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Recife
2019
LEONARDO GUEIROS DA SILVA
Recife
2019
Catalogação na fonte
Bibliotecária Jéssica Pereira de Oliveira, CRB-4/2223
Inclui referências.
À professora Siane Gois, pela relação de orientação acalentadora, leve e sem vaidades,
pela absoluta confiança depositada em meu trabalho, pela sensibilidade com que lida com as
adversidades da escorregadia jornada acadêmica. Pela amizade.
Ao professor Francisco Eduardo Vieira, pelo preciosismo nas orientações, pelo
incentivo encorajador, pela amizade e parceria não de agora construídas; por despertar em
mim a curiosidade pelo trabalho historiográfico.
Às professoras Olga Coelho, Beth Marcuschi e Lívia Suassuna, inspirações
acadêmicas, pelo privilégio da interlocução quando das bancas de qualificação.
Ao professor Carlos Alberto Faraco, pelas ricas e generosas contribuições que se
estenderam para além da banca de qualificação.
Às professoras Ana Lima, Lívia Suassuna e Mônica Mano Trindade Ferraz e ao
professor Pedro Farias Francelino, pela gentileza de terem aceitado o convite para compor a
banca da tese.
Ao professor Marcos Bagno, pela conversa informal que iluminou o túnel escuro do
qual saiu, depois de algumas reconfigurações, a noção de tradição sociodiscursiva.
Aos membros do grupo de pesquisa Historiografia, Gramática e Ensino de Línguas,
da Universidade Federal da Paraíba, primeiros interlocutores das versões preliminares deste
trabalho.
À professora Evandra Grigoletto, pilar fundamental de minha formação acadêmica,
por ter acreditado em mim e me encorajado a crescer.
Às professoras e aos professores que, ao longo de mais de uma década na UFPE,
contribuíram significativamente com minha formação e cujas vozes de algum modo se
manifestam nesta tese, em especial Márcia Mendonça, Ana Lima, Lívia Suassuna, Beth
Marcuschi, Siane Gois, Evandra Grigoletto e Fabiele Stockmans de Nardi, mulheres em
quem me espelho na tentativa de ser um professor melhor a cada dia.
A Felipe Augusto Nascimento e Maria Sirleidy Cordeiro, amigos com quem aprendi a
lidar com os percalços da vida acadêmica de forma mais leve e divertida.
A Mizael Nascimento, Anderson Lins, Flávia Farias e Maria Alcione, amigos do
PPGL da UFPE com quem dividi sorrisos e aflições durante todas as etapas do doutorado.
Aos amigos do Instituto Federal do Sertão Pernambucano, cujo afeto foi fundamental
para amenizar o peso de uma jornada doutoral dividida entre Recife e Salgueiro,
especialmente Kélvya Freitas Abreu, Francisco Kelsen de Oliveira, Juciel Lima, Adeísa
Guimarães, Jardiene Ferreira, Fernanda Novaes, Rafael Aquino e Williard Scorpion.
Aos amigos que acompanharam os momentos altos e baixos da produção desta tese e
que, pacientemente, compreenderam minhas ausências, como Shenia Bezerra, José Daniel
Santana, Pablo Lima e Renan Valadão.
A Natalia Souza, lugar de conforto e fonte de inspiração, pelo carinho,
companheirismo e suporte emocional; por acreditar em mim mais do que ninguém.
Às minhas duas mães, Maria Cristina Gueiros e Cleide Gueiros, pelo amor e tudo que
a ele subjaz.
Ao meu irmão, Genivaldo Gueiros, pelo companheirismo fraterno e pela torcida.
Ao meu pai, em memória.
“the past is soon forgotten, and people are happy to be part of a trendy present which
holds out the promise of becoming the future” (KOERNER, 1991, p. 57).
RESUMO
LISTA DE FIGURAS
AD Análise do Discurso
ALB Associação de leitura do Brasil
ANPOLL Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística
CAC Centro de Artes e Comunicações
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CEDOCH Centro de Documentação em Historiografia da Linguística
CFE Conselho Federal de Educação
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
FAE Fundação de Assistência ao Estudante
GT Grupo de trabalho
HGEL Historiografia, Gramática e Ensino de Línguas
HiL História das Ideias Linguísticas
HL Historiografia da Linguística
IEL Instituto de Estudos da Linguagem
LD Livro didático
LDP Livro didático de português
LT Linguística de texto
MEC Ministério da Educação
NGB Nomenclatura Gramatical Brasileira
NURC Projeto Norma Urbana Culta
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
PNLD Programa Nacional do Livro Didático
PPGL Programa de Pós-graduação em Letras
PUCRS Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica
SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
TLA Trabalhos em linguística aplicada
TSD Tradição sociodiscursiva
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFMT Universidade Federal do Mato Grosso
UFPB Universidade Federal da Paraíba
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UFPI Universidade Federal do Piauí
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
UFU Universidade Federal de Uberlândia
UNESP Universidade Estadual Paulista
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO
busca pelo equilíbrio que defende o autor, cabe ao homem entender o curso de sua história
para que, no presente, possa compreender apropriadamente a memória coletiva que o constitui
enquanto sujeito de seu tempo.
No âmbito das ciências em seus múltiplos campos de atuação intelectual, o resgate de
memórias que constituem as práticas investigativas do passado oportuniza à comunidade
compreender que a configuração dos objetos teóricos resulta de um trabalho coletivo que se
dá no interior das comunidades científicas, espaço marcado por conflitos internos e tensões
entre agentes que, por meio de retóricas orientadas à persuasão, buscam legitimar suas teses
no contexto do circuito de discussão acadêmica. O retorno à história de qualquer área do
conhecimento com razoável tradição construída ao longo do tempo permite ao pesquisador
desconstruir o mito do herói intelectual que, num dado momento de epifania, teria encontrado
solução para os problemas postos em pauta nos debates de sua área. Ao resgatar as memórias
de sua tradição epistemológica, está apto, o pesquisador, a compreender sua prática como
parte do fluxo (des)contínuo da produção do conhecimento, o que pressupõe olhar para a
emergência ou queda de paradigmas, para a manutenção ou não da ciência em seu estado
normal, para as tensões e embates inerentes aos estados de crise de teorias hegemônicas –
tomando de empréstimo os termos de Kuhn (1998 [1962]).
Dessa forma, ao reconhecer a necessidade e a importância do resgate de memórias do
homem em suas práticas científicas – atualizando-as e adequando-as ao olhar do homem
presente –, este trabalho traz como tema o processamento, ao longo de três décadas, de uma
intensa e profícua produção de conhecimento acadêmico no campo dos estudos da linguagem
no cenário brasileiro. Mais detidamente, proponho-me a investigar, a partir de uma
abordagem historiográfica, a construção do que denomino tradição sociodiscursiva na
pesquisa linguística brasileira, apontando suas implicações para a reflexão sobre o ensino de
língua portuguesa promovida no Brasil entre os anos de 1970 e 1999.
Parto do pressuposto de que o resgate de memórias sobre a produção intelectual da
linguística brasileira, teórica ou aplicada ao ensino, contribui sobremaneira para se pensar na
língua e nas linguagens em geral como objetos teóricos e ensináveis que se moldam ao sabor
das condições de reflexão em que são discutidos. Assim, defendo a necessidade do
empreendimento do retorno ao passado de modo a contribuir para que o estudioso da
linguagem e o professor de língua portuguesa do presente compreendam que os saberes que
subjazem às práticas escolares são produtos da História e de estórias que, retomando a
metáfora do mosaico, se organizam organicamente formando um só painel. A observação e a
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análise do mosaico de memórias contribuem para o entendimento de que os saberes são, pois,
arquiteturas cujas bases se erigem no seio de condicionantes ligados ao momento de sua
configuração. Compreendemos, por consequência, que o estabelecimento da língua e das
linguagens como objetos teóricos e ensináveis se desenha no bojo dos conflitos entre agentes
e discursos que, de modo organizado, configuram retóricas de convencimento aceitas ou
negadas pela coletividade acadêmica.
Neste trabalho, estou chamando de tradição sociodiscursiva (TSD) um complexo e
heterogêneo domínio epistemológico, erguido e sustentado por diferentes empreendimentos
teórico-metodológicos que, a despeito de diferenças no trato descritivo, convergem em certos
pontos específicos, na medida em que compreendem a linguagem como um fato
sociodiscursivo1, afastando-se, assim, de perspectivas inscritas numa tradição formalista,
como o estruturalismo e o gerativismo. Fundamentalmente, as abordagens que constituem a
TSD analisam a língua como um objeto cuja compreensão se processa a partir da relação
constitutiva entre estruturas linguísticas (sons, palavras, frases) e múltiplas questões que
residem na exterioridade da linguagem. Assim operam analiticamente, por exemplo: (i) a
linguística de texto, que estuda o texto falado ou escrito como atividade de natureza
linguística, sociocultural e cognitiva, configurada em práticas de interlocução; (ii) a análise
do discurso, que investiga o funcionamento dos processos sociais, históricos e ideológicos
que se materializam na e pela linguagem; (iii) a sociolinguística, que discorre sobre a
variação linguística a partir do olhar para a língua em sua relação direta com a estrutura e a
organização da sociedade; e (iv) o funcionalismo, que estuda a linguagem como resultado de
práticas sociopragmaticamente orientadas. Emergem daí enfoques investigativos que, devido
à sua relação com a indeterminação dos elementos externos ao sistema linguístico, foram
recusados da agenda da linguística enquanto ciência por consequência do fundador corte
saussureano – como o texto, o discurso, a variação, os usos e as funções pragmáticas da
linguagem.
Muito mais que um conjunto de teorias agrupadas, entendo a TSD como uma
tradição de pesquisa, no sentido atribuído por Hymes (1983) e Laudan (2011 [1978]), ou seja,
como um macrodomínio epistemológico que, consolidado numa dada conjuntura intelectual e
social, angariou espaço e legitimidade ao longo do curso da história. É inegável que a
natureza mutável, heterogênea, flexível e instável da língua consiste num saber, pode-se dizer,
1
Estou tomando o epíteto sociodiscursivo em sentido global e generalizador. O social e o discursivo, grosso
modo, residem no domínio fortuito da parole e da performance, instâncias marginalizadas pelos
empreendimentos ligados à tradição formalista. Aprofundarei a discussão no capítulo 3.
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aprofundado dos três deslocamentos acima referidos. Dessa forma, repouso meus esforços,
exclusivamente, na compreensão historiográfica do deslocamento promovido pela TSD na
reflexão acadêmica sobre o ensino de língua portuguesa – sem, entretanto, desconsiderar as
demais micronarrativas que, em conjunto, constituem importantes pilares da história dos
saberes que orbitam em torno do ensino de língua portuguesa no cenário brasileiro.
Em suma, busco compreender como se deu a construção histórica da TSD na pesquisa
linguística brasileira, em seus processos de continuidades ou rupturas com tradições e saberes
vigentes, investigando como emergiram, desenvolveram-se e foram consolidadas as ideias
linguísticas que constituem essa tradição. Em outras palavras, proponho tecer uma narrativa
historiográfica capaz de mapear, descrever e interpretar textos, agentes e discursos que
conduziram o empreendimento sociodiscursivo na linguística brasileira entre 1970 e 1999.
Este trabalho segue o rumo, ainda pouco explorado no Brasil, de pesquisas
historiográficas que se empenharam em resgatar memórias dos estudos linguísticos brasileiros
em suas diferentes épocas. Nesse domínio, é de suma importância resgatar alguns trabalhos
que por esse caminho enveredaram, contribuindo para a reconstrução histórica da linguística
brasileira em seus diferentes momentos e espaços institucionais. Cito, primeiramente, Mattoso
Câmara (1975), cuja obra apresenta “reflexão sistemática, suficientemente abrangente, sobre
autores, obras, periodização, tradições, continuidades, descontinuidades, alternância,
coocorrência e recorrência de problemas da linguística” (ALTMAN, 1996, p. 175), ainda que
se trate de uma história mais descritivo-narrativa que interpretativa (COELHO &
HACKEROTT, 2012); na mesma linha, Elia (1975), que descreve e interpreta estudos
gramaticais produzidos no Brasil entre o final do século XIX e a década de 1960; Altman
(1994, 1995, 2004), que busca reconstruir historiograficamente passagens da produção
intelectual da linguística brasileira a partir da segunda metade da década de 1960; Castilho
(1962) e Cavaliere (2001), que propõem uma periodização da Linguística brasileira em
diferentes fases; além de Batista (2007, 2010) e Cavaliere (2014), cujos propósitos,
respectivamente, recaem na recepção e circulação de teorias linguísticas no cenário
acadêmico brasileiro, a saber, também respectivamente, o gerativismo e a sociolinguística. No
que tange à história do processo do ensino de língua no Brasil, destaco Bastos (1998) e as
relevantes coletâneas de textos organizados por Bastos e Palma (2014, 2016 e 2018), no
âmbito do projeto História Entrelaçada, cuja contribuição historiográfica consiste na
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2
Cabe aqui mencionar outros trabalhos que, embora não partilhem da perspectiva hermenêutica da
Historiografia da Linguística, abordam, direta ou indiretamente, a história dos estudos linguísticos brasileiros e
sua relação com o ensino de língua: Brandão (1991), Zanini (1999), Koch (1997 e 1999), Soares (2002), Clare
(2002, 2003), Bunzen (2011), Fávero (2012), Santos (2014), Matos (1992, 1995, 2012, 2013), Lorenset (2014),
Fávero e Molina (2017) e Pietri (2010, 2013, 2018).
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profundo no domínio dessas fontes deve ser metodologicamente conduzido, num trabalho
analítico contextualmente situado. O historiógrafo compreende as memórias do passado,
dessa forma, interligando-as, atando-as, pondo-as em contraponto, adequando-as à visão do
homem presente, com vistas à compreensão do fenômeno almejado – no nosso caso, a
emergência, o desenvolvimento e a consolidação da TSD no Brasil.
É possível constatar o compromisso da HL com a reconstrução do passado a partir de
um recuo que possibilita ao pesquisador do presente compreender mais profundamente seu
objeto investigativo. Ao linguista e, mais especificamente, ao professor de língua portuguesa,
esse trabalho permite a elucidação da natureza mutável da reflexão sobre a língua enquanto
objeto teórico e enquanto objeto ensinável. Se, por um lado, o ponto de vista cria o objeto,
como defende precisamente Saussure (2006 [1916]) na obra que funda a Linguística como
ciência moderna, por outro, esse ponto de vista emerge num determinado tempo e espaço, ou
seja, no interior de um (por vezes conflituoso) clima de opinião intelectual, social, histórico,
político. Mais do que pensar no objeto criado por um ponto de vista, a agenda da HL está
interessada em compreender, antes, em que condições esse ponto de vista surge e delimita um
dado objeto linguístico. Nessa esteira, enquanto trabalho historiógrafo, a tese aqui apresentada
busca antes de tudo entender como se desenha, em seu tempo, o ponto de vista que concebe a
tradição sociodiscursiva na pesquisa linguística brasileira.
Como se pode observar, seja pela natureza da pergunta de pesquisa levantada, seja
pelo caminho historiográfico daí pressuposto, a resposta ao questionamento central lançado só
pode ser concebida por intermédio de uma observação minuciosa da complexa rede de fatores
internos e externos às ideias linguísticas e pedagógicas que atravessam a reflexão sobre o
ensino de língua no Brasil ao longo do período delimitado. Sendo assim, com o intuito de
elucidar do modo mais adequado possível a problemática norteadora, pormenorizo o
questionamento central, supramencionado, em outras seis perguntas, que listo abaixo:
a. analisar a relação entre (i) o clima de opinião (contexto social, histórico, político e
atmosfera intelectual) em que se situa a pesquisa linguística brasileira entre 1970 e 1999 e
(ii) a constituição da TSD ao longo desse período;
b. estabelecer relações entre o paradigma em que se inscreve a TSD e a configuração de um
novo objeto ensinável para o ensino de língua portuguesa;
c. identificar quem foram as lideranças intelectuais e organizacionais que conduziram a
emergência e propiciaram o desenvolvimento e a consolidação da TSD;
d. analisar as contribuições de textos de ação e de diluição, no intervalo de tempo
examinado, para a promoção e o fortalecimento de ideias linguísticas atreladas à TSD;
e. compreender como se deram, nesse período, o surgimento e o desenvolvimento de grupos
de especialidade em torno dos diferentes empreendimentos teóricos ligados à TSD;
f. analisar o tipo de retórica – de ruptura ou de continuidade – exercida pelos agentes que,
coletivamente, conceberam a construção da TSD na pesquisa linguística brasileira.
1.5 JUSTIFICATIVAS
a. a TSD em suas condições históricas de existência, a partir do cotejo dos momentos que
conduziram, através de ações, agentes e retóricas de convencimento, a emergência, o
desenvolvimento e a consolidação dessa tradição. Tal movimento contribui, a meu ver,
com a construção de uma visão crítica sobre a constituição, ao longo do tempo, dos
saberes sobre língua e seu ensino;
b. o estabelecimento das bases teórico-metodológicas que serviram de modelo para a
implementação de políticas no futuro. É relevante destacar a importância da pesquisa para
a compreensão das formas de conhecimento sobre língua e seu ensino que, a partir da da
década de 1990, se desdobraram em diretrizes norteadoras oficiais e políticas públicas,
como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e o Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD);
c. a intrínseca relação entre conhecimento e sociedade, contribuindo para a imprescindível
reflexão sobre a construção dos saberes científicos no âmago da complexa trama social e
histórica que ultrapassa as ações e as vontades de um pesquisador genial e pioneiro que
inauguraria certa tendência intelectual inédita e inovadora. Em outras palavras,
desconstrói-se o mito do indivíduo “heroicizado” cujo trabalho se construiria na solidão
de sua genialidade e reforça o caráter coletivo e colaborativo que circunda a produção do
conhecimento científico.
Como se pode notar, os três itens elencados convergem na medida em que caminham
para mesma direção: todos nos permitem olhar para a história do conhecimento sobre a
linguagem e do ensino de língua portuguesa no Brasil em suas verdadeiras condições de
produção e recepção. Tal movimento contribui com a formação crítica do pesquisador e do
professor de língua portuguesa, tendo em vista que lhes permite enxergar entrelinhas
subjacentes à concepção das ideias sobre a linguagem e sobre o ensino desenvolvidas na
pesquisa linguística e educacional brasileira. Essa consciência proporcionada, defendem
Coelho & Hackerott (2012, p. 383), também
Parto da ideia de que a afirmação acima também vale para o professor de língua
portuguesa, que deve ultrapassar o nível de formação técnica, sob pena de reduzir suas
práticas pedagógicas diárias a reproduções acríticas, não raro fora de sintonia com as
necessidades de seus estudantes. O professor deve ser, também, um “pesquisador completo”,
tomando as palavras de Batista. Assim sendo, ressalto a importância deste trabalho para que
linguistas, independentemente de orientação teórica, e professores de língua possam recuar ao
passado para avaliar e compreender, de modo crítico e aguçado, como se constituem as ideias
sobre língua, linguagem e seu ensino que atravessam a história da pesquisa linguística
brasileira.
Partindo, por fim, para um âmbito maior, para além das contribuições mais
detidamente ligadas à formação do professor e do linguista, pensemos que, antes das teorias e
proposições científicas construídas ao longo do tempo, a linguagem é manifestação simbólica
intrínseca ao homem, uma vez que lhe permite enxergar e significar o mundo. Nesse sentido,
fazer historiografia, qualquer que seja, contribui com a sociedade em geral na medida em que
põe em questionamento a história daquilo que interpela e constitui o homem em sua essência:
a linguagem. Tal consideração nos permite enxergar o trabalho da HL como um resgate,
também, de nossa história enquanto seres humanos (SWIGGERS, 2013), afinal, seu estudo
não só ensina sobre a história da linguística, como também “sobre o papel central que exerceu
e ainda exerce a linguagem na história das culturas, das sociedades, das atividades intelectuais
da humanidade” (SWIGGERS, 2013, p. 49).
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Convém mencionar, todavia, o trabalho de Vieira (2015), que investiga as gramáticas brasileiras
contemporâneas do português em sua imanência e no contexto social e epistemológico que circunscreve a
linguística e a gramatização brasileiras no século XXI.
4
Espelho do grupo no Diretório do CNPq: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/6433198070413694
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Espelho do grupo no Diretório do CNPq: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/2196204928483826
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A tarefa de construção histórica das diversas áreas do saber e, mais restritamente, das
subdisciplinas que lhes dão sustentação – no sentido de resgatar teorias, concepções, datas e
autores importantes – já carrega algum tempo enquanto prática acadêmica. Em se tratando,
especificamente, da história da linguística brasileira, Altman (1996) destaca algumas
referências que promoveram esse movimento de construção cronista do passado, como Elia
(1963), Borba (1967) e Miazzi (1972); já Batista (2013), por sua vez, abarcando a linguística
em cenário global, aponta os nomes de Ramanzini (1990) e Carboni (2008), aos quais eu
acrescentaria Mounin (1970), Robins (1979) e, mais recentemente, Weedwood (2002). Essas
obras retomam a história do conhecimento linguístico numa perspectiva linear, cumulativa,
sustentada pela visão de que a emergência de uma teoria resulta da consequente superação de
modelos teóricos que a precedem.
Para Coelho e Hackerott (2012), a seção que abre o Curso de Linguística Geral, de
Saussure (2006 [1916]), intitulada Visão geral da história da linguística, ilustra bem o modo
de fazer história acima destacado. Essa passagem do Curso, na interpretação das autoras,
apresenta uma cronologia progressiva e linear da história da linguística desenvolvida até o
século XIX, com foco nos temas, autores e escolas que protagonizaram os estudos da
linguagem no Ocidente até antes do estabelecimento da linguística saussureana (posta, no
texto, como inovadora, científica e, por isso, mais adequada ao tratamento dos fatos de
língua). O resgate do passado registrado na obra
parece indicar que os „gramáticos‟ conheciam menos sobre língua e linguagem que
os „filólogos‟, que sabiam menos que os „comparatistas‟, que, por sua vez, erraram
mais do que os „linguistas históricos‟, cujos conhecimentos seriam, por fim,
iluminados por uma linguística geral de orientação sincrônica. Essa visão
35
6
De modo análogo a Koerner (1995), não faço distinção entre Historiografia da Linguística e Historiografia
Linguística. Tomo como duas formas de designar o mesmo campo do saber, apesar do conhecimento de que não
há um consenso absoluto entre os pesquisadores do campo sobre essa questão de ordem nominal.
7
Devido à proximidade terminológica advinda da determinação adjetival, destaco também a Linguística
Histórica, campo da linguística que não está preocupado, como HL e as demais histórias mencionadas, com o
resgate das formas de se conceber a língua e a linguagem ao longo do tempo. A Linguística Histórica objetiva,
por outro lado, compreender, diacronicamente, as mudanças que ocorrem nas línguas naturais, as quais são
determinadas pelo processo histórico inerente às mudanças do homem e da sociedade. (cf. PERROT, 1970;
ELGIN, 1974; KIPARSKY, 1976; HOCK, 1986; LASS, 1997; FARACO, 2006).
8
Segundo Batista (2013), em alguns casos, a expressão História da Linguística pode se referir aos trabalhos
desenvolvidos sob orientação da Historiografia da Linguística, do mesmo modo que a palavra historiador pode
ser utilizada com sentido de historiógrafo. Nesses casos, para além das nomenclaturas atribuídas, o modo como
se encara o resgate do passado é que definirá natureza do trabalho em questão (histórico ou historiográfico).
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esse grupo procura articular o saber histórico e sua interpretação aos procedimentos
da análise do discurso francesa, tendo em vista investigar a constituição histórica de
um sujeito da linguagem, de suas imagens simbólicas e discursivas engendradas e
dos instrumentos linguísticos a essas imagens também associados (BATISTA, 2013,
p. 19)
um lado, encara as fontes historiográficas em seu caráter empírico, como material de acesso
às evidências do passado; de outro, a HiL de tradição brasileira, como materialidade
discursivo-textual que evoca memórias que se entrecruzam no complexo processo de costura
do interdiscurso.
