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Introdução
Há uma década, o desenvolvimento de meios digitais de comunicação em
rede tem proporcionado significativa transformação nos mercados bens
2
simbólicos, sobretudo, nas indústrias culturais . Os mercados de cinema,
editoração, fonogramas, rádio e televisão têm testemunhado uma acelerada onda
de inovações tecnológicas, surgimento de novos hábitos de consumo, emergência
de novos modelos de negócio, além de reclamações por mudanças nos regimes
de direitos intelectuais. Diante da importância econômica e social deste setor de
produção de cultura, faz-se necessário aprofundar repensar estas indústrias.
Neste artigo, propõe-se discutir o problema da concentração de capital nas
indústrias culturais, analisando um de seus ramos mais destacados, a indústria
fonográfica. Afinal, este é um negócio tradicional, de amplo alcance territorial e
social, além de ser um dos setores mais sensivelmente afetado pelas recentes
mudanças técnicas, sociais e econômicas trazidas pela chamada economia da
informação. Por um lado, diversos fenômenos sugerem que esteja ruindo sua
tradicional estrutura de comércio fundada na venda de produto físico, o disco, e
controlada verticalmente por um oligopólio estável de gravadoras multinacionais,
ou grandes gravadoras. Por outro, há suficientes indicações de que uma nova
estrutura esteja se formando, baseada na venda de serviços e gestão de direitos
intelectuais e formada por empresas dispostas em rede. O fato é que, porém,
ainda não há uma visão global acerca do que está efetivamente ocorrendo nesta
indústria. Não se sabe se estes acontecimentos possuem influência – e, se
possuírem, qual sua intensidade – sobre aspectos fundamentais como
1
Doutorando do Programa de Pós‐Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Pesquisador financiado pelo CNPq. Contato: leonardodemarchi@gmail.com
2
Segue‐se a definição de indústrias culturais dada por Ramón Zallo (apud: ALBORNOZ, 2006, p. 54), segundo
a qual “um conjunto de ramos, segmentos e atividades auxiliares industriais produtoras e distribuidoras de
mercadorias com conteúdos simbólicos, concebidas por um trabalho criativo, organizadas por um capital
que se valoriza e se destina finalmente aos mercados de consumo, com uma função de reprodução
ideológica e social”.
concentração de capital, inovação ou, o que é mais importante, a produção de
música no século XXI.
Neste trabalho, retoma-se uma clássica preocupação da sociologia da
cultura, no que tange às indústrias culturais, qual seja, a relação entre inovação,
concentração de mercado e produção de cultura. O tema foi inicialmente exposto,
em sua profundidade filosófica, no seminal ensaio de Max Horkheimer & Theodor
W. Adorno (1985), contudo encontra ecos nos trabalhos de Richard A. Peterson &
David G. Berger (1975) entre outros3. O mérito destes autores residiu em associar
aspectos como concentração da produção de bens simbólicos nas sociedades
industriais à produção e reprodução de valores ou, mais propriamente, à
homogeneidade da produção simbólica. Evidentemente, o tema é espinhoso e não
parece chegar a consenso quando se trata de avaliar tópicos tão subjetivos quanto
a “qualidade das obras” ou a “diversidade cultural” dentro de uma sociedade.
Todavia, estes autores sublinharam um tema dos mais importantes: o da
concentração industrial e seus efeitos sobre a produção simbólica. Assim, ficou
evidenciado que a chamada “cultura de massas” era caracterizada pela
concentração da produção simbólica em poucas, mas onipotentes, empresas de
comunicação e entretenimento.
A preocupação é estender tal debate ao que se propõe rotular de nova
indústria fonográfica. Muito foi afirmado, no início desta década, que a economia
da informação não comportaria altos níveis de concentração de mercado, o que
inibiria a formação de oligopólios, democratizaria a produção de bem simbólicos e,
por conseguinte, garantiria a diversidade cultural. A hipótese que aqui se defende
é a inversa: a de que a economia em rede favorece a alta concentração de
mercado, o que pode por em risco a tal diversidade cultural tão celebrada outrora.
Não que a estrutura da nova indústria de fonogramas seja similar à da época da
cultura de massas. De fato, sugere ser de um novo tipo, o qual Bennett Harrison
(1997) classifica de concentração sem centralização. Neste modelo, há um grande
número de empresas produzindo conteúdo, porém são poucos os agentes que
possuem capacidade de acessar mercados simbólicos de escala. A despeito do
3
Ver, sobre esta discussão, LOPES, 1992; CHRISTIANEN, 1995.
próprio título do texto, não se discutirá se tal modelo favorece ou inibe a
diversidade cultural. Acredita-se que (a) o processo de destruição criativa desta
nova indústria ainda esteja em andamento e que (b) não se pode estabelecer uma
linha direta e inequívoca entre “diversidade” (ou “qualidade”) cultural e
concentração industrial. Porém, sugerem-se, ao final do texto, alguns tópicos para
uma nova agenda de pesquisa sobre indústria fonográfica no século XXI que pode
vir a esclarecer apropriadamente este assunto.
Construindo a indústria fonográfica 1890-1990
Por se tratar de um negócio centenário, é evidentemente complicado
abordar a história da indústria fonográfica em breves linhas. Seus estudiosos não
chegaram a um consenso sobre como articular a contento aspectos tão distintos
como mediação tecnológica, economia política ou apropriações culturais
realizadas pelos consumidores, que influenciaram direta e indiretamente a
formação desta indústria. Neste trabalho, busca-se ressaltar, no entanto, a
estruturação de um modelo de negócio construído em torno da adoção de
determinadas tecnologias e da concentração do mercado em empresas de grande
porte. Em outras palavras, relacionar-se-á à indústria fonográfica o uso de
determinados produtos, fonogramas desde o cilindro ao disco compacto digital, e a
concentração do mercado em um oligopólio de grandes gravadoras
multinacionais.
