estimulem a participação, o
gozo dos direitos humanos e o desenvolvimento pleno da
personalidade/individualidade humana;
(i) ter relevância na vida cotidiana das pessoas,
engajando-as no diálogo sobre maneiras e formas de
transformar os direitos humanos, de expressão abstrata das
normas, na realidade das condições sociais, econômicas,
culturais e políticas5 .

Em 30 de setembro de 2010, o Conselho de Direitos Humanos da


ONU editou um plano de ação para a segunda fase do Programa Mundial de
Educação em Direitos Humanos (2010-2014). Houve significativa ampliação dos
objetivos originais. Além do ensino superior, as ações destinam-se à formação
de funcionários públicos – policiais civis e militares, agentes penitenciários,
professores da rede pública, serventuários de justiça, membros do Ministério
Público e do Poder Judiciário.
Dessa forma, os direitos humanos passam a ser incorporados, ainda
que de forma transversal, ao conteúdo disciplinar de todos os cursos, métodos
de aprendizagem, atividades de ensino, extensão e pesquisa. O mesmo deve
acontecer na formação profissional do magistério e do funcionalismo público,
a fim de vincular as atividades administrativas à observância dos direitos
fundamentais.

5 ONU. Conselho de Direitos Humanos. Projeto de Plano de Ação para a segunda etapa
(2010-2014) do Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos, p. 6. Disponível
em http://www.unesco.org .

118
A orientação das Nações Unidas consiste na ampla difusão dos
direitos e garantias fundamentais a partir de modelos educacionais destinados
à construção da cidadania democrática, baseada na cultura de valores, no
reconhecimento da condição de sujeito de direitos e na dignidade da pessoa
humana.

2. A educação em direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro

A Constituição de 1988 foi o marco normativo da Educação em


Direitos Humanos no Brasil. O país, ainda traumatizado com os anos de
ditadura militar, convocara uma Assembleia Constituinte para redesenhar o
modelo de Estado, agora sob o formato de Estado Constitucional de Direito.
Pela primeira vez em nossa história o texto constitucional positivou de forma
objetiva os direitos sociais como prestações positivas a serem asseguradas
universalmente a todos, mediante políticas públicas, programas sociais, ações
afirmativas. Entre os direitos definidos no art. 6º da CF, a educação ostenta
o primeiro lugar, seguido da saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer,
segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência
aos desamparados.
E não parou por aí. Entre os artigos 205 a 214, a Constituição Federal
disciplina largamente o direito à Educação no Brasil. O texto constitucional
estabelece que ela é um dever do Estado e da família, tendo como linhas
mestras o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
A Educação em Direitos Humanos é um instrumento eficaz para a
promoção da efetividade desse importante direito social, sobretudo no que
concerne à formação para o exercício da cidadania. Tanto é assim que a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelece em seu art. 2º
as mesmas finalidades estatuídas pela Constituição Federal. O atual Programa
Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), lançado em 21 de dezembro de
2009 (Decreto n, 7037)6 , reafirma as finalidades da Educação e Cultura para

6 Em 1996, o Governo Brasileiro criou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-


1), instituído pelo Decreto 1.904/96 (que terminou sendo revogado pelo Decreto n. 4229/02).
O PNHH-2 foi criado em 2002, sob a coordenação Secretaria de Estado de Direitos Humanos,

119
os direitos humanos: formação de nova mentalidade coletiva para o exercício
da solidariedade, respeito às diversidades e tolerância. Nesse sentido, deve
promover a formação do sujeito de direitos, além de combater o preconceito, a
discriminação e violência, requisitos para uma sociedade igualitária, libertária
e justa.
Em 2003, o Governo Federal criou o Comitê Nacional de Educação em
Direitos Humanos (Decreto Ministerial n. 98/2003), formado por especialistas,
membros da sociedade civil, representantes de instituições públicas e privadas,
além de organismos internacionais, cujo desafio era apresentar a primeira
versão do Plano Nacional de Educação e Direitos Humanos (PNEDH). O
documento foi exaustivamente debatido em processo de consulta por cerca de
cinco mil pessoas, de todos os Estados do país. A versão final só foi concluída
em 2006. Após a realização de consulta pública via internet.
A principal ambição do PNEDH consiste em difundir nacionalmente
a cultura dos direitos humanos, mediante a propagação de valores solidários,
cooperativos e de justiça social. Para isso prevê ações concretas nos seguintes
setores: educação básica, educação superior, educação dos profissionais dos
sistemas de justiça e segurança e profissionais dos meios de comunicação.
O PNEDH considera a Educação em Direitos Humanos um processo
sistemático e multimensional, que orienta a formação do sujeito de direitos,
nos seguintes níveis, verbis:

a) apreensão de conhecimentos historicamente


construídos sobre direitos humanos e sua relação com os
contextos internacional, nacional e local;
b) afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que
expressam a cultura em direitos humanos em todos os
espaços da sociedade;
c) formação de uma consciência cidadã capaz de fazer-
se presente nos âmbitos cognitivo, social, ético e político;
d) desenvolvimento de processos metodológicos

Governo Fernando Henrique Cardoso. Ambos foram substituído pelo PNDH-3, ora aplicado
no Brasil.

120
participativos e de construção coletiva, utilizando
linguagem e materiais didáticos contextualizados, e,
e) fortalecimento de práticas individuais e sociais
que gerem ações e instrumentos em favor da promoção,
proteção e defesa dos direitos humanos, assim como a
reparação das violações sofridas7 .

Em síntese, a Educação em Direitos Humanos fundamenta-se na


Constituição Federal, como mecanismo de efetivação do direito fundamental
à educação. Também encontra sustentação na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional e no PNDH-3, que lhe consagrou espaço generoso em
seu texto. As ações pedagógicas gerais estão previstas no Plano Nacional em
Educação em Direitos Humanos. A competência para a sua implementação não
é exclusiva da União Federal, mas envolve também medidas a serem adotadas
por todos os entes federativos, organizações não governamentais, instituições
públicas e privadas. Por fim, a iniciativas possuem ampla abrangência,
atingindo os mais diversos seguimentos da sociedade civil, no âmbito da
educação formal, não formal, profissionalizante, formação de funcionários
públicos, profissionais da imprensa e formadores de opinião.

3. Os desafios da educação em direitos humanos

A Educação em Direitos humanos é a ferramenta mais poderosa para


fortalecer a cidadania, combater o arbítrio, a intolerância e o preconceito. Daí
a necessidade de estratégias para a formação de educadores especializados, isto
é, “pessoas que projetam, desenvolvem, implementam e avaliam atividades em
direitos humanos e programas de ensino em contextos de educação formal,
informal e não formal” (ONU – Plano de Ação – 2ª Fase)”. Essa função não é
privativa de docentes com formação universitária; também pode ser exercida
por ativistas, ONG’s, sindicatos, partidos políticos – enfim, em todos os
setores da sociedade civil comprometidos com a democracia e com os direitos
fundamentais.
7 Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos/Comitê Nacional de Educação em
Direitos Humanos (versão em língua espanhola). Brasília: Secretaria Especial de Direitos
Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2008, p. 25.

121
A pauta é vastíssima. Sua abordagem é essencialmente multidisciplinar,
interdisciplinar e multidimensional. Implica o debate sobre o conhecimento
e compreensão dos direitos humanos: universalidade, indivisibilidade,
interdependência e mecanismos nacionais e internacionais de proteção.
Abrange ainda reflexões sobre temas cotidianos como o assedio moral,
pedofilia, homofobia, tráfico de entorpecentes, pobreza, desigualdade social,
reforma agrária, formatação da família, trabalho infantil, doenças sexualmente
transmissíveis e violência doméstica.
Os principais desafios da Educação em Direitos Humanos são: (a) a
construção do sujeito de direitos; (b) promoção do processo de empoderamento;
(c) memória: “educar para o nunca mais” e (d) socialização dos valores e
princípios constitucionais.
A concepção de sujeito de direitos tem suas origens no positivismo e
traduz a capacidade inerente a toda pessoa humana de ser titular da “vantagem”
assegurada pela norma jurídica. Ao nascerem com vida, todos os seres humanos
assumem essa condição, podendo exigir do Estado e de particulares uma
infinidade de pretensões, ações, exceções. Os direitos humanos são universais
e beneficiam aos sujeitos de direitos independentemente de nacionalidade,
idade, raça, convicções religiosas, filosóficas ou políticas.
O problema é que nem todos têm consciência disso. As desigualdades
sociais, a educação deficitária, a exclusão social, os serviços públicos de baixa
qualidade, a repressão policial, tudo impede o desenvolvimento dos processos
de conscientização popular para a formação de cidadãos participativos e
ciosos de suas prerrogativas constitucionais. Daí porque o grande desafio da
Educação em Direitos Humanos é a formação de sujeitos de direitos. Cabe a ela
promover o “despertar” para a nova realidade, através de ações como conhecer,
promover e defender.
O sujeito de direitos é a pessoa que conhece os principais tratados
internacionais e o catálogo de direitos fundamentais contidos na Constituição
de seu país. Sobretudo os direitos de liberdade (expressão, circulação,
comunicação, religião, devido processo legal...), as garantias processuais
(habeas corpus, mandado de segurança, ação popular, habeas data...), os
direitos sociais, econômicos e culturais (educação, saúde, moradia, segurança,

122
proteção aos necessitados, bens imateriais...) e os direitos de solidariedade (meio
ambiente, patrimônio cultural, consumidor, crianças, adolescentes e idosos).
Estabelece interlocução com instituições democráticas como o Ministério
Público, Procons, Poder Judiciário, Poder Executivo, OAB, Defensoria Pública,
meios de comunicação etc.., conhecendo os procedimentos para encaminhar
representações, abaixo-assinados, denúncias, audiências públicas, mediações.
Também tem o compromisso de promover os direitos humanos em
ampla escala social, colocando seus conhecimentos à disposição da coletividade
a que pertence. Participa ativamente de ações educativas, debates, movimentos
populares, organizações associativas e sindicais. Sua missão consiste, ainda,
em multiplicar os sujeitos de direitos e fortalecer a cidadania, utilizando a
palavra e métodos pedagógicos como principais armas em defesa da dignidade
da pessoa humana. Isto significa que deve estar habilitado para produzir um
discurso jurídico coerente e racional para exigir a correta aplicação das normas
jurídicas asseguradoras de direitos fundamentais.
Há também a dimensão do ativismo. Ele está legitimado para defender
os direitos humanos contra o arbítrio e a opressão. Para Abraham Magendzo,
“o sujeito de direito tem a capacidade de defender e exigir o cumprimento dos
seus direitos e os de terceiros com argumentos fundamentados e informados,
com um discurso assertivo, articulado e racionalmente convincente. Faz uso
do poder da palavra e não da força, porque o seu interesse é a persuasão e não
a submissão8 ”.
Já a promoção do processo de empoderamento exige uma metodologia
voltada para a transformação interior dos sujeitos de direito, levando-os
a, verdadeiramente, assumir a sua condição de cidadãos ativos. Exige uma
pedagogia libertadora, que deve envolver as vítimas de violações aos direitos
humanos, as vozes silenciadas e as expectativas frustradas. Sobretudo
os grupos que historicamente sempre estiveram em condição de grande
vulnerabilidade – mulheres, negros, homossexuais, empregadas domésticas,
trabalhadores rurais, desempregados etc.. O educador popular tem a missão
de despertar as energias represadas dos oprimidos para que assumam o

8 MAGENDZO, Abraham. Educación en derechos humanos – un desafío para los docentes


de hoy. Santiago: LOM Ediciones, 2006, p. 33.

123
papel de protagonistas de suas vidas e participem ativamente das instâncias
de deliberação coletiva. Exige o permanente combate à passividade, ao
conformismo, à baixa autoestima, à indiferença. Aspira a completa e definitiva
emancipação do sujeito de direito. Por essa razão afirma Vera Lucia Candau
que “o empoderamento começa por liberar a possibilidade, o poder, a potência
que cada pessoa tem para que seja sujeito de sua própria vida9 ”. Os cidadãos
são verdadeiramente convocados para assumir a tarefa de tornar exigíveis e
efetivos os direitos humanos, mediante o uso da argumentação e do diálogo10.
A partir daí nascerá o verdadeiro sujeito de direitos.
O processo educacional também deve estar comprometido com
a memória: o educar para o “nunca mais”. Sob essa perspectiva teórica, os
educadores devem insistir na memória de fatos históricos que implicaram
violações aos direitos humanos e na negação da democracia, a exemplo dos
regimes de exceção, da repressão política, das mortes e desaparecimento de
opositores. A estratégia consiste em transmitir às novas gerações a “ética
da atenção”, que permite repudiar os atos cotidianos que reproduzam as
crueldades do passado. A prática do “nunca mais” estabelece o compromisso
com a luta contra a impunidade, a censura, a tortura, o medo e a negação das
liberdades fundamentais.
O constitucionalismo brasileiro tem passado por profundas
transformações desde a promulgação da Constituição de 1988. Entre os
avanços mais expressivos está o reconhecimento da força normativa dos
valores e princípios positivados em seu texto. A dignidade da pessoa humana
foi elevada à condição de metavalor, que se exterioriza axiologicamente através
da igualdade, liberdade e solidariedade. O preâmbulo da Carta também
enumera a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Por outro lado, os direitos fundamentais integram uma ordem de valores e
princípios detentores de aplicabilidade imediata e força vinculante em relação
aos poderes ao Executivo, Legislativo e Judiciário. Além disso, a judicialização

9 CANDAU, Vera Maria. Educação em Direitos Humanos: desafios atuais. João Pessoa:
EDUFPB, p. 404.
10 MAGENDZO, Abraham. Educación en derechos humanos – un desafío para los docentes
de hoy. Santiago: LOM Ediciones, 2006, p. 27.

124
da política deslocou para o Judiciário o debate sobre a implementação das
políticas públicas e da efetividade dos direitos sociais. Nesse contexto, a
socialização dos valores e princípios constitucionais favorecerá nacionalmente a
difusão da cultura em direitos humanos, formando sujeitos de direitos críticos,
conscientes de suas prerrogativas constitucionais e imbuídos na luta pela
efetividade da Constituição.

Para concluir: apreensão e interpretação dos direitos humanos

Em 1975, o jurista alemão Peter Härbele desenvolveu, com muito


sucesso, o paradigma da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição.
A ideia central estava em que a interpretação constitucional não era um
conhecimento público do Direito, uma exclusividade de seus operadores,
monopólio dos tribunais. Ao contrário, todos os cidadãos deveriam ser
convocados para a tarefa. Härbele queria estender a ação interpretativa dos
direitos humanos para todos os setores da sociedade civil, para os cidadãos, para
os sindicatos, para os estudantes, para as organizações não governamentais,
para os grupos vulneráveis. Suas ideias tiveram grande repercussão no
Brasil, influenciando a instituição do amicus curiae11 – etimologicamente,
amigo da Corte, legitimado para a intervenção assistencial em processos de
controle de constitucionalidade, podendo manifestar-se sobre as questões de
direito e contribuir, em nome de setores da sociedade civil, para a solução
da controvérsia, sem assumir a condição de parte da ação. Também sob sua
influência, foram instituídas audiências públicas convocadas pelo STF para
ouvir a opinião pública a respeito de temas controvertidos, como a bioética e a
aplicação de determinados direitos sociais.
Para Härbele, a Constituição reflete um conjunto de valores
fundamentais que têm na dignidade humana a sua principal justificação
Sustenta que o sucesso do paradigma da sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição passa, necessariamente, pela Educação em Direitos Humanos.
Ele ensina que

11 Cf. art. 23, § 1º, da Resolução n. 390/2004 do Conselho da Justiça Federal e Lei n. 9.868/1999,
que regula o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade ( art. 7º, § 2º).

125
o paradigma da sociedade aberta dos intérpretes
constitucionais deveria ser objeto da pedagogia. Em outras
palavras, os direitos humanos já deveriam ser aprendidos
na escola como objetivos da educação, como foi proposto
antes pelas Constituições do Peru e da Guatemala. Na
Argentina, a juventude deveria ser incentivada desde
cedo a participar dos processos de criação e interpretação
do Direito por meio de petições e discussões. Em 1974,
numa conferência em Berlim, me animei a formular
a seguinte hipótese: das escolas dependem a teoria
constitucional que possamos desenvolver no futuro12 .

A Carta de 1988 está impregnada de postulados neoconstitucionalistas


que se irradiam para todos os ramos do Direito. Os direitos fundamentais
estão na centralidade do ordenamento jurídico vinculando e dirigindo
as instituições estatais e a conduta de particulares. O discurso jurídico é
construído a partir de uma retórica baseada em princípios regras e valores
constitucionais, concebida com o intuito de desenvolver hermenêutica
concretizadora dos direitos humanos, sobretudo em casos que versam sobre
o déficit de direitos sociais. Cada vez mais o Judiciário brasileiro tem aplicado
os tratados internacionais de direitos humanos no julgamento de casos
concretos. Este cenário exige maior presença de cidadãos ativos, dispostos a
protagonizar as mudanças por que passa o Estado Constitucional de Direito
no Brasil.
Os cursos jurídicos têm grande responsabilidade na tarefa pedagógica.
Acreditamos que as atividades de ensino, pesquisa e extensão universitária, no
âmbito da graduação e da pós-graduação, devem-se voltar para o despertar
do sujeito de direitos, para a memória e para a socialização dos valores e
princípios constitucionais. Os direitos humanos fundamentais não pode ser
apenas uma disciplina acadêmica, vinculada ao Direito Constitucional. Seu
vasto conteúdo programático deve se capilarizar para as demais disciplinas,
sempre na perspectiva crítica e multidimensional.

12 Consultor Jurídico. Cultura e direito. Entrevista a Peter Härbele a Gustavo Ferreyra, disponível
em http://www.conjur.com.br/2010-fev-13/entrevista-peter-haberle-constitucionalista-alemao.
Acesso em 7de dezembro de 2012.

126
Sob que ótica deve ser ofertada a Educação em Direitos Humanos no
Brasil? Defendemos o viés garantista, nos termos propostos por Luigi Ferrajoli.
Trata-se de doutrina baseada em postulados como o reconhecimento, respeito
e defesa dos direitos fundamentais, no construção de garantias processuais
capazes de proteger o indivíduo contra o arbítrio estatal, na imposição de limites
à atuação do Estado a fim de permitir o livre desenvolvimento da personalidade
humana, no que tange à integridade física, psíquica e moral. Reproduz o
discurso contra todas as formas de despotismo, repudiando práticas tirânicas,
totalitárias, ditatoriais, barreiras segregativas e os tratamentos desiguais.
Esse modelo só funciona quando o Estado Constitucional de Direito
vive a normalidade democrática, a partir de uma Constituição legítima, com
a plena separação e independência dos poderes, prevalência da legalidade,
estabilidade política, combate à corrupção e eficiente jurisdição constitucional.
É nessa ambiência, e apenas nela, que os direitos fundamentais podem sem
vivenciados por todos, sem qualquer distinção arbitrária.
O Estado sancionador exerce o monopólio do ius puniendi. Aplica
sanções penais e administrativas. A tutela individual consiste no pleno respeito
ao devido processo legal, com todas as garantias que lhe são inerentes: ampla
defesa, contraditório, assistência de um advogado, duplo grau de jurisdição,
presunção de inocência, duração razoável do processo. O sujeito de direitos
deve internalizar esses conceitos, conhecendo as garantias constitucionais
necessárias para se proteger do abuso de poder, da tortura e dos tratamentos
desumanos e degradantes.
A repressão à criminalidade exige um equilíbrio entre os meios utilizados
as finalidades almejadas pelo Estado. O princípio da proporcionalidade e o
devido processo legal são escudos protetores contra as investidas despóticas
do aparato policial.
A Educação em Direitos Humanos deve, por fim, conscientizar os
cidadãos de sua condição de “credores” das prestações estatais positivas
contidas na Constituição Federal. Ao lado das liberdades públicas, os direitos
sociais exercem importante papel no empoderamento das práticas que
envolvem a igualdade de pontos de partida e o bem-estar da coletividade. Isso
os fará exigir serviços públicos de boa qualidade, políticas sociais destinadas

127
a grupos mais vulneráveis, a diminuição das desigualdades sociais e regionais,
a proteção do patrimônio público. Também os capacitará a exigir a satisfação
do mínimo existencial, a progressividade dos direitos econômicos, sociais
e culturais. Oresultado será um verdadeiro ativismo popular em defesa da
solidariedade, o que implica o fortalecimento do sentimento de pertença que
o impulsionará à tutela dos interesses difusos e coletivos da sociedade.
No famoso discurso proferido em homenagem os primeiros heróis
mortos na Guerra do Peloponeso em 430 a.C, considerado o mais importante
da Antiguidade, Péricles afirmou que “consideramos o cidadão que se
mostra estranho ou indiferente à política, não como um amigo do repouso,
mas como um ente inútil à sociedade e à República13”. O líder ateniense era
partidário da cidadania ativa, participativa, questionadora. Mas abominava a
neutralidade dos concidadãos que mantinham uma postura de neutralidade,
a fim de preservar os seus bens materiais e a tranquilidade no lar. Esses eram
condenados ao ostracismo, transformavam-se em párias, desprovidos do
direito de cidade.
A construção da cultura em direitos humanos no Brasil está
condicionada à existência de um modelo educacional voltado para a
formação de cidadãos ativos, aptos a defender os interesses individuais e
coletivos, posicionar-se politicamente diante dos desafios e manusearem os
instrumentos de democracia participativa. Cidadãos que se reconheçam como
sujeitos de direito e se disponham a lutar por eles, elevando a sua voz em defesa
da liberdade, igualdade, solidariedade e democracia. Enfim, cidadãos que
conheçam, leiam e interpretem a Constituição de seu país, avivando a memória
para o “nunca mais” e lutando pela efetividade dos direitos fundamentais. Só
assim o projeto de Educação em Direitos Humanos surtirá os efeitos esperados
pelo povo brasileiro.

13 Sodré, Hélio. História Universal da Eloquência. Petrópolis: Catedral das Letras, p. 71.

128
ADVOCACIA PÚBLICA E DEMOCRACIA:
REFLEXÕES ENTRE O DIREITO E A POLÍTICA

Gustavo Ferreira Santos 1

I
Neste texto queremos tratar das implicações para o exercício da “advocacia
pública” da adoção do “princípio democrático” pela Constituição da República.
A democracia não é uma mera decisão de alguns que exercem o
poder. Está constitucionalizada como princípio, seja com a adoção genérica da
fórmula política do “Estado Democrático de Direito”, seja pelos procedimentos
e instituições que a Constituição adota visando garantir a origem popular de
todo o poder do Estado.
Submetem-se a uma legitimação popular todos os que fazem o Estado.
Os agentes políticos renovam periodicamente essa legitimação, no voto. Os
servidores públicos a recebem através da lei que lhes dá poderes. Afinal, a lei é
ato de vontade dos representantes do povo.

II
A fórmula política do “Estado de Direito”, do século XIX, não
incorporava ainda a dimensão democrática das constituições atuais. Ali, estava
presente a preocupação que marca o constitucionalismo: a limitação do poder.
As constituições do século XIX são, basicamente, instrumentos de fixação dos
órgãos que exercem o poder estatal e de declaração de direitos, que se resumem
às liberdades. A democracia resumia-se à existência de parlamentos, formados
por representantes. Porém, em razão da inexistência da universalização do
voto, os parlamentos eram compostos de membros da elite econômica.
Esse Estado era útil à concepção liberal de sociedade. Para o liberal, o
Estado deve existir, afinal ele não é um anarquista que nega a importância do
Estado. O Estado, no entanto, deve limitar-se a garantir os direitos individuais,
com administração da justiça e com polícia.
1 Mestre (UFSC) e Doutor (UFPE) em Direito; Professor de Direito Constitucional (UFPE
e UNICAP); Procurador do Município do Recife – PE; Conselheiro da OAB-PE e Presidente da
Comissão de Ensino Jurídico.

129
Para o liberal a autonomia do indivíduo era essencial para a economia.
E essa autonomia só era alcançada com garantia de liberdade e propriedade. O
homem sem propriedade não tinha autonomia para livremente manifestar-se
na
política. Por tais razões, o voto era restrito aos proprietários.
Era de grande importância que o Estado estivesse amarrado, por
normas de garantia de um espaço de liberdade, no qual o indivíduo era juiz de
seus atos.
A universalização do voto, que viabilizou a chegada de interesses antes
não representados ao parlamento transformou as casas de representantes em
espaços que refletiam a pluralidade da sociedade. A lei, que no século XIX
era o centro da vida estatal, já que veiculava a manifestação de vontade do
representante, ou seja, uma espécie de auto-limitação, perde espaço no século
XX para a Constituição.
Enquanto havia unidade de pensamento no parlamento formado
por membros de uma única classe social, havia coerência na legislação.
Com a pluralidade nos parlamentos, não mais é possível esperar coerência
da legislação. O século XX é o século da dificuldade de se fazer codificações
e do nascimento de micro-sistemas no Direito. As regulações possíveis são
pontuais. As maiorias eventuais no parlamento e os acordos entre grupos de
interesses levam à construção dos mais diversos documentos legislativos.
Um grupo hoje contemplado pela legislação sobre “direitos autorais”,
pode ser prejudicado por uma legislação aprovada amanhã sobre “meio
ambiente” ou sobre “defesa do consumidor”. Como o parlamento não mais
tem uma coerência em sua decisão como antes lhe garantia a sua composição
homogênea, a Constituição passa a ser a referência obrigatória para a política.
O espetacular crescimento da Jurisdição Constitucional no século
XX é testemunha da importância que a Constituição adquire. Impensável no
século XIX europeu justificar a submissão do parlamento ao controle de outro
órgão. Somente no século XX, com a Constituição da Áustria de 1920, abre-se
na Europa a possibilidade desse órgão existir, controlando com decisões de
efeitos gerais, os atos do representante do povo, e só após a experiência do
nazismo há a generalização dos tribunais constitucionais.

130
Agora, um Tribunal, não eleito pelo povo, tem o poder de limitar
o próprio povo, decretando a invalidade da obra do parlamento. Ele o faz
em nome da Constituição. Pois bem, paralelamente ao reconhecimento
da importância da Jurisdição Constitucional, hoje, em vários países que a
adotam, cresce a preocupação com os seus limites. Ora, os representantes são
controlados pelo Juiz e quem controla o controlador?
A limitação da sua atividade, ao nosso ver, deve ser interna, ou seja,
com autocontenção. A Jurisdição Constitucional deve reconhecer o espaço
da decisão política como próprio de outros órgãos, responsáveis diretamente
perante o povo. É evidente que é significativo o fato de que o parlamentar
submete-se à prova da eleição, retirando aí uma legitimação para atuar.
Muitos hoje tentam transportar os debates travados no parlamento
para a Jurisdição Constitucional. Em inúmeras matérias, as ações de
inconstitucionalidade são repetições dos debates parlamentares, como se
os argumentos políticos dos que perderam no parlamento fossem normas
constitucionais. Antes de dizer se é boa ou não a proposta do adversário, o
parlamentar diz que ela é inconstitucional.
O controle deveria centrar-se na garantia dos canais democráticos.
Inexistindo norma constitucional expressa determinando conteúdo de uma
decisão política, o controlador deve apenas verificar se os procedimentos
constitucionalmente fixados foram observados.
Parece-nos nociva à democracia a busca incessante por argumentos,
que partem de raciocínios complexos, quase inatingíveis, sobre uma
inconstitucionalidade material que nem de longe pode ser fundada em uma
norma constitucional. A construção da Constituição pelo intérprete tem
limites. As instituições democráticas, com todos os problemas hoje verificados,
devem ser valorizadas.

III
A Advocacia Pública, instituição com assento constitucional, como
fica nesse contexto? Inicialmente, é importante esclarecer que aqui seguiremos
a nomenclatura constitucional que trata por Advocacia Pública a instituição
de representação das pessoas políticas, judicial ou extrajudicialmente, o que

131
exclui a Defensoria Pública, que tem características próprias e merece um
tratamento especial.
Advogados Públicos, não têm funções de fiscalização, como acontece
com o Ministério Público.
Qualquer reflexão sobre a natureza de suas funções não pode descuidar
de duas características: somos advogados e servidores públicos.
Advogados públicos são, em primeiro lugar, advogados. Como
advogados não expressam seus interesses individuais, mas de outrem que
os confia uma missão, quando em função judicial, e orientam sobre as
possibilidades legais para a atuação do seu constituinte.
Assim também será a defesa judicial. O Advogado, público ou privado,
ao representar judicialmente busca os argumentos mais adequados ao seu
cliente ou à Administração. Colabora com a solução da lide, carreando aos
autos a posição que mais favorece a parte que representa. O juiz sopesará os
argumentos que as partes lhe dirigem e chegará à decisão.
Na função consultiva, é essencial estar convicto da opinião que
expressa. Na função judicial, é possível apontar razões que podem aproveitar à
parte, mesmo que não haja convicção do posicionamento.
Advogados públicos são advogados, mas não têm, evidentemente, uma
relação contratual, pois os seus poderes decorrem da lei, já que são servidores
públicos.
Diferentemente de Magistrados e membros do Ministério Público,
não se submetem a um regime jurídico especial. São servidores públicos
estatutários submetidos ao mesmo regime dos outros servidores do Executivo,
com algumas nuanças que uma ou outra legislação específica vá determinar.
Expressam, como outros servidores, o interesse público que o direito
consagra. O Chefe do Executivo não é seu “cliente”. Não são advogados dos
indivíduos que eventualmente exercem cargos de direção. São representantes
do ente político.
Porém, as escolhas políticas que o Chefe do Executivo, nos quadros
da lei, está autorizado a fazer devem ser respeitadas, em nome do mandato
popular.

132
Esse é um paradoxo com o qual o Advogado Público convive: Ele não
pode substituir, por total ausência de legitimidade, o Chefe do Executivo, em
suas decisões administrativas, mas não pode descuidar da legalidade dos atos
da Administração. Afinal, o mandatário não pode tudo. O mandato é limitado.
O poder político provém do povo e o conceito de povo não se confunde com o
de maioria, porém é a soma de maioria e minoria.
Algumas opções políticas já foram de antemão feitas pelo Constituinte,
limitando todos que fazem o cotidiano do Estado. Aliás, é desse “paradoxo da
democracia”, como alguns autores têm chamado, que decorre o paradoxo da
atividade do Advogado Público, que expomos acima.
O “paradoxo democrático” estaria no fato de que a sociedade, ao exercer
o poder constituinte, decide por desprezar a obra constituinte da geração
anterior, mas se considerar com poder para, através de cláusulas pétreas,
impedir que as gerações posteriores discutam e decidam sobre determinados
temas. É como se a atual geração, que faz a Constituição, fosse iluminada de
tal forma que nunca mais surgissem outros seres capazes de refletir sobre a
matéria.
Por outro lado, a atividade administrativa está cheia de momentos nos
quais o espaço de decisão do administrador é amplo. Há um caso pitoresco,
mas que serve à reflexão sobre a natureza do cargo: Um antigo Secretário
de Assuntos Jurídicos do Município do Recife ao ler um parece, pediu que
comparecêssemos ao seu Gabinete. No parecer, havíamos nos manifestado
contra a edição de um ato pela Administração. O secretário então disse: - dizer
“assim não” é fácil, eu quero que, além disso, você diga “como sim”.
No primeiro momento, discordamos da sua visão sobre a função do
Advogado Público. Mas refletindo posteriormente foi possível ver que havia
um fundo de verdade na afirmação.
Não trabalha o profissional do Direito com ciência exata. O Direito se
afirma por atos de decisão. A interpretação é decisão. A autoridade legitimada
para dar a última palavra sobre uma matéria tem, muitas vezes, duas ou mais
possibilidades interpretativas. A existência dos votos minoritários nos Tribunais
confirma isso. É possível ou não a taxação de inativos? Óbvio que é. Por que?
Porque o STF decidiu positivamente. Poderia ser o contrário, mas não foi.