Apesar dessas tênues distinções que marcam a identidade de uma e de outra
perspectiva, vale ressaltar que tanto a HL quanto a HiL não limitam sua abordagem
investigativa aos instrumentos linguísticos canônicos e legitimados como “receptáculos” do
saber sobre a linguagem, uma vez que o termo linguística tanto de Historiografia da
Linguística quanto da História das Ideias Linguísticas “pode se referir a qualquer estudo sobre
a linguagem que tenha sido feito pelo homem, onde quer que se encontre dele vestígios de
documentação” (ALTMAN, 2009, p.20).
Em suma, à tradição da Historiografia da Linguística se vinculam pesquisadores
adeptos das proposições de Konrad Koerner, Pierre Swiggers, e, no Brasil, Cristina Altman;
em torno da História das Ideias Linguísticas, por sua vez, reúnem-se os trabalhos em sintonia
com Sylvain Auroux e, no Brasil, com a perspectiva discursiva de Eni Orlandi (BATISTA,
2013). É falsa, porém, a pressuposição de que exista uma barreira que isola e separa os
modelos da HL e da HiL; pelo contrário: os trabalhos de Koerner, Swiggers e Auroux,
sobretudo na Europa, dialogam entre si de modo consistente e, em conjunto, apesar das tênues
diferenças, contribuem para uma compreensão global da história do conhecimento sobre a
linguagem difundido, recebido e até mesmo esquecido pelo homem ao longo de sua história.
Ao discutir sobre a história da institucionalização da HL como campo disciplinar,
Altman (2012), num movimento meta-historiográfico, destaca a importância do texto
Discours préliminaire, publicado em 1796, de François Thurot, anexado à sua tradução do
livro Hermes, or a philosophical inquiry concerning universal grammar (1751), de James
Harris. Para a autora, o texto apresenta uma perspectiva historiográfica que, à frente, iria
influenciar sobremaneira o trabalho da HL (e, naturalmente, também da HiL) como campo
disciplinar. Thurot (1976 [1796]) apresenta um panorama retrospectivo da produção
gramatical situada entre o Crátilo, de Plantão, e a Logique, de Étinne Condillac, tornando-se o
primeiro trabalho ocidental a apresentar um estudo essencialmente historiográfico, em se
tratando da história dos estudos da linguagem (ALTMAN, 2012). Atestando a relevância do
Discours préliminaire, a autora conclui que, por influência desse texto,
a reflexão retrospectiva sobre questões de linguagem tornou-se uma prática cada vez
mais constante em certos círculos acadêmicos ligados à filologia germânica,
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pode repousar sua investigação apenas na linguística em sentido estrito. Altman (2012) mais
uma vez reforça a questão:
documental; interpreta, enfim, o material de que dispõe, sempre norteado pelos objetivos do
empreendimento historiográfico proposto.
Para Batista (2018), que resgata Swiggers (1991), esse trabalho de natureza heurística
e hermenêutica se compara ao ofício de um arqueólogo, já que, como este,
um ponto de vista que estabelece a história narrada a partir do modo como o historiógrafo
opera metodologicamente com os dados, como estabelece hierarquizações de dados, como
recorta do todo aquilo que interessa a seus objetivos investigativos. Trata-se, pois, de uma
versão entre outras possíveis.
O simples levantamento de dados biográficos de protagonistas da história da
linguística tem menor valor para o historiógrafo se não houver, a partir dele, um gesto de
problematização capaz de descortinar questões relevantes para a compreensão da reflexão
sobre língua e linguagem proposta por esse agente biografado. O mesmo vale para o
levantamento de datas, que deve, antes de tudo, contextualizar a narrativa de modo amplo,
tocando diretamente em acontecimentos de ordem social, política, econômica etc. Por
exemplo, a uma narrativa historiográfica de nada adianta a constatação de que, no então
primeiro grau, a disciplina Língua Portuguesa passou a se chamar Comunicação e Expressão
na década de 1970, no Brasil, se a tal fato não estiver imbricada a reflexão sobre os motivos
de ordem sociopolítica que, no país em período da Ditadura Militar, condicionaram essa
mudança na estrutura da educação básica. Ou, no tocante à temática deste trabalho, é
reducionista afirmar (e aí mesmo encerrar a discussão) que a tradição sociodiscursiva foi
consolidada na pesquisa linguística brasileira na década de 1990 se não houver atrelado a essa
constatação um olhar para as condições socioepistemológicas e políticas em que esse fato se
torna realidade.
Do trabalho arqueológico que define a especificidade da HL (BATISTA, 2018),
determinado fundamentalmente pelo gesto descritivo-interpretativo que atravessa as
narrativas que resgatam e compreendem as memórias do passado, emerge uma diversificada
agenda de propostas historiográficas. Do estudo de gramáticas produzidas entre os séculos
XIX (cf. POLACHINI, 2013; COELHO & DANNA, 2015; POLACHINI & DANNA, 2016;
CAVALIERE, 2018) e XX (cf. CAVALIERE, 2015) ou na contemporaneidade do século
XXI (cf. VIEIRA, 2015) à investigação de formas de reflexão sobre linguagem observáveis
em textos religiosos ou em ritos da tradição de povos indígenas, por exemplo, é expressiva a
pluralidade de propostas que a HL pode abraçar.
Nessa direção, considerando a multiplicidade de caminhos investigativos que podem
ser contemplados pela HL, parto do pressuposto de que a pesquisa historiográfica, qualquer
que seja, deve se fundamentar em um questionamento central. Esse ponto norteador definirá
tanto o tipo de historiografia a ser costurada, como os procedimentos metodológicos
necessários à sua consecução. Ciente da vastidão de possibilidades investigativas passíveis de
45
tratamento historiográfico, Batista (2013, p. 41, grifos meus) elenca algumas perguntas – às
quais se ligam diferentes abordagens historiográficas – que interessam à HL, a saber:
1) ele não brota no vácuo, há cientistas que o produzem; 2) o fato de certas hipóteses
serem mais privilegiadas, num dado período, depende não só de suas qualidades
intrínsecas, mas também das relações dessas hipóteses com ambientes intelectual,
interpessoal, social, político específicos (p. 395).
para o campo da ciência linguística, segundo Altman (2004), dada a especificidade dos
objetos de linguagem, as teses de Thomas Kuhn não encontram aí lugar de absoluta
ratificação. Para a autora, embora se possa conceber uma ruptura promovida por Saussure em
relação à pretérita perspectiva histórico-comparativa, ruptura essa que funda e estabelece o
objeto da linguística moderna, não é razoável pensar na história da linguística como um todo
com base na proposição de Kuhn. A história da linguística não pode ser compreendida a partir
da dinâmica de rupturas típicas das revoluções científicas, afinal, ao longo dos tempos,
diferentes (e, em alguns casos, incomensuráveis) modelos teóricos conviveram
concomitantemente, num mesmo espaço de tempo, propondo soluções diferentes aos
problemas evidenciados e atestados pela comunidade científica. Nessa direção, a soberania de
um modelo teórico, no caso da linguística, não pressupõe necessariamente o desaparecimento
de outro (KOERNER, 1989). É o caso, por exemplo, das teorias estruturalistas e
funcionalistas, que, apesar das divergências, coexistiram num certo momento da história da
linguística, ainda que uma ou outra tivesse maior destaque em um ou outro espaço.
Para Altman (2004), que reforça a perspectiva de Koerner (1989), a história da ciência
pode ser analisada a partir de diferentes modelos interpretativos, alguns dos quais poriam em
xeque a proposição kuhniana do progresso necessariamente sustentado por rupturas
revolucionárias, a saber:
Swiggers (1981), como alternativa ao trabalho com os paradigmas de Kuhn, opção que
também assumo neste trabalho.
Os programas de investigação, para Swiggers (1981), grosso modo, consistem em
conjuntos de práticas e procedimentos teórico-metodológicos sustentados por escolas,
tendências e autores ao longo do curso da história dos estudos linguísticos. Cada programa de
investigação adota certas categorias e ferramentas analíticas específicas emparelhadas ao
modo como cada corrente enxerga o fenômeno linguístico e aos seus objetivos fundamentais.
Isto é, a diferentes programas de investigação estão atreladas diferentes concepções de língua
e de linguagem e, por conseguinte, diferentes objetos investigativos e métodos descritivos.
O conceito de programa de investigação permite que ultrapassemos a noção por vezes
reducionista de quadro teórico, uma vez que diferentes teorias podem estar agrupadas num
mesmo programa, afinal, é possível que elas de alguma forma compartilhem uma forma
específica de fazer linguística (SWIGGERS, 1981).
Swiggers (1981) elenca quatro programas de investigação observáveis ao longo da
história do conhecimento linguístico, a saber:
Diante disso, torna-se necessário que observemos com atenção como a história do
conhecimento linguístico tem se configurado ao longo do tempo. Trata-se de uma história
marcada por movimentos de unificação e diversificação, continuidades e descontinuidades
52
e expertise seriam, por si sós, condição sine qua non para a aceitação de suas proposições e
indagações numa comunidade científica. Para Murray (1994), um grupo de especialidade é
constituído por pesquisadores (de diferentes graus e representatividades no cenário
acadêmico-científico) que se organizam institucionalmente visando convencer a comunidade
científica da legitimidade e da capacidade resolutiva do modelo teórico que defendem. Nesse
sentido, um indivíduo isolado jamais estaria apto a difundir uma corrente teórica, qualquer
que seja, embora muitas narrativas históricas sugiram essa linha de compreensão através do
apagamento que promovem dos agentes que compõem os grupos e, ao mesmo tempo,
propagam as ideias das lideranças. Um pesquisador com ideias inovadoras e cuja tese
defendida apresenta considerável potencial resolutivo, porém sem a capacidade de articular e
liderar um grupo que divulgue e ratifique suas ideias – por meio de debates, publicação de
textos propositivos, articulação em discussões públicas etc. –, segundo Murray (1994),
provavelmente não conseguirá convencer a comunidade acadêmica da assertividade de suas
proposições.
O “sucesso” de um grupo de especialidade – entendido no sentido mais detidamente
coletivo e colaborativo associado à expressão grupo – está atrelado, entre outros fatores, à
presteza e perspicácia de lideranças intelectuais e organizacionais, que, num dado contexto,
com o auxílio de outros agentes, conduzem a emergência e a fixação das bases que constituem
plataforma para o estabelecimento de um dado empreendimento epistemológico. A primeira
liderança, intelectual, por meio retóricas persuasivas, conduz a comunidade científica a
reconhecer suas proposições como boas ideias (ALTMAN, 2004). A definição do que se pode
compreender por boas ideias é relativa e, a depender do ponto de vista referencial,
questionável. A qualidade das boas ideias está atrelada ao modo como a comunidade as
recebe no interior de um contexto específico. As boas ideias são aquelas “percebidas como,
pelo menos, formas prováveis de solucionar questões de pesquisa. Sua qualidade é, desse
modo, historicamente relativa e atribuída pelos próprios pesquisadores” (COELHO &
HACKEROTT, 2012, p. 396). Desse modo, as boas ideias devem ser capazes de resolver
problemas perceptíveis pelos pesquisadores numa dada conjuntura intelectual; além disso, “o
que prevalece é o poder de persuasão, não apenas das ideias, mas também de quem as
defende” (COELHO & HACKEROTT, 2012, p. 406).
A liderança intelectual, pois, enxerga as demandas postas como problemas num
determinado contexto e, a partir das ferramentas teóricas e metodológicas de que dispõe,
propõe soluções que, uma vez atestado seu potencial resolutivo, são acatadas e difundidas
55
pela uma parcela da comunidade científica. É preciso, entretanto, em paralelo, que as bases
instaladas pelo grupo de especialidade tomem proporções maiores, que os ecos de seu
discurso se propaguem para além dos limites do grupo, que suas proposições cheguem a (e
convençam) outros pesquisadores. É justamente aí que reside o papel da liderança
organizacional. Esse movimento de expansão articulado pelas lideranças organizacionais se
desenvolve por meio de ações intencionais capazes de assegurar o espaço angariado pelo
grupo no interior de uma conjuntura intelectual, como, por exemplo, divulgação das teses
defendidas pelo grupo em diferentes espaços institucionais, intercâmbio promovido por meio
de referências intertextuais explícitas e implícitas, publicação de textos propositivos e textos
que sintetizam essas proposições, formação de novos pesquisadores etc.
Para Altman (2004), a articulação das lideranças é fundamental para a consolidação
dos grupos de especialidade, afinal, a consolidação de programas de investigação
concorrentes (para usar a alternativa à noção de paradigma de Kuhn) “depende tanto quanto,
ou mais, de fatores externos, relativos ao grupo de especialidade que lhe dá sustentação, do
que das qualidades intrínsecas das teorias que os constituem” (ALTMAN, 2004, p. 46).
Coelho e Hackerott (2012), na mesma direção, destacam a relevância da articulação entre os
elementos apontados por Murray (1994), afinal: “[um] conjunto de cientistas sem um desses
três elementos acabam por não construir grupos e, em função disso, não desempenham, em
seu contexto, papel relevante na condução da ciência” (p. 397). É nesse sentido que a teoria de
Murray auxilia a HL na interpretação da produção do conhecimento linguístico a partir do
olhar para as proposições teóricas dos programas de investigação e também para as condições
externas em que esse conhecimento é concebido, processado, recebido, incorporado ou
refutado.
Para Murray (1994), a concepção de um grupo de especialidade, da sua emergência à
sua consolidação, compreende quatro estágios fundamentais. Os dois primeiros situam a fase
de emergência do grupo, ou seja, compõem os primeiros passos de sua existência; os outros
dois correspondem ao seu desenvolvimento e à sua consolidação. Ei-los:
1º estágio: etapa embrionária da configuração de um grupo de especialidade. Nele, são
escassas ações organizadas e colaborativas, tendo em vista a inexistência de lideranças, e a
interlocução entre os pesquisadores, consequentemente, ainda é incipiente. Essa etapa é
marcada pela baixa frequência de publicações (majoritariamente de caráter não propositivo) e
pela ausência de contribuições objetivas no que tange à resolução de novos problemas.
56
10
Tradução livre, respectivamente, dos termos eliteness e professional age (MURRAY, 1994).
57
agentes que em torno dele se organizam. Para Murray (1994), não se trata de idade no sentido
cronológico da palavra, mas sim do tempo de atuação e da expertise do indivíduo que produz
ou reproduz conhecimento; um estudante, assim, tenderia a apresentar menor idade
profissional, enquanto um pesquisador com longa tradição numa determinada área do
conhecimento, maior.
Tomando as proposições de Murray em seu conjunto, entendemos que o “sucesso” dos
grupos que entram em conflito no interior das comunidades científicas, clamando para si o
lugar de modelo capaz de resolver os problemas detectados pela coletividade, está diretamente
ligado a questões variadas, as quais, como se pode perceber, não se limitam à formulação do
conhecimento em si mesmo.
a. que aspectos da linguagem foram considerados relevantes num dado conjunto de textos
publicados em décadas passadas?
b. que noções de competência comunicativa podem ser depreendidas de exames de
avaliação em larga escala aplicados no Brasil durante o período da ditadura militar?
c. qual o papel e o espaço concedido à reflexão sobre oralidade em livros didáticos
produzidos antes da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais?
11
Tradução livre do termo “content-oriented” (SWIGGERS, 1990).
12
Tradução livre do termo “context-oriented” (SWIGGERS, 1990).
59
A dimensão externa prevê duas instâncias investigativas entrelaçadas: (i) uma voltada
à análise temporal, a partir da qual se observam movimentos de continuidade e
descontinuidade com tradições de pesquisa numa período de tempo específico; e (ii) uma
voltada à análise da conjuntura social, tarefa que envolve considerar tanto o modo como se
organizam os pesquisadores no interior de retóricas específicas, como a atmosfera social e
intelectual em que o conhecimento sobre as línguas e a linguagem é produzido.
No cerne da discussão sobre a dimensão externa de investigação historiográfica, o
conceito de clima de opinião (KOERNER, 1995) toma lugar de destaque. A discussão até
aqui desenvolvida nos permite compreender que as “ideias linguísticas não se desenvolvem
no vazio, desvinculadas das outras ideias que as circundam no momento em que entram em
evidência, e das práticas que lhe são paralelas” (ALTMAN, 2012, p. 23). É nessa direção que
60
o clima de opinião – entendido como a atmosfera intelectual, social, política e cultural em que
o conhecimento é produzido – se reveste de importância para o trabalho historiográfico. Uma
narrativa historiográfica que se propõe a investigar o passado da linguística, considerando a
configuração hermenêutica que lhe cabe, não pode abrir mão de (i) olhar para as opções
ideológicas que, num dado contexto histórico, conduziram um modelo (ou um programa de
investigação) ao fracasso ou ao sucesso; (ii) investigar as motivações que levaram à
emergência de uma ou outra perspectiva; (iii) analisar como, no interior de um contexto
temporal e local, um grupo de especialidade foi coroado como aquele capaz de apresentar
soluções para certos problemas evidenciados pela comunidade; entre outras ações.
Não basta, portanto, reconhecer e atestar a existência e a hegemonia de grupos que
num dado momento ganharam destaque graças ao potencial resolutivo de suas teses
(excluindo-se, nesse movimento, os demais modelos, grupos e teorias que coexistiram durante
esse período); é preciso, mais que isso, questionar que condicionantes teriam determinado o
sucesso de um modelo que se tornou hegemônico e, ao mesmo tempo, o fracasso de
perspectivas que ficaram à sua margem. Afinal, o silenciamento ou até o apagamento de um
determinado grupo se dão, muitas vezes, menos pela natureza interna do modelo teórico
proposto e mais pelas condições externas em que se inscrevem no circuito acadêmico. Em
outras palavras, o grau de aceitabilidade dos saberes não está atrelado apenas à qualidade da
tese proposta ou à sua capacidade de solucionar problemas discutidos. A aceitação está
também (e, às vezes, sobretudo) vinculada às condições impostas pelo clima de opinião
(escorregadio e mutável) em que floresce o conhecimento. Desse modo, o “fracasso” de
determinado grupo pode indicar que suas teses foram propostas e discutidas no lugar errado e
na hora errada (ALTMAN, 1997).
Considerar o clima de opinião na compreensão de momentos pretéritos nos livra da
reincidente e tão perigosa postura de encarar a produção científica como centrada em sujeitos
individualizados, cuja genialidade lhes concederia o título de herói salvador de uma disciplina
que clama por mudança. Não raro, como se pôde perceber pelo modo como muitos manuais
de linguística interpretam a história pretérita, o “avanço” da linguística se explica a partir de
uma sobreposição de empreendimentos, dispostos linearmente num continuum temporal,
capitaneados por precursores geniais isolados. Todavia, convém destacar que a eleição de um
ou outro indivíduo como precursor, como grande linguista que enxergou para além do seu
tempo se dá, com certa inadequação, a partir do ponto de vista privilegiado do historiador
situado no presente (ALTMAN, 2012). Olhar para trás, pincelando indivíduos sem considerar
61
Por essa orientação, isto é, buscando sempre resgatar a história de ideias linguísticas
no interior de práticas situadas social, histórica e culturalmente, busco reconstruir a história da
TSD na pesquisa linguística brasileira em íntima relação com o clima de opinião do período
investigado (1970-1999), analisando, entre outras questões, a partir das fontes
historiográficas, como se articulam os indivíduos que constroem e propagam os saberes dessa
tradição e de que modo se desenvolvem grupos de especialidades cujas lideranças não se
sustentam senão pelo caráter colaborativo intrínseco à prática de produção do conhecimento.
Assim definida, à dimensão externa se ligam questionamentos como, por exemplo:
(1996) propõe três princípios que norteiam a construção das narrativas historiográficas, a
saber: princípio da imanência, princípio da contextualização e princípio da adequação.
O princípio da imanência orienta a observação das fontes a partir do estabelecimento
de um recorte sincrônico. Assim, um historiógrafo que toma como objeto investigativo, por
exemplo, o modo como gramáticas das primeiras décadas do século tratam o fenômeno dos
tempos verbais, opera, antes de tudo, com um recorte temporal e conceitual bem específico:
esse é o horizonte do qual não deve escapar. As fontes historiográficas pertinentes a seus
propósitos devem ser analisadas em sua imanência, sem a interferência da visão
“privilegiada” do pesquisador do presente e das teorias modernas que se desenvolveram
posteriormente. O que o princípio da imanência busca garantir, desse modo, é a interpretação
de como os textos definem/entendem/teorizam os fatos de linguagem em sua essência,
circunscritos numa contexto específico de produção e recepção.
O princípio de contextualização corresponde à reconstrução das condições em que o
conhecimento linguístico é concebido. Dessa forma, o acesso ao clima de opinião (BECKER,
1932) de época é imprescindível, uma vez que cabe ao historiógrafo, aqui, orientado por esse
princípio extrateórico, extraconceptual e extraepistemológico, a tarefa de reconstruir o
contexto em que se inscreve o processamento das práticas linguísticas em toda a sua
complexidade. Situa-se aqui toda a reflexão acima empreendida sobre a dimensão externa de
investigação historiográfica.
Por fim, tendo o historiógrafo atentado aos princípios da imanência e da
contextualização, resta-lhe agora partir para as avaliações e os julgamentos sem os quais não
existe narrativa historiográfica. Eis, pois, a etapa que caracteriza o princípio de adequação.
Nesse último movimento, tendo observado as fontes em sua imanência situacional, bem como
levantado o clima de opinião em que estão inseridos tais textos, o historiógrafo está apto a
traçar as bases do trabalho historiográfico, fundamentado, essencialmente, pelo
direcionamento descritivo-interpretativo que caracteriza a abordagem hermenêutica defendida
por Swiggers (2013). Nesta etapa da prática historiográfica, aquele que se dispõe a reconstruir
o passado – sobretudo aquele passado que se afasta em demasia do presente – se depara com o
desafio de lidar com a metalinguagem empregada nas fontes investigadas. O historiógrafo,
então, para Altman (2012), se vê enfrentando o dilema entre reproduzir fielmente “os termos
com que o linguista se expressou, correndo o risco de não ser compreendido pelo seu leitor
contemporâneo, ou modernizar argumentos e a metalinguagem do autor do passado, correndo
o risco de desvirtuar suas propostas originais” (p. 26). No entremeio entre o passado e o
64
Este capítulo tem como propósito definir e conceituar o que tenho chamado de
tradição sociodiscursiva (TSD). Mais precisamente, nas seções que seguem, além de
apresentar justificativas para a terminologia adotada, discuto sobre as fronteiras que
demarcam os limites da TSD, bem como os objetos investigativos que estabelecem as
diretrizes epistemológicas que configuraram, sustentaram e solidificaram essa tradição.
Naturalmente, a apresentação da TSD e de seus desdobramentos aqui desenvolvida
não se insere numa abordagem historiográfica num sentido mais particular do termo, embora
fundamentos da HL de algum modo perpassem a reflexão aqui discorrida. Não abordarei, por
exemplo, questões mais detidamente ligadas às condições sócio-históricas que situam a
emergência da TSD ou à recepção, no contexto ocidental, das teorias que configuram esse
domínio do saber linguístico. Meu foco, aqui, reforço, reside na apresentação, definição e
discussão dos fundamentos epistemológicos da TSD, partindo da observação dos modelos
teóricos que, a despeito de suas particularidades e diferenças quanto ao tratamento dos fatos
de linguagem, dão corpo a essa tradição que protagoniza uma parcela significativa da
linguística contemporânea.
Convém salientar que, apesar do tom expositivo e da já anunciada postura em grande
medida internalista que assumo neste capítulo, não parto do pressuposto de que saberes
linguísticos em geral e, mais restritamente, as proposições teórico-metodológicas
desenvolvidas por indivíduos ou grupos de pesquisa surgem num vazio contextual. Pelo
contrário, concebo a construção do conhecimento como produto que emerge senão pelo
trabalho coletivo que se desenvolve no interior de contextos sociais, históricos, ideológicos e
culturais, tal como compreende a Historiografia da Linguística (cf. Capítulo 2). Todavia, um
trabalho historiográfico em torno da TSD que fosse capaz de contemplar aspectos mais
detidamente ligados ao clima de opinião europeu em que a tradição se desenvolveu, além de
se distanciar do objetivo central da tese, demandaria considerável fôlego de pesquisa, uma vez
que a reconstrução do contexto social da época não seria possível senão por meio de pistas e
vestígios que se materializam em fontes primárias e secundárias que circularam em diferentes
espaços e épocas. A escolha por desenvolver este capítulo destacando questões internas à
tradição contribui com a consecução do objetivo central da tese, que gira em torno da
compreensão da emergência, do desenvolvimento e da consolidação da TSD no Brasil e seus
66
efeitos na reflexão sobre ensino de língua portuguesa. É preciso, pois, que compreendamos a
tradição sociodiscursiva em sua constituição interna para que, quando das análises, possamos
descrever e interpretar seus desdobramentos na reflexão empreendida pela linguística
brasileira ao longo dos trinta anos que situam a pesquisa aqui empreendida.