Como se sabe, o processo de gravação e reprodução técnica do som tem
como marco histórico a apresentação pública do fonógrafo, aparelho patenteado
pelo norte-americano Thomas Alva Edison, em 1877. Na verdade, a invenção de
Edison esteve inicialmente voltada para o mercado de telecomunicações. Antigo
funcionário da Western Union, Edison desejava conectar seu invento ao crescente
mercado de telegrafia e telefonia e, até mesmo, planejou difundir sua invenção
entre jornalistas e estenógrafos para usos burocráticos na capital federal dos
Estados Unidos. Todavia, tal investimento terminou em retumbante fracasso.
Apenas um uso marginal do novo meio destacara-se como negócio rentável: a
venda de música gravada para entretenimento privado. Mesmo assim, é somente
quando se logra criar um método para a reprodução em massa do conteúdo
gravado é que se inicia a fase industrial da produção de fonogramas, naquele
momento, discos e cilindros. A partir de 1890, de fato, tem início o negócio de
reprodução sonora dedicado, sobretudo, à venda de música (DOWD, 2002;
GITELMAN, 1999; STERNE, 2003).
É importante notar que o negócio de fonogramas teve, desde seu início,
caráter monopolístico e internacional. Já no fim do século XIX, muitos
empreendedores aventureiros seguiriam as rotas comerciais abertas pelo
colonialismo com um fonógrafo (ou gramofone) embaixo do braço, a fim de
encontrar locais onde pudessem gravar músicas. Não surpreende, portanto, que
haja gravações sistemáticas feitas em países periféricos ao capitalismo industrial,
como Índia, países escandinavos ou Brasil, desde 1900 ou 1902 (FRANCESCHI,
2002; GRONOW; ENGLUND, 2007). Entretanto, para que se produzissem os
discos em escala comercial, tais empresários teriam de firmar contratos para a
produção com companhias norte-americanas ou européias. De fato, havia poucas
empresas que controlavam a tecnologia de reprodução sonora através de
patentes e, portanto, detinham equipamento para produção em larga escala de
discos. Munidos deste aparato jurídico e tecnológico, restringiam a concorrência,
estipulavam preços e firmavam contratos exclusivos com terceiros para a
produção industrial de discos. Uma vez gravadas as matrizes, o material era
enviado a fábricas na Alemanha ou nos Estados Unidos para a produção em larga
escala, sendo comprado o produto manufaturado para revenda ao mercado local4.
A partir da década de 1920, o acelerado desenvolvimento do rádio
comercial, sobretudo nos Estados Unidos, e do cinema falado resultou na compra
das empresas fonográficas por grandes corporações de radiodifusão e cinema,
que buscavam fácil acesso a artistas e repertório para suas programações e
4
O contrato celebrado em 1902 por Frederico Figner, fundador da Casa Edison, a primeira gravadora a ser
aberta no Brasil, com a International Talking Machine‐Odeon, da Alemanha, é exemplar deste sistema.
Como Franceschi (2002, p. 88‐98) cuidadosamente descreve, para que se produzissem os discos
exclusivamente para a Casa Edison, o empresário radicado no Brasil deveria pagar, com capital próprio, a
viagem marítima de Berlim ao Rio de Janeiro, ida e volta em Primeira Classe, para o técnico de gravação; a
retirada da Alfândega do material trazido da Alemanha; a hospedagem e a manutenção do funcionário no
país; o local e o material técnico e humano para gravação; o retorno das ceras gravadas à fábrica. Além
disso, o empresário ficaria obrigado a comprar 50 discos‐concerto (10 polegadas) e de 100 a 150 discos
pequenos (19 cm) de cada lote produzido – medidas referentes aos padrões de discos das empresas alemãs.
filmes. Quando incorporadas a tais empresas, a gestão das empresas fonográficas
passou das mãos de seus “capitães de indústria” para modernas burocracias5.
Criam-se, assim, as grandes gravadoras: corporações verticalmente integradas de
alcance internacional, munidas de administradores profissionais que cuidariam
racionalmente da produção de fonogramas e música6.
Após a Segunda Guerra Mundial, a indústria de discos experimentaria uma
notável expansão, por vários fatores: o fim da guerra permitira retomar a produção
de discos a pleno vapor; uma nova geração de consumidores surgia; novos
produtos reformulariam o mercado e sua indústria. Neste sentido, em 1958, a
gravadora norte-americana Columbia lançaria no mercado o Long Playing (LP),
disco em vinil com 33 1/3 rotações por minuto. O LP permitiu aumentar, ao longo
de algumas décadas, a arrecadação da indústria fonográfica. Tecnicamente, o
produto era mais caro, mas permitiria aumentar o tempo de vida de um disco no
mercado, uma vez que as várias canções comprimidas no suporte permitiram um
escalonamento de sucessos. Além disto, o LP permitiu que as empresas
desenvolvessem a parte estética do próprio meio, assemelhando o disco ao livro,
através do refinamento das capas. Assim, o “álbum” passou a ser um bem para se
colecionar em verdadeiras discotecas (KEIGHTLEY, 2004). O catálogo formado
através dos anos tornou-se um importante ativo para as gravadoras, uma vez que
poderia ser periodicamente relançado em novas edições ou outros suportes
sonoros (do LP monofônico para o estereofônico, deste para o CD,
sucessivamente). Em alguns anos, a indústria fonográfica tornou-se um
empreendimento de milhões de dólares7, expandindo ou consolidando suas
5
Sobre o processo de burocratização das corporações norte‐americanas, ver CHANDLER Jr., 1977.
6
O desenvolvimento da gravação elétrica e a crise econômica de 1929 seriam fatores importantes para uma
grande concentração na indústria de discos. Os diversos selos que atuavam, apesar de conectados através
das patentes, por diversas partes do mundo, seguindo uma política razoavelmente autônoma, começam a
ser reunidos sob a marca e a administração de grandes empresas. Em 1929, a Radio Corporation of America
comprou a Victor Talking Machine Company, criando a RCA‐Victor; em 1931, surge a EMI é fundada pela
fusão da inglesa Columbia Gramophone Company com a alemã Gramophone Company; em 1938, a norte‐
americana Columbia Records foi finalmente comprada pela Columbia Broadcast System (CBS).