133
Assim, quando analisamos uma política da Administração, a respeito
da qual não há vedação expressa no ordenamento e a respeito da qual existem
dúvidas hermenêuticas, não nos cabe fixar o “único caminho possível”. Aliás,
o “único caminho possível” raramente existe em Direito. Cabe ao Advogado
público indicar os vários caminhos e os riscos de cada um. Quem decide se faz
ou se não faz é o agente político. Ele será responsável perante o povo, perante
o Tribunal de Contas e perante o Poder Judiciário. O Advogado Público
apenas orienta sobre a compatibilidade ou não com o ordenamento e sobre as
possibilidades de realização daquela vontade.
A eleição entre candidato “A” e candidato “B” tem significado. Não se
pode esperar que os mandatários editem as mesmas políticas. Um candidato
de discurso mais voltado ao social será um agente político que editará
políticas sociais, tratando de forma secundária outras áreas. Um discurso
desenvolvimentista bem sucedido eleitoralmente pode justificar baixa
prioridade em outras áreas.
O Advogado Público, em sua carreira, irá conviver com diversos
dirigentes, de várias tendências políticas. Ele não vira correligionário do
Chefe do Executivo de plantão. Mesmo discordando no plano político de suas
prioridades, o Advogado Público terá o mesmo dever de lhe orientar.
Em qualquer atividade que tenha relação com a função, o Advogado
Público é um colaborador, submetido, como todos os agentes do Estado, à
juridicidade e que deve buscar a valorização dos canais democráticos.
Enfim, o Advogado Público, para que o exercício de suas funções
reflitam o mais próximo possível as grandes opções políticas registradas
na Constituição, deve saber-se trabalhando sobre uma linha tênue que
separa Direito e Política. Ao passo que deve ser rigoroso na observância da
juridicidade dos atos da Administração, não pode esquecer o espaço que o
princípio democrático deixa à decisão política.

134
Para além do fornecimento
de medicamentos para indivíduos
O exercício da cidadania jurídica como resposta à falta de
efetivação dos direitos sociais: em defesa de um ativismo
judicial moderado no controle de políticas públicas

Andreas J. Krell*

1. Introdução

O tema da judicialização das políticas públicas e do ativismo judicial já


ganhou bastante espaço na discussão doutrinária do Direito Público brasileiro;
atualmente, é talvez o tema mais tratado nos meios de comunicação jurídica.
É o propósito deste trabalho uma melhor organização das principais ideias e
dos argumentos mais usados em favor de e contra uma maior intervenção dos
tribunais na prestação das políticas públicas no Brasil contemporâneo, sobretudo
para facilitar o acesso de estudantes do Direito ao assunto tão complexo.
Na última década observou-se no Brasil um crescente interesse por
estudos acadêmicos sobre as políticas públicas que afetam cada vez mais a vida
cotidiana do cidadão. Elas consomem grande parte do dinheiro pago pelo
contribuinte para organizar burocracias e mercados, regular comportamentos
e, sobretudo, para prestar serviços e distribuir benefícios à população. Mais:
a própria legitimidade do Estado moderno está intimamente conectada à
crescente e contínua satisfação das necessidades da sociedade, que somente
pode ser alcançada mediante a realização de políticas públicas por parte do
Poder Público.
Especialmente num país “periférico” como o Brasil, faz-se
imprescindível o protagonismo do Estado na realização de medidas para
* Doutor em Direito pela Freie Universität de Berlim; Professor Associado de Direito Ambiental
e Constitucional (Graduação e Mestrado) e Diretor da Faculdade de Direito de Alagoas (FDA-
UFAL); colaborador do PPGD da Faculdade de Direito do Recife (UFPE); pesquisador bolsista
do CNPq (nível 1); representante nacional da área do Direito junto ao CA do CNPq (2010-13);
consultor da CAPES.

135
“resgatar as promessas não cumpridas da modernidade” (Boaventura Santos),
mormente nas áreas de combate à exclusão social, na redução das desigualdades,
defesa do meio ambiente etc. A Carta de 1988 estabeleceu um nítido dever
jurídico da Administração Pública em todos os níveis estatais de formular e
implementar políticas públicas para tornar efetivos os direitos fundamentais
individuais e coletivos.1 Neste ponto, a linguagem do texto constitucional é
insofismável (art. 1, III e IV, CF).2
Para os fins de nossa abordagem, uma política pública representa um
“conjunto articulado de ações, decisões e incentivos que buscam alterar uma
realidade em resposta a demandas e interesses envolvidos”.3 Os atores mais
importantes nesse processo de decisão são as instituições públicas: governos,
parlamentos, o Judiciário, Tribunais de Contas e o Ministério Público.
É notório que, no caso do Brasil, as dificuldades na aplicação das
normas sobre saúde, educação, meio ambiente, etc. decorrem também de
antigos problemas do desempenho dos órgãos públicos, como a falta de
vontade política, o clientelismo, a corrupção, deficiência da preparação
profissional e do aparelhamento técnico, bem como a falta de estratégias e
programas adequados de implementação legal. Da mesma maneira, é óbvio
que na arena de definição e execução das políticas públicas sempre haverá
pressões de grupos de interesse, barganhas partidárias e troca de favores,
ameaças e coações, medidas de geração de consenso, de persuasão etc.
Entretanto, não pretendemos desenvolver aqui uma análise dos papéis e do
desempenho dos diferentes agentes políticos que costumam influenciar as decisões
sobre políticas públicas (policy-makers) e os seus principais motivos, sejam eles
econômicos, burocráticos, psicológicos etc. Também não entraremos em detalhes
sobre as diferentes etapas no processo de realização de políticas públicas (preparação,
agenda setting, formulação, implementação, monitoramento e avaliação).

1 Ohlweiler, Leonel P. Políticas públicas e controle jurisdicional: uma análise hermenêutica


à luz do Estado de Direito. In: Sarlet, Ingo; Timm, Luciano (orgs.). Direitos fundamentais,
orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 326s., 332.
2 “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir
uma sociedade livre, justa e solidária; (...) III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir
as desigualdades sociais e regionais; (...).
3 Rodrigues, Marta M. Assumpção. Políticas públicas. São Paulo: Publifolha, 2010, p. 29,
34, 46, 52.

136
Estas políticas não devem ser vistas como assuntos propriamente
“políticos” no sentido de resultantes de discussões e deliberações majoritárias
de órgãos representativos (politics), mas como conjuntos de atuação
governamental em determinados setores da Administração (policies).4
Exemplos de políticas públicas que já foram objeto de controle judicial são
as privatizações de empresas estatais no final dos anos 90, o Plano Real e as
reformas nas áreas agrária, previdenciária, tributária e administrativa, onde
realmente houve interferências dos tribunais que levaram, até mesmo, ao
questionamento de sua legitimidade. A Constituição brasileira, contudo,
contém vários indicativos relacionados a políticas públicas setoriais.5
É evidente que o recente avanço teórico no âmbito dos direitos sociais
não se dirige aos julgadores mal intencionados ou de formação profissional
precária, mas ao contingente de juízes competentes que têm vontade de levar a
sério a efetiva aplicação das normas constitucionais, porém se sentem de mãos
amarradas, visto que boa parte da doutrina nacional, até hoje, não lhes assiste
no momento de enfrentar dogmas ultrapassados que impedem o tratamento
adequado dos casos concretos.

2. A efetivação dos direitos fundamentais: reivindicações individuais


e ações coletivas entre deliberação democrática e interferência judicial

O tema do controle judicial das políticas públicas está diretamente


relacionado à pergunta sobre as possibilidades, formas e instrumentos
disponíveis para garantir a eficácia dos direitos fundamentais numa sociedade
dividida, desigual e conflituosa. É sabido que o grande problema das políticas

4 Não cabe aqui entrar na discussão sobre o significado histórico e atual dos conceitos básicos da
Teoria do Estado e Ciência Política, como política, poder, estado, governo, democracia, sociedade,
cidadania, pluralismo etc., já que o nosso objetivo é específico e exige aprofundamentos pontuais;
vide a respeito, Bobbio, Norberto. Dicionário de política. Brasília: UnB, 1998.
5 Políticas de tributação e orçamento (arts. 145-169), de segurança pública (art. 144), política
urbana (art. 182), agrícola e da reforma agrária (arts. 184-191), políticas econômicas (arts. 170-
181) e do sistema financeiro nacional (art. 192), políticas da seguridade social, inclusive a saúde
(arts. 194-204), políticas da educação, cultura e desporto (arts. 205-217), políticas de ciência e
tecnologia (arts. arts. 218-219), da comunicação social (arts. 220-224), do meio ambiente (art.
225), da família, criança, adolescente e idoso (arts. 226-230) e dos povos indígenas (arts. 231-
232); cf. Ohlweiler, Leonel. Ob. cit., p. 336.

137
sociais e de proteção ambiental no Brasil reside, sobretudo, na omissão
(parcial ou total) dos órgãos públicos responsáveis, que não desenvolvem
atividades eficientes de fiscalização ou deixam de fornecer bens e serviços em
favor da população, o que contraria os respectivos deveres do poder estatal
sacramentados no texto constitucional.
Na realidade brasileira, “a fragmentação de interesses, a estratificação
social, a diferenciação cultural, regional e ideológica, provocam uma verdadeira
`crise de racionalidade´ do modelo jurídico calcado na soberania da maioria.”6
Por essa e outras razões, uma parte cada vez maior das demandas políticas e
sociais não atendidas em nível dos parlamentos e dos órgãos administrativos
acaba “desaguando” no Poder Judiciário, especialmente na forma de ações
civis públicas. Nestes casos, o Terceiro Poder, a princípio, não invade a seara
dos outros, mas simplesmente os controla, de forma legítima e expressamente
prevista pela ordem jurídica. Tais intervenções pontuais não afetam, por si, o
equilíbrio institucional entre os Poderes.7
A crescente constitucionalização da ordem jurídica, isto é, a invasão
das normas da Lei Maior nos diferentes setores do Direito (Civil, Penal,
Administrativo etc.), leva inexoravelmente à judicialização de assuntos que
antes eram considerados políticos e, por isso, apenas dependentes de decisões
legislativas.8 O crescente caráter principiológico e retórico das normas do
Direito torna o Judiciário, cada vez mais, o “portador dos grandes sentidos
normativos”.9 Nesse cenário, há quem alegue que a própria vagueza do
conteúdo dos direitos fundamentais teria aberto as portas para decisões pouco
racionais dos tribunais, de acordo com as preferências pessoais dos juízes, cujo
protagonismo estaria substituindo cada vez mais as decisões parlamentares.
Não concordamos com essa visão e mostraremos que a grande maioria das
decisões judiciais, nesse contexto, tem objetivos diferentes daqueles que
caracterizam as deliberações dos corpos legislativos.
6 Cf. Campilongo, Celso. Direito e democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 53s.
7 Cf. Fontes, Paulo G. Guedes. A ação civil pública e o princípio da separação dos poderes:
estudo analítico de suas possibilidades e limites. In: Milaré, Édis (coord.). A ação civil pública
após 20 anos: efetividade e desafios.. São Paulo: RT, 2005, p. 472ss.
8 Fala-se da “ubiqüidade constitucional” (Daniel Sarmento) ou até da “panjusfundamentalização”
(Casalta Nabais).
9 Adeodato, João Maurício. Adeus à separação dos poderes? Chegando à tese do realismo
jurídico. In: Feitosa, Enoque et alii. O Direito como atividade judicial. Recife: Bagaço, 2009, p. 40.

138
Na verdade, os direitos fundamentais constituem pré- comprometimentos
da própria soberania popular cuja efetiva realização exige um diálogo permanente
entre os Poderes. Eles retiram determinadas questões do processo político,
colocando-as acima das decisões da maioria parlamentar e da vontade dos
governos. A imperfeição da justiciabilidade e garantia efetiva dos direitos
sociais se deve, sobretudo, à falta de uma prática institucional e cultural de sua
interpretação.10 Além disso, ainda que já exista no Brasil de hoje uma dogmática
constitucional relativamente bem desenvolvida em torno dos direitos fundamentais
sociais prestacionais, ainda são esparsas as conexões teóricas com o instrumental
administrativo necessário à sua efetiva realização, que somente funciona através de
políticas públicas.11
A Carta brasileira de 1988 contém várias imposições no sentido de
que sejam desenvolvidas políticas públicas nas diferentes áreas sociais, além
de estabelecer diretrizes e parâmetros que devem norteá-las. É importante
lembrar, contudo, que os diferentes direitos fundamentais não apresentam o
mesmo nível de força normativa, senão diversos graus de eficácia (jurídica)
e de efetividade (social). Alguns direitos (saúde, educação, da criança e do
adolescente, do idoso, ao meio ambiente) sofreram uma regulamentação
específica, como direitos de todos e deveres do Estado (arts. 196, 205, 225,
227, 230), acompanhados por uma regulamentação pormenorizada referente à
prestação destes serviços sociais básicos. Outros direitos sociais mencionados
no art. 6º CF (trabalho, moradia, cultura, lazer) não passaram por uma
densificação constitucional semelhante e dependem mais de uma concretização
por parte dos órgãos governamentais.
Neste contexto, o conceito do mínimo existencial ajuda para transformar
parte dos direitos fundamentais em direitos subjetivos plenamente tuteláveis,
já que é maior a legitimidade para um controle mais reforçado das políticas
públicas que se relacionam com os direitos ligados ao conceito de mínimo
existencial. Impende frisar, porém, que a vinculação dos governos e da
10 Queiroz, Cristina. Direitos fundamentais sociais: questões interpretativas e limites
de justiciabilidade. In: Silva, Virgílio A. da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 168ss., 210ss. No entanto, não é objeto deste estudo uma discussão crítica
sobre o “estado da arte” da hermenêutica constitucional no Brasil.
11 Breus, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado constitucional. Belo Horizonte:
Fórum, 2007, p. 186s., 266.

139
Administração Públicas pelas normas constitucionais não pode ser restrita às
áreas onde deve ser preservado apenas um padrão mínimo de serviços públicos
para garantir uma existência digna do cidadão.12 Já a definição racional do
contorno material de um mínimo existencial é extremamente difícil.13 Ao
mesmo tempo, o avanço doutrinário em relação ao referido conceito é
importante para conferir maior efetividade a direitos subjetivos reflexos às
respectivas políticas públicas.14
Hoje, é inconteste que os direitos sociais da Carta de 1988 também
podem gerar posições subjetivas individuais. O notório exemplo dos
remédios obtidos por liminares dos tribunais brasileiros em defesa da vida de
determinadas pessoas é um problema bastante discutido na atualidade, visto
que os altos gastos públicos provocados por tais decisões têm dificultado ou até
inviabilizado a realização de outras benfeitorias e melhoramentos dos serviços
de saúde pública em vários Estados e Municípios. É de lembrar, contudo, que
essas ações envolvem apenas indiretamente o controle de políticas públicas,
uma vez que se trata da proteção de direitos subjetivos reflexos aos programas
estatais, o que torna o seu controle judicial bem mais fácil.15
Essas ações individuais normalmente procedem em virtude da
proximidade do julgador com a parte postulante, da menor repercussão
orçamentária da decisão individual, da evidência das consequências negativas
irreversíveis no caso da negação da tutela e da possibilidade da solução do
conflito sem maior interferência na atividade administrativa.16 Entretanto,
boa parte das críticas contra o deferimento dessas ações procede.17 A solução
adequada do problema passa por uma restrição da concessão individual de

12 Sarlet, Ingo W.; Figueiredo, Mariana F. Reserva do possível, mínimo existencial e


direito à saúde: algumas aproximações. Direitos Fundamentais & Justiça, n. 1, Porto Alegre,
out./dez. 2007, p. 183s.
13 Cf. Barcellos, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – O
princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 247ss.
14 Barros, Marcus A. de Freitas. Controle jurisdicional de políticas públicas: parâmetros
objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2008, p. 23, 147, 151s.
15 Cf. Mello, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 86s., 106.
16 Barros, Marcus A. de Freitas. Ob. cit., p. 169.
17 Vide Santos, Gustavo Ferreira. Neoconstitucionalismo, Poder Judiciário e direitos
fundamentais. Curitiba: Juruá, 2011, p. 75ss.

140
remédios não previstos nas listas aprovadas pelo Ministério da Saúde,18 na
limitação deste direito a pessoas carentes (hipossuficientes) e na concentração
das intervenções do Terceiro Poder, a partir de ações coletivas que tenham por
objeto melhorias gerais nos serviços do SUS.19
Além disso, vários Estados, seguindo a Recomendação nº 31 do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 30.3.2010,20 instituíram unidades
de apoio técnico, com a finalidade de coibir possiveis abusos e racionalizar o
atendimento das demandas judiciais na área da saúde.21 A restrição do direito
à saúde do cidadão aos medicamentos e tratamentos previstos nos Protocolos
Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS foi pronunciada, recentemente, pelo
Pleno do Supremo Tribunal Federal: “Obrigar a rede pública a financiar toda
e qualquer ação e prestação de saúde existente geraria grave lesão à ordem
administrativa e levaria ao comprometimento do SUS, de modo a prejudicar
ainda mais o atendimento médico da parcela da população mais necessitada.
Dessa forma, podemos concluir que, em geral, deverá ser privilegiado o
tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo
paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da
política de saúde existente. Essa conclusão não afasta, contudo, a possibilidade
de o Poder Judiciário, ou de a própria Administração, decidir que medida
diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que,
18 Portaria nº 2.981, de 26.11.2009, sobre os componentes especializados da assistência
farmacêutica. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/portaria_
gm_2981_3439_ceaf.pdf>. Acesso: 1.9.2012.
19 Luís Roberto Barroso, na sua função de Procurador do Estado do Rio de Janeiro, emitiu um
parecer bastante discutido na comunidade jurídica, que trata dos limites das decisões judiciais
no âmbito da saúde pública; cf. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à
saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros. 2008. Disponível em: www.
lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf. (Acesso: nov. 2012.)
20 O CNJ instituiu também, através da Resolução n. 107, de 6.4.2010, o Fórum de Monitoramento
das demandas judiciais relacionadas ao direito à saúde, ao qual cabe “elaborar estudos e
propor medidas concretas e normativas para o aperfeiçoamento de procedimentos, o reforço à
efetividade dos processos judiciais e à prevenção de novos conflitos” (art. 1°).
21 Em 2011, foi criado em Pernambuco o Núcleo de Assessoria Técnica em Saúde (NATS),
por convênio firmado entre o Tribunal de Justiça e a Secretaria Estadual de Saúde, com o fim
de prestar apoio técnico nas ações judiciais que visam a compelir o Estado ao fornecimento
de medicamentos, exames, tratamentos e insumos para a saúde. O NATS deve subsidiar os
magistrados mediante emissão de pareceres sobre a eficácia e segurança de medicamentos, a
adequação de opções terapêuticas já oferecidas pelo Poder Público, a relação custo-benefício,
alternativas de tratamento, a distribuição de remédios na rede pública etc.

141
por razões específicas do seu organismo, comprove que o tratamento fornecido
não é eficaz no seu caso.” 22
No entanto, não se deve perder de vista que as ações coletivas –
sobretudo as ações civis públicas – que são instauradas na área da saúde e da
educação enfrentam dificuldades muito maiores (ex.: melhorar a organização
de um hospital público ou de uma escola). Na verdade, a tutela coletiva dos
direitos sociais ainda enfrenta muita resistência por parte dos juízes brasileiros,
que não aceitam valer-se do raciocínio típico das ações individuais, cientes
de que devem prevalecer nas ações coletivas os argumentos ligados à justiça
distributiva e aos critérios políticos na definição das políticas públicas e
programas governamentais.23
Ao mesmo tempo, resta claro que, no ordenamento jurídico brasileiro,
as ações judiciais não devem se limitar aos casos em que existe um direito
subjetivo público individual à prestação de cunho social. Os direitos sociais
consagrados na Constituição não representam apenas “interesses juridicamente
protegidos”,24 mas verdadeiros direitos de titularidade transindividual (coletiva
e difusa), que coexiste com a individual, tendo o legislador previsto todo um
arcabouço processual diferenciado para a sua efetivação em juízo. Ao mesmo
tempo, seria um erro querer dissolver a titularidade individual dos direitos
sociais numa dimensão coletiva, visto que figuras como o “mínimo existencial”,
baseado na dignidade humana, somente podem ser concebidos em relação a
pessoas, não a coletividades.25

3. Controle de políticas públicas, de normas ou de atos administrativos?

Como já foi frisado, uma política pública representa o conjunto


organizado de normas e medidas tendentes à realização de determinado(s)
22 STF - SL 47 AgR/PE, Tribunal pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.3.2010 (fl. 26).
23 Mello, Cláudio Ari. Os direitos fundamentais sociais e o conceito de direito subjetivo. O
mesmo (coord.). Os desafios dos direitos sociais. Revista do Ministério Público do Rio Grande
do Sul, n. 56, Porto Alegre, set./dez. 2005, p. 133.
24 Appio, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá,
2005, p. 84ss.
25 Cf. SArlet, Ingo. A titularidade simultaneamente individual e transindividual dos
direitos sociais analisada à luz do exemplo do direito à proteção e promoção da saúde. Direitos
Fundamentais & Justiça, n. 10, Porto Alegre, jan./mar. 2010, p. 216ss.

142
objetivo(s) e unificadas por sua finalidade.26 Ela consiste numa conduta
da Administração Pública voltada à consecução de um programa ou metas
previstos nas normas constitucionais e leis ordinárias, que vão além de atos
meramente políticos ou de governo. São meios de planejamento para a execução
de serviços públicos específicos nos diferentes setores, materializando-se
em normas, programas, diretrizes, dispositivos orçamentários, licitações,
contratos e atos administrativos em geral.27
Uma política pública pode ser definida como programa ou quadro
de ação governamental, um conjunto de medidas coordenadas cujo fim é
“movimentar a máquina do governo, no sentido de realizar algum objetivo
de ordem pública ou, na ótica dos juristas, concretizar um direito”. Isso inclui
também a coordenação e o incentivo de atividades privadas. É importante
frisar, contudo, que “nem tudo que a lei chama de política é política pública”;
sua exteriorização não possui “um padrão jurídico uniforme e claramente
apreensível pelo sistema jurídico”.28
As políticas públicas não devem ser confundidas com os direitos
sociais que estão na sua base. Bucci adverte que “nem mesmo as medidas
concretas de implementação do direito se pode qualificar automaticamente
de política pública”. Segundo ela, “os arranjos institucionais complexos
considerados como políticas públicas são conformados pelo Direito,
embora não reduzíveis a ele”, o que significa que a política pública
não configura uma categoria jurídica. Seu estudo deve, portanto, estar
relacionado também aos aspectos econômicos, políticos e institucionais.29
Ao mesmo tempo, deve ser reconhecido que a exteriorização de uma

26 Cf. Comparato, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas


públicas. In: Mello, Celso A. Bandeira de (org.). Direito Administrativo e Constitucional.
São Paulo: Malheiros, 1997, p. 353s.
27 Cf. Moreira, João Batista. Direito Administrativo: da rigidez autoritária à flexibilidade
democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 266ss.
28 Bucci, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: a mesma (org.).
Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 14, 22s, 31,
46s.
29 Bucci, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas
públicas. In: Fortini, C.; Esteves, J.; Dias, M. (orgs.). Políticas públicas: possibilidades e
limites. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 254ss.

143
política pública “está muito distante de um padrão jurídico uniforme
e claramente apreensível pelo sistema jurídico”, o que levanta dúvidas
quanto à vinculatividade dos seus instrumentos e à sua justiciabilidade no
caso concreto.30
Num Estado Democrático de Direito, o planejamento, a execução
e o financiamento de políticas públicas devem ser formatados por meio de
normas jurídicas, o que serve, inclusive, para possibilitar um controle jurídico-
social dos atos e das omissões relacionadas a elas. Por isso, a afirmação de
que o aspecto gerencial de governo nas sociedades modernas teria levado a
uma mudança do clássico “governo pelo Direito” (government by law) para um
“governo por políticas” (government by policies) não expressa um contraponto,
já que as políticas públicas encontram o seu fundamento e as modalidades de
sua implementação necessariamente fixados em normas legais. A expressão,
contudo, serve para direcionar a atenção às formas administrativas de
realização dos respectivos serviços pelos gestores públicos e privados.
Os referidos suportes legais das políticas públicas podem estar
positivados em normas constitucionais (federais e estaduais), em leis ordinárias
ou mesmo infralegais (decretos, resoluções, portarias) nos três níveis federativos,
mas também em instrumentos consensuais como convênios e consórcios (art.
241 CF) ou em contratos com o setor privado (v.g., concessões de serviços
públicos).31 Isso significa que as políticas públicas são capazes de vincular não
apenas órgãos estatais, mas também agentes econômicos, entidades da sociedade
civil organizada (Terceiro Setor) e pessoas particulares.32 A promulgação das
respectivas normas não significa um fim em si, mas o começo de obrigações a
serem adimplidas, condutas a serem postas em prática.33 Assim, políticas públicas
se instalam numa zona cinzenta entre a Política, a Constituição e o Direito.
30 Bucci, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e políticas públicas. São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 257.
31 Bucci, Maria Paula Dallari. Ob. cit., p. 11, 37ss., 44; Aith, Fernando. Políticas públicas
de Estado e de governo. In: Bucci, Maria Paula D. Políticas públicas. Ob. cit., p. 233s.
32 Massa-Arzabe, Patrícia H. Dimensão jurídica das políticas públicas. In: Bucci, Maria
Paula D. Ob. cit., p. 58; Derani, Cristiane. Política pública e a norma jurídica. In: Bucci,
Maria Paula. D. Ob. cit., p. 137.
33 ManCuso, Rodolfo de Camargo. A ação civil pública como instrumento de controle
judicial das chamadas políticas públicas. In: Milaré, Édis (coord.). Ação civil pública: Lei
7.347/85 - 15 anos. São Paulo: RT, 2001, p. 734.

144
As normas que estabelecem incentivos entre os diferentes níveis
federativos, condicionando o repasse de verbas a requisitos mínimos, também
são bastante utilizadas para promover a implementação de políticas públicas
nos diversos níveis da Administração Pública.34 Seja lembrado também que as
políticas públicas são concretizadas, acima de tudo, mediante serviços públicos,
imprescindíveis para a realização dos respectivos direitos fundamentais.
Assim, políticas e serviços são conceitos inseparáveis, cujo significado está
intimamente conectado.35
Muitas vezes, fala-se de uma pretensa interferência do Judiciário em
políticas públicas onde, na verdade, há apenas o controle de atos administrativos
ou da constitucionalidade de certas normas, que envolve uma sindicância
estritamente jurídica, exercido mediante verificação da aplicação correta
das normas legais incidentes pelos órgãos competentes (ex.: licenciamento
ambiental de um empreendimento industrial ou turístico).
Em outros casos, o controle de atos e normas individuais exercido
pelos tribunais é capaz de lhes deixar escapar o controle do conjunto, isto
é, da política pública em que estes se inserem e cuja validade possui, em
certa medida, independência em relação aos efeitos de cada ato específico.36
Entretanto, o controle judicial de uma política pública atinge somente a validade
das normas e dos atos específicos que a compõem. A possível ilegalidade ou
inconstitucionalidade da política pública não a afeta como um todo, mas atinge
“os textos normativos que dela emanam ou sobre as ações que ela inspira”.37
Nos casos em que um juiz é chamado para analisar se há comportamento
indevido ou omissão (total ou parcial) do Poder Público na prestação de um
serviço ou no fornecimento de um bem, é importante saber se a sua decisão
34 Salles, Carlos Alberto de. Processo civil de interesse público. In: o mesmo. Processo civil
e interesse público. São Paulo: RT, 2003, p. 61.
35 Bercovici, Gilberto. Planejamento e políticas públicas. In: Bucci, Maria Paula D. Ob.
cit., p. 151; Massa-Arzabe, Patrícia. Ob. cit., p. 55.
36 Santos, Maria Lourido dos. Interpretação constitucional no controle judicial das
políticas públicas. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2006, p. 68, 70, 84s., 94ss.
37 Derani, Cristiane. Ob. cit., p. 131-142, p. 137. A opinião contrária, manifestada por
Comparato (ob. cit., p. 353s.), não logrou êxito na doutrina e jurisprudência; é difícil imaginar
uma política pública promovida por um ente estatal cujos atos e normas individuais seriam
legais, cujo conjunto, porém, deve ser considerado ilegal (inconstitucional). Principal alvo desta
crítica (de 1997) foi a política econômica do então Governo FHC.

145
tem o condão de interferir em uma política pública já estabelecida, seja
diretamente ou por reflexo. Essa questão, contudo, não será, necessariamente,
prejudicial em relação à lide. Onde existir uma verdadeira política pública,
o Judiciário apenas é obrigado a levar em consideração as consequências de
seu veredito e medir com cautela os efeitos financeiros de sua decisão. A mera
tangência de uma policy estatal pela sentença judicial não torna esta, por si,
inviável ou invasora de espaço alheio.

4. Argumentação jurídica e argumentação política na interpretação


dos direitos sociais

O conceito da política pública também compartilha com as noções do


ato político e do mérito administrativo a presunção de que se trata do exercício
de um juízo de conveniência e oportunidade inerente às funções do Legislativo
e, mais ainda, do Executivo. O exercício do referido juízo tem como parâmetro
as normas constitucionais e ordinárias. A má atuação ou omissão do governo
é percebida “como modalidade de conduta desviante” e sujeita à correção pelo
Judiciário. Nesse controle, a indeterminação dos termos e institutos jurídicos
de referência não prejudica a racionalidade do discurso decisório em que
devem ser baseadas as respectivas decisões.38
Lourido dos Santos demonstra que a efetiva prestação das políticas
sociais não representa uma questão “meramente política”, pois afeta diretamente
o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos. Muitas vezes, entretanto,
políticas públicas “expressam-se sob a aparência de ato político”, sendo estes
“noções imbricadas, de difícil delimitação”. O próprio termo ato político possui
ampla acepção, mas é utilizado sem maior rigor conceitual. Assim, o Supremo
Tribunal Federal já passou a considerar vários atos que durante muito tempo
considerava políticos (ex.: expulsão de estrangeiro), como administrativos e,
portanto, passíveis de controle judicial através do “exercício de um juízo não
meramente formal ou procedimental, mas valorativo”. Além disso, sofreu
mudanças a linha do STF que segue o princípio do “legislador negativo,
consectário do princípio da correção funcional”, isto é, de não se permitir a
função de legislador positivo, que inova o sistema jurídico.39
38 Santos, Maria Lourido dos. Ob. cit., p. 123, 127, 140s., 152, 183.
39 Ob. cit., p. 97, 107s., 110s., 114, 118.

