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DANIEL JATOBÁ

TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:

INSPIRAÇÕES SOCIOLÓGICAS E CONTRIBUIÇÕES

DA ABORDAGEM TEÓRICA DO CONSTRUTIVISMO

Dissertação Final apresentada como requisito


parcial à obtenção do grau de Mestre em
Relações Internacionais, Curso de Pós-
Graduação em Relações Internacionais, do
Instituto de Relações Internacionais/IREL, da
Universidade de Brasília/UnB.

Orientador: Prof. PhD Lytton Leite Guimarães

BRASÍLIA

2003

1
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 03
2 CAPÍTULO I – TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
ALGUMAS NOÇÕES FUNDAMENTAIS 06
3 CAPÍTULO II – DEBATES TEÓRICOS: DO SURGIMENTO DO
CAMPO AO DEBATE ATUAL 22
3.1 O PRIMEIRO GRANDE DEBATE: OS ASSIM CHAMADOS
IDEALISTAS E AS CRÍTICAS DOS REALISTAS 32
3.2 O SEGUNDO GRANDE DEBATE: A ABORDAGEM TRADICIONAL
E A REVOLUÇÃO BEHAVIORALISTA 51
3.3 O DEBATE INTERPARADIGMÁTICO: REALISMO, PLURALISMO
E GLOBALISMO 70
3.4 UM DEBATE ATUAL: A SÍNTESE RACIONALISTA E A
REORIENTAÇÃO CONSTRUTIVISTA 89
4 CAPÍTULO III – ALGUMAS INSPIRAÇÕES SOCIOLÓGICAS DO
CONSTRUTIVISMO: ÈMILE DURKHEIM E MAX WEBER 105
4.1 ÈMILE DURKHEIM 111
4.2 MAX WEBER 120
5 CAPÍTULO IV – CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS DA ABORDAGEM
CONSTRUTIVISTA 128
6 CONCLUSÃO 148
REFERÊNCIAS 152

2
1 INTRODUÇÃO

Somos privilegiadas testemunhas de um mundo em transformação. As


novas perspectivas das relações internacionais – sobretudo após o fim da Guerra
Fria – encontram-se em um período de intensas e profundas transformações. O
fim da Guerra Fria representou um daqueles momentos nos quais os fatos
parecem revoltar-se contra as formulações teóricas. Nenhuma das teorias
desenvolvidas no campo de estudos das Relações Internacionais (RI) foi capaz de
prever o modo como o equilíbrio concertado das duas superpotências que
predominou por mais de quatro décadas atingiu seu cabo1. De forma semelhante,
a integração européia atingiu, na década de 1990, um estágio de cooperação entre
Estados nunca antes testemunhado na experiência humana, estágio este muito
avançado para os modelos prevalecentes na Teoria das Relações Internacionais
(TRI).

O período presente configura-se como sendo tão complexo quanto


excitante para aqueles que atuam na construção de conhecimento teórico sobre o
mundo social, bem como de uma forma mais geral para todos os estudiosos dos
fenômenos internacionais. O campo teórico das RI sofre de uma crise desde o
surgimento desta disciplina, comumente localizado temporalmente no período
entre guerras. O fato de esta situação haver subsistido por todo o século XX
levou alguns autores em 1998 a publicar uma coletânea de ensaios denominada
The Eighty Years’ Crisis2, fazendo uma referência ao livro de Edward H. CARR,
The Twenty Years’ Crisis, este último escrito ao término do período de vinte anos
existente entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial – em 1939 – e
considerado por alguns autores como a primeira reflexão teórica no estudo das
1
O fim pacífico surpreendeu os principais modelos teóricos, incapazes de prever tal desenrolar
da história. De fato, no início da década de 1980 – poucos anos antes do término do confronto
bipolar – um dos mais prestigiados defensores do neo-realismo, vertente teórica amplamente
dominante na área das RI, Robert GILPIN, expunha a visão corrente daquela teoria de que
“Although (…) peaceful adjustment of the systemic disequilibrium is possible, the principal
mechanism of change throughout history has been war, or what we shall call hegemonic war
(i.e., a war that determines which state or states will be dominant and will govern the system)”
(GILPIN, 1981, p.15).
2
DUNNE, COX & BOOTH (1998).
3
RI. A caracterização do período de existência do campo de estudos das RI como
um período de crise reflete a insatisfação acadêmica com as teorias
prevalecentes. Como conseqüência desta insatisfação acadêmica, os últimos anos
vêm revelando um esforço crescente no sentido de se obter um maior
refinamento teórico, conceitual e analítico na disciplina.

Este trabalho tem por objetivo geral dispensar atenção a uma


abordagem teórica – a do Construtivismo Social – que se insere no que
consideramos ser um dos debates teóricos mais importantes existentes nos
tempos atuais na disciplina das RI, qual seja, o que envolve de um lado os
partidários daquela abordagem e de outro os racionalistas, representados pela
síntese racionalista à qual convergem os neo-realistas e institucionalistas
neoliberais. Este debate refere-se a uma grande quantidade de temas discutidos,
mas podemos destacar os principais como sendo a concepção das ciências sociais
e seu modelo ideal e a natureza mesma da realidade internacional bem como o
melhor modo de explicá-la. Conforme sentenciou SMITH (1996, p. 12): “The
stakes are high in such a debate”.

Os objetivos específicos da pesquisa confundem-se com as próprias


partes constituintes do trabalho final. No primeiro capítulo, procuramos
apresentar ao leitor algumas noções fundamentais e uns poucos conceitos que nos
acompanharão pelo restante do trabalho. No capítulo seguinte, procuramos
construir uma imagem do desenvolvimento histórico da TRI, procurando traçar
um quadro das teorias e das distinções existentes entre elas, para então situar o
referido debate entre Racionalismo e Construtivismo na história intelectual da
disciplina. O núcleo essencial do trabalho – e suas maiores contribuições –
encontram-se no terceiro e no quarto capítulos. Naquele procuraremos identificar
na Sociologia algumas das principais inspirações do construtivismo, tratando da
obra e do pensamento de dois autores dos quais esta abordagem retirou muitos de
seus insumos teóricos: Émile DURKHEIM e Max WEBER. No quarto e último
capítulo buscaremos destacar como estas inspirações são incorporadas ao
Construtivismo, definindo-o, bem como realçaremos as contribuições teóricas de
sua agenda de pesquisa, e, ao final, suas possíveis limitações.
4
O trabalho justifica-se pela necessidade notada de melhor compreensão
de alguns dos debates teóricos que ocorreram nas RI, bem como de um dos
debates contemporâneos. O pesquisador, auxiliado por seu orientador, pretende
colaborar com o esforço desenvolvido neste Programa de Mestrado em Relações
Internacionais, sobretudo na linha de pesquisa Teoria das Relações
Internacionais. Esta Dissertação Final, requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre neste Programa, insere-se em um esforço crescente pelo
desenvolvimento do campo de estudos das RI realizado no Departamento de
Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

Para lograr êxito neste esforço, o trabalho foi realizado


fundamentalmente através de revisão bibliográfica, em primeiro lugar de artigos
publicados em periódicos especializados das RI, sobretudo de língua inglesa
(International Organization, World Politics e International Relations foram os
principais periódicos consultados). Além destes, foram também utilizadas as
obras inspiradoras consumadas pelos autores tomados da Sociologia. Nesta parte
foram utilizados ainda artigos e obras de outros escolares que comentam os
citados autores influentes. Destaque especial cabe à atuação do Orientador, Prof.
PhD Lytton L. GUIMARÃES – com ampla experiência docente e interesse
acadêmico pela área da Teoria das Relações Internacionais, que indicou os
caminhos intelectuais pelos quais deveria seguir o mestrando para alcançar o
maior aproveitamento e produzir a melhor contribuição possível.

5
1 CAPÍTULO I – TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
UM PONTO DE PARTIDA

“A política é um ‘fazer’ humano que, mais do que


qualquer outro, diz respeito a todos nós. Esta não é
uma definição da política. É um exórdio, para dizer
que o que me interessa é chegar à práxis – ao
‘fazer’. Contudo, o fazer humano é precedido de um
discurso (sobre o que fazer). O discorrer do homo
loquax precede a ação do homem que age. Por isso a
ação e os comportamentos humanos são precedidos
e envolvidos por manifestações orais sobre a polis –
a cidade. Para começar do princípio, este é o ponto
de partida: o dizer sobre a política. E o primeiro
problema que enfrentamos é o de que o discurso
político se origina em pelo menos três fontes
distintas:
1) a filosofia política;
2) a ciência ou conhecimento empírico da política;
3) e o discurso comum sobre a política.”
(Giovanni SARTORI, 1997, p. 11)

Este primeiro capítulo tem por objetivo apresentar ao leitor algumas


noções fundamentais e uns poucos conceitos que nos acompanharão daqui a
diante. Será indispensável carregá-los consigo pelo restante da dissertação. Sua
necessidade é patente, ainda mais porque se trata de um trabalho que aborda
problemas de natureza teórica. Busca-se, através deste procedimento, evitar o
risco de discorrer em linguagem excessivamente hermética, como é característico
de muitos trabalhos desta natureza. A linguagem abstrata, quando inevitável,
procuraremos mantê-la no nível mínimo possível, e sempre tentando escapar à
obscuridade. Esta apresentação de noções e conceitos, portanto, reveste-se de
caráter propedêutico, tornando a compreensão do texto mais fácil e evitando sua
obscuridade.

A primeira noção que precisa ficar clara é relativa à diferença entre


relações internacionais, enquanto objeto de estudos, e Relações Internacionais
(RI), campo de estudos acadêmicos. Quando utilizamos a expressão relações
internacionais, estamos nos referindo ao conjunto de fenômenos os quais
buscamos compreender através da atividade intelectual coletiva, a que

6
denominamos, em sentido amplo, científica. Lytton GUIMARÃES, da
Universidade de Brasília (UnB), em seu texto Relações Internacionais como
campo de estudos – Discurso, Raízes e Desenvolvimento, Estado da Arte,
delimita o primeiro conceito como sendo referente “à gama de contatos e
interações de natureza diplomática, política, econômica, social, cultural, ética,
humanitária, que se processam entre atores internacionais, estatais e não-
estatais”3. Refere-se o termo, pois, ao próprio objeto de estudos. Já a expressão
Relações Internacionais, com as iniciais maiúsculas (ou, simplesmente, RI),
“refere-se ao campo de estudos acadêmicos que enfoca as diversas formas de
interações anteriormente descritas, assim como outras questões e fenômenos
considerados relevantes para se compreender e explicar a complexidade do
cenário internacional”4. Os partícipes deste campo de estudos acadêmicos
constituem sua comunidade científica especializada, que elabora discursos
científicos sobre o objeto de estudos.

Relacionando os dois conceitos definidos, podemos dizer que: aqueles que


fazem parte da comunidade acadêmica das Relações Internacionais elaboram
discursos sobre as relações internacionais. GUIMARÃES, ao abordar os
instrumentos lingüísticos em RI, parte das noções do cientista político italiano
Giovanni SARTORI, que em sua obra A Política afirma, como está escrito na
epígrafe deste capítulo, que “a política é um fazer humano”. No entanto, continua
SARTORI, todo fazer humano é precedido de um discurso sobre o que fazer. Com
isso, ele quer destacar que o discurso precede a ação. Em suas palavras, “o
discorrer do homo loquax precede a ação do homem que age”. Ocorre, alega o
autor, que o discurso político origina-se de três fontes distintas: a filosofia
política, a ciência ou conhecimento empírico da política e o discurso comum

3
“Pelo menos duas dimensões podem ser atribuídas à expressão relações internacionais [grifo
do autor]. Em sentido amplo, e mais comumente utilizada, ela se refere à gama de contatos e
interações de natureza diplomática, política, econômica, social, cultural, ética, humanitária, que
se processam entre atores internacionais, estatais e não-estatais” (GUIMARÃES, 2001, p. 9).
4
“Outro sentido atribuído à expressão Relações Internacionais-RI [grifo do autor], aqui usada
sempre com iniciais maiúsculas, refere-se ao campo de estudos acadêmicos que enfoca as
diversas formas de interações anteriormente descritas, assim como outras questões e fenômenos
considerados relevantes para se compreender e explicar a complexidade do cenário
internacional.” (GUIMARÃES, 2001, p. 10)
7
sobre a política. Segundo GUIMARÃES, podemos utilizar imagem semelhante para
tratar dos discursos sobre as relações internacionais. Nesta imagem, os discursos
sobre as relações internacionais também possuem três fontes, a saber: a filosofia
das relações internacionais, o conhecimento sobre as relações internacionais com
alguma validade científica e o discurso comum sobre as relações internacionais.

Podemos discorrer um pouco mais sobre os diferentes discursos sobre as


relações internacionais. Diferenciando-os, GUIMARÃES afirma que o discurso
comum sobre as relações internacionais vale-se da linguagem comum, aquela
utilizada por todos aqueles que compartilham um determinado idioma. SARTORI
denomina-a linguagem materna, porquanto aprendida na infância; comenta ainda
que LOCKE chamou-a de linguagem civil. Enfim, trata-se aqui do discurso
utilizado na conversação ordinária, por todos aqueles que possuem algum
interesse pelas questões da realidade internacional. Por não haver, no uso desta
linguagem, uma preocupação de definir as palavras utilizadas, seu uso pode ser
impreciso5.

Partindo da linguagem comum, uma determinada comunidade acadêmica,


como a das Relações Internacionais, desenvolve uma linguagem especial. No
dizer de SARTORI, esta linguagem diferencia-se da comum, em primeiro lugar,
por ser elaborada mediante a reflexão crítica sobre o instrumento lingüístico
empregado. Além disso, cada campo de estudos tende a criar para si uma
linguagem especializada, adaptada aos seus próprios problemas heurísticos 6. Esta
é desenvolvida segundo algumas operações que presidem a sua criação: a
precisão e definição dos significados das palavras; a estipulação de regras

5
“A linguagem comum é a linguagem que está ao alcance de todos, a linguagem da
conversação ordinária. Locke chamou-a de ´linguagem civil´, mas talvez seja mais claro falar
em ´linguagem materna´, porque a aprendemos na infência. Uma vez completado este
aprendizado, o ser humano se comunica com a mesma naturalidade com que respira (se não o
ameaçam de asfixia). Segue-se que a linguagem comum não tem absolutamente consciência de
si própria; é usada de modo instintivo e irrefletido, o que causa grandes inconvenientes”
(SARTORI, 1997, P.14-15).
6
“‘Linguagens especiais’ são as linguagens ‘críticas’, ´especializadas´, desenvolvidas a partir da
linguagem ordinária mediante a correção dos seus defeitos. São críticas [grifo no original]
porque elaboradas mediante a reflexão sobre o instrumento lingüístico que empregam;
especializadas porque cada disciplina tende a criar para si uma linguagem ad hoc,
especialmente adaptada aos seus problemas heurísticos” (SARTORI, 1997, p. 20).
8
precisas de sintaxe lógica; e a criação de novas palavras, quando seja necessário
para representar as realidades que se pretende conhecer7. A filosofia das relações
internacionais e o conhecimento com alguma validade científica sobre as
relações internacionais valem-se de linguagens especiais.

GUIMARÃES destaca a necessidade de se adquirir domínio sobre a filosofia


das relações internacionais, discurso este no qual o conhecimento vai além do
empírico, sendo portanto metafísico, para entender sua linguagem especial 8.
Ademais, afirma ainda que, com relação ao conhecimento com alguma validade
científica sobre as relações internacionais, este é relativamente recente e
permanece pouco desenvolvido, quando comparado com o conhecimento
acumulado em outras áreas cognitivas das Ciências Sociais, das quais Relações
Internacionais é uma delas9.

Quanto a esta área cognitiva, Relações Internacionais, urge retomar a idéia


de que existe uma comunidade científica especializada, que verdadeiramente
forma o campo de estudos acadêmicos. Uma comunidade acadêmica constitui-se
como um conjunto de indivíduos que, ainda que em momentos históricos e locais
geográficos distintos, unem esforços que geralmente consomem considerável
parcela de suas vidas, com a finalidade de produzir discursos sobre a realidade
internacional, isto é, formulações lingüísticas sobre um conjunto de fenômenos

7
“Já conhecemos as características da linguagem ordinária, que não tem consciência de si
mesma, e na qual as palavras não têm um significado definido, o vocabulário é limitado e o
discurso não tem método. Será fácil identificar, ex adverso, por contraste, as operações que
presidem a criação das linguagens especiais: 1) a precisão e definição dos significados das
palavras; 2) a estipulação de regras precisas de sintaxe lógica; 3) a criação de novas palavras”
(SARTORI, 1997, p. 20).
8
“O conhecimento filosófico sobre as relações internacionais, como em outros campos
cognitivos, busca responder a perguntas do tipo ‘por quê?’ Por quê os conflitos, as guerras, a
luta pelo poder hegemônico? Em geral, o conhecimento filosófico, literalmente, vai além do
empírico, dos dados físicos; portanto, ele é metafísico (meta ta phisiká). A linguagem filosófica,
como linguagem especial, é fortemente conotativa, ou seja, as palavras utilizadas na linguagem
comum podem adquirir significado especial. Daí a necessidade de se adquirir domínio sobre a
filosofia das relações internacionais para entender sua linguagem especial.” (GUIMARÃES, 2001,
p. 8)
9
“O conhecimento sobre as relações internacionais com alguma validade científica é
relativamente recente e permanece pouco desenvolvido quando comparado com o conhecimento
acumulado, por mais tempo, em outras disciplinas das Ciências Sociais” (GUIMARÃES, 2001, p.
8).
9
que, na linguagem especial desenvolvida por estes acadêmicos, são definidos
como sendo as relações internacionais.

No momento em que GUIMARÃES define as Relações Internacionais como


sendo um campo de estudos acadêmicos, conforme exposto acima, ele está
realizando uma escolha, entre duas caracterizações possíveis: campo de estudos
ou disciplina acadêmica. As duas expressões, segundo ele, são utilizadas
normalmente como sinônimos, embora haja uma diferença conceitual. O conceito
deixado de lado – o de disciplina – pode ser entendido como sendo mais preciso
e mais restrito, referindo-se àquelas áreas do conhecimento que, a exemplo da
Sociologia, da Ciência Política, da Economia e de outras disciplinas das Ciências
Sociais, possuem um objeto de estudos mais claramente definido10. Ainda sobre
estes dois conceitos, argumenta Phillippe BRAILLARD que embora a existência de
um objeto de estudos específico seja importante para se delimitar uma disciplina,
às Relações Internacionais não pode ser reivindicado o status de uma disciplina
nova no seio das Ciências Sociais, já que não é apenas o objeto que caracteriza
propriamente cada disciplina, mas além disso a própria perspectiva adotada no
estudo desse objeto. E conclui BRAILLARD: se considerarmos o estudo
contemporâneo das RI, longe de ser feito por uma disciplina única, constitui-se
em um espaço no qual coabitam numerosas Ciências Sociais que abordam as
relações internacionais em perspectivas particulares11.

A abordagem realizada no campo de estudos das RI pode ser


caracterizada, portanto, como multidisciplinar. Argumenta GUIMARÃES que,
tanto por suas raízes como por sua característica multidisciplinar e híbrida,
sempre houve uma preocupação nas RI em estabelecer sua autonomia em relação
àquelas disciplinas que a constituem. Assim, era nítido o esforço no sentido de
demonstrar sua especificidade com relação: à Filosofia, esforçando-se para tornar
RI mais científica e menos especulativa; à História, e mais precisamente à
História Diplomática ou à das Relações Internacionais, tornando-a mais analítica
e explicativa, desvinculando-se de suas características narrativas e descritivas; ao

10
GUIMARÃES (2001, p. 43).
11
BRAILLARD (1990, p. 87-88).
10
Direito, tornando-se mais neutra do ponto de vista normativo, característica das
abordagens jurídicas; e à Ciência Política, com esforços em dois sentidos,
primeiro buscando combinar a análise política com a econômica e militar, ao
mesmo tempo em que privilegiava o sistema internacional como seu principal
objeto de análise, situando-se em um nível de análise distinto de sua disciplina
irmã12.

Apesar de todo este esforço direcionado à especificidade acadêmica,


sempre restam marcas de suas heranças disciplinares. Segundo GUIMARÃES,
como visto acima, as Relações Internacionais são um campo de estudos cuja
característica essencial é ser produto da multidisciplinaridade, incidindo heranças
ou influências de várias disciplinas com orientações distintas. Algumas, como a
Ciência Política, a Sociologia e a Economia, com orientação predominantemente
científica, visam à construção e ao desenvolvimento de teoria; outras, com
tradição predominantemente narrativa ou descritiva, como a História; além de
outras com características especulativas ou normativas, como a Filosofia, a Ética
e o Direito13.

Neste ponto, vale introduzirmos uma obra, denominada Relações


Internacionais – Teorias e Agendas, de Antônio Jorge R. da ROCHA, também da
Universidade de Brasília (UnB), que será de extrema utilidade para esta
dissertação. Esta obra possui o mérito de trazer para o debate acadêmico nacional
as discussões epistemológicas, metodológicas e teóricas atualmente em curso na
comunidade acadêmica das RI. ROCHA afirma que, a exemplo de outros campos
do conhecimento, as RI possuem um objeto que lhe é próprio, que não se
confunde com os objetos de estudos das outras áreas apontadas acima. Assim,
embora estes fenômenos que constituem seu objeto possam produzir
conseqüências sobre as vidas econômica, política, social ou existencial de uma
ou mais sociedades – e possam ser estudados por outros cientistas sociais, como
economistas, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos, entre outros – o

12
GUIMARÃES (2001, p. 43). Sobre o chamado “problema do nível de análise”, trataremos dele
mais detidamente no Capítulo II, seção 3.2, ao expormos o denominado Segundo Grande
Debate da Teoria das Relações Internacionais.
13
GUIMARÃES (2001, p. 9).
11
conjunto de agentes, instituições e processos sobre o qual se concentram os
analistas de RI é específico deste campo14.

A Teoria das Relações Internacionais (TRI), conforme nos lembra Stanley


HOFFMAN, é tão antiga quanto moderna15. Antiga, na medida em que diversos
pensadores, ao longo da história, dispensaram energias refletindo sobre questões
que hoje consideramos como sendo objeto das RI. No mesmo sentido,
BRAILLARD afirma que a reflexão sobre as relações internacionais tem uma
história longa, e que basta para isso atendermos aos trabalhos de numerosos
filósofos que buscaram conferir sentido às relações entre Estados (ou, diríamos
de forma talvez mais adequada, entre comunidades políticas), descobrindo-lhes a
essência e identificando as normas de ação a elas vinculadas16. Acrescenta
ROCHA que mesmo textos produzidos há quinhentos, mil ou dois mil anos podem
trazer lições úteis à compreensão da realidade internacional complexa como a
que marca o início do século XXI. Por isso, conclui, não se lê autores como
Tucídides, Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Vattel, Grotius ou Rousseau,
simplesmente por diletantismo ou vaidade intelectual, mas por haver na obra
destes argumentos úteis a tal esforço de compreensão17.

Entretanto, afirma GUIMARÃES, embora haja havido influência


indelével destes pensadores no estudo hodierno das RI, e estes pensadores
possam ser considerados verdadeiros precursores do campo de estudos,
porquanto refletissem principalmente preocupações de natureza histórica,
filosófica, jurídica e de pensamento político, o sentido deste campo, no século
XX, a partir de seus primeiros marcos institucionais, que sistematizaram o estudo
das relações internacionais, é distinto18.

O que nos interessa, portanto, é o estudo propriamente acadêmico


de RI denominado por HOFFMAN como moderno. Há, neste período, que se
iniciou com a criação das primeiras cadeiras voltadas para este estudo, a

14
ROCHA (2002, p. 28).
15
HOFFMAN (1990, p. 28).
16
BRAILLARD (1990, p. 16).
17
ROCHA (2002, p. 137).
18
GUIMARÃES (2001, p. 20).
12
preocupação de se realizar uma análise sistemática dos fenômenos internacionais.
Ocorre então um rompimento com a predominante abordagem das relações entre
os Estados com base na história destas (ou, melhor definindo, na história
diplomática) e nas normas que procuram regulá-las (ou direito internacional)19.
Buscou-se então, a partir da Primeira Guerra Mundial, alcançar, no campo dos
fenômenos internacionais, avanços científicos como os que haviam sido
alcançados com relação a fenômenos políticos, econômicos e sociais, entre
outros, pela Ciência Política, Economia e Sociologia, por exemplo, desde o final
do século XIX20.

O desenvolvimento das outras Ciências Sociais configurou-se como


principal incentivo para a criação dos primeiros marcos institucionais que
conformam o nascimento das RI como campo de estudos21. Com a finalidade de
tornar disponível aos tomadores de decisões conhecimento válido
cientificamente, foram criadas as bases institucionais do campo nos Estados
Unidos da América e no Reino Unido, nas primeiras décadas do século XX22.

O estudo acadêmico de RI teve início, do ponto de vista institucional,


com a criação das primeiras cadeiras (chairs) e departamentos no eixo anglo-
americano, imediatamente após a Primeira Guerra Mundial. Em 1919, sob o
impacto desta primeira guerra total23, Lord Davies, um rico industrial galês, doou
um fundo razoável para que fosse fundada, no Departamento de Política
Internacional da Universidade de Aberystwyth, em seu país natal, a cadeira

19
HOFFMAN (1990, p. 29).
20
ROCHA (2002, p. 25).
21
Nesse sentido, BRAILLARD (1990, p. 16).
22
GUIMARÃES (2001, p. 27).
23
Este conceito de “guerra total” está presente na obra do historiador Eric HOBSBAWN (1995, p.
29-40). No primeiro capítulo, “A Era da Guerra Total”, HOBSBAWN afirma que, antes de 1914,
“não houvera, em absoluto, guerras mundiais. (...) Tudo isso mudou em 1914. A Primeira
Guerra Mundial envolveu todas [grifos no original] as grandes potências, e na verdade todos os
Estados europeus, com exceção da Espanha, os Países Baixos, os três países da Escandinávia e a
Suíça. E mais: tropas do ultramar foram, muitas vezes pela primeira vez, enviadas para lutar e
operar fora de suas regiões. Canadenses lutaram na França, australianos e neozelandeses
forjaram a consciência nacional numa península do Egeu – “Gallipoli” tornou-se seu mito
nacional – e, mais importante, os Estados Unidos rejeitaram a advertência de George
Washington quanto a ‘complicações européias’ e mandaram seus soldados para lá,
determinando assim a forma da história do século XX.”
13
Woodrow Wilson, com a finalidade específica de investigar as causas da guerra e
formular propostas para a atuação da Liga das Nações, organização internacional
criada no imediato pós-guerra com a finalidade de evitar outras guerras daquelas
proporções, da qual Lord Davies era um grande entusiasta24. Em seguida, houve
a criação de outros Departamentos e cursos destinados a estudar as relações
internacionais, sendo a maioria deles localizados no eixo Estados Unidos-Grã-
Bretanha.

Neste ponto cabe destacar um dado importante para tomarmos


consciência da amplitude e do escopo das RI. O eixo acadêmico anglo-americano
constitui-se como central para o campo de estudos, sendo o principal centro de
produção de discursos científicos sobre as relações internacionais. Mais ainda:
dentro deste eixo, os Estados Unidos assumem proeminente posição no que se
refere à produção em RI. Em um texto sempre citado, HOFFMAN em 1977
chamou as RI de uma ciência social norte-americana25. A centralidade do eixo
anglo-americano é notória no campo, sendo comentado por uma diversidade de
autores, norte-americanos, europeus e também brasileiros.

GUIMARÃES, comentando a centralidade estadunidense neste campo,


alega que uma conjugação de elementos e forças, desde as bases institucionais
criadas a partir da Primeira Guerra Mundial, até a nova posição dos Estados
Unidos no cenário político mundial, a partir da Segunda Guerra, passando ainda
pelo impulso propiciado por ricas fundações privadas (como Ford, Rockfeller,
Kellog e outras), contribuiu para a consolidação das RI nas universidades norte-
americanas. Até os dias de hoje, acrescenta, há naquele país, como em nenhum
outro, um número de instituições de ensino e de pesquisa que torna a produção
norte-americana a mais volumosa, além de trazer à comunidade de especialistas a
maior contribuição teórica, metodológica e substantiva26. No mesmo sentido,
comenta Robert JERVIS que a comunidade de escolares relevante em RI é quase

24
PORTER (2002, p. 78-80).
25
O artigo ao qual diversos autores se referem foi publicado no periódico Deadalus, com o
sugestivo título de An American Social Science: International Relations.
26
GUIMARÃES (2001, p. 30).
14
inteiramente norte-americana, com algumas poucas contribuições do mundo
anglófono27.

Talvez a afirmação de JERVIS deva ser recebida com uma certa


cautela. Afinal, como demonstra WÆVER (1998), existem outros centros de
produção de discursos científicos sobre as relações internacionais. Na visão
apresentada por este último, permanece a centralidade da academia norte-
americana, resultando as Relações Internacionais no que ele chamou de “uma
disciplina nem tão internacional”. Entretanto, como ele destaca, “movement
toward a more pluralistic or balanced situation is widely expected, and several
signs have appeared (…)” (1998, p. 688). Neste trabalho ele se propõe a
demonstrar a existência do domínio norte-americano nas RI, além de investigar o
porquê desse domínio e quais os efeitos sobre o campo. Em seguida, o texto trata
da produção em RI em quatro contextos nacionais (Alemanha, França, Grã-
Bretanha e Estados Unidos), além de comentar que “other interesting cases
within the European context are Italy and Russia, with unique state histories, and
Scandinavia, the second or third largest IR community in Europe today”. Um
interessante trabalho, que nos alerta para a necessidade de um estudo detalhado
desse campo de estudos a partir da Sociologia do Conhecimento.

Retomando a idéia que desenvolvíamos, o campo de estudos das RI


surge, pois, como uma reação aos eventos ocorridos no começo do século XX,
particularmente a Primeira Guerra Mundial e, depois, a Grande Depressão de
1929. É a partir dos eventos ocorridos na realidade internacional que emerge a
preocupação acadêmica de se teorizar sobre os mesmos. Aqui então começamos
a tratar mais especificamente da atividade teórica em RI.

Em primeiro lugar, cabe ressaltar que a realidade se apresenta diante de


nós como uma massa amorfa de fenômenos. Nas palavras de ROCHA, o mundo
em que vivemos não se encontra organizado em categorias. Ao contrário, a
realidade internacional constitui-se como uma enormidade de fatos, que se
apresentam como um continuum, com todas as suas complexidades e

27
JERVIS (1998, p. 971).
15
contradições, sobre os quais é possível formular uma quantidade ainda maior de
interpretações28.

Sobre esta realidade complexa e contraditória formulamos teorias. E,


afinal, o que são teorias? James ROSENAU, especialista canadense em RI, afirma
que para se pensar teoricamente é necessário evitar a tarefa de formular um
conceito bem delimitado de teoria. Segundo ele, é preferível possuir uma
concepção precisa da natureza da teoria, mas uma boa definição não é
indispensável para se pensar em termos teóricos, nem garante a produção de boas
teorias29.

Mesmo considerada esta advertência formulada por ROSENAU,


procuramos definir claramente o conceito. Trataremos das teorias como sendo
construções discursivas que se propõem a sistematizar de forma lógica e clara o
conhecimento sobre a realidade, buscando relacionar fenômenos, identificando
na realidade regularidades que a tornem inteligível ou mais bem compreendida.

Então, conforme dito acima, teorias são construções discursivas. ROCHA


afirma que teorias são criações humanas que resultam de esforços intelectuais
destinados a conferir sentido à realidade em que vivemos. Acrescenta ainda que,
como outras obras humanas, as teorias são imperfeitas, tanto porque seus autores
raramente as consideram completas, acabadas, como porque se consolidam com
o debate realizado pelos integrantes de uma dada comunidade científica. Assim,
completa o autor: “ao cabo, são construções coletivas, que não raro se valem de
conceitos e interpretações desenvolvidos para campos distintos do saber, via de
regra conexos, e que se constroem no contexto de discussões entre intelectuais e
práticos, ou fazedores da realidade, e gente que desempenha ambos papéis, ora
simultânea, ora alternadamente”30. Com este trecho o autor destaca a dimensão
social do processo de construção de teorias, que produz um tipo particular de
conhecimento sobre as relações internacionais.

28
ROCHA (2002, p. 39).
29
“To think theoretically one has to avoid treating the task as that of formulating an appropriate
definition of theory” (ROSENAU, 2001, p. 23).
30
ROCHA (2002, p. 40), grifo no original.
16
É freqüente na literatura de RI preocupada com as questões teóricas
encontrarmos referência a tipos de teorias. Segundo esta visão, poderíamos
construir uma tipologia das teorias, de acordo com os mais variados critérios.
Destacaremos aqui três perspectivas: quanto ao alcance, classificando-as em
teorias gerais e teorias parciais; quanto à neutralidade valorativa, classificando-as
em teorias empíricas e normativas; e quanto à relação com a realidade social que
se pretende conhecer, em teorias explicativas e teorias constitutivas. Estas
classificações serão úteis para o desenvolvimento de algumas questões
fundamentais ao longo dos capítulos subseqüentes, sobretudo quando tratarmos
de algumas inspirações teóricas do construtivismo, quando tratarmos do debate
entre idealistas e realistas e quando tratarmos do debate atual, entre racionalistas
e construtivistas.

A primeira classificação das teorias toma por critério o seu alcance.


Assim, HOFFMAN classifica as teorias em gerais e parciais (ou de alcance médio,
tradução para a língua portuguesa do termo middle range). As primeiras teriam
por escopo oferecer aportes teóricos aplicáveis às relações internacionais como
um todo, enquanto as últimas teriam um alcance mais limitado, referindo-se a
determinados fenômenos31. GUIMARÃES exemplifica algumas destas sub-áreas
das relações internacionais sobre as quais se desenvolveram teorias de alcance
médio: política externa, estudos estratégicos, questões de segurança coletiva, de
proliferação e controle de armamentos, economia política internacional,
organização internacional, integração regional, entre outras32.

Quanto à neutralidade valorativa, a distinção, deste ponto de vista, é


realizada entre teorias empíricas, que se voltam para o estudo dos fenômenos
concretos, para o mundo do ser, daquilo que é, e teorias normativas (ou às vezes
denominadas de filosóficas), voltadas para a realização de um ideal33,
formulando prescrições para as ações políticas, isto é, tendo atenção para o que,
no jargão jurídico-filosófico, costuma-se denominar como mundo do dever-ser.

31
HOFFMAN (1990 [1961], p. 32).
32
GUIMARÃES (2001, p. 10).
33
HOFFMAN (1990 [1961], p. 32).
17
A terceira distinção tem como guia duas posturas no que tange à relação
entre as teorias e a realidade internacional, ou social, que se pretende conhecer.
Algumas teorias, denominadas explicativas, reivindicam um status de
independência com relação ao objeto social, vendo o mundo social como externo
às teorias que o explicam. Teorias constitutivas, em contraste, alegam que nossas
teorias realmente contribuem para a própria construção do mundo social, ou, em
outras palavras, da realidade34.

Estabelecido um conceito de teoria, bem como sua possível tipologia, vale


ressaltar que os discursos teóricos somente fazem sentido quando confrontados
uns com os outros. É neste contexto discursivo que se desenvolve a Teoria das
Relações Internacionais (TRI). Deste ponto de vista, pois, serão desenvolvidos os
capítulos seguintes. O eixo de condução, portanto, será a partir dos debates
teóricos existentes no campo.

Nas RI, talvez a mais jovem das ramificações das Ciências Sociais, os
debates internos dizem respeito a problemas essenciais, constituindo a autêntica
razão de ser deste novo campo do saber, e não meramente a questões
secundárias. Para aqueles que se aproximam do campo pela primeira vez, esta
ausência de acordo pode ser um motivo de desalento, já que se nota um gasto
excessivo de energia e muito trabalho nestes debates teóricos, em detrimento da
acumulação do conhecimento, tão almejada em qualquer aventura cognitiva.
Além disso, é gerada uma excessiva fragmentação do campo35.

Existe uma série de questões que são discutidas na TRI. Buscaremos tratar
destas questões brevemente, lembrando que estamos, neste capítulo inicial,
apenas preparando a ambiência para poder discorrer mais livremente sobre os
debates teóricos de agora em diante. Assim, sempre com este objetivo em mente,
buscaremos tratar de alguns termos importantes e que estão sempre presentes em
qualquer texto teórico produzido na área, e que por vezes os tornam pesados ou,
o que é pior, incompreensíveis.

34
SMITH (1995, p. 26-27); SORENSEN (1998, p. 85); WENDT (1998, p. 102); GUIMARÃES (2001,
p. 48-49).
35
SODUPE (1992, p. 166).
18
Voltamos então à idéia de que as teorias são discursos sobre a realidade.
No processo de construção destes discursos, qualquer teórico que se proponha a
esta tarefa deve, sempre, abstrair da realidade quais são os elementos que a
constituem. Em outras palavras, questiona-se aqui sobre a própria natureza da
realidade internacional. Utilizando o termo que pretendemos definir, questiona-se
sobre a ontologia das relações internacionais.

Ontologia, entendida como ramo da metafísica, é a ciência do ser em


geral. Este tópico da metafísica envolve questões como a natureza da existência e
a estrutura categorial da realidade, vale dizer, quais são as qualidades particulares
de um determinado grupo de pessoas ou coisas que permitem que venhamos a
agrupá-los em uma mesma categoria. O termo ontologia, em um sentido
derivado, também é usado como referência ao conjunto de coisas cuja existência
é reconhecida por uma teoria particular ou sistema de pensamento. Steve SMITH
resumiu em uma pergunta o sentido de ontologia: “what is the world like and
what is its furniture?”36. Ontologia, em uma expressão sintética, refere-se à
própria natureza das relações internacionais.

Outra questão que se coloca, ao lado do problema da ontologia das


relações internacionais, diz respeito à epistemologia. Na língua portuguesa, o
termo epistemologia refere-se à teoria da ciência (episteme). Entretanto, o uso na
língua inglesa do termo correspondente epistemology refere-se também à teoria
do conhecimento, que no português poderia ser denominada gnoseologia. Neste
trabalho utilizaremos o termo no sentido comumente empregado nos países de
língua inglesa, ou seja, englobando as questões relativas ao conhecimento e à
ciência.

Ora, se o objetivo de uma determinada comunidade acadêmica é obter


conhecimento, ou seja, a posse de uma representação correta da realidade, deve
esta comunidade examinar como são formadas essas representações, para que se
possa realizar uma análise de nossas pretensões ao conhecimento. No dizer de
Danilo MARCONDES, pode-se desdobrar a problemática mais ampla e mais geral

36
SMITH (1996, p. 18)
19
do conhecimento em quatro questões: a da possibilidade do conhecimento; a do
método para se reconhecer um conhecimento como legítimo, verdadeiro; a dos
instrumentos do conhecimento, como os sentidos e a razão; e a do objeto do
conhecimento37.

Normalmente, ao lado das questões relacionadas à ontologia (o que


pretendemos conhecer), e à epistemologia (como podemos conhecer as relações
internacionais), encontramos referência na literatura teórica às questões
metodológicas. A metodologia refere-se ao estudo filosófico do método
científico. O método científico, por sua vez, é um instrumento utilizado pela
ciência na sondagem da realidade, um instrumento formado por um conjunto de
procedimentos, mediante os quais os problemas científicos são formulados e as
proposições científicas são examinadas.

