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“A BÍBLIA SAIU DA MEMÓRIA DO POVO”: A LEITURA

POPULAR DA BÍBLIA E AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIA E


MEMÓRIA.1
Carolina Maria Abreu Maciel2
Meize Regina de Lucena Lucas3

RESUMO

Quando comecei as leituras sobre os estudos bíblicos, com o intuito de analisar a proposta de
uma nova leitura e interpretação da Bíblia, tendo como ponto de partida a experiência do povo, nos
deparamos com uma metodologia que surge nas Comunidades Eclesiais de Base, na década de 1970,
chamada leitura popular da Bíblia. A partir desse mote, pude observar que havia uma mobilização do
conceito de memória para explicar a história dos primeiros cristãos e como se deu a escrita do texto
bíblico em si. Partindo dessa observação, a ideia inicial deste trabalho é identificar como os conceitos
de História e Memória eram mobilizados para explicar a escritura da Bíblia e, principalmente, como
estas memórias eram apropriadas para dar ânimo e sentido a luta cotidiana do povo cristão, no tempo
passado e na atualidade.

Palavras-Chave: Comunidades Eclesiais de Base, História, Memória, Leitura Popular da


Bíblia.

INTRODUÇÃO

Para compreendermos, o que há de novo nessa maneira de refletir o texto bíblico, é


necessário que possamos identificar o ambiente político em que se desenvolveram as
Comunidades Eclesiais de Base e, paralelamente a isto, o desenvolvimento da leitura popular
da Bíblia. Na própria resposta, foi dito que o Brasil estava em plena Ditadura Militar, mais
precisamente o ano de 1979. Se nos atermos as datas, já haviam acontecido a Conferência

1
Este trabalho faz parte dos estudos para a escrita da Tese que está em andamento no curso de
doutorado História do Programa de Pós-graduação em História Social pela Universidade Federal do
Ceará. Esta pesquisa é financiada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico
(FUNCAP).
2
Discente do curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade
Federal do Ceará. E-mail: carolabreu.historia@yahoo.com.br
3
Pós-Doutorado em História pela Universidade de Brasília e University of Groningen, RUG, Holanda.
E-mail: meizelucas@gmail.com
Geral do Episcopado Latino Americano (CELAM) em Medelín, onde surge a Teologia da
Libertação, uma teologia nascida na e para a América Latina, a opção preferencial pelos
pobres era confirmada pela Igreja Latino-Americana. No Brasil, o país estava sob o governo
do último general golpista João Figueiredo, era 1979, ano de aprovação da Lei da Anistia4. Os
primeiros passos estavam sendo dados para pôr fim a um dos períodos mais sombrios da
história brasileira, uma pretensa abertura política estava em processo, mesmo que mediada
pelo governo militar, foi uma vitória para o movimento de resistência ao autoritarismo.
Propomos neste trabalho problematizar como são mobilizados os conceitos de
Memória e História em alguns textos que são subsídios para o estudo do método da leitura
popular e orante da Bíblia. Para esse trabalho continuaremos analisando o livro Flor sem
defesa – uma explicação da Bíblia a partir do povo, obra de Frei Carlos Mesters, principal
biblista e um dos fundadores do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI)5. A obra é uma
compilação de artigos, publicada em 1983, pela Editora Vozes. A ideia central do livro é
trazer a público uma nova maneira de ler e interpretar a Bíblia que vem do meio popular, por
isso o subtítulo – a partir do povo. O livro é uma fonte rica para o estudo da leitura popular da
Bíblia, método, como já citado acima, em que o povo passa a fazer uma leitura dos textos
Sagrados levando em consideração os problemas cotidianos, onde a Bíblia em si não é o
centro da reflexão, mas um auxílio para a compreensão dos problemas da comunidade, ela faz
o elo entre fé e vida.