Convém também enfatizar que, em consonância com pressupostos da Historiografia da
Linguística, não enxergo a TSD como resultado de uma superação natural da tradição
formalista que até a primeira metade do século XX orientava, com certa hegemonia, o
pensamento linguístico ocidental. Encaro tanto as teorias como os objetos investigativos a
partir delas delimitados como constructos que emergem emparelhados a certas demandas que
se mostram relevantes para a comunidade científica num dado momento da história. Isto é, as
ideias linguísticas subjacentes aos diferentes modelos descritivos traduzem as aspirações
coletivas de seu tempo. Diante disso, não reivindico o status de revolucionário a um ou outro
modelo teórico, tampouco, consequentemente, julgo inadequadas ou insuficientes as
proposições teóricas e as aplicações práticas de modelos a que a TSD se opõe.
Feitas essas considerações necessárias, passo agora à reflexão centrada nos aspectos
internos à TSD. Para melhor organizar a apresentação da tradição em sua complexa
heterogeneidade constitutiva, as seções a seguir estão divididas em diferentes blocos, os quais,
a despeito da separação que se justifica por fins didático-expositivos, estão conceptualmente
entrelaçados. As seções a seguir têm por objetivo:
emergentes promovem fissuras nessa tradição cristalizada, propondo o estudo de objetos cuja
compreensão depende da relação entre elementos linguísticos e elementos que residem na
exterioridade da linguagem.
Dessa forma, o estudo da língua, antes situado exclusivamente na forma, passa a
residir na performance, na realização, na atualização. Passa a residir, enfim, nos usos
linguísticos operados por sujeitos situados em circunstâncias de comunicação específicas.
Esse movimento de passagem ou, em outras palavras, de mudança de paradigma compreende
a virada/guinada pragmática (MARCUSCHI, 2008; WEEDWOOD, 2002) ou virada
linguística (VIEIRA, 2015).
Não é meu propósito recusar a existência do que se pode compreender pelas
designações das viradas mencionadas. Ademais, convém destacar enfaticamente que os
trabalhos a que faço referência não têm como propósito primário desenvolver uma discussão
historiográfica análoga à que aqui desenvolvo, motivo pelo qual seus autores qual não
dedicaram esforços mais acentuados à discussão sobre a designação que fazem quando se
referem à abertura da linguística para questões situadas na dimensão extralinguística. Dito
isso, como estratégia retórica para justificar minha escolha pela designação tradição
sociodiscursiva em detrimento de virada pragmática ou linguística, gostaria de propor um
exercício de reflexão sobre alguns elementos da história da linguística ocidental no século XX
e sobre e os fundamentos epistemológicos atrelados às teorias hifenizadas e genitivas a que se
refere Marcuschi (2008).
Para pensar nas implicações das viradas como forma de designação do momento da
história da linguística aqui discutido, bem como para justificar a escolha terminológica
alternativa, apoio-me em Koerner (1989) e Hymes (1983), pesquisadores que tratam da
complexa dinâmica pendular que caracteriza muitas das história das ciências humanas e
sociais, dentre elas a da linguística.
Num sentido mais amplo, o termo virada pode ser compreendido no interior de um
campo semântico em que também se situam termos como mudança, deslocamento e
transferência. Todos esses itens lexicais indicam ideia de movimento, isto é, a passagem de
um estado (ou paradigma) a outro. Do ponto de vista semântico, de modo análogo, virada
também pressupõe movimento de passagem de um ponto ou estado a outro, todavia, com um
diferencial: trata-se de um movimento cujo novo estado dele consequente se opõe ao eixo,
polo ou paradigma, por assim dizer, “deixado para trás”, “superado”. Não por acaso a mesma
expressão é utilizada em situações que marcam, de fato, uma superação: “O time que estava
69
perdendo virou o jogo!”; ou “Depois da promoção de emprego, minha vida deu uma virada
radical!”, para citar alguns exemplos utilizados em situações do cotidiano. O verbo virar, em
contextos de deslocamentos, costuma marcar, portanto, um tipo de mudança mais acentuada,
uma reconfiguração ou reorganização da ordem das coisas.
Se nos detivermos a essa reflexão de natureza semântica, perceberemos as implicações
atreladas às designações das viradas e seus correlatos. Para Koerner (1989) e Hymes (1983), a
história das ciências humanas em geral e da linguística em particular não se desenrolam num
plano linear em que é possível identificar momentos de superação, como compreende Kuhn
(1998) em seu modelo interpretativo da história das ciências naturais. Koerner (1989) parte da
ideia de que a história das ciências pode ser interpretada, entre outros, por um meio de um
modelo pendular ou de progresso relativo. O autor compreende que, a despeito da mudança,
do deslocamento ou da alteração por que passa um campo científico, diferentes (e até
dissidentes) modelos teóricos podem coexistir num mesmo espaço, ainda que um ou outro, a
depender das condições determinadas pela atmosfera intelectual vigente, possa gozar de maior
prestígio perante a comunidade científica. Por esse motivo, à compreensão da emergência das
teorias sociodiscursivas como resultado de uma virada na linguística subjaz a ideia de
superação da tradição formalista, que, uma vez superada, passaria a não mais ser reconhecida
no circuito de discussão linguística.
Tanto Hymes (1983) como Koerner (1989), ao interpretar o desenvolvimento da
história das ciências, em particular das ciências humanas e sociais, defendem que a
emergência e o posterior “sucesso” de um modelo ou conjunto de modelos – nos termos de
Murray (1994) – não implicam, necessariamente, no absoluto apagamento de
empreendimentos a que as perspectivas consideradas modernas se opõem. Por esse motivo, na
esteira da reflexão dos autores, entendo que, a despeito da emergência, do desenvolvimento,
da consolidação e da legitimação de teorias que compreendem a linguagem como um objeto
social e discursivo, empreendimentos subscritos no programa formalista continuam a existir,
propondo modelos teórico-descritivos para explicar os certos fenômenos de linguagem; as
concepções formalistas continuam sendo reverberadas na pesquisa linguística e no espaço
escolar, nesse último caso sob a tutela da gramática tradicional.
Dessa maneira, uma vez que assumo o modelo hermenêutico de Hymes (1983) e
Koener (1989) para compreender a história da linguística, as designações virada pragmática
ou virada linguística, no contexto desta tese, mostram-se reducionistas – se consideramos
que podem de algum modo indicar a superação de modelos “ultrapassados” –, uma vez que,
70
em sentido estrito, não podemos falar em uma legítima virada na/da linguística. Ao adotar o
termo tradição sociodiscursiva como designação alternativa, estou compreendendo que a
emergência das teorias com ênfase investigativa nos usos linguísticos e nos aspectos
sociodiscursivos a eles atrelados impulsiona o desenvolvimento de um novo programa de
investigação (SWIGGERS, 1981; LAUDAN, 2011 [1978]) que passa a concorrer e coexistir
com outros programas que compõem, em conjunto, o que compreendemos, naquele momento,
por linguística ocidental. Esse programa inaugurado, cuja recepção e cujo desenvolvimento
acontecem ao sabor das condições impostas pelo clima de opinião da época, incorpora à
linguística ocidental uma tradição investigativa que, no seu modo de enxergar e analisar os
fenômenos linguísticos, não separa a forma dos usos, a língua de fatores extralinguísticos,
como o fizeram Saussure e Chomsky, duas lideranças importantes para a consolidação,
respectivamente, do estruturalismo europeu e do gerativismo.
Composto por diferentes modelos teóricos que adotam postura distinta daquela que
resulta no corte saussureano – langue x parole –, esse novo programa que entra em cena na
linguística moderna é definido por Swiggers (1981) como o programa sociocultural. A partir
da década de 1950, na Europa, prolongando-se até os dias de hoje, o programa sociocultural
passa a dividir espaço com outros programas, como o descritivista, de caráter estruturalista, e
o de correspondência, mais atento às questões de ordem cognitivas atreladas à perspectiva
gerativista. Ao longo dos anos, pode-se dizer que os pressupostos do programa sociocultural
passam a ecoar mais fortemente nos espaços institucionais ocupados pela linguística
ocidental, constituindo, assim, uma tradição consolidada e legitimada.
Para atestar a consolidação dessa tradição, basta que lancemos olhar para a história do
programa sociocultural, em geral, e dos campos disciplinares que compõem esse domínio
epistemológico, em particular. Essa história, cuja narrativa se prolonga até os dias atuais,
atesta que saberes e concepções subjacentes a esse programa já gozam de legitimidade nos
espaços acadêmicos, motivo pelo qual é possível constatar em trabalhos atuais, ligados às
mais variadas perspectivas teóricas da linguística, produzidos por pesquisadores ligados a
importantes centros de pesquisa no Brasil e no exterior, a frequente circulação de conceitos
como os de discurso, interdiscurso, formação discursiva, memória discursiva, condições de
produção, intertextualidade, contexto, polifonia, diálogo, dialogismo, interlocução,
intersubjetividade, enunciação, autoria, sujeito, variação, variedades, heterogeneidade,
intencionalidade, ideologia, modalização, referenciação, entre tantos outros a eles correlatos.
Naturalmente, grande parte desses conceitos não carrega definições fechadas, prontas e
71
acabadas; pelo contrário, diferentes modelos interpretativos lidam com as categorias a partir
do modo como delimitam seus objetos e objetivos investigativos. É o caso, por exemplo, da
noção de discurso, que é tomado pelas diferentes vertentes da análise do discurso, como
também pela linguística textual, pelas teorias enunciativas e pelas abordagens funcionalistas.
Todavia, apesar das diferenças conceituais, os modelos subscritos no domínio do programa
sociocultural encararam esse conceito, o de discurso, a partir da relação entre linguagem e
exterioridade; seja pelo ponto de vista do encontro entre língua e ideologia, da relação entre
língua e vozes sociais, da influência que as questões pragmáticas exercem na língua em uso...
o discurso, no âmbito do programa sociocultural, sempre aponta para a estrita relação entre
estrutura e questões que estão para além de sua materialidade. Esse ponto de convergência a
partir do qual dialogam as abordagens a despeito das suas diferenças e divergências já é hoje
um lugar comum, um ponto de consenso, um pressuposto e pré-concebido que reforçam a
constituição do domínio sociodiscursivo como uma tradição: a tradição sociodiscursiva – na
qual se inscrevem as reflexões do discurso, do texto, da enunciação, da mudança linguística,
da pragmática etc.
Diante das reflexões até aqui empreendidas, defendo que o desenvolvimento e a
difusão do programa sociocultural impulsionaram a construção de uma nova tradição
investigativa consolidada na linguística. Esse domínio consolidado e legitimado inaugura um
“corte” na pesquisa linguística ocidental cujo resultado é a separação dos estudos em
diferentes blocos (programas), que coexistem, embora um ou outro, em algum momento e em
alguns contextos de pesquisa, possa ser reconhecido como o mais adequado para pensar nas
indagações sobre a linguagem postas em discussão. A consolidação do programa
sociocultural e o consequente estabelecimento de uma tradição de natureza sociodiscursiva
conduzem a emergência de novas diretrizes descritivas que abrem caminhos para a
interlocução direta entre a ciência da linguagem e outros campos disciplinares que auxiliam
na compreensão da linguagem humana como um fato sócio-histórico e cultural.
Tendo proposto outro caminho como alternativa para as designações atreladas às
viradas e seus correlatos, convém, a partir de agora, apresentar justificativas mais consistentes
para sustentar o conceito de tradição sociodiscursiva (TSD). Para tanto, a seguir, discuto
sobre o domínio epistemológico cujas fronteiras nos permitem designá-lo como
sociodiscursivo, bem como discorro de modo mais prolongado sobre o conceito de tradição a
partir de dois pontos de vista – um mais geral, sem necessário vínculo teórico, e outro mais
72
mas sim dos primeiros vestígios que podem indicar o florescer de seu estágio inicial. As bases
ainda frágeis desse domínio emergente podem, uma vez consolidadas, favorecer a
constituição de uma tradição propriamente dita. Nada garante, entretanto, que o domínio
emergente atingirá o estatuto de tradição, cabendo a fatores internos e externos de toda sorte
determinar se obterá êxito no que tange à recepção e propagação de saberes atrelados a esse
domínio. Sendo assim, pode-se dizer que uma tradição passa a sê-la, assim designada, a partir
do momento em que é possível identificar indícios suficientes que atestem a existência efetiva
de um efeito de consensualidade cujo resultado, a despeito dos confrontos e da coexistência
de outras formas de compreensão da realidade, é o estabelecimento de sólidas fronteiras de
um domínio conceptual no qual indivíduos se apoiam, muitas vezes sem questionamentos,
para olhar para si, para o outro e para o que o mundo que os cerca. Pode-se dizer, nesse
momento, que o domínio emergente obteve êxito e, enfim, tornou-se uma tradição.
Se nos voltarmos para a origem etimológica da palavra tradição, remetendo-nos ao
termo traditio, do latim, conseguiremos observar que, em alguma medida, a noção de
consensualidade está enraizada a esse vocábulo. Traditio significa “transmitir”, “passar
adiante”. Tradicionalmente, está elegível para ser propagado ou transmitido apenas aquilo que
é encarado como pertencente a um legado de crenças, hábitos e práticas que configura a
memória coletiva de um grupo; isto é, propaga-se aquilo que é consensual. Na designação
contemporânea de tradição está assegurada a permanência da essência de traditio, na medida
em que toda tradição deve ser necessariamente propagada pelos seus adeptos ou, em outras
palavras, “passada adiante” como um legado que não deve ser esquecido.
Em alguns casos, em função da irrefutabilidade que atravessa o modo como são
interpretadas algumas tradições consolidadas ao longo da história da humanidade, o conjunto
de preceitos propagados pela tradição assume um caráter dogmático. Não é por acaso, por
exemplo, que a gramática, instrumento milenar construído pelos gregos alexandrinos,
consolidado pelos romanos e cristalizado no imaginário ocidental até hoje, carrega em sua
forma de designação o epíteto tradicional – gramática tradicional. Trata-se, efetivamente, de
uma tradição consolidada e legitimada que, a despeito das frequentes e contundentes críticas
a ela lançadas, continua sendo, no sentido visceral do termo traditio, “passada adiante” como
uma doutrina.
Em suma, ao tratar da tradição sociodiscursiva, parto, inicialmente, desse amplo
conceito de tradição como um domínio que tem uma história passível de descrição e de
interpretação e cujos saberes que o sustentam são tomados por uma coletividade em seu
74
constituindo-se como um discurso legitimado. Nesse sentido, pode-se dizer que a tradição
sociodiscursiva consolida-se como tal por consequência da ampla aceitação e propagação do
programa sociocultural, no qual se inscrevem as abordagens que delimitam as fronteiras da
TSD, constituindo, pois, suas diretrizes. A relação proposta por Altman (2004) corrobora a
ideia de que tradições são construídas no interior da acirrada disputa por legitimidade que
marca a institucionalização dos diferentes empreendimentos teóricos.
Uma vez consolidadas, as tradições podem coexistir no mesmo espaço e num mesmo
período em que se desenvolvem outras tradições dissidentes, compostas por outros modelos
com as quais não promovem interlocução. Não é apenas possível, como também natural que
diferentes tradições “disputem” pelo reconhecimento de suas proposições, fato que pode ser
constatado a partir de um olhar para a história da linguística, que, como consequência da
emergência e consolidação da tradição sociodiscursiva, protagoniza disputas entre modelos
descritivos centrados na forma e outros centrados no funcionamento da linguagem.
Pela reflexão desenvolvida até aqui, percebe-se que tanto Laudan (2011) como Hymes
(1983) buscam olhar para a historicidade que atravessa as tradições de pesquisa. As tradições
não correspondem a um domínio estático, um bloco homogêneo que reúne um conjunto de
teorias, abordagens descritivas e procedimentos metodológicos. As tradições carregam uma
história a partir da qual é possível que percebamos os problemas privilegiados por uma
coletividade num determinado espaço e ao longo do tempo, bem como os caminhos traçados
com vista à resolução dessas problemáticas postas em discussão. Do pondo de vista
historiográfico, a interpretação da história de uma tradição compreende um trabalho que não
se limita à descrição interna das teorias e dos modelos que compõem esse domínio, mas, mais
que isso, abarca uma hermenêutica que busca entender a tradição em sua constituição
epistemológica interna e, ao mesmo tempo, as motivações, ligadas a questões externas que
justificam as escolhas retóricas exercidas pelos agentes que nela encontram lugar de
identificação.
Por fim, antes de adentrar na discussão mais específica acerca das diretrizes
epistemológicas que delimitam a TSD, trago uma citação de Altman (2004), para advogar
pela pertinência do termo tradição sociodiscursiva como forma de designar o domínio
conceptual da linguística brasileira objeto de análise nesta tese:
Até então, foram aqui discutidas questões que giram em torno da compreensão da TSD
como uma tradição instalada na linguística ocidental. Nesta subseção, detenho-me à discussão
sobre o epíteto sociodiscursivo, apresentando argumentos que justificam a escolha dessa
adjetivação para qualificar a TSD. Os argumentos levantados se organizam em torno de uma
discussão sobre as teorias e os modelos a partir dos quais, no meu entender, configuram-se as
diretrizes epistemológicas da tradição sociodiscursiva.
Como já destacado em passagens anteriores, as fronteiras da TSD emergem
alicerçadas aos fundamentos que engendram o programa sociocultural. Nesse sentido, com o
intuito de explorar as diretrizes epistemológicas da TSD de modo mais apropriado, convém
aqui retomar sumariamente a reflexão de Swiggers (1981) acerca dos programas de
investigação e das características do programa sociocultural.
Fundamentalmente, os programas de investigação se organizam a partir de três eixos
constitutivos, a saber: visão, técnica e incidência (SWIGGERS, 1981). Respectivamente,
dizem respeito: (i) à concepção de língua e linguagem subjacente ao trabalho descritivo; (ii) à
metodologia investigativa mobilizada; (iii) aos aspectos privilegiados na análise linguística. O
78
resgate dos três eixos que configuram os programas de investigação importa na medida em
que parto do pressuposto de que as teorias que se inscrevem no programa sociocultural,
direta ou indiretamente, a partir de retóricas de ruptura, promoveram alguns deslocamentos
em relação aos três eixos constitutivos que definem tanto o programa descritivista como o
programa de correspondência13, os quais, hegemonicamente, configuravam sobremaneira a
agenda de pesquisa da linguística ocidental até o início da segunda metade do século XX.
Observemos, abaixo, como se organizam os principais programas de investigação
desenvolvidos ao longo da história da linguística no século XX, a fim de melhor compreender
como se dão os deslocamentos instituídos pelo programa sociocultural:
Quadro 1 – Disposição dos programas de investigação na tradição linguística ocidental
PROGRAMAS DE INVESTIGAÇÃO
Concepção de língua como sistema estruturado
Visão
autossuficiente.
Programa
Técnica Análise descritiva do sistema linguístico abstrato.
descritivista
A estrutura do sistema linguístico em sua
Incidência
Tradição imanência.
formalista Visão Concepção de língua como um fenômeno mental.
Análise descritiva da estrutura gramatical
Programa de Técnica
residente na cognição humana.
correspondência
Regras combinatórias organizadas em torno da
Incidência
competência linguística inata aos falantes.
Concepção de língua como atividade social,
Visão
cultural e historicamente situada.
Tradição Programa
Análise descritiva de práticas de linguagem
sociodiscursiva sociocultural Técnica
inscritas em condições de produção específicas.
Incidência A linguagem em funcionamento.
13
Discuti sobre os diferentes programas de investigação definidos por Swiggers (1981) no Capítulo 2 –
Fundamentos da Historiografia da Linguística.
79
delimitação de outros objetos investigativos, afinal, “bem longe de dizer que é o objeto que
precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto” (SAUSSURE,
2006, p. 15). Esses novos objetos emergem como resultado da interlocução, motivada pela
necessidade de se compreender as relações sociais, históricas, ideológicas, antropológico-
culturais, entre a linguística e outras disciplinas das ciências humanas e sociais. Esse
intercâmbio torna-se necessário uma vez que, agora, a análise linguística deve ultrapassar os
limites estruturais da frase, contemplando fatores que residem nas práticas sociais.
Entram em cena, assim, novas objetos e problemas de pesquisa a eles atrelados. Esses
objetos sociodiscursivos caracterizam a essência da TSD e delimitam sua fronteira de atuação;
são eles: (i) o discurso; (ii) o texto; (iii) a variação linguística; e (iv) os usos e funções
linguísticas. A cada um desses objetos investigativos se liga um domínio epistemológico
subscrito no programa sociocultural; respectivamente, são eles: (i) a análise do discurso; (ii) a
linguística de texto; (iii) a sociolinguística; (iv) o funcionalismo.
São necessárias algumas notas sobre os empreendimentos acima especificados.
Primeiramente, convém salientar que não estou tomando esses domínios como blocos
uniformes e homogêneos, como se não existisse pluralidade em seu interior. Diferentes (e até
divergentes) abordagens que ao longo da história da linguística foram desenvolvidas podem,
por exemplo, advogar para si a designação análise do discurso. Hoje, pode-se falar de análise
do discurso francesa, análise crítica do discurso, análise dialógica do discurso, entre outras;
ou, ainda, apenas análise do discurso, seguido de uma adjetivação que demarca o teórico a
que se filia – análise do discurso foucaultiana, análise do discurso gramsciana, análise do
discurso bakhtiniana, análise do discurso pecheutiana etc. Com algumas ressalvas, o mesmo
vale para a sociolinguística, que se desmembra em diferentes abordagens. Também para os
funcionalismos e para as teorias do texto. A diversidade epistemológica no interior desses
domínios é fato natural, afinal, diferentes problemas pululam a todo instante, colocando em
questionamento os limites conceituais e metodológicos das vertentes até então estabelecidas.
Desse modo, ao mencionar qualquer dos empreendimentos descritivos, refiro-me a um
domínio epistemológico maior que encontra ponto de convergência conceptual entre as
variações desse macrodomínio. A despeito das diferenças no modo de abordar os fenômenos
linguísticos, pode-se dizer que as variantes de um empreendimento disciplinar encontram de
algum modo uma linha condutora que as une, permitindo que compartilhem pertencimento a
um mesmo macrodomínio. Assim, para os fins deste trabalho, entendo a análise do discurso,
81
propósitos dos empreendimentos que tomo como nucleares para investigação da TSD – a
análise do discurso, a linguística de texto, a sociolinguística e o funcionalismo –, estando
neles presentes, direta ou indiretamente, seus objetos e objetivos descritivos, como ilustra o
quadro abaixo:
Quadro 2 – Diálogos entre diretrizes epistemológicas da TSD e domínios disciplinares da linguística.
O quadro acima ilustra a relação que há entre os quatro domínios nucleares e outros
domínios que, embora não tenham sido destacadas, ressoam significativamente nas fronteiras
da TSD, constituindo-a. A ênfase aos quatro domínios destacados se justifica pela
abrangência e amplo alcance tanto de seu quadro descritivo como dos objetos dele resultantes.