Concluindo as definições relativas à ontologia, epistemologia e


metodologia, vale trazer as lições de SMITH. Afirma o professor britânico que,
embora sejam conceitos separados, os três são fundamentalmente inter-
relacionados. A metodologia, que ele resume com a pergunta “por que usar este
método?”, necessita da garantia de uma epistemologia (resposta: porque este
método discrimina entre ‘verdadeiro’ e ‘falso’ ao alcance do que podemos
conhecer sendo ‘verdadeiro’ ou ‘falso’). Da mesma forma, continua, afirmações
ontológicas (respostas à pergunta que colocamos acima, “what is the world like
and what is his furniture?”) sem uma garantia epistemológica constituem-se em
dogmas e não vão licenciar uma metodologia. Conforme nos alerta SMITH, nem a
ontologia pode ter prioridade sobre a epistemologia, nem o contrário, pois tanto
quanto a epistemologia é importante para determinar o que pode ser aceito

37
“Podemos desdobrar a problemática mais ampla e mais geral do conhecimento nas seguintes
questões que examinaremos em seguida: 1. A questão da possibilidade do conhecimento: é
possível conhecer a realidade, o mundo, tal qual ele é? 2. A questão do método: como é possível
esse conhecimento? Ou seja, como se justifica uma determinada pretensão ao conhecimento
como legítima, verdadeira? 3. A questão dos instrumentos do conhecimento: os sentidos e a
razão; 4. A questão do objeto do conhecimento: o mundo material ou a realidade superior, de
natureza inteligível, a realidade mutável e perecível ou a essência eterna e imutável?”
(MARCONDES, 1997, p. 50).

20
ontologicamente, a ontologia afeta o que podemos aceitar do ponto de vista
epistemológico. O autor vê então ontologia e epistemologia como sendo
mutuamente e inextricavelmente inter-relacionadas38.

A última expressão que pretendemos definir neste capítulo inicial passou a


figurar freqüentemente nos debates mais recentes neste campo de estudos, muito
mais freqüentemente aparecendo do que lhe sendo esclarecido o sentido:
metateoria. Segundo ROCHA, ao tratar dos diferentes níveis de abstração nos
quais se dão os debates teóricos, o campo teórico das RI é marcado pela
diversidade de discursos teóricos, bem como pela aceitação simultânea de vários
deles. Este fato engendrou, de acordo com o autor, o surgimento de debates
metateóricos, nos quais “os próprios discursos teóricos utilizados pelos analistas
das relações internacionais tornam-se objetos de estudo, passando a desempenhar
papel distinto do que habitualmente desempenham, a saber, a condição de
instrumentos, ou meios, com os quais se pode produzir conhecimento sobre a
vida real”39. Sobre estes debates, que segundo Fred HALLIDAY são “debates sobre
como [grifo do autor] escrever teoria”, pronunciou-se o analista inglês fazendo
uma crítica, afirmando que, apesar de “solenemente anunciada”, a metateoria, ou
melhor dizendo os debates metateóricos, “tornaram-se descolados da análise
substantiva”40. É neste nível de abstração que se situa esta dissertação.

Chegamos ao fim deste capítulo, no qual procuramos, conforme exposto


inicialmente, esclarecer algumas noções fundamentais, para que o texto do
restante desta dissertação possa transcorrer sem maiores interrupções
explicativas, mas sem com isso se perder em uma linguagem inacessível.

Durante o desenvolvimento dos capítulos subseqüentes estaremos tratando


de discursos teóricos elaborados sobre as relações internacionais. Embora
estejamos tratando de teorias, não devemos esquecer a realidade, como dissemos
atrás, já que é delas que tratam afinal os discursos teóricos. Ademais, finalizamos

38
SMITH (1996, p. 18).
39
ROCHA (2002, p. 77).
40
HALLIDAY (1999, p. 37).
21
esta parte inicial com a afirmação de SMITH (1996, p. 13), que destaca a
importância prática das teorias, quando comentava a importância do debate atual:

“Theories do not simply explain or predict, they tell us what possibilities exist for
human action and intervention; they define not merely our explanatory possibilities
but also our ethical and practical horizons. In this Kantian light epistemology
matters, and the stakes are far more considerable than at first sight seem to be the
case.”

22
3 CAPÍTULO II – DEBATES TEÓRICOS: DO SURGIMENTO AO
DEBATE ATUAL

“Observers often note that IR is peculiar among


the social sciences for a series of ‘great debates’.
Ask an IR scholar to present the discipline in
fifteen minutes, and most likely you will get a story
of three great debates. There is no other
established means of telling the history of the
discipline. (...) Our perception of where we are in
the development of knowledge about international
relations is deeply shaped by the idea of these
great debates.”
(WÆVER, 1998, p. 715)

Este segundo capítulo tem por escopo construir uma história


intelectual da Teoria das Relações Internacionais (TRI), procurando identificar
desde o surgimento do campo de estudos os principais debates teóricos, assim
considerados pelas imagens auto-referenciais das Relações Internacionais (RI).
No cumprimento desta tarefa, destacamos os aspectos centrais dos discursos
teóricos envolvidos nos debates, realçando também as divergências existentes
entre eles. Faremos isso porquanto, conforme escrito no capítulo anterior,
defendemos a tese de que as teorias só fazem sentido quando confrontadas umas
com as outras, em virtude do contexto discursivo que caracteriza um campo de
estudos como RI.

Os acadêmicos que formam este campo não somente elaboram


discursos teóricos, como já foi dito acima, mas também constroem narrativas
sobre o desenvolvimento da TRI. Estas narrativas podem ser mais ou menos
aprimoradas, com maior ou menor abrangência, sendo o alcance determinado
pela finalidade que têm a cumprir. Conforme nos apresenta WILSON (1998, p. 8),
a autoconsciência disciplinar em RI teve início em 1972, com um artigo
publicado pelo teórico inglês Hedley BULL. Este artigo, indicado por WILSON,
procurou retratar o meio século decorrido desde a criação da Woodrow Wilson
Chair até então – constituiu, segundo ele, o primeiro artigo importante sobre a

23
história das RI. O título era bastante sugestivo da autoconsciência emergente:
“The Theory of International Politics: 1919-1969”.

SMITH (1995) chamou estas imagens auto-referenciais de auto-


imagens (no inglês, self-images), afirmando que o modo como a teoria
internacional tem sido descrita e categorizada criou interpretações e
entendimentos privilegiados – vale dizer, dominantes. Segundo ele, há uma série
de formas pelas quais os teóricos internacionais têm se referido ao campo, e se
propõe a expor – e criticar – dez auto-imagens. Quando optamos por expor o
campo como uma seqüência de debates teóricos, fizemos uma escolha, excluindo
todas as demais formas de se expor o campo.

Construir esta exposição evolutiva (ou auto-imagem, no sentido


utilizado por SMITH)41 do campo teórico da disciplina reveste-se de caráter
necessário dentro do trabalho, posto que, além de descrever o desenvolvimento
dos debates teóricos através do tempo, apresentará as principais questões teóricas
que se buscou responder. Esta exposição abrangerá alguns dos principais debates
teóricos, do surgimento e consolidação das RI como campo de estudos, nas
décadas de 1920 e 1930, a um dos debates atuais, que tem como principais
partícipes o Racionalismo (a síntese racionalista, à qual convergiram na década
de 1990 o Neo-realismo e o Institucionalismo Neoliberal) e o Construtivismo
Social42.

A apresentação partirá da idéia de grandes debates teóricos – visão


amplamente utilizada quando o intuito é fornecer uma auto-imagem do
desenvolvimento teórico em RI, sobretudo na academia norte-americana. De
acordo com a situação hipotética criada por Ole WÆVER, trazida na epígrafe
deste capítulo, se a um especialista das RI lhe for solicitado que apresente a
disciplina em quinze minutos, muito provavelmente este estudioso irá contar uma
história de três grandes debates. E sobre isto assevera: a nossa percepção de onde

41
SMITH (1995, p. 1-7).
42
Conforme será esclarecido adiante, do debate atual ao qual nos referimos dele participam ainda uma
ampla gama de abordagens teóricas. Nosso foco, entretanto, será o debate entre os racionalistas e
construtivistas.
24
estamos no desenvolvimento do conhecimento sobre as relações internacionais é
profundamente moldada por esta idéia43.

Embora haja predominância desta idéia de grandes debates, é possível


encontrar na literatura algumas divergências, relativas à quantidade, ou a quais
seriam estes debates. Neste trabalho abordaremos a TRI a partir da visão de que
houve na disciplina três grandes debates anteriores ao debate atual, no qual está
inserido o Construtivismo. Esta visão está presente em um outro artigo de
WÆVER (de 1996), no qual este analisa os principais temas discutidos nos três
primeiros e apresenta brevemente o debate atual, então em fase de formação, a
nosso ver44.

Segundo esta idéia de grandes debates, os dois primeiros são


claramente definidos, e quanto a isto não há divergências relevantes entre os
acadêmicos. O Primeiro Grande Debate, segundo estas narrativas, ocorreu entre o
chamado Idealismo e o Realismo, cujos defensores formularam a crítica ao
pensamento notadamente liberal dos primeiros. Os chamados idealistas – termo
cunhado pelos adversários realistas, como veremos adiante – são representados
por aquele grupo de autores que realizaram os estudos pioneiros, sobretudo a
partir de 1919, cruciais para o desenvolvimento inicial de RI como campo de
estudos. Estes estudos, em sua maioria, tinham por objeto identificar as causas da
guerra, buscando paralelamente os caminhos para a existência de uma ordem
política internacional livre dos conflitos violentos. O Idealismo, partindo de uma
série de premissas particulares, como a harmonia de interesses, a fé no progresso,
a existência de uma justiça objetiva e uma crença na racionalidade e na bondade
humana, buscava uma transformação do sistema internacional através da
chamada “analogia nacional”. Segundo este pensamento, quanto mais o sistema
internacional se assemelhasse às sociedades nacionais, vale dizer, organizado
hierarquicamente, com uma autoridade central capaz de manter a ordem e prover
procedimentos pacíficos de solução de controvérsias, mais seriam controlados os
principais processos que resultam da natureza anárquica do sistema internacional

43
WÆVER (1998, p. 715).
44
WÆVER (1996).
25
(como as alianças, o equilíbrio de poder, o militarismo e a diplomacia secreta),
que, ao cabo, eram identificados como principais causas da guerra 45. Conforme
relata GUIMARÃES, “os utópicos/idealistas/liberais se inspiravam no otimismo
iluminista do século XVIII, no liberalismo do século XIX e no idealismo de
Woodrow Wilson”46.

No outro pólo do Primeiro Grande Debate encontram-se os realistas.


A crítica realista atacou as principais premissas do pensamento liberal contido
no Idealismo. Assim, valendo-se da herança da tradição realista existente no
pensamento político ocidental, sobretudo de Hobbes e Maquiavel, o Realismo
defendia a especificidade da política diante da moral, apresentando uma visão do
ambiente internacional como um meio no qual prevalecia o choque de interesses
conflitantes, a incessante luta pelo poder e o egoísmo dos Estados, atores
principais para se estudar a política internacional47. Além disso, criticavam a
normatividade do pensamento idealista. Trataremos de expor este debate, com
maiores detalhes e qualificações, na seção 3.1, infra.

A partir do final da década de 1950, inicia-se o que vem normalmente


sendo tratado na literatura como o Segundo Grande Debate: de um lado
defensores da abordagem tradicional das RI (ou Tradicionalismo), utilizando os
métodos inspirados na História, na Filosofia, no Direito, e em outras áreas das
Ciências Sociais, aproximando-se das relações internacionais através sobretudo
da história diplomática e do direito internacional. Conforme nos traz
GUIMARÃES: “Na ótica dos tradicionalistas, RI constitui ‘uma disciplina
humanista de pleno direito, envolvendo uma perspectiva simultaneamente
filosófica, histórica, jurídica e sociológica. Não é e jamais poderia ser matéria
estritamente científica ou técnica (PEIXOTO, 1997, p. 27)’”48.

Lançada como desafio a esta abordagem tradicional, a chamada


revolução behavioralista (ou Behaviorismo) defendia, em contraposição, a

45
SODUPE (1992, p. 185).
46
GUIMARÃES (2001, p. 44).
47
SODUPE (1992, p. 186-188).
48
GUIMARÃES (2001, p. 44).
26
construção de conhecimento em RI com base em métodos espelhados na
rigorosidade específica das ciências naturais, inspirando-se nos modelos em voga
na Ciência Política norte-americana, preocupados em formular hipóteses
explicativas comprováveis empiricamente através de processos precisos de
mensuração. Como bem resumiu GUIMARÃES, “a proposta da corrente
behavioralist, que em RI alcança seu apogeu nas décadas de 1950/60, era tornar
RI uma disciplina científica [grifo no original], com capacidade de explicar e
predizer os problemas e questões estudadas o que, segundo a referida corrente,
não era possível através das abordagens tradicionalistas, que não ofereciam
instrumentos teóricos e analíticos, limitando-se aos estudos descritivos e muitas
vezes prescritivos ou normativos”49. Este debate será exposto na seção 3.2 deste
capítulo.

Quanto ao Terceiro Grande Debate, há alguma divergência na


literatura registrada pelos historiadores do campo de estudos. Adotaremos a visão
comungada por WÆVER, entre outros, segundo a qual este debate é representado
pelo que ficou conhecido como o Debate Interparadigmático. Esta idéia de haver,
em RI, um debate entre paradigmas conflitantes, resultou da aplicação da obra do
filósofo da ciência Thomas S. KUHN, A Estrutura das Revoluções Científicas,
que será detalhada na seção 3.3, adiante.

Basicamente, esta idéia, que passou a ser freqüentemente utilizada a


partir da década de 1980 (sobretudo em obras que procuraram expor todo o
desenvolvimento da TRI, como em livros-texto para cursos de graduação),
expressa uma divisão das teorias em três grandes grupos. Estes agrupamentos,
que foram construídos por diversos autores, têm como critério para a
identificação de cada um dos paradigmas (segundo o conceito utilizado por
KUHN) algumas de suas premissas assumidas. Por ora, vale trazer o comentário
de GUIMARÃES, que afirma que esta expressão “procura refletir o estado da teoria
de RI a partir dos anos 80, quando nenhuma abordagem se mostrava dominante;
surgem assim novas alternativas ou versões modificadas de alternativas já

49
GUIMARÃES (2001, p. 44-45).
27
existentes: (1) realismo/neo-realismo (ou realismo estrutural), (2)
liberalismo/pluralismo, (3) globalismo/neo-marxismo/estruturalismo”50.

Chegamos então ao ponto mais relevante, devido à existência de diversas


visões que podem ser encontradas na literatura mais recente de TRI. É certo que
já ultrapassamos o debate interparadigmático. Porém, resta a questão: se o
deixamos para trás, o que vivemos depois afinal? Ao final dos anos 1980, o
enfrentamento dos paradigmas parecia haver chegado ao esgotamento. Novas
questões passaram ao centro da arena onde se debatiam os discursos teóricos.
Como neste trabalho queremos apresentar as inspirações sociológicas e as
contribuições teóricas da abordagem construtivista, voltaremos nossa atenção
para o debate no qual esta abordagem se insere.

Apresentaremos na seção 3.4, mais adiante, o debate entre os


racionalistas e os construtivistas. Este debate atual resultou de uma concentração
de um debate mais amplo, que incluía outras abordagens e que ficou conhecido
como racionalistas versus “reflectivistas” (ou interpretativistas). Segundo
WÆVER (1996), na década de 1980 as versões modificadas do realismo (o neo-
realismo) e do liberalismo (o neoliberalismo) findaram por convergir em uma
síntese. Esta síntese ficou conhecida pelo termo neo-neo synthesis, não para
indicar que se tratava de novas versões do neo-realismo e do neoliberalismo, mas
somente para destacar a idéia de que houve uma aproximação dos dois “neos”.
Conforme anota o autor: “A dominant neo-neo synthesis became the research
programme of the 1980s (...). No longer were realism and liberalism
‘incommensurable’ – on the contrary they shared a ‘rationalist’ research
programme, a conception of science, a shared willingness to operate on the
premise of anarchy (Waltz) and investigate the evolution of co-operation and
whether institutions matter (Keohane).” No outro pólo deste debate, segundo
WÆVER, estariam os reflectivists.

Esta é uma divisão – entre racionalistas e reflectivists – que passou a


ser freqüente no campo teórico das RI a partir de 1988, quando o então

50
GUIMARÃES (2001, p. 46).
28
presidente da International Studies Association, Robert KEOHANE, discutiu o que
ele chamou de “duas abordagens às instituições internacionais”. Estas duas
abordagens seriam representadas: (a) de um lado, pelos racionalistas, referindo-se
claramente ao programa de pesquisa que teria sido o resultado da fusão entre os
programas do neo-realismo e do institucionalismo neoliberal; e (b) do outro, o
que Keohane unificou sob o amplo conceito de reflectivist, que às vezes é
denominado como reflexivist, para destacar a natureza auto-reflexiva das novas
abordagens críticas, abrangendo desde os inspirados no Pós-modernismo
Francês, até os inspirados na Hermenêutica Alemã, passando pelo
Construtivismo Social. Neste trabalho, em vez de “reflectivistas” ou
“reflexivistas”, termos que poderiam soar estranho em português, preferimos o
termo “interpretativista”, destacando o aspecto epistemológico de sua ênfase na
interpretação, sem desconsiderar a natureza filosófica do debate. Emmanuel
ADLER (1997), referindo-se a este debate, utiliza esta denominação que
adotamos.

No ano seguinte este trecho trazido de um livro de ensaios teóricos


denominado International Institutions and State Power, KEOHANE insiste no eixo
do debate entre os racionalistas e interpretativistas:

“Neoliberal institutionalism (...) shares some important intellectual commitments


with neorealism. Like neorealists, neoliberal institutionalists seeks to explain
behavioral regularities by examining the nature of the descentralized international
system. Neither neorealists nor neoliberal institutionalists are content with
interpreting texts [sem grifo no original]: both sets of theorists believe that there is
an international political reality that can be partly understood, even if it will
always remain to some extent veiled.”51
Assim, de acordo com esta narrativa de WÆVER (1996), o primeiro
grande debate envolveu de um lado os denominados idealistas, e de outro os
realistas; o segundo debate opôs os tradicionalistas e os behavioralistas; o
terceiro foi o debate interparadigmático. Ultrapassado o debate
interparadigmático chegamos ao quarto, entre racionalistas e interpretativistas
(reflectivists).

51
KEOHANE apud WÆVER (1996, p. 165).
29
WÆVER declara que seu argumento, em termos de quatro debates, não
era então convencional. Isto porque, segundo ele, de acordo com a visão
estabelecida não há um quarto debate. Estamos ainda no terceiro ou após ele. O
autor afirma que agora estamos vivendo o quarto. E ironiza sua discórdia com o
pensamento ortodoxo: “The disagreement stems from the peculiar way of
counting in International Relations: 1st debate, 2nd debate, 3rd debate, 3rd
debate. There is a magic number – three paradigms, three debates. In academic
debates, there always have to be three positions, three options, three scenarios”
(1996, p. 174). Ele entende que, nas RI, há quatro debates principais, pelo
menos. Ignorar este erro, enumerando-os nesta estranha e peculiar forma de
contar, significa incorporar o quarto no terceiro debate. E finaliza: “We need new
metaphors and depictions to foster self-reflection in the discipline”.

Vale à pena trazermos aqui a tabela construída por WÆVER, na qual


ele expõe os principais temas discutidos em cada um dos quatro debates,
conforme segue abaixo. O autor enumerou cinco temas que foram discutidos nos
quatro debates: política, filosofia, epistemologia, ontologia e metodologia. Em
seguida, foram identificados os temas correspondentes a cada um dos debates e
classificados em ordem de importância:

Table 7.2 Themes of the four debates


Politics Philosophy Epistemology Ontology Methodology
first debate XXX XX X
second debate XX X XXX
third debate XX XXX X
fourth debate XXX XX X
Note: X X X = main form of debate. X X = secondary form, etc.

A exposição dos debates sucessivos justifica-se por ser a melhor


maneira de apresentar de forma sucinta a trajetória da TRI, embora não possamos
deixar de destacar que alguns autores vêm criticando o uso deste procedimento,
por diversas razões.

Uma das críticas refere-se à própria existência dos debates, no sentido


de uma série de idéias contrapostas diretamente umas contra as outras.

30
Argumenta Peter WILSON, para ficarmos em um só exemplo, que nunca houve
realmente um Primeiro Grande Debate entre interlocutores sustentando pontos de
vista opostos idealistas e realistas. O próprio WILSON, por outro lado, reconhece
o valor da noção como uma ferramenta pedagógica para ordenar um desordenado
arranjo de teorias e abordagens. Assim, ele conclui, embora a noção não seja sem
mérito, sobretudo didático, como exposição de um fato histórico esta noção é
altamente enganosa52. Além deste valor didático da idéia de debates,
argumentamos que houve sim algum enfrentamento mais direto no caso dos
demais debates. Na seção 3.2, por exemplo, ao tratarmos da abordagem
tradicional e da revolução behavioralista, veremos como alguns autores
efetivaram ataques diretos aos seus oponentes, estabelecendo algo que não pode
ser considerado outra coisa que não seja um debate teórico.

Outras críticas à noção de grandes debates foram enunciadas por


SMITH (1995, p. 13-17). Após reconhecer que a exposição cronológica possui um
aspecto atraente, ela torna o processo de desenvolvimento teórico muito mais
clinicamente exato do que realmente o foi: “International theory did not move so
effortless through the three phases, much like a car accelerating through the
gears”. Acrescenta ainda que tal versão dos eventos silencia todos os debates e
conflitos entre as interpretações adversárias, além de recompensar com uma
medalha o discurso teórico dominante. Em conseqüência, a versão cronológica
dos eventos é muito simplista e apresenta uma versão demasiado nítida e
arrumada do desenvolvimento teórico, na realidade mais complexo e confuso53.

Além destas críticas, há quem alegue que este modo de apresentar a


disciplina desconsidera as divergências internas existentes em cada abordagem.
SMITH, ao tratar das auto-imagens da disciplina, quando trata da imagem
centrada na noção de grandes debates teóricos afirma que, ao realçar aspectos
comuns e encaixotar os teóricos sob um número limitado de rótulos, a

52
WILSON (1998, p. 1).
53
SMITH (1995, p. 16).
31
diversidade e a complexidade são violentadas, impondo aos eventos uma lógica
que está no olhar do observador, e não dos participantes das discussões teóricas54.

Além disso, esta visão de grandes debates ocultaria o quanto o campo


é centrado na abordagem realista. SMITH menciona um inventário realizado por
ALKER & BIERSTEKER (em 1984), que encontrou a significante marca de 70% de
trabalhos situados dentro de uma perspectiva de tradição realista. Em segundo
lugar estariam as abordagens neomarxistas, com cerca de 6% dos trabalhos
publicados (SMITH, 1995, p. 20). Embora nestes quase vinte anos que nos
separam da pesquisa dos autores a situação possa haver se modificado, a
predominância realista ainda é impressionante.

Apresentamos uma última crítica formulada por ele, reconhecendo sua


relevância: esta exposição, centrada em grandes debates, seria omissa com
relação a diversas vozes silenciadas. SMITH (1995, p. 17) levanta a questão sobre
o que esta caracterização da teoria internacional omitiria:

“Where, for example, is class, or ethnicity, or gender in this self-image? Where are
the concerns of developing countries to be found in this canon? It is, in fact, a
Western/white/male/conservative view of international theory”.
Embora tenhamos conhecimento destas críticas e possamos até
reconhecer a procedência, ao menos parcial, das mesmas, simplificamos a
realidade acadêmica com esta visão para obter como resultado uma exposição
sucinta e útil da trajetória do campo teórico de RI, que de outra forma ocuparia
espaço superior ao merecido por esta tarefa no âmbito do trabalho como um todo.

54
SMITH (1995, p. 17).
32
3.1 O PRIMEIRO GRANDE DEBATE: OS ASSIM
CHAMADOS IDEALISTAS E AS CRÍTICAS DO REALISMO

Talvez nenhuma outra narrativa seja mais aceita nas Relações


Internacionais (RI) como a que descreve o surgimento deste campo de estudos
como uma reação aos assustadores eventos que marcaram a Primeira Guerra
Mundial. Também se tornou amplamente aceita a idéia de que o período que vai
de 1919, data da fundação da primeira cadeira para o estudo acadêmico das
relações internacionais, ao final dos anos 1940, foi marcado por um debate entre
os assim chamados idealistas e seus críticos realistas. Nessa seção temos por
objetivos, em primeiro lugar, realizar uma contextualização histórica do
surgimento do campo, para em seguida expor o que ficou conhecido como o
Primeiro Grande Debate por aqueles que se dedicam ao estudo da Teoria das
Relações Internacionais (TRI).

O mundo sobreviveu aos dois conflitos mundiais ocorridos na primeira


metade do século XX. A Primeira Guerra Mundial foi deflagrada após o
assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro ao trono austríaco, por um
estudante nacionalista bósnio, em Sarajevo, no dia 28 de junho de 1914, que
resultou na declaração de guerra da Áustria à Sérvia exatamente um mês depois.
Desde então, até o final da Segunda Guerra, com a rendição incondicional do
Japão, aceita no dia 14 de agosto de 1945, quatro dias após a hecatombe causada
pela explosão da primeira bomba nuclear sobre Hiroxima e Nagasaki, em
determinados momentos pareceu que a humanidade, ou considerável proporção
dela, seria destruída. É impossível medir as conseqüências deste conflito europeu
que se estendeu por 31 anos, seja em mortos ou em perdas materiais; mas, acima
de tudo, é impossível aferirmos com exatidão as conseqüências destes conflitos
nas cabeças dos homens que testemunharam, de longe, de perto, ou
entrincheirados nos campos de batalha, a incrível capacidade destruidora
desenvolvida – e posta para funcionar – pelo ser humano55.

55
DÖPCKE (2001, p. 161-164); HOBSBAWN (1995, p. 29-40);
33
Finda a Primeira Guerra, os estadistas passaram a se preocupar com o
estabelecimento de mecanismos para que outro conflito daquelas proporções não
voltasse a ocorrer. O então Presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, um
cientista político liberal saído dos bancos da Universidade de Princeton, propôs,
em uma mensagem encaminhada ao Congresso em 8 de janeiro de 1918, o que
ficou conhecido como “os catorze pontos de Wilson”, um conjunto de ações que
tinham por finalidade estabelecer a paz entre as nações.

Um destes pontos propunha a criação de uma organização


internacional que pudesse prover um sistema de segurança coletiva, de tal modo
que uma coalizão de países pudesse manter a paz mundial. Esta instituição foi
criada com o nome de Liga das Nações56. O pacto que a criou foi firmado a 28 de
abril de 1919, como anexo aos tratados de paz57. A Liga, no entanto, foi bastante
enfraquecida e restou inerte quando era premente sua ação. Uma das razões do
fracasso da instituição, por ironia do destino, consistiu na não ratificação do
Tratado de Versalhes pelo Senado norte-americano.

Conforme a visão prevalecente nas RI, este campo de estudos emergiu,


como dito, em uma reação ao primeiro conflito armado mundial. Segundo estas
narrativas, incorporadas no texto de ROCHA, a Primeira Guerra gerou nas
populações mais atingidas pelo conflito “um consenso de que, ao lado da
necessidade de se compreenderem as dinâmicas sociais, políticas e econômicas
domésticas, em que muito se avançou no início do século XX, não se podiam
ignorar as dimensões internacionais destes processos, quer em suas causas, quer
em suas conseqüências” (ROCHA, 2002, p. 25). Segundo ele, todos, desde
cidadãos comuns e políticos, até empresários e cientistas sociais, sentiam “a
necessidade de melhor conhecer os processos dinâmicos que, em conjunto,
passaram a ser denominados relações internacionais [grifo no original]”. Nestas
populações, conclui, havia ainda a idéia clara de que a interdependência entre as
nações tendia a aprofundar-se.

56
No português é freqüente também encontrarmos o nome “Sociedade das Nações”. Preferimos,
entretanto, manter maior fidelidade ao termo utilizado em inglês: League of Nations.
57
CERVO (2001, p. 186).
34
A primeira cadeira para o estudo acadêmico das relações
internacionais foi fundada na Universidade de Aberystwith, no País de Gales.
Lord Davies, um rico industrial galês, com ligações profissionais com a Liga das
Nações (tendo sido inclusive seu Secretário-Geral, posteriormente), foi o
responsável pela doação de um vultoso fundo para que se investigasse as causas
da guerra e os caminhos para um mundo livre dos conflitos violentos. Inspirado
no idealismo liberal do presidente norte-americano, foi fundada naquela
universidade a Woodrow Wilson Chair. Note-se o caráter marcadamente liberal
(ou, como seria rotulado posteriormente pelos realistas, idealista) do surgimento
deste campo de estudos58.

Em seguida à criação da Woodrow Wilson Chair, foram criadas outras


bases institucionais importantes, como os cursos das Universidades London
School of Economics, em 1923, e de Oxford, em 1930. Paralelamente a estas
instituições acadêmicas, houve também a criação de instituições não
propriamente acadêmicas, mas que formularam pensamento bastante consistente
e influente, como o Royal Institute of International Affairs (RIIA), conhecido
como Chatam House, em Londres, no ano de 1920, e o Council of Foreign
Relations (CFR), em Nova Iorque, em 192159. Estas instituições são verdadeiros
think tanks, que produzem, até os dias atuais, conhecimento para alimentar a
formulação e a implementação de políticas externas destes países60.

Conforme anota GUIMARÃES, muitos dos autores e estudos pioneiros deste


período concentravam-se em estudar as causas da guerra, buscando
paralelamente os caminhos para a paz. As questões estudadas, direta ou
indiretamente, estavam relacionadas ao tema da guerra e da paz, como, por
exemplo: segurança, desarmamento, imperialismo, negociação diplomática,
balança do poder e geopolítica61.

De acordo com as narrativas convencionais do campo acadêmico de RI, a


gênese desse campo está vinculada a um “idealismo entre-guerras”, no qual os
58
PORTER (2002, p. 78).
59
PARMAR (2002, p. 53-54).
60
GUIMARÃES (2001, p. 28-29).
61
GUIMARÃES (2001, p. 24).
35
estudiosos aparentemente estariam mais preocupados em encontrar soluções
utópicas para o problema da guerra e paz do que em analisar a realidade como ela
realmente era, ou, como precisamente expressou Brian SCHMIDT (2002, p. 9),
“the cold hard facts that constitute the daily practice of politics among nations”.
Estas narrativas reproduzem o conhecimento convencional, embora, como
anotou este autor, não venha sendo devotada uma atenção muito cuidadosa ao
exame da história do campo no período entre-guerras. O autor destaca a
predominância desta narrativa:

“The assumption that the scholarship of the interwar period was characterized by
the hegemony of a liberal or, more notoriously, idealist paradigm is ubiquitous.
(…) Probably no other account of the field’s history as being characterized by an
idealist or liberal view has had a greater impact than the one E. H. Carr provided
in his seminal work The Twenty Years’ Crisis, which was first published on the
eve of the Second World War.”62
Esta visão é reforçada pela idéia da existência de um Primeiro Grande
Debate, entre idealistas e realistas. Vislumbramos os três temas principais que
teriam sido discutidos neste debate, retomando a tabela de WÆVER (1996)
exposta na introdução deste capítulo: em primeiro lugar, política, depois
filosofia, e, finalmente, ontologia. Política foi o principal tema discutido no
debate: Organizações Internacionais e Rule of Law versus Poder, com os
chamados idealistas defendendo a possibilidade de um papel relevante por parte
de Organizações Internacionais (sobretudo de uma delas, a Liga das Nações), e
acreditando no império do Direito Internacional (rule of law), enquanto os
realistas duvidavam que o Direito pudesse se sobrepor à lógica da luta pelo
Poder, tão presente nas relações internacionais. Filosofia também foi um tema
em disputa, como na discussão entre Utopia versus Realismo, e entre Moralidade
versus Relativismo. Ontologia, ou a natureza das relações internacionais, este foi
um tema sempre discutido em todos os quatro debates, já que é inevitável a
discussão quanto à própria natureza das relações internacionais.

Passamos agora a expor o pensamento dos assim chamados idealistas, para


em seguida comentarmos alguns eventos históricos que remataram por gerar uma
descrença quanto ao pensamento liberal, já que a realidade parecia não

62
SCHMIDT (2002, p. 12).
36
corresponder aos argumentos idealistas. Estes eventos históricos – mais
especificamente aqueles que arrastaram a Europa para uma Segunda Guerra
Mundial – a eles é atribuído, pelas narrativas predominantes em RI, o papel de
causa da ascensão do realismo político63. Este trecho de Barry BUZAN (1996, p.
48) resume bem este argumento:

“When International Relations first emerged as a distinct field of study, in was in


reaction to the carnage of the First World War, to the apparent casualness with
which that war had been allowed to occur, and the loss of control over the
development of civilisation that it seemed to represent. The field was driven by the
search for causes of war, and for prescriptions to prevent its recurrence. This first
round ended with the catastrophes of the 1930s and 1940s, and the failure of the
collective security mechanisms embodied in the League of Nations”
Em primeiro lugar, devemos comentar brevemente o próprio termo que foi
cunhado e vem sendo reproduzido para rotular o pensamento liberal do entre-
guerras: idealismo. Conforme comentou SCHMIDT (2002, p. 10), o termo
“idealismo” não reflete de forma adequada ou acurada o que foi produzido neste
período da história do campo, tanto por não servir a todas as correntes de
pensamento, como por se tratar de um rótulo pejorativo. Segundo ASHWORTH
(2002, p. 35-36), o termo adiciona pouco à nossa compreensão da história desta
disciplina e, além disso, gera uma sugestiva confusão com o termo que mais
freqüentemente é utilizado pela Ciência Política para descrever a escola filosófica
associada a Kant e Hegel. E conclui: “This situation is made more complex by
the fact that Carr never used the term idealism, but rather dismissed his rivals as
utopians”.

Os autores deste grupo realmente dividiam algo em comum: todos eram,


de uma ou outra maneira, liberais. A despeito disso, as idéias dos assim
chamados idealistas cobrem um amplo espectro de diferentes abordagens
epistemológicas, metodológicas e, também, ideológicas. De tal forma que
ASHWORTH sentenciou que “the use of the blanket term idealist is, from a
theoretical point of view, unhelpfully broad, and consequently an indefinable
term. The ‘idealists’ as a group just share too little in common” (2002, p. 36).

63
SODUPE (1992, p. 186-187); ASHWOTH (2002, p. 11-12).
37
Já Peter WILSON, na linha da escola de revisão histórica deste período
acadêmico, comenta que poucos autores desse grupo aceitariam tal rótulo.
Segundo ele, este idealismo, tal como descrito freqüentemente nas auto-imagens
de RI, nunca existiu. WILSON coloca então a seguinte questão: “if interwar
‘idealism’ never existed as a school of thought properly so-called – if it is merely
a rhetorical device invented by Carr to discredit a wide range of things he
happened to disagree with – than what did exist?”. É verdade, entretanto, que
neste amplo grupo de distintas orientações, a grande maioria dos escritores sobre
questões internacionais durante o período entre-guerras trabalharam dentro da
tradição de pensamento que poderia ser amplamente rotulada como
internacionalismo liberal64.

Comentando esta dificuldade, e sugerindo a adoção do rótulo


“internacionalismo liberal”, por suas vantagens, asseverou Paul RICH (2002, p.
117):

“´Idealism´ covers a wide array of writers and political positions and, in many
respects, a far better approach would be to label thinkers such as David Mitrany,
David Davies, Leonard Woolf and Alfred Zimmern as ´liberal internationalists´.
This is a term that they would themselves have broadly accepted and distinguishes
them from other more ´utopian´ writers such as H.G. Wells, as well as Marxists
who were committed to a very different project in the interwar years of socialist
internationalism”.
Segundo RICH, o internacionalismo liberal tornou-se um corpo
desenvolvido no pensamento político da Europa e dos Estados Unidos ao longo
do século XIX. Ele explica ainda que o internacionalismo liberal surgiu na
Europa lado a lado com o nacionalismo, nascido como conseqüência da
Revolução Francesa, no final do século XVIII. O internacionalismo liberal,
continua, aproximou-se de conceitos de paz e desenvolveu-os como “part of a
vision of international order that was linked to justice” (RICH, 2002, p. 117-118).
De acordo com este pensamento, a paz per se não necessariamente denotaria um
estado ideal a ser atingido, se o fosse atingido através das conquistas militares
como as de Napoleão ou de Bismarck. Era necessário desenvolver, em seu lugar,
uma idéia de ordem internacional fundada em uma estrutura legal que

64
ASHWORTH (2002, p. 34).
38
assegurasse direitos individuais e liberdades, bem como o direito à
autodeterminação nacional.

Esta tradição liberal do pensamento internacional havia caído em


descrédito no início do século XX. Isto porque esta tradição vinha se
preocupando com a codificação do Direito Internacional, como ocorreu na virada
do século com as Conferências de Paz de Haia, realizadas em 1899 e 1907:
“These only regulated war rather than outlawed it and appeared increasingly
ineffectual by the time hostilities came to an end in 1918” (RICH, 2002, p. 118).
O estabelecimento da Liga das Nações findou por estimular uma retomada do
pensamento internacional liberal. Em conseqüência, a idéia de paz foi
recuperada, tornando-se um objetivo a ser atingido através de uma estrutura legal
internacional, à qual as ações dos Estados deveriam progressivamente se
conformar. Neste contexto, “any resort to war would be increasingly perceived as
both irrational and contrary to the basic precepts of an advancing international
civilization rooted in European social and cultural standards”.

Assim mesmo, entretanto, mister se faz separar os autores em três


distintos traços (ou troncos) do pensamento internacionalista liberal:

“Hobbesianism (advocating a strong international authority to lay down the law);


Cobdenism (advocating non-interventionism and laissez faire); and New Liberal
Internationalism (advocating the construction of a wide range of functional,
welfare-oriented, bodies operating between and across states)” (WILSON, 1998, p.
14)
Feitas estas qualificações, podemos agora esclarecer o pensamento
idealista, conforme anunciado. Segundo GUIMARÃES (2001, p. 44), o movimento
idealista/liberal dominou não somente a retórica acadêmica, mas também a
retórica política. Os idealistas inspiravam-se no otimismo iluminista do século
XVIII, no liberalismo do século XIX e no idealismo de Woodrow Wilson:
“inspirando-se nas doutrinas liberais de Rousseau, Stuart Mill e outros, Wilson
esperava estabelecer as bases para uma nova ordem mundial, com paz e
prosperidade”, sendo um episódio marcante “o discurso de Wilson perante o
Congresso dos EUA, em 1918, no qual ele propôs a criação da Liga das Nações,
a remoção de barreiras ao livre-comércio e a promoção da autodeterminação dos

39
povos”65. Além destes pontos, também os catorze pontos incluíam outros tópicos,
como o fim da diplomacia secreta, a livre-navegação marítima e a limitação de
equipamentos bélicos66.

O idealismo marcou o início de um estudo mais sistemático das


relações internacionais. Investigando as causas da guerra, as principais delas
foram identificadas como sendo processos resultantes da natureza anárquica do
sistema internacional: na ausência de uma autoridade superior aos Estados,
entidades autônomas e soberanas, prevaleciam estes processos, sendo os mais
sobressalentes o militarismo, as alianças estratégicas e o equilíbrio de poder
(balance of power). Com sua preocupação normativa, os idealistas propunham o
que ficou conhecido como “analogia nacional”: seria necessário transformar o
sistema internacional, criando uma autoridade central capaz de manter a ordem e
prover procedimentos pacíficos para a solução de conflitos67.

Definindo este movimento idealista, MIYAMOTO (2000, p. 15) afirma


que “pode ser interpretado como um conjunto de princípios universais que
defende a necessidade de estruturar o mundo buscando o entendimento, através
de condutas pacifistas, onde a confiança e a boa vontade sejam os motores que
movimentam a História”. Segundo o autor, não foram poucos os que se
preocuparam com possibilidade de existência de um mundo pacífico ou mais
justo, onde os princípios morais (do “dever-ser”) pudessem subjugar os
comportamentos pautados por interesses puramente políticos, econômicos ou
estratégicos. O autor então realiza uma pesquisa pela história do pensamento
político ocidental e expõe alguns autores clássicos, como Marsílio de Pádua, no
século XIV, Thomas More, no século XVI, o Abade de Saint Pierre, Hugo
Grotius, Immanuel Kant, entre outros.