Para começo de conversa, vamos entender como se dá essa leitura orante e popular
da Bíblia pensada por Frei Carlos Mesters, assim, teremos mais subsídios para desenvolver
nossa reflexão sobre as apropriações feitas dos conceitos de memória e História, tanto na
leitura quanto na escrita dos textos Bíblicos.

O MÉTODO DA LEITURA POPULAR DA BÍBLIA

4
A anistia sancionada pelo então presidente da República, general João Figueiredo, em 28 de agosto
de 1979, teve como resultados imediatos a libertação de quase todos os presos políticos do país,
permanecendo os presos que foram condenados pelos chamados “crimes de sangue”, e o início do
retorno de mais de 5 mil exilados. Cf. BRASIL. Lei. n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede
anistia e dá outras providências. 1979b. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm Acesso em: 11.05.2019
5
Tendo como fundadores Jether e Lucilia Ramalho, Agostinha Vieira de Mello e Carlos Mesters, o
Centro de Estudos Bíblicos foi fundado em 20 de julho de 1979, com o intuito de “[...] divulgar,
aprimorar e capacitar pessoas no uso dessa forma nova de ler e interpretar a Bíblia[...]. O CEBI
constitui uma associação ecumênica sem fins lucrativos, formada por mulheres e homens de diversas
denominações cristãs, reunidos pelo propósito de captar e fortalecer esse jeito de ler a Bíblia [...]”.
Mais informações no site do CEBI. Disponível em: https://cebi.org.br/historia/ Acesso: 23.06.2019
Para fazermos uma análise mais específica do método, partiremos da análise dos
textos compilados no livro Flor sem defesa – uma explicação da Bíblia a partir do povo,
como já citamos acima. Como o livro é um compilado, selecionamos o artigo que dá nome a
obra Flor sem defesa – Ler o Evangelho na vida, pois entendemos que a partir de sua leitura
poderemos compreender como se estrutura o método.
No início do texto o autor apresenta a questão que vai nortear aquele estudo: Como a
Bíblia está, de fato, contribuindo para a libertação do povo? E, é por esse questionamento que
seguiremos nossa reflexão sobre como se dá essa libertação do povo, por meio da leitura
popular da Bíblia.
Num primeiro momento, Mesters fala sobre uma leitura e interpretação, feita e
instruída pela Igreja, que estaria incompleta. Entendemos essa incompletude, como uma
interpretação do texto pelo texto, uma literalidade da narrativa, no que o autor em outro
artigo6 chama de interpretação da “letra” e da “história”.
Ficar só com a letra da Bíblia, só com os fatos e os textos, sem procurar o
que fica além, por trás ou por dentro dos fatos e dos textos, isto é, sem procurar a
sua orientação para Cristo e para a comunidade que vive hoje a sua fé, seria
interpretação judaica da Bíblia. [...]. (MESTERS, 1986, p. 58)

Logo após essa conclusão, Mesters vai falar sobre os grupos de leitura, onde o “[...]
povo começa a ‘ler o Evangelho na Vida’ [...]”. Estes grupos7 surgem por motivos variados,
sejam novenas de Natal, reuniões da Campanha da Fraternidade, preparação para a Semana
Santa, etc., alguns possuem uma periodicidade quinzenal outros semanal. Segundo o autor
não existe um modelo fixo para iniciar a leitura, porém, ele mesmo percebe um esquema
básico que orienta o encontro, há “[...] um fato ou situação da vida, [que é] confrontada com
uma leitura da Bíblia, junto com algumas perguntas de orientação para a reflexão comum”.
(MESTERS, 1986, p. 91)
Se voltarmos ao texto A brisa leve, uma nova leitura da Bíblia podemos, seguindo o
raciocínio do autor, entender como se desenvolve o método. Lembremo-nos, novamente, que
o método da leitura popular da Bíblia tem como base a metodologia do VJA, assim, quando o
autor propõe a tríade pré-texto, con-texto e texto (respectivamente, realidade, comunidade e