Para explicar de modo mais objetivo essa relação de pressuposição ou de intercâmbio
existente entre os diferentes domínios disciplinares sociodiscursivos, analisemos o seguinte
cenário: enquanto a análise da conversação investiga “os aspectos essenciais para a
organização do texto conversacional” (DIONÍSIO, 2012 p. 82) e a linguística cognitiva de
orientação sociointeracional, os “aspectos cognitivos de processos de interação pela
linguagem” (KOCH e CUNHA-LIMA, 2011, p.256), a linguística de texto, de modo mais
abrangente, lida com o fenômeno texto em sua ampla concepção, seja ele falado ou escrito,
abarcando tanto a produção como a compreensão, o que envolve, necessariamente, considerar
aspectos interacionais da conversação, bem como os processos cognitivos que permitem a
interação acontecer. Em resumo, a linguística de texto, ao adotar o texto como um “evento
83
3.2.1.1 Discurso
dá sempre no interior de práticas sociais. Na verdade, mais do que resultado das práticas
sociais, o discurso também opera com a transformação/modificação dessas práticas que
orientam a relação do homem com o mundo. Por esse motivo, compreende-se o discurso
como um objeto que estabelece uma relação dialética com as práticas sociais, as quais, de
igual modo, se constituem pelo atravessamento histórico e ideológico.
A noção de práticas sociais, naturalmente, não encontra absoluto lugar de consenso
entre diferentes teorias discursivas e sociais. Sendo assim, opto por lidar com essa noção a
partir de um olhar mais geral, buscando encontrar entre as diferentes abordagens pontos de
convergência a despeito das diferenças. Grosso modo, as práticas sociais organizam e de
algum modo determinam a relação que estabelecemos entre linguagem e mundo, relação a
partir da qual se configuram os discursos.
As práticas sociais não se organizam nos diferentes espaços empíricos como
consequência da aleatoriedade do acaso. O modo de ser e existir das práticas sociais resulta de
um processo histórico-cultural e ideológico ao qual estão atrelados sentidos, vozes e
memórias que, em diálogo contínuo, nos permitem significar. Em outras palavras, toda prática
social traz consigo o atravessamento de efeitos não evidentes de sentidos, vozes e imaginários
cristalizados num espaço a que nos reportamos para interagir com o outro e com o mundo.
Tomemos como exemplo a interação entre patrão e empregado. A relação entre esses
indivíduos, que assumem discursivamente diferentes posições em torno das quais orbitam as
imagens de autoridade e subordinação, configura-se a partir de relações de poder construídas
historicamente. Consciente ou inconscientemente, esses sujeitos interagem entre si
influenciados ou determinados por esses imaginários socialmente cristalizados como lugares
comuns, os quais, por vezes sem questionamentos, são partilhados, validados e aceitos pela
sociedade como verdades irrefutáveis. Estão aí envolvidos tanto o atravessamento da história
como os processos ideológicos, os quais permitem que os indivíduos, subjetivados
discursivamente, compreendam seu lugar no mundo e como devem nessa situação se portar
no que tange à atividade verbal.
Em síntese, quando agimos sobre o outro ou sobre o mundo, fazemo-lo sempre
orientados por algumas “regras de conduta” que orientam nossas práticas com a linguagem.
Tais “regras”, às quais nos subordinamos e as quais geram estranheza quando não cumpridas
por outrem, resultam de práticas discursivas e, ao mesmo tempo, de práticas sociais.
Discursivas, uma vez que se constituem no espaço das relações históricas e ideológicas;
sociais, tendo em vista que se materializam em certas práticas constitutivas das diferentes
86
3.2.1.2 Texto
14
Não tratarei, entretanto, de estudos recentes, como os de Dionísio (2011), que articulam uma teoria textual
com uma teoria descritiva de imagens em sua composição híbrida e multimodal (cf. KRESS & VAN
LEUWEEN, 1996), tendo em vista que esses trabalhos, embora alinhados a uma perspectiva sociodiscursiva de
linguagem, passaram a circular na linguística muito recentemente. Essa abordagem textual, portanto, não ressoa
na TSD que se estabeleceu entre 1970 e 1999, interstício que delimita a análise historiográfica aqui
desenvolvida.
88
aos processos de referenciação, aqui analisados como fenômeno de coesão inerente à prática
linguística.
Num segundo momento, os estudos do texto, agora já designados como linguística de
texto, preocupam-se com os fenômenos textuais de modo amplo, partindo da observação de
certos fatores de textualidade atrelados a situações comunicativas específicas, a intenções
determinadas pragmaticamente e, mais à frente, ao atravessamento de questões
sociocognitivas. Em outras palavras, trata-se de um campo que investiga as “operações
linguísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento
e recepção de textos escritos ou orais” (MARCUSCHI, 1983, p. 12-13).
Em linhas gerais, a partir dos pressupostos inerentes às abordagens textuais que
lançam a LT como empreendimento subscrito no programa sociocultural, pode-se entender o
texto, objeto investigativo que estabelece uma das diretrizes da TSD, como:
Antes de tudo, é necessário destacar que não subjaz a essa afirmação a ideia de que o
texto é um objeto estritamente e exclusivamente linguístico. O que se quer destacar, na
verdade, é a existência de certos princípios reguladores dos textos, sejam eles falados ou
escritos, que não podem ser compreendidos senão por meio de categorias e instrumentos
descritivos específicos para esse fim. Por esse motivo, “não é possível aplicar ao texto as
mesmas categorias gramaticais que possuímos para o estudo da frase” (MARCUSCHI, 1983,
p. 29).
Se, por um lado, a frase é concebida como unidade eminentemente linguística que se
constrói a partir de arranjos morfossintáticos, o texto, por outro, é compreendido como
unidade linguístico-discursiva cujos princípios reguladores se estabelecem a partir da relação
entre a linguagem, os sujeitos e o mundo. O texto tem a sua especificidade, seu
funcionamento próprio, sua organização particular.
O objeto texto comporta, por assim dizer, duas faces: (i) uma linguística, a que
correspondem as unidades morfossintáticas, lexicais e os processos de coesão que costuram
89
indivíduos, porém, não é unilateral e previamente estabelecida. Pelo contrário: trata-se de uma
relação dialética, cabendo a ambos os lados um papel ativo na construção de sentidos que,
como disse acima, são “negociados” durante o processo de interação.
Disso resulta a ideia de que ao texto subjaz uma gama variada de implícitos cuja
compreensão se dá no interior da interação estabelecida entre interlocutores em sua relação
com o contexto social, histórico e pragmático. De um lado, aquele que produz, assumindo o
lugar de autor, elabora a unidade textual cuja superfície é constituída por um balanceamento
entre informações explícitas e implícitas, pela escolha lexical e disposição dos elementos
léxico-gramaticais diretamente atrelados à sua forma de enxergar o mundo e às suas intenções
enunciativas, bem como por um uso particular da linguagem que, pragmaticamente orientado,
se situa num continuum variável de monitoramento. Do outro lado, o sujeito que “recebe”
(não passivamente), no gesto de leitura, trabalha com a superfície textual construída,
atribuindo-lhe sentidos possíveis e preenchendo “lacunas” a partir de uma atividade de
natureza sociocognitiva. Nesse gesto interpretativo, que é muito mais do que um simples
trabalho de decodificação de um código linguístico compartilhado, são acionadas as
experiências de vida e as concepções de mundo que configuram a identidade do indivíduo que
assume o lugar de leitor/ouvinte.
Em síntese, o texto aqui é compreendido como a unidade linguística em que
convergem subjetividades e intenções dos atores sociais que pela linguagem participam
ativamente da construção/negociação de sentidos.
O texto resulta de um gesto consciente. Isso não quer dizer, entretanto, que nele está
materializada a representação do pensamento de um sujeito cartesiano individualizado. Ainda
que a linguística de texto contemporânea lide com o texto como reflexo de uma prática
fundamentalmente social e interacional – como reforçam os itens anteriores –, os estudos
desse campo disciplinar não recusam a existência de um indivíduo que assume
conscientemente o lugar de autor.
A linguística de texto, portanto, ao trabalhar com o sujeito pragmático (diferente da
análise do discurso francesa, por exemplo, que lida com o sujeito como posição discursiva,
portanto assujeitado à ideologia), considera que as escolhas e a ordenação dos itens
linguísticos que compõem a costura textual resultam do trabalho relativamente autônomo de
91
Ainda que outros campos de atuação lidem com questões atreladas à variação
linguística, é a sociolinguística que se preocupa com esse fenômeno como objetivo
investigativo primário.
Sob o grande guarda-chuva aqui designado como sociolinguística, entretanto, estão
presentes diferentes abordagens teórico-metodológicas, ainda que todas elas conversem entre
si na medida em que adotam em seus modelos analíticos a constitutiva relação entre
linguagem e sociedade. Não desejo apresentar um quadro aprofundado em que constem as
especificidades de cada uma das diferentes abordagens sociais da linguagem, tampouco
construir uma narrativa histórica acerca desse vasto domínio disciplinar da linguística. Meu
intuito aqui, na verdade, é discutir, partindo de saberes inerentes às múltiplas abordagens
sociais da linguagem, alguns fundamentos centrais e consensuais a partir dos quais podemos
compreender a variação linguística como objeto que constitui uma das diretrizes
epistemológicas da TSD.
Para início de discussão, convém destacar que a evidência de que as línguas variam
não está atrelada à emergência da sociolinguística enquanto teoria científica da linguagem.
Qualquer olhar atento, fundamentado ou não em critérios científicos, é capaz de enxergar a
indiscutível heterogeneidade que atravessa e caracteriza as línguas naturais. Pessoas de
diferentes classes sociais falam diferente; pessoas de diferentes faixas etárias falam diferente;
pessoas de diferentes regiões de um mesmo país falam diferente. A mutabilidade da língua é,
pois, um fato evidente. Todavia, a despeito dessa evidência que independe de teorização
científica, o modo de encarar a variação linguística assume nova configuração a partir do
quadro investigativo da sociolinguística.
Até o fim da primeira metade do século XX, o fenômeno da variação linguística não
era sistematicamente investigado pelas perspectivas teóricas então vigentes, uma vez que se
trata de um funcionamento que reside na performance ou, pela ótica estruturalista, na
atualização do sistema. Não há variação no sistema virtual da língua se o encaramos pelo
ponto vista sincrônico e em sua autossuficiência e autorregulação, tal como preconizam as
perspectivas subscritas nos programas descritivista e de correspondência. Isso justifica a
92
ausência de estudo da variação linguística nos quadros descritivos que compõem a agenda de
trabalho da linguística em momento anterior à emergência do programa sociocultural.
Para a sociolinguística, a análise dos fatos de linguagem deve contemplar, ao mesmo
tempo, (i) fenômenos regulares da estrutura linguística, cujo funcionamento pode e deve ser
descrito cientificamente, e (ii) questões que residem na exterioridade da estrutura linguística,
as quais influenciam o modo como a língua se organiza em todos seus níveis constitutivos.
Essa postura pressupõe uma análise que enxerga os fatos de linguagem como produtos das
relações sociais em sua ampla dimensão. Ou seja, considera-se a língua uma instituição
intimamente arraigada à cultura, à história e à identidade de uma coletividade. Desse modo,
compete à sociolinguística a compreensão dos fatores – sociais, linguísticos ou
sociolinguísticos – que determinam ou influenciam a variação como um fato natural ao modo
de ser e de existir das línguas naturais.
Os primeiros estudos que relacionaram a estrutura linguística com a estrutura social
foram concebidos, na década de 1960, por William Labov, nos Estados Unidos. Esse modelo,
designado por sociolinguística variacionista, contempla em seu quadro analítico-descritivo
aspectos da estrutura linguística relacionando-os diretamente às estruturas sociais e culturais
das comunidades de fala. A investigação da sociolinguística laboviana busca, nessa direção,
explicações para fenômenos da ordem linguística no modo como a sociedade se organiza.
Enxerga, pois, a relação entre linguagem e sociedade em sua natureza dialética. Esse
empreendimento pioneiro de Labov abriu caminhos para que outras abordagens
sociolinguísticas – essas mais preocupadas com aspectos sociais do que com os linguísticos –
surgissem na Europa, trazendo outros pontos de vista atrelados aos fundamentos do programa
sociocultural.
Em seu Dicionário crítico de sociolinguística, Bagno (2017) propõe pensarmos no
domínio da sociolinguística a partir de um continuum em que estão arroladas, de um lado,
perspectivas mais ligadas às questões sociais e interacionais e, de outro, abordagens que,
embora também “sociais”, dão mais ênfase ao aspecto linguístico no tratamento investigativo
do fenômeno da variação. Mais próxima do eixo “socio”, como afirma Camacho (2013),
encontram-se pesquisas em sintonia com uma sociologia da linguagem (BERNSTEIN, 1971;
FISHMAN, 1972) ou com uma sociolinguística de enfoque discursivo-interacionista
(GUMPERZ, 1982; ECKERT, 2000), enquanto que, adjunto ao eixo “linguística”, teríamos o
modelo variacionista (LABOV, 2008 [1972]).
93
estamos nos referindo a um país marcado pela pluralidade de culturas, hábitos, costumes e
tradições. Não só plural do ponto de vista cultural, mas também socioeconômico. A
heterogeneidade do português brasileiro – língua em que ressoam traços das culturas
africanas, indígenas e europeia – reflete a instabilidade, multiplicidade, complexidade e
variedade do povo que habita em terras brasileiras.
Em suma, estudar língua através da perspectiva da sociolinguística é estudar, também,
pela língua, a sociedade. Mudanças sociais resultam em mudanças no modo como os sujeitos
enxergam a si mesmos, os outros e o mundo. Não há outra forma de olhar para a realidade
senão pela linguagem, que funciona como intermediadora da relação homem-sociedade. Por
esse motivo, os estudos sociolinguísticos afirmam que as mudanças sociais de toda ordem
promovem consequentes deslocamentos no modo como os indivíduos compreendem e
efetivamente utilizam a linguagem como forma de expressão social.
c. toda variedade linguística segue regularidades que lhe garantem pleno funcionamento.
Por essa perspectiva, a essência da língua reside na sua capacidade de permitir que
indivíduos interajam entre si, negociando e confrontando sentidos, com vistas à consecução
de determinados objetivos comunicativos. Fica claro que aqui não há espaço para uma
descrição linguística concentrada senão no uso, ou seja, na (re)atualização que o sistema
linguístico assume quando a língua está em funcionamento.
Subjacente à noção de uso linguístico está pressuposta a ideia de interação; é no
movimento interlocutivo da interação, afinal, que utilizamos a linguagem para agir sobre o
outro. Interlocutores agem uns sobre os outros, de modo colaborativo e cooperativo,
orientados por intenções pragmáticas específicas e por um contexto social que influencia a
todo instante o modo como a interação se desenrola.
A língua, então, existe na medida em que serve para mediar a interação entre
indivíduos: de um lado, indivíduos que, tendo algo a dizer, organizam seu discurso com vistas
à consecução desse propósito, agindo sobre o outro e sobre o mundo; do outro lado,
indivíduos que trabalham ativamente, num dado contexto, para construir sentidos ao passo
que a interação acontece. Em suma, a língua permite formas de ação, trocas de experiência,
colaboração e negociação de sentidos.
b. a estrutura linguística varia de acordo com as funções que ela assume na interação.
De modo geral, tendo em vista a ênfase nas questões que giram em torno das escolhas
dos indivíduos no ato de interação, as abordagens funcionalistas trabalham com a noção de
sujeitos enquanto indivíduos “conscientes, dotados de um saber, de uma capacidade de
escolhas e de dar-se conta de como o contexto deve ser relevantemente considerado e até
mesmo alterado” (POSSENTI, 2011, p. 363). Ou seja, estamos falando de um sujeito que
deliberadamente, diante de propósitos e diante de certas condições contextuais de
101
comunicação (de onde fala, para quem fala, de que lugar está falando, que efeito quer atingir
no outro com sua fala etc.), opta por uma forma entre outras de se expressar linguisticamente.
Isso não significa que estamos aqui lidando com uma concepção de sujeito centrado
em um ego individualista à qual subjaz a noção de um indivíduo dono absoluto dos efeitos de
sentidos que pretende atingir. Pelo contrário, trata-se de um sujeito social, influenciado pelas
circunstâncias em que enuncia e pelo outro ou outros que com ele interagem. É justamente no
entremeio entre a influência dos fatores que o cercam e sua capacidade de escolha com vistas
ao cumprimento de objetivos comunicativos particulares que o sujeito e os sentidos são
concebidos pela abordagem funcionalista.
Com esta terceira consideração sobre o trabalho funcionalista, encerro a discussão
sobre as quatro diretrizes que orientam, organizam e delimitam o domínio da tradição
sociodiscursiva tal como a compreendo. A seguir, busco abordá-las de modo integrado,
ligando os pontos e atando os nós que amarram os diferentes empreendimentos
sociodiscursivos no interior de uma mesma tradição.
Para além dessa visão sistêmica de língua, os fundamentos da TSD, no que tange ao
seu aspecto social, se aproximam das relações complexas, contraditórias e escorregadias que
configuram as interações que os sujeitos estabelecem entre si e com o mundo que os cerca.
Trata-se de um social que compreende a sociedade, em sua complexidade e em sua
imprevisibilidade, como um domínio multifacetado.
Discurso, por sua vez, não se limita ao objeto da análise do discurso ou apenas ao
objeto homônimo aqui discutido. Em sua origem etimológica, a palavra “discurso”
corresponde à ideia de movimento, de curso fluido, de percurso, de correr por (ORLANDI,
2009). Inserido no espaço da performance, assim compreendo a designação discurso da TSD:
um domínio em que se inscrevem a imprevisibilidade, fluidez, flexibilidade e variabilidade
das diferentes materialidades intradiscursivas (texto, fala, conversação, enunciado) e
interdiscursivas (diálogo, memória, frames etc.). O qualificador discursivo do termo
sociodiscursivo se refere aos fenômenos que, através da linguagem em funcionamento,
orbitam em torno da interação intersubjetiva. Intersubjetividade, aqui, compreende tanto uma
interação pragmaticamente orientada na qual ações conscientes são processadas a todo
instante, como um diálogo que ultrapassa as fronteiras do face a face, estabelecendo relações
pouco evidentes entre vozes anônimas que ressoam nas diferentes (e irrepetíveis) atualizações
que se fazem da linguagem.
Entendo a TSD, portanto, como domínio em que se discutem os aspectos sociais da
linguagem e fenômenos de natureza discursiva residentes na instância das múltiplas
performances processadas na e pela linguagem em uso. Esse domínio é tanto social como
discursivo na medida em que parte de uma concepção de linguagem como “atividade
sociocultural coletiva, como instrumento de poder e controle social, como trabalho dialógico
por natureza e exclusivamente realizado na interação, no intercurso verbal falado e escrito”
(BAGNO, 2017, p. 11).
Finalmente, para sistematizar as discussões empreendidas ao longo deste capítulo,
compreendo a tradição sociodiscursiva, em linhas gerais, como:
a. uma tradição no sentido mais geral do termo, atrelado à noção de traditio, de “passar
adiante” um conjunto de preceitos e fundamentos consolidados num determinado espaço;
aqui, o espaço institucionalizado da linguística ocidental;
b. uma tradição no sentido mais restrito, ligado às reflexões epistemológicas que propõem
Laudan (2011) e Hymes (1983), que entendem as tradições, respectivamente, como (i) um
106
4 ASPECTOS METODOLÓGICOS
15
Na seção 2.5 – Dimensões, princípios e procedimentos da construção historiográfica –, expliquei, de modo
detalhado, os fundamentos basilares das dimensões interna e externa, bem como os pontos necessários à
compreensão dos princípios de imanência, contextualização e adequação propostos por Koerner (1996).
108
4.1 PERIODIZAÇÃO
16
O referido parecer do CFE configura um texto aditivo intitulado Currículo dos cursos superiores, no qual são
expostas orientações sobre a reconfiguração de cursos de graduação, entre eles o de Letras. A propósito dessa
reformulação, Castilho (1965) ressalta o papel norteador da comunicação do professor Aryon Rodrigues,
intitulada Sugestões de medidas relacionadas à inclusão de Linguística no currículo mínimo de letras, proferida
por ocasião do Simpósio sobre estrutura das faculdades de filosofia, ocorrido em Brasília entre 13 e 15 de
fevereiro de 1963, um ano após a emissão do parecer da CFE.
110
contornos mais evidentes. Esse período da linguística brasileira é marcado por acontecimentos
internos relevantes, os quais, direta ou indiretamente, impulsionaram o estabelecimento de
alguns deslocamentos nas pesquisas linguísticas empreendidas no país, sejam elas teóricas ou
aplicadas ao ensino de língua materna. É nesse contexto de deslocamentos que começa a se
desenhar o que aqui chamo de emergência da tradição sociodiscursiva. Entre os
acontecimentos que, nesse período, impulsionaram a emergência da TSD, destacam-se:
a. a criação do Projeto Norma Urbana Culta (NURC), cujo objetivo consiste na descrição
das regularidades constituintes da norma culta do português brasileiro (CASTILHO,
1991). A empreitada, que se desenrolou por décadas à frente e que se mantém até hoje,
foi responsável pela criação de um amplo corpus linguístico que possibilitou a linguistas
brasileiros descrever, nos diferentes níveis, a partir de dados empíricos, as características
próprias do português culto brasileiro, distinguindo-o do português europeu. Os trabalhos
em torno do NURC interessam a esta historiografia na medida em que contribuem para os
estudos sobre a língua falada e as questões sociolinguísticas subjacentes às normas
linguísticas brasileiras (CASTILHO, 1981), além de sua influência direta, como aponta
Vieira (2015), na produção de gramáticas do português brasileiro falado e, mais
recentemente, das gramáticas brasileiras contemporâneas do português (VIEIRA, 2015,
2016), como as de Neves (1999), Azeredo (2008), Perini (2010), Castilho (2010) e Bagno
(2012), para citar algumas. Pode-se dizer que todos esses produtos da gramatização
brasileira contemporânea são resultado, em alguma medida, da consolidação da TSD na
pesquisa linguística brasileira;
c. a tradução de importantes textos de ação que discutem questões centrais à TSD e cuja
influência ressoa até os dias de hoje, tais como Problemas de linguística geral I
111
17
Regida pela Portaria Nº 36/1959 do MEC, a NGB apresentou uma proposta de padronização da nomenclatura
gramatical que, a partir daquele momento (1959), deveria ser utilizada na produção de gramáticas e livros
didáticos produzidos no Brasil. Seus efeitos ecoam na produção desse tipo de material até os dias de hoje (cf.
HENRIQUES, 2009).
18
A tradução de Rodolfo Ilari da obra Linguistique et enseignement du françois pode ser considerada, com
poucas ressalvas, uma recriação do texto original de Genouvrier e Peytard, dada a engenhosidade da adaptação
de Ilari (GERALDI, 2001). A tradução foi publicada originalmente em Coimbra, Portugal, pela editora
Almedina, porém circulou intensamente no Brasil, servindo como material referencial no círculo de debates
empreendidos na linguística local ao longo dos anos de 1970 e adiante.
112
não defendo que o ano de 1999 marque o fim de sua história. Ainda que assuma que ao longo
dos anos de 1990 esse domínio se consolide como uma tradição na pesquisa linguística
brasileira, não entendo que sua história aí se encerre. Para além do espaço institucional dos
centros de ensino e pesquisa brasileiros, a TSD tem até hoje costurado uma história de
enfrentamento. É fato que a tradição formalista, cuja principal representante no espaço
pedagógico é a gramática tradicional, ainda fundamenta em grande medida práticas de ensino
de língua portuguesa e a opinião pública sobre a linguagem, o que me conduz a pensar que a
história de deslocamentos da TSD se prolonga para além do ano de 1999, cruzando o século.
Apesar dessa consideração, a escolha do fim da década de 1990 como limite temporal se
ampara em justificativas concretas, sobre as quais passo agora a discorrer.
Os anos de 1990 delineiam alguns acontecimentos internos à linguística brasileira que
foram de suma importância para a consolidação da TSD no país. É nesse período que saberes
sociodiscursivos passam a circular com maior frequência na esfera acadêmica brasileira, dessa
vez, diferentemente das décadas passadas, amparados por certo efeito de consensualidade
coletiva. Isto é, ao longo da década de 1990, a discussão sobre texto, discurso, variação e
outras questões correlatas já se encontra solidificada, legitimada e amplamente difundida.
Pode-se dizer que os objetos constitutivos da TSD constituem pauta regular nesse período
devido, entre outros fatores:
Em linhas gerais, pelo disposto até aqui, parto do pressuposto de que o interstício de
tempo entre 1970 e 1999 configura uma linha temporal adequada para analisarmos os
movimentos que culminaram na emergência, no desenvolvimento e na consolidação da TSD.