Os estudiosos idealistas que nos interessam, contudo, publicaram no


período entre-guerras. Entre os nomes mais notáveis deste período encontram-se
Alfred ZIMMERN, Harold LASSAWELL, Richard COVENTRY, Leonard WOOLF,

65
GUIMARÃES (2001, p. 44).
66
ARRUDA (1991, p. 289).
67
SODUPE (1992, p. 185).
40
David MITRANY e Norman ANGELL. Em virtude de uma série de fatores
individuais e históricos, os pensamentos destes autores diferem em larga escala
uns dos outros. Curiosamente, como afirmaram diversos autores, a produção
intelectual do período entre-guerras é muito pouco explorada neste campo de
estudos. Somente nos últimos dois lustros a literatura daquele período tem sido
investigada pelos estudiosos que se denominam historical revisionists68.

Peter WILSON (1998, p. 8-10), buscando demonstrar como o Idealismo


configurava uma ampla escola de pensamento, inventariou seu surpreendente
arranjo de características. Segundo ele, os idealistas acreditavam “in progress,
free will, reason, the primacy of ideas, and the malleability (perhaps even the
perfectibility) of human nature”. No campo da política, acreditavam que esta
poderia se conformar com um padrão ético, e no campo filosófico acreditavam
que a moralidade era absoluta e universal, e que a utopia poderia alterar a
realidade.

Com relação à guerra, principal tema discutido, os idealistas


acreditavam que, na sociedade moderna, esta havia se tornado obsoleta. Nesta
visão, a crescente interdependência entre as nações poderia engendrar a sua
obsolescência. Acreditavam na harmonia de interesses em torno da paz, sendo
suas fundações atribuídas ao capitalismo, ou ao socialismo, ao livre comércio, à
autodeterminação dos povos, e à descoberta de que na sociedade moderna o
atendimento dos auto-interesses poderia ser alcançado através da cooperação69.

Segundo os idealistas, a guerra era um produto de instituições


imperfeitas, da balança de poder, da anarquia internacional, do nacionalismo, do
preconceito, da ignorância, dos erros de cálculo, ou da perseguição de interesses
mesquinhos70. Os conflitos armados poderiam, então, ser superados através do
crescimento do papel do Direito Internacional e da propagação das Organizações
Internacionais, ou, para alguns desses liberais, da difusão dos valores

68
Uma boa coleção destes estudos foi publicada, em 2002, na edição de abril do periódico International
Relations, cujo número foi inteiramente indicado à produção intelectual do entre-guerras. Utilizamos,
neste trabalho, os artigos de SCHMIDT, ASHWORTH, PARMAR, PORTER e RICH.
69
WILSON (1998, p. 8).
70
WILSON (1998, p. 9).
41
democráticos pelo mundo. Conforme anotou WILSON: “the duty of the scholar
was to educate the masses in peace and internationalism”.

Como meios para a obtenção da paz, os idealistas propuseram, entre


outros: o desarmamento gradual dos países, a criação de um sistema de segurança
coletiva, a criação de um governo mundial, a diplomacia aberta, livre navegação
dos mares, a abolição das alianças, mecanismos de arbitragem ou mediação para
a solução pacífica dos conflitos, transformações sempre pacíficas, o fim dos
impérios coloniais, a autodeterminação dos povos, aumento da cooperação
técnica e social e a criação de uma força militar internacional, uma espécie de
“polícia internacional”. Por este amplo espectro de propostas é possível se
perceber o caráter predominantemente liberal destacado anteriormente e o que os
vincula como uma escola de pensamento. Como resumiu HUGHES: “Idealism is a
broad rubric incorporating many variations of belief concerning the appropriate
definition and organization of community”71.

Conforme as narrativas prevalecentes, como dito, os acontecimentos


históricos ocorridos na década de 1930 resultaram em uma descrença no
liberalismo. O papel que a Liga das Nações deveria exercer não foi cumprido
como esperado. O comentário duro do historiador HOBSBAWN (1994, p. 42) nos
traduz a ineficiência da instituição:

“A Liga das Nações foi de fato estabelecida como parte do acordo de paz e
revelou-se um quase total fracasso, a não ser como uma instituição coletora de
estatísticas. Contudo, em seus primeiros dias resolveu um ou duas disputas
menores, que não punham a paz mundial em grande risco, como a da Finlândia e
Suécia sobre as ilhas Åland. A recusa dos EUA a juntar-se à Liga das Nações
privou-a de qualquer significado real.”
A Liga não conseguiu tomar as medidas quando era necessário. Segundo
HOBSBAWN (1994, p. 44), houve alguns marcos miliares na estrada que conduziu
à Segunda Guerra Mundial. Entre os marcos rumo à guerra, estão as agressões
pelas três potências insatisfeitas (Alemanha, Itália e Japão), que já se
encontravam ligadas por uma série de tratados desde meados da década de 1930:
a invasão da Manchúria pelo Japão, em 1931; a invasão da Absínia pela Itália,

71
HUGHES (????, p. 59).
42
em 1935; a intervenção ítalo-germânica na Guerra Civil Espanhola (1936-1939);
a invasão da Áustria pela Alemanha, no início de 1938; a destruição da
Tchecoslováquia, também em 1938, e a ocupação alemã do que restou do ataque,
em março do ano seguinte; e a ocupação italiana da Albânia, logo em seguida.
Ao final, como marco histórico fundamental, as exigências alemãs à Polônia, que
de fato levaram ao início efetivo da guerra.

Vistos de outro ângulo, HOBSBAWN diz que podemos contar estes


marcos de um modo negativo: a não-ação da Liga contra o Japão; a ausência de
qualquer medida efetiva contra a Itália, em 1935; a não-reação da Grã-Bretanha e
da França quando, em 1936, a Alemanha de Hitler denunciou unilateralmente o
Tratado de Versalhes e reocupou a região da Renânia; a recusa dos britânicos e
franceses a intervir na Guerra Civil Espanhola, sob o pretexto de respeito ao
princípio da não-intervenção; a não-reação à ocupação da Áustria e o recuo
diante da chantagem alemã sobre a Tchecoslováquia, que resultou no chamado
Acordo de Munique, de 1938. Somou-se a estes marcos ainda a recusa da União
Soviética a permanecer opondo-se a Hitler, em virtude do pacto Hitler-Stalin, de
agosto de 1939 (HOBSBAWN, 1994, p. 44-45).

É neste contexto histórico conflituoso que emerge a crítica realista aos


assim chamados idealistas. Na verdade, a herança da tradição realista no
pensamento político ocidental remonta à Antigüidade Clássica, com a obra de
Tucídides, sendo recuperada no pensamento político moderno por Maquiavel e
Hobbes. Conforme comentou ROCHA (2002, p. 265):

“O realismo é tido como o principal discurso teórico e o mais tradicional das


relações internacionais, aquele com o qual os demais dialogam, aquele que
primeiro definiu o próprio campo de estudos. (...) uma leitura generosa de seus
argumentos nos auxilia a compreender a interação de unidades soberanas em um
contexto anárquico, não importando se nos estamos referindo a Estados nacionais,
no sistema de Westfália, de Cidades-Estado, na Grécia antiga ou na Itália
renascentista, ou, ainda, de blocos de países de um sistema que poderá vir a se
formar no futuro distante.”
Segundo o argumento realista referido, os agentes os quais importa
compreender o comportamento para explicarmos as relações internacionais “são,
em um sentido mais amplo, as unidades soberanas que integram o sistema

43
internacional; em um sentido mais restrito e no contexto atual, são os Estados
nacionais” (ROCHA, 2002, p. 265).

Baseando-se na experiência histórica do sistema de Estados europeu, do


século XVII ao XIX, o Realismo buscou elaborar um conjunto de proposições
teóricas com as quais tenta explicar a política internacional do início do século
XX72. O Realismo surgiu, pois, como uma crítica ao Idealismo. A crítica realista
defendia a elaboração de um conhecimento científico que analisasse o mundo do
ser, em vez da preocupação com as prescrições políticas, do mundo do dever-ser.
Segundo os realistas, embora o movimento idealista “dominasse a retórica
política e acadêmica no período entre-guerras (1919-1939), pouco se logrou
concretizar com suas propostas, sendo evidência disso o novo conflito mundial”
(GUIMARÃES, 2001, p. 44).

A literatura costuma identificar algumas premissas fundamentais a partir


das quais o Realismo buscar explicar as relações internacionais. A primeira é
exatamente esta descrita por ROCHA: os Estados são os atores principais. Outros
atores são considerados menos importantes ou mesmo irrelevantes. Organizações
Internacionais, por exemplo, não possuem independência de seus membros, que
são Estados autônomos, independentes e soberanos. Em suma, devemos
compreender as ações dos Estados, e as relações interestatais73.

A lógica de comportamento dos Estados, segundo os realistas, não se


conforma com aquela visão apresentada pelos internacionalistas liberais. Isto
porque os Estados são considerados atores racionais, que perseguirão seus
objetivos de maneira egoísta, preocupados sempre com as questões relacionadas
à política de poder, visando a preservação de sua soberania e de sua segurança.
Neste ambiente internacional hostil, já que os interesses nacionais são
freqüentemente contraditórios, prevalece a luta pelo poder. Não há, para os
realistas, harmonia de interesses, conforme o pensamento liberal 74. Em

72
SODUPE (1992, p. 187).
73
Alguns textos foram utilizados, em conjunto, para os parágrafos que seguem: G UIMARÃES (2001);
ROCHA (2002); SODUPE (1992); DOUGHERTY & PFALTZGRAFF (1993); VIOTTI & KAUPPI (2001); BEDIN
(????);
74
SODUPE (1992, p. 187-188).
44
conseqüência, os realistas vêem com descrédito o papel do Direito Internacional
(rule of law) e das Organizações Internacionais.

Os realistas defendem a separação entre a política e a moral. Na condução


do Estado, princípios morais em suas formulações abstratas não podem ser
aplicados a ações políticas específicas. A crítica realista, então, submete a ética à
política, enquanto os idealistas acreditavam que a política poderia se submeter a
padrões éticos, como visto. Para os realistas, a política é sempre política de
poder; nenhum padrão ético é aplicável às relações internacionais, já que os
Estados são entidades completas e auto-suficientes, expressando as relações entre
eles apenas o acordo ou o conflito entre vontades independentes. Em resumo: não
há qualquer noção de obrigações mútuas entre os Estados.

Estabeleceu-se, segundo a narrativa predominante, o Primeiro Grande


Debate. Importante notar que mesmo as obras que iniciaram os debates teóricos
já estavam preocupadas com esta disputa acadêmica. O livro de Edward H.
CARR, The Twenty Years’ Crisis, considerado freqüentemente como a obra
fundadora do campo de estudos acadêmico das Relações Internacionais, já reflete
de forma bastante destacada o que seria posteriormente denominado como
Primeiro Grande Debate – este debate teria como pólos as abordagens realista –
a qual ele próprio defendia – e a idealista – termo cunhado pelos realistas para
denominar aqueles estudos iniciais que tinham por objeto sobretudo identificar as
causas da guerra, buscando paralelamente de forma utópica os caminhos para a
existência de uma ordem política internacional livre dos conflitos violentos.

O então professor da University College of Wales pretende com este


texto, escrito durante o ano de 1939 porém somente lançado nos primeiros dias
da Segunda Guerra Mundial, traçar um quadro introdutório ao estudo das RI,
analisando os vinte anos de crise do entre-guerras (1919-1939). No início de sua
exposição o autor já começa a traçar as duas atitudes que percebe nos textos de
ciências políticas da época. A primeira, baseada na tradição kantiana, a qual ele
denominou como utópica, por acreditar no poder da vontade humana diante da
realidade fática. A outra corrente de cientistas políticos viria para dar um caráter

45
ainda mais realista à ciência, desprezando a construção de modelos ideais para
analisar somente o mundo do ser. Logo no início de sua obra o autor expôs as
suas correntes:

“A antítese utopia-realidade – uma balança que sempre se aproxima ou se afasta do


equilíbrio, jamais o atingindo completamente – é uma antítese fundamental que se
revela em muitas formas de pensamento. Os dois métodos de abordagem – a
tendência a ignorar o que foi e o que é, e a tendência a deduzir o que deveria ser
partindo do que foi e do que é – determinam atitudes opostas com relação a todo
problema político. ‘É uma eterna disputa’, como argumenta SOREL, ‘entre os que
imaginam o mundo de modo a adaptá-lo à sua política, e os que elaboram sua
política de modo a adaptá-la às realidades do mundo.” (CARR, 1939 [1981], p. 17)
Esta imagem acerca do caráter utópico comum a todas as ciências em seu
nascimento foi bordada por CARR em seu primeiro capítulo de Vinte Anos de
Crise – 1919-1939. Ele afirmou ainda, baseando-se na sociologia do
conhecimento de Karl MANNHEIM ser esta atitude, ao menos inicialmente,
esperada, pelo aspecto nascente do campo de estudos da política internacional:

“Como outras ciências na infância, a ciência da política internacional tem sido


marcadamente e francamente utópica. Ela se encontra no estágio inicial, no qual o
desejo prevalece sobre o pensamento, a generalização sobre a observação, e poucas
tentativas são efetuadas de uma análise crítica dos fatos existentes e dos meios
disponíveis” (CARR, 1939 [1981], p. 12)
Assim sendo, CARR estabeleceu-se como um crítico das idéias dos
utópicos, dando maior importância aos fatos reais, como as questões de poder, a
preocupação notável dos Estados com a segurança nacional e com o investimento
em forças militares, vistas como necessárias para o alcance dos interesses
nacionais. Entretanto, como anota GUIMARÂES (2002, p. 25), “embora crítico dos
utópicos, Carr conclui, de maneira pragmática mas deixando transparecer sua
preocupação normativa, que as teorias de RI devem conter tanto elementos de
utopia como de realismo”.

Partindo do que chamou de pedras fundamentais da filosofia realista,


CARR elaborou a sua crítica realista. Estes três princípios essenciais, segundo ele
implícitos na doutrina de Maquiavel, são:

“Em primeiro lugar, a história é uma seqüência de causa e efeito, cujo curso se
pode analisar e entender através do esforço intelectual, porém não (como os
utópicos acreditam) dirigida pela ‘imaginação’. Em segundo lugar, a teoria não cria
(como presumem os utópicos) a prática, mas sim a prática é quem cria a teoria. (...)

46
Em terceiro lugar, a política não é (como pretendem os utópicos) uma função da
ética, mas sim a ética o é da política.” (CARR, 1939 [1981], p. 86)
É inegável a influência da obra de CARR no campo teórico das RI.
Como argumenta Eiiti SATO, “Vinte Anos de Crise não é uma obra teórica, mas
sim um esforço de interpretação de uma realidade conturbada e perturbadora que
era o mundo dos anos do entre-guerras. As categorias teóricas são instrumentos
que ajudam a entender essa realidade, organizando e dispondo os fatos e as
possibilidades”. E comenta: “Essa é, na verdade, uma característica comum às
obras que permanecem”75 .

Posteriormente ao livro de CARR, outro autor viria a refinar os


argumentos realistas e traçar o que seriam as bases da abordagem predominante
até nossos dias: Hans MORGENTHAU. Em sua obra Politics Among Nations, de
1948, ele expõe suas críticas à abordagem idealista e ergue os pilares do realismo
político nas Relações Internacionais. Nestes trechos abaixo, o autor adota uma
postura praticamente idêntica à de CARR, quanto às duas tradições do
pensamento político. Em primeiro lugar, ele afirma que a história do pensamento
político moderno poderia ser resumido como o debate entre duas escolas, que
diferem por suas concepções do homem, da sociedade e da política. Em seguida,
expõe a escola que chamou de idealista:

“A primeira acredita que uma ordem política racional e moral, derivada de


princípios abstratos, válidos universalmente, pode ser estabelecida hic et nunc. Ela
pressupõe que a natureza humana é boa e maleável sem limites e atribui a
incapacidade da ordem social em corresponder às normas racionais, a uma falta de
conhecimento e de inteligência, a instituições sociais antiquadas ou à perversidade
de certos indivíduos isolados ou de certos grupos. Ela confia na educação, na
reforma e no uso esporádico da força para remediar estes defeitos.”
(MORGENTHAU, 1948 [1990], p. 131)
Defendendo que uma teoria das relações internacionais deveria “conferir
ordem e significação a uma massa de fenômenos que, sem isso, apareceriam
desligados e ininteligíveis”, mas além disso, que ela deve passar pelos testes
empírico e pragmático, e não abstrato, ele expôs o pensamento realista:

“A outra escola acredita que o mundo, imperfeito como é do ponto de vista


racional, é o resultado de forças inerentes à natureza humana. Para tornar o mundo
melhor, devemos agir com estas forças e não contra elas. Sendo este mundo, por

75
SATO in Prefácio à nova edição brasileira e CARR (2001 [1939]).
47
inerência, um mundo de interesses opostos e de conflitos entre estes, não podem
nunca os princípios morais ser inteiramente realizados, mas devem, o mais
possível, ser aproximados através do equilíbrio sempre provisório dos interesses e
da solução sempre precária dos conflitos. Esta escola vê num sistema de restrições
e de equilíbrios um princípio universal para todas as sociedades pluralistas. Ela
invoca o precedente histórico, em vez dos princípios abstratos e tende para a
realização do mal menor em vez do bem absoluto.” (MORGENTHAU, 1948 [1990],
p. 131)
Assim como CARR, seu antecessor realista, MORGENTHAU
compreendia as relações internacionais como um ambiente no qual prevalecia a
política do poder. Ele formulou, no início de sua obra de 1948, o que identificou
como seis princípios do realismo político:

“1. O realismo político acredita que a política, tal como a sociedade em geral, é
governada por leis objetivas que têm suas raízes na natureza humana; 2. O
principal marco indicador que ajuda o realismo a encontrar o seu caminho no
domínio da política internacional é o conceito de interesse definido em termos de
poder; 3. O realismo não dota o seu conceito chave de interesse definido como
poder, de um significado fixado de uma vez por todas; 4. O realismo político está
consciente do alcance moral da ação política. Ele está também consciente da
inelutável tensão entre o imperativo moral e as exigências da ação política bem
sucedida; 5. O realismo recusa-se a identificar as aspirações morais de uma dada
nação com as lei morais que regem o universo; e 6. Em conseqüência, a diferença
entre o realismo político e as outras escolas de pensamento, é real e profunda. (...)
Intelectualmente, o realismo político sustenta a autonomia da esfera política, como
o economista, o jurista e o ético o fazem para as suas esferas.” (MORGENTHAU,
1948 [1990], p. 131-147)
Do outro lado do Atlântico, na Grã-Bretanha, também os argumentos
realistas tiveram bastante influência nos meios acadêmicos. O inglês Martin
WIGHT foi responsável pela propagação da corrente realista de pensamento,
embora sua obra possua um caráter que nem sempre permite classificações muito
estritas. Entretanto, como comentou GUIMARÃES (2002, p. 25-26), existem cinco
aspectos que caracterizam sua principal obra, publicada pela primeira vez em
1946, A Política do Poder, que, em conjunto, indicam seu posicionamento
realista. Em primeiro lugar, o autor analisa fundamentalmente o sistema de
Estados europeu, embora teça algumas considerações sobre o sistema
internacional que já não era mais meramente europeu. Em segundo lugar, WIGHT
busca compreender as relações entre Estados, desconsiderando outros atores
sociais. Em terceiro lugar, a obra trata essencialmente das relações de natureza
política, tratando muito pouco dos aspectos econômicos que permeavam os

48
assuntos internacionais. O penúltimo aspecto do livro é o mais significativo para
a sua classificação como um realista:

“Pelo seu título e conteúdo, a obra é associada à escola realista, embora não se
vislumbre intenção do Autor de apresentar uma teoria global da política
internacional – como MORGENTHAU (1948) o faz –, mesmo porque ele não
descreve sua posição como realista, não a apresenta como alternativa ao utopismo,
nem procura fazer uso da análise marxista da ideologia – como CARR (1939) o faz
–, não ataca o ‘moralismo’ nem propõe que sua análise sirva de inspiração para a
prática – como KENNAN (1952) o faz;”
O quinto e último aspecto da obra de WIGHT apontado por
GUIMARÃES diz respeito à ausência de preocupação do autor em levar em
consideração os trabalhos posteriores aos seus primeiros estudos na área de RI,
bem como em levar em consideração os debates teórico-metodológicos, como o
enfrentamento entre os tradicionalistas e os behavioralistas, que será abordado na
seção 3.2, logo adiante.

O Realismo configurou, segundo as visões predominantes, uma


resposta à falência intelectual e política do entre-guerras. O domínio dos
realistas, que se estabeleceu a partir de meados dos anos 1940, tem ainda forte
relação com o contexto histórico, de surgimento da bipolaridade de poder, no
pós-guerra. O período posterior à Segunda Grande Guerra caracterizou-se pela
denominada Guerra Fria. Este “acordo tácito” ou equilíbrio concertado implicou
na construção de áreas de influência, ou seja, parcelas do mundo nas quais a
superpotência antagônica não interferia. As quebras parciais deste acordo
caracterizam justamente os momentos de maior tensão mundial, nos quais o
mundo viu-se diante do perigo de uma nova guerra total – desta vez com
potencial destrutivo realmente total – e, quem sabe, do desaparecimento de
parcela considerável da população global, se não a sua destruição. Nesta divisão
do mundo – comumente caracterizada pela oposição Leste-Oeste – nenhuma
nação passou mais que momentaneamente de um lado a outro do campo de
batalhas ideológico. Conforme resumiu SOMBRA SARAIVA:

“O curso de duas décadas que vinculam o ano de 1947 ao de 1968, no âmbito das
relações internacionais, foi ditado pela supremacia de dois gigantes sobre o mundo.
Os Estados Unidos e a União Soviética assenhoraram-se dos espaços e criaram um
condomínio de poder que só foi abalado no final da década de 1960 e início da de
70” (SOMBRA SARAIVA, 2001, p. 19).

49
Depois de havermos exposto as posições e a influência que exerceram,
embora em momentos históricos distintos, o Idealismo e o Realismo, concluímos
com algumas palavras sobre a imagem do debate entre eles. Conforme
comentado brevemente na introdução deste capítulo, alguns autores, que se
denominam como revisores da história deste período do pensamento
internacional, têm apresentado visões sobre o debate que divergem – ou ao
menos se adicionam a elas – das narrativas predominantes.

WILSON (1998) escreveu um interessante artigo, que obteve considerável


repercussão no campo, cujo título já sugere sua opinião a respeito do debate: The
Myth of The First Great Debate. Conforme seu argumento, não houve
verdadeiramente um grande debate, no sentido de um enfrentamento direto de
oponentes idealistas e realistas. Nesse sentido, ele afirma:

“in the sense of a series of exchanges between interlocutors holding opposing


‘idealist’ and ‘realist’ points of view, the first great debate never actually occurred.
As a pedagogic device for bringing order to a bewildering array of theories and
approaches (…) the notion of a ‘first great debate’ is not without merit. But as a
statement of historical fact it is highly misleading” (WILSON, 1998, p. 1).
Entretanto, o próprio WILSON, no mesmo artigo, arrolou as repercussões –
favoráveis e críticas – da obra de CARR. Assim, após descrever a importância do
livro de CARR como evento literário, e citar alguns elogios vindos de acadêmicos
das mais variadas orientações, WILSON apresenta-nos algumas respostas às
críticas realistas. Fundamentalmente, os ataques sofridos pelo realista diziam
respeito ao seu relativismo moral (ou niilismo moral), que deixava no
pensamento político um vácuo moral, ou a suas pretensões científicas de
neutralidade, entre outras76.

Já Lucian ASHWORTH (2002), cujo artigo recebeu também um título


sugestivo, adota uma visão bastante peculiar do Primeiro Grande Debate: Did the
Realist-Idealist Great Debate Really Happen? A Revisionist History of
International Relations. Segundo o autor, a construção da idéia de um debate é
importante para compreendermos a dominância posterior do realismo e o
descrédito sobre o internacionalismo liberal:

76
WILSON (1998, p. 2-6).
50
“The construction of a realist-idealist debate is important because it justifies the
marginalization of liberal internationalism. The conventional wisdom in IR holds
that idealism (associated with liberal internationalist ideas and writers) was beaten
in a ‘Great Debate’ with realist thinkers such as Carr, Morgenthau and Niebuhr.”
(ASHWORTH, 2002, p. 34)
De forma semelhante a WILSON, ASHWORTH relata algumas das respostas
dos idealistas às críticas de CARR. Autores criticados por CARR, como Norman
ANGELL, Leonard WOOLF, Richard COVENTRY e Alfred ZIMMERN, escreveram,
sim, respostas à obra Vinte Anos de Crise, além de severas críticas a
MORGENTHAU, autor de Politics Among Nations.

O Realismo, segundo as narrativas do campo, dominou o estudo das


Relações Internacionais, sobretudo nos Estados Unidos. Este domínio estendeu-
se da década de 1940 ao final dos anos 1960, elas relatam. Porém, a história, do
modo como é mais comumente encontrada na literatura sobre este período da
Teoria das Relações Internacionais, expõe uma predominância de maneira muito
tranqüila. Havia críticas, que vinham inclusive dos teóricos das relações
internacionais que, a despeito da crítica realista, tão bem sucedida em sua
recepção nos meios acadêmicos, davam continuidade à tradição liberal do
pensamento político.

51
3.2 O SEGUNDO GRANDE DEBATE: A ABORDAGEM
TRADICIONAL E A REVOLUÇÃO BEHAVIORALISTA

Até a década de 1950, os estudiosos de Relações Internacionais (RI),


como visto no capítulo introdutório, valiam-se tradicionalmente do conhecimento
e dos métodos gerados no seio de outras Ciências Sociais, conferindo-lhe o
caráter multidisciplinar referido. Durante os anos 1950, entretanto, surgiu, em RI,
uma escola de pensamento que propunha um novo modelo de ciência, visando a
introdução da metodologia e do rigor das Ciências Naturais nas Ciências Sociais.
Este movimento ficou conhecido como Behaviorismo, inspirado pela chamada
“revolução científica” dentro das Ciências Sociais. Instaurou-se então, segundo
as auto-imagens prevalecentes, o Segundo Grande Debate. Nessa seção, o
objetivo é apresentar este debate, expondo a chamada revolução behavioralista,
bem como a resposta formulada em defesa da abordagem tradicional. Ao final,
serão trazidas algumas visões acerca deste debate, sobre sua natureza e
relevância.

Resumindo as posições em confronto no Segundo Grande Debate,


GUIMARÃES (2001, p. 44-45) contrapôs os dois pólos: de um lado defensores da
abordagem tradicional das RI (ou Tradicionalismo), que utilizavam os métodos
inspirados nos da História, da Filosofia, do Direito, e de outras áreas das Ciências
Sociais, realizando o estudo científico das relações internacionais através
sobretudo da história diplomática e do direito internacional; de outro, surgida
como desafio a esta abordagem tradicional, a chamada revolução behavioralista
(ou Behaviorismo) defendia, em contraposição, a construção de conhecimento
científico em RI com base em métodos espelhados na rigorosidade específica das
Ciências Naturais, inspirando-se nos modelos em voga na Ciência Política norte-
americana, preocupados em formular hipóteses explicativas comprováveis
empiricamente através de processos precisos de mensuração. Conforme nos traz
GUIMARÃES, de PEIXOTO:

“Na ótica dos tradicionalistas, RI constitui ‘uma disciplina humanista de pleno


direito, envolvendo uma perspectiva simultaneamente filosófica, histórica, jurídica
e sociológica. Não é e jamais poderia ser matéria estritamente científica ou técnica
(PEIXOTO, 1997, p. 27)’”.
52
GUIMARÃES resumiu, também com exatidão, a proposta
behavioralista:

“a proposta da corrente behavioralist, que em RI alcança seu apogeu nas décadas


de 1950/60, era tornar RI uma disciplina científica [grifo no original], com
capacidade de explicar e predizer os problemas e questões estudadas o que,
segundo a referida corrente, não era possível através das abordagens
tradicionalistas, que não ofereciam instrumentos teóricos e analíticos, limitando-se
aos estudos descritivos e muitas vezes prescritivos ou normativos”.
Como destacou Fred HALLIDAY (1999, p. 42), o Behaviorismo nasceu, nos
anos 1950 e 1960, da revolução científica dentro das ciências sociais,
autoproclamando-se como uma alternativa às considerações históricas e
empíricas: “A escola behaviorista anunciou a possibilidade de uma nova ciência
social quantitativa, a-histórica e rigorosa, no campo internacional e em outras
áreas”.

A principal preocupação do movimento behavioralista era uma abordagem


científica mais positivista, nas RI, realçando os fatos observados, mensurações
quantitativas e comprovação de hipóteses explicativas através de testes
conduzidos com rigorosidade (BUZAN, 1995, p. 199). O resultado esperado pelos
behavioralistas, em conseqüência, era o desenvolvimento de teoria cumulativa,
vale dizer, proposições teóricas provadas verdadeiras levariam ao acúmulo de
conhecimento teórico, avançando cada vez mais o nosso conhecimento do objeto
de estudos, tal como supostamente ocorria nas Ciências Naturais.

Embora o debate entre tradicionalistas e behavioralistas haja resultado em


um impasse – que, no mais, dura até os dias de hoje – este debate tornou os
escolares de Teoria das Relações Internacionais (TRI) mais conscientes sobre os
aspectos metodológicos, ontológicos e epistemológicos da pesquisa científica
(BUZAN, 1995, p. 199). A abordagem tradicional das relações internacionais não
possuía esta preocupação com os métodos e o rigor científico, como destacou
BUZAN:

“Traditional approaches to international relations were informed more by history


and law than by natural science, and at that time only a few analysts in the
discipline had knowledge of scientific methods. Not everyone was convinced (then
and now) that the use of natural science methods was appropriate in the social
sciences. But for the behaviouralists, the problem was that explanation in
international relations was methodologically confused and lacking in rigour.”
53
O Segundo Grande Debate concentrou-se em primeiro lugar, portanto,
sobre estas questões metodológicas. Ao lado destas questões metodológicas, na
busca de rigorosidade científica, surgiu também um outro debate paralelo, este
epistemológico: o problema do nível de análise77. Na busca de um estudo mais
“científico” (leia-se: positivista), os behavioralistas defendiam a necessidade de
se especificar e diferenciar as fontes explicativas de qualquer teoria. Esta
preocupação assolou a TRI, como anotou BUZAN, como conseqüência do
impacto da “general systems theory as a way of thinking about a wide range of
physical and social phenomena”. Segundo o argumento behavioralista, a
abordagem tradicional mesclava, assim como o fazia a História, diferentes locais
e fontes de explicação, e isso tanto enfraquecia as tentativas de se criar teorias,
como impedia o desenvolvimento de uma ciência cumulativa (BUZAN, 1995, p.
199).

Conforme expôs com a clareza habitual GUIMARÃES (2001, p. 17), “a


questão derivava de um debate epistemológico mais amplo, no que se refere a
duas abordagens utilizadas nas Ciências Sociais: a atomística e a holística [grifo
no original]”. A primeira abordagem defende que um melhor entendimento do
objeto de estudos será alcançado se subdividirmo-lo em suas partes componentes,
enquanto a outra parte da premissa básica de que devemos compreender a
estrutura do próprio sistema para conhecermos o comportamento e a construção
das partes. Em RI especificamente, em um momento posterior, “a partir da
publicação do livro de WALTZ (1979), sobre teoria, essas duas abordagens
passaram a ser mais amplamente conhecidas, respectivamente, como
reducionista e sistêmica [grifo no original]” (GUIMARÃES, 2001, p. 17).

Se retomarmos a tabela construída por WÆVER (1996), trazida na


introdução deste Capítulo, veremos que os temas discutidos no Segundo Grande
Debate foram estes expostos acima, a saber: Metodologia e Epistemologia, além
da Ontologia (este último um tema discutido em todos os debates). Apresentados
os temas em discussão, passamos agora a expor brevemente os argumentos de

Sobre o denominado “problema do nível de análise”, utilizamos os textos de BUZAN (1995),


77

GUIMARÃES (2001), ROCHA (2002) e WENDT (1987).


54
cada um dos participantes do debate: os defensores da abordagem tradicional e os
desafios apresentados pela revolução behavioralista.

Dois textos são considerados como fundamentais neste debate: a defesa da


abordagem tradicionalista (ou clássica) feita pelo inglês Hedley BULL em 1966 e
a subseqüente sustentação favorável à abordagem behavioralista (ou científica),
pelo norte-americano Morton KAPLAN, publicada no número seguinte do
prestigiado periódico World Politics.

Fred HALLIDAY (1999, p. 42) critica o caráter adquirido pelo debate, de


um confronto entre duas tradições nacionais: uma abordagem “inglesa” e uma
“americana”. Do lado tradicional, BULL e Fred NORTHEDGE, também inglês, e do
lado behavioralista, KAPLAN e James ROSENAU, um teórico canadense, mas
atuante na academia norte-americana. Segundo HALLIDAY,

“esta má representação, além de obscurecer as questões filosóficas envolvidas,


serviu para apresentar as relações internacionais como que, de alguma forma,
agrupadas em dois campos, implicitamente monolíticos e nacionais. Ao fazê-lo,
escondeu a sua diversidade, como a ascensão da economia política internacional no
caso britânico e a grande amplitude de abordagens teóricas e políticas no
americano. Em outras palavras, serviu para reforçar a ortodoxia e a polêmica”.
Ultrapassada esta acurada observação de HALLIDAY, podemos tratar
especificamente dos argumentos contidos nos textos aos quais nos referimos. O
primeiro, de BULL, oferece uma excelente exposição das abordagens. O autor que
defende a abordagem tradicional (ou clássica) das relações internacionais a
descreve como sendo

“a abordagem teórica que parte da filosofia, da história e do direito e que se


caracteriza sobretudo por basear-se explicitamente no exercício do julgamento e
por partir de premissas segundo as quais, a) se nos limitarmos a padrões estritos de
verificação e prova muito pouco de significativo pode ser dito sobre as relações
internacionais; b) as proposições genéricas sobre este tema derivam
necessariamente de um processo cientificamente imperfeito de percepção ou
intuição; e c) essas proposições devem ser consideradas como de caráter
experimental e inconclusivo, devido a sua origem dúbia” (BULL, 1990, p. 35),
enquanto a abordagem behavioralista (que ele chama de científica) é a daqueles
que “anseiam por uma teoria das relações internacionais cujas proposições
estejam baseadas em provas lógicas ou matemáticas ou em estritos
procedimentos de verificação empírica” (BULL, 1990, p. 1).

55
Os estudos realizados neste campo de estudos, até a década de 1950,
independente das orientações teóricas ou das visões de mundo apresentadas,
resultavam de esforços baseados na abordagem tradicional – nesta abordagem
trabalharam, por exemplo, tanto os chamados idealistas, como seus críticos
realistas. Nesse sentido, BULL comenta ser fácil identificar esse enfoque nas
várias sistematizações levadas a efeito a partir do século XX, em “trabalhos
como os de Alfred Zimmern, E. H. Carr, Hans Morgenthau, Georg
Schwartzenberger, Raymond Aron e Martin Wight”. Acrescenta ainda,
chamando de clássica esta abordagem das relações internacionais, que este
mesmo enfoque foi utilizado pelos precursores do campo, desde filósofos
políticos como Maquiavel e Burke, até historiadores, como Heeren e Ranke,
passando por juristas internacionais, como Vattel e Oppenheim, e panfletistas,
como Gentz e Cobdem.

Após apresentar resumidamente a abordagem científica, como visto


acima, BULL ironiza a relação que os partidários dessa abordagem possuem com
a abordagem clássica. Segundo ele, alguns a consideram sem valor algum e se
atribuem o galardão de haver fundado uma ciência inteiramente nova, enquanto
outros reconhecem algum valor nela, tendo um comportamento “até certo ponto
afetivo com relação a ela, assim como o do proprietário de um automóvel do
último modelo ao contemplar um carro antigo”. Em ambos os casos, entretanto,
os behavioralistas esperam e acreditam que a sua orientação teórica venha a
sobrepujar completamente a anterior, fadada inexoravelmente a sucumbir afinal,
por sua imprecisão.

Em seguida, BULL apresenta alguns dos estudiosos – e estudos –


partidários desta nova orientação científica:

“A assim chamada abordagem científica das relações internacionais está presente


na teoria dos sistemas internacionais, desenvolvida por Morton A. Kaplan e outros,
nas várias extrapolações internacionais da teoria dos jogos de John Von Neumann e
Oskar Morgenstern, na teoria da barganha de Thomas C. Schelling, nos trabalhos
sobre comunicação social de Karl W. Deutsch, no estudo de William H. Riker
sobre coalizões políticas, nos modelos de política exterior formulados por George
A. Modelski e outros, nos estudos matemáticos sobre a corrida armamentista e os
conflitos mortais de Lewis F. Richardson e nas teorias dobre os conflitos
desenvolvidas por Kenneth Boulding e Anatol Rapoport. Este enfoque parece

56
também ter exercido um papel importante sobre o conteúdo da chamada ´pesquisa
da paz´”.
Como ocorre com todos os agrupamentos de teóricos, em certa medida
geralmente arbitrários, também existem discrepâncias no seio da corrente
behavioralista. Essa abordagem apresenta-se de maneira diferente nos diversos
autores citados por BULL, que justifica o agrupamento pela necessidade de
limitá-los para a formulação da crítica, destacando entretanto que “é perigoso
reuni-los todos em um só feixe e quase inevitável que as críticas dirigidas ao
grupo como um todo sejam injustas para com alguns de seus componentes”.

Após essa ressalva, o autor apresenta então suas críticas, às vezes


irônicas, às vezes até mesmo indelicadas, mas sempre bastante contundentes.
Antes, entretanto, de atacar diretamente a escola científica, que classificou como
“decididamente perigosa” – na medida em que combate a abordagem clássica e
tem por finalidade substituí-la – BULL destaca o avanço do movimento
behavioralista na academia norte-americana, como segue:

“Nos últimos dez anos, a escola científica evoluiu, nos Estados Unidos, de
atividade bizarra de alguns estudiosos do meio acadêmico das relações
internacionais para uma situação em que pode ser considerada, sem muito esforço,
como a nova metodologia ortodoxa da matéria. A entrega do prêmio de melhor
estudo do ano de 1963, pela American Political Science Association, a um
partidário da escola clássica (Inis Claude, autor de Power and International
Relations) teve já a aparência de uma ação perversa da retaguarda.”
O texto de BULL, é bom que se recorde o leitor, foi publicado em 1966. A
influência da corrente behavioralista vinha se fazendo ouvir nos meios
acadêmicos de RI desde a segunda metade dos anos 1950. Entretanto, a
influência foi diferente em cada lado do eixo anglo-americano de produção de
discursos teóricos. A academia estadunidense sofreu um impacto
incomparavelmente superior desta novel abordagem, se comparado aos efeitos
produzidos entre os estudiosos britânicos. BULL comenta esta diferença:

“Ao contrário, na comunidade acadêmica britânica a aplicação do enfoque


científico à teoria das relações internacionais não provocou virtualmente nenhum
impacto. O único inglês a prestar alguma contribuição significativa ao gênero novo
– Lewis F. Richardson – trabalhou isoladamente e não obteve reconhecimento
algum enquanto viveu. Há alguns anos seu trabalho foi exumado e ele proclamado
um grande pioneiro, mas isto foi feito por editores americanos, que se dirigiam a
um público predominantemente americano.”

57
Passemos então às críticas propriamente ditas formuladas por BULL à
abordagem científica. Segundo ele, a contribuição da escola científica para o
desenvolvimento da TRI vinha sendo e havia de continuar a ser pequena.
Entretanto, por ser perigosa para o campo de estudos, merecia ser analisada e
criticada de maneira racional e cuidadosa. E apresentou então sete proposições
contra o avanço da escola científica.