6
A brisa leve, uma nova leitura da Bíblia. Artigo publicado na mesma coletânea.
7
O autor afirma que estes grupos recebem nomes variados. Podem ser chamados de grupos de
reflexão, círculos bíblicos, círculos familiares, celebrações domésticas, grupos bíblicos, reuniões de
grupo, encontros bíblicos, movimentos ou simplesmente reuniões. Porém, logo em seguida nos diz que
esses grupos, que leem o Evangelho a partir da vida, podem ser chamados de círculos bíblicos. Mas na
realidade essa nomenclatura só costuma ser utilizada em grupos que utilizam um determinado roteiro
preparado por outras pessoas. (MESTERS, 1986, p. 92-93)
Bíblia) ele está querendo dizer que “o texto deve ser lido e interpretado a partir do pré-texto
da realidade e dentro do con-texto da fé da comunidade”. (MESTERS, 1986, p. 141-142)
Iniciando o texto, podemos observar, a partir da leitura do trecho abaixo, que o autor
vai narrando os problemas levantados pelos grupos que estavam no encontro8 (o pré-texto): a
realidade dos indígenas, dos camponeses e operários que vão descrever seus “cativeiros”, sua
escravidão.
[...] O índio falava das lutas do seu povo contra fazendeiros e grileiros.
História de um realismo impressionante. [...] Da família deste índio, cacique
xavante, morreram o pai, a mãe, mais de quatro irmãos e vários primos em
conseqüência (sic) de doenças trazidas pelos brancos ou de lutas armadas dos
brancos contra os índios. [...] Uma luta pela sobrevivência do seu povo, narrada com
simplicidade! Em tudo que dizia, ele misturava a sua fé em Deus e em Jesus Cristo.
Os agricultores falavam da sua condição de vida. Privados de quase tudo e incapazes
de se defender contra os exploradores, eles são forçados a se sujeitar às mais
terríveis condições para não morrer de fome. [...] Os operários falavam das
opressões dentro das fábricas e do clamor do seu povo. Manifestavam o desejo de
jogar fora esta dura escravidão. [...] As greves de São Paulo são vistas por eles como
uma vitória que encerra uma promessa: unidos, a gente consegue obter o direito que
nos cabe. (MESTERS, 1986, p. 43)

Após esses relatos de opressão, o autor afirma que, a motivação para a luta de
libertação destas explorações não é imposta ou determinada pela religião, por padres ou
bispos, mas vem de uma conscientização do próprio povo de sua situação insustentável.
(MESTERS, 1986, p. 43)
No momento de pensar o con-texto, a vivência da fé em comunidade, foi frisado
sobre a questão na qual a Bíblia não é o objeto central da reflexão, e sim a vida. O autor fala
que poucos foram momentos que se falou da Bíblia, mas que em várias ocasiões “[...] a
Palavra de Deus aparecia como sendo o motor escondido de tudo, e ficava evidente como a fé
em Cristo aprofundava o compromisso deles com o povo oprimido, e como fé e vida estavam
misturadas numa unidade, estando a fé a serviço da vida”. (MESTERS, 1986, p. 44) Para
exemplificar essa segunda parte, a reflexão sobre o con-texto, Carlos Mesters vai descrever a
fala de um operário, que partiu da experiência vivida ali (no próprio encontro) para refletir
sobre a leitura do texto de São Thiago, que foi feita na missa de encerramento, na qual se
falava sobre a questão do julgamento pela aparência.
[...] um operário do sul chamou uma senhora do Maranhão, que sofre as
conseqüências de uma paralisia infantil, ficou com ela no meio da roda e disse:
“Quando cheguei aqui, me perguntaram se eu era padre, se era assessor, se era bispo.
Perguntaram até se eu era do Dops. Gente, sou apenas operário!” Depois, apontou
para a senhora do Maranhão e perguntou: “E quem não fez um julgamento errado
sobre dona Maria?” Terminou dizendo: “Não julgar pelas aparências!” Mas do que