146
Assim, a natureza política, típica dos assuntos regulamentados pelas
normas constitucionais, não impede os tribunais de examinar uma questão,
ainda que seja preciso uma revisão de escolhas e decisões adotadas pelo
legislador e pelo administrador. Isto porque, muitas vezes, por trás da natureza
política, está sendo violado um direito fundamental ou um princípio essencial
para as próprias bases institucionais do sistema constitucional.40
De qualquer maneira, o intérprete do Direito sempre precisará
invocar um dispositivo normativo para fundamentar a ordenação de medidas
protetivas ou prestadoras. A questão decisiva é a configuração concreta dos
textos legais a serem aplicados ao caso: se houver uso de conceitos vagos ou se
a norma tiver caráter principiológico, normalmente restará ao intérprete um
espaço maior de valoração dos fatos para enquadramento na hipótese legal;
quando uma norma-regra empregar conceitos relativamente “determinados”
(ou melhor: determináveis perante o caso), a margem de liberdade para decidir
será menos abrangente.41
O caráter político de muitas decisões (especialmente no âmbito da ação
civil pública) não deve ser colocado em uma falsa oposição ao caráter jurídico
das decisões judiciais em geral. A própria distinção entre Direito e Política no
contexto de um ato estatal encontra sua base em Kelsen, para quem a escolha
do intérprete entre diferentes opções decisórias possíveis, que não ultrapassam
dos limites (sobretudo gramaticais) da “moldura” legal, sempre é política.42 É
evidente que essa moldura (ou quadro) de uma norma principiológica quase
sempre será mais ampla do que a referente a uma norma formulada como
regra condicional (“se/então”), o que concede maior espaço de decisão para o
aplicador da respectiva lei.
Entretanto, o mero fato do embasamento de uma sentença em normas
constitucionais não a torna, automaticamente, política, visto que decisões com
base em políticas constitucionais sempre devem “ser pautadas por valores,
princípios e regras contidos no ordenamento jurídico”.43 Na grande maioria
40 Cf. Mello, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. 2004, p. 259.
41 Vide Krell, Andreas J. Discricionariedade administrativa e controle judicial no âmbito
dos interesses difusos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
42 Kelsen, Hans. Teoria pura do Direito – vol. 2. Coimbra: Armênio Amado, 1962, p. 292.
43 Cambi, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais,
políticas públicas e protagonismo judiciário. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 270s.

147
dos casos serão aplicáveis também leis-regras ordinárias em cuja hipótese
normativa os fatos concretos terão de ser enquadrados. Acontece que muitas
dessas normas contêm conceitos jurídicos indeterminados ou concedem
espaços discricionários para escolha da melhor solução de determinados
conflitos de interesses. O número ainda reduzido de precedentes no âmbito
dos litígios sobre políticas públicas também causa certa insegurança e
imprevisibilidade dos resultados.
Por isso, a palavra político, nesse contexto, não possui conotação
político-partidária ou “decisionista”; antes exprime o simples fato de que a
predeterminação da decisão judicial pelos termos utilizados nas leis incidentes
costuma ser relativamente reduzida, abrindo espaços discricionários. Neste
contexto, a diferença entre Direito e Política não parece ser qualitativa, mas
gradual-quantitativa. Em ambas as esferas há “uma ordenação ligada a valores
e desdobrada em preceitos”;44 a decisão política, normalmente, se situa em
momento anterior à jurídica, uma vez que ela envolve a discussão organizada
sobre diferentes valores (socioeconômicos, éticos, culturais etc.) relacionados
a determinado problema e, em seguida, uma escolha entre eles. Entretanto,
isso não significa que o ato interpretativo de uma norma jurídica – seja sua
estrutura mais próxima do modelo de um princípio ou de uma regra – não
poderá envolver também opções valorativas.
Vale lembrar também que a Ciência Política investiga, através do
emprego dos métodos qualitativos e quantitativos de pesquisa social empírica,
o “Estado em ação”, focalizando-o nas suas atividades que pertencem ao espaço
discricionário de seus órgãos (âmbito do permitido). Diferentemente, atribui-se
à ciência do Direito a função de analisar o “Estado parado” na sua constituição
normativa, o que envolve a abordagem da ação estatal apenas na medida
em que esta é juridicamente obrigatória ou proibida, sendo o procedimento
metodológico o axiomático-dedutivo e compreensivo-hermenêutico. Há quem
assimile ao conceito do político até algo “dinâmico-irracional”; ao contrário do
Direito, normalmente visto como “estático-racional”.45

44 Saldanha, Nelson. Ordem e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 257.
45 Becker, Martin; Zimmerling, Ruth. Einleitung. In: os mesmos (eds.). Politik und
Recht. Politische Vierteljahresschrift (PVS) – Sonderheft 36/2006, Wiesbaden, p. 12s.

148
Apesar do inegável perigo de uma mixagem metodologicamente
pouco adequada de argumentos jurídicos e políticos, que certamente partem
de diferentes critérios de fundamentação racional e legitimação, a separação
rígida da teoria luhmanniana entre Direito e Política como dois “sistemas
operativamente fechados”, dotados de diferentes funções, codificações e
programas,46 pouco ajuda para colocar as coisas no devido lugar. Enquanto
na decisão política o Direito positivado serve mais de moldura dentro da
qual as posições devem ser justificadas com argumentos, a decisão jurídica
encontra o seu fundamento mais diretamente nas normas do Direito positivo,
sobretudo nas regras. Além disso, o discurso jurídico visa mais ao controle do
que à criação e tende a dar maior valor à tradição do que à inovação, a qual é
característica do discurso político.47
É possível também chamar de políticos os julgados que expressamente
levem em consideração os efeitos da decisão junto à população. Essa situação,
contudo, não significa que o juiz ao julgar uma lide que envolva interesses
difusos sempre poderia “ponderar livremente” interesses, valores, bens e efeitos
sociais a seu bel-prazer. A ponderação, hoje, é considerada um instrumento
legítimo de interpretação jurídica, que deve seguir determinadas regras (ou
máximas), como a razoabilidade e a proporcionalidade.
Por fim, impende frisar que o fato de que os juízes desenvolvam uma
atividade de fortes implicações políticas “é o preço que o Estado de Direito teve
de pagar pela supremacia da sua Constituição, pela sua primazia hierárquica e
sua vinculatividade”.48

5. Criticas ao ativismo judicial: teorias procedimentalistas e


democracia deliberativa

A intensidade do ativismo judicial num país varia em cada área


político-administrativa, de acordo com as possibilidades e os limites postos pela
Constituição e pelas leis ordinárias. As críticas contra a atuação expansiva do

46 Luhmann, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1995, p. 417ss.
47 Cf. Eberl, Matthias. Verfassung und Richterspruch. Berlin: De Gruyter Recht, 2006, p.
444, 466s.
48 Palu, Oswaldo L. Controle dos atos de governo pela jurisdição. São Paulo: RT, 2004, p. 307.

149
Judiciário têm por objeto original o controle (abstrato) de constitucionalidade
das leis, que na grande maioria dos países democráticos está concentrado em
tribunais ou cortes constitucionais especiais. Entretanto, elas também podem ser
direcionadas contra um controle mais intenso dos tribunais comuns em relação
a normas e atos administrativos – e, consequentemente, políticas públicas –,
uma vez que o sistema brasileiro permite a todos os magistrados o controle
constitucional difuso de normas e atos emitidos pelos órgãos do Poder Público.
Um dos argumentos doutrinários mais utilizados neste contexto é o
pretenso perigo inerente a um Judiciário ativista, que usurparia as funções
dos outros Poderes da República. Muitos temem que juízes despreparados,
uma vez legitimados para interferir mais intensamente na vida político-social
do País, venham a abusar deste poder e imiscuir-se em assuntos estritamente
administrativos, educacionais, urbanístico-ambientais, político-partidários
etc., como já teria acontecido com frequência nos últimos tempos. 49
A expressão “ativismo judicial” surgiu nos EUA na primeira metade do
século XX, quando a Suprema Corte deste país anulou vários atos legislativos
e executivos federais e estaduais, alegando violação da liberdade econômica.
Independentemente da configuração e avaliação do termo na sua origem,
há quem alegue que este ativismo, hoje, manifesta-se, sobretudo, através de
decisões que reconhecem direitos a benefícios positivos sem um debate
democrático anterior sobre a inclusão destes direitos em normas legais, o que
levaria à substituição dos órgãos politicamente responsáveis pelos tribunais,
mormente no que diz respeito à utilização das verbas públicas.50 Nesse sentido,

49 No II Congresso Mundial de Direito Processual, realizado no Recife em meados de


2005, ficamos estarrecidos com os aplausos frenéticos quando fizemos simples referência ao
fenômeno de “decisões políticas” proferidas por juizes, que a platéia entendeu como crítica. No
entanto, a nossa defesa de um maior controle das políticas públicas pelo Judiciário não provocou
sinais de aprovação. Isto mostra que grande parte dos jovens da classe média alta no Nordeste
brasileiro, que busca um diploma jurídico e já possui algumas noções da Carta de 1988, não
vê problema nenhum em condenar a pretensa “interferência” do Judiciário na vida política
do País, sem que haja – por outro lado – qualquer questionamento da evidente e onipresente
omissão do Poder Público como um todo (inclusive dos tribunais) em relação à efetivação dos
direitos sociais para grande parte da população excluída dos serviços básicos (educação, saúde,
segurança, alimentação, moradia etc.), cujos integrantes encheram o estacionamento do Centro
de Convenções de Olinda: jovens sem dentes, sem formação escolar e sem futuro profissional,
que (ainda) seguem o caminho legal da oferta de pequenos serviços (poucos desejados).
50 Cf. Arango, Rodolfo. Direitos fundamentais sociais, justiça constitucional e democracia.

150
o juiz seria “ativista” somente nos casos em que não houvesse uma positivação
do respectivo direito que fundamenta a vantagem.
Outros entendem, de forma mais genérica, que o próprio ativismo reside
na intromissão do Judiciário na esfera política e administrativa, sem indicação
de efetivos vícios de legalidade.51 Ele seria, portanto, uma invasão na seara de
competências dos outros poderes, sem a necessidade que o magistrado “crie um
direito”, não expressamente previsto pelo ordenamento. O contraponto do ativismo
representa a chamada “autorrestrição” (self-restraint) judicial, que assinala a tendência
dos tribunais de respeitar ao máximo os atos legislativos e executivos, corrigindo-os
apenas em casos de desconformidade com as regras procedimentais.52 Todavia, não
é objeto deste trabalho a discussão se o STF deveria manter uma atitude de maior
deferência em relação às leis cuja constitucionalidade ele julga.53
Faz sentido, neste contexto, distinguir entre um ativismo forte e um
ativismo moderado do Judiciário, havendo quase unanimidade quanto ao fato
de que o primeiro deve ser evitado e combatido. Já o segundo se manifesta
numa interpretação extensiva da Constituição, que concede ao Judiciário
um papel mais proativo na concretização de seus valores e fins, o que leva,
simultaneamente, a uma maior interferência nos espaços de atuação dos
outros dois poderes. Neste ativismo positivo, o juiz segue a racionalidade
jurídica orientada à realização dos bens tutelados pelo ordenamento jurídico,
ainda que ele adote uma interpretação extensiva de normas constitucionais
principiológicas, sobretudo constitucionais.54 É óbvio, contudo, que sempre
há o risco de que o juiz se mostre propenso a substituir as valorações
constitucionais do legislador ordinário pelas suas próprias.55

In: Mello, C. Ari. Os desafios dos direitos sociais. Rev. do Ministério Público do RS, n. 56, set./
dez. 2005, p. 90.
51 Carvalho Filho, José dos S. Políticas públicas e pretensões judiciais determinadas. In:
Fortini, C.; Esteves, J.; Fonseca, M. Políticas públicas: possibilidades e limites. Belo
Horizonte: Fórum, 2008, p. 120s.
52 Vide Barboza, Estefânia M. de Queiroz; Kozicki, Katya. Judicialização da política e
controle judicial de políticas públicas. Revista DireitoGV, n. 15, São Paulo, jan./jun. 2012, p. 67ss.
53 Sobre o tema vide Vieira, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista DireitoGV, n. 8, jul./
dez. 2008, p. 446ss.
54 Teixeira, Anderson V. Ativismo judicial: nos limites entre racionalidade, jurídica e
decisão política. Revista DireitoGV, n. 15, São Paulo, jan./jun. 2012, p. 47s.
55 Todavia, não é este o caso no âmbito do controle das políticas públicas de cunho social, uma vez
que os respectivos direitos e deveres já estão extensivamente regulamentos pela Constituição de 1988.

151
Uma importante forma do ativismo é a “imposição de condutas ou
abstenções ao Poder Público em matéria de políticas públicas”.56 Perante a
ordem jurídica brasileira, o ativismo relacionado a políticas públicas deve ser
considerado, na grande maioria dos casos, “moderado”. Não há nesses casos
nenhum tipo de “dificuldade contramajoritária”, uma vez que a obrigação
de agir foi assentada claramente nas normas jurídicas constitucionais e/ou
ordinárias.57 O fato de que um prefeito ou governador não queira construir uma
creche, um asilo, uma estação de tratamento de esgoto, uma prisão-albergue,
contratar agentes de saúde ou aumentar o efetivo policial, evitando gastos
nessas áreas, não torna a respectiva imposição judiciária contramajoritária.
Neste sentido pronunciou-se o Min. Celso de Mello, no discurso
proferido na posse do Min. Gilmar Mendes na presidência do STF, em abril de
2008: “Nem se censure eventual ativismo judicial exercido por esta Suprema
Corte, especialmente porque, dentre as inúmeras causas que justificam esse
comportamento afirmativo do Poder Judiciário, de que resulta uma positiva
criação jurisprudencial do direito, inclui-se a necessidade de fazer prevalecer
a primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e
desrespeitada por pura, simples e conveniente omissão dos poderes públicos.”
Boa parte dos céticos em relação ao aumento do poder judicial se declara
adepta de teorias procedimentalistas da Constituição, que alegam ser o texto da
Lei Maior ser apenas instrumento formal de demarcação para os espaços das
instituições e desenho dos instrumentos da participação política, dentro dos
quais se deve desenvolver o embate plural das ideias políticas concorrentes.
Essa linha valoriza os direitos fundamentais diretamente relacionados à
liberdade de formação e do exercício da opinião política das pessoas (voto,
reunião, associação, acesso a informação, manifestação da opinião, liberdade
da imprensa etc.), enfatizando a importância dos procedimentos formais de
decisão – especialmente das eleições.

56 Barroso, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In:


Coutinho, J.; Fragale Filho, R.; Lobão, R. (orgs.). Constituição & ativismo judicial:
limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen
Júri, 2011, p. 278.
57 Apud Fragale Filho, Roberto. Ativismo judicial e sujeitos coletivos: a ação das
associações de magistrados. In: Coutinho, J.; Fragale Filho, R.; Lobão, R. (orgs.).
Ob. cit., p. 360.

152
Referência comum das vertentes procedimentalistas é a obra de Jürgen
Habermas. De forma bastante simplificada, pode-se dizer que o filósofo
alemão defende que a sociedade civil de um país deve se organizar livremente
e, mediante um processo de comunicação dialógica dos seus integrantes no
chamado espaço público, garantir a realização efetiva dos direitos fundamentais.
Nessa visão, os órgãos do aparato estatal – inclusive os tribunais –, a princípio,
não devem interferir neste processo de conscientização política, para não
atrapalhar o amadurecimento da própria sociedade.58
Essa corrente considera a teoria da Constituição dirigente e a sua
correspondente concepção material de legitimidade incapaz de dar respostas
convincentes às expectativas plurais existentes nas sociedades contemporâneas.
Nessa visão, a deliberação pública deve perseguir o consenso, mediante
justificação pública das decisões perante os demais participantes da comunidade
política. Do caráter dialógico do processo formador da vontade pública resulta
que a validade dos conteúdos normativos está sujeita à possibilidade de estes
serem defendidos argumentativamente no “espaço público”.59 No centro
estaria a discussão entre os integrantes de uma comunidade, com o fim do
aperfeiçoamento moral e intelectual dos indivíduos, os quais, refletindo sobre
os temas em debate, devem desenvolver habilidades para dialogar, articular-se
e, por fim, tomar decisões lastreadas em argumentos racionais.
Para essa teoria “democrático-deliberativa” da Constituição, a
concretização dos direitos sociais, que depende do uso de recursos públicos
escassos e exige decisões orçamentárias, só pode derivar da vontade da
maioria política. A justiça social deve ser alcançada através da atuação do
Legislativo e do Executivo, que são eleitos para tanto e cujas decisões refletem
a vontade da maioria popular, não cabendo ao Judiciário a concretização
autônoma e imediata desse projeto, através da formulação e implementação de

58 Habermas, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade – 2 vol. Rio de


Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. Para Renato Janine Ribeiro (A sociedade contra o social. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 126), o maior defeito da “prosa habermasiana (...) está
em acreditar que ocorra diálogo e democracia quando, na verdade, está havendo manipulação
e ideologia”.
59 Souza Neto, Cláudio P. de. Teoria da Constituição, democracia e igualdade. In: o mesmo
et alii. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da Política no Direito constitucional. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 11, 31s.

153
políticas públicas. Por isso, há prioridade para o incremento das condições de
funcionamento da democracia, a fim de que o próprio povo decida melhor.60
Para Lima, a jurisdição constitucional desfaz o que foi realizado pela
vontade coletiva representada no Poder Legislativo, porquanto a capacidade
dialógica dos tribunais para com as forças políticas e sociais é menor do que
aquela dos espaços do Poder Legislativo. Segundo o autor, apenas os especialistas
da dogmática jurídica possuem acesso ao discurso desenvolvido no processo
judicial constitucional, o que não se constata no âmbito do Poder Legislativo.
Assim, a discussão política poderia perfeitamente tanto se organizar em
ambientes leigos, como poderia a população, pela via de participação inclusiva,
discernir sobre o que é melhor para si na produção de soluções racionais.61
Muito citada, neste contexto, é também a distinção que o filósofo norte-
americano Ronald Dworkin faz entre argumentos “de princípio” e argumentos
“de política”: enquanto os primeiros se referem a direitos de indivíduos ou
de grupos e podem ser utilizados pelo juiz para fundamentar a sua decisão,
os últimos estão ligados à realização de objetivos sociais coletivos e, por isso,
reservados para os órgãos de representação política, legitimados pelo voto.62
Para o jusfilósofo norte-americano, a formulação das políticas públicas é
uma “questão sensível à eleição”, devendo ter por base as escolhas da própria
sociedade civil, através dos instrumentos de participação popular, “tais como
os conselhos deliberativos de políticas públicas”,63 o que provoca uma limitação
da atividade judicial neste campo.
Entretanto, no caso brasileiro, as políticas públicas envolvem
diretamente a realização de direitos fundamentais sociais consagrados na
Constituição federal, fato que os posiciona no âmbito dos argumentos de
princípio,64 os quais no pensamento dworkiniano estão sujeitos a um maior
60 Ob. cit., p. 1ss., 38, 44s.
61 Lima, Martônio Mon´t Alverne B. Jurisdição constitucional: um problema da teoria da
Democracia Política. In: Souza Neto, Cláudio P. de et alii. Teoria da Constituição. Ob. cit.,
p. 225s.
62 Dworkin, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.
129ss., 139s.
63 Appio, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá,
2005, p. 43.
64 Isto é admitido até por parte dos representantes da “Escola habermasiana” do controle de
constitucionalidade no Brasil, que limitam ao máximo a abrangência do controle judicial; cf.

154
controle dos tribunais. É por isso que o próprio autor afirma não conseguir
“imaginar em que argumento se poderia pensar para demonstrar que decisões
legislativas sobre direitos têm mais probabilidade de serem corretas que
decisões judiciais”.65 Seja lembrado também que a revisão judicial em relação às
políticas públicas normalmente não se refere à eleição de diferentes opções na
formulação da respectiva policy, mas a sua implementação, isto é, à aplicação
dos atos individuais necessárias para sua realização.
No Brasil, ao contrário da situação jurídica em outros países, é a
própria Constituição que regula em maior ou menor grau as atividades e os
elementos das políticas públicas que devem ser implementadas pelo Estado
para assegurar a realização dos direitos fundamentais sociais. Nesse âmbito
marcado por um texto constitucional analítico por excelência, o instrumento
da revisão judicial aparece com uma naturalidade bem maior do que em países
como os EUA ou a Alemanha, que possuem constituições sintéticas.66

6. A corrente substancialista (material) da Constituição; a diferença


entre criação e aplicação das normas jurídicas na sociedade
democrática

De maneira diferente da linha procedimentalista, os representantes da


teoria constitucional substancialista entendem os princípios consagrados na Carta
Magna como marcos materiais ou pauta de valores que devem reger a convivência
na sociedade. Por consequência, essa corrente aceita um controle judicial mais
abrangente da constitucionalidade das normas e, também, das políticas públicas.
Os direitos fundamentais inseridos no texto constitucional de um país
normalmente são fruto de uma efetiva mobilização popular, como aconteceu
durante a última Assembleia Nacional Constituinte (1986-88). Essas normas
possuem uma elevada “dignidade política” e democrática e estão acima das
leis ordinárias votadas de forma rotineira pelos parlamentos, onde prevalece

Cruz, Álvaro de Souza. Hermenêutica constitucional e(m) debate. Belo Horizonte: Fórum,
2007, p. 187.
65 Dworkin, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 26.
66 Figueiredo, Marcelo. O controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário no Brasil
– uma visão geral. Interesse Público, n. 44, Porto Alegre, jul./ago. 2007, p. 38.

155
o mero embate entre elites políticas, muitas vezes desprovido de compromisso
ético. Nessa visão, o Judiciário aparece como o “guardião” desse grande
momento da história constitucional brasileira.67
De qualquer maneira, aprópria consagração de direitos
fundamentais num texto constitucional diminui os espaços de deliberação
democrática por retirar determinados assuntos da agenda política.
Tal medida, contudo, é justificada em face das experiências históricas
de permanentes violações destes direitos por parte do poder estatal. É,
portanto, coerente afirmar que os direitos fundamentais possuem também
uma dimensão antidemocrática.68
Com essa afirmação, contudo, não se defende nenhum tipo de
“idealismo moralista”; é evidente que o Judiciário deve apenas nortear e guiar
a democracia, sem, no entanto, “ultrapassar o legislador”.69 Os juízes, apesar de
seu preparo intelectual, não possuem sempre um maior e melhor conhecimento
das causas em disputa. A decisão judicial retira o respectivo assunto da arena
democrática, onde ela deve ser defendida com argumentos, com o fim de
convencer os adversários. Vale frisar, contudo, que as decisões do STF mais
comentadas neste contexto não se referem à implantação de políticas públicas
constitucionalmente previstas, mas tratam de matérias que o Legislativo deixou
de regulamentar apesar de elevada demanda social (fidelidade partidária,
número de vereadores nas câmaras, greve de servidores públicos, aborto,
demarcação de terras indígenas, lei da imprensa). Nos casos de maior “desacordo
moral razoável” (pesquisa com células-tronco, cotas raciais), o STF, com poucas
exceções, confirmou a constitucionalidade das leis em vigor.70
67 Souza Neto, Cláudio P. de. Ob. cit., p. 40; Cittadino, Gisele. Pluralismo, Direito
e justiça distributiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 203. De forma contrária, há quem
entende que o “momento constituinte não é neutro”, antes pode “maquiar interesses escusos”,
o que faz com que “o resultado, a Constituição, nem sempre é o melhor texto que poderia ter
sido feito”; cf. Santos, Gustavo F.. Neoconstitucionalismo, Poder Judiciário e direitos
fundamentais. 2011, p. 73.
68 Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 446s.
69 Lima, Martônio Mont´Alverne B. Idealismo e efetivação constitucional: a impossibilidade
da realização da Constituição sem a política. In: Coutinho, J. ; Lima, M. (orgs.). Diálogos
constitucionais: Direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p. 383s.
70 Cf. Tavares, André R.; Buck, Pedro. Direitos fundamentais e democracia:
complementaridade/ contrariedade. In: ClÈVE, C.; Sarlet, I.; Pagliarini, A. (orgs.).

156
Na verdade, não há necessidade de uma autorestrição dos tribunais nos
casos que tratam de omissão (total ou parcial) na implementação de políticas
públicas já definidas pela ordem legal. Os tribunais brasileiros dificilmente têm
“tutelado” os governos federal, estaduais e municipais em favor de uma prestação
mais efetiva e constitucionalmente adequada dos serviços públicos básicos. Seria
interessante conhecer a “grande massa” de decisões judiciais que condenam
entes públicos a manter hospitais e escolas públicas decentes, criar condições
mínimas de saneamento básico, construir mais habitações populares dignas etc.
Nos últimos anos é cada vez mais frequente o deferimento de ações
individuais na área da saúde (tratamento de doenças, medicamentos caros,
próteses) pouco mudou o quadro de timidez judicial na área social. Trata-se de
uma dinâmica jurisprudencial pouco ligada a convicções teóricas e mudanças
de atitude para com os direitos sociais consagrados nos textos constitucionais.
Antes, é expressão de uma nova rotina da magistratura, que se vê obrigada a
deferir boa parte de tais pleitos, já pelo fato de que vários dos governos atingidos
nem se deixam mais defender em juízo, julgando mais prático reservar, desde
o início do exercício financeiro, uma parte dos recursos destinados à saúde
pública para pagamentos em virtude de mandados judiciais.
O modelo da Constituição dirigente trabalha com um conceito material
de legitimidade: a Lei Maior não deve conter apenas normas que fixam limites
da intervenção estatal ou normas processuais para a atividade política, mas
também definir fins e objetivos para o Estado e a sociedade, determinando,
inclusive, a realização e – pelo menos parcialmente – o conteúdo de várias
políticas públicas.71 No entanto, qualquer Carta dirigente não sofre apenas

Direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 182ss.; Brandão, Rodrigo.
Supremacia judicial versus diálogos constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 185.
71 Canotilho, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador.
Coimbra: Coimbra Editora, 1982 (reimpressão 1994), passim. O próprio autor alterou
significativamente sua concepção, fato que foi comentado criticamente na nossa obra intitulada
Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha (Porto Alegre: Sergio Fabris),
de 2002. Um ano depois, professores da UFPR organizaram uma teleconferência com o
constitucionalista português, durante a qual ele deixou claro que a Constituição dirigente “não
morreu”, mas apenas o seu viés revolucionário-socialista, característica da Carta portuguesa de
1976, em virtude do avanço econômico e político do país após o ingresso na União Europeia;
cf. Coutinho, Jacinto N. de Miranda. Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 34ss.

157
desgaste em virtude da inefetividade evidenciada pelo enorme hiato entre os
direitos sociais consagrados e a realidade social, mas também pela falta de “forças
políticas comprometidas com a sua implementação” na respectiva sociedade,
os quais sejam capazes de fazer frente a projetos “des-emancipatórios”.72
Em todo caso, é evidente o viés substancialista da Carta brasileira,
que entende as suas normas principiológicas como marcos de valores que
devem reger a convivência na sociedade e nortear as decisões dos órgãos
estatais (“garantismo social”). Esta Constituição, por ser repleta de normas
principiológicas e consagradoras de valores, traça um perfil nítido dos fins
sociais do Estado Democrático de Direito. Cumprindo essa sua função,
contudo, a Constituição dirigente não substitui o processo de decisão
política, mas apenas estabelece um fundamento constitucional para a política,
tornando-se sua premissa material.73
Entretanto, faz pouco sentido querer atribuir ao Judiciário uma
“missão messiânica” capaz de levar à salvação do país.74 É notório que o
Terceiro Poder se encontra num processo de reformulação de seus próprios
fundamentos éticos, funcionais e administrativos. Todavia, os tribunais, em
muitas regiões do Brasil, ainda não esgotaram os seus espaços materiais de
decisão e a influência institucional que a própria Constituição os reservou para
garantir uma efetiva realização dos direitos fundamentais.
O ponto decisivo da disputa entre as referidas duas vertentes da Teoria
da Constituição reside na seguinte questão: se a igualdade material – e, com
isso, a própria justiça social – deve ser entendida como finalidade ou como
condição do procedimento democrático. No entanto, até a linha de autores
que comungam com a teoria procedimentalista admite que os direitos sociais,
ainda que não sejam considerados o objetivo primordial da democracia,
constituem um requisito imprescindível para a sua realização e, por isso, são
passíveis de obter a sua concretização diretamente pelo Judiciário. Já autores
72 Lima, Martônio Mont´Alverne B. Política versus Direito: real desafio da jurisdição
constitucional. In: Freitas, Lorena; Feitosa, Enoque. Marxismo, realismo e direitos
humanos. João Pessoa: Editora da UFPB, 2012, p. 61.
73 Bercovici, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 58.
74 Cf. Ribeiro, Renato Janine. A sociedade contra o social. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 157.

158
clássicos como Rousseau e Heller consideraram necessário um contexto social
razoavelmente igualitário por razões políticas, e não em função de uma teoria
de justiça econômica, ético-filosófica etc. Assim, certo grau de homogeneidade
social se torna o fundamento comum para toda discussão política, mediante
uma “interação dialógica e cooperativa entre os diversos atores que assumem
posições no processo político-democrático”.75
Nessa perspectiva intermediária, certos direitos sociais prestacionais
são considerados condicionantes procedimentais da democracia, especialmente
os que possuem fundamentalidade material. Estes direitos podem ser
concretizados legitimamente pelo Judiciário, independentemente de decisões
majoritárias, visto que se trata de estabelecer “certas condições de vida sem as
quais a própria idéia de cooperação social perde completamente o sentido”.76
Não satisfaz a sua leitura meramente procedimental, segundo qual o
texto da Lei Maior apenas representa um instrumento formal para demarcar
os espaços institucionais e desenhar os instrumentos de participação política
dos cidadãos, dentro dos quais se deve desenvolver o embate plural das ideias
políticas concorrentes.77 Com isso, não se defende um modelo de Constituição
puramente material, que desvaloriza a função legislativa e não deixa espaços
para a deliberação política; em vez disso, a natureza da Constituição brasileira
deve ser considerada de natureza mista, isto é, “material-procedimental”.78

7. Mudança da jurisprudência superior sobre a possibilidade da


condenação de entes públicos em virtude de omissões na prestação
dos serviços públicos essenciais

A maioria dos julgados dos tribunais brasileiros sobre políticas


públicas não está arrimada em uma teoria sólida e segura. Ainda não foram

75 Souza Neto, Cláudio Pereira de. Teoria da Constituição, democracia e igualdade. In:
o mesmo et alii. Teoria da Constituição. 2003, p. 5ss., 9.
76 Ob. cit., p. 53, 58.
77 Vide Mello, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. 2004,
p. 70ss., 84ss., 281ss.; Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2006, p. 568ss.,
630ss.; Espinoza, Danielle S. E. Entre substancialismo e procedimentalismo: elementos
para uma teoria constitucional brasileira adequada. Maceió: edUFAL, 2009, p. 73ss.
78 Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2008, p. 522.

159
identificados os parâmetros objetivamente aferíveis e os meios de tutela
judicial aptos a promover este controle.79 Muitos juízes, até hoje, se recusam
a condenar os governos municipais ou estaduais a adotarem determinadas
políticas sociais ou medidas de proteção ou saneamento ambiental, alegando
que tal condenação entraria em choque com o princípio da separação dos
poderes e que a adoção de tais medidas envolveria decisões indevidas sobre
assuntos de natureza orçamentária.
Costuma-se invocar também o princípio discricionário segundo o qual
não caberia uma indevida ingerência dos tribunais nas opções de ordem técnica
e política dos governos e órgãos administrativos, que teriam o poder exclusivo
de apreciar a oportunidade e a conveniência de suas medidas.80 No entanto,
as onipresentes escolhas desarrazoadas e decisões equivocadas referentes à
alocação de recursos na realização de obras e prestação de serviços essenciais
para garantir uma vida digna à população não correspondem à “conjuntura
valorativa positivada na Carta de 1988” e, por isso, não encontram respaldo
em um pretenso respeito ao “mérito” das decisões administrativas. Nesse
âmbito, os direitos fundamentais diminuem cada vez mais a discrição estatal
e impõem atitudes ativas,81 havendo, com outras palavras, uma limitação da
discricionariedade diante da densidade normativa da garantia.82
Em 2004, o STF mudou significativamente a sua posição no âmbito
da efetivação dos direitos sociais. Nessa decisão, o Relator Min. Celso de
Mello entendeu que, ainda que, ordinariamente, não pertença às funções
do Judiciário a formulação e implementação de políticas públicas, tal
incumbência poderia, excepcionalmente, ser atribuída ao Terceiro Poder “se
e quando os  órgãos  estatais competentes, por descumprirem os encargos
político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal
79 Barros, Marcus A. de Freitas. Controle jurisdicional de políticas públicas. 2008, p.
114s., 168.
80 Marinoni, Luiz Guilherme. Tutela inibitória (individual e coletiva). 3. ed. São Paulo:
RT, 2003, p. 102; Limberger, Têmis. O dogma da discricionariedade administrativa: a tensão
entre os poderes Judiciário e Executivo devido às políticas públicas de saúde no Brasil. Interesse
Público, n. 57, Porto Alegre, set./out. 2009, p. 81ss.
81 Alonso Jr., Hamilton. A ampliação do objeto das ações civis públicas na implementação
dos direitos fundamentais. In: Milaré, Édis (coord.). A ação civil pública após 20 anos:
efetividade e desafios. São Paulo: RT, 2005, p. 210ss.
82 Barros, Marcus A. de Freitas. Controle jurisdicional de políticas públicas. 2008, p. 29.