De modo sistemático, como forma de tornar mais claros os argumentos que sustentam
o recorte de tempo estabelecido na historiografia aqui desenvolvida, trago o quadro a seguir,
organizado a partir de acontecimentos que julgo relevante destacar.
fidelidade, o quadro geral dos problemas considerados relevantes pela comunidade científica.
Além disso, é importante destacar que todos os trabalhos publicados pelos periódicos
indexados são, antes, submetidos à avaliação de um corpo editorial composto por
pesquisadores de reconhecida expertise técnico-científica na área, medida que confere
credibilidade aos trabalhos aprovados e que atesta a relevância e a seriedade das proposições
neles veiculadas. Como salienta Altman (2004),
A base documental cuja composição foi orientada pelos parâmetros acima descritos é
composta por um acervo de fontes que totaliza 73 textos. Essa base representa um recorte
significativo da produção linguística brasileira em torno da TSD; abarca, portanto, o resultado
de pesquisas desenvolvidas em diferentes centros de pesquisa e ensino do país ao longo dos
trinta anos que delimitam o período aqui estabelecido.
A seguir, apresento o mapeamento da base documental. As fontes estão divididas por
décadas e periódicos, organizadas em quadros que trazem as seguintes informações: (i) título,
(ii) autoria, (iii) volume do periódico e (iv) ano de publicação.
19
As áreas mencionadas são definidas CAPES, órgão que avalia periodicamente qualidade e o poder de impacto
dos periódicos indexados publicados no Brasil. Os periódicos são avaliados e enquadrados em categorias
(Qualis) que, da mais impactante à menos impactante, são distribuídas da seguinte forma: A1, A2, B1, B2, B3,
B4, B5 e C.
118
Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
A significação linguística e sua análise João de Almeida 18 1972
Dos ruídos na comunicação Suzi Franki Sperber 20 1974
Uma nota sobre redação escolar Rodolfo Ilari 22 1976
Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Padrões linguísticos e estratificação
Roberto Gomes Camacho 24 1980
social
Norma, ideologia e teoria da linguagem Roberto Gomes Camacho 25 1981
A interferência de fatores sociais na
Roberto Gomes Camacho 26 1982
aquisição da norma culta
Leonor Lopes Fávero
Discurso e referência 28 1984
Ingedore G. Villaça Koch
O sistema escolar e o ensino da língua
Roberto Gomes Camacho 29 1985
portuguesa
Ensino do português: a formação do
Regina Maria Pessoa 30 1986
professor
Coesão e coerência textual em Claudete Moreno
33 1989
composições infantis Ghiraldelo
Língua natural: enfoque sociolinguístico Devino João Zambonim 33 1989
Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Leitura: aspectos sociais da compreensão Roberto Gomes Camacho 36 1992
Maria Helena Vieira-
A leitura na sala de aula 36 1992
Abrahão
Linguística textual e ensino de língua: Maria do Rosário V.
37 1993
construindo a textualidade na escola Gregolin
Reflexões sobre o estudo da gramática Maria Helena de Moura
37 1993
nas escolas de 1º e 2º graus Neves
O papel do contexto social na teoria
Roberto Gomes Camacho 38 1994
linguística
Um ponto de vista funcional sobre a Ataliba Teixeira de
38 1994
predicação Castilho
Maria Helena de Moura
Uma visão geral da gramática funcional 38 1994
Neves
A análise do discurso: conceitos e Maria do Rosário V. 39 1995
119
aplicações Gregolin
A gramática de usos é uma gramática Maria Helena de Moura
41 1997
funcional Neves
Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
José Fernando de L.
A redação no curso médio 6 1971
Miranda
A linguagem de propaganda aplicada ao Vera Regina Araújo de
11 1976
ensino de língua materna Pereira
A língua portuguesa no Brasil Stella Maris Bortoni 13 1978
Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Bernstein e a sociolinguística Delmar Steffen 15 1980
Por uma gramática textual Ignacio Antonio Neis 16 1981
O fator cultural na compreensão da Maria Izabel S. Magalhães
16 1981
leitura Stella Maris Bortoni
Uma tentativa de gramática do texto
Maria da Glória Bordini 17 1982
narrativo
A competência de leitura Ignacio Antonio Neis 17 1982
Análise da coerência textual em
Maria Izabel da Silveira 17 1982
redações escolares
Por que uma linguística textual? Ignacio Antonio Neis 20 1985
A informatividade como elemento de
Leonor Lopes Fávero 20 1985
textualidade
A situacionalidade como elemento de
Ingedore G. Villaça Koch 20 1985
textualidade
Ignacio Antonio Neis
Leitura de textos no 1º grau: nova José Marcelino Poersch
20 1985
alternativa de ensino/apredizagem Lia Lourdes Marquandt
Maria Tasca
Recepção e produção textual em 5ª série
Maria Eduarda Giering 20 1985
do 1º grau
A história do sujeito-leitor: uma questão
Eni P. Orlandi 21 1986
para a leitura
Leitura e escrita: uma visão mais
Irandé Antunes 23 1988
produtiva
A análise do discurso na escola de Márcia C. Santos
24 1989
segundo grau Marlene L. Teixeira
Fonte: o autor, 2019
120
Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Variação dialetal e ensino
institucionalizado da língua Ataliba Teixeira de Castilho 1 1978
portuguesa
Fonte: o autor, 2019
Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Linguagem e estratificação social Jonas de A. Romualdo 2 1981
Leitura e alfabetização Luiz Carlos Cagliari 3 1982
Gramaticalidade aceitabilidade: uma
Jonas de A. Romualdo 5 1983
nova reformulação do certo-errado?
O sujeito na teoria enunciativa de
Catherine Fuchs 7 1984
Culioli: algumas referências
Interação face-a-face:
Neide M. Durães Sette 7 1984
simetria/assimetria
Do dialogismo à forma dialogada:
sobre os fundamentos da abordagem Francis Jacques 9 1985
pragmática
Principais mecanismos de coesão
Ingedore G. Villaça Koch 15 1988
textual em português
A imposição da leitura pelo texto:
Sírio Possenti 18 1988
casos de humor
Fonte: o autor, 2019
121
Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Heterogeneidade(s) enunciativa(s) Jacqueline Authier-Revuz 19 1990
Tendências da análise do discurso José Luiz Fiorin 19 1990
A atividade de produção textual Ingedore G. Villaça Koch 24 1993
Aquisição da escrita e textualidade Ingedore G. Villaça Koch 29 1995
Estratégias pragmáticas de
Ingedore G. Villaça Koch 30 1996
processamento textual
Exterioridade e ideologia Eni P. Orlandi 30 1996
Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Em terra de surdos-mudos (um estudo
sobre as condições de produção de Percival Leme Brito 2 1983
textos escolares)
Significação, leitura e redação Eni P. Orlandi 3 1984
Leitura como suporte para a produção Freda Indursky
5 1985
textual Maria Alice Kauer Zinn
Prática de produção de textos na
João Wanderley Geraldi 7 1986
escola
Criatividade e gramática Carlos Franchi 9 1987
Situações dialógicas assimétricas:
Stella Maris Bortoni 12 1988
implicações para o ensino
Níveis de detalhamento na descrição
gramatical: uma perspectiva Mario A. Perini 12 1988
pedagógica
Contribuições de uma gramática do
texto para o ensino de língua materna Maria Christina Diniz Leal 12 1988
(O caso da língua portuguesa)
Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Análise do discurso e leitura:
elementos para uma “progressão Rosa Maria Nery 15 1990
textual”
Aspectos do processo de produção de
José Luiz Meurer 21 1993
textos escritos
Interação em aula de leitura: a
atuação do aluno nas margens e no Marisa Grigoletto 29 1997
centro da construção da significação
A inter-relação oralidade-escrita no
Maria da Graça Costa Val 29 1997
aprendizado da redação
Concepção de língua falada nos
manuais de português de 1º e 2º graus: Luiz Antônio Marcuschi 30 1997
uma visão crítica
Interferências da oralidade na
Ingedore G. Villaça Koch 30 1997
aquisição da escrita
a. Tipo de texto. A partir dessa categoria, analiso como se configuram as diferentes posições
das fontes no interior do circuito de reflexão da linguística brasileira. Classificarei, a
partir de Swiggers (2013), os textos em três tipos: (i) textos de ação, ou seja, fontes que
apresentam uma abordagem propositiva, em contraposição ou não a algum modelo
20
As categorias e seu modo de organização foram baseados na metodologia proposta por Altman (2004), com
adaptações necessárias ao tipo de historiografia por que optei.
124
legitimado pela comunidade científica; (ii) textos de diluição, entendidos como aqueles
que apresentam uma “aplicação” de modelos divulgados em textos propositivos
(geralmente, em textos de ação); e (iii) textos de reação, os quais apontam algum tipo de
avaliação crítica de textos que circulam na esfera acadêmica.
d. Autoria. Norteado por essa categoria, observo a posição acadêmica e o tipo de retórica
estabelecida pelos agentes que assinam as fontes. Tais diretrizes nos permitem observar a
relação entre idade profissional, potencial de elite e retórica assumida diante do debate
científico.
Quadro 16 – Distribuição das categorias de análise nos eixos de análise interna e externa
Textos de ação
Tipo de texto Textos de diluição
Textos de reação
Proposições teóricas
DIMENSÃO Natureza da
Escrita
reflexão sobre
INTERNA Proposições teórico- Oralidade
língua Eixo de ensino de
metodológicas língua portuguesa
Leitura
aplicadas ao ensino Conhecimentos
linguísticos
Concepção de
língua e
referencial teórico
Posição acadêmica
Autoria Retórica de continuidade
Tipo de retórica
Retórica de ruptura
DIMENSÃO Relação com o
EXTERNA contexto sócio-
histórico e
acadêmico
Como se pode constatar, as categorias de análise estão situadas nos eixos das
dimensões interna e externa. Ou seja, os dispositivos de análise situam a compreensão das
fontes em sua imanência e, ao mesmo tempo, como resultado das condições externas à sua
constituição. Dessa forma, como já enunciado no capítulo 2 – Fundamentos da Historiografia
da Linguística –, não há separação estanque entre um olhar internalista e outro externalista: a
compreensão da TSD se dá, portanto, em seu caráter epistemológico, social e histórico, afinal,
o conhecimento se erige senão como consequência direta das condições de sua concepção.
126
21
O periódico ALFA pode ser acessado em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/.
127
de Filosofia, Ciência e Letras de Marília-SP, “o que não significa, todavia, que a revista se
circunscreva à Faculdade, estando, antes, aberta à colaboração de todos” 22.
Revista classificada como A1 na última avaliação Quais da CAPES (2013-2016), o
que comprova a excelência e credibilidade do conjunto dos trabalhos nela publicados, a ALFA
é um importante suporte em que são veiculados resultado de pesquisas linguísticas
desenvolvidas no Brasil e no exterior. Em atividade até hoje, o periódico edita três volumes
por ano (além de números especiais, quando do interesse editorial), nos quais são publicados
artigos, resenhas, retrospectivas e traduções.
Hoje, a ALFA está sob a responsabilidade editorial de Roseane de Andrade Berlinck
(UNESP) e traz em seu conselho pesquisadores de reconhecida expertise, muitos dos quais
compuseram importantes vozes para o desenvolvimento da TSD, como Ataliba de Castilho
(USP), Freda Indursky (UFRGS), João Wanderley Geraldi (UNICAMP), Luiz Carlos
Travaglia (UFU) Maria Helena de Moura Neves (UNESP), Sírio Possenti (UNICAMP), entre
outros.
b. Letras de Hoje23
22
Fragmento retirado do Editorial de abertura do volume 1 da ALFA (1962). O documento não traz paginação
nem autoria. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/3128/2859, acesso em 10/08/2019.
23
A revista Letras de Hoje pode ser acessada em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale.
128
24
O periódico Cadernos de Estudos Linguísticos pode ser acessado em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel.
129
Analiso nesta seção apenas três fontes. A baixa quantidade de textos que lidam com
questões atreladas às diretrizes da TSD traduz o momento da Linguística brasileira, que, na
década de 1970, em grande medida, ainda trazia vestígios de pesquisas dialetológicas e
filológicas, às quais se somavam trabalhos gerativistas. Todavia, a despeito dessa agenda
predominante, vestígios da TSD começavam a emergir em trabalhos publicados na ALFA, os
quais passo agora a analisar.
Segue, abaixo, a relação das fontes analisadas.
25
O periódico Trabalhos em Linguística Aplicada pode ser acessado em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/tla.
130
Quadro 17 – Informações das fontes analisadas do periódico ALFA: Revista de Linguística publicadas no
período de emergência da TSD
A alternativa proposta por Ilari (1976), então, como forma de aliar o estudo dos
conhecimentos linguísticos à prática de redação, apoia-se, particularmente, nos fundamentos
da linguística textual, empreendimento que, exportado da Europa, começara a circular nos
centros universitários brasileiros no eixo Sul-Sudeste, ainda timidamente, a partir da segunda
metade da década de 1970 (cf. KOCH, 1999). A inscrição no domínio da linguística textual
para pensar no ensino da redação/produção de texto pode ser observada na passagem que
segue: “a perspectiva em que se deve pensar a redação escolar é a de uma linha de
investigação linguística cujas versões modernas tem sido às vezes chamadas „teoria do texto‟
ou „teoria do discurso‟” (ILARI, 1976, p. 84).
É conveniente tomar nota sobre a menção feita às teorias do texto e do discurso, as
quais, pelo modo como são trazidas no argumento do autor, parecem constituir, juntas, um
mesmo domínio conceitual. Apesar de os estudos discursivos orientados pela análise do
discurso francesa já terem encontrado lugar de circulação na UNICAMP na segunda metade
da década de 1970, liderados, principalmente, por Eni Orlandi (cf. ORLANDI, 1978a, 1978b
e 1979), a não distinção entre teoria do texto e teoria do discurso (indistinção, aliás, replicada
muitas vezes em outros trabalhos) indica pistas relevantes que devem aqui ser consideradas. O
objeto texto, nos moldes da mencionada teoria do texto, não se limita às estruturas linguísticas
em sua autossuficiência, mas, para além delas, relaciona-se às condições externas, as quais
abarcam o contexto interacional e as intenções comunicativas dos partícipes da interação.
Disso resulta a menção, além de texto, ao discurso, fenômeno que se materializa, por assim
dizer, no texto, entrelaçado ao domínio linguístico-frasal, constituindo-o, como se pode
observar pela passagem que segue:
como instrumento pedagógico, reflexões como as de Ilari (1976) eram pouco frequentes nesse
período.
Quadro 18 – Informações das fontes analisadas do periódico Letras de Hoje publicadas no período de
emergência da TSD
Não nos causa estranheza constatar, aqui, a existência de textos fundamentados pela
teoria da comunicação, fato também observado na análise dos textos da ALFA, tendo em vista
o clima de opinião da década de 1970, também conhecida, no campo das linguagens, como a
década da Comunicação (MIRANDA, 1971). Miranda (1971) e Pereira (1976), nesse sentido,
são exemplos de textos de diluição que apresentam uma aplicação prática dos fundamentos da
teoria da comunicação, com apoio nos preceitos basilares, principalmente, de Roman
Jakobson.
Miranda (1971), situado no início da primeira metade da década de 1970, portanto
mais distante, temporalmente, das discussões em torno da linguagem como interação,
sustenta toda a reflexão sobre a natureza da linguagem humana a partir da concepção de
língua enquanto instrumento de comunicação. Fundamentado por esse espaço conceitual, que
135
à época, nas palavras do autor, estava na moda, apresenta algumas reflexões teóricas e
algumas sugestões práticas para o ensino da produção de textos (redação).
A concepção de língua e linguagem como instrumento de comunicação é reforçada
pela tomada de posição acerca da relação entre o sistema linguístico abstrato e sua realização
individual no ato comunicativo, reflexão que interage diretamente com a abordagem
estruturalista de Saussure, para quem língua e fala são concebidas pelo ponto de vista da
dicotomia: “na Comunicação, o codificador usa um sistema conhecido, a língua nativa, mas
recria dando-lhe um tratamento próprio a que denominamos estilo” (MIRANDA, 1971, p.
75).
A despeito da indubitável orientação comunicacional, reforçada, inclusive, pelo uso
das categorias próprias do esquema comunicacional de Jakobson, Miranda (1971) traz alguma
alusão ao processo de alteridade que constitui a comunicação interpessoal: “todos os seres
humanos sempre estão vivendo em processo de comunicação, mas quem apreende não deve
ser apenas um recebedor amorfo, um ouvinte desatento, um assistente enfastiado. Ao
contrário, deve manter um diálogo vivo” (MIRANDA, 1971, p. 74). Naturalmente, de modo
geral, essa posição isolada, diante do conjunto das proposições de Miranda (1971), não lhe
garante inscrição no programa sociocultural de investigação; todavia, a menção, ainda que
sem aprofundamento ou aplicação prática direta, merece destaque nesta interpretação, tendo
em vista sua interlocução com diretrizes da TSD.
Para Miranda (1971), uma vez que a linguagem humana se fundamenta senão pela
comunicação, o ensino de “redação”, ou, em termos mais abrangentes, da produção de textos
escritos, deve “visar à Compreensão e Expressão” (p. 71). Por essa orientação, o autor aponta
algumas sugestões pedagógicas que se limitam a atividades de identificação dos elementos da
comunicação em textos verbais e não verbais. Por esse caminho, para Miranda (1971),
“alcançaremos o primeiro degrau para o planejamento das redações” (p. 78).
Influenciada pelo mesmo clima de opinião da década da Comunicação (MIRANDA,
1971), Pereira (1976) também apresenta um texto de diluição com proposições teórico-
metodológicas aplicadas ao ensino, enfatizando o eixo dos conhecimentos linguísticos.
Pereira (1976) discute sobre o potencial pedagógico do gênero textual propaganda.
Para melhor compreender a proposta de trabalho com o texto publicitário na década de 1970,
convém destacar que nesse período proposições didático-pedagógicas e a produção de
material didático (livros, apostilas e outros materiais destinados ao uso escolar) estavam, em
grande medida, alinhadas a um amplo projeto que buscava levar às aulas de Comunicação e
136
Expressão uma gama variada de linguagens. Assim, nessa década, no espaço escolar, se
juntam ao tradicional texto literário gêneros fundamentalmente multimodais, cuja organização
se constrói pelo entrecruzamento de diferentes semioses, como os quadrinhos, a charge, os
cartazes de todo tipo e, como é o caso da proposta de Pereira (1976), a propaganda (ou
“anúncio publicitário”). A ideia em voga na década de 1970 é que esses textos
26
Em textos posteriores, a autora passa a assumir o sobrenome Bortoni-Ricardo.
137
também é responsável pela construção e divulgação de teses que dariam corpo ao que hoje se
convencionou chamar de sociolinguística educacional. Desse modo, em virtude de sua
contribuição para a reflexão, no interior da linguística brasileira, sobre a condição mutável das
línguas naturais, bem como pelo seu empenho em combater as desigualdades e o preconceito
a partir do ensino de língua materna alinhado a práticas pedagógicas menos conservadoras e
mais abertas à heterogeneidade, fica evidente o papel de destaque assumido por Stella Maris
Bortoni no processo de difusão de diretrizes da TSD na pesquisa linguística brasileira.
Devido à apropriação dos fundamentos centrais da sociolinguística laboviana, Bortoni
(1978) assume o caráter de texto de diluição, apresentando, sobretudo, proposições teóricas
que encontram lugar de identificação nesse campo disciplinar. Entretanto, não se limita à
mera replicação do modelo sociolinguístico de Labov, na medida em que desenvolve uma
abrangente análise das características fundamentais do português brasileiro, além de
relacionar essa análise a apontamentos para o ensino de língua portuguesa no contexto
brasileiro da década de 1970, período em que a desigualdade social passa a se mostrar mais
evidente nas escolas brasileiras. Por esse motivo, trata-se, também, de um texto de ação cujas
proposições serão à frente, nas etapas de desenvolvimento e consolidação da TSD, aplicadas a
diversas pesquisas análogas (cf. MATTOS & SILVA, 1989; LUCCHESI, 1994).
O artigo de Bortoni (1978) foi publicado no final da década de 1970, período em que a
sociolinguística já circulava em importantes centros de pesquisa e ensino brasileiros, como a
UnB, Unicamp e a USP, por exemplo. Constituindo voz importante no coro de divulgação da
sociolinguística no Brasil, afastando-se da tradição formalista, Bortoni (1978) toma a língua
em sua constituição social e histórica: “[a língua é] uma instituição social e, portanto, ao se
proceder ao seu estudo é indispensável que se levem em conta variáveis extralinguísticas”
(BORTONI, 1978, p. 71). Assim sendo, ao encarar a língua em sua natureza mutável, situa
sua reflexão nos limites do programa sociocultural de investigação linguística.
Ao reconhecer a característica plural da sociedade brasileira, cindida entre diferentes
grupos sociais, uns mais, outros menos socialmente privilegiados e prestigiados, Bortoni
(1978) entende que o português brasileiro não pode ser compreendido pela visão dicotômica
que separa falares certos dos errados. Após breve consideração sobre como se organizam os
grupos sociais e como seus membros interpretam a língua que falam, conclui que o português
brasileiro deve ser analisado a partir de um continuum cujos extremos assim se configuram:
de um lado, um eixo mais urbano; de outro, um eixo mais rural. Os falares característicos do
eixo mais urbano, para Bortoni (1978), por questões históricas, resguardam alguns traços
138
27
Além do eixo mais urbano – mais rural, Bortoni-Ricardo (2002, 2004) propõe outros eixos, na perspectiva de
continuum, para melhor compreender como se configura o português brasileiro: mais monitorado – menos
monitorado; oralidade – letramento.
28
Amadeu Amaral já apresentara, em 1920, discussões relevantes acerca dos vernáculos, em obra cujo propósito
era descrever as especificidades do dialeto caipira (AMARAL, 1920).
139
Como aponta a passagem acima, vê-se que a língua urbana não se restringe ao falar
que goza de prestígio social, afinal, os centros urbanos, sobretudo após reincidência do fluxo
migratório do campo para a cidade, são compostos por comunidades heterogêneas. Desse
modo, fazem parte da língua urbana tanto as normas populares como a norma culta (ou
norma de prestígio). Convém destacar que a reflexão de Bortoni acerca da pluralidade
linguística do português brasileiro e, mais especificamente, das características da norma culta,
está situada na mesma década em que foram iniciados os trabalhos do projeto NURC, cujos
esforços para a descrição da norma culta brasileira são de fundamental importância para o
momento de emergência da TSD. Não é forçoso, portanto, interpretar o trabalho de Stella
Maris Bortoni como peça e ao mesmo tempo consequência do embrião de um grupo de
especialidade que estava àquela época se formando no interior da linguística brasileira.
A língua oficial consiste em um modelo abstrato cuja reprodução não se vê senão nos
compêndios normativos da gramática tradicional. Não se trata, como no caso da língua
urbana, de usos reais empiricamente observáveis em comunicações interpessoais. Trata-se,
pois, de uma diretriz linguística que espelha aquilo que se convencionou chamar de língua
correta. Assim descreve Bortoni (1978) a língua oficial:
a descrita na gramática normativa. Do fato de se basear em escritores não
contemporâneos resulta o seu distanciamento, em muitos pontos, da realidade
linguística oral e literária do Brasil. Detentora, porém, do beneplácito do sistema,
que a considera correta em detrimento de todas as outras variedades, impõe-se o seu
emprego em documentos oficiais formais, bem como o seu estudo na escola, onde o
professor a ensina, embora ele próprio não a use em sua fala coloquial (BORTONI,
1978, p. 75).
discutidas por Bortoni (como a noção de língua oficial como variante ou a ideia questionável
de “fala coloquial”), é inegável que aqui, no estágio de emergência da TSD, encontram algum
lugar de sustentação conceitual.