Em primeiro lugar, caso a TRI aceitasse se limitar ao que pode ser


provado ou verificado lógica ou matematicamente, de acordo com os
procedimentos estritos defendidos pelos behavioralistas, seguramente estaria se
afastando da própria essência da política internacional. A busca de neutralidade
científica, da forma como elaborada pelos partidários do Behaviorismo, era
inadequada para abordar o objeto de estudos das RI:

“Abstendo-se do que Morton Kaplan chama ´opiniões intuitivas´, ou do que


William Riker denomina ´literatura da sapiência´, eles se dedicam a um tipo de
puritanismo intelectual que os mantém (ou os manteria, se realmente sustentassem
essa posição) tão afastados da essência da política internacional quanto as freiras de
um convento vitoriano o estavam do estudo do sexo” (BULL, 1966 [1990], p. 4)
O campo acadêmico que estuda as relações internacionais
caracteriza-se, sempre segundo BULL, por possuir uma dependência da
capacidade de julgamento por parte do estudioso. Para verificar isso, basta
examinarmos algumas das questões principais sobre as quais o campo se
debruça. Algumas são questões morais e, sendo assim, por sua própria natureza
impedem a obtenção de respostas objetivas e que só podem ser analisadas,
esclarecidas, reformuladas e hipoteticamente respondidas partindo de um ponto
de vista arbitrário, de acordo com o método filosófico. Outras questões, mesmo
sendo empíricas, são de natureza fugidia e, por isso, sempre vão deixar pontos
vagos, “constituindo-se em algo assim como um tema de uma conversa que ainda
está por finalizar”. Mesmo na abordagem destas questões empíricas, além disso,
dependemos da intuição ou do julgamento tanto para a construção de hipóteses
de respostas a essas situações empíricas, como para testá-las, através de
observações imediatas e imprecisas da realidade, “observações que, em sentido
estrito, não teriam valor na lógica ou nas ciências exatas”. BULL então arrola uma

58
lista de questões destas naturezas (moral e empírica), que devem ser e só podem
sê-lo com o uso da abordagem clássica. Os behavioralistas, quando precisam
respondê-las, são sempre obrigados a evitá-las ou a abandonar seu próprio código
e recorrer, “abruptamente e sem reconhecê-lo publicamente, aos procedimentos
da escola clássica”. Eis a lista exemplificativa destas questões, um pouco
extensa, mas que demonstra o alcance dessa crítica:

“Por exemplo, o conjunto de Estados soberanos constitui uma sociedade, um


sistema político, ou não? A sociedade dos Estados soberanos, se existe, pressupõe
uma cultura ou uma civilização comuns? Se fosse esse o caso, a cultura comum
permeia a estrutura diplomática internacional na qual estamos tratando de operar?
Qual o lugar da guerra na sociedade internacional? O uso da força é sempre
contrário ao trabalho da sociedade, ou haverá guerras justas que se deve tolerar ou
mesmo requerer? Um Estado membro da sociedade internacional tem direito de
intervir nos assuntos internacionais de outro? Se for esse o caso, em que
circunstâncias pode dar-se a intervenção? Os Estados soberanos são os únicos
membros da sociedade internacional, ou ela se compõe, em última análise, dos
seres humanos, cujos direitos e deveres individuais superam os das entidades que
atuam em seu nome? Até que ponto a tendência dos fatos diplomáticos em um
dado momento é determinada ou circunscrita pela estrutura ou forma global do
sistema internacional; pelo número, peso específico e posição, conservadora ou
radical, dos Estados membros, e pelos instrumentos de ação que a tecnologia
militar e a distribuição da riqueza põem à sua disposição; pelo conjunto específico
de regras de jogo que orienta a prática diplomática à época determinada? E assim
por diante.”
É inevitável transcrever aqui a demonstração de toda a preocupação
carregada por BULL, ao constatar as conseqüências intelectuais e práticas do
avanço do movimento behavioralista, com todas as modificações que vinha
gerando, sobretudo nos meios acadêmicos norte-americanos:

“O estudante, cujo conhecimento da disciplina consista somente de uma introdução


às técnicas da teoria de sistemas, de teoria dos jogos, da simulação ou da análise de
conteúdo, está simplesmente privado de um contato maior com o assunto de seus
estudos e incapacitado de devolver quaisquer sentimentos com relação à atividade
prática da política internacional e aos dilemas morais que ela suscita”.
A segunda proposição enunciada por BULL deriva da primeira: “sempre
que os adeptos da escola científica lograram trazer alguma luz à substância dos
problemas, fizeram-no ultrapassando os limites de seu método e empregando a
abordagem clássica”. Exemplificando com comentários ao trabalho de Thomas
SCHELLING, um economista que realizou estudos, a partir da abordagem
científica, sobre o conceito de controle de armamentos, dos elementos de
dissuasão, da natureza da barganha e do lugar das ameaças de força nas relações

59
internacionais, BULL afirma que o que há de mais esclarecedor no trabalho – suas
observações a respeito da violência na política internacional – pode ser
categorizado como “julgamentos insuscetíveis de comprovação e teste, não tendo
sido e não podendo ser demonstradas por seu trabalho formal na teoria dos jogos
e da barganha” (BULL, 1990, p. 41). Estas observações esclarecedoras de
SCHELLING seriam, então, fruto da associação de seu interesse pelas técnicas
utilizadas com um sentido agudo de julgamento político, bem como a sua
habilidade filosófica ao desenvolver os problemas em termos de seus elementos
básicos. Os behavioralistas, segundo BULL, só contribuíram de maneira
significativa para a compreensão das relações internacionais quando se valeram
precisamente dos recursos abordagem tradicionalista por eles próprios criticados.

A proposição seguinte resulta da reflexão de BULL acerca das pretensões


epistemológicas dos behavioralistas confrontadas às limitações ontológicas das
relações internacionais. Afirma BULL: “minha terceira proposição diz que não é
provável que os membros da escola científica alcancem o tipo de progresso ao
qual aspiram”. Conforme o argumento de BULL, apenas temas periféricos haviam
sido tratados de maneira rigidamente científica. Ademais, há uma muito pequena
probabilidade de se alcançar, nas RI, um ponto no qual o nosso conhecimento das
relações internacionais se torne genuinamente cumulativo, possua uma
linguagem comum – diferente da confusão de terminologias e esquemas
conceituais concorrentes – e que os temas abordados de maneira científica
cheguem a formar um todo significativo, conforme a maior esperança da
abordagem behavioralista. Esta pequena possibilidade, para BULL, não provinha
de um esquecimento ou “atraso” deste campo de estudos, mas das próprias
características inerentes ao objeto de estudos e ao exercício do conhecimento:

“o número incontrolável de variáveis que qualquer generalização a respeito de um


Estado tem de levar em conta; a resistência do material ao controle experimental;
suas características de transformar-se diante dos nossos olhos e de escorrer-nos por
entre os dedos, mesmo quando tratamos de organizá-lo em categorias; o fato de que
as teorias produzidas e os eventos a que se referem relacionam-se não só como
sujeito e objeto, mas também como causa e efeito, o que possibilita que mesmo as
idéias mais inocentes contribuam para sua própria verificação ou negação” (BULL,
1990, p. 44)

60
O ataque seguinte, desferido diretamente contra Morton KAPLAN, mas
estendido a toda a escola científica, vem na forma contida na quarta proposição:
“eles prestaram um grande desserviço à teoria política concebendo-a como uma
atividade de construção e manipulação dos chamados ´modelos´”. BULL afirma
que, em sentido estrito, um modelo é um sistema dedutivo de axiomas e
teoremas. Porém, segundo ele, a popularização do termo findou por retirar-lhe o
rigor e coerência, sendo utilizado corriqueiramente para designar simples
metáforas ou analogias.

O uso de modelo, anota BULL, por mais valioso que tenha se revelado no
campo da economia e de outras matérias, revela-se deplorável no campo da
política internacional. Ele expõe o porquê da defesa dos modelos pelos
partidários da escola científica, para depois duvidar da contribuição destes para a
compreensão das relações internacionais:

“A virtude supostamente contida no uso dos modelos consiste em libertar-nos do


empecilho representado por referências constantes à realidade, deixando-nos livres
para estabelecer axiomas simples, baseados em poucas variáveis, a partir de que,
atendo-nos a uma rigorosa lógica dedutiva, podemos produzir especulações
teóricas amplas que nos guiarão como fachos de luz pelo mundo real, ainda que
seus detalhes permaneçam na sombra. Desconheço a existência de qualquer
modelo que tenha auxiliado a compreensão da realidade que não pudesse ser
expresso com os mesmos resultados como uma generalização empírica. No
entanto, não é essa a razão pela qual deveríamos evitá-los. O que o torna perigoso é
a liberdade de que o construtor do modelo goza com relação à disciplina imposta
pelo ato de olhar para o mundo; facilmente ele cai num dogmatismo que a
generalização empírica não permitiria, atribuindo ao modelo uma vinculação com a
realidade que ele não possui, e com freqüência, distorcendo o próprio modelo com
a importação de premissas adicionais a respeito do mundo, apresentadas sob a
roupagem de axiomas lógicos” (BULL, 1990, p. 48).
Para sustentar seu argumento, BULL analisa e comenta a obra de Morton
KAPLAN (System and Process in International Politics, de 1957). Nesta obra,
KAPLAN “elabora uma tipologia de sistemas internacionais, com base na
distribuição e configuração de poder e alianças” (GUIMARÃES, 2001, p. 17).
BULL critica os modelos construídos por KAPLAN: “Ele produziu modelos de
dois sistemas históricos e de quatro sistemas internacionais possíveis, cada qual
com suas ´regras essenciais´ de comportamento” (BULL, 1990, p. 48).

Após realizar uma exposição bastante elucidativa dos seis sistemas


internacionais, BULL afirma que
61
“Ao discutir as condições sob as quais as condições sob as quais o equilíbrio é
mantido em cada um desses sistemas e ao prever a probabilidade e o rumo de suas
transformações em outros sistemas, Kaplan parece recorrer a um tipo de
adivinhação bem mais arbitrário que as praticadas pela escala teórica que ele deseja
suplantar. Ao discutir os dois sistemas históricos, usa exemplos pertinentes
tomados da história recente, mas não há qualquer razão para supor que o
comportamento em futuros sistemas internacionais tenda a ser o mesmo. Ao
discutir os sistemas não-históricos, suas observações ou são extensões tautológicas
das definições que ele emprega, ou são julgamentos empíricos formulados de
maneira bastante arbitrária que, inclusive, não formam parte integrante do modelo
propriamente dito” (BULL, 1990, p. 49).
Refletindo de maneira crítica sobre o que denominou como sendo um
modismo intelectual (a construção de modelos), BULL credita esse modismo à
subordinação da investigação científica ao critério da utilidade prática das
teorias, abandonando-se a preocupação mais relevante, qual seja, a do critério da
verdade do conhecimento:

“A moda de construir modelos reflete uma tendência muito mais ampla e


duradoura do estudo dos assuntos sociais: a substituição das proposições sobre o
mundo e da questão ´são elas verdadeiras´ pela utilização de instrumentos
metodológicos e da questão ´são eles úteis ou não?´ Creio que essa mudança foi
negativa, embora se tenha tornado endêmica no pensamento da época recente”
(BULL, 1990, p. 50).
A crítica seguinte, na quinta proposição: “em alguns casos, o trabalho da
escola científica é distorcido e empobrecido pelo fetiche da medição” (BULL,
1990, p. 51). De acordo com o pensamento propagado pela corrente
behavioralista, cabe aos estudiosos de RI esforçarem-se por construir um
conhecimento rigoroso e preciso, espelhando-se no modelo de ciência utilizado
nas Ciências Naturais, quantificando-o sempre que possível. Este objetivo era
então buscado seja com a expressão das teorias em termos de equações
matemáticas, em uma versão mais extrema, ou simplesmente apresentando o
material empírico reunido em forma quantitativa.

Segundo BULL, esta operação de quantificação não é intrinsecamente


condenável, nem há nada de estranho, do ponto de visa lógico, em se expor uma
teoria sobre a política internacional em forma matemática. Os problemas
decorrem, na verdade, de outras fontes:

“As dificuldades surgem quando o empenho em contar e medir nos leva a ignorar
diferenças importantes entre os fenômenos que estão sendo contados ou medidos, a
atribuir a esses fenômenos uma significação que eles não têm, ou a nos deixarmos
levar pelas abundantes possibilidades de contagem que nosso campo oferece, a
62
ponto de não nos ocuparmos das indagações qualitativas que, na maioria dos casos,
entre são mais frutíferas” (BULL, 1990, p. 51).
BULL direciona suas críticas, neste ponto, aos estudos realizados por dois
partidários do behavioralismo: Karl DEUTSCH, e seu discípulo Bruce RUSSET.
Estes autores, em 1957 e 1963, respectivamente, se propuseram a investigar os
vínculos comunitários existentes entre as nações diferentes (Political Community
and the North Atlantic Area: International Organization in the Light of
Historical Experience, e Community and Contention: Britain and America in the
Twentieth Century). Para tanto, procuraram medir a comunicação social,
utilizando uma grande quantidade de dados estatísticos (referentes, por exemplo:
à proporção do total de recursos disponíveis que é dedicada ao comércio; à
proporção do total de correspondência enviada que se destina ao exterior, ou a
um destino particular; à relação entre acordos internacionais concluídos entre os
países investigados e o total de acordos concluídos entre os países investigados e
o total de acordos concluídos; à quantidade de bolsas de estudos; ou a “análises
de conteúdo” de jornais e literatura especializada).

Ocorre, argumenta BULL, que embora os trabalhos de DEUTSCH e RUSSET


sejam originais e sugestivos, a mera contagem dos fenômenos selecionados não é
suficiente, sendo imprescindível o tratamento de aspectos qualitativos. As
análises mais ricas, segundo ele, envolvem sempre atividades criticadas pelos
behavioralistas:

“na prática, tendemos a respeitar tais dados estatísticos apenas nos casos em que
eles confirmam impressões intuitivas que já tínhamos como, por exemplo, quando
os números de Russett confirmam, como de fato muitas vezes os fazem, o
julgamento, que fazemos com grande segurança de que, à medida que transcorre
este século, os Estados Unidos se tornam relativamente mais importantes para a
Grã-Bretanha que vice-versa.” (BULL, 1990, p. 51)
E mais adiante conclui, acerca do esforço dos dois autores mencionados:
“Sem dúvidas, também, os elementos mais pertinentes por eles desenvolvidos
são os julgamentos qualitativos que conseguem emitir a respeito da história
contemporânea.” (BULL, 1990, p. 51)

Na sua penúltima proposição, BULL afasta a necessidade da relação direta


entre o modelo de ciência adotado (clássico ou científico) e os ditames de rigor e

63
precisão: “a teoria da política internacional requer maior rigor e precisão, mas o
tipo de rigor e precisão que o tema admite pode ser facilmente obtido dentro do
método clássico” (BULL, 1990, p. 52).

São reconhecidas, por ele, algumas deficiências existentes em uma


considerável parcela dos estudos clássicos, e criticadas pelos behavioristas, como
a indefinição de termos, a inobservância de critérios lógicos de procedimentos ou
a ausência de explicitação de suas premissas. Reconhece ainda que deve haver a
preocupação com a construção de um conjunto de conhecimentos coerente,
preciso e organizado, fundamentos filosóficos da ciência moderna. Entretanto,
continua, muitos estudiosos da escola clássica não merecem as críticas
formuladas pelos defensores da abordagem científica:

“Na medida em que a escola científica representa um protesto contra o relaxamento


intelectual e o dogmatismo, ou contra os resíduos do provincianismo, todas as
razões devem ser-lhe dadas. Mas há muitos trabalhos de corte clássico aos quais
esse tipo de objeção não se aplica. Os estudos dos grandes internacionalistas (que,
pode-se dizer, formam a base da literatura tradicional sobre a matéria) são
rigorosos e críticos. Há numerosos autores contemporâneos, lógicos e rigorosos em
suas considerações, que não pertencem à escola que chamei de científica: Raymond
Aron, Stanley Hoffman e Kenneth Waltz são exemplos. Por outro lado, não é
difícil encontrar autores do ramo científico que perderam o sentido do rigor e da
crítica.” (BULL, 1990, p. 52)
Concluindo a sua lista de proposições, BULL (1990, p. 53) enuncia a
sétima e última: “os adeptos do método científico, por se afastarem da história e
da filosofia, privaram-se dos meios de autocrítica e, em conseqüência, têm uma
visão imatura e afobada de seu campo de trabalho e de suas possibilidades”.

Com o afastamento da história e da filosofia, bem como com o apego ao


método demonstrado pela escola científica, seus defensores perderam o sentido
histórico, crítico, moral e político:

“seu pensamento certamente se caracteriza pela falta do sentido de investigar a


política internacional de acordo com a tradição da qual eles são os mais recentes
herdeiros; pela insensibilidade ante as condições da história recente, que os
criaram, moldaram-lhe as preocupações e perspectivas e coloriram-nas de maneiras
das quais talvez não tenham consciência; pela ausência de qualquer desejo de
perguntar-se porque, se os frutos prometidos por suas pesquisas são tão grandes e
as perspectivas de traduzi-lo em ações concretas tão favoráveis, ninguém logrou
esses êxitos antes; por uma atitude não-crítica diante de suas próprias premissas e
especialmente diante dos conceitos morais e políticos que desempenham um papel
central, embora não reconhecido, em muito do que eles dizem”.

64
Esta última proposição é de extrema relevância, sobretudo pela crítica
apresentada à suposta neutralidade moral auto-atribuída pelos behavioralistas.
Comentando uma obra de Bernard CRICK, The American Science of Politics,
BULL afirma que pode haver poucas dúvidas a respeito da seguinte afirmação:

“a concepção da ciência da política internacional, assim como a da ciência da


política em geral, que cresceu e floresceu nos Estados Unidos da América, é devida
a atitudes especificamente americanas com relação às lides internacionais –
particularmente as premissas referentes à simplicidade moral dos problemas da
política internacional, à existência de ´soluções´ para esses problemas, à
receptividade dos que tomam as decisões políticas, aos frutos de pesquisa, e ao
grau de controle e manipulação que um país pode exercer sobre todo o campo
diplomático” (BULL, 1990, p. 53-54).
Após expor cada uma de suas sete proposições, BULL apresenta algumas
qualificações, como o reconhecimento de que a dicotomia é falha, na medida em
que obscurece muitas outras diferenciações de pensamento, além do
reconhecimento do mérito de um série de contribuições da escola científica, parte
valiosa que poderia, entretanto, ser inserida imediatamente na escola clássica.
Porém, alerta para a tolerância excessiva neste último irônico trecho:

“na presente controvérsia, o ecletismo, disfarçado de tolerância, é o maior dos


perigos; se formos receptivos a todas as escolas (porque ´algum dia ela pode
produzir algo´) e concedermos igualdade de direitos a todos os clichés (porque
´afinal existe um pouco de verdade no que ele diz´), os absurdos ditos à nossa
frente não terão fim. Haverá sempre um pouco de verdade no que diz um orador de
rua o que fala alto no ônibus, mas o que se deve perguntar é ´que lugar terão essas
manifestações na hierarquia de prioridades acadêmicas´” (BULL, 1990, p. 55).
E recomenda taparmos os ouvidos para o ruído produzido pela corrente
behavioralista: “os métodos e aspirações próprias que os teóricos da nova escola
trouxeram ao estudo de nosso campo levam-nos por um caminho falso, de
maneira que devemos permanecer resolutamente surdos a todos os apelos que
nos façam para segui-los” (BULL, 1990, p. 55).

O Segundo Grande Debate, entre o Tradicionalismo e o


Behaviorismo, teve severas conseqüências para o modo se desenvolveu a TRI, a
partir dos anos 1960, como veremos adiante. Destacamos até agora os principais
pontos discutidos no debate, que diziam respeito fundamentalmente a problemas
metodológicos, com os Behavioristas defendendo um modelo de ciência moldado

65
à semelhança do adotado nas Ciências Naturais, e os Tradicionalistas se
mantendo fiéis ao modelo científico herdado de outras Ciências Sociais.

A discussão do “problema do nível de análise”, conforme comentado


no início desta seção, foi outro tema debatido no Segundo Grande Debate. Trata-
se de um problema epistemológico, já que consiste na especificação e
diferenciação das fontes explicativas das teorias formuladas sobre as relações
internacionais.

O problema do nível de análise, em conseqüência, tornou-se um dos


principais temas em debate na TRI desde então. Este problema decorre de dois
truísmos acerca da realidade social, subjacentes à maioria das investigações
realizadas nas ciências sociais78. O primeiro sustenta que seres humanos e suas
organizações são atores sociais com propósitos e cujas ações ajudam a reproduzir
ou transformar a sociedade na qual eles vivem. O segundo afirma que a
sociedade é feita de relações sociais, que estruturam as interações destes atores79.
Tomados em conjunto, estes dois truísmos sugerem que agentes humanos e
estruturas sociais são, de uma maneira ou de outra, teoricamente
interdependentes ou entidades com implicações mútuas.

Resulta a necessidade de estabelecermos as relações entre as entidades


envolvidas na questão: agente e estrutura. Duas abordagens são predominantes
sobre este tema, como havíamos adiantado dez páginas acima. Segundo uma
abordagem reducionista (ou atomística), o entendimento será melhor conforme a
capacidade que o investigador tiver de dividir e explicar as partes componentes
de um sistema. Por outro lado, as abordagens sistêmicas (ou holísticas) repousam
sobre a premissa de que o todo possui uma natureza distinta das partes que o

78
Alexander WENDT em 1987 publicou no prestigiado periódico International Organization um
excelente artigo no qual apresentava o problema e as soluções possíveis do mesmo. Neste
trabalho o autor construtivista aponta a emergência, a partir da década de 1970, das
preocupações com o problema agente-estrutura em outras ciências sociais, como Geografia,
Sociologia, História Social, entre outras indicadas por ele (1987, p. 338).
79
WENDT (1987, p. 337): “(…) 1) human beings and their organizations are purposeful actors
whose actions help reproduce or transform the society in which they live; and 2) society is made
up of social relationships, which structure the interactions between the purposeful actors”.
66
compõem. BUZAN (1995, p. 200) realiza uma boa descrição comparada das duas
perspectivas:

“Atomism/reductionism is the highly successful methodology of the natural


sciences, and requires the fragmentation of a subject into its component parts. In
the reductionist approach, understanding improves as one is able to subdivide and
explain the component parts of the system ever more finely, as has been done with
such astounding success in physics, chemistry, astronomy and biology during the
twentieth century. A holistic/systemic approach rests on the premise that the whole
is more than the sum of its parts, and that the behaviour and even construction of
the parts are shaped and moulded by the structures embedded in the system itself.”
O debate sobre os níveis de análise exerceu um impressionante impacto na
TRI desde a década de 1950. A explicação para este fato, segundo BUZAN (1995,
p. 200-202), está no fato de que a idéia de níveis encaixava-se adequadamente ao
modo de organização do objeto de estudos de RI, habitualmente realizada em
termos de indivíduos, Estados e sistemas. Três autores norte-americanos foram
os principais responsáveis por trazer o problema para o centro das atenções da
TRI no final dos anos 1950 e na década seguinte: Morton KAPLAN, Kenneth
WALTZ e David SINGER.

A obra do primeiro norte-americano já foi comentada quando


apresentamos as críticas de BULL a ela, em sua quarta proposição. Esse livro foi
responsável por uma voga da teoria dos sistemas nas RI. Como já destacado,
KAPLAN construiu uma tipologia de sistemas internacionais, dois históricos e
quatro possíveis, e buscou inferir, com base em padrões de distribuição de poder
e/ou da configuração de alianças, hipóteses acerca do comportamento dos
Estados. Comenta GUIMARÃES: “o livro de Kaplan, que favorecia o Estado como
principal unidade de análise, deu início a uma série de estudos que passaram a
utilizar a abordagem sistêmica” (2001, p. 17).

Foi a obra de Kenneth WALTZ, Man, the State and War, de 1959, a que
teve o maior impacto nas RI, no que diz respeito à preocupação com o nível de
análise. Realizando uma ampla revisão da literatura que se preocupava em
investigar as causas da guerra, WALTZ identificou a existência de três grupos de

67
autores80. Cada grupo, segundo ele, utilizava-se de uma imagem, representando
um nível de análise distinto: o indivíduo, a sociedade ou o Estado e o sistema
internacional:

“Baseando-se em ampla revisão da literatura, Waltz conclui que um grupo de


estudiosos atribui as causas da guerra principalmente à natureza humana; para
outro grupo, a guerra se explicaria pela natureza do Estado; e para um terceiro
grupo, as causas da guerra estariam na natureza anárquica do sistema
internacional” (GUIMARÃES, 2001, p. 18).
WALTZ privilegia o nível de análise sistêmico, atribuindo à natureza
anárquica do sistema internacional a causa permissiva da guerra, enquanto aos
outros dois níveis seriam as causas eficientes. Enquanto KAPLAN havia
argumentado em favor da dominância do nível de análise estatal, WALTZ
favoreceu o nível sistêmico. O desenvolvimento da idéia de localizar a fonte de
explicação no nível sistêmico, como realizou o autor realista, moldou o
pensamento acerca do problema do nível de análise no campo de estudos:
“Waltz´s scheme separated out the international system, and particularly its
anarchic structure, as a location of explanation in its own right, and it was this
development of levels of analysis thinking in the discipline” (BUZAN, 1995, p.
201)

David SINGER foi o terceiro teórico norte-americano a que se refere a


literatura como responsável pela atenção ao problema do nível de análise.
Segundo BUZAN, sua contribuição foi um pouco menos importante. Entretanto,
sua resenha do livro de WALTZ, publicada em 1960 na World Politics, com o
título de “International Conflict: Three Levels of Analysis”, e o ensaio de título
“The Level-of-Analysis Problem in International Relations”, publicado no ano
seguinte. Nestes trabalhos, SINGER sugere a adoção de dois níveis amplos,
embora deixe claro que outros níveis podem também ser considerados:

“Segundo aquele Autor, o sistema internacional, pela sua amplitude, permitiria o


estudo de RI como um todo, ou seja, os padrões de comportamento entre os
Estados e os níveis de interdependência entre eles. A nível do Estado-nação poder-
se-ia enfocar o processo de tomada de decisão e examinar as condições e processos
domésticos que afetam a política externa.” (GUIMARÃES, 2001, p. 18)

80
Certamente, pelas dimensões da revisão bibliográfica realizada por WALTZ nesta obra, surgia,
ainda que timidamente, uma autoconsciência do campo de estudos de RI, como anotado por
WILSON (1998, p. 8).
68
Essa discussão predominantemente epistemológica teve a atração
verificada no campo de estudos, sobretudo, porque aumentou a independência do
campo de estudos de RI com relação à Ciência Política, como percebe BUZAN
(1995, p. 201): “The system level also had the attraction that it increased the
distinctiveness of international relations as a field, and gave some hope of establishing a
claim to be a discipline in its own right”.

A título de conclusão desta seção, podemos trazer uma divergência


encontrada na literatura. Esta divergência existe quanto à relevância teórica ou
simplesmente metodológica das questões levantadas pelos defensores de cada
corrente Com relação a este debate há duas posições. Por um lado alguns
autores, como Arend LIJPHART afirmam que este debate seria o mais importante
já testemunhado pelo campo de estudos, já que discutia questões mais
fundamentais da área:

“LIJPHART argues that the second ‘great debate’ was much more important than the
first debate, because it involved a more fundamental dispute than that between
realism and idealism. As he notes, both realism and idealism were part of the
traditional paradigm opposed in the second debate by the scientific paradigm”
(SMITH, 1995, p. 15).
Outros, como John VASQUEZ e Steve SMITH, consideram que este
debate seria metodológico e a-teórico, já que estaria mais preocupado com a
questão sobre os métodos para melhor alcançar conhecimento científico nas
Relações Internacionais. SMITH argumenta que BULL e KAPLAN, normalmente
caracterizados como os protagonistas deste debate, teriam visto o mesmo mundo
e explicado este mundo de modos similares, embora utilizando métodos distintos:

“As John VASQUEZ (1983) has shown, the debate between traditionalists and
behaviouralists was not a debate about theory but one limited to methodological
questions. (…) They shared a view of what the world of international relations was
like (its ontology), and saw similar processes at work in inter-state relations. BULL,
however, chose to study this via what were termed traditional methods whilst
KAPLAN came to very much the same conclusions by using ‘scientific’ language.
Ontologically, though, their underlying theories of international relations were
essentially identical” (SMITH, 1995, p. 17).
O próprio debate, ao lado desta divergência escolar, permanece em aberto,
resultando em um impasse. Mas ao Segundo Grande Debate não se pode negar o
mérito de haver trazido ao campo consciência de si mesmo, dos problemas

69
metodológicos, epistemológicos e ontológicos. No mais, os debates, nas Ciências
Sociais, normalmente não fecham questões.

70
3.3 O DEBATE INTERPARADIGMÁTICO: REALISMO,
PLURALISMO E GLOBALISMO

Com a finalidade de refletir o estado da Teoria das Relações Internacionais


(TRI), surgiu no início dos anos 1980 a idéia de haver, neste campo, um debate
interparadigmático. De acordo com esta auto-imagem, havia três paradigmas, ou três
escolas dominantes de pensamento. Este debate teria tido início na virada dos anos 1960
para a década seguinte, e foi resultado da elaboração de novas alternativas aos discursos
teóricos existentes, ou da modificação de alternativas já existentes. Essa seção tem o
objetivo de expor esta narrativa. Para tanto, trataremos da construção da idéia de debate
interparadigmático, a partir da aplicação da obra do filósofo da ciência Thomas S.
KUHN, dos paradigmas em debate (Realismo, Pluralismo e Globalismo) e dos principais
temas discutidos (ontologia, política e metodologia). Ao final, apresentaremos
brevemente algumas críticas que foram formuladas a esta auto-imagem.

Na década de 1980, qualquer estudioso novato que se aproximasse do


campo teórico das relações internacionais provavelmente seria tomado por um
imediato desânimo. Talvez por ser uma das mais jovens ramificações das
Ciências Sociais, seus debates internos diziam respeito a questões essenciais, e
não somente a questões secundárias, conforme comentou SODUPE (1992, p.
165):

“Estos debates no se refieren a cuestiones secundarias, sino a problemas esenciales,


que condicionan el modo de entender el estudio de las Relaciones Internacionales.
Entre distintas corrientes académicas se discute con intensidad acerca de la
auténtica razón de ser de este nuevo campo del saber.”
Os debates tornaram-se o núcleo fundamental das Relações Internacionais.
Isso porque se referiam a aspectos como o objeto, ou seja, o que estudar, e o
método, vale dizer, como estudar. Embora o debate fosse apaixonante e de
grande interesse para os escolares, ao mesmo tempo os acadêmicos nutriam um
sensível ressentimento pela ausência de acordo. SODUPE (1992, p. 166) afirma:
“tal ausencia de acuerdo ha generado una excesiva fragmentación de este campo
del saber, en detrimento de las posibilidades de acumulación del conocimiento”.
Alguns anos antes (em 1986), como ele indica, o autor Mervin FROST havia

71
constatado que, durante muitos anos, às RI coube a duvidosa honra de ser a
menos auto-reflexiva de todas as Ciências Sociais.

Para dar conta desta realidade acadêmica, na qual nenhuma abordagem


mostrava-se dominante, foi construído então o debate. Os discursos teóricos
alternativos existentes foram agrupados em unidades científicas, verdadeiras
medidas das teorias, que forneciam os critérios para a delimitação dos grupos.
BANKS (em 1985), por exemplo, identificou diferentes paradigmas, MCKINLAY
& LITTLE (1986), modelos, KEOHANE (1984), programas de pesquisa, VIOTTI &
KAUPPI (1987), imagens81. O que todos estes trabalhos possuem em comum?
Todos fazem alusão “a construcciones de carácter meta-teórico, construcciones
que han pasado a convertirse en nuevas unidades científicas básicas de expresión
del conocimiento” (SODUPE, 1992, p. 167).

A versão que adquiriu provavelmente a maior influência foi a centrada em


diferentes paradigmas. Tratava-se, normalmente, de uma aplicação das idéias do
filósofo da ciência Thomas S. KUHN, elaboradas em seu livro A Estrutura das
Revoluções Científicas, publicado em 196282. O objetivo da obra era apresentar
uma descrição esquemática do desenvolvimento científico, buscando, com isso,
captar o que o autor denominou como “a estrutura essencial da evolução contínua
da ciência” (KUHN, 1970, p. 201).

Urge destacar, entretanto, que o termo ciência, utilizado por KUHN, tem
um sentido bastante específico em sua obra. O termo refere-se às Ciências
Naturais, exclusivamente. Não obstante tal fato, suas idéias foram aplicadas às
RI, embora fossem formuladas para outra área do conhecimento, segundo o
próprio autor delimitara. Ironicamente, ele conta em seu prefácio que a
convivência com cientistas sociais, durante um período de pesquisa (em 1958-
1959, no Center for Advanced Studies in the Behavioral Sciences), serviu para
perceber uma importante diferença entre as Ciências Naturais e Sociais:
81
SODUPE (1992, p. 167).
82
Embora o livro haja sido publicado originalmente no ano de 1962, utilizaremos aqui a edição de 1970,
em sua tradução brasileira. A edição utilizada possui um posfácio, de 1969. Trata-se de um apêndice
muito interessante, no qual ele sustenta que seu ponto de vista não havia se modificado, no fundamental,
mas que era necessário eliminar alguns mal-entendidos e aspectos de sua formulação original que criaram
dificuldades.
72
“Fiquei especialmente impressionado com o número e a extensão dos desacordos
expressos existentes entre os cientistas sociais no que diz respeito à natureza dos
métodos e problemas científicos legítimos. (...) A tentativa de descobrir a fonte
dessa diferença levou-me ao reconhecimento do papel desempenhado na pesquisa
científica por aquilo que, desde então, chamo de ´paradigmas´. Considero
´paradigmas´ as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante
algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de
praticantes de uma ciência.” (KUHN, 1970, p. 13).
No estudo em comento, o paradigma torna-se a unidade fundamental para
a análise do desenvolvimento científico. Justificando a adoção desta unidade para
o estudo da história de determinadas ciências, KUHN afirmou que:

“A investigação histórica cuidadosa de uma determinada especialidade num


determinado momento revela um conjunto de ilustrações recorrentes e quase
padronizadas de diferentes teorias nas suas aplicações conceituais, instrumentais e
na observação. Essas são os paradigmas da comunidade, revelados nos seus
manuais, conferências e exercícios de laboratório” (KUHN, 1970, p. 67).
A delimitação do conceito de paradigma, como veremos adiante, foi
um aspecto bastante criticado. Segundo os ataques, o autor não teria conceituado-
o adequadamente. Conforme notado por uma investigação conduzida por
Margaret MASTERMAN, em 1970, KUHN utiliza o termo em vinte e uma maneiras
diferentes (SMITH, 1995, p. 15).

O conceito, segundo trazido na literatura, seria referido às premissas


ou princípios metafísicos fundamentais, as leis gerais de comportamento e o
método e as técnicas de investigação que, em relação a uma ciência, adota uma
comunidade acadêmica especializada nela (SODUPE, 1992, p. 168), ou às
opiniões construídas por uma comunidade de indivíduos que se dedica ao estudo
de determinados fenômenos, que uma vez aceitas, passam a ser consideradas um
conhecimento estável sobre a realidade (ROCHA, 2002, p. 49). São, enfim, o
conjunto de crenças, valores e técnicas que são compartilhadas pelos
participantes de uma determinada comunidade acadêmica, que guiam a
investigação científica.

A partir desse conceito, KUHN buscou formular uma estrutura das


revoluções científicas. Buscaremos resumí-la, brevemente. Em primeiro lugar,
KUHN distingue a existência de duas fases na vida de uma ciência: uma pré-
científica e uma científica. Na primeira prevalece uma multiplicidade de

73
paradigmas, bem como uma ausência de acordo em torno de questões
consideradas básicas. Mais do que conduzir investigações sistemáticas da
realidade, os especialistas estão engajados na defesa dos respectivos enfoques
paradigmáticos.

As características da fase científica foram também descritas


detalhadamente pelo filósofo. Seu estabelecimento se dá no momento em que o
conjunto da comunidade acadêmica se une em torno de um único paradigma. O
desaparecimento das divergências, em grau considerável, ou, aparentemente, de
uma vez por todas, é causado pelo triunfo de um dos paradigmas pré-científicos
(KUHN, 1970, p. 37). Instaura-se, com isso, o que ele denominou ciência normal
ou madura.

Na fase da ciência normal, o paradigma determina os critérios da


atividade científica. São intensificadas as atividades teórica e experimental,
buscando melhorar o grau de adequação entre o paradigma e o mundo real. Para
KUHN, o acúmulo de conhecimento ocorre nesta fase. Os cientistas não
questionam a validade do paradigma, e se eventuais fracassos são produzidos no
desígnio de solucionar determinadas questões, a responsabilidade dos mesmos é
imputada não ao paradigma, mas à falta de habilidade do investigador (SODUPE,
1992, p. 169).

Em um determinado momento, segundo KUHN, quando vem à tona de


algum quebra-cabeça não resolvido por este paradigma, configura-se uma
anomalia (conflito entre teoria e realidade). Essas anomalias podem abalar a
confiança no paradigma, abalo que se torna particularmente sério se chegar a
ameaçar os fundamentos mesmos dele. Caso isso ocorra, gera-se uma crise.
A presença de anomalias inaugura uma fase extraordinária na ciência,
com o fito de encontrar soluções para as mesmas. Dois são os caminhos adotados
pelos acadêmicos, segundo o autor: ou bem se mantém o núcleo fundamental do
paradigma aceito, realizando entretanto modificações ad hoc, para adaptá-lo à
realidade; ou, de outra forma, surge um paradigma alternativo, portador de
revisões das principais assunções paradigmáticas.

74
Ao final desta querela entre os paradigmas, pode haver a substituição
dos mesmos. Assim, com a aceitação do paradigma pelo conjunto da comunidade
científica, consuma-se uma revolução científica. Com as crises e revoluções, a
ciência transita a novos estágios. Destaque-se que o critério para a substituição
do paradigma velho por um novo não é a aceitação por um determinado
indivíduo ou grupo de indivíduos, mas sim pelo conjunto da comunidade
científica.
O critério para a aceitação é, então, fundamentalmente intersubjetivo.
Esse é um dos pontos mais controvertidos da obra de KUHN. Segundo ele, não há
razões lógicas que possam demonstrar a superioridade de um paradigma sobre o
outro, justificando assim a substituição. Os paradigmas são, nesse sentido,
incomensuráveis: inexiste um ponto neutro para avaliar os paradigmas; esses são
julgados, cada qual, segundo seus próprios padrões:
“Así, los defensores de paradigmas opuestos rechazarán las premisas de su rival, y
por tanto, difícilmente serán convencidos por sus argumentos. De aquí que Kuhn,
equiparando las revoluciones científicas a las revoluciones políticas, haya afirmado
que su triunfo depende no tanto de procesos de ‘persuasión’ o ´conversión´, que
conducen a la comunidad científica a abrazar los presupuestos de una nueva
construcción paradigmática” (SODUPE, 1992, p. 170)
Embora não haja razões lógicas, KUHN indica quesitos que podem
influenciar na adoção de um paradigma. Em primeiro lugar, a capacidade de
resolver problemas que eram insolúveis, pelo paradigma velho. Além disso, a
simplicidade do novo enfoque, se ele possui no mínimo a mesma capacidade
explicativa. Ao final, a promessa de desenvolvimento científico mais frutífero
também pode ser uma munição para persuadir a comunidade acadêmica
especializada.

Esta obra elaborada por KUHN, como afirmamos, tornou-se


abertamente utilizada na RI. E isto parece possuir uma explicação bastante
razoável, que arriscamos expor, como segue. A década de 1970 foi, para as RI,
um período muito marcante, pela conjugação de, no mínimo, quatro fatores: o
crescimento do campo de estudos, sua tomada de autoconsciência, os desafios
significativos lançados ao discurso dominante nas RI (o realista) e a influência

75
que A Estrutura de KUHN vinha adquirindo entre os cientistas de várias áreas do
conhecimento.