8
Esse encontro é o III Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, ocorrido em João Pessoa, na
Paraíba, em 1978.
isso não falou. Para ele, as coisas da Bíblia não são coisas do passado; elas existem
misturadas na vida e hoje. (MESTERS, 1986, p. 44)

Para Mesters, a fala do operário, em nenhum momento explicou a passagem bíblica,


porém por meio da leitura daquele trecho ele pode “iluminar” a situação vivida.
Com o entendimento do pré-texto e do con-texto, o autor afirma que podemos
identificar o lugar do qual, o povo presente no encontro, lia e interpretava a Bíblia. E esse
lugar tem algumas características que o autor enumera: 1) Situação de “cativeiro”; 2)
Caminhada e luta de libertação; 3) Vida e fé misturados numa unidade; 4) Fé a serviço da vida
que se liberta; 5) A Bíblia lida para alimentar está fé que é serviço. (MESTERS, 1986, p. 45)
Com o novo lugar de onde se lê e interpreta a Palavra houve um deslocamento do
centro de poder interpretativo dos textos bíblicos, que em muitos momentos legitimaram a
opressão dos pobres pelos poderosos daqueles tempos. Porém, agora o texto é descoberto e
apropriado pelos “de baixo”, o povo passa a ter a Bíblia como seu livro (MESTERS, 1986, p.
48), estes ao compreender que por meio de uma leitura onde a Palavra serve à vida, onde há a
união entre fé e vida “[...] que não é a Bíblia que confirma os outros no saber, no poder e na
posse do dinheiro com que controlam a vida do povo”. Mas, justamente, o contrário.
Em outras palavras, a Igreja não é mais o centro da história. A história do
povo tornou-se independente e segue seu caminho, mesmo sem a Igreja. Mesmo
assim, a Igreja está sendo convidada, insistentemente, a entrar na história do povo e
prestar-lhe o seu serviço. É um convite do próprio Deus, Senhor da história, o
Criador do povo, que fala não só pela Bíblia, mas também pelos fatos da história.
(MESTERS, 1986, p. 55)

Após essa breve introdução do que seria o método da leitura popular da Bíblia
podemos dar continuidade a proposta inicial desse texto, entender as relações estabelecidas a
partir dessa leitura e da própria escrita da Bíblia com os conceitos de História e Memória.

Primeiramente, pensar a memória e, principalmente, a memória do cristianismo


devemos lembrar o que Jacques Le Goff, em seu ensaio Memória9 afirma: tanto o cristianismo
quanto o judaísmo são “religiões da recordação”. (LE GOFF, 2012, p. 424) Dito de outro
modo, ser uma “religião da recordação” é “[...] ser chamado a viver na memória das palavras
de Jesus: [...]” (LE GOFF, 2012, p.425) no dia a dia; o ato de lembrar e praticar é tarefa
religiosa fundamental para os adeptos dessas religiões.

Partindo dessa ideia apresentada por Le Goff, uma reflexão que se estabelece como
de extrema importância para o desenvolvimento deste trabalho é a compreensão da relação

9
LE GOFF, J. MEMÓRIA E HISTÓRIA. São Paulo: Editora Unicamp, 2012.
que a historiografia estabelece entre os conceitos de História e Memória. Segundo Júlio
Pimentel Pinto (1998, p. 206)

História e memória apesar das aparentes semelhanças, como é


insistentemente repetido, diferem. O substrato de ambas talvez seja igual: o passado.
É em primeiro lugar, a ele, passado como temporalidade, que remetem a construção
da memória ou da operação histórica. A dissonância entre os dois fazeres, porém é
grande: a memória tecida sobre um determinado evento ou conjunto de eventos
dificulta a percepção histórica que se pode ter desses episódios, refaz o itinerário de
atribuição dos sentidos, constrói assim, a memória histórica que do apelo individual
atinge a dimensão coletiva.