Por fim, convém destacar que, ao tratar dos traços distintivos das diferentes variedades
que compõem a língua portuguesa, Bortoni (1978) defende a legitimidade, estrutural e
funcional, de toda e qualquer norma linguística, seja ela culta ou popular. Ao advogar pelo
reconhecimento da lógica gramatical e comunicacional das normas estigmatizadas (sobretudo
aquelas que, tomando suas palavras, se situam na extremidade do eixo rural), contribui com o
combate ao mito da língua homogênea, pronta e acabada, num contexto conflituoso em que
prevalecia o discurso de manutenção e exaltação da “língua pátria” (cujo referente maior era a
língua portuguesa meticulosamente retirada dos cânones literários). A autora sintetiza a
questão na passagem que segue:
década seguinte, em 1981), será analisado nesta seção apenas o texto de Ataliba de Castilho,
publicado em 1978, como representativo da década da emergência da TSD no periódico em
questão.
Seguem, abaixo, as informações sobre a fonte em questão.
Quadro 20 – Informações das fontes analisadas do periódico ALFA: Revista de Linguística publicadas no
período de desenvolvimento da TSD
IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES
Título Autoria Referência
Padrões linguísticos e
Roberto Gomes Camacho Camacho (1980)
estratificação social
Norma, ideologia e teoria da
Roberto Gomes Camacho Camacho (1981)
linguagem
A interferência de fatores
sociais na aquisição da Roberto Gomes Camacho Camacho (1982)
norma culta
Leonor Lopes Fávero
Discurso e referência Fávero e Koch (1984)
Ingedore G. Villaça Koch
O sistema escolar e o ensino Roberto Gomes Camacho Camacho (1985)
145
da língua portuguesa
Ensino do português: a
Regina Maria Pessoa Pessoa (1986)
formação do professor
Coesão e coerência textual
Claudete Moreno Ghiraldelo Ghiraldelo (1989)
em composições infantis
Língua natural: enfoque
Devino João Zambonim Zambonim (1989)
sociolinguístico
Fonte: o autor, 2019
29
Trabalho intitulado Duas fases na aquisição de padrões linguísticos por adolescentes, defendido em 1978, na
Unicamp (CAMACHO, 1978).
146
Como alternativa, em seu texto de 1982, Camacho propõe que, entre outras questões, a
escola se comprometa com um ensino capaz de habilitar o aluno a compreender, com
criticidade e autonomia, os valores sociais atrelados à linguagem e à forma como eles são
construídos. Pouco tempo depois, no artigo publicado em 1985, em que traz parte das
reflexões empreendidas em sua tese de doutorado30, Camacho aprofunda as questões atinentes
ao ensino de língua portuguesa, analisando a relação entre o sistema educacional brasileiro e o
“insucesso escolar” frequentemente discutido por linguistas e educadores ao longo da década
de 1980 (cf. GERALDI, 1981 e 1984; ZILBERMAN, 1982; PÉCORA, 1983; ILARI, 1985;
SOARES, 1986; STAUB, 1987). Em linhas gerais, busca denunciar a contradição presente no
discurso do Estado, que, para o autor, tenta “sustentar a ilusão de que se dispõe no Brasil de
um sistema de ensino aberto e igual para todos” (CAMACHO, 1985, p. 1). No que tange à
30
Trabalho intitulado Conflito entre Norma e Diversidade Linguística no Ensino da Língua Portuguesa,
defendida em 1984, na UNESP (CAMACHO, 1984).
148
educação linguística, a agência que teria por função incluir, sem distinções, acaba segregando,
na medida em que
Como alternativa para lidar com esse problema latente que urge por mudança, o autor
propõe o trabalho com o modelo da diferença verbal (CAMACHO, 1985), herdado da
sociolinguística e da sociologia da linguagem, segundo o qual “diferenças de expressão
constituem, na realidade, regras variáveis inerentes ao sistema linguístico, com graus relativos
de prestígio social” (CAMACHO, 1985, p. 6), cabendo à escola adotar uma “estratégia
bidialetalista para a instrução da língua materna, pois o desenvolvimento da variedade padrão
não implica a eliminação do dialeto desprestigiado que o educando domina” (p. 6).
Ainda no interior dessa discussão acerca das raízes que justificariam os problemas que
orbitam em torno das aulas de português, Pessoa (1986) também apresenta contribuições
relevantes ao debate; todavia, concentra seus esforços em outra instância, até então não
debatida pelas fontes aqui analisadas: a formação do professor. Para a autora – professora
então vinculada ao Departamento de Educação da UNIFESP –, a entrada de teorias
linguísticas contemporâneas (que dão forma à TSD) nos cursos de Letras do país não garante,
isoladamente, a promoção de reais transformações na prática dos professores egressos desses
cursos, que continuam, em muitos casos, presos à gramática tradicional e a seus pressupostos
pedagógicos. É preciso, defende Pessoa (1986), a integração entre estudo descritivo da
linguagem e estudo de práticas pedagógicas. Trata-se, portanto, de uma mudança curricular
necessária nos cursos de formação de professores de português: “como discutir
comportamentos didáticos estreitamente relacionados a uma nova concepção de linguagem
com alunos que recebem apenas informações de teorias linguísticas?” (PESSOA, 1986, p. 13).
No interior dessa discussão, Pessoa (1986) assume a concepção de língua como
atividade social e interacional, da qual resultam práticas escolares que permitem que o aluno
tenha “condições de constituir-se locutor e, mais ainda, de constituir os outros como
interlocutores” (PESSOA, 1986, p. 12). Nesse horizonte, convém destacar a discussão
empreendida sobre a importância do ensino da oralidade, modalidade historicamente
marginalizada no espaço escolar. Nesse quesito, retomando o eixo central da discussão –
149
formação do professor –, a autora afirma que “o próprio professor não está convencido da
necessidade e da importância desse tipo de trabalho” (PESSOA, 1986, p. 13), realidade cuja
explicação reside na formação docente: “em que momento se discute com o aluno [de
graduação em Letras] o porquê da necessidade do trabalho com a linguagem oral, as razões
pelas quais este trabalho deve sempre preceder qualquer atividade de linguagem escrita?”
(PESSOA, 1986, p. 13-14).
Afastando-se das reflexões de natureza pedagógica, Zambonim (1989), por sua vez,
apresenta um texto de diluição no qual discute a visão de língua empreendida pelos estudos
sociolinguísticos desenvolvidos por importantes nomes, como Bright, Fishman, Labov,
Bernstein e Marellesi. Diferente de Camacho, que, como vimos, também se apoia no modelo
da sociolinguística e da sociologia da linguagem, Zambonim conduz a discussão assumindo
nítida retórica de ruptura, na medida em que, situado no eixo do programa sociocultural e,
consequentemente, no domínio da TSD, recusa explicitamente a tradição formalista. Destaca
que o programa descritivista, no qual está situado o empreendimento estruturalista, ao
concentrar esforços nos elementos internos, abdicando da análise dos aspectos funcionais, “vê
a língua como sistema autônomo e que só conhece sua própria ordem. Relega,
conscientemente, as variedades, considerando-as livres e sem importância ao que se propõe.”
(ZAMBONIM, 1989, p. 137). Já a sociolinguística, teoria com a qual se identifica, “ressalta o
papel dos fatores socioculturais na produção e manutenção de variáveis em suas causas e
funções” (p. 137), estando apta, dessa forma, “a fornecer um modelo de pesquisa, análise e
interpretação dos dados de uma língua natural de forma mais abrangente e satisfatória”
(ZAMBONIM, 1989, p. 141, grifos meus). O trecho em destaque ilustra o tom de crítica
constitutiva da retórica de ruptura assumida por Zambonim, reforçada em outras passagens,
como a que segue: “a ideia de uma variedade comum e representativa de toda a comunidade é
uma falácia, e a existência de um falante ideal numa comunidade homogênea, irreal, mera
abstração de analista” (ZAMBONIM, 1989, p. 142, grifos meus).
Se nos reportarmos à atmosfera intelectual do final da década de 1980, podemos
melhor compreender a construção histórica da retórica assumida por Zambonim (1989): trata-
se do momento em que a TSD já circula intensamente nos centros de pesquisa brasileiros,
assumindo o status de tradição que se consolidaria nos anos subsequentes, como veremos
adiante. Se, por um lado, textos publicados na década de 1970 e nos primeiros anos da de
1980 buscavam, com regularidade, apresentar os fundamentos da TSD enfatizando em suas
próprias concepções e metodologias analíticas, num contexto em que o programa
150
sociocultural dava seus primeiros passos no Brasil, por outro, muitos dos textos publicados na
etapa de desenvolvimento assumem uma retórica de ruptura que, como estratégia de
convencimento intencionando angariar espaço e legitimidade, se orienta estruturalmente a
partir da recusa daquilo que se julga, até certo ponto, defasado. Não raro, ainda hoje,
deparamo-nos com estratégias retóricas dessa natureza em trabalhos sociodiscursivos que,
explícita e deliberadamente, encaram a tradição formalista – sobretudo os postulados
estruturalistas e gerativistas – como a personificação de um inimigo que deve ser combatido.
Passemos para as fontes situadas no domínio dos estudos textuais. Nesse horizonte,
destaco o trabalho de Fávero e Koch (1984), duas lideranças organizacionais cuja
contribuição para a divulgação dos estudos da linguística de texto no Brasil é incontestável,
tendo em vista o quantitativo de obras propositivas, artigos e ensaios publicados acerca de
questões atreladas ao texto e à textualidade, além de palestras proferidas e mesas de que
participaram como debatedoras em eventos científicos espalhados por todo o país. Trata-se de
duas pesquisadoras que, devido ao alto potencial de elite e à idade profissional que à época já
era perceptível, foram peças fundamentais para o desenvolvimento e posterior consolidação
do grupo de especialidade em torno da linguística textual.
Fávero e Koch (1984) examinam o processo de construção de objetos de discurso em
movimentos de referenciação, partindo, para tanto, de uma articulação sistemática entre
linguística e filosofia. Assumindo uma concepção de língua como interação, compreendem o
texto como evento comunicativo em que convergem ações interlocutivas, as quais se
constituem no diálogo estabelecido entre os indivíduos, que, situados num determinado
contexto social, constroem objetos de discurso operando com estratégias textual-discursivas.
Por esse prisma, os sentidos não residem na linguagem em si mesma, tampouco no
pensamento individual de sujeitos psicológicos, mas, sim, na relação que, pela linguagem, os
sujeitos estabelecem com o mundo a partir de suas experiências e intenções. Em linhas gerais,
objetivo de seu trabalho é compreender como estudantes do primeiro grau (hoje, ensino
fundamental) “utilizam recursos de coesão e coerência na construção de textos produzidos em
determinadas situações de interlocução” (GHIRALDELO, 1989, p. 9).
Ao admitir a concepção de língua como interação, Ghiraldelo (1989), assim como
Zambonim (1989), assume clara retórica de ruptura, erguendo uma das principais bandeiras
que constituem o cerne do discurso da mudança (PIETRI, 2003): é preciso repensar o ensino
de português que, preso à gramática tradicional, “analisa a língua através de orações soltas,
desconsiderando o contexto em que estão inseridas, bem como os interlocutores”
(GHIRALDELO, 1989, p. 9). A retórica de ruptura e o tom combativo assumidos pelo autor
reforçam que, como em Zambonim (1989), a pesquisa linguística brasileira assistia ao início
da consolidação da TSD, ou seja, presenciava os primeiros indícios do cluster (MURRAY,
1994) dos grupos que, entoando o discurso da mudança, se organizavam em torno da
concepção sociodiscursiva da linguagem.
Diferentemente de linguistas com alto potencial de elite e reconhecida idade
profissional, Ghiraldelo, então estudante de mestrado pela UNESP, sob a orientação de Maria
do Rosário Gregolin, apoia-se em vários pesquisadores brasileiros (muitos deles lideranças)
de reconhecida contribuição para a TSD, autores de textos de ação que se tornaram
referências clássicas em cursos de graduação de pós-graduação em Letras, como João
Wanderley Geraldi, Rodolfo Ilari, Luiz Antônio Marcuschi, Mário Perini, além de Leonor
Lopes Fávero e Ingedore Koch, pesquisadoras que assinaram fonte analisada nesta seção. A
rede intertextual implícita e explícita costurada por Ghiraldelo (1989), composta
majoritariamente por nomes da linguística brasileira, corrobora a tese de que é na década de
1980 que se configura o pleno e acelerado desenvolvimento da TSD na pesquisa linguística
nacional.
Quadro 21 – Informações das fontes analisadas do periódico Letras de Hoje publicadas no período de
desenvolvimento da TSD
IDENTIFICAÇÃO DOS TEXTOS
Título Autoria Referência
Bernstein e a sociolinguística Delmar Steffen Steffen (1980)
Por uma gramática textual Ignacio Antonio Neis Neis (1981)
O fator cultural na compreensão da Maria Izabel S. Magalhães Magalhães e
leitura Stella Maris Bortoni Bortoni (1981)
Uma tentativa de gramática do texto
Maria da Glória Bordini Bordini (1982)
narrativo
A competência de leitura Ignacio Antonio Neis Neis (1982)
Análise da coerência textual em
Maria Izabel da Silveira Silveira (1982)
redações escolares
Por que uma linguística textual? Ignacio Antonio Neis Neis (1985)
A informatividade como elemento de
Leonor Lopes Fávero Fávero (1985)
textualidade
A situacionalidade como elemento de
Ingedore G. Villaça Koch Koch (1985)
textualidade
Ignacio Antonio Neis
Leitura de textos no 1º grau: nova José Marcelino Poersch
Neis et al (1985)
alternativa de ensino/apredizagem Lia Lourdes Marquandt
Maria Tasca
Recepção e produção textual em 5ª
Maria Eduarda Giering Giering (1985)
série do 1º grau
A história do sujeito-leitor: uma
Eni P. Orlandi Orlandi (1986)
questão para a leitura
Leitura e escrita: uma visão mais Irandé Antunes Antunes (1988)
153
produtiva
A análise do discurso na escola de Márcia C. Santos Santos e Teixeira
segundo grau Marlene L. Teixeira (1989)
Duas fontes figuram o domínio dos estudos sociolinguísticos. Tanto em Steffen (1980)
como em Magalhães e Bortoni (1981), encontra-se uma extensa discussão acerca dos
fundamentos da teoria do sociólogo britânico Basil Bernstein, particularmente no que tange à
reflexão sobre a variação linguística e sua relação com as diferenças que demarcam fronteiras
entre classes sociais. Embora tratem de questões muito próximas, os textos se posicionam de
modo distinto em relação ao empreendimento de Bernstein, assumindo, assim, diferentes tipos
de retórica. Steffen (1980), caracterizando-se como texto de diluição e assumindo uma
retórica de continuidade, apenas reproduz o quadro teórico geral apresentado em Class, code
and control (BERNSTEIN, 1971), enquanto que Magalhães e Bortoni (1981), por outro lado,
embora também diluam os fundamentos do sociólogo britânico, fazem-no como parte da
estratégia retórica orientada pela contestação.
Dos fundamentos sociolinguísticos de Bernstein apresentados pelas fontes em questão,
interessam-nos, em especial, as noções de código restrito e código elaborado ou,
respectivamente, linguagem pública e linguagem formal (BERNSTEIN, 1971). Ao
reconhecer o caráter social das línguas naturais, bem como, por consequência dele, sua
natureza fundamentalmente mutável, Bernstein observa como diferentes classes sociais
(classe operária e classe média) utilizam diferentes códigos, ou seja, como se expressam
verbalmente de modo distinto. Em linhas gerais,
a escola, ao deparar com essa língua diferente, não tendo conhecimento de teoria
linguística, nem a boa vontade para entender a natureza real do problema,
simplesmente reprova os alunos que, quer por bloqueio ou por recusa a falar a
variedade padrão da língua (entre outras razões), não aprendem o inglês [português]
padrão (MAGALHÃES e BORTONI, 1981, p. 37).
Hoje, assinam artigos publicados nesse caderno especial outras lideranças importantes para o
desenvolvimento TSD no Brasil, em especial Leonor Lopes Fávero e Ingedore Koch.
Antes da análise das fontes publicadas no volume 60, analisarei algumas fontes
publicadas na primeira metade da década de 1980, momento em que, como já apontado,
começam a surgir textos de ação e de diluição brasileiros em torno da reflexão sobre o texto
enquanto objeto investigativo. Dentre essas fontes, destaco Neis (1980), Bordini (1982), Neis
(1982) e Silveira (1982).
Tomo o artigo propositivo de Neis (1980) como um texto, ao mesmo tempo, de
diluição e de ação. Reverberam na fonte em questão os fundamentos basilares da linguística
de texto desenvolvida na Europa, particularmente a perspectiva atrelada às reflexões de Dijk
(1977) e de Schmidt (1978), motivo pelo qual compreendo o trabalho de Neis (1980) como
texto de diluição. Todavia, a diluição dos fundamentos da linguística de texto europeia serve
como ponto de apoio para proposições autorais veiculadas no texto, que, no contexto da
pesquisa linguística brasileira, passa a circular como fonte recorrente a que outros trabalhos se
reportam referencialmente (cf. FÁVERO, 2012). Por esse motivo, a que se somam o
pioneirismo e o tom propositivo do artigo, bem como a alta idade profissional e capacidade
de liderança do autor, agente fundamental no contexto de pesquisas desenvolvidas no Rio
Grande do Sul, classifico o trabalho de Neis (1980) como texto de ação.
No interior de um clima de opinião marcado pela forte presença de trabalhos
descritivos ligados à linguística estruturalista e ao gerativismo, Neis (1980) apresenta uma
visão geral dos fundamentos que engendram o empreendimento da gramática textual,
fundamentando-se, para tanto, na linguística de texto, “uma abordagem nova e atualizada no
estudo da linguagem humana” que se dedica ao estudo dos “enunciados textuais como
manifestações linguísticas nos atos sociocomunicativos” (NEIS, 1980, p. 37).
Embora inscritos no horizonte do programa sociocultural e no domínio da TSD –
tendo em vista a compreensão do texto como evento linguístico-pragmático –, os estudos
desenvolvidos tanto por Neis (1981, 1982) como por Bordini (1982) não buscam romper
absolutamente com a gramática gerativo-transformacional. Nesse primeiro momento da
linguística de texto no Brasil (KOCH, 1999), o empreendimento descritivo do gerativismo
serve como base para a construção conceitual e categorial da gramática textual, como
confirmam as passagens a seguir:
157
concepção de leitor como sujeito ativo, não como receptor/decifrador de um sentido que está
preso às estruturas linguísticas, como se pode constatar em Neis (1982):
o leitor, longe de ser passivo, intervém ativamente, formulando suas hipóteses
(explícitas ou implícitas). Pode-se afirmar que, inicialmente, sua leitura corresponde
a um projeto pré-concebido: o leitor tem hipóteses globais, talvez vagas (...).
Baseado nessas hipóteses, procura reconstruir o sentido global do texto, e a leitura
pode levá-lo a confirmar ou reformular (em parte) as hipóteses anteriores (NEIS,
1982, p. 54-55).
altura, o Brasil já contava com expressivo acervo de referências assinadas por linguistas
brasileiros, das quais podemos destacar, na qualidade de textos de ação, além do artigo
pioneiro de Neis (1980), os trabalhos de Marcuschi (1983) e Fávero e Koch (1983). Além
disso, vale destacar que em 1985 foi criado o Grupo de Trabalho Linguística de texto e
Análise da conversação, por ocasião do I Encontro Anual da ANPOLL, acontecido em
Curitiba. Essa atmosfera intelectual favorável impulsionou o avanço dos estudos textuais no
Brasil (em quantidade e em qualidade), como podemos confirmar em trabalhos publicados
nesse período na Letras de Hoje.
Em Neis (1985), diferentemente de seu trabalho pioneiro de 1980, é perceptível que o
autor promove um intercâmbio explícito com trabalhos de outras lideranças da linguística de
texto brasileira, como Marcuschi (1983) e Fávero e Koch (1983), reforçando o caráter
colaborativo do grupo de especialidade já formado à época. Outra mudança em relação ao
trabalho de 1980 reside na compreensão da linguística de texto como empreendimento já
enraizado na agenda de pesquisas brasileiras, cenário diverso daquele em que publicou seu
texto de 1980: “Até há bem pouco tempo, as pesquisas linguísticas concentravam-se quase
exclusivamente nos problemas relativos à frase ou aos componentes frasais” (NEIS, 1985, p.
7, grifos meus). A afirmação confirma que, na visão do autor, os estudos sobre o texto
representavam pauta recorrente e razoavelmente consensual na linguística brasileira da época
(segunda metade da década de 1980); a mesma afirmação não faria sentido em seu texto de
1980, tendo em vista o cenário de emergência de abordagens sobre o texto em que fora
publicado o trabalho, fato que explica o porquê da retórica de ruptura assumida pelo autor
naquele momento, bem como o tom propositivo que imprime ao artigo.
Nesse novo contexto da linguística de texto brasileira, ainda que, como no começo da
década, prevaleça a “concepção de linguagem como atuação sociocomunicativa inserida numa
situação específica de comunicação” (NEIS, 1985, p. 9), o experimento da gramática textual
perde força, cedendo lugar a investigações mais detidamente preocupadas com “os fatores
pragmáticos ligados à enunciação, ou seja, a fatores de produção, de recepção e de
interpretação de textos” (NEIS, 1985, p. 9). Para Neis (1985), trata-se do “terceiro momento
da linguística de texto no Brasil”.
Sem negar “a pertinência dos estudos que se restringem a aspectos frasais, pois muitos
fatos realmente são observáveis e descritíveis neste nível” (NEIS, 1985, p. 8), assumindo o
caráter de texto de ação, o autor propõe que
162
o objeto da linguística deve ser o estudo do texto; e como o texto é o objeto legítimo
dos estudos linguísticos, toda descrição de frases deve ser integrada numa descrição
de textos; e mais, toda descrição de sentido de elementos de um texto deve ser
realizada contextualmente (NEIS, 1985, p. 12).
No âmbito da reflexão sobre ensino, opõe-se à educação linguística que, alinhada com
os fundamentos epistemológicos da gramática tradicional, “restringe-se em geral a um
determinado registro da língua, o registro padrão da língua escrita”, desconsiderando, assim,
“as características do uso dos diferentes registros, de acordo com as diferentes situações de
comunicação” (NEIS, 1985, p. 7). A propósito do ensino da redação (ou, seguindo o princípio
da adequação, produção textual), essa ênfase atribuída à escrita modelar, encarada como
homogênea e única realidade aceitável, traduz-se numa metodologia que, excessivamente
preocupada com “a correção de desvios ortográficos e morfossintáticos”, não concede atenção
aos “problemas de coerência, de organização textual, de progressão temática” (NEIS, 1985, p.
8).
Juntam-se a Neis (1985), representando esse novo momento da linguística de texto
brasileira, os trabalhos de Fávero (1985) e Koch (1985), nos quais são discutidos os critérios
de textualidade estabelecidos por Beaugrande e Dressler (1981). Tendo em vista o
alinhamento com os fundamentos dos autores europeus, ambas as fontes assumem o caráter
de texto de diluição. Convém destacar, ainda, que os trabalhos se ligam a um projeto maior
iniciado anteriormente pelas autoras – do qual emergiram outros trabalhos (cf. FÁVERO e
KOCH, 1985) – cujo objetivo consistia num exame crítico dos critérios de textualidade.
O rumo que tomou a pesquisa em linguística de texto empreendida no Brasil até a
segunda metade da década de 1980 – da qual os textos analisados nesta seção são uma
amostra expressiva, ainda que reduzida –, marcada por intensa produtividade e intercâmbio
institucional, confirma a previsão lançada por Neis (1980), em seu texto pioneiro, para quem
os estudos textuais poderiam (e deveriam, tomando suas palavras) “constituir um novo foco
de interesse para os estudiosos da linguagem, sejam eles professores, pesquisadores, ou
estudantes de cursos de pós-graduação” (NEIS, 1980, p. 37).
Partindo para os demais volumes da Letras de Hoje publicados na segunda metade da
década de 1980, chegamos ao trabalho de Irandé Antunes, então professora da UFPE.
Assumindo clara retórica de ruptura e incorporando o discurso da mudança (PIETRI, 2003)
que marcou a reflexão sobre ensino de língua portuguesa no Brasil, com maior intensidade, a
partir da segunda metade da década de 1980, Antunes (1988) visa, em texto de ação,
163
apresentar uma “visão mais produtiva”, como anuncia no título do trabalho, sobre ensino de
leitura e escrita na educação básica.