Vamos aos fatores que, em conjunto, confluíram para a propagação da


idéia de debate interparadigmático. Em primeiro lugar, o crescimento do próprio
campo de estudos, que afinal atingiu um grau de consolidação e uma expansão
considerável na década de 1970, aprofundado nos anos 1980. Esse foi
exatamente o período do debate: “The debate took place mainly in the 1970s but
gained its self-reflection as ´the inter-paradigm debate´ or ´the third debate´ in
the beginning of the 1980s (Holsti, Rosenau, Banks)” (WÆVER, 1996, p. 155). A
expansão das bases institucionais foi acompanhada de uma melhor delimitação
do próprio objeto de estudos, conseqüência sobretudo das preocupações
científicas levantadas pelo debate entre tradicionalistas e behavioralistas, tratado
na seção anterior, assim como de algumas mudanças ocorridas na realidade
histórica, que serão tratadas mais adiante.

Em segundo lugar, talvez como conseqüência deste crescimento e


consolidação das RI, o campo começou a tomar autoconsciência. Conforme
relata WILSON (1998, p. 8), embora já pudesse ser notada em WALTZ, em 1959,
ou mesmo antes, esta autoconsciência tomou corpo a partir de 1972, com o texto
de BULL, já referido no início desse capítulo. Transcrevemos o relato:

“Disciplinary self-consciousness began in 1972. There are few intimations of such


consciousness in Waltz´s Man, the State and War or Butterfield and Wight´s
Diplomatic Investigations. A veritable explosion of interest in the growth of the
discipline – its schools, debates, ´defining moments´, and trends – occurred in the
1980s”.
Em terceiro lugar, os desafios lançados ao realismo foram
significativos. Mais ainda, estes novos discursos teóricos apresentavam novas
concepções acerca da própria natureza das relações internacionais. A ontologia,
diria WÆVER, passa a ser o cerne das discussões teóricas que findaram por
caracterizar o debate. Os distintos paradigmas que surgiram então apresentavam,
cada qual à sua maneira, uma visão de mundo, identificando os atores mais
relevantes, a lógica da interação social, os principais processos prevalecentes e os
temas mais importantes da agenda internacional.

76
Finalmente, mais um fator que corroborou no sentido da formação
desta idéia de debate interparadigmático consiste em um fato externo ao campo
de estudos das RI: a considerável divulgação e influência que vinham adquirindo
as formulações de KUHN em outras áreas do conhecimento. E aqui estamos nos
referindo tanto às ciências naturais quanto às sociais. A influência nestas últimas
demonstrava como, por vezes, as idéias desvinculam-se até mesmo da vontade do
autor. KUHN formulara sua Estrutura para ser aplicada somente às ciências
naturais, mas os cientistas sociais, a despeito da vontade autoral, insistiam na sua
aplicação também a suas áreas.

Além desses quatro fatores identificados, o modo de apresentar a TRI a


partir da visão de três paradigmas concorrentes é, como afirmou SMITH (1995, p.
18), sustentável e excelente para introduzir a variedade de discursos teóricos
disponíveis no campo. Passou a ser freqüente nos livros que procuravam abordar
o desenvolvimento da TRI, sobretudo naqueles que possuíam um formato de
publicação destinada a uso em cursos de graduação em RI ou áreas afins.
Segundo consta na literatura, Michael BANKS foi o responsável pela sua adoção:

“This categorization of international theory has been influential since the mid-
1980, being the organizing schema for major texts and readers (Little and Smith,
1991; Olson and Groom, 1991; McGrew and Lewis, 1992; Viotti and Kauppi,
1993) and the starting point for many studies of contemporary international theory
(see, for example, Holsti, 1985; Hoffman, 1987; Whitworth). It was first adopted
by Michael Banks (see 1984, 1985) in 1984 and refers to the situation in
international theory in the aftermath of the behavioral ´revolution´.” (SMITH, 1995,
p. 18)
Ao lado da propagação desta categorização existem severas
divergências quanto à nomenclatura, resultando em uma confusão terminológica.
Os estudiosos permanecem sem realizar um esforço significativo no campo
semântico, que pudesse reduzir o relevo desta confusão:

“Basta un breve recorrido por las denominaciones empleadas en la clasificación de


paradigmas para que dicha confusión quede patente: Smith, Little y Shackleton
mencionan poder y seguridad, interdependencia y relaciones transnacionales y
dominación y dependencia, Willets, por su parte, alude al realismo, funcionalismo
y marxismo. Rosenau presenta tres enfoques principales: estatocéntrico,
multicéntrico y globalcéntrico. Holsti, estableciendo su propia clasificación, hace
referencia a la tradición clásica, globalismo y neomarxismo. Banks habla de
realismo, pluralismo y estructuralismo. Arenal Y Aldecoa, por ultimo, emplean
preferentemente las expresiones de tradicional, sociedad global y dependencia.”
(SODUPE, 1992, p. 181)
77
A despeito dessa esquizofrenia de rótulos, há uma ampla coincidência
quanto ao número de paradigmas e em certa medida pelos critérios manejados
pelos autores para identificar os discursos teóricos como pertencentes a este ou
aquele paradigma.Quanto ao número de paradigmas, conforme dito, estabeleceu-
se um certo consenso em torno do número três (SODUPE, 1992, p. 179).

Independente da coincidência quanto ao número de paradigmas – nem


sempre seguida por todos – o mais importante é a forma e o conteúdo do debate,
como bem destacou WÆVER (1996, p. 154):

“Numerous variations exist with authors adding a fourth or fifth, subdividing one
or another of the basic paradigms, etc. The image of the triangle, however, has
been the one to be used most often as a guiding metaphor for the discipline. The
term ´inter-paradigm´ debate arouses in most scholars the image of three
competing paradigms, and the more important than the number is the form and
content of debate, the meeting of incommensurable paradigms.”
Paralelamente, verifica-se também o procedimento comum adotado
pelos autores: geralmente são formuladas algumas premissas para serem
utilizadas como guia de identificação das interpretações das relações
internacionais dos diferentes paradigmas. SODUPE exemplifica autores e utiliza o
mesmo procedimento:

“Autores como M. Smith, R. Little y M. Shackelton, K. J. Holsti, M. Banks, P. R.


Viotti y M. V. Kauppi recurren a premisas prácticamente idênticas em sus análisis
paradigmáticos. Coincidiendo em esta línea de homogeneización, C. del Arenal y
F. Aldecoa han señalado el interés de la propuesta realizada por Holsti. Entre las
manejadas por los autores citados pueden destacarse tres premisas fundamentales:
a) la visión del mundo que se obtiene en cada enfoque básico; b) los actores
esenciales; y c)El objeto de las Relaciones Internacionales.” (SODUPE, 1992, p
180)
De maneira análoga, outros autores sumarizam os paradigmas em termos
das respostas que apresentam para algumas perguntas selecionadas. Referindo-se
a esta auto-imagem, SMITH (1995, p. 18) exemplifica o procedimento e resume
sua finalidade:

“Accordingly, each paradigm can be summarized in terms of its answers to


questions such as: ´Who are the main actors?´, ´What are the main issues in
international politics?´, ´What are the main processes at work in international
society?´ and ´What are the main outcomes?´ Clearly, each paradigm gives
different answers to these questions, so that the student gets three different
interpretations of international politics.”

78
Neste trabalho, para diferenciá-los, utilizaremos o procedimento adotado
pelos referidos autores. Utilizaremos como guia algumas premissas ou, de outra
forma, algumas questões básicas, acompanhadas das respectivas posições ou
respostas de cada paradigma. Buscaremos, desta forma, expor de maneira clara
cada paradigma, destacando: sua origem, a visão de mundo ou as características
essenciais de cada enfoque, enfim, as premissas fundamentais adotadas pelos
especialistas acerca das relações internacionais, a realidade estudada. Segundo as
narrativas que aplicam as idéias de KUHN às RI, o contexto histórico teria sido
fundamental para a elaboração destes discursos teóricos, por constituírem
“anomalias” que desafiavam o paradigma predominante – identificado como
sendo o realista. Concordemos ou não com esta visão, urge relacionar os
discursos teóricos ao contexto de sua formulação. E assim será feito83.

O primeiro paradigma a ser tratado inevitavelmente tem de ser o realista.


Na seção 3.1, supra, ao tratar do Primeiro Grande Debate já o resumimos. Já
destacamos suas origens, que são normalmente ligadas à Antigüidade Clássica,
com a sua retomada no desenvolvimento do pensamento político moderno,
realizada principalmente por Maquiavel e Hobbes. Aludimos ainda ao
predomínio que passou a exercer sobre o campo de estudos, sobretudo a partir
dos anos 1940, com o advento da Segunda Guerra Mundial.

A visão de mundo dos realistas também dela cuidamos, ao destacar a


centralidade dos Estados no estudo das relações internacionais, considerados
unidades soberanas, autônomas e independentes, que interagem em um sistema
internacional anárquico. Como conseqüência dessa ausência de autoridade
superior aos Estados, nessa interação prevalece a política de poder, com os
Estados sendo atores racionais, que perseguirão seus objetivos de maneira egoísta
e auto-interessada. Os principais autores, como visto acima, foram CARR,
MORGENTHAU, WIGHT, entre outros tantos.

83
Nesta parte que segue, utilizaremos o conhecimento reunido de diversos bons trabalhos consultados a
respeito do debate interparadigmático: GUIMARÃES (2001), SODUPE (1992), SMITH (1995), ROCHA (2002),
BUZAN (1996), LITTLE (1996), WALLERSTEIN (1996), VIOTTI & KAUPPI (1987) e WÆVER (1996, 1998).
79
Para o Realismo, os Estados, atores centrais, preocupam-se
fundamentalmente com as questões relacionadas à luta pelo poder, visando a
preservação de sua soberania e de sua segurança. Resulta daqui uma distinção
que será importante adiante: high politics e low politics. A primeira, segundo os
realistas, está relacionada ao temas de segurança nacional, enquanto a segunda,
cuja lógica está submetida à primeira, engloba os demais temas, como economia,
comércio, direitos humanos, bem-estar e meio-ambiente, para citar alguns
exemplos (VIOTTI & KAUPPI, 1987, p. 36).

O realismo, segundo as narrativas, é tido como o principal discurso teórico


sobre as relações internacionais, e o mais tradicional deste campo (ROCHA, 2002,
p. 265). LIJPHART, em um trabalho publicado em meados da década de 1970,
afirmou que os distintos processos de teorização, mesmo anteriores à Paz de
Westfália, tiveram lugar dentro do paradigma realista (que ele denomina como
“tradicional”). Outro autor, HOLSTI, escreveu que as Relações Internacionais se
desenvolveram, desde o século XVII até a década de 70 do século XX, no marco
de um único paradigma (SODUPE, 1992, p. 183).

Comentando a influência do paradigma realista após a Segunda Guerra


Mundial, BUZAN (1996) é categórico: “Despite numerous challenges, realism is
arguably still the prevailing orthodoxy in the discipline. Like International
Relations itself, realism is largely an Anglo-American theory (with substantial
inputs from Central European immigrants)”. Note-se que o autor destaca a
centralidade do realismo, a despeito dos numerosos desafios. Os desafios,
argumentamos aqui, no final das contas acabam por reforçar a centralidade do
paradigma neste campo de estudos.

A partir do final dos anos 1960, entretanto, o paradigma realista passou a


ser seriamente desafiado por duas novas abordagens, que ficaram conhecidas
como os paradigmas pluralista e globalista. Segundo a narrativa predominante,
alguns fenômenos históricos foram responsáveis pelo aparecimento dos desafios
ao realismo, constituindo anomalias, no sentido kuhniano.

80
Adotando essa visão, SODUPE afirma que o Pluralismo (chamado por ele
de Globalismo) tratou de responder às anomalias representadas pelo aumento da
cooperação entre os Estados, especialmente o aprofundamento da integração
européia, bem como pelo papel crescente dos atores transnacionais,
principalmente as empresas multinacionais e os movimento ideológicos de
caráter religioso e político. O Globalismo (que ele denomina Estruturalismo), por
outro lado, teria centrado suas atenções sobre as profundas desigualdades
econômicas do mundo, resultado do caráter assimétrico das relações entre os
Estados (SODUPE, 1992, p. 194-195).

Os paradigmas pluralista e globalista, além de formularem uma crítica ao


Realismo, apresentaram verdadeiramente concepções alternativas do sistema
internacional (WÆVER, 1996, p. 150):

“In the late 1960s and throughout the 1970s, there was increasing criticism of the
dominant realist paradigm, not primarly its methodology, but its image of the
world, its alleged state-centrism, preoccupation with power and its blindness to
various kinds of processes domestically, transnationally and beyond the political-
military sphere.”
Pois bem, vamos apresentar brevemente estes desafios: primeiro o
Pluralismo, depois o Globalismo. Surgidos praticamente no mesmo momento
histórico, cada um desses paradigmas apresentou uma concepção alternativa que,
embora tivessem em comum a crítica ao Realismo, diferem entre si
consideravelmente, como veremos.
Em primeiro lugar, vamos tratar das origens do paradigma pluralista.
Identificar as heranças intelectuais do pensamento pluralista é tarefa hercúlea.
Isso porque se trata de um paradigma que contém em si uma grande variedade de
formulações. Além disso, como destacou LITTLE (1996, p. 70), “to trace the
intellectual heritage of pluralism it is necessary first to cut through the dense
foliage of long-established views about the evolution of the discipline”. O que
LITTLE intenta destacar é a necessidade de se desmanchar algumas das mais
predominantes narrativas existentes no campo.

Caminhando nessa mesma rota, o autor SCHMIDT (2002, p. 9-31), que faz
parte do esforço revisionista ao qual nos referimos na seção 3.1, procura abordar

81
o surgimento do pensamento pluralista antes mesmo da Primeira Guerra
Mundial. Segundo ele, os pluralistas surgiram nos anos que se seguiram ao
reconhecimento da política internacional como uma seção da American Polítical
Science Association, em 1903. Contrapondo-se à centralidade do Estado na
política internacional, aqueles que aderiam à visão pluralista

“shared the belief that the concentration of power in the hands of the state
represented a dangerous threat to the liberty of the individual and to the peace of
the world. They argued that power should be diffused so as to allow for the
autonomous functioning of numerous groups and associations” (SCHMIDT, 2002, p.
16)
Naquele contexto histórico e intelectual do começo do século XX, o
pluralismo criticava a teoria jurídica do Estado, que destacava o conceito de
soberania, até então conceito central na definição do escopo da Ciência Política.
De acordo com esta juristic theory (termo utilizado por SCHMIDT, 1992), “the
state was seen as instrumentality for the creation and enforcement of law”, sendo
conceituado por Westel WILLOUGHBY, um de seus principais proponentes, como
“a communnity of individuals effectively organized under a supreme authority”
(SCHMIDT, 2002, p. 16. A soberania era, então, o principal tópico de preocupação
dos cientistas políticos, e considerada como princípio constitutivo do próprio
Estado, com suas conseqüências internas (monopólio do uso legítimo da força), e
internacional (independência, ou completa liberdade de controle legal externo).

O Pluralismo surge, então, como uma crítica à teoria jurídica do Estado.


Essa pequena digressão realizada nos interessava neste trabalho porquanto haja
manifestas semelhanças entre o pensamento desta teoria criticada pelos primeiros
pluralistas e o pensamento realista, também combatido pelos pluralistas mais
recentes: “According to the pluralists, the juristic view, which has a number of
striking similarities to what later became associated with the theory of realism,
provided an anachronistic and distorted account of political life” (SCHMIDT,
2002, p. 23).

Os pluralistas opunham-se, às vezes de maneira veemente, à noção de que


haveria uma necessária unidade e totalidade do Estado. Minavam, assim, a
concepção de interesse nacional, tão fundamental para a teoria realista. Com uma

82
visão mais fragmentada da sociedade, os pluralistas buscavam realçar a
diversidade de grupos e interesses existentes nela:

“The pluralists vehemently opposed the notion that there was an essential unity and
absoluteness of the state. They rejected this claim in both empirical end normative
grounds. According to the pluralists, society, which they insisted represented more
than the sum of its parts, consisted of a multiplicity of autonomous groups and
associations, which stood in stark contrast to the unitary view of the state put forth
by the monists. Moreover, the autonomous functioning of the various groups
present in society was held by the pluralists to be crucial to the political and social
health of individuals” (SCHMIDT, 2002, p. 18)
No lugar dessa imagem de Estados unitários, independentes e autônomos,
que interagem em um estado de natureza internacional, os pluralistas enfatizavam
como o grau de interdependência entre os Estados e as pessoas estava
empurrando a sociedade internacional “in which a multiplicity of diverse group
entities found themselves bound together in the pursuit of various sets of
interests” (SCHMIDT, 2002, p. 23).

Como destacam os autores que têm se debruçado sobre a revisão do


período intelectual situado no entre guerras, nem todos os trabalhos produzidos
nesse período podem ser considerados como utópicos, ou idealistas. Ademais, é
possível encontrar nos pluralistas do entre guerras os antecessores daqueles que
surgiram (ou ressurgiram) na década de 1970, preservando a tradição liberal de
pensamento, ainda que sem conhecê-la o bastante: “In many basic claims put
forth by the interwar pluralists served as the antecedents for IR scholars writing
during the 1970s who felt comfortable with the pluralist label even though they
often had no recollection of the earlier conversation about pluralism” (SCHMIDT,
2002, p.).

As heranças intelectuais do pluralismo, que podem ser ligadas a esse


pensamento formulado nas primeiras décadas do século XX, foram sempre
obscurecidas. Segundo LITTLE (1996), tal fato pode ser atribuído à persistência
da narrativa que vincula o rótulo idealista a essa literatura seminal: “The
historiographical assumption in the study of international relations that the
discipline moved from an initial idealist phase through to a later realist phase is

83
now so firmly established that the existence of a pluralist tradition has been
largely overlooked.”

A partir do final dos anos 1960, mas principalmente durante os 1970,


surgem autores que adotam uma visão de mundo bastante semelhante à dos
pluralistas do entre guerras. Começou a ser argumentado no campo das RI que a
natureza da política internacional e a estrutura do sistema internacional passavam
por uma transformação (LITTLE, 1996, p. 66):

“It was argued, in particular, that the division between international and domestic
politics was breaking down and that, as a consequence, not only were the
boundaries separating states dissolving, but also, that international politics was
becoming domesticated in the process (Hanreider, 1978; Morse, 1970; Wagner,
1974). These developments were associated specifically with the evolution of
transnationalism and interdependence and the analysts who focused on these
putative new features of the international system came to be labeled as pluralists.”
A retomada do pensamento pluralista, na década de 1970, teve início com
o trabalho dos chamados transnacionalistas (SODUPE, 1992, p. 195). Dois
autores foram fundamentais para a elaboração dessa perspectiva: Robert
KEOHANE e Joseph NYE. Juntos, publicaram diversos importantes trabalhos que
traçam a evolução da tradição pluralista durante os aquela década (de 1971 a
1977). A discussão (quando da crítica pluralista dos transnacionalistas) estava
voltada para a resposta à questão quais atores devem ser considerados para
análises das RI. Mais precisamente, esta disputa intelectual deitava a atenção
sobre o papel do Estado – central para os realistas – e de outros atores
internacionais, desde organizações internacionais e empresas multinacionais, até
corporações religiosas ou organizações não-governamentais – considerados pelos
transnacionalistas como peças também importantes na arena política
internacional84.

84
O desafio dos transnacionalistas teve considerável repercussão nas RI. MAGHROORI &
RAMBERG, isto em 1982, chegaram a afirmar que este debate seria o Terceiro Grande Debate.
Este se desenvolveria entre os realistas estatocêntristas e os transnacionalistas (SMITH, 1995, p.
21): “At its simplest, the dispute is between state-centrists (who also happened to be realists in
the first debate, and traditionalists in the second), and globalists, or transnationalists (who
tended to be idealists and behavioralists in the previous two debates), over the role of the state
in international politics”.
84
A distinção que os realistas realizaram entre high politics e low politics,
perde o sentido para o paradigma pluralista. Conforme afirma SODUPE, os
pluralistas (que o autor denomina como “globalistas” ainda consideram as
questões relacionadas à guerra e à paz importantes. No entanto, estas questões
andam lado a lado com as que os realistas relegavam ao segundo plano:

“Si bien la dilución del papel del Estado la primacía de la ‘alta política’ ha tendido
a ceder ante la creciente importancia de la ´baja política´, los globalistas No
obstante, en un mundo interdependiente estas cuestiones se hallan
inseparablemente unidas a problemas tales como los referentes a los derechos
humanos, el balance ecológico, el bien-estar económico mundial, la
sobrepoblación, etc.” (SODUPE, 1992, p. 198)
Cabe ressaltar, entretanto, que o trabalho dos transnacionalistas, embora
criticasse a visão excessivamente estatista do sistema internacional, não negaram
ao Estado um papel relevante nas relações internacionais. Intentava-se, com as
novas formulações, a incorporação de novos atores e processos de natureza não-
estatal:

“Attention also began to be paid to the growth of non-state, transnationally


organized actors. It was argued repeatedly in the 1970s that the ´state-centric model
has imposed research blinkers and has inhibited an accurate mapping of the
increasingly complex global system’ (Mansbach, Ferguson and Lampert, 1976, p.
28). Attention was drawn to the wide array of non-state actors which play a role in
international politics (Keohane and Nye, 1971). These actors ranged from the giant
multinational corporations to the universal Roman Catholic Church” (LITTLE,
1996, p. 75).
Segundo o paradigma pluralista, a proliferação de organizações
internacionais, o fenômeno da interdependência, da integração regional, a
revolução dos transportes e das comunicações, entre outros fatos demonstram a
transformação histórica das relações internacionais. Para finalizar, podemos
cotejar aqui o comentário amplo de WÆVER, ao apresentar a visão de mundo dos
pluralistas, que resume bem a concepção alternativa das relações internacionais:

“These [conceptions] went in terms of regional integration, transnationalism,


interdependence, and a pluralist system of numerous sub-state and trans-state
actors who made up a much more complicated image than the usual State-to-State
one. States did not exist as such – various actors in the state interacted to produce
what looked like state policy and sometimes even went some around it and had
their own linkages across borders. Not only were there more actors than the state,
the state was not the state but was to be decomposed into networks of
bureaucracies, interest groups and individuals in a pluralist perspective” (WÆVER,
1996, p. 150)

85
Seguindo a idéia do debate interparadigmático, tratamos agora do último
paradigma envolvido: o Globalismo. A visão de mundo do paradigma
corresponde a um sistema econômico integrado, o sistema capitalista mundial, no
qual suas diferentes partes, regiões desenvolvidas e subdesenvolvidas, às quais
são assinaladas funções econômicas diferenciadas, encontram-se separadas por
profundas desigualdades (SODUPE, 1992, p. 182).

Conforme destaca WÆVER (1996, p. 151), embora esta visão de mundo


(que ele denomina como sendo marxista) haja sido crescentemente vista como
uma teoria alternativa das relações internacionais, ela não era tão bem
estabelecida no campo. Desta forma, teríamos um debate configurado como
triangular, porém o debate ocorreria principalmente em um dos lados desse
triângulo: “It was not equally well established within IR, but it became
fashionable to present the discipline as engaged in a triangular debate (Marcusian
´repressive tolerance´?). Maybe it was triangular, but it was de facto mainly a
debate along one side of the triangle”.

Este paradigma foi denominado aqui como globalista para podermos


evitar a utilização do termo marxista, já que alguns globalistas evitam mesmo o
uso de análises marxistas. Justificando a adoção do termo, VIOTTI & KAUPPI
(1987, p. 341), aproveitam para comentar outros usos e adiantar o ponto de
partida ou o foco do globalismo:

“We have avoided the label Marxism [grifo no original] because there are both
Marxists and non-Marxists who work within what we have chosen to call the
globalist image. (…) we think globalismo [grifo no original] is particularly apt for
those who see the capitalist world system [grifo no original] as their starting point
or who focus on dependency [grifo no original] relations within a global political
economy. As already noted (…), we are not alone in using the term globalism in
this context.”
Como ficou claro no final do trecho acima, existem duas abordagens
diferentes, ou duas correntes, no paradigma globalista. A primeira ficou
conhecida como “teoria da dependência”, enquanto a segunda pode ser traduzida
por “teoria do sistema-mundo” (world-system theory)85.

85
SODUPE (1992, p. 201) e VIOTTI & KAUPPI (1987, p. 341).
86
A primeira corrente é representada sobretudo por autores latino-
americanos. O pensamento surgiu no seio da Comissão Econômica para a
América Latina (CEPAL) e da United Nations Conference on Trade and
Development (UNCTAD). Significativo deste vínculo institucional inicial é o
fato de um dos autores indicados como teórico da dependência haver sido o
primeiro Secretário-Geral da UNCTAD, o economista argentino Raul PREBISCH.
Posteriormente, como afirmam VIOTTI & KAUPPI (1987, p. 348), a teoria
espalhou-se, contagiando acadêmicos de outras nacionalidades:

“Some of the more provocative work in the globalist tradition has been produced
by Latin Americanists representing various branches of the social sciences. They
have come to be known collectively as dependency theorists, and they now include
North American and European scholars as well as Latin Americans. Several of
these writers were associated in the 1960s with the Economic Commission on Latin
America (ECLA) and the United Nations Conference on Trade and Development
(UNCTAD). They were concerned with the important problem of explaining why
Latin America and other Third World regions were not developing as anticipated.”
Essa primeira corrente, conhecida como teoria da dependência, surgiu em
um contexto intelectual que cabe destacar. Ela surge como uma crítica à chamada
teoria da modernização. Segundo os defensores desta última teoria, os países
subdesenvolvidos não logravam alcançar o desenvolvimento por conta de alguns
processos internos, como por exemplo a dificuldades desses países em realizar a
transição de suas sociedades tradicionais para a modernidade (VIOTTI & KAUPPI,
1987, p. 348), ou ausência de poupança interna:

“Dicha teoría preveía que, superadas ciertas insuficiencias, entre ellas la carencia
de volúmenes apropiados de capital, los países menos favorecidos podrían, pasando
por una serie de etapas de desarrollo, alcanzar los niveles de bienestar de los países
industrializados” (SODUPE, 1992, p. 199).
A explicação oferecida pelos teóricos da dependência narrava uma história
bastante diferente. Segundo estes globalistas, as assimetrias existentes no
desenvolvimento econômico são resultado das relações econômicas
internacionais, que se produzem entre Estados enormemente desiguais
economicamente, que desempenham diferenciadas funções no sistema capitalista.
Resulta, desse processo, a aparição de estruturas de dependência (SODUPE, 1992,
p. 198).

87
Alguns autores brasileiros foram particularmente importantes na
elaboração da teoria da dependência: o sociólogo Fernando Henrique CARDOSO,
que se tornou Presidente da República na década de 1990 e os economistas Celso
FURTADO e Theotonio DOS SANTOS. Vejamos a elaboração do conceito de
dependência, segundo este ultimo, de 1970:

“ a situation in which a certain number of countries have their economy


conditioned by the development and expansion of another..., placing the dependent
countries in a backward position exploited by the dominant countries” (DOS
SANTOS apud VIOTTI & KAUPPI, 1987, p. 349).
Além dessas forces externas, alguns teóricos da dependência, como
CARDOSO & Enzo FALETTO, em 1969, identificaram a existência de vínculos
entre as classes sociais de países distintos, com interesses comuns. Assim, as
forças domésticas também devem ser levadas em conta para explicarmos o
subdesenvolvimento, embora a importância dessas dimensões internas varie de
acordo com o país em análise. Vejamos a concepção de CARDOSO & FALETTO:

“We conceive the relationship between external and internal forces as forming a
complex whole whose structural links are not based on mere external forms of
exploitation and coercion, but are rooted in coincidence of interests between local
dominant classes and international ones” (CARDOSO & FALETTO apud VIOTTI &
KAUPPI, 1987, p. 350)
Dissemos acima que existem duas correntes do globalismo. Além da teoria
da dependência, exposta, a outra corrente é denominada como teoria do sistema-
mundo (world-system theory). Resumindo o pensamento desta teoria, um de seus
líderes intelectuais, Immanuel WALLERSTEIN (1996, p. 87), assim escreveu:

“From the perspective of world-systems analysis, the inter-state structure of the


modern world-system (conventionally the principal subject matter for students of
international relations) is merely one institutional structure or plane of analysis
among a number that altogether make up the integrated framework of the modern
world-system. This world-system, like all world-systems, is an historical system
governed by a singular logic and set of rules within and through which persons and
groups struggle with each other in pursuit of their interests and in accord with their
values. Pertinent analysis of geopolitics, in this perspective, can only be done
within the context of the functioning of the modern world-system as a whole and in
the light of its particular historical trajectory.”
Emerge do paradigma globalista um mundo consistente em um sistema
econômico integrado. O sistema capitalista mundial, entretanto, possui como
traço fundamental a desigualdade econômica global. Essa unidade está composta
de duas partes: o centro e a periferia (WALLERSTEIN inclui ainda uma
88
semiperiferia). Entre essas partes, o centro e a periferia, estabelece-se uma
divisão de funções econômicas, uma divisão internacional do trabalho (SODUPE,
1992, p. 199). Assim, “el centro produce bienes manufacturados, mientras que la
periferia proporciona alimentos y materias primas”.

Bem, finalizamos a exposição do que ficou conhecido como debate


interparadigmático. Cabe destacar que algumas críticas têm sido formuladas a
esta visão, além daquelas referidas no início dessa seção, que diziam respeito ao
próprio trabalho de KUHN e a sua aplicação às RI. Destarte, as divisões são
questionáveis, havendo muita diversidade dentro de cada paradigma. Esta idéia
corresponde a uma visão específica do campo, outras são possíveis. Cada
paradigma possui uma agenda de pesquisa própria, de acordo com suas visões de
mundo, não havendo verdadeiramente debate, no sentido de um confronto direto
de idéias (SMITH, 1995).

Deixando de lado as críticas, o debate interparadigmático se diferenciou


dos outros dois anteriores porquanto fosse uma arena par a competição (WÆVER,
1996, p. 156), na qual se enfrentavam diferentes premissas ou visões de mundo,
assim pelo seu conteúdo:

“The arena for competition in the inter-paradigm debate was largely ´basic
assumptions´ and ´basic images´: what is international relations made up of –
states, individuals, bureaucracies, a global economy, or what? Each paradigm was
assumed to be locked, psychologically in its self-reaffirming conception which it
could not convince the other of. The main issue of contention was ´the nature of
international relations´ (with ensuing political consequences) and secondary one
´methodology´.”
A idéia de debate interparadigmático tornou-se uma visão corrente nos
anos 1980. Conforme sentenciou de maneira exata WÆVER: “In the third debate,
one increasingly (mostly implicitly) got the self-conception that the discipline
was [grifo no original] the debate”. O que diferenciava este debate dos dois
anteriores, segundo ele, foi o fato de ser um debate não para ser vencido, mas um
pluralismo teórico com o qual conviver (WÆVER, 1996, p. 155). Impossível
ainda não concordar com o autor quando ele afirma que, quanto a esse debate, já
o deixamos para trás, na história do campo de estudos.

89
3.4 UM DEBATE ATUAL: A SÍNTESE RACIONALISTA E
A REORIENTAÇÃO CONSTRUTIVISTA

Se for certo que o Debate Interparadigmático já foi ultrapassado, se for


certo que ao final dos anos 1980 o enfrentamento de paradigmas
incomensuráveis parecia haver chegado ao esgotamento, então devemos nos
perguntar: o que veio depois, afinal? Buscaremos responder essa pergunta a
partir das narrativas mais recentes sobre o campo teórico das Relações
Internacionais (RI). De lá para cá, foram anos bastante agitados e turbulentos na
Teoria das Relações Internacionais (TRI), por questões históricas e intelectuais.
O objetivo dessa seção é apresentar um debate atual que julgamos ser um dos
principais em desenvolvimento no campo, pela concentração de esforços que têm
sido direcionados para ele, mas sobretudo pela profundidade, importância e
conseqüências desse debate para a TRI: o debate entre o Racionalismo e o
Construtivismo Social. Esse debate, segundo a nossa visão, aqui apresentada,
resultou da concentração de um debate mais amplo, iniciado na penúltima década
do século XX. Assim, apresentaremos, em um primeiro momento, os desafios
lançados contra o positivismo naquela década e a resposta da ortodoxia teórica,
notadamente com a convergência das duas principais teorias, o neo-realismo e o
institucionalismo neoliberal, no que ficou conhecido como a “síntese
racionalista”. Em seguida, trataremos da “reorientação construtivista” assumida
por um considerável número especialistas no campo. Ao tratar do
Construtivismo, faremos um breve resumo de seus argumentos e diferençaremos
suas correntes internas86.

O aparecimento de abordagens críticas ao positivismo, que havia


dominado os estudos de RI nas quatro ou cinco décadas anteriores (sobretudo os
publicados nos Estados Unidos ou influenciados pela visão dessa academia), deu

86
Para esta seção utilizaremos alguns textos que, em conjunto, proporcionaram ao autor do
trabalho uma visão sobre o período abrangido aqui: SMITH (1995, 1996), WÆVER (1996, 1998),
VASQUEZ (1995), SORENSEN (1998), GUIMARÃES (2001), ROCHA (2002), WENDT (1998),
ADLER (1997), RUGGIE (1998), CHECKEL (1998), KATZENSTEIN, KEOHANE & KRASNER (1998),
NICHOLSON (1996), NICHOLSON & BENNETT (1994), HALLIDAY (1999), BALDWIN (1993) e
GOLDSTEIN & KEOHANE (1993).
90
origem, ainda nos anos 1980, a um debate que ficou conhecido como positivismo
versus pós-positivismo (GUIMARÃES, 2001, p. 47). Yosef LAPID, já em 1989,
fazia referência ao debate iniciado pelas críticas levantadas, por autores das mais
variadas correntes e trazendo para a TRI distintas inspirações, contrários ao
positivismo, doutrina filosófica que delega a um modelo de ciência a tarefa de
conhecimento da verdade sobre o mundo, modelo este inspirado nas Ciências
Naturais e que deixa de problematizar a relação entre sujeito e objeto, admitindo
que o conhecimento objetivo do mundo pode decorrer de uma atividade científica
metodologicamente cuidadosa87.

O domínio do positivismo passou a sofrer críticas severas e de


conseqüências profundas. O desafio pós-positivista abalou os fundamentos mais
sólidos da ortodoxia teórica e lançou o campo teórico em novas jornadas. Esse
desafio colocou os teóricos na busca de novas concepções quanto ao modelo de
ciência e aos critérios de aceitação do conhecimento científico. Da análise da
literatura, não resta quaisquer dúvidas de que o campo foi sacudido ainda na
década de 1980. Qualquer estudioso que pesquise os trabalhos publicados, desde
então até os mais recentes periódicos especializados, percebe a crescente adesão
ao pós-positivismo, seja em qual for de suas variantes, além da preocupação com
uma série de questões marginalizadas ou até mesmo silenciadas pela TRI.

Tal foi a importância do desafio pós-positivista, que LAPID defendeu o


argumento de que estaria havendo (em 1989), na TRI, o Terceiro Debate
(WÆVER, 1996, p. 156; SMITH, 1995, p. 24-25; SMITH, 1996, 12). Esse
argumento foi publicado em um artigo, com o título de “The Third Debate: On
the Prospects of International Theory in a Post-Positivist Era”, no influente
periódico International Studies Quarterly (editado pela International Studies
Association), influência constatada pelo status e circulação que possui, não só na
academia norte-americana, mas em todo o campo de estudos. Os ataques ao
positivismo vieram de diversas abordagens, as quais comentaremos logo adiante.

87
SMITH (1995, p. 24).
91
Para LAPID, essas novas abordagens, em conjunto, constituíam o desafio pós-
positivista, que haveria lançado a teorização em RI em uma “era pós-positivista”:

“´The Third Debate´ has according to Lapid stimulated self-reflection in IR and by


use of closer connections to meta-theoretical debates elsewhere in the social
sciences furthered a revolt against positivist left-overs, and thereby pointed towards
new measures for objectivity and science in IR” (WÆVER, 1996, p. 156)
Criticando a versão de LAPID, WÆVER, sete anos depois, afirmou que
aquela versão era problemática, não só pela questão da contagem dos debates
(que comentamos na introdução deste capítulo), mas também em termos de
conteúdo, por reduzir o debate a questões epistemológicas. Segundo WÆVER
(1996, p. 156-157), o debate foi verdadeiramente um debate fundamentalmente
sobre Filosofia, além de discutir ainda questões relacionadas à Epistemologia e à
Ontologia das Relações Internacionais:

“In the Lapid version, the debate of post-structuralists (and others) with rationalists
is turned into a question of epistemology (how do we know?) and something close
to the second debate (on a higher level). This is too superficial in relation to the
truly philosophical [grifo no original] nature of the fourth debate. (…) But first of
all it is a much more fundamental challenge of basic assumptions regarding
objectivity, subjectivity (the author, signature and the work), object/subject
distinctions, the use of dichotomies, the rule by Western metaphysics over
seemingly diverse ways of thought, and about referential versus relational
conceptions of language, and much, much more”
O rótulo vago de “pós-positivismo”, conforme destacou SØRENSEN
(1998, p. 84), contém uma variedade de abordagens. O que os vincula, então?
Pesquisando na literatura a respeito, encontramos duas características em
comum: em primeiro lugar, uma abordagem crítica das Relações Internacionais,
no sentido de questionar a neutralidade política e axiológica do conhecimento
científico, como desenvolvido na crítica da chamada Escola de Frankfurt, no
início do século XX; e, por outro lado, um ataque massivo às assunções que
constituem o núcleo do positivismo. As conseqüências desse desafio foram
marcantes para a TRI:

“There can be little doubt both that these various approaches represent a massive
attack on traditional or mainstream international theory, and that this traditional or
mainstream theory has been dominated by positivist assumptions. I do not think
that either of these assertions is in the least bit controversial (…)” (SMITH, 1996, p.
12)

92
No mais, esse desafio ao positivismo já havia avançado bastante em
outras Ciências Sociais, marcando um movimento de ruptura com a forma
dominante de se pensar um modelo de conhecimento científico válido. Conforme
destacou VASQUEZ (1995, p. 217), assim como varreram outras Ciências Sociais,
por mais de duas décadas, as críticas ao positivismo findaram por ressoar no
estudo de RI, não sem o atraso habitual:

“For over two decades, various criticisms of positivism – some justified and some
fatal wounds on men of straw – have swept through the social sciences.
International relations has been no exception to these debates, but, as is usual for it,
they have come to the discipline late.”
Antes, porém, de apresentaremos algumas das abordagens que lançaram
desafio ao positivismo, já que o Construtivismo é fruto do movimento pós-
positivista, devemos definir o próprio positivismo. Para tanto, iremos tratar da
história do positivismo nas Ciências Sociais, expor suas três principais variantes
cronológicas e destacar qual delas teve maior influência sobre as Relações
Internacionais.

O positivismo tem uma longa história nas Ciências Sociais. Seu


aparecimento deu-se com a obra do filósofo francês Auguste COMTE (1798-
1857), que em 1830 publicou seu Curso de Filosofia Positiva. COMTE estava
interessado em fundar uma ciência positiva da sociedade, que ele denominou
“sociologia”: “O próprio Comte cunhou a palavra ´sociologia´ para expressar o
que Hume denominou ciência do homem. Segundo Comte, esta ciência ainda não
fora estabelecida, e ele se considerava seu fundador” (RUSSEL, 2001, p. 397).

A primeira variante foi desenvolvida então por COMTE. Seu projeto era a
fundação de uma ciência positiva da sociedade, baseada nos métodos próprios
das Ciências Naturais. Influenciado por pensadores como Giambatista VICO, que
propunha a tese de que o historiador pode descobrir as leis gerais do processo
histórico, COMTE tinha como objetivo revelar as leis causais que explicavam os
fenômenos observáveis: “insistindo em que devemos começar com o que a
experiência nos dá diretamente, abstendo-nos de tentar ir além dos fenômenos”
(RUSSEL, 2001, p. 396-397).