160
comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos
impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas
revestidas de conteúdo programático”.83
Segundo essa linha, o STF afirmou no ano seguinte que o Judiciário
não pode elaborar políticas públicas, mas pode compelir o poder público a
implementá-las caso estejam previstas na Constituição, quando decidiu que o
Município de Santo André devia garantir a matrícula de uma criança na creche
municipal, entendendo ser a obrigação da prefeitura garantir o acesso à creche
a crianças de até seis anos de idade, independentemente da oportunidade e
conveniência do poder público. “Quando a proposta da Constituição Federal
impõe o implemento de políticas públicas, e o poder público se mantém
inerte e omisso, é legítimo sob a perspectiva constitucional garantir o direito
à educação e atendimento em creches”, já que este direito não poderia ser
submetido ao mero juízo de conveniência do Poder Executivo.84
Destarte, cabe, ainda que excepcionalmente, ao Poder Judiciário “a
atribuição de formular e implementar políticas públicas (...), se e quando os
órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos
que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal
comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos
impregnados de estatura constitucional”.85
Segundo o Min. Celso de Mello, a Constituição delineou um “nítido
programa a ser implementado mediante adoção de políticas públicas
conseqüentes e responsáveis — notadamente aquelas que visem a fazer
cessar, em favor da infância carente, a injusta situação de exclusão social e
de desigual acesso às oportunidades de atendimento em creche e pré-escola”.
Na sua avaliação, o descumprimento dessa meta deve ser qualificado como
uma censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao
poder público. É importante ressaltar que o mesmo entendimento poderá
83 STF – ADPF 45 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 29.4.2004.
84 STF-RE 436.996 AgR/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22.11.2005. Este entendimento, que
era adotado apenas pelos ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, passou a ser acompanhado
pelos integrantes da 2ª Turma do Tribunal (Carlos Velloso, Celso de Mello, Ellen Gracie, Gilmar
Mendes e Joaquim Barbosa).
85 STF – RE 410.715-AgR/SP, 2° Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22.11.2005, p. 9s. (fls.
1539s.).

161
ser estendido a outros setores, onde existem dispositivos constitucionais que
definem o conteúdo das prestações devidas.
Na mesma linha, o STF entendeu recentemente que “o direito à
segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante
a implementação de políticas públicas impondo ao Estado a obrigação de
criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço”.86 Em
2009, numa decisão sobre o dever do Estado de São Paulo de aumentar o
efetivo policial em dois municípios, com base nos arts. 6° e 144 CF, o Min.
Relator Gilmar Mendes deixou claro que a este “dever do Estado corresponde
o direito subjetivo do cidadão e a este direito subjetivo corresponde uma
ação que obriga o Poder Judiciário a não apenas declarar, mas também a dar
eficácia à vontade do legislador”. Por isso, “reconhecer e garantir a efetividade
de direitos não implica ingerência indevida do Poder Judiciário na área de
atuação de outro Poder, mas efetivo cumprimento de seu próprio dever
constitucional que deve ser exercido mesmo contra o Estado”, uma vez que
“não se pode tolerar sejam relegados a segundo plano direitos consagrados
constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da
nação”.87
Nesse sentido manifestou-se também o Superior Tribunal de Justiça,
quando, em 2004, entendeu que não existe discricionariedade, mas vinculação
administrativa referente à decisão sobre a construção de um hospital infantil, para
não deixar desassistidos milhares de crianças pacientes.88 Em decisão semelhante, do
mesmo ano, o STJ negou qualquer discricionariedade a respeito do cumprimento
do Estado com o seu dever constitucional de oferecer vagas suficientes em creches.89

86 STF – RE-AgR 559.646/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 7.6.2011.


87 STF - STA 338/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.9.2009, com referência à decisão do TJSP
(ApCív na ACP 750.842-5/5-00), que, por sua vez, invoca precedente do STJ (REsp n. 736.524-
SP, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.3.2006, fls. 246ss.).
88 STJ - REsp 577.836/SC, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 21.10.2004.
89 STJ - REsp 575.280/SP, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 2.9.2004. Destacou-se também que
a Constituição “é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas
e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e eficazes suas promessas,
sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que (...)
os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais
da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à creche, cumpre
adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de
Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria intelectual que assola o país” (ob. cit.).

162
Além disso, o Tribunal determinou “que seja incluída verba no próximo orçamento,
a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas”.90
Essa linha progressiva foi retomada pelo STJ em decisão de 2009, na
qual condenou o Estado do Mato Grosso do Sul a fornecer equipamentos a um
hospital público, alegando-se expressamente a “não-configuração de afronta
à ordem econômica e orçamentária e à separação dos poderes”. O Tribunal
entendeu que “a partir da consolidação constitucional dos direitos sociais (...)
não só a administração pública recebeu a incumbência de criar e implementar
políticas públicas necessárias à satisfação dos fins constitucionalmente
delineados, como também, o Poder Judiciário teve sua margem de atuação
ampliada, como forma de fiscalizar e velar pelo fiel cumprimento dos objetivos
constitucionais”. Por isso, “assegurar um mínimo de dignidade humana por
meio de serviços públicos essenciais, dentre os quais a educação e a saúde,
é escopo da República Federativa do Brasil que não pode ser condicionado
à conveniência política do administrador público. A omissão injustificada da
administração em efetivar as políticas públicas constitucionalmente definidas
e essenciais para a promoção da dignidade humana não deve ser assistida
passivamente pelo Poder Judiciário.”91
O STJ também tem alterado a sua posição no sentido de começar a
admitir o controle de atos da Administração Pública relacionadas à prestação de
serviços de saneamento básico que anteriormente considerava discricionários
e, portanto, não sindicáveis.92 O Tribunal, hoje, entende que não cabe falar
de conveniência e oportunidade (“mérito”) de uma decisão administrativa
se esta infringe normas constitucionais, inclusive principiológicas, como
a moralidade, a razoabilidade e a dignidade humana, ou viola os direitos
fundamentais à saúde e ao meio ambiente.93
Em 2010, o próprio STF afirmou a obrigação de um município a
construir um aterro sanitário em defesa dos direitos da sua população, “de modo
90 STJ - REsp 493.811/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 11.11.2003.
91 STJ - REsp 1.041.197/MS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 25.8.2009.
92 STJ – REsp n. 169876-SP, rel. Min. José Delgado, publ.: DJU, 21.9.1998.
93 STJ – REsp n. 575.998-MG, 1ª Turma, rel. Min. L. Fux, j. 7.10.2004; REsp n. 429.570-GO, 2ª
Turma, rel. Min. E. Calmon, j. 11.11.2003; cf. Sarlet, Ingo; Fensterseifer, Tiago. A tutela
do ambiente e o papel do Poder Judiciário à luz da Constituição de 1988. Interesse Público, n.
50, Porto Alegre, 2008, p. 34s.

163
a evitar a poluição ambiental e a garantir a saúde primária da comunidade,
providência de irrefutável matiz constitucional, nos termos dos arts. 196 e
225,94 invocando, inclusive, decisão anterior em que a Corte constatou que “o
meio ambiente constitui patrimônio público a ser necessariamente assegurado
e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando-
se como encargo irrenunciável que se impõe – sempre em benefício das
presentes e das futuras gerações – tanto ao Poder Público quanto à coletividade
em si mesma considerada”.95 Na mesma direção aponta a recente condenação
da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP) a
executar obra destinada ao tratamento de esgoto que foi lançado in natura
no rio Guariba, em que o STF confirmou o direito do Judiciário de apreciar e
decidir sobre uma atividade poluidora, “de forma que não está examinando o
mérito de qualquer ato administrativo” (destaque nosso).96
Na área da saúde pública, onde surgiram as maiores polêmicas nos
últimos tempos, o Min. Gilmar Mendes, em 2010, entendeu, após convocação
de audiência pública para ouvir especialistas em saúde pública, que “ao deferir
uma prestação de saúde incluída entre as políticas sociais e econômicas
formuladas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Judiciário não está criando
política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento” (destaque
nosso.). Todavia, impende frisar que a decisão reconheceu o direito subjetivo
apenas em relação às prestações previstas pelas normas do SUS, excluindo-se,
assim, o direito a tratamentos, remédios etc., que não foram aprovados pelas
instâncias administrativas do sistema.97
De forma diversa, os Tribunais de Justiça de vários Estados e o próprio
STJ adotaram, no decorrer dos últimos anos, a jurisprudência de conceder ao
cidadão pleiteante quase qualquer medicamento exigido, independentemente
de sua inserção nas listas oficiais dos órgãos do SUS.98 Seja frisado, contudo,
94 RE 401.758 AgR/GO, rel. Min. E. Gracie, j. 18.3.2010.
95 STF – ADI n. 3.540-MC/DF, Plenário, rel. Min. C. de Mello, publ.: DJ 3.2.2006.
96 STF – RE n. 310.038/SP, rel. Min. C. A. Britto, j. 7.12.2009.
97 STF – SL 47 AgR/PE, Tribunal pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.3.2010 (fl. 23).
98 Em Alagoas, o TJAL praticamente não analisa mais as circunstâncias do caso concreto,
concedendo, de forma quase “automática”, os medicamentos solicitados aos indivíduos atores
das ações. Em Pernambuco, o Tribunal de Justiça uniformizou, mediante edição da Súmula nº
18, sua jurisprudência no sentido de estabelecer o dever do Estado de garantir medicamento
essencial ao tratamento de moléstia grave ao cidadão carente (hipossuficiente), mesmo os não

164
que as mencionadas decisões mais restritivas do STF em relação à abrangência
do direito fundamental à saúde tiveram por base ações coletivas,99 razão pela
qual elas ainda não repercutiram de maneira mais incisiva na jurisprudência
inferior que concede, até hoje, aos indivíduos quase todas as prestações
pleiteadas na área da saúde, sem a devida análise das circunstâncias do caso
concreto. Uma leitura mais atenta dos precedentes do STF a respeito deveria
levar os Tribunais de Justiça do País a uma maior cautela no momento de
condenar os entes públicos.
O leading case neste sentido é a ADPF 45, de 2004, no qual o STF tratou
do tema da “reserva do possível”, uma vez que a efetivação dos direitos sociais
exige do Poder Público um elevado gasto financeiro, que estaria “subordinado
às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada,
objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta
não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida,
a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política”. Ao
mesmo tempo, o STF recusou qualquer tentativa do poder estatal de “criar
obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de
fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em
favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência”.
Assim, não caberia ao Estado invocar a citada cláusula “com a
finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais”
(especialmente direitos fundamentais), “ressalvada a ocorrência de justo
motivo objetivamente aferível”. Para invalidar a objeção da reserva do possível,
o Tribunal julgou necessário “a razoabilidade da pretensão individual/social
deduzida em face do Poder Público” e “a existência de disponibilidade financeira
do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas”. No
entanto, não restou claro em quais hipóteses tais condições seriam cumpridas,
listados na Portaria do Ministério da Saúde. Disponível em: <www.tjpe.jus.br/sumulas/sumulas.
pdf>. Acesso: 31.7.2012.
99 A decisão na STA 47 sobre a suspensão da tutela antecipada teve por base uma ação civil
pública, instaurada contra o Município de Petrolina (PE) para que este adotasse oito providencias
administrativas para a melhoria imediata do atendimento no Hospital Dom Malan. Já em 2007,
o STF suspendeu (parcialmente) a tutela antecipada concedida em sede de ação civil pública,
relativa à obrigação do Estado de Alagoas de fornecer medicamentos não constantes da lista do
SUS para o tratamento de pacientes renais crônicos em hemodiálise e pacientes transplantado
(STF - STA 91-AL, Rel. Min. Pres. Ellen Gracie, j. 26.2.2007).

165
especialmente quando os poderes estatais estariam agindo “de modo irrazoável”,
com “injustificável inércia”, demonstrando um “abusivo comportamento”
e afetando “aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto
irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e
essenciais à própria sobrevivência do indivíduo”.

8. O Judiciário como contrapoder no combate à omissão estatal


inconstitucional; a questão dos recursos escassos e da “reserva do
possível”

O antigo princípio da separação dos Poderes tem sua origem na defesa


dos direitos humanos contra o Estado autoritário, sendo equivocada a sua
invocação para sustentar que o Poder Público possa se omitir na realização
dos direitos fundamentais sociais e ecológicos.100 Por isso, as correições que
os tribunais podem pronunciar em direção do Executivo omisso devem ser
entendidas como exercício da função do Judiciário como um contrapoder.
Onde o processo político da definição concretizadora e implementação
de uma política pública falha em nível do Executivo, o Judiciário tem não
somente o poder, mas o dever de intervir. Nesses casos, as tarefas e encargos
dos diferentes poderes nas três esferas federativas densificaram-se para gerar
uma responsabilidade de gestão do poder estatal como um todo.101
As ações administrativas, nesses casos, não podem ser postergadas por
razões de oportunidade e conveniência, nem sob alegação de contingências
financeiras. E, embora as atividades concretas da Administração dependam
de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades estabelecidas
pelo governante, o argumento da reserva do possível não é capaz de obstruir
a efetivação judicial de normas constitucionais.102 É apenas um (entre vários)
princípios que devem ser considerados e sopesados com cautela na decisão
100 Mirra, Álvaro L. Valery. A ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 380.
101 Cf. Costa, Flávio Dino de Castro e. A função realizadora do Poder Judiciário e as políticas
públicas no Brasil. Interesse Público, n. 28, Porto Alegre, 2004, p. 64ss.
102 Já há mais de uma década, mostramos que a figura da “reserva do possível” foi transferida,
sem as devidas adaptações, do Direito Constitucional alemão para o brasileiro e que ela possui
um peso argumentativo apenas relativo; cf. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na
Alemanha: os (des)caminhos de um Direito Constitucional “comparado”. 2002, p. 51ss.

166
sobre o caso concreto, especialmente quando a concessão judicial de uma
vantagem exige gastos elevados, desproporcionais ao respectivo orçamento
público.103
Neste contexto, Wang critica que a maioria das decisões do STF
sobre pleitos individuais nas áreas da saúde e da educação públicas não
entra na análise concreta das condicionantes econômicos e financeiros do
caso concreto, utilizando-se o argumento da “reserva do possível” de forma
genérica, mormente nas ações de controle difuso de constitucionalidade. O
autor mostra também que dificilmente é seguido o precedente do próprio STF,
a ADPF 45, que criou a exigência de que intervenções judiciais em políticas
públicas teriam de ser excepcionais e justificadas perante os fatos do caso.
Assim, o problema estaria menos no resultado dessas decisões, mas na forma
de sua fundamentação.104
Apesar das posições discordantes,105 entendemos ser possível haver
um controle judicial tanto em relação à formulação (definição, escolha e
configuração institucional) quanto à execução (implementação) de políticas
públicas. Dependendo da densidade normativa de regulamentação da política
e do direito fundamental subjacente, o Judiciário deve fiscalizar todas as etapas
do procedimento e uma série de atividades.106 Além disso, a sindicância em
relação à própria definição da policy será restrita aos casos da omissão total
do Executivo neste sentido, devendo-se ater a orientações mais genéricas, sem
prescrição de detalhes.
Ao mesmo tempo, é claro que não cabe ao Judiciário jogar o papel do
administrador público. Se este, porém, não age de forma devida e legalmente
prevista, cabe ao juiz formular o respectivo mandamento, prescrevendo de forma

103 Cf. Sarmento, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros
ético-jurídicos. In: Souza Neto, C. P. de; Sarmento, D. Direitos sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 570s.
104 Wang, Daniel Wei L. Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível.
Revista DireitoGV, n. 8, São Paulo, jul./dez. 2008, p. 548ss.
105 Eduardo Appio, um dos primeiros autores que trataram do assunto de maneira mais
aprofundada no Brasil, entende possível apenas o controle da etapa de execução de uma política
pública, rejeitando a sindicância de sua formulação. Cf. Controle judicial das políticas públicas
no Brasil. 2005, p. 150ss.
106 Barros, Marcus A. de Freitas. Controle jurisdicional de políticas públicas. 2008, p.
140, 174ss.

167
clara o que for preciso. Quando forem necessários conhecimentos técnicos
específicos para definir os moldes do serviço a ser implementado ou da obra a
ser realizada, o magistrado deve recorrer à expertise de especialistas e peritos.
Agindo assim, o juiz não cria a política pública, mas apenas impõe aquela já
estabelecida na Constituição e na lei,107 realizando o que se pode chamar de
“reajuste da harmonia ilicitamente desbalanceada das funções estatais”.108
Segundo Barcellos, cabe controle judicial quando o Judiciário tem
elementos suficientes para “formular um juízo consistente de certo/errado”
em face das decisões do Legislativo ou do Executivo a respeito da formulação
e execução de políticas públicas; “esse juízo pode ter fundamentos morais ou
técnico-científicos”. A autora identifica cinco objetos alvos de controle judicial
referente a uma política pública: a fixação de metas e prioridades do Poder
Público em matéria de direitos fundamentais; o resultado final esperado em
determinado setor; a quantidade de recursos a ser investida; o atingimento (ou
não) das metas fixadas; a eficiência mínima na aplicação dos recursos públicos
para a respectiva finalidade.109
A questão de como gastar recursos públicos está intimamente ligada
aos fins constitucionais a serem perseguidos, sendo pequena a reserva para a
deliberação política. Na medida em que políticas públicas são o meio direto de
realização de direitos fundamentais, é a própria Constituição que determina,
até certo ponto, as escolhas referentes ao emprego dos recursos públicos
limitados. A intensidade dessa vinculação depende de cada área material de
regulamentação; no Brasil, ela é muito mais intensa do que nos EUA e na
Alemanha, origem da maior parte das referidas teorias deliberativas.110
Assim, recomenda-se compreender o novo papel do Judiciário mais
no sentido de um agente catalisador da tomada correta das decisões político-

107 Mancuso, Rodolfo de C. A ação civil pública como instrumento de controle judicial
das chamadas políticas públicas. In: Milaré, Édis (coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/85
– 15 anos. 2001, p. 745.
108 Gomes, Luís R. O Ministério Público e o controle da omissão administrativa, Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 119; Frischeisen, Luiza C. Fonseca. Políticas
públicas: a responsabilidade do administrador e do MP. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 95.
109 Cf. Barcellos, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matérias
de direitos fundamentais. Rev. de Direito do Estado, n. 3, Rio de Janeiro, jul./set. 2006, p. 33ss.
110 Ob. cit., p. 23s.

168
administrativas. Embora repetidas condenações de governos nos diferentes
níveis federativos não sejam capazes de substituir uma efetiva mobilização dos
diferentes grupos sociais, elas são importantes vetores de focalização política
e, no mínimo, facilitam a cobrança das respectivas prestações por parte dos
atores políticos de oposição e da própria sociedade civil.
Entretanto, tais sentenças judiciais nem sempre levarão, por si, a
uma real prestação dos serviços, uma vez que o Judiciário normalmente não
possui os meios necessários para garantir a execução direta de suas decisões
e orientações interpretativas, ficando, nesse ponto, na dependência da
colaboração dos órgãos do Poder Executivo. Estes, no entanto, frequentemente
alteram ou até anulam – seja por razões políticas ou por mera inércia – os efeitos
preconizados pelos referidos atos do Judiciário.111 Por outro lado, não se deve
desprezar o efeito moralizador e conscientizador que tais decisões judiciais
são capazes de causar sobre os órgãos governamentais, os quais, muitas vezes,
resolvem realizar as respectivas medidas administrativas espontaneamente,
antes que os litígios cheguem nas instâncias superiores.112

9. A sociedade civil no controle das políticas públicas: substituição


de (quase) ausentes

Os cidadãos dos países periféricos, cuja média, até hoje, possui um


nível reduzido de formação escolar e de poder de consumo, dependem, mais
do que nunca, de políticas sociais e econômicas de contenção do processo de
exclusão social. Uma democracia mais direta e participativa parece ser a única
saída para fazer frente à debilidade dos partidos políticos e dos governos eleitos,
que facilmente são cooptados por interesses econômicos e corporativistas. Por
isso, é imprescindível o esforço permanente de todos os poderes estatais a fim
de corrigir as deficiências do próprio sistema democrático representativo.113
111 Brandão, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais. 2012, p.
237. Marradi, Alberto. Sistema judiciário. In: Bobbio, N.; Matteucci, N.; Pasquino,
G. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: UnB, 1998, p. 1162.
112 Cf. Gouvêa, Marcos M. O controle judicial das omissões administrativas. Rio de
Janeiro: Forense Jurídica, 2003, p. 381.
113 Cf. Appio, Eduardo. Discricionariedade política do Poder Judiciário. Curitiba: Juruá,
2006, p. 81; Cunha Jr., Dirley da. Controle judicial das omissões do Poder Público. São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 345s.

169
Não é segredo que a exclusão econômica provoca uma “paralisia
das pessoas afetadas enquanto seres políticos”, levando à exclusão social,
cultural, política e jurídica e convertendo as referências à “vontade do povo”
e aos “interesses populares” em meros instrumentos de neutralização das
reivindicações de integração dos grupos marginalizados.114 É de conhecimento
geral que “os que atuam no campo político, o fazem movidos por questões
imediatas, conjunturais (...), muitas vezes movidos por interesses adversos aos
direitos dos demais cidadãos, e aos interesses permanentes da comunidade
considerada como um conjunto”.115
As críticas em relação à diminuta capacidade de normatização dos
órgãos legislativos em muitas regiões brasileiras não devem ser entendidas no
sentido dos ataques deferidos por Carl Schmitt na primeira metade do século
XX contra a forma clássica da democracia ocidental. Para ele, os parlamentos
do Estado liberal não possuíam legitimidade por favorecer o individualismo
“burguês” na manutenção de sua liberdade econômica, em detrimento da
representação dos interesses coletivos da comunidade em favor da igualdade.
Em consequência, restaria impossível uma identidade entre governantes e o
povo, necessária para produzir uma “decisão política fundamental”, a partir do
“antagonismo amigo/inimigo”.116
Entretanto, boa parte da população brasileira vive em condições de
pobreza, inúmeros indivíduos não possuem condições básicas para exercer as
suas liberdades políticas devido à falta de um nível mínimo de educação e
informação, o que prejudica sobremaneira “a autonomia do indivíduo para

114 Müller, Friedrich. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema
democrático? Rev. da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre (edição especial),
out. 2000, p. 27s. Disponível em: www2.portoalegre.rs.gov.br/pgm/default.php?p_secao=12
(acesso: nov. 2012).
115 Barbosa, Estefânia M. de Queiroz. Jurisdição constitucional, direitos fundamentais
e democracia. In: Clève, C.; Sarlet, I.; Pagliarini, A (orgs.). Direitos humanos e
democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 277ss., 282.
116 Schmitt, Carl. Verfassungslehre (1928). 8. ed. Berlin: Duncker&Humblot, 1993, p.
214s., 303ss. Essa noção extrema de política é incompatível com o conceito moderno de direitos
fundamentais. Os “exclusivismos normativos” schmittianos não se coadunam com as exigências
do Estado Democrático de Direito nas sociedades (pós-)industriais, que são caracterizados pelo
pluralismo, isto é, a coexistência de vários padrões axiológicos distintos; cf. Almeida Filho,
Agassiz. Fundamentos do Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 115ss. 164,
214s., 239s.

170
avaliar, refletir e participar conscientemente do processo democrático”. Nesse
ambiente marcado pela ausência de um efetivo controle social, as deliberações
majoritárias sofrem fortemente com a corrupção e o clientelismo, que acabam
distorcendo completamente o senso crítico da população em relação a seus
representantes. Por conseqüência, há um ciclo vicioso de gasto ineficiente
dos recursos públicos, com a conseqüente falta de melhoria substancial das
condições de vida da população carente.117
A partir dos anos 90, foi construída no Brasil uma nova visão das
relações entre Estado e sociedade. Foram, sobretudo, as organizações não
governamentais (ONGs) que passaram a exercer o papel de mediadores entre
coletividades organizadas de cidadãos e as instituições governamentais. Assim,
criou-se uma esfera pública não estatal, cuja importância aumenta à proporção
que diminui a eficiência e representatividade dos órgãos estatais tradicionais.
Surgiu também um número elevado de movimentos sociais “não voltados
contra o Estado, mas expressão de seus interesses e das políticas que buscam
implementar”.118
Todavia, as ONGs brasileiras, até hoje, com poucas exceções, possuem
pouco poder de reivindicação, número reduzido de associados ativos e pouco
profissionalismo na sua atuação junto às instituições estatais. O crescimento do
número de ONGs no país durante as últimas duas décadas se deve, sobretudo,
às iniciativas de agentes econômicos que formaram o chamado Terceiro Setor,
cuja finalidade não é uma cidadania emancipatória e reivindicatória, mas a
prestação de serviços assistenciais mediante captação de recursos públicos,
inclusive, com alto índice de desvio.119
117 Cf. Barcellos, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matérias
de direitos fundamentais. Rev. de Direito do Estado, n. 3, Rio de Janeiro, jul./set. 2006, p. 26s.
118 Gohn, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e
contemporâneos. São Paulo: Loyola, 2011, p. 253, 301ss., 311. “Se ser contra o Estado foi uma
novidade nos movimentos ecológicos alemães, nos brasileiros foi uma opção estratégica” (ob.
cit., p. 233).
119 Cf. Silva, Jacqueline M. Cavalcante da. Controle social das políticas públicas no Brasil.
Rev. Controle, vol. VIII, n. 1, Fortaleza, set. 2010, p. 84s. Em face desta realidade, faz pouco sentido
aderir à afirmação habermasiana de que essas entidades, “embora componham a sociedade civil,
regem-se por uma lógica que se diferencia radicalmente da busca de maximização dos interesses
privados, própria das forças econômicas do mercado”; cf. Sarmento, Daniel. Interesses
públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: o mesmo.
Interesses públicos versus interesses privados. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 47s.

171
Carvalho mostra que a expansão do direito do voto no Brasil nas
últimas décadas não tem levado a um alargamento do espaço público, que não
inclui os inúmeros desinformados, semianalfabetos e analfabetos. O inegável
aumento de cultura política ainda está concentrado nos segmentos sociais
de maior renda e escolaridade; pouco diminuiu o abismo entre a sociedade
civil e o sistema político brasileiro. Nesse contexto social, “a norma e a sua
constitucionalização (...) não foram fruto da projeção da potesta individual ao
plano político”, mas resultado de uma “modernização civilizatória” projetada
pelo próprio Estado brasileiro. Como efeito desta situação, o constitucionalismo
e os direitos fundamentais ainda não se incorporaram plenamente à cultura
política brasileira.120
Mangabeira Unger, famoso crítico do ativismo judicial, enxerga o único
caminho viável para o gozo efetivo de direitos em reformas institucionais para
fins de reorganização da sociedade civil. A simples transferência de poder em
ambientes de cidadania pouco desenvolvida significaria “deixá-lo se acumular
nas mãos daqueles que já o desfrutam”. Por isso, o “interlocutor primário da
análise jurídica” teria de ser sempre o corpo cívico, cabendo aos juízes apenas
um papel secundário. Todavia, até Unger admite que, enquanto não houver
essa “intervenção estrutural” num país, “os juízes podem ser muitas vezes os
melhores agentes disponíveis” e/ou “os únicos agentes dispostos”.121
Num ambiente de uma cidadania reduzida, o Ministério Público
e o Judiciário participam cada vez mais da deliberação política e influem
nos rumos da distribuição de recursos e no controle de seu uso. O sistema
judiciário, como parte da esfera pública, assume uma função complementar em
relação à representação política, promovendo o controle social (accountability)
das decisões do Executivo.122 A própria Carta de 1988 estabeleceu vários meios
processuais com o fim de dar eficácia aos direitos formalmente consagrados.
A legitimidade dos tribunais para tomar decisões politicamente sensíveis não
pode ser negada com o argumento de que juízes não são escolhidos pelo voto

120 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais. 2012, p.202.
121 Unger, Roberto Mangabeira. O Direito e o futuro da democracia. São Paulo: Boitempo,
2004, p. 29s., 130ss., 147.
122 Moraes, Raimundo C. de. Judicialização do licenciamento ambiental no Brasil: excesso
ou garantia de participação? Rev. de Direito Ambiental, n. 38, São Paulo: RT, 2005, p. 216.

172
popular, já que não se pretende substituir a esfera político-representativa por
aquela de ordem funcional.

10. Entre a cidadania política e a cidadania jurídica; em busca de um


processo judicial compensatório

Neste ponto, é importante distinguir entre cidadania política e social:


enquanto a primeira se refere ao poder do cidadão comum de participar na
elaboração das leis, a última diz respeito ao processo de sua aplicação, mormente
através de ações judiciais individuais e coletivas.123 A judicialização da política,
além de recuperar o sentido original de soberania popular, é um substituto
funcional necessário à recuperação da “própria idéia de uma ordem jurídica
formada por direitos constituídos e compartilhados por todos os cidadãos”.124
Por isso, não vinga a crítica de que as pessoas interessadas em receber
prestações de serviços públicos de qualidade, em vez de procurar o Ministério
Público e o Judiciário, deveriam tomar a frente, de forma mais decidida, no
processo democrático de discussão. É de fácil constatação que este processo,
que exige uma capacidade razoável das pessoas de exercer a sua cidadania, em
muitas regiões do Brasil ainda não se acha organizado de forma minimamente
eficiente. Além disso, trata-se da realização de direitos já amplamente
reconhecidos e positivados pela ordem legal.
Em geral, a prestação jurisdicional fornecida pelas ações coletivas visa ao
cumprimento dos objetivos sociais contidos nas leis ordinárias ou decorrentes de
opções valorativas constitucionais. Assim, o processo judicial serve para suprir
deficiências do processo político e para defender interesses sub-representados
na sociedade. Especialmente no âmbito ambiental e urbanístico, sempre haverá
leis que representam mais interesses privados do que públicos, por causa da
indevida influência de grupos de interesses especiais no processo legislativo.125

123 Porto, Pedro R. de Fontoura. Direitos fundamentais sociais. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2006, p. 235; Vianna, Luís W..; Burgos, Marcelo. Revolução processual do
Direito e democracia progressiva. In: Vianna, L. W. (org.). A democracia e os três poderes no
Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 370s.
124 Eisenberg, José. Pragmatismo, Direito reflexivo e judicialização da política. In:
Vianna, L. W. Ob. cit., p. 45ss.
125 Cf. Salles, Carlos Alberto de. Processo Civil de interesse público. In: o mesmo (org.).