Subjaz à reflexão empreendida pela autora a concepção de linguagem do ponto de
vista da enunciação, ou seja, como trabalho intersubjetivo processado em eventos de
interação. A natureza enunciativa da linguagem e das interações humanas que sustenta a tese
central de Antunes (1988) advém, entre outros, dos fundamentos do linguista francês Émile
Benveniste, para quem
reside nos textos: “a intervenção do leitor não se esgota pelo simples ato de „entender‟ um
sentido (supostamente) invariável, como acredita a, quase sempre, ingênua „interpretação de
texto‟ da escola” (ANTUNES, 1988, p. 54).
Como alternativa às práticas tradicionais alvos de críticas contundentes, Antunes
(1988) propõe um trabalho pedagógico que, antes de tudo, lide com a leitura e a escrita como
“partes integradas e dependentes entre si” (ANTUNES, 1988, p. 52): escreve-se para que seja
lido; lê-se porque alguém escreveu. Assim, ao assumir a concepção intersubjetiva da
linguagem, enfatizando o caráter constitutivamente colaborativo de suas práticas, a autora
compreende que tanto a leitura quanto a escrita sempre acontecem “de um sujeito a outro, de
um sujeito com outro” (ANTUNES, 1988, p. 54), devendo a escola partir desse pressuposto
basilar. Em resumo,
a solidão do escritor quanto aquela outra do leitor são apenas aparentes. O escritor
projeta o outro da interação e tem-no presente (embora, simulado ou previsto), de
modo que o encontro dos dois, (...) em nenhum momento, pode deixar de acontecer
(ANTUNES, 1988, p. 53).
No que toca ao trabalho com textos, deve o professor, defende a autora, levar para a
sala de aula aqueles “derivados da própria vida dos alunos ou da comunidade. Sem que seja
preciso „inventar‟ situações”, afinal, “os acontecimentos estão aí. Palpáveis. Por que
desperdiçá-los?” (ANTUNES, 1988, p. 57).
A natureza da reflexão empreendida no texto de ação de Antunes (1988) e o tom
combativo advindo da retórica de ruptura assumida pela autora traduzem a atmosfera da
época, final da década de 1980, momento em que, no Brasil, a reflexão sobre ensino de língua
inscrita no domínio da TSD já era pauta recorrente – resultado de ações iniciadas desde a
década de 1970, como temos discutido –, ainda que a sociedade em geral, majoritariamente
presa à tradição gramatical milenar, resistisse ao discurso da mudança (PIETRI, 2003). No
domínio da linguística nacional, por tudo até então enfatizado sobre o trabalho de Irandé
Antunes, via-se surgir indícios do terceiro momento da TSD na reflexão brasileira.
Por fim, para fechar esta década da Letras de Hoje, passo a analisar dois trabalhos –
Orlandi (1986) e Santos e Teixeira (1989) – orientados pela análise do discurso, domínio a
partir do qual são propostas reflexões de natureza teórica e, direta ou indiretamente, aplicadas
ao ensino de língua.
A reflexão de Orlandi (1986) gira em torno do lugar da leitura e do leitor no espaço
escolar. Aqui, compreende-se a leitura como um gesto imbricado a um processo de construção
165
se sabemos (...) que há essa constituição histórica do sujeito na sua relação com a
linguagem (logo, com a leitura) e se sabemos que, ideologicamente, o sujeito-leitor
se apresenta como esse sujeito capaz de livre determinação dos sentidos ao mesmo
tempo em que é um sujeito submetido às regras das instituições, como agir na escola
em relação à formação do sujeito-leitor? (ORLANDI, 1986, p. 48).
Começo pelo trabalho de Jonas Romualdo, então professor da Unicamp. Embora não
demonstre explicitamente amarras a um ou outro campo disciplinar, fica subentendido que
Romualdo (1981 e 1983) parte dos estudos sociolinguísticos para fundamentar sua
argumentação, haja vista a direção que tomam as reflexões do autor. Convém destacar que seu
texto de 1981 reproduz uma conferência pública proferida pelo linguista na Quinzena do
negro, evento promovido pela USP em 1977 (período de emergência da TSD no Brasil). É
importante trazer essa questão, principalmente, por dois motivos: pela necessária
contextualização das ideias linguísticas subjacentes à fonte analisada e por indicar que Jonas
Romualdo – assim como outros agentes dos anos de 1970 – propagou a discussão sobre
preconceito linguístico, pauta frequente até hoje.
Como temos discutido, a década de 1980 marca uma expressiva presença da
sociolinguística variacionista na agenda de pesquisas brasileiras. Nessa esfera, Romualdo
(1981 e 1983), ao discutir sobre a variabilidade das línguas naturais, se apropria de questões
centrais da teoria de Labov, na tentativa de “enxergar algumas conexões entre estratificação
social e variação dialetal do português” (ROMUALDO, 1981, p. 15-16). Entretanto, para
além do reconhecimento da evidência de que as línguas variam, a reflexão do autor reside,
mais precisamente, no funcionamento das formas de discriminação pela linguagem no jogo
ideológico das relações de poder que se estabelecem no Brasil, país marcado historicamente
por desigualdades e injustiças estruturais. Além da forte presença da sociolinguística
variacionista nas proposições autor, é possível também constatar um posicionamento
fundamentalmente sociológico subjacente à sua argumentação.
No bojo da discussão sobre as formas de discriminação pela linguagem, as quais se
vinculam a questões mais sociais que linguísticas, Romualdo (1983) propõe uma relevante
incursão pela história da reflexão sobre a linguagem, na tentativa de mostrar como as noções
de certo e errado – das quais derivam outros pares igualmente contestáveis, como bonito e
feio, rico e pobre, complexo e rudimentar etc. – estão enraizados no imaginário ocidental
desde a cultura grega, período em que “a chamada lógica oferecia os instrumentos que
168
As questões que giram em torno da discussão promovida por Romualdo (no Brasil,
desenvolvida inicialmente na segunda metade da década de 1970, vale lembrar) e por alguns
outros que, de modo pioneiro e propositivo (cf. BORTONI, 1978), se preocuparam com
questões concernentes às formas de discriminação pela linguagem (em outras palavras,
preconceito linguístico) exerceram forte influência no rumo que tomou a reflexão sobre a
linguagem e ensino de língua portuguesa no país, a julgar pelo considerável volume de
publicações, eventos científicos e cursos de atualização docente sobre o tema que eclodiram
no Brasil nos últimos, pelo menos, trinta anos.
Já no campo da pedagogia de línguas, o texto de Cagliari (1982), única das fontes do
CEL da década de 1980 que toca diretamente em questões de ensino, traz, em tom
169
falados e escritos são objetos de análise e objetivo de produção em sala de aula. Contrariando
o que costumeiramente se acreditava na opinião pública e em muitos dos materiais didáticos
de então, “a escrita não é um espelho da fala, mas uma realidade linguística à parte”
(CAGLIARI, 1982, p. 12). Defende o autor a importância de compreender que falar e
escrever constituem habilidades diferentes, ou seja, cumprem propósitos comunicativos e
interacionais distintos, abrindo, assim, espaço para um trabalho pedagógico que contempla a
flexibilidade de realizações característica da língua em funcionamento efetivo.
No horizonte dos estudos discursivo-enunciativos, três trabalhos selecionados para
esta seção figuram nesse domínio (FUCHS, 1984; SETTE, 1984; JACQUES, 1985). Desses,
dois (FUCHS, 1984; JACQUES, 1985) são traduções de textos publicados originalmente na
França, berço dos estudos discursivos. O trabalho de Catherine Fuchs, intitulado O sujeito na
teoria enunciativa de Culioli: algumas referências, foi traduzido por Letícia Robert; já o
artigo Do dialogismo à forma dialogada: sobre os fundamentos da abordagem pragmática,
assinado originalmente por Francis Jacques, ganhou versão em português advinda da tradução
de Lígia Fonseca Ferreira.
Embora tratem de questões distintas, os três trabalhos supramencionados se encontram
em alguns pontos, sobretudo no que diz respeito à reflexão sobre o processo de enunciação e o
papel dos interlocutores no ato interlocutivo. Também compartilham, por consequência do
ponto de convergência destacado, visão de língua como um processo instável e dialógico que
se constrói/reconfigura constantemente. Fuchs (1984), por exemplo, em oposição à tradição
formalista, afirma que
Já Sette (1984), também assumindo oposição explícita à tradição formalista, abre seu
artigo com uma célebre passagem de Marxismo e filosofia da linguagem, de
Volochínov/Bakhtin, importante obra que, àquela época, já circulava nos centros de pesquisa
brasileiros:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de
formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação (VOLOCHÍNOV, 1981, apud SETTE, 1984, p. 87).
Quadro 23 – Informações das fontes analisadas do periódico Trabalhos em Linguística Aplicada publicadas no
período de desenvolvimento da TSD
ensino
Níveis de detalhamento na
descrição gramatical: uma Mario A. Perini Perini (1988)
perspectiva pedagógica
Contribuições de uma gramática
do texto para o ensino de língua Maria Christina Diniz Leal Leal (1988)
materna (O caso da língua
portuguesa)
serve apenas para “ultrapassar os obstáculos construídos pela própria escola. (...) Aprende-se
a escrever na escola para a própria escola” (GERALDI, 1986, p. 24). Ou seja, o trabalho com
a escrita na escola (ou para a escola?), na grande maioria dos casos, se reduz ao cumprimento
de uma demanda artificial imposta pela própria escola, tarefa que traz como consequência a
negação do caráter interacional dos textos que circulam nas diferentes esferas de interlocução.
No tempo destinado à redação escolar, defende Brito (1986), os alunos escrevem para um
destinatário falseado, artificial, tendo o professor como único interlocutor presumido, uma vez
que, no fim, o produto de sua escrita estará sujeito à avaliação. Nas próprias palavras de Brito
(1986, p. 154-155),
dentro da situação escolar existem relações muito rígidas e bem definidas. O aluno é
obrigado a escrever dentro de padrões previamente estipulados e, além disso, o seu
texto será julgado, avaliado. O professor, a quem o texto é remetido, será o principal
– talvez o único – leitor da redação. Consciente disto, o estudante procurará escrever
a partir do que acredita que o professor gostará. Mais precisamente, fará a redação
com base na imagem que cria do “gosto” e visão de língua do professor. Serviço à la
carte.
Enquanto Brito (1983) não indica ações explícitas para a resolução do problema
inerente à prática de redação escolar – é possível, entretanto, pressupô-las –, Geraldi (1986),
que se dirige diretamente a professores do ensino básico 31, aponta caminhos exequíveis com
vistas a um trabalho transformador com a escrita na (e não apenas para a) escola,
confirmando o caráter propositivo de seu texto de ação. Assim, Geraldi (1986) frisa a
necessidade de se compreender que:
a) a sala de aula é um espaço físico como qualquer outro (o escritório, a casa, etc.) e
nela é possível escrever;
b) a aula de redação não é mais do que espaço temporal, aproveitável ou não, para
iniciar um processo de interlocução à distância (...);
31
O texto analisado, Prática de produção de texto na escola, é fruto da conferência proferida por João
Wanderley Geraldi no III Encontro de professores de redação do estado do Rio de Janeiro, ocorrido em 1985.
178
composta por textos de sua autoria (FRANCHI, 2006) reforçam a importância do seu legado
para a linguística brasileira. No que concerne à história da TSD no Brasil, convém destacar,
ainda, que lideranças organizacionais importantes para o desenvolvimento (e para a
consolidação, posteriormente) dessa tradição, como Sírio Possenti e João Wanderley Geraldi,
foram orientadas por Carlos Franchi, de quem, pode-se dizer, sofreram forte influência no que
tange à reflexão sobre linguagem e ensino32. Como reforça Possenti (2006, p. 9), é preciso
“fazer justiça a Carlos Franchi, cujas ideias sobre ensino são frequentemente repetidas sem
que se diga ou se saiba de onde vieram”, ratificando a importância do linguista, enquanto
liderança intelectual, por vezes esquecida ou desconhecida. A esse respeito, João Wanderley
Geraldi, resgatando memórias da trajetória de Franchi, confirma uma de suas marcas
características que de algum modo pode explicar parte do desconhecimento que paira sobre a
produção do linguista: “ele tinha uma grande formação, mas sempre se recusou a correr atrás
de „papers‟ e de publicação”33. Se, de um lado, Franchi foi peça-chave na formação intelectual
do grupo de especialidade emergente na Unicamp, de outro, a tarefa de divulgação sistemática
de resultados de pesquisas – em artigos, ensaios, livros e conferências – ficou a cargo de seus
orientandos e parceiros, agentes que, nesta narrativa, estou chamando de lideranças
organizacionais.
Em Franchi (1987), deparamo-nos com uma versão reformulada de um trabalho de
mesmo nome – Criatividade e Gramática –, que, segundo o autor, circulava em versão
mimeografada, servindo de apoio para discussões em diferentes contextos acadêmicos. Essa
nova versão, destinada explicitamente aos “professores que ainda insistem em ser professores,
apesar de tudo” (FRANCHI, 1987, p. 5), apresenta linguagem menos técnica e estrutura
argumentativa mais dialogada. O artigo em questão é notadamente do tipo texto de ação,
tendo em vista o tom propositivo que assume. O reconhecimento da natureza de ação da fonte
se confirma pelo fato de o texto ter servido como material referencial em ação do Governo do
Estado de São Paulo, que, em 1991, publicou o trabalho na íntegra, visando possibilitar ao
“professor de língua materna aprofundar e compreender melhor o enfoque da Proposta
Curricular para o Ensino de Língua Portuguesa – 1º grau” (SÃO PAULO, 1991, p. 5). Além
disso, em 2006, o texto de Franchi foi publicado na obra Mas o que é mesmo “Gramática”?,
32
É honesto destacar, ainda, a importância de Haquira Osakabe, a quem Sírio Possenti e João Wanderley Geraldi
devem as primeiras orientações no curso de mestrado e com quem interagiram diretamente enquanto docentes e
pesquisadores do IEL. Osakabe foi, sem dúvidas, protagonista direto de discussões sociodiscursivas
empreendidas na Unicamp, sendo sua obra Argumentação e discurso político (1979) uma das responsáveis pela
divulgação de pesquisa brasileira em torno de questões do texto e do discurso.
33
Depoimento relatado no Jornal da Unicamp. Ano XV, nº 161, de 2001. Disponível em:
www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/set2001/unihoje_ju166_tema05.html, acesso em 09/09/2019.
181
organizada por Sírio Possenti, reforçando ainda mais a relevância do autor e a natureza da
fonte enquanto texto de ação.
A discussão de Franchi (1987) gira em torno da gramática e seu ensino na educação
básica. O autor parte da ideia de que é papel da escola exercitar a capacidade criativa do
estudante através de atividades de reflexão sobre a linguagem. Lançada a questão, indaga que
concepção de gramática daria conta da tarefa de proporcionar ao aluno diferentes formas de
significar a realidade através da linguagem, prática à qual está pressuposto o trabalho com a
criatividade.
Naturalmente, a julgar pela data de publicação da fonte, o trabalho de Franchi (1987)
se situa no contexto conturbado, dentro e fora dos centros de pesquisa linguística, em que
surgem questionamentos sobre o papel da escola no trabalho com a gramática – “Deve-se ou
não ensinar gramática? Se sim, que gramática?”. Como coloca o linguista, a década de 1980
vivenciou a emergência de críticas que apontavam a “insuficiência das noções e
procedimentos da gramática tradicional; a inadequação dos métodos de ensino da gramática; o
fato de que essa gramática não é relacionada a um melhor entendimento dos processos de
produção e compreensão de textos” (FRANCHI, 1987, p. 5). Entretanto, em alguns casos, não
vindo acompanhadas de “reflexões amadurecidas e bem informadas”, muitas dessas críticas,
aparentemente sob o rótulo de mudança paradigmática – rejeição da gramática –, caíam na
“inconsequência de uma prática „envergonhada‟ dos mesmos exercícios antigos sob outras
capas” (FRANCHI, 1987, p. 5).
Para pensar na gramática e sua relação com a criatividade, Franchi (1987) adota uma
visão de língua interacional, fundamentada na e pelas funções que esta assume nas interações.
Disso resulta uma posição de ruptura assumida pelo autor, que se opõe, para pensar na língua
e na linguagem, aos pressupostos da tradição formalista, em especial aos empreendimentos
estruturalista e gerativista. A passagem que segue sintetiza o modo como Franchi (1987) se
posiciona no interior da TSD, assumindo, nesse movimento, uma retórica de ruptura:
Em primeiro lugar, as línguas naturais não são sistemas tão sistemáticos como
pensaram os estruturalistas: cada ato de fala é sempre um ato de opção sobre um
feixe de possibilidades de expressão que o sujeito correlaciona às condições
variáveis da produção do discurso. Em segundo lugar, as regras da linguagem não
possuem, no geral, uma necessidade biológica ou lógica: sua regularidade tem um
fundamento social e antropológico e a obediência a elas tem um fundamento
funcional. Por isso essas regras podem ser alteradas, sobretudo quando o sujeito
investe de significação recursos expressivos não necessariamente "catalogados" ou
"codificados" (FRANCHI, 1987, p. 12).
182
O estudo da gramática em salas de aula, portanto, deve tomar como base fundamental
a relação entre língua e práticas sociais significativas, uma vez que
variacionista e interacionista não se confundem, ainda que dialoguem. Como aponta Bortoni
(1988, p. 2),
enquanto o objeto da primeira circunscreve-se, basicamente, à descrição quantitativa
da variação linguística, inter e intraindividual, na segunda, o método heurístico é
interpretativo e seu objeto, o estudo do papel que as estratégias comunicativas
desempenham no processo de produção e reprodução da identidade social na
interação humana.
Para fechar esta seção da TLA, passemos à análise de duas fontes que dialogam
diretamente: Perini (1988) e Leal (1988). O texto de Mário Perini, como adiantei acima,
reproduz sua fala no I Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada, em que discutiu
concepções de gramática e algumas implicações pedagógicas; Leal (1988), também
participante do congresso, segue caminho análogo, ainda que não tenha composto a mesa em
que Perini expôs seu trabalho. As duas fontes traduzem o clima de opinião em que a discussão
sobre educação linguística acontecia no Brasil, dentro e fora da universidade, no qual a
pergunta que gramática ensinar na escola? era recorrente.
Pode-se dizer que Perini (1988) representa um texto de ação que dá continuidade às
proposições de renovação da gramática tradicional adotada na escola lançadas pelo autor,
mais precisamente em 1985, em sua obra Para uma nova gramática do português. Para Perini
(1988), o trabalho com a gramática tradicional na escola se compara a um programa de
geografia que “se propusesse como objetivo levar alunos do primeiro grau a um conhecimento
total da topografia de determinada parte do globo” ou a um programa de química que
“pretendesse capacitar os alunos a analisar totalmente certo número de substâncias, algumas
delas complexas” (PERINI, 1988, p. 23). Em outras palavras, espera-se de um programa de
gramática, tal como é frequentemente trabalhado, que
a certa altura dos estudos os alunos sejam capazes de classificar com segurança
todas, ou praticamente todas, as palavras da língua; e que sejam capazes de analisar
qualquer frase em seus termos e funções sintáticas. Espera igualmente que um
graduado em Letras seja capaz de fazer tudo isso, e mais alguma coisa, como poder
julgar da „correção‟ de qualquer construção encontrada em redações de seus alunos.
Acho que isso equivale, em termos de didática, a colocar no mesmo nível conhecer o
Himalaia e conhecer o Morro do Pinto (MG) (PERINI, 1988, p. 23).
Perini (1988) defende que certos aspectos descritivos e certas análises de natureza
metalinguística da língua deveriam se restringir a profissionais da linguagem, não a estudantes
da educação básica cuja demanda primeira reside no domínio de habilidades necessárias à
comunicação diária. E vai adiante, ao defender que “o estudo da gramática não tem
finalidades de aplicação prática imediata, em especial aplicações ao desenvolvimento das
habilidades de leitura e redação” (PERINI, 1988, p. 24). Acredita que o conhecimento sobre a
gramática serve como bem cultural, uma informação necessária à formação intelectual e
histórica do aluno, “como a de que Colombo descobriu a América em 1492” (PERINI, 1988,
p. 24).
186
uma reação de insegurança quanto ao trato com a gramática que se manifesta, muitas
vezes, em orientações pedagógicas como „não se pode ensinar gramática‟ (...), nas
quais parece haver uma intenção velada de se alijar a gramática do âmbito do ensino,
como se o problema pudesse ser resolvido desta forma (LEAL, 1988, p. 139).
187
34
Na seção dedicada aos trabalhos da revista Letras de Hoje publicados na década de 1980 (5.3.1.2), analisei
fontes em que a proposta da gramática textual aparece definida precisamente. Vide, por exemplo, Neis (1981) e
Bordini (1982).
188
Quadro 24 – Informações das fontes analisadas do periódico ALFA: Revista de Linguística publicadas no
período de consolidação da TSD
Ao reconhecer que o trabalho da compreensão “é, antes, uma habilidade prática para
interpretar um contexto” (CAMACHO, 1992, p. 14), Camacho, apoiando-se diretamente na
teoria dialógica da linguagem, destaca que o “essencial da tarefa de descodificação não
consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto preciso,
compreender sua significação numa enunciação particular” (BAKHTIN, 1979, p. 79 apud
CAMACHO, 1992, p. 14). Para o linguista, a escola, ao insistir em práticas engessadas e
pouco produtivas do ponto de vista do exercício enunciativo da linguagem, tem recusado a
natureza fundamentalmente dialógica da compreensão, atitude que de algum modo justifica a
“'crise de leitura' consubstanciada em deficiências reais do sistema de ensino” (CAMACHO,
1992, p. 22). Grosso modo, a prática da leitura em sala de aula com a qual Camacho (1992)
busca romper se traduz
interacional, ou seja, produzem-se textos com intenções específicas e para agir sobre o outro.
Nesse sentido, defende Gregolin (1993) que a prática com a produção de textos na escola
deve levar em conta a natureza interacional da linguagem, permitindo ao aluno compreender
que “as marcas linguísticas que estruturam um texto guiam o leitor para a interpretação
semântica dos sentidos em uma determinada direção argumentativa” (GREGOLIN, 1993, p.
26). Em outras palavras, a escola deve enfatizar que as escolhas linguísticas, quando da
produção de textos, afetam diretamente o modo como o outro da interlocução interpreta o
dizer a ele direcionado, uma vez que “a significação deriva de instruções fornecidas por
elementos linguísticos em relação à sua situação discursiva” (GREGOLIN, 1993, p. 27).
Consequentemente, a prática da leitura envolve um trabalho ativo do leitor, que, a partir de
pistas linguísticas, aciona conhecimentos de mundo que tem armazenado na memória
(GREGOLIN, 1993). Em suma, na leitura, “os sentidos de um texto são construídos por
fatores linguísticos, cognitivos, culturais e interacionais” (GREGOLIN, 1993, p. 26).
Por fim, Gregolin (1993) encerra a discussão ratificando a importância do ensino de
língua portuguesa orientado por uma perspectiva textual-discursiva como condição para que a
escola cumpra seu papel: “se o professor conseguir mostrar ao aluno os mecanismos de
construção dos sentidos do texto, certamente estará no caminho que poderá levá-lo a
interpretar e a construir os seus textos com eficiência e espírito crítico” (GREGOLIN, 1993,
p. 30).
Passemos para as considerações sobre o trabalho de Maria Helena de Moura Neves e
sua importância para a consolidação de pautas sociodiscursivas na pesquisa linguística
brasileira. Então professora do curso de Pós-graduação em Letras da UNESP, Maria Helena
de Moura Neves assume na década de 1990 o importante papel de liderança que, através de
obras, palestras, artigos e orientações de teses e dissertações, contribuiu sobremaneira com a
divulgação e consolidação, no Brasil, da abordagem funcionalista da linguagem,
empreendimento que, à época, começava a ganhar força no interior do debate linguístico
brasileiro.