93
Defendendo a primazia da história nos assuntos humanos, formulou a
teoria das três fases do desenvolvimento histórico da humanidade. Ele acredita
que “a sociedade parte de uma fase inicial teológica, passa por uma fase
metafísica, e afinal chega ao que ele chama de fase positiva, que conduz o
processo histórico à sua conclusão adequada e feliz” (RUSSEL, 2001, p. 396). A
sociedade, no último estágio, seria regida pela ciência racional. Sua visão da
história é essencialmente otimista, compartilhando com outros filósofos daquele
período a crença no progresso da humanidade e do conhecimento.

Finalmente, COMTE acreditava na neutralidade do conhecimento


positivo da sociedade, além de defender a unificação metodológica entre todas as
ciências. Esta visão influenciou gerações de sociólogos, sobretudo no século XIX
e princípio do século seguinte. Acerca da relevância desta variante do
positivismo nas RI, comenta SMITH (1996, p. 14):

“(...) Crucially, he therefore thought that all sciences (including the sciences
dealing with society) would eventually be unified methodologically. (...) It is an
assumption that still dominates the discipline of International Relations insofar as
scholars search for the same kinds of laws and regularities in the international
world as they assume characterise the natural world”.
A segunda variante do positivismo está ligada ao que ficou conhecido
como positivismo lógico, surgido no grupo de pensadores que se reuniram no
chamado Círculo de Viena, na década de 1920. A proposição central dos
membros dos positivistas lógicos é a de que a ciência constitui a única verdadeira
forma de conhecimento, e que nada pode ser conhecido além do que pode ser
conhecido pela ciência:

“Hence, statements were only cognitively meaningful if they could be falsified or


verified by experience. (…) Thus, for instance, logical positivists rejected Comte´s
notion of causal laws explaining observable phenomena as metaphysical and
therefore unscientific. In international relations, such a view would mean that it
was simply not possible to speak of unobservables such as the structure of the
international system or the ´objective´ laws of human nature” (SMITH, 1996, p. 14).
Finalmente, a terceira variante foi a que exerceu maior influência sobre as
Ciências Sociais nos últimos cinqüenta anos. Esta variante emergiu do
positivismo lógico, porém, como destaca SMITH (1996, p. 15), “moved away
from its extermely stark criteria for what counts as knowledge and its

94
reductionist view (contra Comte) that all cognitive knowledge should be based
on the principles of physics”.

Christopher LLOYD resumiu as quarto características desta variante:


logicismo, com a visão de que a confirmação objetiva da teoria científica deve se
conformar à lógica dedutiva; verificação empírica, com a idéia de somente
proposições que são verificáveis ou falsificáveis empiricamente (proposições
sintéticas), ou verdadeiras por definição (proposições analíticas), podem ser
consideradas científicas; distinção entre teoria e observação, com a estrita
separação entre as observações e as teorias, permitindo assim a neutralidade das
observações diante das teorias; e, afinal, uma teoria da causalidade tomada de
Hume, com a idéia de estabelecer uma relação causal, que seja uma relação
invariável no tempo, vale dizer, a-temporal (apud SMITH, 1996, 15).

Destacando a importância desta variante para as Ciências Sociais, SMITH


resume o argumento de Carl HEMPEL, sobre a explicação de um evento.
Transcrevemos este trecho pela influência que esta argumentação exerce sobre o
campo das RI:

“This view was extremely important in the social sciences, where the orthodoxy of
the 1950s and 1960s was one of trying to apply the ideas of main proponents of this
view, Carnap, Nagel, Hempel and Popper, to the fledgling social science
disciplines. Particularly important was the work of Carl Hempel (especially 1966
and 1974) because he developed an extremely influential account of what is
involved in explaining an event. He argued that an event is explained by ´covering´
it under a general law. Usually this takes the form of a deductive argument
whereby (1) a general law is postulated, (2) antecedent conditions are specified,
and (3) the explanation of the observed event deduced from (1) and (2). This model
is known as ´deductive-nomological´ model, and Hempel argued famously that it
could be applied to the social sciences and to statistical´ model, whereby statistical
or probabilistic laws are established inductively and are used to show how a
specific event is highly likely given the established law (1966, p. 11)” (SMITH,
1996, p. 15)
Esta última variante, como destacou o autor, sustenta muito da literatura
em Relações Internacionais desde a década de 1950, com a aparição do
movimento behavioralista. Conforme resume, o positivismo dominou o estudo
das RI desde aquela década, compartilhando basicamente quatro assunções
subjacentes e freqüentemente profundamente implícitas (monismo naturalista,
possibilidade de objetividade, crença em regularidades e empiricismo):

95
“The first is a belief in the unity of science (including the social sciences). This was
especially influential in international relations, and many would argue continues to
be so. (…) In philosophical language this is known as naturalism, of which there
are strong and weak versions; the strong view is that there is no fundamental
difference between the social and the ´natural´ worlds; the weaker version is that
despite differences between the two realms the methods of the natural sciences can
still be used for the analysis of the social world”
“The second influential assumption is the view that there is a distinction between
facts and values, and, moreover, that ´facts´ are theory neutral (…) In philosophical
terms this is an objectivist position, one that sees objective knowledge of the world
as possible despite the fact that observations may be subjective”
“Thirdly, there has been a powerful belief in the existence of regularities in the
social as well as the natural world. This, of course, licenses both the ´deductive-
nomological´and the ´inductive-statistical´ forms of covering law explanation”
“Finally, there has been a tremendous reliance on the belief that it is empirical
validation or falsification that is the hallmark of ´real´ enquiry, (…); in
philosophical language this is the adoption of an empiricist epistemology” (SMITH,
1996, p. 16)
Aproveitando a última característica acima, diferençaremos, com o autor,
positivismo e empirismo. Como observa, os dois termos são usados de forma
confusa nas RI, ou às vezes até de forma intercambiável. Segundo SMITH, o
positivismo é uma metodologia que se garante em uma epistemologia empirista:

“An answer to the question ´what does positivism mean in international relations?´
can now be given. Positivism is a methodological view that combines naturalism
(in either its strong (ontological and methodological) or its weak (methodological)
sense), and a belief in regularities. (…) I do not accept the view that empiricism =
positivism = epistemology + methodology; rather positivism is a methodological
position reliant on an empiricist epistemology which grounds our knowledge of the
world in justification by (ultimately brute) experience and thereby licensing
methodology and ontology in so far as they are empirically warranted” (SMITH,
1996, p. 17).
A revolução behavioralista, ocorrida a partir dos anos 1950, teve
conseqüências significativas para o campo teórico das Relações Internacionais.
Na década de 1980, os principais debatedores na ortodoxia teórica eram, de uma
certa maneira, uma síntese do positivismo postulado, com as tradições realista e
liberal. WÆVER comenta que durante a década de 1980 o realismo se tornou neo-
realismo, e o liberalismo, institucionalismo neoliberal. Em suas palavras, que se
traduzidas talvez perdessem a clareza e a força: “Both underwent a self-limiting
redefinition towards an anti-metaphysical, theoretical minimalism, ad they
became threby increasingly compatible. A dominant neo-neo syntesis became the

96
research programme of the 1980s” (1996, p. 163). Esta síntese ficou conhecida
como “síntese racionalista”.

Instaurou-se então um debate entre o neo-realismo e o institucionalismo


neoliberal. Este debate, iniciado no último quartel do século passado, também
teve grande repercussão na TRI, absorvendo muito dos principais esforços
teóricos e empíricos desprendidos na disciplina na década de 1980. Basicamente,
enfrentavam-se os desafios dos denominados institucionalistas neoliberais – na
linha dos trabalhos do prestigiado professor Robert KEOHANE, a partir da
publicação em 1984 de sua obra After Hegemony, e seus colegas88 – soerguidos
frente aos neo-realistas – ou realistas estruturais, como Kenneth WALTZ
denominou em sua obra Theory of International Politics, de 1979. Esta contenda
em muitos aspectos consiste de uma evolução das tradições liberal –que teria de
certa forma sido incorporada pelas abordagens transnacionalistas da década de
1970 e pelos neoliberais na de 1980 – e da realista, esta última entretanto
influenciada pelo behavioralismo a partir da década de 1950, resultando no neo-
realismo, que constrói um modelo hipotético-dedutivo inspirado na teoria micro-
econômica.

A obra de WALTZ (1979) consistiu em uma reformulação da tradição


realista, influenciada pelo behavioralismo. RUGGIE habilmente resume o modelo
neo-realista:

“Briefly it goes like this: the international system is characterized by the structural
condition of anarchy, defined as the absence of central rule. As a result, states, the
wielders of the ultimate arbiter of force, are its constituent units. The desire of
these units, at a minimum, to survive is assumed. And because no one can be
counted on to protect anyone else, all are obliged to fend for themselves as best
they can or must. Their doing so triggers corresponding efforts by similarly
motivated others. Hence, the tendency to balance power is an inherent by-product
of self-help. And the distribution of capabilities among states, therefore, is the most
important determinant of outcomes – including the very interdependence that
liberalism has viewed as an independent variable, with multipolar systems said to
exhibit a higher level of interdependence among the major powers than bipolarity”
(1998, p. 6).

88
A obra associada ao início do neoliberalismo, datada de 1984, denomina-se After Hegemony,
embora seu programa de pesquisa tenha em verdade sido instaurado na obra publicada por
KEOHANE em co-autoria com Joseph NYE em 1977, Power and Interdependence.
97
Comentando o abandono da perspectiva transnacionalista pelo
professor KEOHANE em prol de um programa de pesquisa institucionalista neo-
liberal, acrescenta ele que este último aproxima-se do realismo quando assume
que “states are the principal actors in international politics; they are driven by
their conceptions of self-interests; a system of self-help prevails; and relative
capabilities ‘remain important’”, diferenciando-se no entanto quando defende
que “where common interests exist realism is too pessimistic about the prospects
for cooperation and the role of institutions” (1998, p. 8).

A aproximação entre o neo-realismo e o institucionalismo neoliberal


permitia o enfrentamento dos discursos teóricos e dos resultados empíricos das
pesquisas, superando assim a incomensurabilidade dos paradigmas, característica
do Debate Interparadigmático. Ao contrário, “they shared a ´rationalist´ research
programme, a conception of science, a shared willingness to operate on the
premise of anarchy (Waltz) and investigate the evolution of co-operation and
whether institutions matter (Keohane)” (WÆVER, 1996, p. 163). Assim, o debate
entre os neo-realistas e institucionalistas neoliberais consumiu consideráveis
esforços dos estudiosos de RI durante a década de 1980.

No início dos anos 1990, entretanto, David BALDWIN já apontava os


resultados desse enfrentamento. No fundo, restaram seis pontos de disputa
existentes entre as duas correntes teóricas (BALDWIN, 1993, p. 4-11):

“six focal points, (...), characterize the current debate between neoliberalism and
neorealism: the nature and consequences of anarchy, international cooperation,
relative versus absolute gains, priority of state goals, intentios versus capabilities,
and institutions and regimes”.
Procuraremos resumir os seis pontos identificados por BALDWIN. Em
primeiro lugar, quanto à natureza e conseqüências da anarquia do sistema
internacional, os neo-realistas consideram que a anarquia impõe
constrangimentos mais severos ao comportamento estatal, com a conseqüente
preocupação com a segurança, do que consideram os institucionalistas
neoliberais. Segundo, embora os dois lados reconheçam a possibilidade da
cooperação internacional, os neo-realistas a vêem como mais penoso de atingir,
mais difícil de manter, e mais dependente do poder estatal, do que os
98
institucionalistas neoliberais. Terceiro, estes últimos realçam a preocupação dos
estadistas com os ganhos absolutos, os neo-realistas enfatizam os ganhos
relativos, quando lidam com a cooperação internacional. Quarto, existe uma
tendência dos neo-realistas em se preocuparem com temas relacionados a
segurança, enquanto institucionalistas neoliberais tendem a investigar questões
ligadas a economia política internacional. Em conseqüência, vislumbram
diferentes prospectos para a cooperação internacional. Quinto, neo-realistas
concentram-se nas capacidades, enquanto seus adversários destacam mais as
intenções e percepções. E, por último, enquanto os institucionalistas neoliberais
consideram que as instituições podem mitigar a anarquia do sistema
internacional, os neo-realistas duvidam disso, reconhecendo sua existência, mas
reduzindo seu significado para a política internacional. RUGGIE defendia, já em
1998, que a discussão findou por concentrar-se na questão da preocupação dos
Estados com ganhos relativos ou absolutos e no papel atribuído às instituições
(1998, p. 9-10).

Paralelamente a este debate entre o neo-realismo e o institucionalismo


neoliberal, o desafio pós-positivista continuava a gerar efeitos irreversíveis na
TRI, colocando este campo em novos caminhos. Já em 1988, como exposto na
introdução deste capítulo, o então presidente da International Studies
Association, KEOHANE, um dos partidários da ortodoxia racionalista (o mais
proeminente institucionalista neoliberal), proferiu um discurso no qual
reconhecia a existência de um debate entre racionalistas e interpretativistas (que
ele denominou, como já destacado, como reflectivists).

Nesta visão, de 1988, estariam, de um lado, os racionalistas, resultado da


convergência entre neo-realistas e institucionalistas neoliberais, e, de outro, o que
Keohane unificou sob o amplo conceito de reflectivist, que às vezes é
denominado como reflexivist, para destacar a natureza auto-reflexiva das novas
abordagens críticas (WÆVER, 1996, p.164).

Em um pólo deste debate estão as abordagens racionalistas, segundo as


quais o comportamento dos agentes sociais pode ser entendido considerando-os

99
como atores que perseguem de forma egoísta seus interesses, entendidos estes
como dados pela realidade material, de forma racional – atendendo a uma função
de utilidade da ação. Esta ação é tomada diante de um ambiente externo de
anarquia, que impõe constrangimentos ao comportamento social. Dentro desta
perspectiva podemos incluir, entre outros, os neo-realistas e os institucionalistas
neoliberais. Ocorre que esta abordagem ou estilo de pensamento nada nos diz a
respeito do que os atores valorizam nem de que comportamentos eles acreditam
ser os mais adequados para produzir o máximo benefício89.

Os defensores de epistemologias interpretativas, que denominaremos


simplesmente como interpretativistas, encontram-se no outro pólo e abrangem
desde teóricos pós-modernos, até teóricos de gênero, passando por teóricos
críticos, entre outros. Comentaremos rapidamente cada uma destas
epistemologias, para em seguida apresentarmos a abordagem construtivista.

A abordagem de mais difícil exposição refere-se aos pós-modernos, já


que esse termo possui diferentes significados nas diversas áreas do
conhecimento90, abrangendo desde os que almejam realizar uma leitura pós-
moderna das relações internacionais, sugerindo o fim do projeto histórico da
modernidade91, questionando a própria ciência moderna ou a nossa possibilidade
de conhecer a realidade objetiva, entre outros argumentos os mais variados:

“Taking their cues from writers such as FOUCAULT, DERRIDA, NIETZSCHE, HEIDEGGER
and VIRILIO, postmodern international theorists attack the very notions of reality, or
truth, or structure or identity that are central to international theory as well as all other
human sciences” (SMITH, 1995, p. 25).
Passamos também, neste amplo espectro de abordagens, pelos teóricos de
gênero – categoria também ampla mas que possui como eixo principal a
preocupação com a construção social do gênero. Com freqüência estas autoras –
não somente mas em sua maioria mulheres – são classificadas como teóricas
feministas, denominação que evitamos por considerá-la restritiva da verdadeira
preocupação desta corrente, que consiste em demonstrar a ausência de

89
KATZENSTEIN, KEOHANE & KRASNER (1998, p. 975-6).
90
VASQUEZ (1995, p. 217).
91
WELLMER apud RUGGIE (1998, p. 175).
100
neutralidade com relação a gênero tanto nas relações internacionais como no
conhecimento teórico gerado sobre estas:

“Centrally, each of these writers challenges the assumed genderless nature of


international theory, and shows how assumptions about gendered roles, and even
gendered knowledge, run through international theory. International theory is not
so much gender neutral as gender blind” (SMITH, 1995, p. 25).
Os mais influentes, sem dúvidas, foram os teóricos críticos na linha
frankfurtiana, que acabaram por contaminar muitas das outras abordagens
interpretativistas. Os teóricos críticos preocupam-se sobretudo com a
neutralidade política e ideológica do conhecimento que formulamos sobre o
mundo:

“For critical theorists, knowledge of the world is always to be understood within a


context of interests, following on from the pioneering work of the Frankfurt
School, most notably Jurgen HABERMAS. Knowledge is not neutral, as positivists
suggest. For critical theorists, problem-solving positivism needs to be replaced by a
critical theory, aware of the political interests it represents, and with an overt
commitment to emancipation” (SMITH, 1995, p. 24).
Emanuel ADLER acredita que esse debate diz respeito à “natureza da
realidade internacional e como os estudiosos deveriam estudá-la”92. Ou, dito de
outra forma, discute-se a própria ontologia e a epistemologia das Relações
Internacionais e, assim, o debate atinge uma maior abstração teórica do que os
debates anteriores haviam alcançado. É neste debate, entre racionalistas e
interpretativistas, que se insere a abordagem construtivista, segundo ele.

De acordo com a pesquisa realizada para a elaboração deste trabalho,


percebemos que houve, nos últimos anos, uma concentração do debate. Esta
concentração do debate, passando a protagonistas racionalistas, de um lado, e
construtivistas sociais, de outro, pode ser percebida sobretudo a partir da segunda
metade da última década do século passado93. Segundo KEOHANE,
KATEZENSTEIN & KRASNER (1998, p. 646), este debate se tornara, então, central
para o campo:

92
ADLER (1997, p. 201; 202).
93
Um sinal desta concentração da disputa intelectual é a edição especial comemorativa da
International Organization, no volume 52, número 4, de 1998, que traz textos comparando as
abordagens.
101
“We argue (in the fourth section of the article) that rationalism (encompassing both
liberal arguments grounded in economics that emphasize voluntary agreement and
realist arguments that focus on power and coercion) and constructivism now
provide the major points of contestation for international relations scolarship. (…)
Since the mid-1980s a new debate between constructivism and rationalism
(including both realism and liberalism) has become more prominent. New
theoretical developments in rationalist institutional theory, open-economy
economics, and comparative politics provided scholars with new openings as the
Cold War ended. Conventional and critical constructivists, influenced by new
trends in the humanities, put forward sociological perspectives that emphasized
shared norms and values but which were in epistemological terms sharply
differentiated from postmodernism. In the field of national security the discussion
between rationalism (in its realist and liberal variants) and constructivism has been
more fully joined than in the field of IPE [International Political Economy]”.
Reivindicando ocupar uma posição de meio-termo94 no debate entre
racionalistas e interpretativistas, encontramos a abordagem teórica do
construtivismo. Apesar de encontrar-se entre dois extremos – racionalismo e
interpretativismo – as baterias da artilharia construtivista foram pouco a pouco se
voltando contra o primeiro deles, como resultado da concentração do debate
ocorrida. Em conseqüência desta característica do desenvolvimento acadêmico
da TRI estaremos de agora em diante focalizando a oposição entre o
construtivismo e a denominada síntese racionalista (às vezes chamada de neo-
utilitarista), que abarca neo-realistas e institucionalistas neoliberais.

John G. RUGGIE, em seu artigo no qual procura realizar uma


exposição bem organizada do construtivismo e de suas críticas lançadas contra o
racionalismo (What makes the world hang together? Neo-utilitarianism and the
social constructivist challenge), afirma que embora iniciando em pontos de
partida divergentes e tomando caminhos distintos, as duas correntes teóricas –
neo-realismo e institucionalismo neoliberal – findaram por convergir na
denominada síntese, dividindo hoje fundações analíticas muito similares. Assim,
ambas tomam a anarquia do sistema internacional como constrangedora da ação
dos agentes, consideram os Estados como atores centrais das relações
internacionais, com interesses e identidades dados, a priori e de forma exógena –
vale dizer, externos e não explicados nos termos de suas teorias –, Estados estes
que agem como atores racionais que buscam maximizar as utilidades esperadas,

94
ADLER (1997).
102
definidas em termos de elementos materiais como poder, segurança ou bem-
estar. Acrescenta ainda o autor que ambas procuram explicar os padrões de
interação social como o resultado das ações dos Estados, que se valem de suas
capacidades para alcançar suas preferências – coincidem assim ao abraçar o
individualismo metodológico. Pela adoção de epistemologias positivistas, ambas
teorizam baseando-se no modelo hipotético-dedutivo, consistindo este na
concepção de que um evento é explicado quando este pode ser deduzido
formalmente de uma lei generalizante e um conjunto de condições95. Os
racionalistas filiam-se ao monismo naturalista, postura esta que procura
estabelecer a existência de um só modelo de ciência, qual seja aquele espelhado
em uma filosofia positivista das ciências naturais.

Realizando uma aproximação mais sociológica e valendo-se de


conhecimento gerado sobretudo nas outras Ciências Sociais, o construtivismo
considera que a realidade social é composta não somente do mundo material mas
também dos elementos ideacionais, elementos estes que possuem eficácia social
além da vinculada a qualquer função de utilidade. Além disso, o construtivismo
busca dar conta justamente do que é tomado como dado pelos racionalistas: os
interesses e as identidades dos atores sociais. Concebendo as relações
internacionais com base em uma ontologia mais relacional, para usar o termo
retirado de Carol GILLIGAN e utilizado por RUGGIE96, focaliza os padrões de
interação das práticas sociais (processo) em vez de centrar a atenção na natureza
dos agentes. Como conseqüência desta concepção ontológica relacional urge,
para os construtivistas, realizar-se uma abordagem científica baseada em uma
epistemologia interpretativa. Neste sentido, um protocolo explicativo narrativo é
advogado por RUGGIE como alternativa à incapacidade do modelo hipotético-
dedutivo para lidar, em toda a plenitude, com os fatores ideacionais da realidade
internacional.

Porém, vale ressaltar que a abordagem construtivista, como qualquer


perspectiva teórica, não constitui um bloco monolítico. Em seu interior existem

95
RUGGIE (1998, p. 9, 93).
96
RUGGIE (1998, p. 4).
103
também orientações distintas, ou como denominou RUGGIE, três variantes. Por
sua clareza utilizaremos a classificação construída por RUGGIE, que se refere a
três variantes do construtivismo social. Fazemos isto ainda que cientes de que as
classificações raramente correspondem à realidade, sempre mais complexa do
que os agrupamentos de autores sob rótulos específicos.

A primeira corrente, denominada construtivismo neoclássico, mantém


seus vínculos com as tradições clássicas da Sociologia de DURKHEIM e de
WEBER. Possuindo afinidade epistemológica com o pragmatismo de PEIRCE,
defende a necessidade de um conjunto de ferramentas analíticas, como teoria dos
atos de linguagem (SEARLE) e teoria da ação comunicativa (HABERMAS), que
possam conferir sentido aos significados intersubjetivos, havendo ainda por parte
destes autores uma preocupação especial com a própria idéia de ciência social. É
sobre esta variante que se debruça fundamentalmente a presente pesquisa97.

A segunda corrente recebe a denominação de construtivismo pós-


moderno. Se os neoclássicos vinculam-se a DURKHEIM e WEBER, ou mesmo a
SEARLE e HABERMAS, os pós-modernos mantém seus principais vínculos com as
obras de Friedrich NIETZSCHE, e com os pós-estruturalistas, na linha de Michel
FOUCAULT e Jacques DERRIDA. Aqui a construção lingüística dos sujeitos será
destacada e sendo assim as práticas discursivas constituem os primitivos
ontológicos, isto é, o próprio mundo social que devemos pesquisar98.

A última corrente identificada pelo autor como construtivismo


naturalista situa-se no intermédio das duas correntes anteriores. Inspirados na
doutrina filosófica do realismo científico de Roy BHASKAR, estes autores
defendem uma visão diferente do monismo naturalista antigo, esta agora
advogando não um modelo de ciências sociais tomado das ciências naturais, mas
a idéia de que qualquer investigação científica, seja ela sobre o mundo material

97
RUGGIE inclui-se nesta variante, juntamente com outros autores prestigiados como Ernst
HAAS, Friedrich KRATOCHWIL, Nicholas ONUF, Emanuel ADLER, Martha FINNEMORE e Peter
KATZENSTEIN (1998, p. 35).
98
Seguem esta corrente autores como Richard ASHLEY, David CAMPBELL, James DER DERIAN
e R. B. J. WALKER (RUGGIE, 1998, p. 35).
104
ou social, repousa basicamente sobre resultados gerados por entidades ou
fenômenos não-observáveis99.

Tendo realizado uma exposição do desenvolvimento das discussões da TRI,


atingimos o objetivo de situar a abordagem construtivista na história intelectual da
disciplina, podendo então seguir para as partes subseqüentes, que explorarão a
abordagem mais a fundo. No capítulo subseqüente, como anunciado, algumas de suas
inspirações sociológicas tomadas de DURKHEIM e WEBER, seguido do capítulo que trará
algumas contribuições teóricas do Construtivismo Social.

99
Alexander WENDT e David DESSLER são indicados como autores que realizam trabalhos na
linha do construtivismo naturalista (RUGGIE, 1998, p. 36).
105
4 CAPÍTULO III – ALGUMAS INSPIRAÇÕES
SOCIOLÓGICAS DO CONSTRUTIVISMO: E. DURKHEIM E M.
WEBER

Fenômeno digno de nota como algumas questões e abordagens


ultrapassam as fronteiras das disciplinas e são difundidas por distintos campos da
investigação científica social. O objetivo deste capítulo é identificar em uma
outra Ciência Social, vale dizer, na Sociologia, algumas das principais
inspirações da abordagem teórica do Construtivismo, nas Relações
Internacionais, tratando das influências da obra e do pensamento de dois autores
clássicos dos quais esta abordagem retirou muitos de seus insumos teóricos:
Èmile DURKHEIM e Max WEBER. De acordo com a estrutura do trabalho
anunciada na Introdução, este capítulo antecede aquele que explorará as
contribuições teóricas da abordagem construtivista das relações internacionais.

Aliás, a respeito do fenômeno que comentamos acima, não poderia


ocorrer de outra forma com o campo de estudos das Relações Internacionais. Ao
contrário, características próprias das RI como campo de estudos – e.g., sua
origem e seu desenvolvimento – e, acima de tudo, características dos próprios
fenômenos da realidade que lhe são objeto – históricos, sociais, econômicos,
jurídicos, entre outros –, tornaram necessário o uso de abordagens que utilizam
as categorias analíticas e instrumentos de investigação desenvolvidos em áreas
afins do conhecimento social, realçando assim o caráter multidisciplinar do
estudo das relações internacionais a que nos referimos no capítulo I.

Assim, discussões travadas inicialmente em outras disciplinas foram


trazidas para as Relações Internacionais com o intuito de apresentarem respostas
às principais questões teóricas que emergem em qualquer campo de estudos.
Dentro do amplo espectro das Ciências Sociais, que incluem a Ciência Política, a
Economia, o Direito, a Sociologia, entre outras, algumas disciplinas tiveram
maior influência do que outras sobre as RI, em medidas diferentes. Além disso,
conforme estejamos tratando deste ou daquele discurso teórico, desta ou daquela

106
abordagem, cada qual apresentará insumos retirados de uma ou de outra
disciplina. Mas um fato é certo: sempre há influência de outros campos do
conhecimento social sobre os discursos elaborados na Teoria das Relações
Internacionais.

A abordagem teórica sobre a qual nos debruçamos nesta pesquisa, a


construtivista, trouxe para as RI soluções de problemas propostas no seio de
outras Ciências Sociais, incorporando às suas formulações teóricas contribuições
produzidas principalmente na Sociologia.

Neste capítulo, conforme dito acima, trataremos de expor algumas


destas inspirações sociológicas, presentes nos dois teóricos citados. Vale destacar
aquilo que foi dito, no Capítulo I, quanto ao desenvolvimento de linguagens
especiais por determinadas comunidades acadêmicas especializadas. Este fato
será notado neste capítulo. Assim, será inevitável que a linguagem deste seja um
tanto diferenciada, sobretudo do Capítulo II, no qual expomos os debates teóricos
em RI, e, em menor medida, do próximo capítulo, justamente pelo fato de
estarmos nos movendo de nossa comunidade de RI, para a comunidade de
Sociologia. A linguagem da ciência sociológica, como decorrência do que
afirmou SARTORI, está também adaptada aos seus próprios problemas heurísticos.

Entretanto, buscaremos nos autores citados apenas aqueles pontos


mais relevantes para a compreensão da abordagem construtivista das RI. Com
vistas a obter melhores resultados, concentramos os esforços sobre os dois
autores da teoria sociológica européia cujos pensamentos constituem verdadeiras
tradições sociológicas para com as quais o Construtivismo possui uma relação de
filiação intelectual, buscando nelas ferramentas epistemológicas, teóricas e
metodológicas para solucionar os problemas postos no estudo das relações
internacionais.

Ressaltamos que os construtivistas indicam outros autores que


também buscam teorizar sobre o mundo social como fontes de inspiração. Só
para ficarmos com alguns exemplos, freqüentemente encontramos referências a
pensadores mais recentes como Jürgen HABERMAS, Georg MEAD, John SEARLE,

107
Anthony GIDDENS, Clifford GEERTZ, entre outros tantos100. Ademais, conforme
afirma RUGGIE, “because of the inductive manner in which constructivism
emerged in the field of international relations, both empirically and theoretically,
there may be almost as many variants of it – or at least emphases – as there are
practioners”101. Quanto às variantes da abordagem construtivista, já as expomos,
resumidamente, na última seção do capítulo anterior, ao tratar da reorientação
construtivista. Podemos adiantar, desde logo, que a corrente do Construtivismo
que estaremos expondo aqui possui raízes fundamentais – ou os tem como
precursores clássicos, conforme os chamou RUGGIE – no pensamento de
DURKHEIM e WEBER.

Pois bem, as duas seções deste capítulo estão divididas entre


DURKHEIM e WEBER. Verdadeiros mentores de duas tradições da sociologia, há
muito que os diferencia, mas também alguns fatos que os aproximam.
Destacaremos aqui algumas similaridades, para em seguida, nas respectivas
seções, tratarmos das diferenças de seus discursos teóricos.

Em primeiro lugar, ambos pertencem à mesma geração de intelectuais


europeus. O pensador francês nasceu em 1859, e o germânico seis anos depois,
em 1864. Ao que tudo indica, conforme referências consultadas na literatura, a
obra de um não chegou às mãos do outro. Entretanto, vivenciaram o mesmo
momento histórico, testemunhando, cada um em um local geográfico distinto,
algumas transformações sociais comuns ao ambiente europeu do fim do século
XIX.

O último quartel do século XIX foi marcado por intensas e aceleradas


transformações. As transformações econômicas, políticas e culturais que haviam
tido início nos séculos anteriores por fim consolidavam a desagregação da
sociedade feudal e o estabelecimento da sociedade capitalista. A cada avanço em
direção à consolidação da sociedade capitalista correspondia a conseqüente

100
RUGGIE (1998); ADLER (1997).
101
RUGGIE (1998, p. 28).
108
desintegração, o solapamento de costumes e instituições da sociedade tradicional
até então existentes e a introdução de novas formas de organizar a vida social102.

Ambos, DURKHEIM e WEBER, presenciaram um período histórico que


foi retrospectivamente denominado como uma era privilegiada (la belle
époque)103. A era derradeira do século XIX, que foi longo, considerado aqui
desde a perspectiva do historiador inglês Eric HOBSBAWN, estendendo-se até a
Primeira Guerra Mundial104, foi marcada por um clima de euforia e de esperança,
sobretudo por conta do progresso econômico, que deixava nos europeus, por
vezes, a impressão de que a humanidade desfrutaria de ininterruptos progressos
no campo tecnológico. Basta lembrar que é o período no qual se passou a utilizar
o petróleo e a eletricidade como principais fontes de energia, iluminando os
principais centros urbanos europeus e alimentando a crescente produção
industrial daqueles povos. Ademais, conforme relata ARON, o fim do século XIX
foi o período mais pacífico até então presenciado no continente europeu. A
Europa era relativamente pacífica então, com poucos e localizados conflitos
armados ocorrendo, desde o Congresso de Viena, em 1815, até a detonação da
Primeira Guerra Mundial, em 1914, sendo que estes conflitos não haviam
alterado fundamentalmente o curso da história européia. Por outro lado, foi
também um período bastante conturbado, do ponto de vista social. Intermitentes,
mas constantes, crises econômicas causavam desemprego e miséria entre a
grande massa de trabalhadores da emergente sociedade industrial européia, o que
ocasionava, em conseqüência, o aumento das lutas de classes, com os operários
utilizando a greve como instrumento político e com a fundação dos sindicatos de

102
ROUANET (1999, p. 120).
103
ARON (1967, p. 11).
104
Para HOBSBAWN (1995, p. 16), a Primeira Guerra “assinalou o colapso da civilização
(ocidental) do século XIX. Tratava-se de uma civilização capitalista na economia; liberal na
estrutura legal e constitucional; burguesa na imagem de sua classe hegemônica característica;
exultante com o avanço da ciência, do conhecimento e da educação e também com o progresso
material e moral; e profundamente convencida da centralidade da Europa, berço das revoluções
da ciência, das artes, da política e da indústria e cuja economia prevalecera na maior parte do
mundo, que seus soldados haviam conquistado e subjugado; uma Europa cujas populações
(incluindo-se o vasto e crescente fluxo de emigrantes europeus e seus descendentes) haviam
crescido até somar um terço da raça humana; e cujos maiores Estados constituíam o sistema da
política mundial”.
109
trabalhadores. Parcialmente em conseqüência desta mobilização sindical, a
Europa conheceu o que ficou conhecido em parte da literatura econômica como a
Primeira Grande Depressão, que durou de 1873 a 1896. Seguiu-se a esta crise do
capitalismo industrial um fortalecimento das empresas pela centralização e
concentração do capital, com os capitalistas preferindo investir em tecnologia a
manter a quantidade de trabalhadores, agora mais caros, em virtude de algumas
conquistas laborais. Conforme afirmou o historiador ARRUDA, iniciou-se então
uma nova fase do capitalismo, a monopolista ou financeira, que se desdobrou na
exportação de capitais e no processo de colonização da África e da Ásia105.

Foi o final do século XIX o período no qual DURKHEIM e WEBER


escreveram a quase totalidade de suas obras (DURKHEIM faleceu em 1917, aos 59
anos, e WEBER, em 1920, aos 56). Diante deste quadro histórico, em vez do
otimismo que seria de se esperar, considerando-se o aparente progresso da
sociedade européia, sobretudo nos campos científico, tecnológico e econômico,
ambos compartilham a opinião, comum na época, de que a sociedade européia
encontrava-se em crise. Aliás esta opinião não era em si mesma original: há
poucas gerações que não hajam tido a impressão de viver em um período de crise
ou em um tempo no qual uma mudança importante tem início, um ponto de
virada. Com efeito, como afirma ARON, seria mais difícil encontrar, ao menos
após o século XVI, uma geração européia que tenha acreditado viver em um
período estabilizado. E sentencia: “I should say that the impression of stability is
almost always retrospective”106.

Agora deixamos para trás a contextualização histórica. Passamos


então ao pensamento durkheimiano e weberiano. Ambos compartilhavam, como
dito, a opinião da ocorrência de uma crise social profunda, ligada à mudança cuja
causa fundamental estava ligada à relação entre religião e ciência: a inconciliável
contradição entre a fé e a razão. Mais além, possuíam em comum a busca de uma
ciência da sociedade, a Sociologia, conscientes da exaustão paulatina dos valores

105
ARRUDA (1991, p. 185).
106
“[they], albeit in different ways, were of the opinion that European society was in crisis. This
opinion is not in itself very original; there are few generations which have not had the
impression of living through a crisis or a turning point” (ARON , 1967, p. 11).
110
religiosos tradicionais. Neste contexto de erosão dos valores religiosos,
buscavam os vínculos e crenças que poderiam estruturar de forma coerente a
sociedade. No dizer de ARON, ainda que por caminhos diferentes, ambos
retomaram a idéia de Auguste COMTE, de que as sociedades somente podem
manter a coerência através de crenças comuns107.

Neste ponto então encontramos o principal aspecto do pensamento


destes autores que vai interessar à abordagem construtivista em RI: a
preocupação com os fatores ideacionais. Exatamente por possuírem a convicção
comum de que as sociedades mantêm-se unidas por crenças coletivas – que são
fatores ideacionais, no sentido ontológico de que são idéias que se encontram nas
cabeças dos indivíduos – ambos estão distantes de aceitar qualquer explicação do
comportamento dos indivíduos, que desconsidere o que ocorre nas consciências
humanas. Buscavam assim transcender tanto o comportamentalismo, que
enxergava as ações humanas como meras reações aos estímulos externos, ou
constrangimentos estruturais, como as interpretações estritamente econômicas
das motivações humanas para a ação108.

Buscando explicações para esta similaridade existente entre os dois


sistemas de interpretação conceitual do comportamento humano, de DURKHEIM e
de WEBER, cabe aqui transcrevermos um trecho escrito por ARON (no qual ele
está se referindo também a outro sociólogo, PARETO), para então passarmos a
expô-los, destacando melhor as diferenças, que também existem entre eles e são
relevantes:

“The origin of this formal similarity is, I think, the problem of science v. religion,
which is common to them. At least this is one [grifo do autor] reason for this formal
similarity. There is, in fact, another possibility: it is that all three discovered a part
of the true system of the explanation of behaviour; and when writers meet in the
truth, this meeting needs no other explanation. As Spinoza said, it is the fact of
error which needs explanation, and not the discovery of truth.”109

107
ARON (1967, p. 12).
108
ARON (1967, p. 15).
109
ARON (1967, p. 15).
111
4.1 ÈMILE DURKHEIM

DURKHEIM é considerado um dos pais fundadores da Sociologia. Sob


influência de Auguste COMTE e SAINT-SIMON, o projeto do sociólogo francês era
fundar uma sociologia positiva. COMTE havia cunhado, em seu Curso de
Filosofia Positiva, publicado a partir de 1830, o próprio termo “sociologia”.
Buscavam fundar uma ciência da sociedade, concentrando sua atenção na
natureza e nas conseqüências da Revolução Francesa. Guardando um certo
rancor pela revolução, COMTE e SAINT-SIMON propunham-se realizar a tarefa de
compreender a sociedade para poder encontrar soluções para aquilo que
denominavam como “anarquia”, “desordem”, “crise”, ou simplesmente como
“patologias” sociais.

O pensamento social passava, assim, de revolucionário – com os


iluministas do século XVIII, que haviam dado sustentação intelectual à
Revolução – a conservador – buscando utilizar o conhecimento para manter a
ordem social110. Defendia-se, então, uma passagem do pensamento social do
estágio revolucionário a reorganizador, ensinando os homens a aceitar a ordem
existente, deixando de questioná-la.

DURKHEIM estava consciente deste interesse prático da sociologia,


estabilizador da sociedade. Estava convencido também da necessidade de se
fundar uma sociologia positiva. Esta ciência, na visão dele, deveria substituir a
religião na função de conservação social. Era com grande preocupação que o
pensador via exaurirem-se os vínculos religiosos que mantinham a coesão social
da sociedade européia do final do século XIX. Nesta nova sociedade, apoiada nos
conhecimentos sociológicos, os cientistas ocupariam o papel do clero na
sociedade feudal, assim como os comerciantes, industriais e banqueiros
substituiriam os senhores feudais. Conforme resumiu as idéias positivistas
brilhantemente o filósofo RUSSELL, em sua obra que recebeu o Prêmio Nobel de
Literatura de 1950: “A humanidade positiva será regida pela autoridade moral de
uma elite [grifo do autor] científica, ao passo que o poder executivo será

110
RUSSELL (2001, p. 387).
112
confiado a especialistas técnicos”. E completa: “este arranjo não é diferente do
estado ideal da República de Platão”111.