Dessa forma, ao teorizar a partir desses conceitos não podemos esquecer, do trabalho
clássico de Pierre Nora, em seu ensaio, Entre memória e História – a problemática dos
lugares, de 1993, que nos apresenta, de maneira clara, as diferenças entre esses dois
conceitos. Para o autor, “[...] a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, [...]”. Já
a História é [...] a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais”. (NORA,
1993, p. 9)

Nora continua sua diferenciação dizendo que:

A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno


presente a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a
memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças
vagas telescópicas, globais ou flutuantes, particularidades ou simbólicas, sensível a
todas a s transferências, cenas, censuras ou projeções. A história, porque operação
intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a
lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica. A memória
emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há
tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e
desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a
todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se
enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga
às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um
absoluto e a história só conhece o relativo. (1993, p. 9)

A escrita da Bíblia é observarmos que ela é formada por uma seleção de textos,
escritos por diferentes autores, em diferentes lugares e que tem base na oralidade. Como
afirma Mesters (1986, p. 14) “Em vista da fidelidade a Deus e a si mesmo, o povo foi fazendo
uma seleção daqueles escritos que eram considerados de grande importância para a sua
caminhada”. Dessa forma, refletir sobre essa seleção é nos questionarmos sobre as exclusões,
a omissões e, porque não, o esquecimento de testemunhos para que o livro sagrado
legitimasse o modo de enxergar e estar no mundo dos primeiros cristãos.
Em muitos trechos da escrita de Mesters encontramos a menção da oralidade como
sendo a ferramenta principal de difusão das experiências dos cristãos primitivos, pois “[...]
antes de ser escrita, a Bíblia foi narrada e contada nas rodas de conversa e nas celebrações do
povo. E antes de ser narrada e contada, ela foi vivida por muitas gerações num esforço
teimoso e fiel de colocar Deus na vida [...].” (MESTERS, 1986, p. 15-16) Sendo assim,
quando tratamos da oralidade presente na produção do texto escrito da Bíblia, entendemos a
presença da subjetividade dos narradores, as reelaborações da tradição oral a cada nova
contação dos fatos e, principalmente, as intencionalidades. O próprio Mesters afirma que em
muitos trechos da Bíblia podemos encontrar testemunhos que tendem a “[...] puxar a brasa um
pouco para o seu lado”. Ou seja, não podemos tratar os textos bíblicos como objetivos,
retirando assim, toda a subjetividade existente nos testemunhos usados para sua produção.

A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem e


atribuem o significado à própria experiência e à própria identidade, constitui por si
mesmo o argumento, o fim mesmo do discurso. Excluir ou exorcizar a subjetividade
como se fosse somente uma fastidiosa interferência na objetividade factual do
testemunho quer dizer, em última instância, torcer o significado próprio dos fatos
narrados. (PORTELLI, 1996, p. 2)

Ao atentarmo-nos a fala de Mesters, a transcrição dessas memórias surgiu da


necessidade de não esquecer o passado de alegrias e sofrimentos pelos quais esses sujeitos
passaram ao longo da caminhada. A ideia não era só a preservação daquela experiência, mas a
utilização dela para animar os que continuavam o caminho da fé pela justiça social pregada
por Cristo. Dessa forma, o texto bíblico não é somente o relato dos fatos ocorridos no período,
mas a interpretação e reelaboração do testemunho desses sujeitos, pois como afirma Portelli
(1996, p. 2), “[...] recordar e contar já é interpretar”.

Ainda sobre os testemunhos, estes foram por muito tempo a única fonte de
transmissão “[...] da sua fé, das suas convicções, da sua história, das suas leis, do seu culto, da
sua missão” (MESTERS,1986, p. 14), as novas gerações, afim de que, não se perdessem no
tempo. Segundo o Mesters, “As palavras faladas ou escritas de todos estes homens e mulheres
contribuíram para formar e organizar o povo de Deus”. (1986, p.13) Sendo assim, se
tomarmos a afirmação de Paul Ricoer (2007, p. 170), na qual, “[...] Com o testemunho
inaugura-se um processo epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo
e pelos documentos e termina na prova documental”, podemos identificar nessas etapas a
própria produção da Bíblia. Afinal, foi inicialmente a “memória declarada” dos primeiros
cristãos que convertida na escrita, seguindo a reunião/seleção desses escritos na montagem de
um arquivo de fé, que o texto final se torna prova documental, tanto da vida desse povo
quanto da promessa, a Boa nova, de uma vida de justiça social.