7
Peterson & Berger (ibid., p. 164) observam que, entre 1955 e 1959, esta indústria obteve um crescimento
em vendas de discos no montante de 261%. Segundo dados da própria indústria, observam estes autores, as
vendas de discos passaram de US$ 189.000,000 para US$ 2.000.000,000 em 1973.
fronteiras por diversos países e mantendo níveis crescentes de concentração de
mercado.
Nos clássicos estudos de Paul Hirsch (1972) e de Peterson & Berger
(1975), fica evidenciado que essas gravadoras possuíam cifras altas de
participação no mercado norte-americano (em torno de 70% a 80%, entre 1948-
1955) graças a sua integração vertical. Isto lhes permitia controlar a cadeia
produtiva da música desde a produção de repertório (contratação de artistas,
posse de editoras e, por conseguinte, dos direitos autorais e de reprodução das
obras); seleção das obras pelos filtros (gatekeepers) dos meios de comunicação
de massa – muitas dessas empresas possuíam eram parte de corporações de
telecomunicação e entretenimento, além de pagarem pela exposição nesses
meios, prática conhecida por “jabá” ou payola. (PETERSON; BERGER, ibid., p.
161-3); além de controlarem o sistema de distribuição dos produtos físicos, o que
lhes permitiria celebrar contratos vantajosos com grandes cadeias nacionais de
revenda. Ainda que, entre 1956 e 1959, uma série de fatores tenha permitido o
desenvolvimento de firmas independentes e, por conseguinte, a diluição da alta
concentração dessa indústria8, como defendem Peterson & Berger (ibid.), entre
1959 e 1963 e, sobretudo, na década de 1970, os exorbitantes níveis de
concentração seriam restabelecidos nos Estados Unidos9 e também nos outros
8
O trabalho de Peterson & Berger (op. cit.) revela detalhadamente as diversas mudança na concentração do
mercado fonográfico estadunidense neste período de tempo (1948‐1973). As razões para a concentração,
desconcentração e reconcentração desta indústria passam por uma série de fatores que vai desde a ação
antitruste da justiça norte‐americana (em 1948, a corte suprema daquele país obrigou às grandes
companhias de cinema de Hollywood a se desfazerem de suas cadeias de salas de exibição de filmes,
obrigando a estas uma completa reformulação de seus investimentos no mercado de bens simbólicos, o que
alterou significativamente as cadeias produtivas de outras áreas das indústrias culturais, sobretudo, a
indústria de discos); à emergência da televisão comercial (o que remodelou a indústria de radiodifusão); ao
surgimento do rock n’roll, nos anos 1950, e à voga da Beatlemania, nos anos 1960. Ainda que, durante os
anos 1950 e início dos 1960, tenha ocorrido um crescimento da produção independente nos Estados Unidos,
diluindo conseqüentemente a concentração do mercado em grandes corporações, foram estas que, a partir
de meados dos anos sessenta e, sobretudo, nos anos setenta daquele século retomaram os altos índices de
concentração. Segundo informam estes pesquisadores, excetuando‐se a Mowton e a A&M Records (ainda,
então, independentes), todas as outras poucas firmas que dominavam o mercado estadunidense eram parte
de conglomerados de comunicações e entretenimento.
9
A chave para o controle do mercado residiria, mais uma vez, na integração vertical das empresas,
especialmente, no alto investimento em publicidade (o que analistas calculavam na época que gastasse
cerca de 44% do orçamento das gravadoras), além do sistema de distribuição (nos anos 1970, as grandes
mercados do mundo, uma vez que estas empresas também controlavam a
dinâmica do mercado internacional.
Neste cenário de estável oligopólio, somente grandes investidores poderiam
se lançar no mercado de discos – e, mesmo assim, deveriam apresentar alguma
inovação que lhes colocasse em condições de ganhar rapidamente mercados.
Nos anos 1980, gigantes de equipamentos eletro-eletrônicos, a corporação
japonesa Sony e a holandesa Phillips, desenvolveram conjuntamente uma nova
tecnologia digital, o disco compacto laser ou Compact Disc10 (CD). Como
enfrentara, anos antes, forte resistência das empresas de entretenimento aos
novos produtos que desenvolvia, a Sony resolveu tornar-se uma “companhia
totalmente voltada ao entretenimento”, investindo na “sinergia” entre hardware e
software (DU GAY et al., 1997, p. 76-82). Para tanto, comprou o estúdio de
cinema e a gravadora Columbia, da norte-americana CBS. Controlando um dos
grandes agentes da indústria de discos, a Sony Music já surgia como grande
gravadora o que lhe facilitou transformar o CD no principal produto do mercado de
discos, suplantando o LP.
Os anos que se seguiram foram ainda mais espetaculares em termos de
faturamento (LEYSHON et al., 2005). Os dados indicam que entre 1980 (quando
se introduziu o CD no mercado internacional) e 1995, o crescimento dessa
indústria passou de US$ 12 bilhões para US$ 42 bilhões (SANGHERA, 2001
apud: LEYSHON et al., 2005, p. 178). O nível de concentração da indústria
indicava que 80% deste comércio internacional pertenciam a quatro corporações
multinacionais (ibid.).
Entretanto, a entrada da indústria fonográfica em sua fase digital traria
conseqüências. Com o desenvolvimento das tecnologias digitais em rede e de
uma economia da informação, novos desafios seriam colocados, expondo este
consolidado modelo de venda de fonogramas à prova.
gravadoras de então compraram as cadeias de distribuição de discos). Impunham‐se, assim, barreiras quase
intransponíveis para novas empresas que apresentassem baixo capital. PETERSON; BERGER, op. cit.
10
As estatísticas oficiais indicam que o desenvolvimento do CD no mercado internacional foi lenta, porém
constante. Entre 1983 e 1989, ano que a Sony Music entra no mercado fonográfico, este formato passou das
6 milhões de unidades vendidas para 600 milhões. Entre 1990 e 1995, estas cifras passaram de 777 milhões
para 1.956 bilhão. Fonte: IFPI apud: DIAS, 2000, p. 106‐7.