A questão da ordem social seria, para DURKHEIM, uma constante.


Ocupou-se de forma sistemática com o estabelecimento do objeto de estudo da
sociologia, com o mesmo afinco com o qual se dedicou a indicar o método de
investigação científica deste objeto. Com esta preocupação, conseguiu prestígio
suficiente a permitir que a sociologia penetrasse os meios universitários
franceses.

A ligação entre a consciência do papel da sociologia e a crise moral


pela qual passava a sociedade francesa foi identificada na obra de DURKHEIM e
exposta de forma bastante clara por ARON. Segundo este comentador, a
expressão deste problema na obra do sociólogo é simples porque se trata de um
professor francês de Filosofia que pertencia à tradição secular, cujo pensamento
facilmente se incorpora ao diálogo, que ARON não se atreve a chamar de eterno,
mas o chama de perene, entre o pensamento eclesial, da Igreja Católica e o
pensamento secular, diálogo que, no caso da história francesa, preenche muitos
séculos. E continua: “As a sociologist, DURKHEIM thought he observed that
traditional religion no longer satisfied the exigencies of what he called the
scientific spirit. At the same time, as a good disciple of Auguste COMTE he
considered that a society needs consensus and that consensus can be established
only by absolute beliefs”112. Segundo o diagnóstico durkheimiano, a crise da
sociedade moderna era resultado da não-substituição das moralidades
tradicionais baseadas nas religiões por uma moralidade baseada na ciência. Era
papel da sociologia, então, ajudar a estabelecer esta moralidade.

Lembre-se o leitor que o pensador francês produziu em um contexto


no qual as idéias socialistas ganhavam terreno. No entanto, ele discordava da
ênfase dada pelas teorias socialistas aos fatores econômicos na realização da
diagnose da crise social européia. DURKHEIM acreditava que a causa da crise
estava ligada a uma certa fragilidade moral, como foi dito acima. Sendo assim, os
111
RUSSELL (2001, p. 397).
112
ARON (1967, p. 12).
113
projetos de mudança defendidos pelos socialistas, que traziam consigo mudanças
na propriedade e na distribuição da riqueza (isto é, medidas econômicas), não
seriam capazes de solucionar os problemas sociais da época. O caminho deveria
ser buscado em novas idéias morais, pois somente elas seriam capazes de guiar
os comportamentos dos indivíduos113.

O sociólogo estava preocupado em suas pesquisas com fenômenos


morais. Ele buscava demonstrar como uma diversidade de variáveis sociais –
desde religião até sentimentos de anomia, passando por análises das diferentes
taxas de suicídio em diferentes sociedades – era influenciada pelos vínculos
interpessoais da ordem social que estão embutidos nos grupos de referência aos
quais os indivíduos pertencem, desde a família até a sociedade como um todo.
DURKHEIM realizou três estudos que são considerados fundamentais em sua obra:
De la division du travail social (1893), Le suicide (1897) e Les formes
elementaires de la vie religieuse. Além destes estudos, merece destaque sua obra
metodológica Les règles de la mèthode sociologique (1895).

Em seus três estudos, o desenvolvimento adotado pelo autor é o


mesmo. Segundo ARON, em primeiro lugar é definido o fenômeno investigado;
depois, formulada a refutação das interpretações prévias; e, ao final, uma
explicação sociológica do fenômeno em questão. Mais ainda: as interpretações
refutadas têm as mesmas características – são todas individualistas, baseadas em
interpretações racionais, como as encontradas nas ciências econômicas114.

As preocupações com os fenômenos morais avançadas por DURKHEIM


são de extrema importância para os estudos construtivistas. Isto ocorre porque
seus estudos atribuem causalidade aos fatores ideacionais dentro de uma dada
sociedade. Duas tarefas constituem os pontos fundamentais na sociologia
durkheimiana: investigar o papel das idéias na vida social e como estas adquirem
causalidade social.

113
ARON (1967, p. 79-81).
114
ARON (1967, p. 68).
114
Com relação aos fatores ideacionais o autor coloca-se entre o
utilitarismo – para o qual as idéias são um reflexo do mundo material – e o
transcendentalismo – seguindo a tradição Kantiana de que a vida mental tem uma
natureza própria, mas que seu conhecimento encontra-se acima dos métodos
ordinários da ciência. Para DURKHEIM os fatores ideacionais possuem integridade
e especificidade próprias, não podendo ser reduzidos a quaisquer outros fatores.

DURKHEIM afirma que “A third school is being born which is trying to


explain [mental phenomena] without destroying their specificity”. Para os
kantianos e idealistas, criticados pela excessiva ênfase na metafísica, segundo
ele, “mental life certainly had a nature of its own, but it was one that lifted the
mental out of the world and above the ordinary methods of science”. Para os
utilitaristas, em contraste, a vida mental “was nothing in itself, and the role of
scientist was to pierce the superficial stratum in order to arrive at the underlying
realities”. Em oposição a ambas situa-se a terceira escola, a qual ele aderia, que
almeja trazer “the faculty of ideation… in its various forms, into the sphere of
nature, with its distinctive attributes unimpaired”115.

Além disso, por serem tão naturais quanto a realidade física, estes
fatores ideacionais podem e devem ser objeto de investigação científica: “(...)
esses ideais não são abstrações, frias representações intelectuais, despidas de
qualquer eficácia. São essencialmente motores; porque, atrás deles, existem
forças reais e ativas: são as forças coletivas e, por conseguinte, forças naturais,
ainda que sejam todas forças morais, e comparáveis àquelas que agem no resto
do universo. O próprio ideal é uma força desse gênero; a ciência pode, portanto,
estudá-lo”116.

Com relação ao modo como estes fenômenos mentais – logo


existentes no interior das cabeças individuais – vêm a expressar uma força social
(vale dizer, possuir causalidade social), ele novamente se distanciou do
utilitarismo, que baseava sua visão em bases atomísticas e em uma visão
instrumental e contratualista da sociedade. DURKHEIM defendia que qualquer
115
DURKHEIM apud RUGGIE (1998, p. 29).
116
DURKHEIM (1993, p. 60).
115
contrato que por ventura exista repousa sobre regulação, que é trabalho da
sociedade, e não de indivíduos117. Por outro lado, DURKHEIM rejeitou visões
orgânicas da sociedade, que a vêem como um corpo organizado a fim de cumprir
determinadas funções vitais, acrescentando que neste corpo habita uma alma, que
consiste no conjunto dos ideais coletivos, defendendo sua visão de que os fatos
sociais são o resultados da combinação de fatos individuais via interação – são,
desta forma, entidades ontologicamente intersubjetivas, ou relacionais.

Os fatos sociais, conceito central na teoria durkheimiana, são


exteriores às consciências individuais, exercendo no entanto ação coercitiva ou
sendo suscetíveis de exercer tal força sobre estas mesmas consciências. Para ele,

“é fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o
indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma
sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das
manifestações individuais que possa ter”118.
DURKHEIM, ao desenvolver suas regras do método sociológico, tratou
de definir o conceito de fato social, apresentando suas características. Em
primeiro lugar, ele afirma que não se pode utilizar o termo de forma imprecisa.
Nem todo fenômeno que se passam no interior de uma sociedade podem receber
esta qualificação. Se assim fosse, praticamente não haveria acontecimentos
humanos que não pudessem ser chamados de sociais. Perderia a Sociologia seu
objeto próprio, tendo seu domínio confundido com o da Biologia e da
Psicologia119.

Passa então a apresentar os caracteres nítidos, segundo ele, que


distinguem estes fenômenos, os fatos sociais, daqueles estudadas pelas outras
ciências da natureza. Inicia afirmando que os indivíduos desempenham, na
sociedade, deveres que estão definidos fora deles e de seus atos, no direito e nos
costumes. Mesmo que o desempenho destes deveres esteja de acordo com a
consciência individual, não foi este indivíduo que os criou, mas sim os recebeu
através da educação. Nascemos, em sociedade, e encontramos os Códigos legais,

117
DURKHEIM apud RUGGIE, 1998, p. 29.
118
DURKHEIM (2000 [1895], p. 40).
119
DURKHEIM (2000, p. 31).
116
que regulam nossas condutas; as crenças e as práticas da vida religiosa, que
presidem nossos rituais; os sistemas de sinais, utilizados para exprimir
pensamentos; o sistema de moedas, empregado para pagar as dívidas; os
instrumentos de crédito, usados nas práticas comerciais; as práticas profissionais.
Todas essas maneiras de agir, de pensar e de sentir (mais adiante DURKHEIM
comenta que esta enumeração nada tem de rigorosamente exaustiva, podendo
incluir também maneiras de ser) funcionam de forma independente do uso que
os indivíduos fazem delas. Existem, pois, fora das consciências individuais. São a
elas externas: poderíamos denominar então de exterioridade esta primeira
característica essencial dos fatos sociais120.

Estas maneiras de agir ou de pensar são não somente exteriores aos


indivíduos, mas sobre estes exercem poder coercitivo. São imperativas, por assim
dizer. O sociólogo alega que nem sempre esta coerção, característica dos fatos
sociais, se faz sentir. Entretanto, isto não lhe retira este caráter intrínseco. A
prova da coercitividade se dá quando tentamos a eles resistir. Ele então traz
exemplos: se um indivíduo experimenta violar as leis do direito, estas reagem
contra ele de maneira a impedir o ato, se ainda há tempo; com o fito de anulá-lo,
restabelecendo a normalidade, se o ato já se praticou e é reparável; ou então para
que o indivíduo expie se não houver outra possibilidade de reparação. Da mesma
forma que ocorre com o direito, adiciona, ocorre com as máximas morais,
embora com suas penas especiais, apoiadas no que denominou consciência
pública. Em outros casos, a coerção é menos violenta, como ocorre com os
modos sociais de se vestir. Ou indireta, como na impossibilidade de se agir de
outra maneira, particularmente no uso do idioma corrente ou das moedas legais:
o indivíduo não está obrigado, mas não possui alternativas de ação121.

Além disso, os fatos sociais são gerais, diferenciando-se de suas


repercussões individuais. Conforme citado cinco parágrafos atrás, são resultado
dos fatos individuais via interação. Entretanto, com sutileza assevera: “(...) se ele
é geral, é porque é coletivo (isto é, mais ou menos obrigatório), e está bem longe

120
DURKHEIM (2000 [1895], p. 32).
121
DURKHEIM (2000 [1895], p. 32).
117
de ser coletivo por ser geral. Constitui um estado do grupo que se repete nos
indivíduos porque se impõe a eles. Está bem longe de existir no todo devido ao
fato de existir nas partes, mas ao contrário existe nas partes porque existe no
todo”122.

O último caráter diz respeito ao que chamamos de historicidade: os


fatos sociais impõem determinadas crenças e práticas que nos são transmitidas já
fabricadas pelas gerações anteriores. São recebidas e adotadas, sendo ao mesmo
tempo obra coletiva e de séculos de existência, estando revestidas de uma
autoridade particular que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar.
Diríamos: são transmitidas pela tradição (o que é a tradição senão o ato de
entrega, de transmissão?).

A ontologia durkheimiana difere de uma ontologia meramente


materialista, por um lado, ou idealista, por outro. Os fatos sociais pertencem a
uma ordem de fatos que apresenta estes caracteres especiais e, assim, possuem
uma natureza distinta. Por consistirem em maneiras de agir, de pensar e de
sentir, exteriores aos indivíduos, dotadas de coercitividade. Em conseqüência,
“consistem em representações e em ações [sem grifo no original]”, que não se
confundem com os fenômenos psíquicos, que não existem senão na consciência
individual e por meio dela, nem com os fenômenos orgânicos. E conclui:
“Constituem, pois, uma espécie nova e é a eles que deve ser dada e reservada a
qualificação de sociais [grifo no original]”; (...) não tendo por substrato o
indivíduo, não podem possuir outro que não seja a sociedade: ou a sociedade
política em sua integridade, ou em qualquer um dos grupos parciais que ela
encerra, tais como confissões religiosas, escolas políticas e literárias, corporações
profissionais, etc.”123.

Rejeitando assim uma análise atomística da sociedade o pensador


propunha, em vez disso, uma análise holística, defendendo a concepção de que a
partir do momento em que o todo se constitui, este novo fenômeno tem sua
essência referida não mais aos seus elementos originais, mas à totalidade
122
DURKHEIM (2000 [1895], p. 37).
123
DURKHEIM (2000 [1895], p. 33).
118
formada pela sua união. Por acreditar que os fatos sociais não podiam ser
reduzidos ao conhecimento dos fatos individuais, DURKHEIM defendia uma
explicação social dos mesmos124.

Se por um lado o construtivismo deve muito a DURKHEIM – pela


centralidade dos elementos ideacionais na análise social, pela própria concepção
de fatos sociais e por construir uma ontologia que superou os limites do
materialismo e do idealismo – por outro algumas soluções dadas por ele em sua
obra serão descartadas pelos construtivistas sociais no estudo das RI.

Particularmente, sua metodologia proposta na obra As Regras do


Método Sociológico, publicada em 1895, no qual ele expõe a metodologia
positivista da sua sociologia. Assim, a metodologia positivista de DURKHEIM será
abandonada pelos construtivistas. Isto porque ele não estudava realmente os
processos concretos nos quais elementos individuais, incluído idéias,
transformavam-se em fatos sociais. Em vez disso, ele buscava inferir os fatos
sociais das formas de expressão social (représentations collectives), que ele
acreditava serem seus produtos, abrangendo desde práticas litúrgicas aos Códigos
legais e representações similares da moral cívica. RUGGIE justifica esse abandono
da metodologia durkheimiana: “In other words, DURKHEIM ‘solved’ the
methodological problem of social constructivism by means that are roughly
analogous to the stipulation of ‘revealed’ preferences’ in economics – a
problematic methodological maneuver.”125 Com esta manobra ele conseguia
identificar os indicadores “objetivos” necessárias para a sua adesão às práticas
positivistas. Buscava, desta forma, a legitimidade científica então urgente à
Sociologia. Esta postura positivista de DURKHEIM será abandonada em prol de
uma concepção de ciência social interpretativa, conforme influências retiradas do
pensamento weberiano, as quais passamos a expor na seção seguinte, dedicada ao
pensador alemão.

A repercussão do pensamento de DURKHEIM, na França, foi imediata.


Fora dos meios intelectuais franceses, a influência dele passou a ser significante
124
DURKHEIM (2000 [1895], p. 40).
125
RUGGIE (1998, p. 30).
119
anos mais tarde. Nos países de língua inglesa, por volta de 1930. Primeiro na
Inglaterra: dois antropólogos, MALINOWSKI e RADCLIFFE-BROWN, utilizaram
seus trabalhos como alicerces para o método de investigação funcionalista, que
buscava explicar as instituições sociais e culturais partindo de suas funções na
manutenção da estrutura social, numa análise bastante inspirada na Biologia, no
estudo dos seres vivos. A partir dos anos 1930, suas idéias foram incorporadas
aos trabalhos de dois sociólogos americanos, MERTOM e PARSONS, tendo
sobretudo este último sido o principal responsável pela incorporação do
pensamento durkheimiano nos meios universitários norte-americanos.

120
4.2 MAX WEBER

Max WEBER é também considerado um dos pais fundadores da


Sociologia. A obra deste autor coloca-se ao lado da de Durkheim, bem como de
outros autores, entre os quais Marx, Comte, Spencer, Tocqueville, para ficarmos
em alguns poucos, constituindo um momento decisivo na formação da
Sociologia. Estes pensadores de certa forma estruturaram as bases da Teoria
Sociológica.

Como um pensador europeu, assim como DURKHEIM, sua visão da


sociedade é governada pela situação européia na qual se encontrava inserido – e
para compreendê-la, assim como o sociólogo francês, buscou compreender a
sociedade européia colocando-a em relação a outras civilizações. Sua vasta obra
foi escrita em um período de intensa industrialização e crescimento econômico
na Alemanha – industrialização tardia, se comparada à inglesa ou à francesa.
Além disso, a industrialização alemã, para a qual “contribuíram a unificação
nacional, a decidida proteção estatal, a atuação do capital bancário e o
crescimento demográfico”126, teve uma característica peculiar, que a diferencia
das demais: não nasceu de uma ruptura radical com as forças feudais. Ao
contrário, foi resultado de um compromisso entre os interesses dos latifundiários
prussianos e os empresários do capitalismo industrial emergente. Isto permitiu
que a burocracia concentrasse o poder político em suas mãos, e recrutando seus
quadros da nobreza, impunha a toda a sociedade suas preferências políticas.

É neste contexto histórico que WEBER realiza sua reflexão sobre a


sociedade capitalista em ascensão. Com formação essencialmente jurídica, além
de possuidor de uma excepcional erudição histórica, ele nunca se tornou um
político ativo, mas sua obra – sobretudo metodológica – está amplamente
vinculada à preocupação quanto à aplicação do conhecimento científico à ação.
Em sua obra a relação entre sociologia e política, ou entre sociologia e ação, está
sempre presente127.

126
ARRUDA (1991, p. 185).
127
ARON (1967, p. 17).
121
Conforme afirmou de forma categórica ARON: “He wants a neutral
science, because he does not want the professor, in his chair, to use his prestige
to impose his ideas. But he wants a neutral science which would at the same time
be useful to the man of action, to politics”128. A perseguição da neutralidade
científica deve estar presente na atividade intelectual, estebelecendo uma
fronteira entre o cientista, homem do saber, e o político, homem da ação. O
primeiro tem um comprometimento com o conhecimento, o último com as
questões práticas da vida.

Esta preocupação de WEBER com a neutralidade científica foi


utilizada por ele, conforme se encontra discutido na literatura, como um recurso
na luta pela autonomia intelectual do professor universitário diante da burocracia
e do Estado alemão. Ademais, esta preocupação foi significativa para o
estabelecimento e profissionalização da Sociologia. Este fato, contado por
TRAGTENBERG, na introdução realizada para a edição brasileira de Metodologia
das ciências sociais, ilustra bem a posição weberiana a respeito deste tema:
“comentando a afirmação de um professor de Direito que jamais permitiria um
anarquista (!) como professor de Direito (!), pelo fato de os anarquistas, por
princípio, negarem a validade da lei, WEBER argumenta que um anarquista pode
ser um estudioso das leis e que o ponto central de suas convicções alheias ao
convencionalismo poderia capacitá-lo a problematizar determinados assuntos
que, para a média das pessoas, não existem. WEBER afirma que a dúvida mais
fundamental é a fonte do conhecimento [grifo no original]”129.

Entusiasta do conhecimento científico, no contexto do diálogo entre


ciência e religião, vale transcrever este trecho no qual ele opõe a atividade
intelectual do cientista à religiosa do crente: “A quem não é capaz de suportar
virilmente esse destino de nossa época (intelectualização, secularização e
racionalização) só cabe dar o seguinte conselho: volta em silêncio, com
simplicidade e recolhimento, aos braços abertos e cheios de misericórdia das
velhas igrejas, sem dar a teu gesto a publicidade habitual dos renegados. E elas

128
ARON (1967, p. 18).
129
TRAGTENBERG (In WEBER, 2001, p. xliv).
122
não dificultarão este retorno. De uma forma ou de outra ele tem que fazer o
‘sacrifício do intelecto’ – isso é inevitável”130.

O pensamento de WEBER fornece insumos teóricos importantíssimos


ao Construtivismo, particularmente no tocante a três questões: a natureza das
ciências sociais, ao papel das idéias nestas e aos métodos para seu estudo. Ao
final comentaremos brevemente também a importância do conceito de
racionalização em sua obra.

Pela natureza do objeto social e da própria empreitada realizada para


conhecê-lo, a ciência social, Max WEBER defende a adoção de uma
epistemologia interpretativa, em vez de uma positivista, que carrega noções
mecânicas de causalidade e protocolos explicativos moldados para lidar com o
mundo natural, com o mundo material.

WEBER encontrava-se situado em um confronto intelectual entre os


subjetivistas – da Escola Histórica Germânica – e os positivistas da Escola
Teórica Austríaca, estes últimos compartilhando com o Marxismo o monismo
naturalista. Contrapondo-se a estas correntes de pensamento da Filosofia das
Ciências Sociais, WEBER acredita na possibilidade da construção de métodos
próprios pelas ciências sociais, de acordo com suas especificidades. Estas
especificidades devem-se ao fato de sermos, os homens, seres culturais, dotados
com a capacidade e a vontade de tomar atitudes deliberadas em relação ao mundo
e de atribuir-lhe significado. Nas palavras de WEBER, sempre citadas, porquanto
indispensáveis: “We are cultural beings, endowed with the capacity and the will
to take a deliberate attitude towards the world and to lend it significance”131.
Assim, o mundo social sobre o qual o cientista realiza suas interpretações já se
encontra interpretado pelos atores sociais132.

Seja qual for este significado atribuído aos fenômenos da existência


humana, os julgamentos formulados sobre estes serão realizados tendo-o em
vista. Sendo assim, respondemos a estes fenômenos levando em conta seu

130
WEBER (2001, p. 453).
131
WEBER apud RUGGIE (1998, p. 30).
132
ADLER (1997, p. 211-212).
123
significado, mas não um significado que é individual, e sim um espelhado nos
entendimentos coletivos. Daí decorre a urgência por um modelo de ciência social
que capture estes aspectos característicos do comportamento humano e que a
distingue fundamentalmente de qualquer empreendimento que volte seus olhos
para o mundo físico.

Cabe ao cientista social – e isto o diferencia dos cientistas da natureza


– a tarefa de interpretar o significado da ação humana para o próprio ator
envolvido, e isso Weber propõe-se a realizar através de uma ferramenta analítica
que ele denominou como verstehen, ou interpretação empática.

O método analítico denominado pelo pensador alemão de verstehen


compõe-se de três estágios. O primeiro consiste em discernir uma compreensão
empática da ação social, desde o ponto de vista do agente, captando o significado
dela para ele. O passo seguinte visa a arquitetar uma compreensão explicativa da
ação social, situando-a em algum conjunto de práticas sociais reconhecidas como
tais pela coletividade social relevante.

A última tarefa executada pelo cientista social deve ser a unificação da


ação social em análise com uma perspectiva histórica do fenômeno, percebendo
sua significância social mais ampla. Este último estágio é cumprido valendo-se
da construção de tipos ideais, que são o instrumento conceitual específico
utilizado para apreender o elemento individualizante que qualifica a ação social
no seu condicionamento histórico133. Os tipos ideais são estabelecidos
convencionalmente e de forma abstrata, sendo destacado pelo pensador alemão
que estes não são a realidade histórica nem uma realidade autêntica subjacente.
Trata-se apenas de um conceito-limite que se presta a esclarecer o conteúdo
empírico partindo dos elementos que o compõem. Neste instrumento conceitual –
importante destacar a noção de instrumento da construção de tipos ideais
abstratos, vale dizer, sendo exclusivamente meio de conhecimento e não um fim
em si mesmo – WEBER pretende sintetizar o particular e o geral, o subjetivo e o

133
RUGGIE (1998, p. 31).
124
objetivo134. Alguns dos tipos ideais utilizados pelo pensador alemão em seus
estudos incluem desde formas de autoridade (tradicional, carismática e racional-
legal) até a institucionalidade característica da modernidade ocidental, como
burocracia, capitalismo e o próprio Estado moderno.

Por acreditar que o conhecimento científico dos fenômenos sociais é


guiado pela nossa capacidade e necessidade de realizar um ordenamento
conceitual da realidade empírica, ergue-se um problema para o cientista social
que WEBER não deixa de abordar em seu seminal artigo sobre o tema, qual seja, o
problema da objetividade da atividade cognitiva. Sendo os tipos ideais uma
abstração da realidade realizada de forma seletiva pelo pesquisador ao debruçar-
se sobre o material empírico, o autor questiona até que ponto há verdades
objetivamente válidas na área das ciências que se ocupam da vida social.
Segundo ele, “Não existe nenhuma análise científica totalmente ‘objetivada’ da
vida cultural, ou – o que pode significar algo mais limitado, mas seguramente
não essencialmente diverso, para os nossos propósitos – dos ‘fenômenos sociais’,
que seja independente de determinadas perspectivas especiais e parciais, graças
às quais estas manifestações possam ser, explicita ou implicitamente, consciente
ou inconscientemente, selecionadas, analisadas e organizadas na exposição,
enquanto objeto de pesquisa. Isso se deve ao caráter particular da meta do
conhecimento de qualquer trabalho das ciências sociais que se proponha ir além
de um estudo meramente formal das normas – legais ou convencionais - da
convivência social” 135.

WEBER acreditava na possibilidade de construção de conhecimento


válido nas ciências sociais, a despeito de nossas proposições serem, além de uma
ordenação conceitual dos dados empíricos, uma interpretação metafísica do

134
WEBER (1949 [2001], p. 140): “Trata-se de um quadro de pensamento, não da realidade
histórica, e muito menos da realidade ‘autêntica’; não serve de esquema em que se possa incluir
a realidade à maneira de exemplar. Tem, antes, o significado de um conceito-limite, puramente
ideal, em relação ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns
dos seus elementos importantes, e com o qual está comparada. Tais conceitos são configurações
nas quais construímos relações, por meio da utilização da categoria de possibilidade objetiva,
que a nossa imaginação, formada e orientada segundo a realidade, julga adequadas”.
135
WEBER (2001, p. 124).
125
mundo136. Este projeto avançado por ele, no entanto, deve ser um baseado nas
especificidades do objeto social, significativo culturalmente, e da ciência social,
também interpretação do mundo social. No mundo dos fenômenos culturais – ou
realidades significativas – porque estes são ontologicamente valiosos, exige-se
um método específico e adequado, que se contitui pelo ato gnosiológico da
compreensão, no qual procuramos descobrir o significado das ações ou das
criações humanas.

WEBER freqüentemente é citado também pela sua construção da noção


de racionalidade instrumental – característica emblemática da modernidade.
WEBER trabalha com a categoria que vincula a ação aos resultados que são
valorizados pelo ator social, o papel das idéias na sociedade vai mais além.
Entretanto, ele admite, além disso, a existência de um importante papel
normativo das idéias, devendo-se analisar não somente a racionalidade
instrumental, que leva os agentes a escolher os meios apropriados de ação para
alcançar seus fins. Diria WEBER que se deve observar além disso a influência das
idéias na própria formação destes fins, desta preferência, ou, de outra forma,
como os próprios entendimentos sociais sobre os fins a serem perseguidos por
aquela coletividade influenciam na ação social. A conhecida metáfora do
alternador de trilhos de trem traz-nos com clareza a amplitude do papel das idéias
no esquema weberiano, abrangendo tanto seu caráter instrumental quanto
normativo: “Not ideas, but material and ideal interests, directly govern men’s
conduct. Yet very frequently the ‘world images’ that have been created by ideas
have, like switchmen, determined the tracks along which action has been pushed
by the dynamic of interest” 137.

Ao final, WEBER ajudou-nos a compreender melhor o processo de


modernização. Embora ele prefira utilizar o termo “racionalização”. Conforme
sentencia o imortal Sérgio Paulo ROUANET: “Quem quiser refletir hoje sobre a

136
WEBER (2001, p. 114): “(...) não compartilhamos, de modo nenhum, do preconceito de que
as reflexões sobre a vida cultural, que pretendem interpretar metafisicamente o mundo, indo
portanto, além da ordenação conceitual dos dados empíricos, não poderiam, por causa desta sua
característica, contribuir, de alguma forma, para o conhecimento”.
137
WEBER (1946).
126
questão da modernidade e da modernização não pode ignorar Max WEBER, que
estudou exaustivamente esse tema em sua sociologia das religiões” 138. E continua
ROUANET, afirmando que a modernidade, sempre segundo WEBER, é o produto
dos processos globais de racionalização que se deram, num certo momento da
histórica, em um determinado local geográfico, na esfera econômica, política e
cultural.

Na esfera econômica, dissolveu das antigas formas de produção, do


feudalismo, formando a mentalidade empresarial moderna, baseada na previsão,
no cálculo, em técnicas racionais de contabilidade. Na política, “a racionalização
política conduz à substituição da autoridade descentralizada pré-moderna pelo
Estado absolutista e, posteriormente, pelo Estado verdadeiramente moderno,
dotado de um sistema tributário centralizado, de um poder militar permanente, do
monopólio da violência e da legislação, e de uma administração burocrática
racional”. Esta racionalização da política atinge sua plenitude quando a
dominação legal é institucionalizada, legitimada pela crença no direito dos
governantes de exercerem sua autoridade em função de regras normativas. A
dominação legal diferencia-se da tradicional, legitimada pela crença na tradição,
e da carismática, legitimada pela devoção incondicional a líderes exemplares,
especialmente heróicos ou virtuosos139.

A racionalização cultural “envolve a dessacralização das visões do


mundo tradicionais (Entzauberung) e a diferenciação em esferas de valor
autônomas (Wertsphären), até então embutidas na religião: a ciência, a moral e a
arte”140. A ciência, na modernidade, incrementa seu poder de prognose, sua
capacidade de acúmulo de conhecimento, pondo-se a serviço das forças de
produção. A moral vai, pouco a pouco, desvinculando-se da religião e adquirindo
um caráter mais secular, derivando de princípios gerais, tornando-se assim mais
universalista, em contraposição às morais tradicionais, cujos limites coincidiam
com os do grupo ou do clã. A arte autônoma destaca-se também de seu contexto

138
ROUANET (1993, p. 120).
139
ROUANET (1993, p. 121).
140
ROUANET (1993, p. 121).
127
tradicionalista – que o autor denomina como arte religiosa – direcionando-se a
formas mais independentes, como o mecenato e a produção para o mercado.

A importância de WEBER para a sociologia, particularmente no


contexto intelectual alemão, é de tamanha grandiosidade que qualquer
comentário a respeito ainda assim subestimaria sua influência. Para o contexto
norte-americano, as idéias dele foram também trazidas pelo sociólogo PARSONS,
que ao elaborar sua Estrutura da ação social, buscou conjugar o pensamento de
cinco teóricos, entre os quais os dois expostos neste trabalho: DURKHEIM,
WEBER, PARETO, MARSHALL e FREUD.

128
5 CAPÍTULO IV – CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS DA
AGENDA DE PESQUISA DA ABORDAGEM CONSTRUTIVISTA

Depois de havermos identificado algumas das inspirações sociológicas


da abordagem construtivista, presentes nos sociólogos DURKHEIM e WEBER,
chegamos ao último e mais importante capítulo da dissertação. O objetivo deste
capítulo é apresentar as principais contribuições teóricas desta abordagem. Para
tanto, em primeiro lugar procuraremos demarcar o construtivismo, expondo seus
principais argumentos, bem como suas considerações filosóficas, ontológicas,
epistemológicas e metodológicas. Em seguida, trataremos dos temas de sua
agenda de pesquisa que mais contribuições nos trouxeram ao campo, ou que a ele
prometem um desenvolvimento mais frutífero. Ao final, realizaremos um
exercício de distanciamento crítico, relatando algumas reservas apresentadas por
seus adversários, bem como suas possíveis limitações.

Partindo da noção formulada originalmente na Sociologia de que a


realidade é socialmente construída, a preocupação principal do construtivismo é
com o papel dos elementos ideacionais na compreensão da realidade
internacional. Fundamentalmente, esta noção baseia-se na idéia de que aquilo
que consideramos como realidade o é como conseqüência dos entendimentos
coletivos do que é a realidade. Em suma, a realidade é resultado de nossa
interpretação social do mundo141.

A noção de construção social da realidade propagou-se nos meios


acadêmicos das ciências sociais a partir do trabalho bastante influente publicado
em 1966 pelos sociólogos Peter Berger e Thomas Luckman, denominado
exatamente The Social Construction of Reality. John VASQUEZ, comentando essa
noção, afirma que tudo aquilo que existe na realidade histórica é ao mesmo
tempo arbitrário e, em algum nível, produto das escolhas humanas. Em

141
Nesta tradição de pensamento, John VASQUEZ (1995, p. 221) afirma que “if what exists is at
one and the same time arbitrary and the product of human choice (at some level), it follows that
what exists must have been socially constructed by people”.
129
conseqüência, continua, o que existe é necessariamente resultado da construção
social. E conclui, sentenciando: “Reality is created and constructed by beliefs and
behaviour. (...) Reality is not God- or Nature- given, but human-imposed. And,
some would add, this [grifo no original] is an imposition” (1995, p. 221).

Em resumo, o construtivismo centra sua atenção nos fenômenos


mentais, sobretudo coletivamente considerados, na investigação de seu papel nas
relações internacionais e nas implicações da constatação deste papel no modelo,
na lógica e nos métodos de investigação dos fenômenos e comportamentos
sociais.

Demonstrando a importância dos entendimentos coletivos na


configuração da realidade internacional, ADLER define o construtivismo como a
perspectiva segundo a qual o modo pelo qual o mundo material se relaciona com
a ação humana, formando-a e sendo por ela formado, depende de interpretações
normativas e epistêmicas dinâmicas do mundo material. Destaca-se, assim, a
importância dos entendimentos coletivos e do conhecimento intersubjetivo na
construção da realidade, que será resultado dos mundos material, subjetivo e
intersubjetivo. Verifica-se, aqui, as implicações ontológicas da verstehen
proposta por WEBER e adotada pelo construtivismo, conforme visto no capítulo
II. Isto porque as interpretações normativas e epistêmicas, assim como as práticas
sociais, fazem parte da realidade mesma.

Sobre as implicações ontológicas da verstehen, vale transcrevermos as


lições de ADLER:

“Para entender as implicações ontológicas de verstehen, devemos começar pela


noção de que o que os cientistas querem saber, interpretar ou explicar já foi
interpretado pelo mundo social. Verstehen é, portanto, não apenas um método
utilizado pelos cientistas sociais, mas também as interpretações, as práticas e as
instituições coletivas dos próprios atores (SCHULTZ, 1977, p. 231). Verstehen, de
fato, é a realidade social. Pode ser um conjunto de normas, ou entendimentos
científicos consensuais, ou a prática da diplomacia, ou o controle de armas. Todas
essas estruturas de conhecimento são continuamente constituídas e reproduzidas
pelos membros da comunidade e por seu comportamento” (1997, p. 211-2).
Afirmar que a realidade internacional é construída socialmente de
forma alguma implica reconhecer somente um mundo de paz e cooperação, como
já quiseram lançar ataques alguns autores críticos à abordagem construtivista.
130
Isto porque todas as realidades são construídas socialmente, sejam elas
conflitivas ou cooperativas, “boas” ou “más”, como bem defendeu ADLER (1999,
p. 224):

“Nada do que se disse até o momento convida à conclusão de que o construtivismo


é apenas uma teoria de paz e harmonia global (MEARSHEMEIER, 1994/5). Se a
realidade internacional é socialmente construída, então a Segunda Guerra Mundial,
o Holocausto e o conflito bósnio devem ter sido também socialmente construídos,
assim como o controle de armas, os acordos ambientalistas, o fim da Guerra Fria e
o colapso do império soviético foram socialmente construídos. Em outras palavras,
o construtivismo é um conjunto de lentes paradigmáticas através das quais
observamos todas as realidades socialmente construídas, as ‘boas’ e as ‘más’”
(ADLER, 1997, p. 224).
Para o construtivismo, a realidade internacional – como qualquer
realidade social – é formada de elementos materiais, bem como ideacionais. O
principal traço que distingue o construtivismo situa-se, então, em sua ontologia.
Distinguindo-se assim do materialismo, por um lado, e do idealismo, por outro,
defende a realidade ontológica do mundo material, do mundo subjetivo e do
mundo intersubjetivo. ADLER refere-se à divisão realizada pelo filósofo da
ciência Karl POPPER do universo em três sub-universos, denominados por ele
Mundos 1, 2 e 3. O primeiro é o mundo de todos os corpos, forças e campos de
forças físicas, bem como dos organismos, de nossos corpos e de suas partes,
enquanto o segundo consiste nas experiências existentes no campo subjetivo, na
mente humana, e o terceiro é o mundo dos produtos desta, gerados coletivamente
e adquirindo assim um caráter de objeto, porquanto externo a nós142.

Para o construtivismo as estruturas-chave do sistema internacional são


intersubjetivas. Essa é uma diferença fundamental do construtivismo com relação
à ortodoxia teórica em RI. Como descrito na definição de ADLER, acima, o
construtivismo reconhece também a importância do mundo material, mas
defende ainda que o relacionamento desse mundo com a ação humana depende
das estruturas intersubjetivas de significado. Friedrich KRATOCHWIL (1989, p.
142
“Mundo 1 é o mundo de todos os corpos, forces e campos de forças físicas; e também dos
organismos, de nosso corpo e de suas partes. (...) Mundo 2 é o mundo subjetivo das experiências
conscientes, de nossos pensamentos, nossos sentimentos de alegria ou depressão, nossos
objetivos, nossos planos de ação. O Mundo 3 é o mundo da cultura, ou dos produtos da mente
humana, e especialmente o mundo de nossas línguas: nossas histórias, nossos mitos, nossas
teorias explicativas... de nossas tecnologias... da arquitetura e da música” (POPPER apud ADLER,
1997, p. 213).
131
21), em uma delimitação que possui paralelo com as idéias de POPPER, refere-se
aos três mundos como sendo “one, the world of observational facts; two, the
world of mental facts; and three, the world of institutional facts”. RUGGIE, por
sua vez, mantendo a nomenclatura durkheimiana, afirma que

“social facts differ from two other kinds of socially relevant facts: ‘brute’ facts,
such as warheads, population size, market shares, or mountains, which are true (or
not) apart from any shared beliefs that they are true; and (ontologically)
‘subjective’ facts, so designated because their existence depends on being
experienced by individual subjects, like an individual actor’s perception and
misperception deal in facts of this sort” (1998, p. 13).
Por voltar a atenção para os aspectos intersubjetivos da realidade os
construtivistas preocupam-se com as práticas coletivas institucionalizadas, seja
qual for o grau de institucionalização social, desde práticas diplomáticas, até o
sistema de Estados, passando pelos regimes internacionais. As relações
internacionais, como todos os sistemas de relações sociais, exibem algum grau de
institucionalização. RUGGIE verifica que, no mínimo, existem mecanismos que
permitem a inteligibilidade mútua do comportamento e da comunicação, ao lado
das rotinas organizacionais que tornam as relações internacionais possíveis.
Tratando da análise da institucionalização, o autor destaca a importância dos
entendimentos coletivos para as práticas institucionalizadas:

“The chain of reasoning in the first instance went something like this:
Institutionalization embodies elements of authority. Authority typically is
understood as the conjunction of power and legitimate social purpose. But social
purpose is neither fixed nor exogenously given; and in some measure it is subject
to communicative dynamics among knowledgeable actors. Nor is social purpose a
brute or palpable observational fact; it is an intersubjective state of mind among
relevant social actors, for some issues including society as a whole.” (RUGGIE,
1998, p. 43)
Dando seqüência a este argumento, podemos afirmar que a atenção
fundamental do construtivismo direciona-se à institucionalização das relações
internacionais. Esta institucionalização está presente em pelo menos dois níveis.
Em primeiro lugar, ela existe entre os Estados, resultando naquilo que definimos
de maneira mais ampla como organização internacional. Nesse nível, cumpre à
teoria investigar de que forma as relações internacionais estão
institucionalizadas, o que as determina, e quais são as suas conseqüências para o
comportamento dos atores sociais envolvidos. Os estudos realizados pelas mais

132
diversas correntes teóricas sobre o que ficou conceituado como regimes
internacionais inserem-se neste nível de institucionalização. O construtivismo irá
pesquisar os regimes internacionais, como será visto adiante.