No tocante a formação desse, chamado por nós, arquivo de fé que seria a organização
final do texto bíblico, Mesters ao afirmar que esses testemunhos eram tomados como
exemplos para as novas gerações e, que também, eram utilizados para “[...] lembrar a
caminhada já feita e apontar novos rumos”. (Mesters, 1986, p. 13) Podemos identificar uma
ideia de história magistra vitae, pois como afirma Kosellek (p.42), por muito tempo “[...] a
história teve o papel de uma escola, na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem
incorrer em grandes erros”. Esse caráter pedagógico do passado é novamente afirmado na
passagem que Mesters (1986, p. 13) cita diretamente a Bíblia: “Eles diziam: As coisas do
passado aconteceram ‘para servir de exemplo, e foram escritas para advertir a nós, para quem
chegou a plenitude dos tempos’ (1Cor 10,11)”.

[...] a tarefa principal que Cícero atribui aqui a historiografia é


especialmente dirigida à prática, sobre a qual o orador exerce sua influência. Ele se
serve da história como coleção de exemplos – plena exemplorum est historia [a
história é cheia de exemplos] – a fim de que seja possível instruir por meio dela.
(KOSELLECK, 2006, p. 43)

Essa perspectiva da exemplaridade é encontrada em forma metafórica quando


Mesters afirma que a Bíblia é o espelho da Vida. Ser o espelho da vida “[...] não é saber o que
a Bíblia diz em si, mas o que ela diz da vida”. E a partir da reflexão do escrito seguir com a
prática, tomando como referência o passado para o agir no presente.10

Como já afirmamos, a Bíblia é um livro que contém diversas temporalidades e


autores, ela é um livro feito em “mutirão” (MESTERS, 1986, p. 19) Mutirão porque surgiu de
um esforço comunitário, “[...] saiu da memória do povo” (Mesters, 1986, p. 16). Essa ideia de

10
Lembremos que o método da leitura popular da Bíblia tem como suporte outro método desenvolvido
pelos grupos de Ação Católica, o VER-JULGAR-AGIR. A Ação Católica foi fundada no Brasil, em
1935, sendo conhecida como Ação católica Brasileira (ACB) e trouxe para a vivência da Igreja
Católica brasileira a presença e atuação dos leigos. O método Ver-Julgar-Agir, oriundo das Juventudes
da Ação Católica, tendo como seu mentor o cardeal Joseph Cardijn, fundador da Juventude Operária
Católica (JOC), publicado em documento oficial da Igreja Católica, a Encíclica Mater et Magistra,
publicada em 20 de maio de 1961, no papado de Leão XXIII, tem como proposta buscar uma reflexão
a partir do cotidiano do leigo e proporcionar uma atitude responsiva ao problema analisado. Em
resumo, podemos identificar as três fases do método. O Ver está intimamente ligado a identificação de
uma situação concreta do cotidiano, o Julgar está para o estudo de caso dessa situação e o Agir vem
como um chamado para a ação em relação ao problema identificado. Para mais detalhes sobre a
temática ver SOFIATI, Flávio Munhoz. Juventude Católica: o novo discurso da Teologia da
Libertação. São Carlos: EdUFSCar, 2012.
mutirão nos fez lembrar das disputas de memórias, que nesse caso são identificadas na própria
confecção da Bíblia, um livro que contém diversos, tempos, autores, lugares de escrita e que
passou por uma seleção para ser o conjunto que é hoje. Assim, podemos nos questionar que
tensões, que disputas de narrativas, de memórias, que silêncios que fizeram parte da
idealização desse livro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisarmos os subsídios que vão dar suporte para o estudo dos textos bíblicos,
seguindo a metodologia pensada por Frei Carlos Mesters e desenvolvida na prática dos
Círculos bíblicos, nas Comunidades Eclesiais de Base, pudemos perceber que esses textos ao
tentarem compreender como se deu o processo de escrita do livro Sagrado dos cristãos, o
autor vai mobiliar alguns conceitos caros para os estudos históricos, o conceito de memória e
história. A relação estabelecida por Mesters para entender os evangelhos, salmos, e outras
tipologias textuais que fazem parte da Bíblia traz ainda o conceito de uma história exemplar,
que serviria pedagogicamente aos cristãos, de ontem e de hoje, modelos e valores que não
devem ser esquecidos e que devem ser praticados. Não que a Bíblia seja um manual, afinal, a
ideia de uma leitura popular da Bíblia é que ela possa clarear as situações de opressão, que
tanto os primeiros cristãos quanto os da atualidade, sofreram (rem) para que haja uma ação.
Ação de mudança, de luta pela Boa nova prometida por Jesus Cristo. Essa ideia de agir está
ligada diretamente com a metodologia do Ver-Julgar-Agir, que tem como referência o
movimento de Ação Católica da década de 1930.

