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Um rito de pajelança no Alto Xingu

O grande espírito se manifesta

Por Maria Luiza Silveira


Um grito ecoou pela aldeia naquela noite. Estávamos entre os índios Mehinaku, no Alto
Xingu, norte do Mato Grosso, para assistir e documentar o Yamarikumã - um verdadeiro
ritual de rebelião feminina. Durante três dias elas tomam os enfeites dos homens (cocares,
flechas, braçadeiras), dançam, lutam e mostram que são fortes como eles.

Naquela manhã, bem cedo, as mulheres formavam grupos animados atrás de uma das ocas
e se enfeitavam para dançar no centro da aldeia. Todos estavam no pátio. O cacique
Yumuim e o pajé Monain usavam cocares de pele de onça e colares das garras do bicho -
símbolos máximo do poder.

Seguida por duas fileiras de índias, em passos ritmados, Kaeti, a líder das Mehinaku, entrou
no pátio chamando por ela, Kamatapirari. Conta o rito que Kamatapirari, esposa de grande
chefe, se rebelou depois de descobrir que os homens não queriam mais voltar de uma
pescaria e não se importavam que elas passassem fome e morressem. Não sem razão,
Kamatapirari ficou em fúria. Reuniu as mulheres e as crianças, se entorpeceram com um
óleo à base de casca de pau passado no corpo, e ficaram três dias cantando e dançando, sem
comer nem dormir. Abandonaram a tribo e os homens. Quando eles finalmente voltaram
com os peixes, já era tarde.

Espírito de Yamarikumã deixou as mulheres fortes: elas construíram uma grande aldeia,
aprenderam a usar flechas, bordunas, pescar e caçar. Sabiam agora fazer o trabalho dos
homens e podiam dispensá-los.

O mundo só voltou a ser ordenado como antes porque o marido de Atanunmakalu, irmã
mais nova de Kamatapirari, recém-casado, morria de saudades e se arriscou a trazê-la de
volta, fugindo da fúria de Yamarikumã. O grande espírito matou todos os homens quando
descobriu a fuga. "Mas é assim que começou a nascer mulher de novo", explica o cacique
Yumuin.

"Yamarikumã é um grande espírito que também pode fazer mal a homens, mulheres e
crianças", me dizia o pajé no dia seguinte. Talvez jamais soubéssemos disso, não fosse
aquele grito atravessando a noite fria e a nossa conversa ao redor do fogo na oca do cacique
Yumuin. Yamarikumã mostrou a sua indignação com a indelicadeza cometida pelo casal
dono da festa, que não ofereceu peixe às mulheres que dançavam para ele.

Os gritos de dor da jovem Aoiatoalo, deitada em sua rede, chamaram a atenção de todos na
aldeia. Chegamos no local ainda a tempo de ver a mãe da menina pegar um colar de
caramujo - a moeda mais cara entre os povos do Xingu - e mandar chamar Monain. É o
pagamento pelo trabalho do pajé.

Alto e esguio, Monain é um homem reservado e de poucas palavras. O som grave e


penetrante de sua voz e o olhar profundo parecem entrever nossos mistérios. Há nele uma
força que quase assusta. Foi o que pensei quando fomos apresentados na manhã da minha
chegada à aldeia.

Um transe impressionante

O pajé Monain aproxima-se com passos lentos e firmes e fica algum tempo em uma
conversa silenciosa com Aoiatoalo. Um pequeno aglomerado de pessoas se forma à sua
volta. Calmamente, acende longos cigarros verdes, feitos de uma folha, fuma, desmaia, tem
visões. Volta animal. Seu corpo e voz ganham postura e sons de um bicho. É
impressionante.

E é assim que ele entra em disparada na mata, como se não se incomodasse com o breu da
noite, para encontrar outros espíritos. Fiquei imaginando a reação (provavelmente
respeitosa e natural) de onças, macacos e outros animais que moram naquela floresta
quando se deparam com ele. Talvez, imaginei mais além, até estejam todos em reunião com
seus espíritos ancestrais. Monain demora. Retorna mais de meia hora depois com a
confirmação: é Yamarikumã que está fazendo mal para a menina. Em novo e demorado
transe, "limpa" o corpo da doente. Tínhamos acabado de presenciar a manifestação do
grande espírito.

No dia seguinte à pajelança, as índias cantam e dançam em frente à casa de Aoiatoalo, que
amanheceu bem melhor. O pai da jovem se aproxima com beijú, peixe e mingau, em
agradecimento. É preciso alimentar as mulheres. Devagar, elas entram na oca e se
aproximam do quartinho onde Aioatoalo está reclusa, desde que ficou menstruada. Dançam,
cantam e levam comida para a menina. Simbolicamente, estão entregando a ela a
responsabilidade do próximo Yamarikumã.

Num canto, silencioso, sorriso enigmático, pajé Monain assiste a tudo.

*Maria Luiza Silveira é jornalista e atualmente está concluindo sua


tese de mestrado na USP sobre as Mulheres Índias.

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