A ‘destruição criativa’ da indústria de discos
A partir de meados da década de 1990, após generosa expansão, as
vendas de discos começaram a apresentar pequenas, porém repetidas, quedas.
As razões apontadas, sem alarme, pelas próprias empresas fonográficas
remetiam principalmente a causas isoladas, como crises financeiras ou
desemprego em determinados países e/ou regiões do globo (YÚDICE, 1999, p.
118). A perspectiva de retomada do crescimento nos anos seguintes era
firmemente considerada e a expectativa de expansão, considerada certa,
sobretudo, em países em desenvolvimento (ibid.). Em 1999, porém, artistas,
gravadoras e editoras musicais entram com uma série de processos, na justiça
norte americana, contra produtores de softwares que disponibilizavam arquivos
digitalizados sob proteção de direitos autorais para serem baixados gratuitamente
pela Internet. Entre estas ações, a do programa Napster gerou enorme comoção
pública, tornando-se símbolo desses eventos. Sob a alegação de deliberada lesão
contributória e vicária de propriedade intelectual11, iniciou-se um debate acerca do
que constituiria “compartilhamento de informação” por redes telemáticas e o que
seria uso ilegal de material protegido por lei, o que terminaria com a condenação
dos acusados e a transformação jurídica de programas de compartilhamento de
arquivos por redes de computadores em um sistema de reprodução e difusão de
bens simbólicos12 (MARTINS, 2003).
Nos anos seguintes, a discussão sobre indústria fonográfica e novas
tecnologias da informação e da comunicação (NTIC) alterar-se-ia
11
Conforme explica Martins (2003, p. 95), a acusação buscava demonstrar que o programa não apenas se
valia de uso impróprio ‐ isto é, sem pagar os tributos devidos – da obra de outros como também era através,
sobretudo, do uso deste tipo de bem que o programa ganhava mais público e aumentava seu rendimento e
valor. Como o Napster funcionava arquivando as músicas em seu servidor central, a acusação logrou provar
que os responsáveis pela empresa estavam cientes do uso ilegal daquele material e que, portanto, tinham
plena responsabilidade por sua difusão irregular.
12
A análise de Martins (ibid., p. 79‐108) demonstra que o julgamento torna‐se um divisor de águas no
debate sobre indústrias culturais e economia da informação, pois através dele se constrói social e
juridicamente um programa de computador como uma nova forma de distribuição de bens simbólicos. Para
que a acusação pudesse levar à condenação dos autores de um mero programa de compartilhamento da
informação entre comunidades virtuais de interesse, foi preciso demonstrar que o Napster não respondia
apenas à lógica desinteressada da simples comunicação entre nós de uma rede de computadores (tônica do
debate sobre novas tecnologias da comunicação e comunidades virtuais, até então), mas que se
caracterizava como uma nova forma de criação, expansão e segmentação de mercados para música gravada
– daquela maneira, considerada uma maneira ilegal e altamente predatória.
significativamente. Ficara evidenciado que novas formas de produção,
mecanismos de distribuição e hábitos de consumo de produtos fonográficos
estavam sendo implementados, desconsiderando-se a agenda e expectativas das
grandes empresas fonográficas – historicamente, os agentes controladores do
ritmo de desenvolvimento tecnológico nesta indústria.
Os efeitos disto provariam ser profundos. Todo o arcabouço econômico,
jurídico e cultural que caracterizou este negócio ao longo do século XX chocava-
se, então, com outra lógica de produção, distribuição, divulgação e consumo de
bens simbólicos. Como se observou anteriormente, a indústria de disco se
notabilizou pelo monopólio estável de algumas poucas firmas de alcance
internacional. Tal concentração era garantida pela integração vertical das grandes
gravadoras, as quais proviam economias de escala produzidas a partir do pólo da
produção13. Neste mercado digital que se anunciava, porém, as empresas
estabelecidas pareciam perdidas em relação às inovações, enquanto
empreendedores de diversas sortes exploravam os novos mercados. Para se
compreender este quadro, porém, é preciso atentar para o que os economistas
têm chamado de economia em rede.
As explicações clássicas das mudanças no capitalismo industrial remetem à
narrativa de que a estagnação do sistema na década de 1970 exigiu uma
completa renovação, que se deu através da inovação tecnológica, da
reorganização administrativa das empresas e da constante formação de novos
mercados. Se, em sua clássica narrativa, Alfred D. Chandler Jr. (1977) afirmou
que as características da tecnologia industrial reclamavam uma administração
crescente, através de um corpo de burocratas profissionais verticalmente
organizados – o que Galbraith (1982) chamara de tecnocracia – buscando
controlar toda a cadeia produtiva do fornecedor de matérias-primas ao consumidor
final14, autores como Piore & Sabel (1984) observariam que as das NTIC seriam,
13
Sobre as economias de escala por produção, no capitalismo monopolista, ver CHANDLER Jr., op. cit.;
GALBRAITH, 1982; PIORE; SABEL, 1984.
14
Piore & Sabel (1984) desenvolvem boa parte de seu argumento em um constante diálogo com os
trabalhos de Chandler Jr. (1977) e John K. Galbraith (1982). Com efeito, sua hipótese de um novo recorte na
história do capitalismo industrial reside, precisamente, na demonstração de que aquele arcabouço que
caracterizava o capitalismo industrial (economias de escala, monopólios estáveis, tecnologia de produção
inversamente, mais flexíveis, permitindo o desmembramento da cadeia produtiva
(terceirização da linha de produção), contínua diminuição nos custos de produção
(através da constante inovação tecnológica), portanto, prescindindo da tecnocracia
corporativa – seria o fim da “mão visível” do capitalismo industrial.