Já quando tratamos do conceito de memória, a proposta é que entendamos os


testemunhos utilizados para a confecção dos evangelhos, cartas e outros textos que compõem
a Bíblia, como reelaborações da experiência vivida que continuam a ser constantemente
refletidas, dando um caráter de possibilidades como afirma Portelli (1996) “[...] a palavra-
chave aqui é possibilidade. No plano textual, a representatividade das fontes orais e das
memórias se mede pela capacidade de abrir e delinear o campo das possibilidades
expressivas.” A ideia de que as fontes orais, presentes na Bíblia, nos dão possibilidades, me
fez refletir sobre como a leitura popular da Bíblia é permeada por essa subjetividade dos
narradores, pois que ao não defender uma leitura literal, pautada numa leitura da letra11,

11
Expressão utilizada por Frei Carlos Mesters, para identificar uma leitura literal do texto bíblico, sem
uma elaboração pessoal.
Mesters abre a possibilidade de uma reinterpretação da experiência que dá forças e anima a
luta diária do povo cristão contra as situações de opressão.
Assim, mesmo estando presente essa ideia da exemplaridade nos textos bíblicos, não
podemos esquecer que a leitura popular da Bíblia traz uma nova forma de interpretação dos
textos, que perpassa por uma história vista de baixo, contada pelos e para os excluídos de
ontem e de hoje. Já que é a partir dos pobres e das experiências dos oprimidos que a leitura é
pensada e refletida. É dessa forma que podemos enxergar as possibilidades de uma
interpretação que pretende dar voz aos excluídos. Sendo uma importante estratégia para
entendermos as urgências que estavam em voga no final da década de 1970 e início da década
de 1980, no Brasil e na América Latina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LE GOFF, J. História e Memória. São Paulo: Ed. Unicamp, 2012. [original dos
ensaios: 1987-1982] [original do livro: 1982].
LOPES, Mercedes. Oficina de Leitura Popular da Bíblia. In: Bíblia e cultura:
tradição, tradução e exegese: debatendo as diferentes leituras da Bíblia. São Paulo: Fonte
Editorial, 2014, p. 123-36.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006.

MESTERS, Carlos. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo.
Petrópolis: Vozes, 1986.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto


História. São Paulo, 1993, n.10.

PINTO, Júlio Pimentel. Os muitos tempos da memória. Projeto História. São Paulo,
1998, n.17, p. 203 – 211.

PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: Narração, interpretação e


significado nas memórias e nas fontes orais Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n°. 2, 1996, p. 59-
72.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da
Unicamp, 2007.
SOFIATI, Flávio Munhoz. Juventude Católica: o novo discurso da Teologia da
Libertação. São Carlos: EdUFSCar, 2012.

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