173
Nessas condições sociais, as ações judiciais têm se transformado em
instrumentos de participação política, consagrando uma “operação política
do Direito, provocada pela inadequação das técnicas tradicionais”.126 As ações
coletivas instituíram um “novo canal de comunicação do povo na gestão
racional dos interesses sociais (...). Falhando o primeiro processo participativo
(o político-administrativo), mesmo assim, o cidadão coletivamente
considerado acaba tendo outra oportunidade de interação.” Especialmente
os grupos cujos direitos não foram contemplados ou sucumbiram no sistema
político representativo perante interesses contrários muito mais organizados,
podem recorrer, legitimamente, à ação civil pública.127 Desse modo, as ações
coletivas representam mecanismos de defesa da cidadania contra o Estado e a
dimensão do mercado.128
É missão do Judiciário contribuir para a harmonização dos diferentes
tipos de direitos legalmente garantidos para “suprir vazios de efetividade”,
que também são causados pela falta de credibilidade dos partidos, processos
eleitorais e das casas legislativas. Por isso, num país pouco igualitário como
o Brasil, os setores mais fragilizados da sociedade “continuarão vendo na
magistratura, cada vez mais, uma instituição para a afirmação de seus direitos”,
fato que, no fundo, é expressão do resgate da “norma jurídica como critério
objetivo de prática redistributiva e justiça social”.129
A referida tendência é geral e certamente ligada à ênfase do “papel
civilizatório” do Direito na sociedade, que valoriza as possibilidades
dos instrumentos jurídicos na condução democrática da vida política
contemporânea, que tem paulatinamente substituído a atitude crítica de vários
pensadores de orientação marxista em relação à ordem legal de países onde

Processo Civil de interesse público. São Paulo: RT, 2003, p. 56s., 61.
126 Grinover, Ada Pellegrini. Novas tendências da tutela jurisdicional dos interesses
difusos. Rev. do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, vol. 13, 1984, p. 9s.
127 Alonso Jr., Hamilton. Direito fundamental ao meio ambiente e ações coletivas. São
Paulo: RT, 2006, p. 197, 234ss.
128 Vianna, L. W.; Burgos, M. Revolução processual do Direito e democracia progressiva.
Ob. cit., p. 338.
129 Cf. Campilongo, Celso. Os desafios do Judiciário: um enquadramento teórico. In:
Faria, José Eduardo (org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros,
1998, p. 31ss.

174
prevalece uma ordem econômica capitalista.130 Essa importante função do
Direito numa sociedade (ainda) subdesenvolvida apenas poderá ser realizada
através de uma cidadania juridicamente participativa, cujo sucesso depende
também do nível de pressão e mobilização política que se consegue exercer em
relação aos tribunais.131
Na verdade, a tendência da judicialização da política no Brasil “está
longe de ser simplesmente um vício de superjuridificação” (como acontece
em muitos dos países centrais), mas constitui uma etapa importante da
democratização do país, já que não faltam exemplos de que o Direito tem
funcionado “como contrapeso radical a práticas conservadoras da classe
política ou econômica”.132 Nesse sentido, Lima Lopes observa que “o Judiciário
converte-se numa arena de discussão em que as partes podem racionalizar seus
interesses e sua concepção político-jurídica” e “que os bloqueios institucionais
eventualmente criados por demandas judiciais têm a capacidade de explicitar
conflitos sociais básicos da sociedade brasileira”. Assim, é a principal função dos
tribunais no âmbito das demandas sociais “garantir que os arranjos e disputas
se façam sob a legalidade e dar visibilidade às diferentes reivindicações”.133
Além disso, há claras evidências no sentido de uma abertura do próprio
processo judicial através da crescente organização de audiências públicas que
possibilitam a participação dos representantes da sociedade civil organizada
(como os amici curiae) na tomada das decisões judiciais. Estas medidas em
direção de uma “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” (Peter
Häberle) foram estipuladas no julgamento de vários processos de controle
concentrado de constitucionalidade de leis pelo STF durante os últimos anos.
Certamente tais instrumentos ganharão um espaço ainda maior em todas as
instâncias do Judiciário brasileiro com a promulgação do novo Código de
Processo Civil.

130 Cf. Maia, Antonio Cavalcanti. Jürgen Habermas: filósofo do Direito. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 6ss.
131 Cittadino, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e
separação de poderes. In: Vianna, L. W. (org.). A democracia e os três poderes no Brasil.
Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 39.
132 Cf. Eisenberg, José. Pragmatismo, Direito reflexivo e judicialização da política. In:
Vianna, L. W. A democracia e os três poderes no Brasil. 2003, p. 58s.
133 Lopes, José Reinaldo. Direitos sociais: teoria e prática. São Paulo: Método, 2006, p. 138.

175
Sem dúvida, os objetivos de tornar efetivos os direitos sociais básicos das
camadas menos favorecidas da população ou de proteger o meio ambiente não
podem ser alcançadas apenas com o aperfeiçoamento dos meios processuais e
da representação judicial, sendo necessário também criar novos mecanismos
procedimentais para ativar e tornar efetivos os direitos substantivos, como,
por exemplo, mudanças nas estruturas do;s tribunais, uso de meios informais
de solução de conflitos, medidas de formação de representantes da sociedade
civil etc.134
Resta frisar que há claros indícios de que está emergindo no País uma
cidadania jurídica que não ocupa posição antagônica em relação à cidadania
cívica tradicional do sistema político representativo, mas que visa a alargar os
espaços de participação e criar oportunidades para o exercício de cidadania
em favor da satisfação dos diversos interesses dos membros da sociedade.135

11. Conclusão

Na intenção de reduzir a polêmica ao ponto, Souza Neto afirma que


“por detrás dessa supervalorização do Judiciário como agente de transformação
da sociedade está situada uma descrença no potencial transformador do
voto popular, decorrente de uma profunda desilusão com a nossa recente
democracia”. Esta descrença manifestar-se-ia na recorrente alegação do
funcionamento deficiente da democracia e na qualificação dos representantes
eleitos do povo como “corruptos, incompetentes e populistas”, razão pela qual
“devemos apostar nos juízes, que são éticos e preparados”.136
No entanto, essa linha de argumentação é exageradamente simplória.
Ainda que não se possa alegar que a democracia nunca tenha “funcionado”
no Brasil, havendo até sinais de amadurecimento do eleitorado nos últimos

134 Cf. Cappelletti, Mauro; Garth, Brian. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris,
1988, p. 69ss.
135 CARVALHO, M. Alice R. de. Cultura política, capital social e a questão do déficit
democrático no Brasil. In: VIANNA, L. W. (org.). A democracia e os três poderes no Brasil.
2003, p. 311, 316, 321 ss.; VIANNA, L. W.; BURGOS, M. Revolução processual do Direito e de-
mocracia e igualdade. In: o mesmo et alii. Teoria da Constituição. 2003, p. 61s.
136 Souza Neto, Cláudio P. de. Teoria da Constituição, democracia e igualdade. In: o
mesmo et alii. Teoria da Constituição. 2003, p. 61s.

176
tempos, as inegáveis melhorias no exercício de uma cidadania ativa não são
capazes de mudar a tendência geral da falta de consciência política. Neste
cenário, é preciso que o Judiciário interfira pontualmente, preenchendo os
vazios deixados pelas instituições tradicionais de representação popular,
que não conseguem dar, de forma tempestiva, respostas satisfatórias às
múltiplas demandas da sociedade. O País não pode aguardar até que a
tão esperada reforma política finalmente seja posta em prática, levando a
parlamentos mais objetivos e produtivos. Neste ponto, o ativismo judicial
representa “um mecanismo para contornar, bypassar o processo político
majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de
produzir consenso”.137
É sabido que no Estado Social o Judiciário assumiu a função de
garantir a supremacia da Constituição. No caso do Brasil, a Carta de 1988,
ao contrário das da Alemanha ou dos EUA, está repleta de direitos sociais e
regras sobre a efetivação concreta de uma parte deles, adotando-se a técnica
de uma Carta dirigente, um programa jurídico completo e bem concebido de
melhorias sociais para a população. Este fato insofismável torna secundária a
questão se a igualdade material deve ser considerada finalidade ou condição
da deliberação democrática. Vimos que a justiça social cumpre justamente
as duas funções: é tanto imprescindível para criar as bases materiais de uma
efetiva participação das camadas mais humildes da população na vida política
do País quanto constitui o principal objetivo a ser alcançado pelo próprio
regime democrático.
Também seria irracional uma crença exagerada nos integrantes
do Poder Judiciário. Boa parte dos juízes nem pensa em tomar decisões a
respeito da formulação ou implementação de políticas públicas. No entanto,
aquele número restrito de magistrados que aceita essa missão constitucional
deve poder contar com o devido apoio doutrinário, proibindo-se referências
genéricas a teorias estrangeiras sobre autorrestrição e ativismo judicial, que
evoluíram em contextos jurídico-constitucionais, socioeconômicos, políticos
e culturais muito diferentes.

137 Barroso, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.


In: Coutinho; Fragale Filho; Lobão. Constituição & ativismo judicial. 2011, p. 288.

177
A crescente judicialização de demandas na área social não deve ser
entendida como indevido deslocamento do poder decisório do Executivo e
do Legislativo em direção ao Judiciário, mas representa uma chance para a
efetiva tutela dos direitos consagrados na Constituição e nas leis ordinárias.
O dever de motivação das sentenças judiciais é meio apto para garantir um
convencimento das partes envolvidas na sua retidão. Além disso, a necessidade
de alargamento do poder de sindicância das políticas públicas se restringe aos
pontos onde as normas constitucionais possuem uma expressiva densidade, que
não permite uma omissão do Estado na realização das respectivas prestações
(saúde pública, educação básica, proteção dos menores, saneamento básico,
proteção ambiental mínima etc.).
Essas decisões também não esbarram na pretensa falta de capacidade
institucional do Judiciário. Independentemente das teorias funcionais sobre os
devidos limites do controle judicial de decisões discricionárias da Administração
Pública, a grande maioria das decisões sobre políticas públicas não (ou mal)
implementadas nem sequer envolve aspectos de discricionariedade técnica
dos órgãos especializados.
Temos certeza de que os poucos exageros no desempenho de um ativismo
judicial responsável (ex.: ações individuais na área da saúde pública) logo serão
corrigidos. Em geral, os tribunais brasileiros não precisam ser “corrigidos” pela
doutrina – que repete, sobretudo, as posições da filosofia social alemã e norte-
americana – no sentido da redução de sua atuação proativa na área social, mas
merecem uma crítica construtiva que confirme e torne mais seguro o exercício
de sua função garantista no âmbito dos direitos fundamentais sociais. A final
das contas, realmente difícil foi pôr um fim à inércia de um Judiciário formalista
e positivista na área social a partir da promulgação da Carta de 1988; comparada
com esta tarefa hercúlea, o contorno de certos desvios nas decisões de alguns
magistrados parece ser um objetivo muito mais fácil a ser alcançado.
Há mais de meio século, Loewenstein já lamentava que, em geral, “a
massa da população perdeu o interesse na Constituição”, sobretudo por causa de
manipulação por parte dos políticos profissionais. Ele admitia, contudo, que havia
“graus diferentes na afeição de um povo à sua Constituição”, a qual precisaria “de
tempo para se estabelecer firmemente na consciência de uma nação”, a fim de que

178
a comunidade aprendesse “a viver e lidar com as suas vantagens e desvantagens”.
Destarte, após um prazo maior de vigência, a Carta Magna seria capaz de exercer
“uma influencia educacional poderosa”.138 Até a chegada destes novos tempos de
consciência constitucional alargada no Brasil, que certamente levará também
a uma cobrança mais intensa da efetivação dos direitos sociais pelos agentes
políticos, é indispensável que o Judiciário e o Ministério Público ocupem um
lugar de destaque na efetivação destes direitos e das respectivas políticas públicas.

138 Loewenstein, Karl. Verfassungslehre. Tübingen: Mohr, 1959, p. 162.

179
A VÍTIMA NO PROCESSO PENAL E O PROTAGONISMO
DO JUIZ CRIMINAL

Alberto Jorge Correia de Barros Lima1

Introdução

Afinal, quem é a vítima? A pergunta procede exatamente no limiar da


introdução, mormente em face das nomenclaturas diversas – e das confusões
daí advindas – que recebe o prejudicado pela conduta do delinquente. Sujeito
passivo no direito penal, ofendido no processo penal e, finalmente, vítima para
a criminologia, desde logo, cumpre ressaltar que, para nós, o termo vítima é,
dentre os citados, o mais abrangente e, bem por isso, aquele que usaremos
neste trabalho, valendo, por sua amplitude, tanto para a dogmática penal
e o processual penal como para a criminologia e a política criminal, sem
embargos de utilizar-nos, também, como correlato, do vocábulo “ofendido”. É
bem verdade, diga-se logo, que a amplificação do termo não pretende abranger
as denominadas “vítimas não-penais”, ainda que, também, objeto de estudo
da criminologia, mais propriamente da vitimologia. Importa-nos, aqui, o
conceito de vítima penal que, segundo a Declaração dos Princípios Básicos de
Justiça para as Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder da Organização
das Nações Unidas – ONU, contida na Resolução nº 40/34, de 29 de novembro
de 1985 (KOSOVSKI, 2008: 158), é entendido como:
As pessoas que, individual ou coletivamente,tenham
sofrido ofensas, inclusive lesões físicas ou mentais,
sofrimentoemocional, perda financeira ou diminuição
substancial de seus direitosfundamentais, como
1 Doutor e mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco; Professor
Adjunto de Direito Penal, Direito Penal Constitucional e Criminologia do Mestrado e da
Graduação em Direito da Universidade Federal de Alagoas; Professor da Escola Superior da
Magistratura do Estado de Alagoas; Professor convidado para a pós-graduação em Ciências
Criminais da Universidade Federal de Pernambuco; Juiz de Direito Titular da 17ª Vara de
Maceió (Fazenda Pública), tendo exercido por 10 anos a titularidade do 2º Tribunal do Júri da
Capital, atualmente exercendo as funções de Juiz Auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça
de Alagoas.

181
consequência de ações ou omissões que violem
alegislação penal vigente nos Estados-Membros,
incluída a que prescreve oabuso criminal de poder. (Sem
grifo no original).

E, ainda, segundo a mesma declaração:


Uma pessoa poderá ser considerada vítima, de acordo
com a presente Declaração, independentemente do modo
como o vitimizador foi identificado, detido, julgado ou
condenado, bem como independentemente da relação
familiar entre o vitimizador e a vítima. Na expressão
“vítima” estão incluídos também, quando apropriado, os
familiares ou pessoas dependentes que tenham relação
imediata com a vítima e as pessoas que tenham sofrido
ofensas ao intervir para dar assistência à vítima em perigo
ou para prevenir a ação danificadora.2

Vítima, do latim victĭma, etimologicamente falando, significa ser


humano ou animal imolado em holocausto aos deuses (CUNHA, 1987: 825).
A ideia de que a vítima suporta o sacrifício ou o prejuízo, tornando-se a parte
perdedora em uma determinada relação, difundiu-se e ingressou no consciente
coletivo, portanto, a partir de sua própria significação etimológica (PEDRA
JORGE, 2005: p. 15-6). Assim, em sintonia com a Declaração da ONU, a
vítima penal é a pessoa ou as pessoas que suportam as ofensas decorrentes de
condutas tipificadas penalmente.
Não obstante a compreensão da vítima como a parte prejudicada pelo
comportamento de um agente infrator de normas penais, verificada, conforme
assinalado, pela própria etimologia da palavra, o processo penal brasileiro
tradicional sempre dispensou a ela tratamento de objeto e nunca de sujeito na
relação processual. Diga-se de passagem, que até no sistema norte-americano,
berço das liberdades civis, os interesses da vítima sempre foram ignorados
(NEUBAER, 1992: 179). O Código de Processo Penal pátrio disciplinava em

2 Os padrões e normas das Nações Unidas relacionados à prevenção ao crime e à justiça


criminal, cobrindo uma grande variedade de temas tais como tratamento de presos, violência
contra as mulheres e, no que aqui interessa, proteção às vítimas, organizado pela Secretaria
Nacional de Justiça do Governo Federal, podem ser encontrados no sítio:

182
apenas um artigo e um parágrafo (art. 201 e parágrafo único), a necessidade
de oitiva da vítima e as perguntas que a ela deveriam ser dirigidas. Não ia,
praticamente, além disso. Somente em 1995, com advento da Lei 9.099
(Juizados Especiais), é que o legislador pátrio voltou os olhos para os interesses
da vítima, inaugurando um sistema de justiça penal consensual, voltado para
a composição com o ressarcimento dos danos. No entanto, esse sistema, como
é sabido, destina-se, quase que na totalidade, às infrações penais de menor
potencial ofensivo, ou seja, apenas a uma parte do Direito Penal. A maioria dos
delitos, no entanto, os de gravidade moderada e os crimes de especial gravidade
– aqueles que frequentam diuturnamente as notícias da mídia brasileira –,
não está compreendido por tal mecanismo e submetia-se ao vetusto sistema
processual até o advento da reforma processual penal de 2008.
A reforma, neste particular, de modo algum significou uma pretensão,
ainda que inconsciente, de que tudo mude para que tudo fique como está, como
generalizou Coutinho (2008: 11) citando passagem repisada de Lampeduza.
No mínimo, é fundamental advertir – e isso para não discutir a necessidade dos
câmbios cíclicos das leis –, carecíamos de mudanças para encontrar sintonia
entre a legislação instrumental penal e a Carta Federal de 1988, como será aqui
demonstrado.
De certo que as modificações introduzidas com em 2008 sobre a vítima
não atenderam todas as reivindicações advindas da produção criminológica,
entrementes alcançaram patamares significativos no pertinente ao tratamento
dignificante daquela. Certamente que algumas das novas disposições estão
encontrando resistência referente ao seu cumprimento, como é o caso do
pagamento feito pelo réu, por determinação do juiz, para assistência médica ou/e
psicológica da vítima durante o processo; outras, estão esbarrando na falta de
estrutura do Poder Público, mas todas elas centralizam-se numa racionalização
constitucional antropológica do Direito Processual Penal. O artigo pretende
discorrer sobre os direitos da vítima no processo penal brasileiro – especialmente
a partir da reforma processual de 2008, bem assim, demonstrar suas imperativas
interseções com a Constituição e o protagonismo do juiz, firmando como
fundamental, na conclusão, a sintonia com o princípio da dignidade humana.

183
1. A indispensável oitiva do ofendido: direitos da vítima versus
verdade real

Da combinação entre o artigo 201, o seu §1º e o artigo 400 do Código


de Processo Penal, alterados pela Lei 11.690 e 11.719/2008, respectivamente, é
possível concluir, sem dificuldades, que a vítima, achando-se viva e em lugar
sabido, deve obrigatoriamente ser ouvida. Para além, deve ser ouvida em
primeiro lugar na sequencia de atos da denominada “superaudiência”. Não é
senão para tal fim que, se as partes não o fizerem, cumprirá ao magistrado,
necessariamente, intimá-la para tomar o seu depoimento juntamente com a
acusação e a defesa.
No Processo Penal, prevalece, como cediço, o princípio da verdade
real. O princípio tem uma significação particularizada e condizente ao fato de
que em matéria processual penal não são admitidas as presunções e ficções do
cível. O princípio da verdade real, não obstante sua nomenclatura, não significa,
como inadvertidamente pode-se supor, que a cognição penal é detentora da
verdade entendida como conhecimento pleno e absoluto – a verdade, assim
compreendida, é inalcançável ao ser humano, sobretudo em razão da limitação
do seu aparato cognitivo. Significa, no entanto, que a cognição penal, mais
do que qualquer outra, principalmente por conta das garantias e das amplas
oportunidades oferecidas às partes, traduz melhor o juízo de certeza, o qual
implica, tão só, o afastamento das possibilidades de dúvidas, sem pretensões
à verdade – negada, como não poderia ser diferente, pelo próprio sistema,
mesmo para a coisa julgada, uma vez estabelecida a possibilidade de revisão
criminal no penal, a exemplo da ação rescisória no cível.
A certeza buscada no Processo Penal, através da reconstrução histórica
dos fatos procedida no campo das provas, interessa não só aos protagonistas
do processo, mas, principalmente considerando os crimes de média e especial
gravidade, a todo o corpo social. Com efeito, os resultados deletérios destes
delitos, além de atingir, como já preconizava Durkheim, “certos sentimentos
coletivos” (DURKHEIM, 1995: 87), comprometem a estabilidade social
com todos os consectários conhecidos (pensem na corrupção e nos delitos
correlatos), provocam pânico em setores da população (como exemplo o

184
tráfico de entorpecentes e o homicídio praticado por grupos de extermínio),
violam as pretensões isonômicas e a defesa da incolumidade física e psicológica,
ambas baseadas na dignidade humana (v.g. o racismo e a tortura), ameaçam
a própria democracia (por exemplo, o terrorismo, os crimes contra a ordem
democrática e os delitos praticados contra a administração pública).
Entendida desta forma, a verdade real reclama, necessariamente, a
oitiva da vítima no processo penal. Seus interesses particulares sobre o caso e
os direitos que a protegem não são absolutos e cedem ante ao interesse público,
ao interesse social, ou, até, ao interesse do réu de ver provado a sua inocência,
mesmo porque, por vezes, é só com o trânsito em julgado da decisão criminal
que será certificada a violação da legislação penal e, por conseguinte, a
existência de uma vítima.
É exatamente por isso que a disposição do § 1º, do artigo 201 do Código
de Processo Penal, a qual prevê a possibilidade do juiz determinar a condução
forçada da vítima para comparecer e ser ouvida, mantendo incólume a
dicção do antigo parágrafo único, não é abusiva e encontra harmonia com
a Constituição. Mais importante que os interesses particulares da vítima são
os interesses da coexistência. No que pese os tempos de individualismo em
que vivemos, cabe ao o Estado não só a promoção, porém a proteção de uma
convivência pacífica, sem o que estaria comprometido, entre outros direitos
fundamentais, o próprio direito fundamental de liberdade de cada um de nós.

2. A tutela dos direitos da personalidade da vítima

Mesmo quando se trata de direito privado, já não mais é possível


olvidar a necessidade de ter a pessoa como fundamento das relações civis.
Neste rastro, de há muito, a doutrina mais abalizada tem fixado que no suporte
fático de quaisquer fatos jurídicos, de que surge direito, há, indispensavelmente,
alguma pessoa como elemento do suporte (PONTES DE MIRANDA, 1971:
cit. 5). A Constituição de 1988 foi, sem dúvida, uma baliza importante no
respeitante aos chamados direitos da personalidade, porquanto reconheceu
expressamente sua tutela. Faltava, todavia, a adequação devida, pela obrigatória
compatibilidade, da lei processual penal em relação ao ofendido.

185
Os direitos da personalidade caracterizam-se, entre outras
particularidades, por sua natureza não patrimonial, por sua intransmissibilidade,
irrenunciabilidade, inexpropriabilidade e pela circunstância de serem inatos
e essenciais à realização da pessoa. Discute-se, doutrinariamente, acerca da
atipicidade dos direitos da personalidade, caracterizada por uma série aberta
de direitos, ou sua tipicidade, condizente a uma série fechada destes mesmos
direitos, extraída não só da Constituição, como da legislação constitutiva
infraconstitucional (PERLINGIERI, 1997: 154). A enumeração típica dos
direitos da personalidade é extensa, perpassando do direito à vida ao direito
geral à liberdade, interessa-nos, para fins deste trabalho, o direito à liberdade,
à integridade física e psicológica, à privacidade e à reputação, pois dizem
respeito, imediatamente, à proteção da vítima durante o processo penal.
Os cuidados com a vítima constantes na lei processual, introduzidos
com os §§ 2º, 4º, 5º e 6º do artigo 201 em 2008, dizem respeito, exatamente, à
proteção prática destes direitos a cargo do juiz e durante o processo.
Desde a vigência dos dispositivos é obrigatória a comunicação ao
ofendido dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da
prisão, à sentença e às decisões posteriores que a mantenham ou modifiquem.
Neste caso o direito da personalidade protegido é o direito à liberdade. Com
efeito, liberdade é, também, o direito de não estar subjugado a outrem, não se
sentir ameaçado ou amedrontado, poder conduzir o seu modo de vida sem tais
constrangimentos. A comunicação sobre a prisão ou a soltura do acusado, ou a
comunicação sobre o seu destino, determinado pelas decisões finais, sinalizam,
para a vítima, o modo através do qual deve ela proceder no seu cotidiano,
como, por exemplo, os lugares em que poderá frequentar com tranquilidade
e os locais em que deverá guardar precaução; os padrões de segurança que
deverá adotar para si e para os seus; enfim, tudo aquilo que diga respeito ao
governo do seu direito de ir, vir e ficar.
O atendimento multidisciplinar ao ofendido, especialmente aquele
referente às áreas psicossocial e de saúde será custeados, segundo ordena a nova
legislação (§ 3º do art. 201), pelo acusado ou pelo Estado, consoante determine
o juiz. Evidencia-se, mais que nunca, a tutela do direito à integridade física e
psicológica da vítima, durante o curso do processo, em face da necessidade

186
de reequilíbrio da sua saúde física e mental abaladas pela consecução delitiva.
Neste aspecto, parece-nos que há necessidade de ajuste interpretativo da regra
em relação à Constituição por força da presunção de inocência (CF, art. 5º,
LVII), de modo que não podemos interpretá-la literalmente.
As previsões do parágrafo 3º do artigo 201 expressam que o atendimento
multidisciplinar referido ficará “a expensas do ofensor ou do Estado”. Ora,
seguindo o norte constitucional da presunção de não-culpabilidade, é
inadmissível que o acusado, antes da decisão condenatória transitar em julgado,
custei qualquer atendimento ao ofendido. Nessa fase, quem pode e, sendo
preciso, deve fazê-lo, é o Estado. Condenado o réu, o juiz ao fixar a necessária
indenização, deverá indicar o quanto o Estado gastou com aquele atendimento,
“viabilizando o valor devido ao Estado que deverá ser inscrito como dívida
ativa” (SILVA, 2008: 75). Essa, parece-nos, é a melhor interpretação para o
dispositivo, porquanto atende, não só as irradiações constitucionais, como as
exigências do sistema jurídico tomado como ordenamento, cuja característica
destaca-se, aqui, a harmonia.
Por derradeiro, o juiz deverá assegurar, no processo e mesmo na fase
pré-processual, a “preservação da intimidade”, “vida privada”, “imagem” e
“honra” do ofendido, a teor da exata dicção do parágrafo 6º do artigo 201. Os
três primeiros casos decorrem de um direito muito especial da personalidade,
o direito à privacidade, o qual resguarda de interferências externas “os fatos
da intimidade e da reserva da pessoa que não devem ser levados ao espaço
público” (LÔBO, 2003: 12). Enquanto a vida privada diz respeito a direito
inerente ao ambiente familiar e cuja ofensa pode incidir nos demais membros
do grupo, a intimidade revela-se como direito de exclusiva reserva individual
e, por fim, o direito à imagem concerne ao resguardo do retrato, da fotografia,
da filmagem, da efígie. O último caso, a honra, não se confunde com a imagem
e é atinente ao direito à reputação. Esse direito da personalidade assegura
“o respeito, a consideração, a boa fama e a estima que a pessoa desfruta nas
relações sociais” (LÔBO, 2003: 13). E, quando se fala em pessoa, não importa
que não se conduza de modo tido por ético, ou seja considerada degradada na
escala social. Todos os seres humanos têm o direito ao minimum de respeito
por parte dos outros homens (HUNGRIA, 1958: 50).

187
Não foi só visando a pretendida celeridade processual, mas, neste caso,
principalmente em homenagem ao direito à privacidade do ofendido, que a
legislação processual penal, consoante estatuído no parágrafo 3º do artigo
201, determinou que as comunicações pudessem ser feitas a ele, caso assim
opte, no seu endereço eletrônico. Bem como, a norma introduzida com a
reforma de 2008 não só pretendeu guardar comodidade para vítima, senão
acautelar, também, sua privacidade, ao prevê espaço reservado para ela antes
do início da audiência, espaço que o juiz deve providenciar para não permitir
constrangimentos com o réu ou com as testemunhas. O magistrado, ademais,
antes mesmo de iniciar a audiência, deverá velar por esse direito à privacidade,
não permitindo que o ofendido seja ouvido na presença do réu quando
verificar a possibilidade de humilhação, temor ou grave constrangimento para
aquele. Deverá, neste caso, proceder com a inquirição por videoconferência,
ou, não sendo possível, determinará a retirada do acusado da sala, conforme
dispõe o artigo 217 do Código.
O avanço legislativo e a postura do Juiz atinentes ao resguardo, durante
o processo, dos direitos da personalidade do ofendido tem uma significação
importante na medida em que postula evitar a chamada vitimização secundária,
decorrente das próprias instituições do sistema penal (BERISTAIN, 2000: 103-
4), da percepção de maltrato pela própria vítima produzida pelo formalismo
jurídico que revelava insensibilidade e desinteresse no decorrer do processo
(MOLINA, 1997: 67-8).

3. A resolução do dano no processo penal

De há muito que se pretende, para além da mera restituição da coisa


e de medidas assecuratórias que se constituem, apenas, em providências
cautelares, a resolução dos problemas cíveis na esfera processual penal.
Cognominou-se por sistema da união ou da cumulação aquele em que a
questão civil fosse resolvida no processo penal quando ao delito fosse inerente.
Todavia, a ausência de mecanismos previstos no direito processual penal
positivo brasileiro nunca proporcionou tal possibilidade, reveladora, não há
dúvidas, de desejada celeridade processual.

188
Nosso ordenamento sempre adotou o sistema da independência,
de forma, é verdade, mitigada. Isso porque a parte interessada, a vítima,
seu representante ou herdeiros, embora possa promover, querendo, a ação
para satisfação do dano apenas na esfera civil, acaso haja sentença penal
condenatória definitiva, ante sua mais ampla cognição, será ela apenas
executada na jurisdição cível, não se discutindo mais o que se deve, porém,
tão só, o quantum debeatur. O abrandamento ou tempero do sistema da
independência é devido ao que prescreve a legislação material penal: o Código
Penal brasileiro, no seus artigo 91, I, determina, como efeito secundário e
obrigatório da sentença condenatória com trânsito em julgado, a obrigação de
satisfazer o dano. Assim é que ofendido comparece ao cível, em processo de
execução, apenas para a liquidação.
A reforma processual de 2008 ficou aquém do esperado nesta questão.
Poderia encampar o parâmetro da união ou cumulação, contribuindo com a
introdução de mecanismos que possibilitassem a rapidez processual no que
toca à resolução do dano material e/ou moral. De qualquer modo, é possível
afirmar que ela aprofundou a mitigação do princípio da independência
ao prescrever, com a introdução do inciso IV, do artigo 387, como forçosa,
a fixação, pelo juiz, na sentença condenatória, de um valor mínimo para
reparação dos danos causados pelo delito, considerados os prejuízos sofridos
pela vítima. Isso sem prejudicar a possibilidade de liquidação para apuração
do dano efetivamente suportado, como dispõe o artigo 63 do Código de
Processo. A mudança, embora tímida, na verdade, foi importante, pois não
deixa de facilitar a tramitação do processo de execução no cível, o qual, em
relação à quantia mínima fixada, dispensa liquidação e poderá atingir, mais
celeremente, o patrimônio do condenado.
Parece-nos que a determinação de quantia mínima fixada pelo juiz
na sentença penal traduz-se em norma material penal, embora veiculada no
Código de Processo Penal. Trata-se, por certo, de novo efeito específico da
condenação. Os efeitos específicos da condenação são aqueles que carecem
de motivação e declaração expressa na sentença penal condenatória. Cabe ao
juiz, o fazedor da sentença, empenhar-se durante a instrução para conseguir
elementos que lhe permitam aferir, se for o caso de condenação, o valor
mínimo para a reparação do dano à vítima.