Outros autores iriam classificar este novo sistema de colaboração produtiva
como economia em rede (CASTELLS, 2003; RIFKIN, 2001; SHAPIRO; VARIAN,
1999). Nela, a chave reside na capacidade inovar tecnicamente com crescente
rapidez: diminuem-se os custos de produção progressivamente e, com isto, pode-
se adiantar obsolescência de produtos, fomentando a expansão do consumo.
Como o controle da inovação não pode mais ser monopolizado por longo tempo,
as empresas ficam obrigadas a compartilhar informações para desenvolver novas
tecnologias, juntar recursos e fomentar redes de consumidores. Daí conectar-se
ser obrigação para o êxito neste sistema.
O desenvolvimento das redes de computadores interconectados apenas
acentuou tais características. Como observam Carl Shapiro & Hai R. Varian (op.
cit.), a característica fundamental da “informação” (classificada pelos autores como
qualquer coisa que possa ser codificada em bits, digitalizada) como bem simbólico
é que ela apresenta altos custos fixos para produção, porém baixos custos
marginais para reprodução – com efeito, este é virtualmente nulo. Isto significa
que o valor do bem informacional é dado não por seu custo de produção, mas pelo
valor auferido pelo consumidor. As economias em escala passam, portanto, a
serem definidas não pela produção (tecnocracias), mas pela demanda (redes).
Uma vez disponibilizados no ambiente virtual, a distribuição e reprodução
da informação assume um custo marginal nulo e é repassada rapidamente pelas
redes de usuários. Tal característica afeta sobremaneira a cadeia produtiva das
indústrias culturais, produtoras de bens simbólicos industrializados, em vários de
seus pólos:
• Produção: tecnologias digitais barateiam os custos de produção; há
uma crescente necessidade de produção de conteúdos, o que acaba
em massa, grandes burocracias profissionais que planejavam a produção de bens para que rendessem
durante longo período de tempo) havia cedido espaço para uma nova e mais dinâmica, pois flexível,
estrutura de produção.
abrindo mercado para diferentes tipos de produtores; o consumidor
passa a ser também produtor de informação; convergência
tecnológica facilita a contrafação de produtos.
• Distribuição: a distribuição on-line de serviços causa a
desintermediação (JONES, 2000) do tradicional mercado, quer dizer,
empresas que distribuíam os produtos reais diminuem seu controle
neste comércio; surgem novos serviços próprios do ambiente digital
e, portanto, novos intermediários; tal tipo de distribuição aproxima as
indústrias editoriais (livros, discos, cinema) do modelo de fluxo15,
típico da radiodifusão e da televisão (ALBORNOZ, 2003, p. 59).
• Consumo: a rápida inovação tecnológica e o incremento da oferta
de conteúdos e serviços induzem a segmentação dos consumidores
e a fragmentação do consumo (ALBORNOZ, op. cit.; ANDERSON,
2006); busca pela formação de redes de consumidores, através dos
efeitos de externalidades das redes e das respostas positivas
(positive feedback) (SHAPIRO; VARIAN, 1999); a maior parte do
pagamento se destina não ao produto em si (pois são baixos seu
custo de reprodução e sua atualidade e, portanto, serventia), mas,
sobretudo, pelos serviços que possibilitam o acesso aos bens
informacionais (portais de busca por informação, armazenamento,
etc.) (RIFIKIN, 2001).
• Direitos intelectuais: a rápida circulação da informação por distintos
suportes e contextos econômico e cultural reclama a flexibilização
dos direitos intelectuais sobre os bens simbólicos digitalizados, pois
os bens informacionais não seguem as regras de exclusividade,
rivalidade, divisibilidade, dificuldade de reprodução e, enfim,
15
Como explica Luis Alfonso Albornoz este termo se refere aos modelos tradicionais que norteiam e
diferenciam algumas indústrias culturais, como o Modelo editorial, que comumente representa as indústrias
editorial e de discos, e o de fluxo, no qual não se produz um bem para a venda, mas um conjunto e que se
cobra pelo direito de acessá‐los, ver ou ouvir através do rádio ou televisão. Tais modelos servem, continua,
“para estruturar o jogo entre atores, descrever as macrotendências do sistema em um momento histórico
determinado e nas formas institucionais dominantes assumidas pela mercantilização e industrialização da
cultura” (2003, p. 59).
escassez que regiam o uso, o fruto e a alienação da antiga
propriedade privada (MOULIER-BOUTANG, 2001, p 33).
Estes poucos aspectos citados bastam para sustentar que a tradicional
estrutura da indústria fonográfica – que tinha na venda do produto físico, o disco, o
elo central de sua cadeia produtiva – foi substantivamente deslocada. O ato de
comprar o álbum (o produto físico) passa a ter menos sentido para o consumidor,
pois ele pode baixar e reproduzir indefinidamente discografias completas, clipes,
partituras e outros produtos diversificados para seus computadores pessoais,
telefones móveis e outros meios, prescindindo da matriz. Como a distribuição
passa a ser feita ou pelo sistema de entrega por demanda (just in time) ou mesmo
virtualmente, no caso dos arquivos digitalizados, todo o gigantesco sistema de
distribuição nacional das gravadoras perde sua função como barreira de entrada
no mercado para novas empresas. Finalmente, se a compra do disco não define
mais a razão desta indústria e o fonograma pode ser destruído e reproduzido a
esmo através das redes de computadores, o atual regime do copyright reclama
uma revisão. Não é acaso que a milionária indústria fonográfica testemunhe, com
apreensão, uma desenfreada queda na venda de álbuns em quase todos os seus
mercados.
Note-se que o problema não reside na tecnologia em si, como sugere a
teoria da cauda longa (ANDERSON, op. cit.), mas nas características da economia
digital em rede (SHAPIRO; VARIAN, op. cit., p. 09). Agora, a informação que
vendia o disco vende também tantos outros produtos e é produzida, difundida e
vendida por outros meios. Portanto, as grandes gravadoras se tornam incapazes
de, sozinhas, comandar os processos de inovação nos negócios e abertura de
novos mercados. A introdução de novas combinações de técnicas e de
tecnologias alterou toda a dinâmica do mercado de fonogramas, que ainda
procura nova estabilidade. É neste sentido estreito de completa modificação do
equilíbrio de um mercado e sua passagem para o próximo estágio de organização
é que se lança mão do conceito de destruição criativa, proposto por Joseph A.