Mas esse não é o único nível de institucionalização das relações


internacionais. Além dele, existe um outro nível tão ou mais importante, e que de
maneira surpreendente – para não dizer decepcionante – é pouco ou mal
compreendido pela ortodoxia teórica: o próprio sistema de Estados. O sistema de
Estados configura-se como a mais ampla forma de institucionalização da vida
internacional. Devemos, no âmbito de nossos esforços teóricos, buscar responder
questões como, por exemplo, de que maneira este sistema foi construído, quais
são os fatores que o sustentam, como se dá a sua transformação, ou mesmo se ele
está sendo superado, e assim por diante. O construtivismo apresenta-se como
uma promissora abordagem teórica a ambos os níveis de institucionalização das
relações internacionais.

A atenção da abordagem construtivista volta-se para os padrões de


interação internacional, sendo fundamentalmente o processo que definirá o
significado das práticas dos atores, influenciando, com base nos entendimentos
coletivos de comportamento social apropriado, até mesmo a construção das
identidades e conseqüentemente dos interesses destes atores sociais. Os olhos do
construtivismo miram o processo, em vez da natureza dos agentes ou meramente
da estrutura social na qual aqueles agentes encontram-se inseridos. Inevitável
concordarmos com WENDT, quando este afirma que todas as teorias das RI são
baseadas em teorias sociais sobre as relações entre agência, processo e estrutura
social (1992, p. 422). Aproveitamos para retomar o chamado problema do nível
de análise, tratado, não sem propósito, de forma bastante detalhada na seção 3.2,
sobre o Segundo Grande Debate. Expusemos as duas abordagens realizadas ao
problema, a atomística (reducionista) e a holística (sistêmica). Nos últimos três
lustros ganharam espaço nas ciências sociais como um todo as abordagens

133
baseadas nas proposições estruturacionistas, que apareceram na obra A
Constituição da Sociedade, de 1984, do sociólogo inglês Anthony GIDDENS143.

Segundo esta abordagem, formulada por GIDDENS, tanto as


propriedades dos agentes como as das estruturas são relevantes na compreensão
do comportamento social. Abraçada pelas abordagens construtivistas, a teoria
estruturacionista apresenta uma solução relacional para o problema agente-
estrutura, através da concepção de que agentes e estruturas são mutuamente
constituídos – ou entidades co-determinadas. Além disso, essa teoria defende a
importância de ambas as entidades para nos ajudar a explicar as iterações
humanas:

“This conceptualization forces us to rethink the fundamental properties of (state)


agents and system structures. In turn, it permits us to use agents and structures to
explain some of the key properties of each as effects of the other, to see agents and
structures as ‘codetermined’ or ‘mutually constituded’ entities” (WENDT, 1987, p.
339).
Três soluções possíveis são dadas pelas teorias divergentes ao
problema agente-estrutura – individualismo, estruturalismo e estruturacionismo.
O que afasta estas concepções são as respostas dadas ao problema, moldadas
pelas posições adotadas em dois campos inter-relacionados: o ontológico e o
epistemológico.

A concepção ontológica refere-se à própria natureza dos agentes e das


estruturas, assim como sua inter-relação. As questões que são respondidas neste
ponto dizem respeito a que tipo de entidades elas são e como se relacionam, ou
se determinam. O quadro final depende de que entidade é tomada como
primitiva. Assim, três soluções são possíveis: (1) individualismo, que reduz a
estrutura às características de suas partes componentes; (2) estruturalismo, que
reduz os agentes aos ditames da estrutura; e (3) estruturacionismo, que atribui aos
agentes e às estruturas igual status ontológico, não podendo uma entidade ser de
forma alguma reduzida às características da outra. GIDDENS prestou grande

143
Um dos principais teóricos construtivistas, Nicholas ONUF, em recente visita à Universidade de
Brasília (2002), indicou esta obra em primeiro lugar, seguido de outros, quando perguntado por um
acadêmico sobre quais seriam as obras sociológicas mais importantes para a compreensão da abordagem
construtivista.
134
contribuição para as teorias sociais ao propor a teoria estruturacionista, devendo
ser atribuído igual status ontológico aos agentes e estruturas.

Seguindo a teoria estruturacionista de GIDDENS, o construtivismo


busca evitar as conseqüências negativas das decisões ontológicas tanto do
individualismo como do estruturalismo, concedendo aos agentes e às estruturas
status ontológicos próprios e iguais, e além disso permitindo o uso de ambas as
entidades para explicar as propriedades de cada uma como efeitos da outra. O
estruturacionismo concebe agentes e estruturas como entidades mutuamente
constituídas, conforme afirmado acima. Assume desta forma o estruturacionismo
a existência da denominada dualidade de estrutura, ou seja, a reversibilidade
essencial da vida social, constituída por práticas sociais: a estrutura é tanto o
meio como o resultado da reprodução das práticas144.

De acordo com os construtivistas, mesmo se inicialmente a interação


social – ou o processo – é importante na construção das identidades e interesses
dos atores sociais, uma vez institucionalizadas estas práticas passam a constituir
uma estrutura social que embora possa sofrer transformações, este fenômeno é
deveras lento e difícil. Esta concepção não implica considerar, a partir da
institucionalização, os agentes como “idiotas estruturais”, como afirmou ADLER
sobre os agentes na teoria estruturacionista de GIDDENS. Isto porque os agentes
possuem a capacidade e a vontade de construírem suas práticas sociais e o meio
social – a estrutura – de acordo com suas identidades e interesses específicos:

“Os agentes de Anthony GIDDENS estão, no entanto, longe de serem ‘idiotas’


estruturais. São os construtores sociais de suas próprias práticas e estruturas e têm
identidades, direitos e obrigações (para citar apenas alguns) em suas próprias
consciências. Agem de acordo com regras institucionalizadas, mas também de
acordo com seu interesse” (ADLER, 1997, p. 210).
Como vimos acima, tanto do ponto de vista ontológico como em sua
solução para o problema agente-estrutura o construtivismo social reconhece a
importância do mundo intersubjetivo. Este reconhecimento da realidade
ontológica da intersubjetividade traz conseqüências para a lógica e para os
métodos da investigação construtivista. Em primeiro lugar, substitui-se o modo

144
WENDT (1987, p. 339-340).
135
de construção de teorias baseado em modelo hipotético-dedutivo por uma
epistemologia interpretativa, que capture, com seus conceitos, o sentido e o
significado que os atores atribuem a uma situação coletiva na qual eles se
encontram inseridos (RUGGIE, 1998, p. 85-86).

É pouco provável que o modelo ideal retirado das ciências naturais


possa dar bons resultados para as ciências sociais, por estarem moldados a uma
forma físico-mecanicista de ver o mundo. A própria noção de causalidade
concebida pelo construtivismo será distinta da formulada por aquele modelo,
conforme será visto adiante145.

Inspirando-se nas formulações do antropólogo norte-americano


Clifford GEERTZ (1973), autor que propõe à Antropologia a tarefa de realizar
descrições densas (thick description), reconhece o construtivismo o poder
explicativo das descrições (WENDT, 1998, p. 110), propondo um protocolo
explicativo baseado na narração, valendo-se de conceitos desenvolvidos tanto
para descrever como para explicar. Após realizar a descrição do fenômeno,
propõe o construtivismo a interpretação de uma estrutura de coerência, que seja
capaz de unir, em um processo de raciocínio interrogativo denominado pelo
norte-americano Charles S. PEIRCE, fundador do pragmatismo filosófico, como
abdução, as fontes explicativas aos fenômenos explicados146.

Procurando expor de forma sumária o construtivismo WENDT (1994,


p. 385) caracterizou-o como uma teoria estrutural do sistema internacional que
faz três proposições principais. Concordando com os racionalistas, Wendt afirma
que os construtivistas defendem que os Estados são as unidades de análise
principais para a teorização das RI. As outras duas proposições afirmam por um
lado que as estruturas-chave do sistema de Estados são intersubjetivas, em vez de
materiais, e por outro lado que as identidades e os interesses dos atores são em

145
“(...) constructivism does not aspire to the hypothetico-deductive mode of theory
construction. It is by necessity more ‘realistic’, to use WEBER’s term, or inductive in
orientation” (RUGGIE, 1998, p. 34)
146
“(...) ‘abduction’: the successive adjusting of a conjectured ordering scheme to the available
facts, (...) until the conjecture provides as full an account of the facts as possible” (RUGGIE,
1998, p. 93).
136
grande parte construídas por aquelas estruturas sociais. Nestes dois pontos o
construtivismo distancia-se de forma irreconciliável da síntese racionalista:

“Constructivism is a structural theory of the international system that makes the


following core claims: (1) states are the principal units of analysis for the
international political theory; (2) the key structures in the states are intersubjective,
rather than material; and (3) state identities and interests are in important part
constructed by these social structures, rather than given exogenously to the system
by human nature or domestic politics”.
No fundo, o aumento do interesse acadêmico-científico pela
abordagem do construtivismo social reflete o fato de que se tornaram mais bem
compreendidas certas limitações analíticas e empíricas das abordagens
racionalistas, amplamente dominantes na TRI, melhor entendimento este
resultado da reorientação construtivista, como uma crítica à síntese racionalista à
qual convergiram o neo-realismo e o institucionalismo neoliberal. O projeto
construtivista tem buscado retirar a disciplina de alguns confinamentos teóricos,
sobretudo por investigar temas sobre os quais o neo-realismo e o
institucionalismo neoliberal simplesmente não se debruçam, agindo por
pressuposições – denominado freqüentemente por “como se”. Assim, por carecer
justamente de uma teorização do Estado, tratam todos “como se” fossem desde
sempre e para sempre comunidades políticas egoístas e defensoras do auto-
interesse. Os construtivistas são desconfiados da possibilidade de se produzir
teorias parcimoniosas, como os racionalistas. Isto porque o charme das teorias
racionalistas reside no ponto de partida – atores unitários e auto-interessados –,
mas é justamente na casa onde mora sua elegância e leveza que também habitam
suas maiores limitações. Comentando, de forma bastante elegante, esta limitação
das teorias racionalistas, qual seja, a ausência de uma teoria do Estado, vejamos o
que escreveu WENDT:

“The issue, then, is not whether some understanding of the state is necessary to
build sytemic theories (it is), but whether that understanding follows from a theory,
grounded in a coherent set of propositions with some correspondence to reality, or
simply from a set of pre-theoretical assumptions, grounded in intuition or
ideology” (WENDT, 1987, p. 343).
Para as abordagens racionalistas, os interesses e as identidades são
considerados como exógenos e dados. Para os neo-realistas, somente o atributo

137
de auto-ajuda (self-help)147 – conseqüência da estrutura anárquica do sistema
internacional – deve servir de base para uma análise das Relações Internacionais.
Desde o ponto de vista neo-realista, o processo (interação e aprendizado entre os
Estados) não pode afetar ou mitigar a característica anárquica da estrutura
(distribuição de capacidades entre os Estados). Os teóricos do institucionalismo
neoliberal, por sua vez, admitem que as instituições internacionais podem
transformar os comportamentos estatais. Esta concepção oferece uma visão
fundamentalmente comportamental tanto do processo e da estrutura como das
instituições, consideradas como injunções, já que somente os comportamentos
estatais podem ser modificados, mas não seus interesses e identidades:

“Se os construtivistas estiverem corretos, e as estruturas cognitivas, tanto quanto as


materiais, tiverem um papel na constituição das identidades e dos interesses dos
atores, assim como nas fronteiras entre eles – a própria realidade internacional –
então a pesquisa empírica deve estudar as idéias e os interesses como parte de um
processo unitário de criação da realidade social” (ADLER, 1997, p. 218).
Apesar da atratividade das abordagens racionalistas, por sua
simplicidade, o que elas não explicam é como os agentes, suas identidades e seus
interesses tomaram a forma conhecida hoje. Desta forma, os Estados recebem o
status ontológico do ser, alijando o vir a ser, o tornar-se. Ademais há a ausência
da consideração de como identidades específicas moldam os interesses e, através
do comportamento estatal, os padrões de relacionamento internacional – as
práticas sociais. Por suas características amplamente estáticas, as abordagens
racionalistas também não conseguem conceber a mudança nas identidades e nos
interesses dos Estados, impedindo assim a análise da evolução histórica das RI –
perda do sentido histórico talvez seja a mais grave falta destes estudiosos.
Conforme relatou WENDT, “they [the constructivists] have argued that states are
not structurally or exogenously given but constructed by historically contingent
interactions” (WENDT, 1994, p. 385).

Buscando seus insumos intelectuais ora em pensadores da Filosofia


das Ciências Sociais, ora em pensadores de outras Ciências Sociais, o

147
WENDT, 1992.
138
Construtivismo Social procura problematizar alguns pontos não abordados – ou
tratados “como se” fossem de determinada forma – nas teorias racionalistas.

Sem o objetivo de esgotar os aspectos da abordagem construtivista das


Relações Internacionais, pretendemos expor alguns dos esforços teóricos
presentes em sua agenda de pesquisa. Como afirmou ADLER “embora os
construtivistas fossem inicialmente lentos no desenvolvimento de programas de
pesquisa baseados em suas perspectivas (WENDT, 1994), a disciplina está
atualmente [isto ainda em 1997] repleta de estudos construtivistas” (ADLER,
1997, p. 231). A intenção é apresentar, nesta parte do trabalho, os principais
temas investigados, ou indicados pelos construtivistas como relevantes a
investigar. Assim, realizaremos nesta parte basicamente uma descrição do que foi
encontrado na literatura pesquisada. Esperamos não cansar o leitor neste trecho,
mas a apresentação precisará ser o mais detalhado quanto o espaço permita e o
escopo do trabalho requeira, já que tornará mais claros os argumentos teóricos
expostos acima, bem como receita estudos futuros, a serem realizados pelo autor
desta dissertação, ou por outros acadêmicos.

Assim, ADLER (1997, p. 231-238), para começarmos, indica algumas


sugestões para a expansão e aprofundamento da agenda de pesquisa
construtivista. Em primeiro lugar, ele sugere o estudo da “mudança nas relações
internacionais como evolução cognitiva”:

“Uma abordagem construtivista pode avançar muito em direção a uma explicação


sistemática da mudança nas relações internacionais. Até um certo ponto, a
construção social da realidade que levam a mudanças no significado e propósito
coletivo aos objetos físicos é ela mesma um componente importante do processo de
mudança.”
O mais interessante deste texto de ADLER é que ele sugere algumas
pesquisas empíricas mesmo, para o desenvolvimento teórico da abordagem
construtivista. Por exemplo, ele propõe que a mudança ocorrida no final dos anos
1980 pode estar ligada à completa mudança nos entendimentos intersubjetivos,
que levaram à deslegitimação do comunismo do Leste Europeu em 1989, ao
esvaziamento do Pacto de Varsóvia, e à subseqüente deslegitimação do

139
comunismo e do imperialismo soviético, com o renascimento do nacionalismo e
de movimentos de auto-determinação na União Soviética (1997, p. 231).

Ainda relacionadas ao tema das mudanças nos entendimentos


intersubjetivos, e suas conseqüências para o mundo material, o autor indica duas
linhas de pesquisa. Uma para o estudo da economia política internacional,
mostrando como mudanças nos entendimentos coletivos sobre tecnologia e
economias nacionais e globais podem ter efeitos materiais diretos na riqueza das
nações. Por poder mostrar esta relação, “o construtivismo pode ser mais bem
sucedido em explicar as relações entre Norte e Sul que as explicações racionais
(Krasner, 1985) que se concentram principalmente em objetos materiais, e que as
explicações pós-modernas (Doty, 1996), que focam exclusivamente as mudanças
discursivas” (1997, p. 232).

A outra linha, ele sugere, permitiria estudar a evolução da política


ambiental com base nos entendimentos intersubjetivos sobre qual o
comportamento adequado para conciliar desenvolvimento e preservação
ambiental, notadamente com a criação do conceito de “desenvolvimento
sustentável”. Aqui se pode perceber claramente a marca do mundo material, que
levou os indivíduos a desenvolver em suas mentes este conceito normativo e
causal. Este entendimento intersubjetivo acabou sendo adotado pela Comissão
Mundial sobre o Ambiente e o Desenvolvimento em 1987, e depois na
Conferência do Rio, com a criação de instituições internacionais para
implementar políticas de desenvolvimento sustentável:

“Com tudo isso, o desenvolvimento sustentável tornou-se um entendimento


intersubjetivo com base em que problemas e soluções referentes ao meio ambiente
e desenvolvimento são analisadas, e repertórios de ação formulados. (...) esse
entendimento começou a determinar políticas que atuam no mundo material,
afetando o ambiente físico, as pessoas e seu bem-estar” (1997, p. 232).
Um segundo tema relevante que pode ser melhor compreendido
através das lentes teóricas e conceituais da abordagem construtivista:
“comunidades epistêmicas e a construção de fatos sociais”. Embora seja um
conceito muito utilizado no campo das RI, cabe aqui transcrevermos a definição
de Peter HAAS, trazida em ADLER:

140
“Uma comunidade epistêmica é uma rede de profissionais com reconhecida perícia
e competência em um domínio particular e uma alegação de autoridade de possuir
conhecimentos relevantes à política dentro desse domínio ou tema. Comunidades
epistêmicas têm um conjunto compartilhado de crenças normativas e de princípio,
crenças causais e noção de validade compartilhadas e um empreendimento político
comum.”
Afirma ADLER que o estudo das comunidades epistêmicas, assim
como da relação entre conhecimento científico e desfechos das relações
internacionais, não faz muito sentido, a menos que siga uma perspectiva
construtivista. Somente assim seria possível, segundo ele, captar o papel das
comunidades epistêmicas como “um veículo de premissas teóricas, interpretações
e significados”, que, “em alguns casos, ajudam a construir a realidade social das
relações internacionais”. Segundo ele, o conhecimento intersubjetivo gera efeitos
na realidade política e social, devendo ser estudado

“o processo cognitivo evolutivo como um todo, buscando explicar como o


conhecimento é duplamente construído – primeiro por membros de comunidades
epistêmicas e depois por indivíduos e instituições interagindo em sistemas políticos
domésticos ou internacionais. Já que as idéias correntes têm mais chances de
sobreviver à seleção política, comunidades epistêmicas que tiveram sucesso em
levar idéias correntes ao conhecimento público podem ter mais chance de surgir
como vencedores. Em termos gerais, o construtivismo pode nos ajudar a
compreender o papel das comunidades epistêmicas em realizar mudanças nos
modos como os líderes políticos pensam sobre a ciência e suas conseqüências”
(ADLER, 1997, p. 233-234).
O estudo de atores internacionais como ONGs, movimentos sociais,
organizações internacionais e instituições domésticas, que também “são
significativos para a compreensão teórica mais ampla da construção social da
realidade internacional pelo conhecimento intersubjetivo”, devem ser estudados
nesta mesma linha, vinculando o conhecimento intersubjetivo à construção de
fatos sociais (ADLER, 1997, p. 233).

Noutra sugestão bastante interessante, o autor indica a pesquisa da


construção social de comunidades de segurança através da história e a
comparação entre as diferentes áreas do globo. Segundo ele, é necessário estudar
a relação entre o comportamento estatal, internacional ou mesmo doméstico, e a
filiação a uma comunidade:

“Quanto mais percebemos que a segurança internacional está cada vez mais
associada ao estabelecimento de uma comunidade de segurança e que as fronteiras
das comunidades de segurança são ideacionais, mais plausível se torna ‘que as
141
regiões são socialmente construídas e sucetíveis à redefinição´ (Adler e Barnett,
1996, p. 77). (...) a filiação a uma comunidade depende não apenas da identidade
externa do Estado e o comportamento a ela associado mas também de suas
características e práticas internas. Por exemplo, seria muito difícil para um Estado
europeu abusar com freqüência dos direitos humanos e ainda ser visto como
pertencente à ´Europa´ contemporânea” (ADLER, 1997, p. 235).
A penúltima sugestão apresentada por ADLER (1997, p. 236-237)
dirige-se a um campo que pode ser bastante fértil para o construtivismo, e que
repele as críticas que esta abordagem recebe, freqüentemente, de só tratar das
realidades socialmente construídas “boas”, como visto acima. O autor aponta
que, ao lado da cooperação de segurança, outro objeto para o estudo
construtivista é a construção social do conflito e da guerra:

“Sobre esse tema, estudos recentes enfatizam os aspectos culturais das decisões
sobre o uso da força em guerra (Legro, 1995), doutrina militar (Kier, 1996, 1997),
estratégia militar (Johnston, 1995) e disposição bélica (Ross, 1993) sugerem um
caminho de pesquisa frutífero para os construtivistas. (...) embora a noção de que a
construção social de um inimigo (“o outro”) seja parte do desenvolvimento de
identidades do ´eu´ tenha sido validade pela teoria da identidade social (Mercer,
1995) e analisada por estudiosos pós-modernos (Campbell, 1996), os
construtivistas devem ainda desenvolver projetos de pesquisa que possam mostrar
como os inimigos e as ameaças militares são construídos socialmente por fatores
tanto material quanto ideacional”.
Concluindo sua lista, que na verdade é um pouco mais rica em
pormenores e em relatos de estudos empíricos do que pudemos colacionar aqui, o
autor sugere a realização de estudos construtivistas referentes à “construção
social da paz democrática”:

“A ´paz democrática´ clama por uma explicação construtivista. (...) a paz


democrática é um desenvolvimento histórico e se espalhou pela parte do mundo de
identidade intersubjetiva liberal que, cruzando fronteiras nacionais, se torna uma
marca de identidade e um indicador de intenções pacíficas recíprocas” (ADLER,
1997, p. 238).
RUGGIE, de forma semelhante, trouxe, espalhadas em seus textos,
algumas contribuições teóricas significativas, como problematizar os interesses e
as identidades dos atores, perquirir o tema da causalidade ideacional, construindo
uma linguagem conceitual adequada a sua epistemologia interpretativa, tratar da
intencionalidade coletiva e investigar a questão da agência transformadora.
Buscaremos resumi-las, para então em seguida concluirmos este capítulo,
buscando realizar um distanciamento crítico, apontando reservas apresentadas ao
construtivismo e possíveis limitações dessa abordagem.

142
O projeto construtivista compreende as identidades e os interesses
como endógenos ou socialmente construídos. Assim, tratam destas variáveis
como dependentes, investigando justamente como os atores sociais vieram a
adquirir esta ou aquela identidade específica. Existe uma grande quantidade de
estudos empíricos demonstrando a evidência de que fatores ideacionais, bem
como materiais, podem modificar as identidades dos Estados e então moldar seus
interesses, ou o seu comportamento, diretamente:

“Constructivists hold the view that the building blocks of international reality are
ideational as well as material; that ideational factors have normative as well as
instrumental dimensions; that they Express not only individual but also collective
intentionality, and that the meaning and significance of ideational factors are not
independent of time and place.” (RUGGIE, 1998, p. 33)
Estas proposições necessitam obviamente de maior teorização e
aplicação em pesquisa empírica, mas os estudiosos do construtivismo não têm se
furtado a realizar estes avanços e investigações.

Outro tema relevante na agenda de pesquisa construtivista relaciona-se


à causalidade ideacional, tema este no qual o construtivismo irá novamente
iniciar suas formulações com as críticas à síntese racionalista. Embora possuam
muitos traços em comum, na questão concernente ao peso causal das idéias,
teóricos neo-realistas e neo-liberais irão discordar. Para os neo-realistas os
fatores ideacionais não passam de mecanismos de socialização – mecanismos
segundo os quais os Estados aprendem a se conformar às regras do sistema
internacional. Os institucionalistas neoliberais, por sua vez, elaboram um quadro
analítico mais interessante e complexo148, não obstante o resultado seja um papel
apenas limitado das idéias. Partindo do pressuposto do ator racional e
maximizador de seus interesses, os institucionalistas neoliberais atribuem uma
causalidade interveniente, já que as idéias seguem três caminhos para influenciar
na ação política: (1) como “mapas rodoviários”, indicando os melhores caminhos
para se atingir as preferências ou ajudando os atores a definirem suas
preferências; (2) como “pontos focais”, ajudando a escolher estrategicamente a

148
GOLDSTEIN & KEOHANE (1993) publicaram uma coletânea de artigos que defendem a
perspectiva institucionalista neo-liberal quanto à causalidade das idéias denominada Ideas and
Foreign Policy.
143
ação política, no caso de multiplicidade de equilíbrios possíveis; e (3) através da
institucionalização, especificando as políticas específicas na ausência de
inovação.

A pesquisa construtivista concebe um papel causal de maior relevo


aos elementos ideacionais. Busca-se um entendimento mais profundo de todo o
feixe de papéis que as idéias exercem nas RI, em vez de especificar papéis
definidos a priori baseados em pressuposições teóricas, como fazem os
racionalistas, obrigados a tal procedimento por sua epistemologia positivista.
Levando-se em conta que os atores são competentes tanto estrategicamente como
do ponto de vista comunicativo, as práticas discursivas, as preocupações
normativas e outros comportamentos estatais serão sempre baseados em idéias,
sejam estas idéias ligadas à racionalidade instrumental – que valoriza os fins da
ação – sejam elas ligadas ao próprio sentido atribuído pelo ator àquela ação
social:

“Social constructivists have sought to understand the full array of systematic roles
that ideas play in world politics, rather than specifying a priori roles based on
theoretical presuppositions and then testing for those specified roles, as neo-
utilitarians do. Because there is no received theory of the social construction of
international reality, constructivists have gone about their work partly in somewhat
of a barefoot empiricist manner and partly by means of conceptual analysis and
thick description.” (RUGGIE, 1998, p. 18)
Concluindo a questão da causalidade ideacional, podemos acrescentar,
com RUGGIE (1998, p. 21-2), que os fatores ideacionais pertencem à categoria de
“razões para ações”, o que é bastante distinto de atribuir-lhes a categoria de
“causas para ações”. As idéias em si não vão causar a ação, mas sim indicar
porque aquele resultado ocorreu historicamente daquela forma e não de outra.
Destarte eleva-se a necessidade do desenvolvimento de uma linguagem
conceitual que dê conta da especificidade do fenômeno no mundo cultural, em
oposição à concepção de causalidade tomada das ciências naturais, moldada de
acordo com o mundo físico.

Outro tema importante da agenda de pesquisa construtivista concerne


à intencionalidade coletiva. A abordagem neoliberal admite a causalidade das
idéias acreditando no conceito de idéias como sendo “crenças mantidas por

144
indivíduos”. Obviamente que estas idéias somente podem estar contidas nos
cérebros humanos, mas ao recusar o individualismo metodológico o
construtivismo não pode aceitar que as idéias que possuem relevância no estudo
das Relações Internacionais sejam consideradas do ponto de vista subjetivo.
Assim, as idéias que vão interessar ao construtivismo encontram-se no campo da
intersubjetividade149: são fatos sociais, fazem parte da intencionalidade
coletiva150. A partir do momento no qual estas idéias se tornam compartilhadas
pela coletividade, transformando-se de idéias em entendimentos intersubjetivos,
irão importar para o estudo construtivista, já que possuem a capacidade de
moldar, através do tempo, os padrões de ação.

O reconhecimento da agência transformadora resulta da solução


estruturacionista, seguindo GIDDENS, adotada pelo construtivismo com relação
ao problema agente-estrutura. Assim, a estrutura social constrange as ações
sociais, ao mesmo tempo em que é meio no qual se desenvolvem tais práticas dos
atores que, assim agindo, potencialmente transformam a estrutura. Estaria aberta,
deste modo, a possibilidade de transformação, com esta solução teórica para o
problema da relação entre as entidades. De outras duas linhas mais empíricas da
agenda de pesquisa construtivista vem buscando abordar o potencial
transformativo da realidade internacional.

A primeira consiste em mostrar como a dimensão estrutural da


realidade internacional é contingente espacial e temporalmente. Assim, esta linha
de trabalhos empíricos busca tornar transparentes as práticas sociais específicas
que são situadas no tempo e no espaço e discernir estas práticas implica em
reconhecer a possibilidade de mudança. A outra perspectiva enfatiza, por sua vez,
as micro-práticas com caráter inovador existentes nas RI contemporâneas151.

A solução do problema agente-estrutura abraçada pelos construtivistas


traz, da sociologia de GIDDENS, a teoria da estruturação. Conjugada com
perspectivas das RI, como por exemplo os estudos de política externa, esta

149
RUGGIE, 1998.
150
WENDT, 1994.
151
RUGGIE, 1998, p. 26-7.
145
solução pode abrir espaços para avanços significativos na nossa compreensão das
relações entre agentes e estruturas não somente no nível de análise sistêmico,
mas também nos outros níveis. Margot LIGHT (1994): Comentando, do ponto de
vista de uma estudiosa de política externa, afirma que o problema da relação
entre agência e estrutura, “one of the central issues of IR”, que, nas palavras de
Walter CARLNAES, em artigo publicado sobre o tema desde o ponto de vista da
chamada Foreign Policy Analysis, consiste na questão de como conceituar o
comportamento interestatal “in terms of human choice and social determination”,
afirma: “The question of the interaction of agency and structure represents the
intersection of social science and international relations theory with the theory of
foreign policy. It is a problem which will continue to preoccupy both IR theorists
and foreign policy analysts.”

Em uma resenha bastante sugestiva sobre a “reorientação construtivista”


nas RI, Jeffrey CHECKEL (1998, p. 324-348) reuniu algumas críticas direcionadas
a esta abordagem. Em um exercício de distanciamento crítico, procuraremos
relatar, embora brevemente, sugestões para um melhor desenvolvimento da
abordagem construtivista.

Em primeiro lugar, é necessário aos construtivistas prestar maior atenção


ao desenvolvimento de research design. Segundo esta crítica, muito do trabalho
construtivista concentra-se no estudo de um Estado, isoladamente, ou questões
temáticas determinadas:

“(...) much of the empirical work examines single countries or issues. Cross-
national or longitudinal designs would help reduce the problem of
overdetermination that is evident in many constructivist analyses, where social
structures, usually norms, are invoked as one of several causes variables with little
or no insight given on how much of the outcome they explain (…)” (CHECKEL,
1998, p. 339)
A crítica seguinte, já comentada quando tratamos da noção de construção
social da realidade, diz respeito à necessidade de se estudar as realidades “ruins”,
que igualmente são socialmente construídas. A sugestão de ADLER, para que a
pesquisa construtivista se preocupe, por exemplo, com as estratégias de conflito e
as guerras, sinaliza a preocupação dos construtivistas em superar esta falha.
Entretanto, em 1998 afirmava CHECKEL:
146
“There is a tendency in the recent work to consider only ethically good norms, such
as those imposing a stigma on the use of nuclear or chemical weapons, those that
helped bring the cold war to an end, or the global norms that facilitated the demise
of Apartheid. Some constructivists are aware of this problem (...), but future work
must address it. It will not only protect these scholars from getting caricatured as
peaceniks by theoretical opponents, but will also direct their attention to important
unexplored issues such as the role of social construction in ethnic conflict and war”
(1998, p. 339).
Uma terceira crítica é direcionada à necessidade de maior cuidado na
definição dos principais termos utilizados: “constructivists must take greater care
in defining key terms, for example, institutionalization” (CHECKEL, 1998, p.
340). Como vimos acima, algum esforço está sendo feito neste sentido. Por ser
um conceito central para a abordagem construtivista, detalhamos a conceituação
avançada por RUGGIE acerca deste conceito. Outros precisam ser tão bem
desenvolvidos.

Para concluir, CHECKEL afirma que há duas questões mais difíceis a


serem exploradas: o papel da agência e o desenvolvimento de teorias:

“Without more sustained attention to agency, these scholars will find themselves
unable to explain where powerful social structures (norms) come from in the first
place and, equally important, why and how they change over time. Without theory,
especially at the domestic level, constructivists will not be able to explain in a
systematic way how social construction actually occurs or why it varies cross
nationally” (1998, p. 339)
Apesar das críticas, CHECKEL reconhece os méritos da abordagem
construtivista, relacionados a sua reivindicada posição de meio-termo no debate
atual, segundo argumenta:

“(...) I argue that constructivism has succeeded in broadening the theoretical


contours or IR. By exploring issues of identity and interests bracketed by
neoliberalism and neorealism, constructivists have demonstrated that their
sociological approach leads to new and meaningful interpretations of international
politics. Moreover, constructivists have rescued the exploration of identity from
postmodernists. By arguing for its importance using methods accepted by the
majority of scholars, they have been able to challenge mainstream analysts on their
own ground” (1998, p. 325).
Ao final desta derradeira parte na Dissertação Final esperamos haver
obtido uma exposição clara da abordagem teórica do construtivismo social,
destacando, ainda, as contribuições teóricas e as limitações que a agenda de
pesquisa construtivista vem rendendo para a TRI.

147
6 À GUISA DE CONCLUSÃO

Este trabalho tinha por objetivo geral dispensar atenção à abordagem


construtivista das relações internacionais. Essa abordagem, como visto, insere-se
no que consideramos ser um dos debates teóricos mais importantes existentes nos
tempos atuais na disciplina das RI, qual seja, o que envolve de um lado os
partidários daquela abordagem e de outro os racionalistas, representados pela
síntese racionalista à qual convergem os neo-realistas e institucionalistas
neoliberais. As questões envolvidas neste debate, por sua profundidade,
importância e relevância, obrigam a todos aqueles envolvidos com Teoria das
Relações Internacionais uma reflexão mais profunda sobre a enorme quantidade
de abordagens que podem contribuir para o desenvolvimento deste campo.

Quanto às contribuições teóricas do Construtivismo para o estudo das


RI, já as expusemos no último capítulo. Esperamos haver demonstrado que a
interpretação é conciliável com uma ciência social que tenha compromisso com a
verdade, buscando superar o lado negativo da substituição do uso do critério da
verdade do conhecimento pelo do critério da utilidade prática das teorias, o que
tem ocorrido com muitas das perspectivas teóricas prevalecentes.

A abordagem teórica construtivista procura ainda transpor o lado


negativo da excessiva preocupação com parcimônia, já que existem fatores que
limitam a possibilidade de se construir teorias “enxutas”, “charmosas”. Entre
esses fatores, podemos citar: o número incontrolável de variáveis envolvidas em
qualquer explicação, o caráter dinâmico das relações internacionais, teimando em
transformarem-se diante de nossos sentidos e de nossa razão, entre outros.

Além disso, é necessário que tomemos consciência da construção


social que caracteriza qualquer área do conhecimento, nas quais uma
determinada comunidade acadêmica especializada elabora discursos teóricos
sobre a realidade, discursos esses que se relacionam com a realidade não somente
na condição de sujeito e objeto, mas também com a capacidade de gerarem
modificações sociais. Assim, essa abordagem teórica permite que tenhamos

148
consciência de que as teorias, enquanto discursos que são propagados sobre a
realidade, contribuem para a sua própria verificação ou negação. São, na
expressão corrente, profecias auto-realizáveis.

Emerge do pensamento construtivista, ainda, a necessidade de


utilizarmos um modelo de ciência próprio para as Ciências Sociais como as RI,
deixando-se de lado, ao menos parcialmente, a prática de se tomar emprestado
um modelo próprio das ciências naturais (isso sem comentar o fato de que esse
modelo proposto é, hoje, amplamente questionado mesmo nas discussões mais
profundas da Filosofia das Ciências Naturais).

Quanto aos temas da agenda de pesquisa construtivista, defendemos


que essa abordagem pode desenvolver significativamente a nossa compreensão
sobre alguns fenômenos, como o papel das idéias para a construção da realidade
social internacional, a transformação nas relações internacionais, a
intencionalidade coletiva, os padrões de comportamento socialmente
institucionalizados, as identidades e os interesses dos atores internacionais, entre
outros.

Conforme exposto no último capítulo, há também limitações, mas os


estudiosos que se dedicam a realizar pesquisas ou elaborações construtivistas não
têm se furtado a superá-las, tanto na construção de teoria, como na persecução de
resultados empíricos. Os textos pesquisados são ricos de referências a outros
estudos construtivistas, que agora, finalizada esta pesquisa, procuraremos
analisar para a realização dos próximos trabalhos acadêmicos.

É impossível deixar de mencionar algumas limitações do trabalho, bem


como suas possíveis contribuições para o desenvolvimento do estudo de TRI no
Brasil. Durante a pesquisa, houve algumas dificuldades. A primeira delas foi
percebida com os primeiros levantamentos bibliográficos: praticamente não
existe literatura especializada em língua portuguesa. Que isto sirva de alerta para
todos aqueles que formam esta comunidade acadêmica no Brasil, sobretudo para
aqueles envolvidos com atividades docentes, já que resulta uma dificuldade para
a seleção de textos a serem trabalhados com os discentes, em nossas faculdades

149
de Relações Internacionais, existentes cada vez em número maior, e áreas afins.
Fomos obrigados, então, a recorrer a textos em língua inglesa, sendo obrigados,
assim, a trazer as teorias sobre as relações internacionais elaboradas em outros
contextos nacionais.

Outra dificuldade dizia respeito à própria complexidade do tema


investigado. A profundidade, importância e relevância dos temas discutidos nos
debates mais recentes de TRI exigem, de nós estudiosos, um trânsito pela
Filosofia e pelas demais Ciências Sociais. Esta dificuldade possui, portanto, um
lado que é motivo de satisfação: as RI estão buscando se reaproximar das demais
áreas do conhecimento humano, das quais durante muito tempo tentou se
distanciar para reivindicar um direito próprio enquanto campo de estudos
acadêmicos. Mas, de qualquer modo, esta complexidade dificultou
consideravelmente o trabalho de um estudioso em seus primeiros passos pela
carreira acadêmica.

Nesta mesma linha, houve a dificuldade para incorporar ao texto, de


maneira que não causasse um desvio no trabalho, as contribuições de DURKHEIM
e WEBER. Em primeiro lugar, trata-se de contribuições desenvolvidas em outra
Ciência Social (a Sociologia), implicando algumas dificuldades relativas ao
próprio objeto pesquisado, qual seja, os textos de teoria sociológica. Por outro
lado, como cada área do conhecimento desenvolve para si linguagens
especializadas, adaptadas a seus problemas heurísticos, houve ainda a dificuldade
relacionada à própria linguagem da Sociologia, diferente da utilizada nas
Relações Internacionais.

Em último lugar, reconhecemos que não se trata de um trabalho que


tenha por objetivo esgotar o tema (aliás, raramente um trabalho possui tal
característica). Ao contrário, trata-se apenas de um primeiro esforço realizado
pelo mestrando, para um melhor conhecimento da abordagem construtivista, suas
contribuições e limitações, bem como do próprio debate no qual esta abordagem
está inserida.

150
Esperamos, entretanto, que haja neste trabalho alguns pontos que
possam ser importantes para a formação dos estudantes de RI, em número cada
vez maior no Brasil, bem como algumas indicações para novas pesquisas, sejam
essas relacionadas ao Construtivismo, seja às demais abordagens contemporâneas
ou aos debates existentes no campo.

Ao final, o trabalho justifica-se pela necessidade notada de melhor


compreensão de alguns dos debates teóricos que ocorreram nas RI, bem como de
um dos debates contemporâneos. O pesquisador, auxiliado por seu orientador,
espera haver colaborado com o esforço desenvolvido neste Programa de
Mestrado em Relações Internacionais, sobretudo na linha de pesquisa Teoria das
Relações Internacionais. Esta Dissertação Final insere-se em um esforço
crescente pelo desenvolvimento do campo de estudos das RI realizado no
Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

Para concluirmos, destacamos a importância de se ter consciência de


que não basta o conhecimento das teorias produzidas em outros contextos
acadêmicos, para que não nos tornemos repetidores e propagadores dos discursos
teóricos produzidos em outros países. Defendemos que as teorias devem ser
universais, mas isso não nos exime de estarmos atentos ao que comentou o
imortal Sérgio Paulo ROUANET, intelectual admirável por sua riqueza e
simplicidade, sobre a importação de discursos teóricos pelos brasileiros, tradição
de nossa academia. Trata-se de um esforço que está longe de ser fácil, mas isso
não diminui a sua necessidade:

“uma teoria será brasileira se fizer sentido para o Brasil. Quem decide o que faz
sentido para o Brasil? O intelectual portador de uma ´consciência crítica´,
identificado com forças sociais transformadoras, que pretendem elevar o Brasil da
condição de objeto à de sujeito da história”152.

152
ROUANET (1993, p. 352).
151
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