189
Neste particular, surge com força o protagonismo do juiz, máxime
quando a acusação não se esmerar na produção de provas destinadas a
demonstrar a solvência do(s) réu(s).
Evidencia-se, assim, que compete, também, ao juiz buscar elementos
para fixação da quantia mínima referente ao dano, dano material e dano moral.
O Superior Tribunal de Justiça já deliberou a admissibilidade da acumulação
dos danos morais com os danos materiais, em decorrência do mesmo fato,
consoante enunciado n.º 37 de sua súmula. Enquanto o dano material diz
respeito ao valor a menos “na relação entre a pessoa e o bem econômico”
(LÔBO, 2003: 16), o dano moral “remete a violação do dever de abstenção
a direito absoluto de natureza não patrimonial”, vale dizer a direitos à
personalidade como vida, liberdade, intimidade, reputação, integridade física
e psíquica etc. (LÔBO, 2003: 20). Todas as vezes que esses bens jurídicos forem
atingidos pela infração penal surge a necessidade de fixação do dano moral.
O dano material, ante sua objetividade, não oferece maiores
dificuldades para arbitramento, bastando às partes ou ao magistrado serem
diligentes neste aspecto. O dano moral, entrementes, carece de prova de
violação aos direitos da personalidade, devendo ser fixado observados, pelo
menos, três critérios essenciais: i) a intensidade do dano, aferida de acordo
com cada crime; ii) a culpabilidade do agente, verificada com os critérios
plasmados no artigo 59, especialmente a culpabilidade stritosensu, vale dizer
a maior ou menor possibilidade de evitar o delito; e, por fim, iii) a situação
econômica do condenado, manifestada pelos elementos constantes dos autos
perseguidos pelas partes ou pelo juiz. Nunca é demais recordar a prudência
com que deve pautar-se o magistrado nesta fixação, observada, inclusive, pelas
decisões de outros juízes e das cortes de justiça.

4. As perguntas ao ofendido e às testemunhas

Não nos convence e consideramos como errôneas, as interpretações de


que, com a reforma de 2008, somente caberia ao magistrado fazer perguntas
às testemunhas e ao ofendido por último e em complementação às perguntas
das partes. Para além de confundir sistemas alienígenas, especialmente o

190
norte-americano, com o nosso, onde o protagonismo do juiz é de lege lata
e necessário, principalmente se consideramos as deficiências do atendimento
jurídico aos mais necessitados no país, tais interpretações derrapam na devida
observação sistemática. Note-se que é o juiz o protagonista das perguntas ao
acusado, conforme dita o artigo 188 do Código de Processo Penal:
Art. 188. Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das
partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas
correspondentes se o entender pertinente e relevante. (Sem grifo no original).
No plenário do Tribunal do Júri, é o juiz que indaga, em primeiro lugar,
as testemunhas e o ofendido, consoante dispõe o artigo 473, com redação dada
pelas mesmas modificações estatuídas em 2008, verbis:
Art. 473. Prestado o compromisso pelos jurados, será
iniciada a instrução plenária quando o juiz presidente,
o Ministério Público, o assistente, o querelante e o
defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente,
as declarações do ofendido, se possível, e inquirirão
as testemunhas arroladas pela acusação. (Sem grifo no
original).

O subsistema das testemunhas inserido no Código também não


deixa dúvida da fundamental participação do juiz, percebe-se, com clareza
meridiana, da simples leitura do artigo 209 e seu § 1º, a possibilidade que
detém o magistrado dele próprio ouvir as testemunhas:
Art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá
ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas
partes. (Sem grifo no original).
§ 1o Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as
pessoas a que as testemunhas se referirem. (Sem grifo no
original).

Pergunta-se, de onde é que se extrai a interpretação de que o juiz


perguntará por último, ou, ainda pior, de que perguntará somente em
complementação às partes, se nenhuma norma assim determina? Será que é
possível tal interpretação ante a redação do artigo 212 e seu parágrafo único?

191
Segundo estes dispositivos:
Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes
diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas
que puderem induzir a resposta, não tiverem relação
com a causa ou importarem na repetição de outra já
respondida.
Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz
poderá complementar a inquirição.

A resposta, sem a mais remota dúvida, é não. Os legisladores apenas e


tão somente pretenderam dar dinamismo à audiência, evitando as anacrônicas
“reperguntas” feitas pelo juiz às testemunhas e ao ofendido, porquanto antes
era defeso às partes “perguntarem”, ou para ser redundante, perguntarem
diretamente, sem a intermediação do juiz. A interpretação para o dispositivo
supra transcrito não pode se esquivar da inevitável observação sistemática que
não permite outra leitura senão a de que o juiz ouve primeiramente o ofendido
e as testemunhas e, e, após as perguntas das partes, pode ainda complementar
a inquirição, acaso reste, de tais perguntas, pontos não esclarecidos ou
controversos. O parágrafo, como é cediço, apenas estar a complementar o
sentido do caput. Podemos resumir com as claras palavras de Silva:
...O juiz faz as perguntas para a testemunha em primeiro
lugar. Em seguida as partes perguntam diretamente para a
testemunha. No final, a lei ainda prevê a possibilidade de
o juiz reinquirir a testemunha sobre fato complementar.
(SILVA, 2008: 77).

Não é de olvidar, ademais, que a regra processual, cogente, determina


que o juiz seja o responsável pelo ditado ao auxiliar de audiência de qualquer
das respostas das testemunhas ou do ofendido, pouco importa quem fizer a
pergunta, verbis:
Art. 215. Na redação do depoimento, o juiz deverá
cingir-se, tanto quanto possível, às expressões usadas
pelas testemunhas, reproduzindo fielmente as suas frases.

192
Não causa estranheza, nas interpretações apressadas, a contradição
de se pretender garantista e querer, ao mesmo tempo, transportar para nós,
a-histórica e acriticamente, um sistema havido como antigarantista no processo
penal, como o sistema norte-americano. Não é, pois, possível prescindir da
figura do juiz como produtor de provas, máxime porquanto o faz perante as
partes e dentro da dialética processual que não pode mais ser confundida com o
sistema inquisitorial, muito usado como argumento retórico na doutrina atual.
O magistrado não pode ser mero espectador inerte da batalha judicial,
devendo assumir, também no campo probante, uma posição ativa. Elementos
essenciais da sentença, como as circunstâncias judiciais na aplicação da pena
e a fixação de uma quantia mínima referente ao dano, quando da condenação,
são de sua responsabilidade e não podem ser deixados ao exclusivo alvedrio
das partes. O juiz é sim um agente com responsabilidade social e responsável
pelas transformações ocorridas na sociedade humana. Sua sentença deve
levar, o quanto isso for possível, uma resposta justa para o conflito entre as
partes. Pretendê-lo inerte é deixá-lo a sorte da parcialidade da acusação e da
defesa, é deixar seu decisum enfraquecido pela inabilidade de quem não sabe,
como ele, o que se faz necessário conter, é, enfim, deixar a pessoa sem o direito
devidamente reclamado, especialmente na seara penal, onde em jogo está a
liberdade do ser humano.

5. À guisa de conclusão: o amparo a dignidade humana da vítima no


processo penal.

De certo que foi com atraso que a legislação processual penal brasileira
transpôs a consideração da vítima de objeto para sujeito de direitos, adaptando-
se aos comandos hierárquicos e mais densos da Constituição, em especial ao
princípio constitucional da dignidade humana, que funciona não só como
fundamento dos limites do jus puniendi e como alicerce das possibilidades
e necessidades de criminalização, como também de proteção às vítimas
produzidas em função do cometimento dos crimes.
Mas o que é dignidade humana? O vocábulo dignidade, do latim
dignĭtas significa, etimologicamente, tudo aquilo que mereça respeito,

193
estima, consideração (CUNHA, 1987: 265). Dignidade humana não é outra
coisa senão uma categoria moral, que antes de mais nada, relaciona-se
com a própria representação que fazemos da condição humana. Por outras
palavras, dignidade “é a qualidade ou o valor particular que atribuímos aos
seres humanos em função da posição que eles ocupam na escala dos seres”
(RABENHORST, 2001: 15).
Dogmaticamente, a dignidade pode ser concebida como referência
constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais. “O conceito
de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que
tenha em conta seu amplo sentido normativo-constitucional” (CANOTILHO
E VITAL MOREIRA, 1984: 70). Não é senão por conta da referência aos
direitos fundamentais, dentre os quais se inserem com destaque os direitos da
personalidade, que a reforma atendeu a fundamental e obrigatória vinculação
com a dignidade humana da vítima.
Não olvidou, o legislador de reforma, de garantias que, não obstante
ficarem de fora do rol dos direitos da personalidade, têm serventia direta para
a sua proteção, como a previsão de assistência jurídica a cargo do Estado ou
do ofensor, valendo, também aqui, as considerações ao princípio da inocência
procedidas acima.
Por derradeiro, embora o processo penal tenha definido com certo
acabamento o status da vítima durante o procedimento, para os delitos de
média e especial gravidade, o sistema ainda está orientado para critérios
meramente retributivos, permanecendo a vítima, neste casos, ainda relegada
a um papel testemunhal. Falta, assim, atendimento às exigências de interação
entre delinquente e vítima, que, por certo, traria bons frutos na solução de
vários problemas na seara criminal. Finalmente, considerando o fato de
que a clientela penal é constituída, em sua esmagadora maioria, de pessoas
economicamente desfavorecidas, precisamos, para determinados crimes, da
criação de um fundo público para indenização ao ofendido, com o escopo de
atender parte dos custos da vitimização. Estes e outros caminhos, contudo,
permanecem abertos para a construção incessante dos direitos do ser humano.

194
Referências

BERISTAIN, Antônio. Nova Criminologia à luz do Direito Penal e da


Vitimologia. Trad. Cândido Furtado Neto. Brasília: UNB, 2000.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes & MOREIRA, Vital. Constituição da
República Portuguesa Anotada. 2. ed., v. 1º. Coimbra: Coimbra Editora, 1984.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. As Reformas Parciais do CPP
e a Gestão da Prova: Segue o Princípio Inquisitivo. Boletim do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 16, n.º 188, p. 11-13. Julho
2008.
CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. Trad. Eduardo
Freitas e Inês Mansinho. Lisboa: Editorial Presença, 1995.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal Brasileiro, vol. VI. Rio de
Janeiro: Forense, 1958.
KOSOVSKI, Ester. Vitimologia, Direitos Humanos e Justiça Restaurativa.
Revista IOB de Direito Penal e Processo Penal. Porto Alegre, vol. 8, n. 48,
fev-mar, 2008. PP. 146-162.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos Morais e Direitos da Personalidade. Jus
Navigandi, Teresina, ano 7, n. 119, 31 out. 2003. Disponível em <http://jus2.
uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4445>. Acesso em: 30 mar. 2009.
MOLINA, Antônio García-Pablos. Criminologia – Introdução aos seus
fundamentos teóricos. Trad. Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 1997.
NEUBAUER, David W. America’s Courts and the Criminal Justice System.
Belmont: Wadsworth, 1992.
PEDRA JORGE, Alline. Em busca da satisfação dos interesses da vítima
penal. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2005.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil
Constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco, Rio de Janeiro: Revan, 1997.

195
RABENHORST. Eduardo Ramalho. Dignidade Humana e Moralidade
Democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001.
SILVA, Ivan Luís Marques. Reforma Processual Penal de 2008. São Paulo: RT,
2008.

196
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA DO SUL:
Possíveis lições da Argentina e do Chile ao processo constitucional
de transição no Brasil

Bruno Galindo1

Não pode dissimular-se que uma das grandes condições


para a formação e reprodução simbólica do totalitarismo
é a perda da memória histórica. Assim, a consciência
do homem identifica-se com a consciência do Estado.
É evidente que num projeto totalitário, o tempo e a
memória coletiva pertencem às instituições executórias
do referido projeto. O ritual de intervenção sobre a
memória e o tempo se dá através de um campo simbólico
que exalta um relato não conflitivo da história: celebra-
se um passado convenientemente estereotipado para que
opere como referência legítima do projeto de dominação,
apagando-se simultaneamente todo vestígio que permita
traçar uma interpretação diferente. Luis Alberto Warat
(1997, p. 90)

Introdução: esquecer ou enfrentar?

As experiências constitucionais democráticas após períodos de


autoritarismo político sempre enfrentam dificuldades acerca dos problemas
advindos dos anos de exceção. As graves violações de direitos humanos que
normalmente têm lugar nessas experiências políticas autoritárias deixam
interrogações muito fortes sobre qual deve ser o melhor rumo a adotar a partir
do advento democrático, especialmente se considerarem a necessidade de
fortalecimento do Estado democrático de direito e de bloqueio de possíveis
retornos ao autoritarismo.
1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE); Doutor em Direito pela UFPE/Universidade de Coimbra-Portugal (PDEE); Mestre em
Direito pela UFPE; Advogado; Consultor Jurídico; e-mail: brunogalindo@uol.com.br, bruno.
tgalindo@ufpe.br; blog: www.direitoecultura.blogspot.com.

197
Os problemas daí decorrentes são muitos. As decisões políticas sobre
como deve proceder uma eventual justiça de transição variam nas respostas
que dão a eles. É preciso decidir se as graves violações de direitos humanos
ocorridas no período devem ser criminalmente punidas, se o Estado é
responsável também civilmente pelas violações em questão com deveres de
reparação para com as vítimas, se serão estabelecidas políticas públicas de
esclarecimento da verdade histórica e judicial do período e como isso será feito,
e ainda, se e como devem ser realizadas reformas institucionais na direção da
consolidação do regime democrático.
Este trabalho procura discutir como os problemas de tal natureza
têm sido enfrentados na América Latina, partindo da comparação entre
experiências de justiça transicional em dois países, quais sejam, Argentina e
Chile, considerando a inspiração ideológica comum das ditaduras dos anos 70
a 80 neles (inclusive no que tange à forma de repressão dos opositores políticos),
bem como as opções nacionais de enfrentamento das questões surgidas no
período pós-autoritário, sem deixar de lado as importantes considerações
e posicionamentos da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Ao final, algumas possíveis lições que os casos argentino e chileno
podem fornecer para o atual processo de justiça de transição no Brasil.

1. Justiça de transição: definição contextual

É lugar-comum a percepção de que os regimes autoritários,


independentemente de sua tendência ideológica, tendem a contingenciar
os procedimentos democráticos e desconsiderar o respeito aos direitos
humanos daqueles que possam potencial ou efetivamente lhe fazer oposição
política. “Direitos humanos para humanos direitos” normalmente é o chavão
apropriado para esses regimes, sendo os “humanos direitos” os simpatizantes e
colaboradores dos poderosos da ocasião, ou ao menos os que não os contestam.
Quando do advento da democracia como regime político pós-
autoritário, surgem relevantes questões no campo da punibilidade de
perpetradores de graves violações de direitos humanos, da responsabilidade
do Estado por atos de seus agentes, nos deveres estatais de apuração da verdade

198
acerca dos fatos ocorridos durante o período de exceção, bem como de que
modo o Estado atuará na prevenção de novas situações de autoritarismo,
incluindo a gradativa transformação cultural democrática e humanista.
Há certo consenso – ao menos teórico – da necessidade de enfrentar os
tópicos acima referidos para a sua devida superação.
Entretanto, o consenso para aí. A partir do aprofundamento e
da especificação das questões, política e juridicamente há dificuldades
consideráveis de entendimento sobre o que deve ser feito para responder
indagações como aquelas adiante formuladas.
Em relação à justiça material, pode-se iniciar com perguntas como essas:
o que fazer em relação às graves violações dos direitos humanos cometidas durante
o período de exceção em nome do regime autoritário? A escusa do cumprimento
do dever legal é absoluta? A obediência às ordens superiores é suficiente para
evitar que os “obedientes” sejam punidos? E os mandatários que proferiram tais
ordens, qual o grau de sua responsabilidade? É possível admitir que o direito
penal comum e seus institutos como a prescrição e a estrita tipificação legal dos
crimes possa dar conta de delitos com tal grau de excepcionalidade?
Na esfera reparatória, surgem outras indagações: como o Estado deve
reconhecer as referidas violações em relação às vítimas? Em que medida
estas e/ou suas famílias devem ser indenizadas? Qual o quantum justo das
reparações? Os critérios devem ser os mesmos tradicionalmente utilizados
para a apuração das responsabilidades civil e penal? Quais as possibilidades
e os limites das investigações para esclarecimento dos fatos com o fim de se
estipular as reparações, considerando o caráter sigiloso/secreto de alguns dos
documentos do período?
Quando se considera o aspecto institucional e cultural, mais questões:
como se deve debater a transformação dos padrões de atuação dos agentes
estatais com prerrogativas de utilização da força armada? Quais leis e reformas
constitucionais são necessárias à formação de forças militares e policiais
pautadas por valores do Estado democrático de direito? Como estabelecer
nas instituições armadas comportamentos condizentes com a proposta pós-
autoritária? Quais os treinamentos e padrões pedagógicos imprescindíveis às
necessárias transformações culturais dessas instituições?

199
Em relação à verdade histórica, ainda se pode perquirir: justifica-se
o sigilo em documentos estatais quando se referem a políticas repressivas
do Estado autoritário? O que pode ser feito em termos de esclarecimento de
investigações não realizadas e/ou arquivadas? Qual o grau de comprometimento
das autoridades e possíveis testemunhas dos fatos do período para o seu
esclarecimento? Devem ser formadas comissões colegiadas para apuração
desses fatos? Como devem ser compostas e quais os procedimentos a serem
adotados para o seu trabalho?
Sobre a memória, enfim: o que deve ser objeto de permanente
recordação em relação ao ocorrido? Quais os critérios a serem utilizados
para se selecionar tais informações? Não haveria o risco de se construir uma
memória de modo unilateral? O confronto de versões seria possível nesses
contextos? Tais versões mereceriam o mesmo tratamento oficial?
A resposta a tais questões está longe de ser uníssona. A depender da
repercussão internacional, do momento histórico, da realidade objetiva e da
própria cultura política de cada país, o enfrentamento das sombras do passado
autoritário é bastante dissonante, variando do enfrentamento amplo e irrestrito
de todas elas (da verdade histórica à reparação das vítimas e respectivas
famílias, bem como da investigação dos crimes e punição dos culpados) às
anistias autodeclaradas social e politicamente reconciliadoras, que, a seu turno,
estabelecem uma espécie de “esquecimento” oficial igualmente abrangente
dos atos perpetrados durante aquele passado. Na questão da justiça material,
a tendência geral tem sido a justiça de transição evitar os extremos: nem
estabelecer um perdão generalizado dos crimes do período, nem tampouco
propiciar uma punição absoluta e inflexível dos referidos delitos (UPRIMNY &
SAFFON, 2010, p. 21). Nos outros pontos, as discussões são menos polêmicas,
mas não há igualmente uniformidade de tratamento.
A maior polêmica existente na questão da punibilidade pela
justiça transicional dos agentes do Estado que cometeram crimes de lesa
humanidade é a existência de diversas “técnicas de neutralização” quanto a
essa responsabilidade. Raúl Zaffaroni, em estudo específico sobre os crimes
de Estado, se utiliza dessa expressão para designar aquilo que denomina de
ampliação não legalmente reconhecida de hipóteses de impunidade para

200
os referidos criminosos. Para o Professor argentino, as referidas técnicas,
originariamente pensadas por Sykes y Matza para casos de delinquência
juvenil, servem curiosamente para os criminosos de Estado, considerando
estes os responsáveis pela liderança no cometimento dos crimes em questão,
excluindo em princípio os meros subordinados (ZAFFARONI, 2007, p. 27).
Essas técnicas de neutralização são basicamente cinco (ZAFFARONI,
2007, p. 27-30):
1) negação da responsabilidade;
2) negação do dano/lesão;
3) negação da vítima;
4) condenação dos condenadores; e
5) apelação a lealdades mais elevadas.
A negação da responsabilidade consiste essencialmente na prática
de se afirmar que os atos cometidos não foram intencionais, mas inevitáveis.
Normalmente se apela a esta técnica com afirmações do tipo “em toda guerra
há mortos e feridos”, que inocentes terminam por serem atingidos, que
erros são inevitáveis, que o controle dos excessos nem sempre é possível e
argumentos congêneres. Essa técnica é comum, especialmente atribuindo a
responsabilidade às circunstâncias extraordinárias dos fatos ou à provocação
por
outros.
A negação do dano/lesão em si mesma é normalmente inviável. Contudo,
é possível admiti-lo, minimizando-o tanto quanto possível e argumentando
uma legítima defesa com a intenção de negar a condenação moral pelo crime.
Esta técnica frequentemente combina com a anterior e a seguinte.
A negação da vítima é a técnica mais utilizada em relação aos crimes
de Estado. Até na fundamentação de votos de magistrados de cortes supremas
(a exemplo do Min. Gilmar Mendes na decisão da ADPF 153) ela pode estar
presente. Consiste em atribuir às vítimas dos delitos a qualidade de terroristas,
traidores da pátria, criminosos comuns e afirmar que eram elas os verdadeiros
agressores, sendo a atuação estatal essencialmente realizada em legítima defesa.
A própria justificação de crimes como a tortura está fortemente baseada na
ideia de que não haveria alternativa na contenção das agressões das vítimas,
sendo um clássico exemplo dessa técnica de neutralização.

201
A condenação dos condenadores também é frequente nos crimes de
Estado, sendo notadamente dirigida contra pacifistas, dissidentes e adversários
políticos do regime. Há uma desautorização moral do criminoso em relação
aos julgadores competentes para seu julgamento, normalmente associando
o órgão judicial a uma tribuna política, por vezes hipócrita e cúmplice, não
merecedora
de deter tal competência.
A última das técnicas de neutralização – a apelação a lealdades mais
elevadas – é por excelência a principal técnica nos casos dos crimes de Estado.
A invocação a deveres de consciência e lealdades a ídolos, mitos e líderes é
muito comum como escusa. Os valores que se invoca são míticos, sejam por si
mesmos (raça superior ou utopia futura) ou aberrantes perversões de valores
em princípio positivos (nação, cultura, democracia, republicanismo, religião
e até direitos humanos). O mais comum desses valores é a segurança (da
sociedade, do Estado, da nação etc..) (ZAFFARONI, 2007, p. 27-30).
Como se percebe, não é uma tarefa fácil lidar com tantas questões de
naturezas muitas vezes tão diversas. Mas é a essa pleiade de situações e de
demandas que a justiça de transição precisa dar respostas.
Mas o que vem a ser “justiça de transição”?
Como em todo trabalho que almeje cientificidade, também este precisa
utilizar conceitos e definições como pontos de partida para suas análises. E o
primeiro passo é esclarecer o que se entende pelo fenômeno a ser analisado.
A definição adequada do que vem a ser justiça transicional está
atrelada à ideia de que o direito a ser observado pelos agentes estatais não é
somente aquele presente no ordenamento jurídico do Estado e em vigor no
preciso momento em que os atos dos referidos membros do poder público
foram perpetrados. Quem exerce função de Estado, bem como os membros da
sociedade em geral, tem o dever de também observar o direito internacional,
notadamente os direitos inerentes à própria condição do ser humano (direitos
humanos), independentemente das fontes das quais tais direitos provenham,
se dos tratados internacionais ou do direito consuetudinário.
Trata-se de concepção ideologicamente construída em termos
concretos a partir da jurisprudência do Tribunal Militar Internacional de

202
Nuremberg, responsável pelo julgamento dos crimes nazistas cometidos na
Alemanha (tratarei disso adiante). Se o direito interno de um Estado serve de
escusa para o cometimento de atos claramente desumanos e degradantes por
parte dos agentes desse mesmo Estado, tal direito não deve ser observado e
esses agentes são passíveis de punição. Por outro lado, há a enorme coerção
simbólica e fática sobre tais agentes e a medida para fazer justiça nesses casos
nem sempre poderá ser exatamente a mesma que se estabelece para casos
semelhantes em situações de normalidade democrática.
Não obstante isso, há situações em muitos desses regimes de exceção
em que a própria legalidade autoritária é violada. A norma jurídica, mesmo
autoritária, não autoriza certas condutas que, entretanto, são largamente
praticadas pelos agentes do Estado para proteção do regime político vigente na
ocasião. A tortura e a execução sumária não eram permitidas pela legislação
do regime militar brasileiro e apesar disso foram largamente utilizadas contra
os inimigos do governo. Na Argentina, sequer a Constituição democrática
fora revogada e o Estado incentivou oficiosamente a formação de centros
clandestinos de detenção, precisamente para manter certa distância – ao
menos formal - dos horrores lá praticados.
Essas são situações ainda mais paradoxais, pois a legalidade do próprio
regime autoritário é violada com incentivo desse mesmo regime e para sua
preservação, o que demonstra uma dificuldade de compreensão acerca do
próprio papel das leis e da constituição em tais contextos.
O fato é que, uma vez estabelecida uma democracia constitucional
em um país cujo passado recente tenha sido de regime autoritário, o
enfrentamento dos crimes contra os direitos humanos, perpetrados muitas
vezes para a preservação do regime de exceção, se faz necessário, ainda que
as fórmulas da denominada justiça transicional não devam ser as mesmas em
todo tempo e lugar.
No intuito de estabelecer os pontos de partida das concepções
defendidas neste ensaio, socorro-me do conceito de Louis Bickford que
traz uma definição bastante abrangente do que vem a ser a justiça de
transição diante da variedade de experiências aqui abordadas. Para o autor,
a justiça transicional consiste em um conjunto de medidas consideradas

203
necessárias para a superação de períodos de graves violações a direitos
humanos ocorridas durante conflitos armados (ex.: guerras civis) e/ou
regimes autoritários (ditaduras), implicando a adoção de providências
com os seguintes objetivos:
- esclarecimento da verdade histórica e judicial, dentre
outras coisas com a abertura dos arquivos estatais do
período de exceção;
- instituição de espaços de memória (ex.: memorial do
Holocausto, na Alemanha), para que as gerações presentes
e futuras possam conhecer e compreender a gravidade do
que ocorreu no período de exceção;
- reformas institucionais em relação aos serviços de
segurança, adequando-os à pauta axiológica do Estado
democrático de direito, bem como sedimentando nas
instituições públicas uma cultura democrática e humanista;
- reparação dos danos às vítimas (indenizações,
reabilitações etc..);
- realização da justiça propriamente dita, com a
responsabilização em variados graus dos violadores
dos direitos humanos (BICKFORD, 2004, p. 1046-
1047; GREIFF, 2007, p. 26; com ligeiras variações, cf. tb.
PORTO, 2009, p. 180-181; UPRIMNY & SAFFON, 2010;
PIOVESAN, 2011, p. 78; ZANUZO, 2009, p. 67).
Considerando tal ponto de partida, analisemos o paradigma central
nuremberguiano e as experiências escolhidas no contexto do trabalho.

2. Paradigmas de Nuremberg e crimes de lesa humanidade no direito


internacional humanitário

Os denominados crimes contra a humanidade ocupam posição central


no debate sobre justiça transicional, já que sem tal noção, os referidos atos
seriam, ao menos em tese, fundamentados no ordenamento jurídico vigente,

204
bem como no poder das autoridades estatais que os ordenaram, não obstante
o fato de que dificilmente a tortura ou a execução extrajudicial encontram
respaldo jurídico expresso, mesmo nos ordenamentos dos regimes autoritários.
Normalmente a referência paradigmática fundamental é o Tribunal
Militar Internacional, estabelecido pelos Aliados vencedores da 2ª Guerra
Mundial na cidade alemã de Nurnberg, ou Nuremberg, como é mais conhecida.
Não é por mero acaso que o Tribunal de Nuremberg se tornou
paradigmático. No famoso julgamento dos criminosos nazistas de alta
envergadura e importância para o regime, em que pesem as críticas ao caráter
de tribunal de exceção e do estabelecimento de uma aparente retroatividade
da lei penal internacional (em referência aos crimes de lesa humanidade) em
desfavor dos réus, não foi um mero julgamento unilateral dos vencedores
da guerra contra os vencidos: as regras básicas do contraditório e do devido
processo legal foram respeitadas (ainda que a defesa não tenha tido o mesmo
tratamento que a acusação), os réus tiveram oportunidade de expor seus
argumentos, tendo sido vários deles levados em consideração, como demonstra
o resultado do julgamento. Ao invés do fuzilamento dos líderes vencidos,
como era comum nas guerras até então ocorridas, o julgamento diferenciou as
responsabilidades de cada um dos 22 líderes nazistas levados ao Tribunal, assim
como suas respectivas penas: foram doze condenações à morte, três à prisão
perpétua, duas a vinte anos de prisão, uma a 15, outra a 10 e ainda ocorreram
três absolvições (COHEN, 2006, p. 60-62; GONÇALVES, 2001, p. 343-347).
O mais importante, todavia, para os limites do presente trabalho, foi
o legado nuremberguiano acerca do conceito de crimes contra a humanidade.
Antes um conceito diluído no direito internacional consuetudinário, recebeu
do Estatuto do Tribunal, em seu art. 6º, c, a definição de que tais delitos seriam
o homicídio, o extermínio, a escravidão, e outros atos desumanos cometidos
contra a população civil antes ou durante a guerra, ou perseguições baseadas em
critérios raciais, políticos e religiosos, para a execução de crimes ou em conexão
com crimes que sejam da competência do Tribunal, independentemente de
terem sido ou não praticados em violação do direito interno do país onde
foram perpetrados (PIOVESAN, 2006, p. 34; WEICHERT & FÁVERO, 2009,
p. 518; LOPES, 1999, p. 500).

205
A referida definição foi inspiradora de uma nova posição do indivíduo
no âmbito internacional: a possibilidade de estipulação de direitos e deveres aos
indivíduos diretamente pelo direito das gentes sem escusas de direito nacional
foi gradativamente se sedimentando, sendo reiteradamente reafirmada pela
legislação internacional positiva universal e regional, pela Comissão de
Direito Internacional e Assembleia Geral da ONU, bem como pelos diversos
tribunais internacionais, tanto as Cortes Europeia e Interamericana de
Direitos Humanos, como os tribunais penais internacionais ad hoc (Iugoslávia
e Ruanda) (TRINDADE, 2004, pp. 219-225)2 .
O paradigma nuremberguiano também foi reafirmado no texto do art.
7 do Estatuto de Roma que, em 1998, instituiu o Tribunal Penal Internacional
de caráter permanente.3 Para os julgamentos a serem realizados nesta
Corte, é considerado o texto que, como é frequente no direito internacional,
consolida entendimentos reiterados ao longo da segunda metade do século
passado sobre os crimes de lesa humanidade. Dentre estes estão incluídos o
extermínio, a escravidão, a tortura, a violência sexual em suas variadas formas,
a perseguição de grupos e coletividades com base em motivos políticos, raciais,
culturais e outros, desaparecimento forçado de pessoas, apartheid,quando
tais atos sejam parte de um ataque generalizado e sistemático contra uma
população civil.
O texto normativo de certo modo consolida e sintetiza os entendimentos
contemporâneos sobre o conteúdo dos crimes de lesa humanidade, atualizando
o legado de Nuremberg (TEITEL, 2003, p. 23).
A Corte Interamericana de Direitos Humanos merece um destaque
à parte. No âmbito do direito internacional humanitário das Américas,
desenvolve jurisprudência na primeira década do século XXI, quando instada
a decidir casos em que sejam discutidas a interpretação e a aplicabilidade da
Convenção Americana de Direitos Humanos (o famoso “Pacto de San José
2 Embora o sempre merecidamente citado Hans Kelsen já tenha previsto esta situação de
responsabilização individual antes mesmo do julgamento de Nuremberg, mais precisamente
em obra publicada em 1944 nos EUA, quando estipula aquilo que Massimo La Torre e Cristina
García Pascual vão denominar de “utopia realista”, com várias implicações e antevisões para o
direito internacional do Pós-Guerra (Kelsen: 2003, passim).
3 Em funcionamento desde 2002, a partir da 60ª ratificação. Cf. http://www.un.org/spanish/
law/icc.