Schumpeter (1984).
Diante deste complexo processo, as grandes empresas fonográficas
multinacionais adotam estratégias múltiplas. Notadamente, assumem uma postura
conservadora. Sob o argumento de “fim da indústria da música” iniciaram uma
cruzada para reprimir ou, pelo menos, disciplinar o desenvolvimento de
tecnologias de procura e compartilhamento de arquivos digitais e os correlatos
hábitos de consumo, através de ações judiciais contra produtores de softwares ou
mesmo meros usuários. Com isto, a um só tempo, equivale-se a troca de
informação pela Internet à contrafação de seus produtos, ou “pirataria” – ainda que
as estruturas desses dois mercados sejam absolutamente distintas. Assim, pode-
se embrulhar no mesmo pacote estas novas formas de produção, distribuição e
consumo de fonogramas para pressionar a opinião pública e governos para que
tomem medidas repressivas contra o mercado informal16.
No entanto, as ações não se restringem à repressão. Com o inevitável
crescimento do acesso aos meios de digitais de comunicação (computadores
pessoais, telefones móveis, Internet banda larga) e o êxito de novos negócios
digitais, as grandes gravadoras passam a explorar o mercado digital em rede.
Gradualmente, elas têm assinado contratos com novas empresas virtuais a fim de
disponibilizarem seus vastos e valorizados catálogos de som e imagem. Além
disto, realizam contratos de amplo escopo (ou de 360º, no jargão do mercado)
com seus artistas, abraçando não apenas a venda de fonogramas como também a
produção de espetáculos ao vivo, que ganham crescente importância na lógica da
16
A indústria fonográfica age, em geral, de duas maneiras neste caso. Por um lado, apela à conscientização
dos consumidores para os supostos malefícios do consumo de material protegido por direitos autorais seja
contrafeito seja pelo compartilhamento por Internet. Neste sentido, nas páginas virtuais de associações
nacionais e federações internacionais da indústria fonográfica, pode‐se encontrar campanhas com o fim de
inibir o acesso gratuito a gravações pela Internet através de programas de compartilhamento de arquivos.
Ver http://www.pro‐music.org/Content/GuidesAndResources/advice_for_parents.php. Sobre governos
nacionais, esta indústria se organizou em associações internacionais que pressionam o Poder Público a
tratar a “pirataria” como caso de polícia. O Brasil é um exemplo notório. Após sofrer pressão das câmaras de
comércio dos Estados Unidos, o legislativo brasileiro formou uma Comissão Parlamentar de Inquérito [CPI]
da Pirataria, em 2004, cujo relatório propiciou a criação do Conselho Nacional de Combate à Pirataria
[CNCP], formado por representantes dos Ministérios, Senado e Câmara Federal, além de seis instituições do
setor privado, entre elas a Associação Brasileira de Produtores de Discos. Este órgão desenvolveu um Plano
de Ação Nacional para coibir esta atividade, contando ainda com a colaboração das polícias Federal e
Rodoviária Federal, da Receita Federal e da Secretaria Nacional de Segurança Pública. Em 2006, diante das
ações do governo brasileiro, o país foi retirado de uma lista negra de países que não reprimiam os abusos
contra as leis de direito intelectual. Sobre a indústria da pirataria no Brasil, ver PRESTES FILHO, 2005.
chamada economia da experiência (HERSCHMANN, 2006; PINE; GILMORE,
1999).
A pesquisa em andamento17 aponta que muitos aspectos desta “nova
indústria fonográfica” ainda estão em aberto. Todavia, no que concerne à
economia política das indústrias culturais, já é possível entrever algumas das
principais questões que cercam esta nova indústria fonográfica e a produção de
música no início deste século XXI.
A nova indústria fonográfica: concentração sem centralização
Desde os anos 1980, uma vasta literatura passou a dar destaque à
reorganização do capitalismo industrial, sublinhando a crescente relevância de
pequenas e médias empresas (PME), em oposição às grandes corporações
multinacionais, na geração de empregos e na condução de economias nacionais.
Afirmou-se mesmo que as pequenas e médias empresas estavam dando o tom
desse novo capitalismo, pois sua reduzida estrutura naturalmente favorecia a
inovação tecnológica e, por conseguinte, sua instantânea reconfiguração,
seguindo os humores de mercados instáveis e complexos (PIORE; SABEL, op.
cit.). Com efeito, as PME têm se destacado em diversas economias nacionais.
Entretanto, esta narrativa informa apenas parcialmente a estrutura da economia
em rede: as grandes corporações multinacionais ainda controlam direta e
indiretamente a economia global, pois possuem capital e conhecimento para
investir na constante inovação tecnológica e fácil acesso a mercados de escala
em amplitude global.
O aspecto ideológico da teoria da acumulação flexível já havia sido exposto
por sociólogos como Krishan Kumar (1997), ao observar que as grandes
empresas multinacionais foram os agentes que mais se beneficiaram – para não
dizer subsidiaram – o processo de acumulação flexível. Com as NTIC, puderam
reformular as gigantes estruturas burocráticas, cortar custos de produção,
restringir o poder de negociação da classe trabalhadora e distribuir seus produtos
por diversos mercados. Porém, é Bennett Harrison (1997) quem produziu a
17
Trata‐se da pesquisa levada a cabo no curso de doutorado da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, com previsão de defesa para 2011.
análise mais contundente sobre o papel das grandes corporações multinacionais
na nova economia globalizada. Em seu notável estudo, Harrison argumentou que
o novo regime de produção industrial favorecia desproporcionalmente as grandes
empresas multinacionais. Afinal, quanto mais a economia se globalizava, mais
estas empresas teriam vantagens, pois já agiam neste plano. Ainda que houvesse
uma flexibilização da produção, muitas das pequenas empresas dependiam do
capita ou do know-how fornecido por grandes bancos e empresas multinacionais.
E isto significava que esta nova forma de organização da produção não implica
uma divisão equânime do poder entre firmas. O poder decisório permanece em
poderosas instituições: corporações multinacionais, grandes bancos e o capital
financeiro. Por isto, o autor classifica esta nova estruturação da economia como
uma “concentração sem centralização” (concentration without centralization) (ibid.,
p. 09).
Mas é possível realizar uma comparação com a indústria fonográfica? Com
efeito, nenhuma transposição pode ser direta. Como bem lembraram Horkheimer
& Adorno (1985), a indústria cultural nunca é completamente indústria nunca é
completamente arte. Entretanto, a crescente tendência em falar de fim da grande
indústria recomenda uma breve comparação.
Ainda que alguns autores18 vislumbrem o desmanche no ar das grandes
corporações de comunicação e entretenimento, símbolos da cultura de massas do
século XX, e o advento triunfal dos mercados de nicho com uma vasta gama de
empresas especializadas provendo o que cada consumidor quer – narrativa que
celebra, em suma, o retorno ao paraíso do capitalismo liberal, em que a liberdade
de escolha dos consumidores é o que estrutura o mercado, não o planejamento
das tecnocracias – as características da economia em rede receitam cuidado para
este tipo de análise.
18
O livro de Chris Anderson (op. cit.) é o mais notório exemplo de tal perspectiva. Mas também se pode
encontrar um ardoroso defensor desta noção em tecnófilos como Seth Godin
(http://sethgodin.typepad.com/seths_blog/2009/02/music‐vs‐the‐music‐industry.html). No entanto, cabe
lembrar que o argumento que relaciona diretamente competição, fim de monopólios, à inovação e
diversidade cultural encontra‐se já no clássico estudo sobre ciclos produtivos nos mercados de bens
simbólicos de Richard B. Peterson & David G. Berger (1975).
De fato, as economias de escala da era industrial passam a ser economias
em rede (SHAPIRO; VARIAN, 1999, p. 174). É também verdade que, como se
observou anteriormente, o tradicional comércio de discos está em plena destruição
criativa. Grandes gravadoras amargam diminuição de suas vendas enquanto
jovens empreendedores fundam empresas virtuais que fomentam redes digitais,
valorizando-se do dia para a noite e criando mercados antes que conglomerados
de comunicação e entretenimento possam fazê-lo. Músicos independentes gravam
suas obras em estúdios próprios (muitas vezes, em seus próprios computadores),
disponibilizando suas canções em páginas virtuais de relacionamento e mesmo as
vendendo por empresas virtuais de distribuição digital. Mercados de nicho amplos
e auto-sustentáveis, baseados em pequenas lojas de alta tecnologia, afloram com
meios próprios de distribuição e divulgação.
Contudo, em qualquer organização em rede – seja a rede ferroviária, de
telefonia ou de computadores – a compatibilidade entre as ligações é central para
o pleno funcionamento das partes. Uma linha ferroviária transversal que não se
conecta a central, um tronco telefônico que não atinge outros estão fadados ao
fracasso. O mesmo ocorre na indústria de informática: programas de computador
que possuem códigos restritos a poucos usuários, impossibilitando a plena troca
de informações e o crescimento das redes tendem a desaparecer, sendo
substituídos por outros produtos de ampla aceitação. Isto implica que o valor de
uma rede depende da quantidade de pessoas já conectada a ela (SHAPIRO;
VARIAN, op. cit., p. 174). A disputa comercial fundamental se desenrola, portanto,
em torno da criação de redes que interconectem cada vez mais pessoas. Neste
sistema em que “o mais forte se fortalece; o mais fraco, enfraquece-se” (ibid.), o
nível de monopolização atinge altos registros, ainda que monopólios sejam
considerados efêmeros (em tese, uma nova empresa pode lançar um novo
produto que superará o serviço anterior).
Além disto, a economia da informação exige uma contínua produção de
conteúdos. No caso da indústria de fonogramas, com a aproximação ao sistema
de fluxo sua produção deve ser ampliada uma vez que o acesso às gravações
musicais incita o consumo de uma gama cada vez mais ampla de produtos, desde
equipamentos eletrônicos19 a serviços de Internet e, até mesmo, peças de
vestuário20. É evidente que isto eleva o preço dos serviços de acesso a este
material – além de inflacionar a importância da propriedade intelectual das obras.
O ponto está em que o acesso ao público consumidor dessas gravações pode
gerar um efeito em rede (network effect) em torno de certos produtos, o que daria
monopólio à empresa produtora do hardware ou prestadora de serviços. É neste
mecanismo, aliás, que reside a alta valorização de empresas virtuais formadoras
de redes de relacionamento como o Youtube, MySpace ou Last.fm – não por
acaso, compradas pela Google por US$ 1,65 bilhão, em 2006, pela Intermix
Media, da News Corporation (empresa do milionário das telecomunicações Rupert
Murdoch) por US$ 580 milhões, em 2005, e pela CBS Interactive por US$ 280
milhões, em 2007, respectivamente. Em uma economia movida pela incessante
inovação tecnológica, baseada na obsolescência programada e rápida das séries
de produtos, captar a atenção e a fidelidade dos consumidores se torna um
desafio para as empresas. Por isto, o que se negociou nestas aquisições foi o
acesso a redes de consumidores já interconectados pelo prazer de ouvir música –
pois, como se viu, esta música pode gerar o consumo de inúmeros produtos.