206
da Costa Rica”), que consolida várias teses importantes nesse campo. Desde
a decisão no chamado Caso “Barrios Alto” (Chumbipuma Aguirre y Otros x
Peru), em 2001, passando por vários outros e incluindo o Caso “Guerrilha
do Araguaia” (Gomes Lund e Outros x Brasil), em 2010, a Corte se posiciona
reiteradamente da seguinte maneira sobre os problemas pertinentes:
- crimes de lesa humanidade podem ser cometidos
em tempo de guerra ou de paz.
- leis de autoanistia são juridicamente inválidas
em relação a crimes contra o direito internacional
humanitário (manifesta incompatibilidade entre
tais leis e a Convenção Americana de Direitos
Humanos).
- Estado possui obrigação de investigar e punir
os crimes contra a humanidade, combatendo sua
impunidade.
- crimes dessa natureza são imprescritíveis e não são
admissíveis objeções de direito interno à referida
imprescritibilidade4.
Considerando, o exposto, vejamos como nossos irmãos do Cone Sul
desenvolveram suas experiências de justiça transicional.

3. Justiça de transição na América do Sul: as experiências argentina


e chilena

Diante da maior abrangência das discussões sobre a temática, bem


como de uma maior sedimentação de certos conceitos, transformados em
pontos de partida irrenunciáveis no atual contexto internacional, é possível
perceber os paradigmas nuremberguianos em diversas experiências nacionais

4 Essas teses estiveram presentes também, dentre outros, nos Casos Comunidade Moiwana x
Suriname (2005), Las hermanas Serrano Cruz x El Salvador (2005), “Massacre de la Rochela” –
Colômbia (2007), bem como em Almonacid Arellano y Otros x Chile (2006), Caso este que será
objeto de breve análise adiante. Cf. sentenças em www.corteidh.or.cr. Cf. tb. Weichert & Fávero:
2009, 561-567; Piovesan: 2011, pp. 73ss.; Belaúnde: 2003, passim.

207
de enfrentamento dos legados do passado autoritário pelos novos regimes de
democracia constitucional e suas respectivas justiças transicionais.
Em nosso contexto latino-americano, é relevante o debate em torno de
duas experiências geograficamente próximas, bem como próximas no caráter
específico dos seus respectivos regimes autoritários (casos da Argentina e do
Chile). As experiências argentina e chilena possuem similaridades relevantes
para estudos comparados: são temporalmente próximas (início em 1973
no Chile e 1976 na Argentina), foram governos chefiados por militares que
seguiam a “doutrina da segurança nacional” e compartilharam através de
episódios como a Operação Condor informações de inteligência e know-how
repressivo em sua mútua cruzada contra movimentos populares e grupos
políticos de esquerda (ACUÑA, 2006, p. 207).
No contexto latino-americano, tais experiências podem servir como
parâmetros para reflexões em torno da experiência brasileira.

3.1 - Argentina: la Plaza de Mayo reclama seus filhos

“Con vida los llevaron, con vida los queremos”. Esta frase é talvez a
mais emblemática das que se ouvem nas manifestações semanais das Mães e
Avós da Plaza de Mayo, realizadas às quintas-feiras, em Buenos Aires, entre a
referida praça e a Casa Rosada, sede do poder executivo argentino.
As mães e avós argentinas se tornaram mundialmente famosas pela
incansável luta para recuperarem as vidas, as identidades e as histórias de seus
filhos e netos, desaparecidos políticos durante a última ditadura militar no
país, entre 1976 e 1983.
Compreender a luta dessas mulheres argentinas remonta à necessidade
de conhecer as razões que as levaram a isso. Convém uma breve retrospectiva
do último regime de exceção argentino.

3.1.1 Regime de exceção 1976-1983: breve histórico

Assim como outros países da América Latina, a Argentina alternou,


em sua história, momentos democráticos e períodos de exceção. Não obstante

208
a longeva e duradoura Constituição daquele país ser de 1853-1860, a frequente
suspensão da aplicação de seus dispositivos durante os muitos períodos de
exceção demonstrou que a preservação formal do texto constitucional nunca
foi um impeditivo ao advento de regimes políticos autoritários (CAMPOS,
2004, passim).
Não foi diferente no último e mais sangrento dos regimes autoritários
argentinos, no período compreendido entre março de 1976 e dezembro de 1983.
Em 24 de março de 1976, após um curto período democrático de pouco
menos de 3 anos, o governo constitucional de María Estela Martínez de Perón
(Isabel) foi deposto por um golpe de Estado liderado pelas Forças Armadas. A
aguda crise econômico-social pela qual passava a Argentina, aliada à violência
política que continuou mesmo após a redemocratização em 1973 gerou grande
desgaste do governo Isabel Perón. O sistema partidário não solucionava a
instabilidade política e a democracia argentina era atacada de um lado pela
permanente ameaça conspirativa dos militares e por outro, não obstante terem
perdido força com a redemocratização, pelos significativos grupos guerrilheiros
de esquerda, que permaneciam ativos e descrentes das soluções democráticas e
defensores da luta armada como “estágio superior da ação política tradicional”.
Os mais notórios eram os Montoneros, provenientes da esquerda peronista,
e o Exército Revolucionário do Povo (ERP), de inspiração guevarista e braço
armado do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) (BENÍTEZ &
MÓNACO, 2012, p. 1).
Diante da profunda instabilidade proveniente desse contexto, não foi
difícil para as Forças Armadas intervirem através da deposição do governo
constitucional em março de 1976. Utilizando as variáveis da crise como
pretextos, os militares assumem o poder político pela força, não obstante terem
contado com amplo apoio de instituições e da sociedade civil, destacando-se a
cúpula da Igreja Católica, setores importantes do segmento político-partidário
(em especial os partidos conservadores provinciais), grandes conglomerados
empresariais e os meios de comunicação em geral. Tal consenso foi um fator
importante para a consolidação inicial do poder político nas mãos militares
que - importante que se diga - não conseguem se estabelecer como força
política sem apoio social (CALVEIRO, 2010, p. 3).

209
Uma vez no poder, os governantes militares tiveram a preocupação de
iniciar o que chamaram de Processo de Reorganização Nacional, cuja meta
central seria reestruturar o corpo social e o Estado. Preocuparam-se em evitar
a personificação do poder, instituindo uma Junta Militar governante com os
comandantes-em-chefe das três Forças (Aeronáutica, Exército e Marinha).
Do ponto de vista constitucional, à revelia da Constituição Nacional,
mas sem revogá-la expressamente, instituíram o Estatuto do PRN, que
designou a Junta Militar como um suprapoder e órgão supremo do Estado,
responsável até mesmo pela designação do Presidente da República, executor
das políticas elaboradas pela Junta, tendo sido Rafael Videla o primeiro deles. O
poder judiciário sofreu intervenção e as câmaras legislativas foram suprimidas,
ficando em seu lugar uma Comissão de Assessoramento Legislativo (BENÍTEZ
& MÓNACO, 2012, p. 2-3).
Parte da sociedade civil organizada reagiu. Em abril de 1977, surgiram
as já referidas Madres de laPlaza de Mayo, reclamando publicamente seus filhos
desaparecidos.A elas se uniram as Abuelas de laPlaza de Mayo e os Familiares
de Detidos Desaparecidos por Razões Políticas, bem como posteriormente
ONGs como o Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS) e o Movimento Judeu
pelos Direitos Humanos.Na própria comunidade jurídica houve resistências,
com destaque para o constitucionalista Germán Bidart Campos, bem como
julgados da própria Suprema Corte, proferindo decisões que propugnavam pelo
cumprimento do art. 23 da Constituição (Caso Zamorano, decisão em 9 de agosto
de 1977), considerando-se que, apesar da situação permanente de estado de sítio,
a Carta argentina de 1853-1860 permanecia em vigor (GARZÓN, 2003, passim).
Todavia, tais resistências foram de limitado alcance e não impediu a
vasta concentração de poderes que deixou os governantes em uma situação
de domínio quase absoluto. Com isso houve a intensificação5 do que foi
denominado posteriormente de “terrorismo de Estado”, com a perseguição
implacável dos opositores de forma oficial e/ou oficiosa. Ao lado da intensa

5 Uso o termo “intensificação” pelo fato de que antes mesmo do golpe de Estado de 1976,
em fevereiro de 1975, o governo Isabel Perón assinou o Decreto 261, dando ao Comando
Geral do Exército a incumbência de “aniquilar a subversão”, especialmente na repressão dos
guerrilheiros do ERP, refugiados na selva tucumana desde o ano anterior (cf. BENÍTEZ &
MÓNACO, 2012, p. 4).

210
repressão por parte dos organismos estatais, desenvolveu-se uma ampla força
paraestatal de extrema direita, a exemplo dos esquadrões da morte reunidos
em torno do Triplo A (Aliança Anticomunista Argentina), organizados
clandestinamente, mas com apoio direto da Secretaria de Bem-Estar Social a
cargo de José López Rega.
A ofensiva em questão, embora dirigida inicialmente às organizações
armadas como o ERP e os Montoneros, passou a incluir todos aqueles potencial
ou efetivamente opositores do regime. As palavras do Gal. Ibérico Saint Jean,
em 28 de maio de 1977, são bem sintomáticas a respeito: “primero mataremos
a los subversivos, luego a sus colaboradores, luego a sus simpatizantes, a los
indiferentes y, por último, a los tímidos”. E nesta filosofia de ação, as práticas
legais ou ilegais a favor do regime tinham a finalidade imediata de, segundo as
metáforas dos próprios militares argentinos, “extirparem o câncer” alojado no
“tecido social” e, para isso, os campos de concentração seriam os “hospitais”
adequados a essas “cirurgias”.
Nessa conjuntura, a última ditadura argentina se caracterizou como
um regime de exceção que perpetrou um grau de violência sem precedentes.
Como destaca Pilar Calveiro, não é a violência estatal a novidade nesse processo
político argentino pós-março de 1976, mas a sua força descomunal, tornando
o Estado um poder desaparecedor, que avançou sobre o material e o simbólico,
sobre corpos e ideias (BENÍTEZ & MÓNACO, 2012, p. 5).
De fato, os números da ditadura argentina impressionam: é de longe
a ditadura latino-americana proporcionalmente mais assassina. Apesar de
haver profundo dissenso estatístico, as estimativas mais modestas em relação
ao total de assassinados e desaparecidos políticos giram em torno de doze
mil, tendo algumas outras chegando a mais de trinta mil cidadãos argentinos
provavelmente assassinados, já que na maioria dos casos parece não terem
deixado rastro.6 Como afirmei antes, durante os sete anos de sua duração, o
6 A CONADEP – Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas – documentou em 1984
o desaparecimento de 8.963 pessoas, embora estimassem que esse número excederia facilmente
as nove mil vítimas. Entre 1984 e 1999 o Secretariado Interno para Direitos Humanos confirmou
a existência de cerca de três mil novos casos. Destarte, instituições como a Anistia Internacional
estimam que tal número excede as quinze mil vítimas, tendo algumas outras organizações
internacionais de direitos humanos chegando mesmo à marca dos trinta mil cidadãos vítimas
da ditadura argentina (Acuña: 2006, p. 209).

211
“terrorismo de Estado” implicou um plano de repressão generalizada contra
todos aqueles que aparecessem aos olhos do regime como subversivos. Tal plano
sistemático do cometimento de crimes de lesa humanidade e violação de direitos
humanos teve como principais características o desaparecimento forçado de
pessoas7 , os assassinatos, as torturas, a apropriação e subtração de bebês de suas
mães (e, consequentemente, da identidade dessas crianças) e o encarceramento
generalizado dos “subversivos” em centros clandestinos de detenção, sem
qualquer informação à família dos mesmos, como bem retratado em filmes como
“A História Oficial” e “Crônica de uma Fuga”, bem como no ficcional “Visões”
(LITVACHKY, 2007, p. 108; YACOBUCCI, 2011, p. 23ss.; ACUÑA, 2006, p.
209). Vale destacar também, como forma específica de tortura, a violência sexual
largamente utilizada contra as mulheres e até mesmo, eventualmente, contra
homens (BALARDINI, OBERLIN & SOBREDO, 2010, passim)8 .
O gradativo enfraquecimento econômico e político do regime
levou os militares a manipularem o nacionalismo em torno da histórica
reivindicação da Argentina sobre as Ilhas Malvinas (chamadas pelos britânicos
de Falklands), ocupadas pelo Reino Unido desde 1833. Em 1982, a Argentina
ocupa militarmente aquelas ilhas, acreditando na não-reação do Reino Unido
e no auxílio diplomático dos EUA. O cálculo estratégico, político e militar foi
colossalmente equivocado, tendo as Forças Armadas da Argentina sofrido
fragorosa derrota militar para os britânicos na chamada “Guerra das Malvinas”,
com um saldo de 650 militares nacionais mortos após pouco mais de dois
meses de combate (BANDEIRA, 2003, p. 445-449).
Após a derrota no conflito, os dirigentes enfraquecidos passaram a
sofrer grande pressão social para uma transição à democracia, pressão que
se intensificou com o agravamento da crise econômica, o que terminou por
levá-los a permitir o retorno dos civis ao poder, não sem antes se outorgarem
7 Nesse particular, é relevante lembrar os tristemente célebres “voos da morte”, prática
macabra utilizada pela Marinha argentina de se sedar prisioneiros com o barbitúrico Pentothal
e arremessá-los ainda vivos no alto mar (Benítez & Mónaco: 2012, pp. 6-7)
8 Segundo algumas estimativas de organismos de defesa de direitos humanos, existiram cerca
de 500 centros clandestinos de detenção durante aqueles anos. Os principais foram: a Escuela de
Mecánica de la Armada –ESMA - (Capital Federal), Campo de Mayo – el campito (Gran Buenos
Aires), que possuía em seu interior 4 estabelecimentos clandestinos, La Perla (Córdoba), El
Vesubio (La Matanza) y Club Atlético (Capital Federal) (Benítez & Mónaco: 2012, p. 7; Felgueras
& Filippini: 2010, p. 17).

212
anistia ampla pelos atos cometidos, através da aprovação da Lei 22924/1982.
Como era de se esperar, a reação de vários setores da sociedade argentina foi
considerável, principalmente após as gradativas revelações dos fatos ocorridos
durante o regime e ocultados por este até então.
Vejamos os desdobramentos.

3.1.2 “Ponto Final”, “Obediência Devida” e anistia

A Lei 22934 foi aprovada em 1982, portanto, ainda no período de


exceção, já que a redemocratização só se deu no ano seguinte, concretizando-
se com a ascensão de Raul Alfonsín à Presidência, eleito pelo Partido Radical.
Poucos dias após assumir o governo, ainda em 1983, Alfonsín criou
a CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) com a
finalidade de buscar todas as informações possíveis sobre o destino dos detidos
desaparecidos e outros crimes da ditadura. Esse minucioso trabalho, publicado
como livro com o título de Nunca Más, gerou grande debate no Congresso
argentino que terminou por revogar aquela norma através da aprovação da Lei
23040. Esta considera inconstitucional a Lei anterior e a declara insanablemente
nula (Bauer: 2012, pp. 2-3).
A doutrina tradicional considerou que tal reação legislativa a posteriori
não poderia desfazer os efeitos já produzidos pela anistia. Contudo, a Corte
Suprema de Justiça legitimou a posição do parlamento argentino, considerando
o contexto de exceção da edição da lei anterior. Elucidativa esta passagem da
decisão desse Tribunal:
...la derogación que se efectuó tiene efecto retroactivo,
lo que, vinculado a las pautas de eficacia de las normas
en el tempo según el artículo 3º del Código Civil,
resulta válido y no permite inferir que haya existido una
inadmisible intromisión en facultades propias del Poder
Judicial, en tanto el Congreso efectuó una valoración
pormenorizada de las circunstancias en que se dictó la
norma de facto, y buscó privarla de toda eficacia (cf.
YACOBUCCI, 2011, p. 26).

213
Diante desses fatos, a partir de 1985 ocorreram vários julgamentos
no âmbito do poder judiciário, sendo consideradas procedentes a maior
parte das ações penais propostas em face dos integrantes das juntas militares
(LITVACHKY, 2007, p. 108-109; SALMÓN G., 2006, p. 20-21; YACOBUCCI,
2011, p. 25-26).
Apesar disso, a questão não se encerrou aí. Os membros das juntas
militares tiveram suficiente força política para aprovarem entre 1986 e 1987
as Leis 23492 e 23521, conhecidas respectivamente como “Do Ponto Final”
e da “Obediência Devida” (denominadas por Litvachky de “el combo de la
impunidad”), encerrando supostas dúvidas sobre o alcance da anistia conferida
em 1982. Diferentemente do contexto da Lei de 1982, aqui se debateu em um
parlamento representativo e democrático e foram cumpridas as formalidades
constitucionais em sua integralidade. Em razão disso, a Corte Suprema aceitou
a legitimação das denominadas “Leis da impunidade” (LITVACHKY, 2007, p.
109; SALMÓN G., 2006, p. 9; YACOBUCCI, 2011, p. 27)
Pouco anos depois, o então Presidente Carlos Menem, do Partido
Justicialista (peronista), entendeu ser necessário encerrar essas questões
da recente história argentina e buscar a definitiva pacificação da sociedade
nacional. Para tal, concedeu indulto presidencial aos líderes militares do
período, como Videla e Massera, bem como aos líderes guerrilheiros, como
Mario Firmenich, dos Montoneros (YACOBUCCI, 2011, p. 28; ACUÑA, 2006,
p. 214-215).
Parecia encerrada a justiça transicional no que dizia respeito à
responsabilização pelos crimes da ditadura, embora as questões relativas
à verdade, memória e reparação, bem como as reformas institucionais,
permanecessem em debate, sendo de se destacar a aprovação da Lei 24411/1994
(compensação e indenização às vítimas da repressão e às respectivas
famílias), a criação da Comissão Nacional pelo Direito de Identidade, em
1992 (tratamento da questão dos sequestros de bebês e da descoberta de suas
verdadeiras identidades) e do Programa de Verdade e Memória, no âmbito
do poder executivo, que digitalizou as principais informações constantes de
arquivos nacionais e provinciais, criando um significativo banco de dados do
período ditatorial (ACUÑA, 2006, p. 215-217).

214
3.1.3 Ni olvido, ni perdón: a reversão constitucional da impunidade

Apenas parecia.
Em 1994, ocorreu uma significativa reforma constitucional no texto
de 1853-1860, dando naquele contexto uma “coloração” mais internacionalista
ao regime constitucional argentino. O destaque que interessa diretamente aos
propósitos deste trabalho diz respeito ao status constitucional dado pelo novo
art. 75, 22, da Constituição Nacional, aos tratados internacionais de direitos
humanos assinados pela República, incorporando, dentre outros, a Convenção
Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José”).
Como já visto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
responsável pela interpretação da CADH, desenvolveu a partir de 2001,
jurisprudência em sentido contrário aos impedimentos de se julgarem
crimes de lesa humanidade cometidos no âmbito de regimes autoritários.
Esse estímulo indireto proveniente daquela Corte reavivou os debates,
considerando a abertura do direito constitucional argentino ao direito
internacional humanitário. A pressão política junto aos poderes do Estado e
a maior sensibilização dos novos juízes e legisladores fizeram com que o tema
fosse rediscutido. O advento de Néstor Kirchner à Presidência da República
também contribuiu para novas políticas governamentais sobre o assunto,
inclusive com a anulação dos indultos, consubstanciando aquilo que veio a ser
chamado de “reversão do menemismo” (BONVECCHI, 2004, passim; cf. tb.
MATAROLLO, 2007, p. 44).
Decisões judiciais proferidas a partir de 2001 com o Caso Poblete
(sequestro de uma menina ainda bebê durante a ditadura) começaram
a declarar inconstitucionais aquelas leis. Tal entendimento fez com que
o Congresso Nacional argentino se visse pressionado a revogá-las, o que
terminou fazendo, e que a Suprema Corte terminasse por sedimentar o
entendimento, reafirmando-o continuamente desde 2005, que as leis de fato
são inconstitucionais e diante do próprio modelo de recepção dos tratados
internacionais de direitos humanos como normas constitucionais, instituído
no art. 75, 22, da Constituição pela Reforma Constitucional de 1994, seria
inaceitável posição diversa (DALLA VÍA, 2004, p. 293-294). Em 2007, a Corte,

215
no Caso Mazzeo, Julio Lilo y otros, também declarou inconstitucional o Decreto
1002/1989, ato presidencial que indultava vários dos perpetradores dos crimes
de lesa humanidade (BAZÁN, 2009, p. 61-62).
Estava aberto, portanto, o caminho para a responsabilização dos
agentes estatais argentinos por crimes de lesa humanidade cometidos durante
o período de exceção (CAMPOS, 2004, p. 297-298).
A partir dessas mudanças, os clamores da Plaza de Mayo parecem
finalmente fazer-se ouvir. Segundo os dados do CELS, tem-se atualmente
(março de 2012) um total de 1.886 investigações catalogadas, com a seguinte
situação: 790 agentes aguardando julgamento; 250 condenados, incluindo dois
ex-Presidentes da República (Rafael Videla e Reynaldo Bignone) condenados
à prisão perpétua; 22 absolvidos e 264 denunciados em investigação ainda
na fase de inquérito, sem processo formal instaurado contra os mesmos. Em
termos de tipologia penal, os dados apurados pelo CELS apontam para os
seguintes percentuais em relação às decisões judiciais condenatórias: 30% -
privação ilegal da liberdade, 29% - tortura, 20% - homicídios, 8% - apropriação
de menores, 7,5% - crimes contra a propriedade, 3% - associação ilícita, 0,5%
- crimes contra a integridade sexual, 2% - outros crimes (disponível em http://
www.cels.org.ar/wpblogs/estadisticas, acesso em 08/11/2012).
No caso dos argentinos, parece haver uma grande disposição de acertar
contas com o passado, buscando assegurar todos os objetivos apontados por
Bickford quanto ao conceito de justiça transicional, quais sejam, verdade,
justiça, reparação e punição dos violadores, bem como reformas institucionais.
É importante observar-se, p. ex., o comportamento dos atuais membros das
Forças Armadas da Argentina, não interferindo em nenhuma dessas questões
judiciais e respeitando suas decisões, trazendo com isso um grande alento a
nuestros hermanos que podem ver seus militares atuais como democratas e
defensores da Constituição. Estes, por sua vez, parecem querer cada vez mais
se dissociar politicamente das juntas militares governantes do período entre
1976 e 1983.

216
3.2 Chile: um longo adeus aos anos tenebrosos

“Chi, chi, chi, le, le, le; viva Chile!”, dizem os patriotas chilenos quando
torcem pela sua seleção de futebol. Mas não somente. O patriotismo nos
discursos e nas saudações está presente igualmente em discursos políticos
diversos, inclusive ideologicamente antitéticos a exemplo de Salvador Allende
(defender o Chile e seu povo das expropriações capitalistas e imperialistas) e
de Augusto Pinochet (defender a família e a sociedade chilena dos comunistas
e “subversivos da lei e da ordem”). Esses foram, como se sabe, protagonistas de
importantes episódios da história do Chile, e, no caso do segundo, o autocrata
líder do regime de exceção findo em 1990.
O histórico do regime autoritário de 17 anos merece considerações
específicas. Vamos a elas.

3.2.1 Regime de exceção 1973-1990: breve histórico

Ao contrário da Argentina, o Chile não teve em sua história rupturas


frequentes do regime democrático. Desde 1830, a tradição chilena foi de
governos civis, normalmente duradouros e estáveis. Apenas esporadicamente,
como nos anos 20 e 30 do século XX, o Chile sofreu intervenções militares e
por pouco tempo. Antes dos anos 70 do século passado, a democracia chilena
era vista como exemplar para os demais países latino-americanos (Rato: 2001,
pp. 79-80).
A partir dos anos 60 do século XX, o Chile começou a vivenciar
relevantes transformações sociais. A então Constituição vigente, de 1925,
passara por reformas durante o mandato de Eduardo Frei Montalva (1964-
1970), contemplando perspectivas do constitucionalismo social para a Carta
chilena, com destaque para as limitações de ordem social ao direito de
propriedade, possibilitando a nacionalização do cobre e a reforma agrária.
Seu programa político se intitulava “Revolução em Liberdade” e defendia
uma espécie de terceira via de desenvolvimento econômico alternativa ao
capitalismo liberal e ao socialismo real, inspirada na doutrina social da Igreja
Católica e no socialismo autogestionário.

217
Tais perspectivas se evidenciam ainda mais com a eleição de Salvador
Allende como Presidente da República, propiciada pelo caminho aberto
pelo seu antecessor. Allende assume o poder em 1970 como o primeiro líder
socialista-marxista eleito democraticamente na América Latina. Apesar disso,
Allende defendia em palavras e ações a democracia representativa e a via
eleitoral para as reformas sociais no Chile, rechaçando revoluções armadas no
estilo leninista bolchevique.
O Governo Allende, ainda que sem romper com a legalidade, pôs em prática
várias dessas reformas, com destaque para a agrária com a expropriação de cerca de
nove milhões de hectares e as nacionalizações de parte significativa da indústria e
dos grandes conglomerados comerciais. Distanciou-se dos EUA e aproximou-se
de Cuba, embora mantivesse relações cordiais com os vizinhos latino-americanos
independentemente da coloração ideológica (RATO, 2001, p. 82-83).
Apesar da crise econômica e das disputas políticas acirradas, a Unidade
Popular, conjunto de partidos de sustentação ao governo, aumentou sua
bancada no Congresso Nacional chileno nas eleições de março de 1973, o que
alarmou ainda mais a oposição, que passou a atos conspirativos, especialmente
apostando na divisão das Forças Armadas entre setores leais e contrários ao
governo constitucional.
Ainda em 1973, descontentes com os rumos do governo, a maior parte
das Forças Armadas, liderada pelo Gal. Augusto Pinochet Ugarte1, empreendeu
um golpe de Estado que destituiu o Governo Salvador Allende e instaurou um
regime de exceção em 11 de setembro de 1973.2
O horror somente iniciava. A perseguição aos “allendistas” foi
generalizada e as detenções realizadas já nos primeiros dias de regime
de exceção foram tantas que não havia no Chile um recinto castrense

1 O referido General era, até então, colaborador de Allende e fora nomeado pelo Presidente
chileno Comandante do Exército em junho daquele mesmo ano.
2 Raúl Moreira Rato estipula uma divisão da ditadura chilena em três períodos distintos: 1)
o primeiro, de 1973 a 1980, durante o qual o governo exerceu uma repressão extremada; 2) o
segundo, de 1980 a 1988, durante o qual o Gal. Pinochet exerceu o poder como Presidente da
República (espécie de “ditador constitucional”); 3) o terceiro e último, de pouco mais de um
ano após a derrota do regime no plebiscito de 1988, em que Pinochet ainda permaneceu como
Presidente, embora as instituições evoluíssem para padrões democráticos, ainda que, no dizer
do aludido autor, uma “democracia vigiada” (Rato: 2001, p. 86).

218
suficientemente grande para alojar todos os detidos. Para resolver tal
“problema”, os novos governantes transformaram o maior estádio de futebol
à época – o Estado Nacional – em um gigantesco campo de concentração,
lá amontoando os presos políticos, sendo milhares deles interrogados e
torturados e outros ali mesmo executados. Em outubro, um mês após o golpe
de Estado, Pinochet ordena o envio de uma missão militar ao norte do país,
tristemente célebre como “Caravana da Morte”, inaugurando em solo chileno
práticas tornadas pouco a pouco comuns nas ditaduras latino-americanas:
fuzilamento sumário de presos condenados com a ocultação de seus corpos
assassinados, não sem, antes das execuções, torturá-los como se tornara
praxe (DORFMAN, 2003, p. 11; 17). Estima-se que 56 execuções sumárias
e 19 desaparecimentos políticos ocorreram por responsabilidade direta da
referida missão (LIRA, 2007, p. 204).
Em termos institucionais, o novo governo dissolve o Congresso
Nacional através do Decreto-Ley 128 de 12 de novembro de 1973, e suspende
as garantias individuais da Constituição de 1925, embora não a revogue
expressamente. Todos os postos-chave da administração pública e da economia
foram assumidos por militares designados pela Junta governante e os partidos
políticos que formavam a Unidade Popular foram declarados ilegais. Mesmo
os partidos à direita, no espectro político dito conservador, tiveram suas
atribuições e ações reduzidas ao mínimo.
Passou a governar por decretos-leis durante alguns anos até que em
1978 foi apresentado um anteprojeto de Constituição elaborado por uma
Comissão instituída pela própria Junta Militar, o que demonstrava uma
preocupação da mesma em fornecer ares democráticos e legais ao regime.
Presidida por Enrique Ortúzar, renomado constitucionalista chileno, o
texto restou aprovado pela Junta presidida pelo próprio Pinochet em 1980,
inclusive com a realização de um plebiscito, não obstante o fato de que o país,
embora formalmente não mais estivesse em estado de sítio, não vivenciava um
ambiente democrático quando do cumprimento das formas constitucionais3

3 Basta recordar que o poder executivo nacional permanecia com prerrogativas como ordenar
a prisão de qualquer cidadão, sem culpa formada, por cinco dias, restringir o direito de reunião
e a liberdade de manifestação do pensamento, censurar a imprensa e exilar qualquer adversário
político do regime.

219
(RATO, 2001, p. 88). Não é à toa que mesmo com a nova Carta promulgada
com dispositivos claramente democráticos (tanto que ainda está em vigor)
Pinochet ainda governou, ao lado da Junta Militar – que também exercia
o poder legislativo em lugar do parlamento -, por praticamente dez anos,
totalizando 17 anos de regime de exceção.
Durante a ditadura, o país encontrou certa prosperidade econômica,
apesar das políticas econômicas terem implicado o desmonte da estrutura
estatal do Estado social. As bases políticas dessa nova ordem econômica,
contudo, foram construídas com ações de Estado extremamente repressivas
em relação à população e, principalmente, aos opositores políticos. Assim
como em outros casos, assassinatos, torturas, perseguição implacável aos
adversários e terror foram amplamente utilizados como política de Estado,
oficial ou oficiosa, a depender da situação. A imagem do câncer social feita
pelos ditadores argentinos é retomada aqui por Pinochet em discurso feito em
1975, no Edifício Diego Portales, no qual define seu próprio “entendimento”
sobre os direitos humanos:
Os direitos humanos são universais e invioláveis, mas não
são irrestritos, nem têm a mesma hierarquia. [...] Quando
um corpo social adoece [...] suspende-se o exercício de
alguns direitos, para garantir a vigência de outros mais
importantes [...]. A imensa maioria de nossos compatriotas
aceita e apóia essas restrições, porque compreende que são
o preço necessário à tranquilidade, à ordem e à paz social,
que hoje fazem de nós uma ilha num mundo invadido pela
violência, pelo terrorismo e pela desordem generalizada.”
(cf. em DORFMAN, 2003, p. 109).

3.2.2 Retorno à democracia e a transição politicamente “possível”

Pela Constituição de 1980, o mandato presidencial era de 8 anos para o


então Presidente-ditador. Em 5 de outubro de 1988, houve um plebiscito para
decidir pela continuidade ou não de Pinochet à frente do executivo chileno, e,
pela primeira vez desde 1973, o General foi derrotado eleitoralmente, obtendo
43% dos votos favoráveis contra 54,7% que votaram pelo “não”.