Entretanto, tal superprodução de conteúdo implica a decrescente
valorização do fonograma. Entrevistas com os novos empresários dessa indústria
relevam que a venda do fonograma em si raramente paga os custos das
empresas – a menos que se atinja um nível crítico de consumidores. Quem
poderia assumir, portanto, os custos e potencializar o acesso desses artistas a
19
Em parceria, a gravadora Sony Music e a operadora de telefonia móvel Vivo obtiveram enorme êxito
comercial no lançamento conjugado do disco La Plata, do grupo brasileiro Jota Quest, “embarcado” (novo
jargão da indústria) nos modelos W200 e W800 da Sony Ericsson. Lançado no celular, antes de sê‐lo em CD,
o álbum fez os telefones venderem, respectivamente, 800 mil e 200 mil aparelhos, tornando a banda
mineira a primeira a vender 1 milhão de telefones móveis no país. Sucessos como este fizeram com que
outra gigante da telefonia móvel, a Nokia, lançasse seu novo modelo 5800 comes with music oferecendo a
seus consumidores a possibilidade de baixar gratuitamente, durante um ano, quantos arquivos de música
digitalizados quiser, em um acervo de 3,6 milhões (serviço prestado, no Brasil, pela empresa iMúsica).
20
Recentemente, a empresa norte‐americana de calçados esportivos, a Nike, promoveu a venda de certos
modelos de seus tênis contendo um pequeno computador que repassa ao iPod (reprodutor de arquivos
musicais digitais construído pela Apple) informações sobre a freqüência, ritmo, velocidade e calorias
perdidas do corredor. Segundo estes dados, o reprodutor de música não apenas armazena os dados, que
podem ser enviados ao site central da empresa para gerar gráficos da performance do esportista, como
também seleciona as músicas mais adequadas para aquele exercício físico. Ver em
http://nikeplus.nike.com/nikeplus/?locale=pt_br.
mercados de escala gerados pela demanda? A resposta reside, por um lado, nos
próprios músicos e, por outro, nas grandes empresas multinacionais: aqueles
querem produzir e se profissionalizar, assumindo crescentemente os custos da
gravação musical21; estas possuem acesso a mercados de escala e subsidiam as
novas empresas virtuais, em busca do monopólio para suas linhas de produtos22.
Em um ambiente norteado pela lógica do retorno positivo (positive feedback), a
concentração do capital chega a níveis ainda mais espantosos.
Na prática, observa-se um reduzido grupo de empresas virtuais que são
referência para a nova indústria fonográfica, pois cedem espaço mediático e
serviço de vendas a artistas independentes e de grandes gravadoras. Se “todos os
músicos” podem produzir sua música e “cada consumidor” pode encontrar a
música que deseja, os espaços para sua exposição na Internet começam a ficar
estreitos ou, pelo menos, a passar necessariamente por estes novos
intermediários ou gatekeepers, fomentadores de redes sociais. Não causa
espanto que, atualmente, parte significativa destes novos negócios musicais tenha
assinado contratos generosos com grandes gravadoras e seus respectivos
conglomerados – ambos fortalecem as externalidades das redes de cada um.
Assim, não são mais as próprias grandes gravadoras que criam serviços e
fomentam mercados virtuais, deixam isto para novas empresas, mas são elas que
possuem capacidade para valorizar artistas e catálogos, permitindo que estes
alcancem sucesso.
As conseqüências deste processo que se desenrola para a produção de
bens simbólicos são múltiplas e, em muitos casos, ainda imprevisíveis. Se a mera
relação inversa entre concentração de mercado e diversidade cultural já era difícil
de se manter23, no atual sistema de concentração sem centralização, discutir essa
relação se torna ainda mais complicado. Contudo, é patente a necessidade de
uma nova agenda de pesquisa para a indústria fonográfica.
21
Sobre a transformação do músico em consumidor de tecnologia e produtor de informação, ver THÉBERGE,
1997.
22
Assim, retorna‐se, por outros caminhos, à afirmação clássica de Schumpeter (1982) de que são as grandes
empresas aquelas que possuem capacidade ótima para financiar a inovação e repassar os altos custos para
uma cadeia de consumidores.
23
Para uma crítica ao argumento de Peterson & Berger (op. cit.), ver CHRISTIANEN, 1995.
Conclusão
A despeito da inconclusa destruição criativa da indústria fonográfica, para
os pesquisadores interessados nela é evidente que uma profunda revisão na
agenda de pesquisa faz-se necessária. Seguindo as sugestões de Simon Frith
(2000), seguem-se alguns aspectos a serem investigados:
(a) esta indústria desfez sua tradicional organização verticalizada, com clara
divisão do trabalho intelectual entre “grandes gravadoras” e “independentes”, em
favor de uma organização em rede, na qual diferentes tipos de empresas prestam
serviços para artistas e companhias independentes e corporações;
(b) isto reforma, mas não abole, os monopólios que conglomerados
multinacionais de comunicação e entretenimento possuem, isto é, a distribuição do
poder neste sistema não é a priori mais equânime e que isto provoca diferentes
efeitos sobre a produção e distribuição de cultura no mercado de bens simbólicos
globalizado;
(c) este negócio cada vez menos se ocupa em produzir discos (produto
manufaturado) e mais em gerir direitos intelectuais das obras;
(e) outro aspecto que reclama uma discussão teórica mais profunda e
pesquisas qualitativas o mais confiável possível é a indústria da contrafação de
produtos e o estatuto do compartilhamento de arquivos pelas redes de
computadores. Não apenas isto se refere à necessidade ou não de ações policiais
e políticas repressivas a setores informais das economias nacionais como também
diz respeito ao direito de livre expressão e troca de informação pelas redes
informatizadas;
(f) uso de novos formatos fonográficos para o consumo de gravações
musicais (CD, DVD, SMD, Coolcards) traz mudanças fundamentais na forma pela
qual o produto simbólico fonograma é produzido, distribuído, promovido,
valorizado e consumido;
(g) uma análise do contexto latino-americano deve levar em consideração
as dificuldades que estes mercados possuem para acessar o mercado global de
bens simbólicos e, portanto, manter autonomia de sua produção cultural em seus
mercados domésticos.
A importância desta revisão reside em que, neste mercado globalizado de
bens simbólicos, as indústrias culturais são cada vez mais centrais na dinâmica da
produção e reprodução de cultura. Afinal, tal concentração sem centralização é
fundada na expansão da expansão da lógica de mercado sobre a produção
simbólica, processo que exige de qualquer esboço de política cultural pública a
consideração da importância econômica e influência cultural desses
empreendimentos.
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