220
Em 1990, ao devolver o poder aos civis após o enfraquecimento
político decorrente da nova conjuntura, Pinochet consegue manter-se como
Comandante do Exército até março de 1998, assumindo em seguida o cargo
de senador vitalício, cujo assento é garantido aos ex-presidentes pela Carta
de 1980 (não parece difícil perceber a quem beneficiou de antemão tal regra).
Garantiu ainda a continuidade da vigência do Decreto-Ley 2191/1978
que havia instituído anistia aos agentes estatais da era autoritária. Aliás, o
próprio General advertira a Patricio Aylwin, novo Presidente eleito, que
“Nadie va a tocar a mi gente. El día que lo hagan, se acaba el Estado de derecho”,
o que fez o governante recém-empossado afirmar que os chilenos teriam “toda
la verdad y la justicia en la medida de lo posible”, tendo com essa finalidade
criado a Comissão Nacional da Verdade e da Reconciliação, através do Decreto
Supremo 355/1990, para os casos de detentos desaparecidos, executados por
motivação política e vítimas da violência política em geral (SALMÓN G.: 2006,
p. 5, 20-21; SUTIL, 2007, p. 39-40; ZANUZO, 2009, p. 90-91; LIRA, 2007, p.
201; ACUÑA, 2006, p. 225).
Já nos primeiros meses de trabalho investigativo, a referida Comissão
encontrou um fosso com 21 cadáveres em Pisagua, ao norte na região de
Tarapacá. Os corpos conservavam cabelos, roupa e papéis nos bolsos, e foram
identificados sem dificuldades pelos familiares que por eles procuravam há
tempos. Essa descoberta provocou grande impacto político nacional, dando
rápido respaldo e legitimidade aos trabalhos da Comissão.
Embora a impunidade dos crimes de lesa humanidade permanecesse,
a Comissão conseguiu êxito na exposição de muitos deles e, em março de
1991, publicou seu informe oficial, possibilitando medidas reparatórias às
vítimas reconhecidas pelo informe através da Lei 19123/1991, que estabeleceu
pensões a familiares diretamente atingidos, bolsas de estudos para filhos de
vítimas até a idade de 35 anos, bem como gratuidade no acesso ao direito à
saúde, inclusive mental, dentro do PRAIS - Programa de Reparación y Atención
Integral de Salud para las Víctimas de las Violaciones de Derechos Humanos.

Outras medidas de reparação ocorreram em 1990 e nos anos


subsequentes, destacando-se:

221
- nos primeiros dias de trabalho da Comissão, envio de
projeto de lei ao Congresso Nacional que criou a Oficina
Nacional del Retorno (1990-1994) para apoiar o retorno
dos exilados;
- ainda em 1990, novo projeto de lei com vistas à reparação
dos danos aos exonerados políticos, pessoas expulsas de
seus empregos por razões políticas (leis aprovadas em
1993, 1998 e 2003);
- em 1991, novo projeto de lei prevendo restituição e
compensação dos bens confiscados de pessoas, partidos
políticos e organizações sindicais pelas mesmas razões
políticas, aprovado em 1998;
- entre 1995 e 1999, outorga de pensões a camponeses
expulsos de suas terras por terem sido dirigentes sindicais
e/ou militantes políticos (LIRA, 2007, p. 201-202).

Apesar da até então impossibilidade de punição das graves violações
de direitos humanos em virtude do DL da anistia, a Comissão desenvolveu um
trabalho minucioso na investigação sobre a verdade das referidas violações.
No Informe da Comissão, constatou-se que entre opositores assassinados e
desaparecidos políticos, o regime chileno teve responsabilidade direta em 3.178
deles, afora os 27.855 sobreviventes de torturas por agentes estatais (NEIRA,
2011, p. 287). Na apuração posterior da Comissão Nacional sobre Prisão
Política e Tortura, já na primeira década do século atual, chegou ao número
de 3.197 executados e desaparecidos políticos, bem como a 33.221 pessoas
detidas pela repressão política das quais quase 95% confirmaram terem sido
vítimas de tortura nos porões do regime (Sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos no Caso Almonacid Arellano, de 26 de setembro de 2006,
disponível em www.corteidh.or.cr).
A impunidade, porém, não seria eterna, como será visto em seguida.

222
3.2.3 “Estímulos” externos e internacionais: Pinochet Case in the House
of Lords e Caso Almonacid Arellano na Corte Interamericana de Direitos
Humanos

O enfraquecimento político dos pinochetistas não foi, em um


primeiro momento, suficiente para permitir que a justiça de transição fosse
realizada de modo amplo no Chile. A necessidade de se viabilizar o retorno
à democracia fez com que as prioridades do Governo Aylwin fossem a
reparação e a verdade, a aludida “medida do possível”. O DL 2191/1978
não foi amplamente questionado em um primeiro momento, garantindo a
impunidade dos perpetradores dos delitos de lesa humanidade do período.
Destarte terem surgido questionamentos junto ao poder judiciário acerca da
constitucionalidade de uma anistia naqueles termos, pelo menos até 1998,
a Corte Suprema chilena, com raras exceções, rechaçou interpretações que
nulificassem ou tornassem ineficaz o conteúdo do DL 2191/1978 (NEIRA,
2011, p. 289; ROTH-ARRIADA, 2011, p. 145-146; ACUÑA, 2006, p. 228).
O poder político e militar que de fato o Gal. Pinochet e seus apoiadores
ainda detinham permaneceram decisivos para a questão durante os anos que
se seguiram, até que “estímulos” externos surgiram. O primeiro deles foi dado
pelo pedido de extradição do ex-governante chileno feito pela Espanha em
16 de outubro de 1998, através do requerimento do Juiz Baltasar Garzón, ao
Governo do Reino Unido, em virtude de Pinochet lá se encontrar na ocasião.4
Solicitava a extradição para a Espanha para que lá fosse julgado por crimes de
lesa humanidade cometidos contra cidadãos espanhóis em território chileno,
envolvendo o elenco de violações de direitos humanos aludidas acima. Após
muitas discussões, o Comitê de Apelações da Câmara dos Lordes, então órgão
judicial da mais alta posição hierárquica no sistema britânico, decidiu que
Pinochet era extraditável, não sendo válidas auto-anistias nem imunidades
autoconcedidas, e deixou ao poder executivo a incumbência de fazê-lo ou não,

4 Importante ressaltar que não somente a Espanha encaminhou pedido de extradição em


relação ao Gal. Pinochet. Bélgica, França e Suíça também o fizeram. Na Itália, Contreras e o
Gal. Raúl Iturriaga Neumann foram condenados à revelia a penas de 18 e 20 anos de prisão,
respectivamente, pelos atentados que ocasionaram em Roma as mortes de Bernardo Leighton
(um dos fundadores da Democracia Cristã Chilena) e de sua esposa, Ana Fresno, em 6 de
outubro de 1975 (cf. ACUÑA, 2006, p. 232-233).

223
de acordo com a análise política do caso. O governo decidiu não extraditá-lo
para a Espanha sob a alegação de que o General não teria mais condições de
saúde para responder ao processo e Pinochet retornou ao Chile, após todas
essas idas e vindas de debates judiciais e políticos (WOODHOUSE, 2000,
passim; CHIGARA, 2000, p. 126; DORFMAN, 2003, p. 119ss.; ACUÑA, 2006,
p. 229-230).
Apesar do retorno do ex-ditador ao Chile, ainda sem ter sofrido efetiva
punição pelos seus crimes, a situação já não era tão favorável aos membros do
regime extinto. Quase concomitantemente ao Pinochet Case no Reino Unido,
modificou-se a composição da 2ª Sala Penal da Corte Suprema do Chile, e
tal órgão, aliado a decisões provenientes das instâncias inferiores, começou
a modificar sua percepção geral da questão, apontando para uma guinada
jurisprudencial sobre o alcance do DL da anistia, como veremos no tópico
seguinte.
Todavia, em termos de “estímulos” externos, o segundo e mais decisivo
passo foi a condenação do Estado chileno por decisão da Corte Interamericana
de Direitos Humanos em 2006 no Caso Almonacid Arellano x Chile.
Neste Caso, a Comissão Interamericana levou para a Corte IDH a
inércia jurisdicional interna no Chile para a devida apuração e punição dos
responsáveis pela execução extrajudicial de Almonacid Arellano, cidadão
chileno de 42 anos, que foi detido e executado por carabineiros em frente de
casa e na presença de sua família, no dia 16 de setembro de 1973 (cinco dias após
o golpe de Estado), embora a morte só tenha se consumado no dia seguinte,
no Hospital Regional de Rancagua. Apesar da ocorrência de investigações e
processo penal para apuração da referida execução, o poder judiciário chileno
não efetivou qualquer condenação dos autores do delito, selando a impunidade
dos mesmos com o já referido DL 2191/1978, que alcançaria os autores como
legalmente anistiados.
Diante da ausência de responsabilização, a Corte IDH reafirmou no
Caso em questão as teses que já estipulara em outros processos paradigmáticos,
iniciados com Cumbipuma Aguirre y Otros x Peru/2001 (Caso Barrios Alto) e
outros já referidos anteriormente.

224
Embora inicialmente voltada ao Caso Almonacid Arellano, a Corte
ainda asseverou que a tese da inaplicabilidade do DL 2191/1978 não seria
restrita ao caso levado a ela; ao contrário, “El Estado debe asegurarse que el
Decreto Ley No. 2.191 no siga representando un obstáculo para la investigación,
juzgamiento y, en su caso, sanción de los responsables de otras violaciones
similares acontecidas en Chile” (Sentença da Corte IDH em Almonacid Arellano
x Chile/2006, p. 65 – disponível em www.corteidh.or.cr).
Diante dessa reviravolta internacionalista, os juízes e tribunais internos
tenderam a se conduzir de acordo com as teses da Corte IDH, com algumas
peculiaridades no processo político chileno de justiça transicional, como
veremos adiante.

3.2.4 Justiça transicional interna pré e pós-Arellano: diversidade de


enfrentamento do passado autoritário no tempo

A jurisprudência chilena sobre os rumos da justiça transicional interna


foi divergente ao longo do tempo, destacadamente a da Corte Suprema,
diante da responsabilidade última de decidir as questões pertinentes. Karinna
Fernández Neira divide temporalmente a jurisprudência da mais alta Corte
chilena em cinco fases:
1) Do início da ditadura até 1998;
2) Da cessação da aplicação do DL da anistia;
3) Do novo cenário com jurisprudência contraditória;
4) Da imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade;
5) Da prescrição gradual de delitos imprescritíveis (NEIRA, 2011, p.
289).
Durante os anos de exceção, é politicamente compreensível que o
poder judiciário corrobore, em linhas gerais, com os atos do regime. Uma
das primeiras ações de praticamente todos os regimes autoritários é mitigar a
independência do judiciário. Nas ditaduras é comum esse poder se encontrar
acuado, sendo provido normalmente de juízes alinhados ao governo e os
magistrados “rebeldes” não raro sofrendo cassações, demissões e outros tipos
de perseguições. Isso é ainda mais sintomático na cúpula desse poder.

225
Não foi diferente nessa primeira fase chilena. Durante os anos de exceção,
a Corte Suprema esteve essencialmente aliada ao regime autoritário. E isso
continuou nos primeiros anos da redemocratização. Até 1998, a Corte manteve
incólume o DL da anistia, praticamente abdicando de sua função jurisdicional
de controle dos tribunais militares, rechaçando as demandas judiciais
questionadoras das sistemáticas violações dos direitos humanos. As sentenças
das instâncias inferiores que desafiavam tal entendimento eram normalmente
reformadas, salvo raríssimas exceções5 (NEIRA, 2011, p. 289-290).
A partir de 1998, com a mudança na composição da 2ª Sala Penal
da Corte Suprema, inicia a segunda fase. Em setembro daquele ano, a Corte
ordenou a reabertura do Caso referente ao sequestro de Pedro Poblete Córdoba,
arquivado pela justiça militar em razão do DL da anistia. A Corte estabeleceu
que, para que uma causa seja submetida aos efeitos do DL da anistia, seria
necessário o pleno esclarecimento das circunstâncias do desaparecimento da
vítima e reveladas as identidades dos participantes do delito.
O ano de 1998 também foi decisivo em outros aspectos. Antes dessa
decisão da Corte, ainda em janeiro, foram aceitas 299 denúncias criminais
contra o Gal. Pinochet no âmbito do poder judiciário, questionando inclusive
sua condição de senador vitalício. E um mês depois, veio a detenção do General
em Londres com o pedido de extradição pelo Estado espanhol no já aludido
Pinochet Case (LIRA, 2007, p. 203-204).
No início do atual século, esses fatores, aliados ao fortalecimento do
direito internacional dos direitos humanos e da persecução penal internacional
(em especial, destaque-se a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o
Tribunal Penal Internacional), configuram um novo cenário que, na análise de
Fernández Neira, leva a um comportamento contraditório da Corte. Na decisão

5 Uma destas foram as ações penais movidas contra o General Manuel Contreras e o Brigadeiro
Pedro Espinoza, dirigentes da DINA, a polícia secreta do regime autoritário chileno. Em 1995, a
Suprema Corte julgou procedentes os pedidos de condenação, embora a situação política ainda
fosse tão tensa que a ordem judicial de encarceramento de Contreras demorou mais de cinco
meses para ser executada pelo simples fato de “camaradas em armas” guardavam-no em sua
fazenda particular e impediam o cumprimento da ordem. Pouco tempo depois, foram soltos em
virtude da aprovação de nova legislação impedindo a continuidade de processos judiciais contra
os membros do antigo regime, não obstante de outro lado aumentar o acesso à informação sobre
os crimes do período (cf. Acuña: 2006, pp. 227-228).

226
confirmatória das sentenças das instâncias inferiores sobre o desaparecimento
de Miguel Ángel Sandoval Rodríguez, em novembro de 2004, reitera que o DL
da anistia não alcança crimes de natureza permanente como o desaparecimento
forçado de pessoas, pela força da Convenção Americana de Direitos Humanos
e das Convenções de Genebra de 1948. Na decisão sobre o desaparecimento
de Ricardo Rioseco Montoya e Luis Cotal Álvarez, ao contrário, afasta a
aplicação dessas e de outras normas internacionais, anulando as condenações
efetuadas nas instâncias inferiores ao considerar prescrita a ação penal. E em
maio de 2006, ao julgar recurso do Caso do desaparecimento de Diana Frida
Arón Svigilsky, a Corte Suprema reformou a sentença da Corte de Apelações
de Santiago que havia aplicado o DL da anistia, por entender haver incerteza
sobre se a vítima teria morrido ou recuperado sua liberdade e, em virtude
disso, não poderia ser aplicado o instituto da prescrição (NEIRA, 2011, p. 293-
294; ROTH-ARRIADA: 2011, p. 145).
Em momento seguinte, a partir de dezembro de 2006, e considerando
a condenação do Estado chileno na Sentença da Corte IDH no Caso
Almonacid Arellano, proferida três meses antes, a Corte Suprema do Chile
declara a imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade, utilizando
aquela referência jurisprudencial para considerar imprescritíveis as execuções
sumárias de dois jovens integrantes do MIR (Movimiento de Izquierda
Revolucionaria), ocorridas em dezembro de 1973. Em 2007, a Corte reafirma
esse entendimento em outras decisões (NEIRA, 2011, p. 295-296).
É inegável que a condenação internacional na Corte IDH foi
responsável direta por essa postura da Corte Suprema. Também abriu novas
possibilidades políticas. O Governo da Presidente Michele Bachelet estabeleceu
nova agenda política sobre a questão, inclusive na relação com as Forças
Armadas, já mais depuradas dos herdeiros do pinochetismo. Ainda antes dela,
o Presidente Ricardo Lagos já havia criado a Comissão Nacional sobre Prisão,
Política e Tortura, que agiu de forma intensificada na apuração dos 3.197
desaparecimentos de cidadãos chilenos e outros envolvidos em atividades
“subversivas”, bem como dos 33.221 sobreviventes de torturas perpetradas por
agentes do regime (SALMÓN G.: 2006, p. 21-22; SUTIL, 2007, p. 37; NEIRA,
2011, p. 287).

227
Na esteira das decisões daquelas Cortes e com fundamento nelas,
foram abertos e/ou reabertos 120 processos contra ex-integrantes do governo
autoritário, inclusive contra o próprio Augusto Pinochet que, todavia, não
chegou a ser julgado em razão de seu falecimento naquele mesmo ano de 2006.
Várias condenações ocorreram, sendo a mais célebre delas a do Gal. Manuel
Contreras, ex-Diretor da DINA, a polícia política do Governo Pinochet.
Contreras foi considerado culpado dos crimes de sequestro, rapto, tortura e
homicídio de vários presos políticos pela Corte de Apelações de Santiago em
30 de junho de 2008, no denominado Caso Carlos Prats6. Em 2010, a Suprema
Corte do Chile confirmou as condenações, embora tenha reduzido as penas
de Contreras e da maioria dos demais réus (http://www1.folha.uol.com.br/
mundo/764027-chefes-da-repressao-na-ditadura-de-pinochet-tem-pena-
reduzida-no-chile.shtml, acesso em 05/12/2010).7
Fernández Neira ainda destaca uma fase mais recente, em que a Corte
Suprema se afasta da estrita observância da jurisprudência da Corte IDH sobre
a imprescritibilidade dos delitos contra a humanidade para admitir o instituto
de política criminal denominado “prescrição gradual”. Esse período tem início
no segundo semestre de 2007 quando a CS, no Caso do sequestro de Juan
Luís Rivera Matus (S.C.S. de 30/07/2007, Rol: 3808-06), embora saliente a
imprescritibilidade no direito internacional, declara na sentença que os ilícitos
estariam gradualmente prescritos, segundo o disposto no art. 103 do Código
Penal chileno.
No âmbito do direito penal daquele país, para que o poder judiciário
declare a prescrição gradual, é necessária a ocorrência de alguns fatores: a
inexistência de agravantes em relação ao tipo penal em questão, a existência de
duas ou mais atenuantes, bem como a presença do réu à disposição do juízo após
a intercorrência de mais da metade do prazo previsto para a prescrição do delito.
A aceitação da aplicabilidade da prescrição gradual nesses casos,
afastando-se da perspectiva da Corte IDH, é vista pela CS como uma espécie
6 General que apoiara Allende e não aceitou o golpe militar, tendo, em razão disso, sido
assassinado em um atentado a bomba promovido pelos agentes da DINA em Buenos Aires,
onde Prats se encontrava exilado em 1974.
7 Desde o ano de 2005, quando proferida a primeira sentença definitiva desses casos, foram
proferidas precisamente 100 decisões, sendo 89 condenações e 11 absolvições até dezembro de
2010 (NEIRA: 2011, p. 286).

228
de reconciliação entre as partes, que estaria contemplada pelos tratados
internacionais de direitos humanos. Estes autorizariam uma sanção mais
benigna e equilibrada após tantos anos sem uma decisão final, sendo, portanto,
aplicável o art. 103 do CP chileno também nesses casos.
Não obstante isso traduzir uma tentativa da CS chilena de ser mais
equânime, tal empreitada parece contradizer a interpretação predominante
sobre a imprescritibilidade desses crimes – inclusive, como visto, da Corte IDH
-, pois o direito internacional dos direitos humanos destaca a figura da vítima
como centro de reflexão jurídica em torno das graves violações de direitos
humanos e preconiza a realização de justiça material, evitando a impunidade
completa (NEIRA, 2011, p. 299-303).
Apesar disso, vê-se que, mesmo em um contexto diverso, o Chile
também parece buscar uma efetiva superação de seu passado autoritário.
Todos os direitos, verdade, justiça, reparação e punição das violações, bem
como as reformas institucionais, também ocorrem na justiça transicional
chilena, apesar de todos os percalços e das críticas vistas quanto à excessiva
parcimônia nas condenações a partir da utilização de institutos penais como a
referida prescrição gradual (cf. LIRA, 2007, passim; NEIRA, 2011, p. 95 e ss.).

Conclusão: aproximações transconstitucionais e interculturais e a


justiça transicional brasileira

Embora não seja o objeto do presente trabalho, é importante


ressaltar que o Brasil passa atualmente (2012) por um processo de justiça de
transição, ainda que tardio. Nosso país é um dos últimos – senão o último – a
enfrentar esta questão dentre aqueles que passaram por regimes autoritários
na América Latina.8 Há várias possibilidades de explicação para isso, desde
aqueles que acreditam que, pelo fato de o Brasil ditatorial ter tido estatísticas
de mortes e desaparecimentos significativamente inferiores aos seus vizinhos
– a ponto de um editorial da Folha de São Paulo ter classificado de modo
infeliz a ditadura brasileira como “ditabranda” (edição de 17/02/2009) -, a
questão das mortes e desaparecimentos do período não seriam de grande

8 Sem considerar, por óbvio, aqueles que ainda o vivem, como o caso de Cuba.

229
relevância até os que creem na cultura do “jeitinho” brasileiro de ser “cordial”
e estabelecer uma espécie de “esquecimento” dos delitos dos “dois lados”,
perdoando a todos.
A experiência histórica, contudo, aponta outros caminhos. Os
processos de justiça transicional aqui analisados parecem se direcionar a
tentativas de se atingir todos os objetivos preconizados por Bickford aos quais
aludi no primeiro item deste ensaio. Há outras em sentido semelhante, como
as experiências alemãs pós-nazismo e pós-comunismo (neste último caso, na
ex-Alemanha Oriental). Ainda há aquelas que possibilitam anistia dos crimes,
mas não em caráter irrestrito e sem compromisso algum dos anistiados, como
no caso da África do Sul pós-apartheid, em que anistiar alguém, que em nome
do regime racista, cometeu delitos de lesa humanidade, implicou em um
compromisso do potencial anistiado em esclarecer completamente o episódio
e sua participação no mesmo, bem como a solicitação pessoal do agente e a
prova da motivação política e da proporcionalidade de suas ações (GALINDO,
2011, p. 230).
Argentinos e chilenos têm tido maior empenho em atender os objetivos
da justiça de transição, o que, só muito tardiamente, tem sido feito no Brasil
e de forma ainda fragmentada. Todavia, a alvissareira condenação do Estado
brasileiro na Corte IDH no Caso Gomes Lund/“Guerrilha do Araguaia”, assim
como ocorreu no Chile (Caso Almonacid Arellano), deu novo impulso às
possibilidades desse processo em nosso país.
Em relação à verdade histórica e judicial, passos decisivos foram
dados após a Sentença internacional com a promulgação das Leis 12527/2011
e 12528/2011. A primeira regulamenta o acesso às informações e merecem
destaque o art. 21, parágrafo único1 e art. 24, § 1º2 , que acabam com a

1 Art. 21. (...). Parágrafo único. As informações ou documentos que versem sobre condutas
que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de
autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso.
2 Art. 24. A informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em
razão de sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada
como ultrassecreta, secreta ou reservada.
§ 1o Os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a classificação prevista
no caput, vigoram a partir da data de sua produção e são os seguintes:
I - ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos;(...).

230
restrição a informações sobre violações de direitos humanos e colocam
limites temporais ao sigilo documental, mesmo no caso de informações
ultrassecretas, impossibilitando o “sigilo eterno”, permitido, na prática, pela
revogada Lei 11111/2005. A segunda cria a Comissão Nacional da Verdade
no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, com a finalidade de
cumprir a determinação da Corte IDH no que diz respeito a esclarecer as
graves violações de direitos humanos ocorridas no longo período de exceção
brasileiro. Comissões da Verdade e da Memória também foram criadas em
vários Estados. O trabalho dessas Comissões está sendo especialmente
relevante na localização dos desaparecidos políticos e/ou dos seus corpos (o
que é mais provável de ocorrer).
Reparações pecuniárias, reabilitações e espaços de memória já têm
sido levados adiante pelo Estado brasileiro mesmo antes da decisão da Corte
IDH. As reformas institucionais têm sido realizadas gradativamente, embora
devido ao profundo atraso na construção do processo de justiça transicional
no Brasil, a pedagogia pós-autoritária da democracia e dos direitos humanos
por vezes ainda tem dificuldades de se estabelecer nas instituições que detêm a
prerrogativa de exercerem a violência real em nome do Estado, a exemplo das
Forças Armadas e de Segurança Pública (LÓPEZ, 2007, p. 171).
O maior entrave da justiça transicional brasileira ainda é no âmbito
da justiça material. Como vimos, enquanto Argentina e Chile de certo modo
buscaram institucionalmente realizá-la em maior ou menor grau, no Brasil,
não obstante relatos famosos como o “Brasil: Nunca Mais”3 fornecerem
enorme quantidade de elementos concretos a merecerem apuração, a Lei
6683/1979 (conhecida como Lei da Anistia) sempre foi entendida pelos poderes
públicos - e em 2010 tal entendimento foi corroborado pelo Supremo Tribunal
Federal brasileiro - como uma lei que anistiaria os “dois lados”, ou seja, tanto
3 O famoso Relatório “Brasil: Nunca Mais” foi elaborado por especialistas de várias áreas,
coordenados pelo então Arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns. Construído entre agosto
de 1979 e março de 1985, justamente os últimos anos da ditadura brasileira, investigou 707
processos completos e dezenas de outros incompletos que tramitaram perante a Justiça Militar
entre abril de 1964 e março de 1979, com destaque para os que chegaram à alçada do Superior
Tribunal Militar. Considerando que a base da pesquisa são os documentos produzidos pelas
próprias autoridades militares do período, o Relatório possui substancial credibilidade sobre a
descrição dos horrores perpetrados nos porões do regime de exceção brasileiro (BRASIL: Nunca
Mais: 2009, p. 20-24; BAUER: 2012, p. 11ss.).

231
os crimes políticos dos guerrilheiros e perpetradores da luta armada contra
o regime de exceção, como os delitos dos agentes estatais que os cometeram
em nome desse mesmo regime. O STF entendeu que investigação e punição
dos perpetradores de crimes de lesa humanidade não poderiam ocorrer em
virtude da constitucionalidade dessa interpretação da Lei da Anistia.
Em termos materiais, tal interpretação se choca frontalmente com
a Sentença proferida pela Corte IDH no mesmo ano. O âmbito normativo
é diverso, pois a Corte IDH analisa as normas impugnadas não em relação
à Constituição do país, mas à luz da Convenção Americana de Direitos
Humanos, e em relação a esta a Corte de San José foi contundente e explícita:

As disposições da Lei de Anistia brasileira que


impedem a investigação e sanção de graves violações de
direitos humanos são incompatíveis com a Convenção
Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem
seguir representando um obstáculo para a investigação
dos fatos do presente caso, nem para a identificação e
punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual
ou semelhante impacto a respeito de outros casos de
graves violações de direitos humanos consagrados na
Convenção Americana ocorridos no Brasil.
(sentença disponível em www.corteidh.or.cr, acesso em
16/12/2010 – grifos do original, p. 114).

Ou seja, em termos substanciais, há um inevitável embate entre o


STF e a Corte IDH na questão. O STF, que recentemente tem reconhecido a
prevalência dos tratados de direitos humanos sobre a própria CF (considerando
o § 3º do art. 5º desta) ou, no mínimo, como normas supralegais (vide o caso
da prisão do depositário infiel cuja proibição tornou-se até súmula vinculante4
em respeito ao art. 7, 2, da Convenção), assumiu um ônus de enfrentamento
com o direito internacional humanitário que ocasiona opções um tanto
“indigestas” para o Tribunal: pode se resignar e acatar a decisão da Corte IDH,
o que poderia ser uma “saída honrosa”, ou retroceder três décadas e voltar ao

4 SV 25: É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do
depósito.

232
“nacionalismo jurisprudencial” do STF dos anos 70 do século XX, quando,
a partir do julgamento do RExt 80004 em 1977, estabeleceu a interpretação
de que tratados de qualquer espécie eram equivalentes hierarquicamente à
lei ordinária no Brasil, inferiores até mesmo à lei complementar (GALINDO,
2006, p. 279; RAMOS, 2011, passim).
Por outro lado, é possível que, a partir de ponderações teóricas mais
recentes, como as propostas de “direito dialógico”, “diálogo das Cortes” e
“transconstitucionalismo”, bem como da “teoria intercultural da constituição”,
todas apontando para a superação de um sistema dialético de hierarquias fixas
ou pirâmides normativas inflexíveis, que o STF encontre bases doutrinárias
para a referida “saída honrosa”, mais do que necessária nesse contexto (cf.
GOMES & MAZZUOLI, 2011, p. 59-60; RAMOS, 2011, p. 216-219; NEVES,
2009, passim; GALINDO, 2006, passim). É possível, em tese, que o STF
reafirme a constitucionalidade da Lei da Anistia nos termos do Acórdão
exarado na ADPF 153, admitindo, entretanto, com fundamento na decisão
da Corte IDH que a última palavra em termos de interpretação do Pacto
de San José é daquela Corte internacional, assim como a última palavra na
interpretação da Constituição é do STF. Uma solução transconstitucional,
admitindo a intersistemicidade do direito constitucional brasileiro com o
Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Efetivamente um passado autoritário não é superado com
“esquecimentos” de que existiram criminosos de lesa humanidade e suas
vítimas. Superar o autoritarismo implica em exorcizar os seus fantasmas,
prevenindo exemplarmente situações semelhantes no futuro. Concordo
com Rodolfo Matarollo quando afirma que as situações de impunidade de
crimes atrozes abrem caminho ao conflito permanente e à instabilidade
que conspiram contra a paz social e a reconciliação nacional, bem como
com o filósofo Theodor Adorno quando destaca a atitude de “esquecer e
perdoar tudo”, que só poderia ser adotada pelas vítimas das atrocidades,
em verdade foi, em praticamente todos os casos, perpetrada pelos próprios
praticantes, como procurei demonstrar no texto em relação às anistias na
Argentina e no Chile (MATAROLLO, 2007, p. 44). Neste ponto, não foi
diferente no Brasil.

233
No âmbito da justiça material, o Ministério Público Federal já se
movimentou propondo ações penais públicas e recursos criminais, como no
processo julgado improcedente em primeira instância, mas ainda sem trânsito
em julgado, contra o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e o Delegado
Dirceu Gravina pelos crimes de sequestro qualificado e tortura, esta no âmbito
do DOI-CODI, em relação ao bancário e líder sindical Aluízio Palhano
Pedreira Ferreira, militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) à
época, organização liderada por Carlos Lamarca e na qual militou também
a atual Presidente da República Dilma Roussef. Também ingressou o mesmo
órgão em março de 2012 com denúncia contra o Coronel da Reserva Sebastião
Curió, acusado de sequestro qualificado de militantes políticos durante
a Guerrilha do Araguaia (cf. http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2012/05/29/mpf-recorre-de-sentenca-que-rejeitou-denuncia-contra-
o-coronel-brilhante-ustra-por-sequestro.htm, e http://oglobo.globo.com/pais/
gurgel-acao-contra-sebastiao-curio-pode-chegar-ao-stf-4309656, acessos em
23/06/2012).

Ainda é cedo para quaisquer conclusões, mas parece que a superação
finalmente pode chegar em terra brasilis, apesar das décadas de atraso e
parcimônia.

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(Argentina).
www.stf.jus.br: página oficial do Supremo Tribunal Federal (Brasil).
www.un.org: página oficial da Organização das Nações Unidas (ONU).

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O JUDICIÁRIO E O DISCURSO
DOS DIREITOS HUMANOS

INFORMAÇÕES GRÁFICAS

FORMATO: 15,5 X 22cm


TIPOLOGIA: Minon Pro
PAPEL: MIOLO: Off -set-75g
CAPA: TP-250g/m2

Montado e impresso na oficina gráfica da

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