Em Neves (1993), a autora, através de texto de ação marcado por acentuada
objetividade, visa provocar algumas reflexões sobre “o tratamento que se tem dado à
gramática nas aulas de 1º e 2º graus” (p. 91). A linguista parte do pressuposto de que o ensino
da gramática na escola é atravessado por uma série de incertezas por parte do docente, que,
seguindo uma tradição gramatical sedimentada, continua, com auxílio do livro didático,
adotando-a acriticamente. Em pesquisa que realizou com 170 professores do ensino médio,
196
Neves (1993) verificou “que 100% deles „ensinam‟ gramática” (p. 92), ainda que muitos
tenham afirmado que “essa gramática „não está servindo para nada‟” (NEVES, 1993, p. 92).
Ou seja, a despeito do reconhecimento das limitações da pedagogia tradicional, “os
professores mantêm as aulas sistemáticas de gramática como um ritual imprescindível à
legitimação de seu papel” (NEVES, 1993, p. 92).
Ao apontar problemas que orbitam em torno do ensino de língua baseado
fundamentalmente na gramática tradicional (materializada nos livros didáticos), Neves (1993)
enumera, entre eles, dois que, para a autora, trazem problemas mais agravantes: (i) a divisão
da aula de língua portuguesa em três momentos distintos e desassociados – “redação, leitura e
gramática, como se esses fossem mundos à parte” (NEVES, 1993, p. 94); e (ii) o trabalho com
a metalinguagem como “um caminho autônomo para o fim último pretendido pela escola no
nível médio (com alunos de dez a dezoito anos)” (NEVES, 1993, p. 94). Como alternativa
para o caso (i), defende um ensino de língua que, observando o funcionamento da linguagem
em situações autênticas de interação, articule as práticas de leitura, escrita e conhecimentos
linguísticos; afinal, de um lado, “a gramática da língua está implicada na redação e na leitura;
de outro lado, leitura e redação são apenas duas direções de um mesmo fato, exatamente a
atuação linguística, a qual se rege pela gramática” (NEVES, 1993, p. 94). No caso (ii), a
autora não propõe a exclusão do exercício metalinguístico – atividade, aliás, “indispensável à
construção do saber sobre a língua (pelo menos tão legítimo quanto todos os outros saberes
sobre os demais objetos que a escola oferece)” (NEVES, 1993, p. 94) –, mas defende que a
escola não deve tomá-lo como propósito último da análise linguística, abdicando da
observação dos fenômenos linguísticos como resultado do processo de interação estabelecido
na e pela linguagem em uso.
Em suma, assumindo uma concepção de língua como unidade linguístico-pragmática-
funcional que serve aos propósitos interacionais de indivíduos que, na interação, agem uns
sobre os outros, Neves (1993) entende que
ratifica a questão na passagem que segue, com a qual me identifico ao pensar na noção de
tradição sociodiscursiva que tenho defendido:
Recentemente, uma polêmica que envolveu no Brasil representantes típicos das duas
correntes, o funcionalismo e o gerativismo, atualmente em competição aqui e no
exterior, pode servir de caso exemplar da disputa pela hegemonia paradigmática. A
polêmica iniciou-se com um artigo de Votre & Naro (1989), em que consideram
duas hipóteses fundamentais: a de que a forma linguística deriva de seu uso no
processo real de comunicação e a de que a estrutura gramatical é dependente das
regularidades das situações de fala, constituindo, então, objeto probabilístico, ambas
opostas ao formalismo representado pela gramática gerativa (CAMACHO, 1994, p.
22).
É no seio dessa discussão que surge a proposta de estudo do sistema linguístico sob
orientação funcionalista – uma gramática funcional –, como apontam Neves (1994 e 1997) e
Castilho (1994). Constituindo-se como “uma teoria geral da organização gramatical de
línguas naturais que procura integrar-se em uma teoria global de interação social” (NEVES,
1994, p. 112), a gramática funcional se afasta “da sintaxe gerativa, que interpreta a língua
como uma atividade mental, e da Sintaxe Estrutural, que a interpreta como um sistema”
(CASTILHO, 1994, p. 76). Grosso modo, em sua especificidade, a gramática funcional
integra à descrição sistêmica elementos pragmáticos advindos da interação verbal (NEVES,
1997).
Ainda que, como se vê, a abordagem funcionalista concentre esforços no estudo da
linguagem como atividade interacional, a proposta de uma gramática funcional não exclui de
seu quadro descritivo a análise dos elementos estruturais da língua. Trata-se, na verdade, de
uma teoria sobre a linguagem que parte da exterioridade para compreender como os sistemas
linguísticos, do fonético ao sintático, se organizam estruturalmente: “a correlação não
biunívoca entre funções e estruturas explica a natural heterogeneidade das línguas”
201
(CASTILHO, 1994, p. 76-77). Em outras palavras, estamos falando de “uma teoria segundo a
qual a multiplicidade funcional se reflete na organização interna da língua, e a investigação da
estrutura linguística revela, de algum modo, as várias necessidades a que a linguagem serve”
(NEVES, 1994, p. 110). Sem recusar a sistematicidade da estrutura, mas compreendendo-a
sob a influência dos elementos discursivo-pragmáticos próprios da práxis interacional,
defende-se, nessa abordagem, “uma relação entre gramática e discurso que entende que o
comportamento sintático-semântico pode ser mais bem explicado dentro de um esquema que
leve em conta a interação de forças internas e externas ao sistema” (NEVES, 1997, p. 22).
A respeito dessa relação entre estrutura e função, Castilho (1994) reconhece a
existência de dois tipos de funcionalismo: um radical e outro moderado. O primeiro,
compreendendo a determinação absoluta dos elementos discursivo-pragmáticos, enfatiza “as
pressões icônicas do discurso sobre a gramática, negando existência à sintaxe” (CASTILHO,
1994, p. 77); já o segundo, moderado, com o qual o autor se identifica e do qual se apropria,
“defende a confluência de fatores estruturais e discursivos sobre a sintaxe” (CASTILHO,
1994, p. 77). Também adepta de um funcionalismo do segundo tipo, Neves (1997) propõe,
com apoio em Du Bois, a ideia de gramática como conjunto de “sistemas adaptáveis”, isto é,
“sistemas parcialmente autônomos (por isso, sistemas) e parcialmente sensíveis a pressões
externas (por isso, adaptáveis)” (NEVES, 1997, p. 22).
Desse funcionalismo moderado emerge um programa de pesquisa que investiga os
processos de gramaticalização, admitindo, nesse trabalho, que “a língua se compõe de três
sistemas: o sistema semântico, o sistema sintático e o sistema discursivo, todos eles
articulados pelo léxico” (CASTILHO, 1994, p. 76). Nesse domínio, a gramática funcional
descreve fenômenos linguísticos que residem, por exemplo, na ordenação de palavras, como
nos casos de topicalização, extraposição e apassivação (NEVES, 1994).
Para fechar esta seção de análise de fontes da ALFA, consideremos, agora, o trabalho
de Gregolin (1995). A fonte em questão, diferentemente do que se tem visto até então na
década em estudo, traz a diluição de fundamentos da análise do discurso, particularmente das
vertentes greimasiana e pecheutiana, visando discutir alguns fundamentos desse domínio no
interior dos estudos linguísticos.
É interessante observar que, a despeito dos indícios de uma consolidação da TSD
nesse período e da razoável discussão empreendida em torno de questões discursivas desde a
década de 1980, Gregolin (1995) enxerga a análise do discurso como “um campo de estudos
em formação, cujas fronteiras não estão ainda claramente delimitadas” (p. 13). Embora
202
reconheça que esse tipo de trabalho de natureza discursiva tenha angariado força e prestígio
nos últimos anos, a autora destaca que “não se pode dizer, ainda, que [a AD] se constitua em
um campo claro de estudos” (GREGOLIN, 1995, p. 13). Tais afirmações vão ao encontro da
própria natureza do discurso enquanto objeto investigado por esse domínio: heterogêneo,
poroso, em constante construção. Devido ao caráter escorregadio do discurso, múltiplas
abordagens, ao longo do tempo, buscaram descrever, a partir de diferentes recortes, as
características imprecisas desse objeto histórico e ideológico. E esse cenário se mantém,
pode-se dizer, até os dias de hoje.
Para Gregolin (1994), embora seja possível identificar diferentes (e, em alguns casos,
contrastivos) empreendimentos teórico-metodológicos que se dedicam ao estudo do discurso,
pode-se definir um lugar comum para o qual convergem todas essas abordagens. Assim, “o
que as unifica (...) é o fato de tomarem o seu objeto do ponto de vista linguístico e de
procurarem, no texto, o estudo da discursivização” (GREGOLIN, 1995, p. 14). Ou seja, a
análise do discurso, para a autora, seja qual for, busca na materialidade de linguagem (no
texto) o acesso aos processos de produção do discurso (a discursivização). Em suma,
trabalhando com o texto como unidade em que se materializa(m) o(s) discurso(s), “através da
Análise do Discurso é possível realizarmos uma análise interna (o que este texto diz?, como
ele diz?) e uma análise externa (por que este texto diz o que ele diz?)” (GREGOLIN, 1995, p.
17).
Naturalmente, a análise do texto e de seus processos de discursivização se dá a partir
do resgate das condições de produção nas quais tomam forma. Desse modo, investiga-se o
texto em sua relação com a ideologia, analisando-se, portanto, ao mesmo tempo, “o campo da
língua (suscetível de ser estudada pela Linguística) e o campo da sociedade (apreendida pela
história e pela ideologia)” (GREGOLIN, 1995, p. 17). Dessa maneira, a discussão sobre a
ideologia torna-se indispensável na medida em que “o discurso é um dos aspectos da
materialidade ideológica” (GREGOLIN, 1995, p. 18). É a ideologia que, por essa perspectiva,
permite ao sujeito, na prática com a linguagem, significar e significar-se. Aqui, entende-se
ideologia como
As fontes selecionadas para esta seção de análises da Letras de Hoje ilustram alguns
deslocamentos promovidos pela revista em relação aos trabalhos publicados na década
anterior. Como vimos (cf. 4.2.2), trabalhos em linguística de texto, sobretudo aqueles
inseridos no primeiro momento desse empreendimento no Brasil – caracterizado pela
construção dos fundamentos de uma gramática textual – constituíram o núcleo da produção
da Letras de Hoje na década de 1980. Agora, nos anos de 1990, trabalhos em análise do
discurso marcam fortemente a identidade do periódico, que traz uma variedade de pesquisas
desenvolvidas por autores com diferentes níveis de idade profissional (MURRAY, 1994).
Além de estudos sobre o discurso, figuram nesta década, também, textos de ação em que se
discutem questões centrais da educação linguística, como o lugar do texto falado nas aulas de
português e a concepção de texto e suas implicações para a avaliação da aprendizagem em
leitura e produção textual.
Segue, abaixo, a relação das fontes analisadas.
Quadro 25 – Informações das fontes analisadas do periódico Letras de Hoje publicadas no período de
consolidação da TSD
IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES
Título Autoria Referência
Português falado e ensino de
Ataliba Teixeira da Castilho Castilho (1990)
gramática
Texto: um problema para o João Wanderley Geraldi Geraldi (1990)
204
exercício da capatazia
Uma introdução à análise do
Aracy Ernst Pereira Pereira (1991)
discurso
Uma aplicação da análise do
discurso à leitura e análise de Regina Maria Varini Mutti Mutti (1991)
textos
Elementos de Análise do Discurso
para uma epistemologia da Valdir Flores Flores (1997)
Linguística
Sujeito do inconsciente e
interdiscursividade: observações Yeda Swirski de Souza Souza (1997)
sobre a interseção dos conceitos
O objeto língua: unidade
constituída pela ausência:
Marlene Teixeira Teixeira (1999)
repercussões para uma abordagem
do discurso
Fonte: o autor, 2019
gramatical adotada em sala de aula, que, essencialmente excludente, não dava conta de
promover um ensino transformador e democrático. Os efeitos da TSD ainda eram incipientes
para além de centros de pesquisa no começo da década; desse modo, o ensino tradicional,
baseado numa concepção de língua homogênea, espelho da escrita literária pregressa, ainda
prevalecia em muitas das escolas brasileiras, como assinala Castilho (1990):
um leque de escolhas possíveis” (CASTILHO, 1990, p. 120). Partido desse ponto de vista
funcional sobre a língua,
Agrupando os fenômenos linguísticos num quadro dinâmico que vai da língua falada
para a língua escrita, do discurso para a sintaxe, do texto para a oração e desta para a
palavra, poderão os professores resgatar o verdadeiro interesse da reflexão
gramatical para a formação da capacidade de observar e do espírito crítico de seus
alunos, conduzindo-os a considerar as propriedades da língua numa forma integrada,
não „descolada‟ do momento discursivo que as gerou (CASTILHO, 1990, p. 133).
operadas. Nesse sentido, “o leitor, sua história, suas construções de sentido, no momento da
leitura, situação, contexto, etc. passam a ser „o sentido desta leitura deste texto‟”. (GERALDI,
1990, p. 158). Em outras palavras, diferentemente da concepção anterior, “a natureza
polissêmica do texto não é atribuída apenas ao texto, mas às leituras dos diferentes leitores”
(p. 158). Ainda que se considere a relação do texto com a exterioridade, ou seja, com as
condições de sua produção e recepção, entrega-se ao leitor a responsabilidade da leitura, que,
nesses termos, pode ser “qualquer leitura”.
Por fim, Geraldi (1990) propõe uma terceira perspectiva. Dessa vez, enfatizando-se o
caráter interacional da leitura e sua relação com a produção de texto – afinal, lê-se porque
alguém escreveu; escreve-se para que alguém leia –, entende-se que os sentidos não residem
no texto, bem como não são construídos (apenas) pelo leitor e suas referências, mas, por outro
lado, são produtos da relação entre interlocutores a partir da unidade textual, que lhes permite
interagir. Em suma,
o autor de um texto opera com a linguagem que não é só dele. Por isso, pertencente
a uma mesma comunidade interpretativa, pode calcular as leituras possíveis dos
leitores virtuais de seu texto. Escrever, neste sentido, é fornecer pistas ou instruções
de leitura. Ler é buscar, através das pistas fornecidas, o sentido ou os sentidos que o
autor pretendeu comunicar. Nem sempre, evidentemente, o sentido produzido pela
leitura corresponde ao sentido que o autor gostaria de ter transmitido. E isto não é
problema. Na linguagem, encontram-se sujeitos. Na construção dos sentidos, os
sujeitos se constituem (GERALDI, 1990, p. 159).
Nessa direção, o trabalho com a avaliação, tal como a linguagem, toma uma dimensão
discursiva. “Trata-se, agora, de reconstruir, face a uma leitura e um texto, a „caminhada
interpretativa‟ do leitor. (...) O importante é descobrir o porquê este sentido foi construído: a
partir de que „pistas‟, operando com que inferências (...)” (GERALDI, 1990, p. 159). O
professor, por esse caminho, torna-se “interlocutor ou mediador entre o objeto de estudos
(produção e leitura de textos) e a aprendizagem que se vai concretizando nas atividades de
sala de aula” (GERALDI, 1990, p. 160).
É evidente a natureza de texto de ação do artigo de Geraldi (1990), na medida em que,
partindo da concepção de linguagem como interação, introduz na discussão sobre a avaliação
da aprendizagem em língua portuguesa uma abordagem discursiva condizente com a natureza
discursiva da linguagem em funcionamento, objeto de estudo no espaço escolar. A fonte ora
analisada reforça a importância do autor para a divulgação e o fortalecimento da discussão
sobre educação linguística que parte de uma abordagem sociodiscursiva da linguagem e dos
sujeitos que dela fazem uso.
209
As próximas fontes serão analisadas em paralelo, uma vez que lidam com questões
que se entrecruzam e se inscrevem, todas elas, no domínio da análise do discurso. Pereira
(1991), Mutti (1991), Flores (1997), Souza (1997) e Teixeira (1999), em textos de diluição,
discutem aspectos atrelados ao discurso e à epistemologia da análise do discurso, domínio
que, como se pode perceber, angariara à época expressivo alcance institucional, consolidando-
se no circuito de discussão linguística brasileira.
Tanto Pereira (1991) como Flores (1997) analisam a emergência da AD no contexto
intelectual em que, no interior da linguística ocidental, a hegemonia construída pela tradição
formalista começava a ser questionada, movimento que culminou, segundo Pereira (1991),
numa “transição epistemológica no campo da ciência linguística” (p. 7). Nesse contexto
caracterizado por uma “crise de identidade da linguística moderna”, a AD assumiu, na
interpretação de Flores (1997), “a „voz‟ que verbaliza a crise do paradigma estrutural na
linguística” (p. 49). Configurou-se, desse modo, um empreendimento estabelecido com o
“intuito de escapar ao esgotamento provocado por um estudo que se enclausura num sistema
imanente” (TEIXEIRA, 1999, p. 39). Nessa atmosfera caracterizada por deslocamentos
epistemológicos e pela reconfiguração do domínio de estudos da linguagem, a AD buscou
resgatar os elementos marginalizados por consequência do corte saussureano; afinal, como
aponta Teixeira (1999), da dicotomia língua x fala emerge um problema fundamental, que
coube às teorias sociodiscursivas solucionar: “ainda que todas as precauções para delimitar
um campo como estritamente linguístico sejam tomadas, encerrando-se a língua nela mesma,
isso que a excede inevitavelmente retorna ao próprio objeto, pois só tem existência nele”
(TEIXEIRA, 1999, p. 31).
Convém destacar que, embora assuma protagonismo na derrubada da hegemonia
formalista, segundo defendem os autores, o projeto da AD não se confunde com um
empreendimento linguístico em sentido estrito: “o objeto da AD (...) diferencia-se do objeto
da linguística, em primeiro lugar, porque o objeto teórico específico da AD é o discurso (...) e
o da linguística é a língua” (PEREIRA, 1991, p. 18). Ou seja, ainda que parta da linguagem
enquanto forma material de acesso ao discurso, segundo Pereira (1991), a AD não se dedica
ao estudo descritivo da língua em si mesma, posição a qual Flores (1997) corrobora.
Tomando-se a perspectiva discursiva de Michel Pêcheux, teoria diluída por Pereira (1991),
pode-se dizer que “o objetivo da AD é mostrar a vinculação entre linguagem e ideologia”
(PEREIRA, 1991, p. 11), tarefa que “extrapola o campo linguístico, na medida em que busca
determinação do sentido também no campo sócio-histórico e psicanalítico” (p. 10).
210
Naturalmente, embora não vise construir uma teoria descritiva dos fenômenos
estritamente linguísticos, a AD, em suas diferentes vertentes, lida diretamente com a
linguagem, uma vez que é nela que os processos discursivos se manifestam materialmente.
Para a análise do discurso francesa preconizada por Michel Pêcheux, por exemplo, a língua
“passa a ser o lugar material dos confrontos sociais e a condição de se atribuir aos discursos
determinados efeitos de sentido” (FLORES, 1997, p. 52). Assim, em contraposição à
concepção estruturalista, que exclui os elementos que residem na exterioridade do sistema
imanente, a língua “deixa de ser vista como um sistema ideologicamente neutro para ser
entendida na realidade do discurso, ou seja, materialidade atravessada por posições subjetivas
e sociais” (FLORES, 1997, p. 57). Esse pensamento se aproxima da concepção de Authier-
Revuz, para quem, segundo Teixeira (1999), a língua, do ponto de vista discursivo, é
essencialmente constituída “pela falta daquilo que a linguística teve que abandonar para se
configurar como ciência. Isso que falta insiste na língua, comprometendo a regularidade”
(TEIXEIRA, 1999, p. 34).
Ao analisar a linguagem em relação com os elementos de sua exterioridade, a AD,
inevitavelmente, traz para o centro de sua discussão sobre o discurso a figura do sujeito,
elemento anulado pela tradição formalista por ocasião do corte saussureano. Souza (1997),
em texto de diluição, discute em detalhes o lugar do sujeito na teoria de Michel Pêcheux.
Nessa abordagem discursiva, a noção de sujeito encontra fundamentação direta na teoria
psicanalítica de Jacques Lacan, motivo pelo qual o sujeito é assumido na AD francesa como
um sujeito do inconsciente. Trata-se, pois, de “uma teoria do sujeito que pode situá-lo fora da
dimensão cartesiana ou idealista” (SOUZA, 1997, p. 90). Desse modo,
No domínio da reflexão sobre ensino de língua portuguesa, Mutti (1991) parte dos
fundamentos basilares de Michel Pêcheux, assim como o fizeram os autores dos textos de
diluição acima considerados, mas não se restringe a eles: relaciona-os às proposições de
Authier-Revuz, que, inspirada no dialogismo bakhtiniano e na noção de interdiscurso advinda
da AD, “postula a heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso, indo esta
heterogeneidade através da presença do outro” (MUTTI, 1991, p. 94). Diante disso, as
reflexões sobre ensino da leitura e da produção de textos empreendidas pela autora se dão no
bojo da discussão sobre a natureza heterogênea da linguagem, dos textos e dos sujeitos (que
escrevem, falam, leem e escutam).
Partindo da noção de texto enquanto materialidade de discursos, e sendo estes, por sua
vez, concebidos não como “com uma mera transmissão de informações entre remetente e
destinatário, mas com um „efeito de sentido‟ que se estabelece entre os mesmos” (MUTTI,
1991, p. 89), a autora destaca a natureza heterogênea da escrita, sendo a autoria um gesto
discursivo que se estabelece na medida em que o indivíduo se subjetiva, assumindo a posição
de autor. Isto é,
212
A leitura toma contorno similar, sendo também tomada como um gesto da ordem do
discurso. Uma vez que, como discutiram Pereira (1991) e Souza (1997), o sentido não reside
nas palavras ou expressões linguísticas, mas advém da relação de tensão entre a linguagem e
os efeitos da ideologia, compreende-se que “um texto pode ser lido de várias maneiras, e este
aspecto é fundamental para o processo de significação” (MUTTI, 1991, p. 97). No trabalho de
avaliação da leitura, salienta Mutti (1991), “o professor não pode esquecer que a história de
leituras do aluno geralmente difere da sua” (p. 97). Ao invés de impor uma leitura única
legitimada, a escola deve considerar a característica heterogênea dos textos, da linguagem,
dos sujeitos, permitindo, assim, que o aluno construa sentidos de modo como o faz na vida,
enquanto sujeito de linguagem. Em suma,
embora haja leituras previstas para um texto, ele não é fechado em si mesmo. Estas
leituras previstas representam um dos componentes das condições de produção de
leitura do aluno, permitindo-lhe a construção de sua própria história de leitura e
estabelecendo relações intertextuais, resgatando a história dos sentidos do texto, sem
barrar o curso futuro desses sentidos (MUTTI, 1991, p. 97).
Como é possível observar a partir da análise das fontes da Letras de Hoje na década de
1990, os estudos em análise do discurso protagonizam parcela expressiva da pesquisa
linguística produzida no Brasil, sobretudo na região Sul do país. A frequente publicação de
textos de diluição que “aplicam” os fundamentos de uma teoria indicia que, naquele
momento, um grupo organizado em torno das pautas levantadas por esse empreendimento
teórico atingiu, nos termos de Murray (1994), seu cluster. Trabalhos como os de Aracy Ernst
Pereira, Regina Maria Varini Mutti e Valdir Flores – à época pesquisadores em processo de
formação (todos doutorandos pela PUCRS) –, enquanto fontes historiográficas, indiciam a
consolidação da abordagem discursiva no circuito de discussões linguísticas brasileiras e sua
importância para a cristalização da TSD no Brasil. Em se tratando da AD francesa,
abordagem que fundamentou a maioria dos trabalhos aqui analisados, vale salientar que nesse
período já circulava no Brasil a tradução de Semântica e Discurso, obra que instalou muitas
das bases da teoria discursiva de Michel Pêcheux35. Nessa atmosfera, pode-se dizer que
discurso, ao longo da década de 1990, não é mais discutido, como no período de emergência
35
Tradução liderada por Eni Orlandi, publicada, em 1988, pela Editora da Unicamp. Desde então, até os dias de
hoje, a obra vem recebendo reedições.
213
da TSD no Brasil, como uma novidade, mas, por outro lado, como um saber sobre a
linguagem amplamente difundido pela Linguística brasileira, diluído em trabalhos que
resultam em dissertações, teses, artigos, ensaios, conferências etc.
Quadro 26 – Informações das fontes analisadas do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos publicadas no
período de consolidação da TSD
por Freud e sua releitura por Lacan” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26). Assim, apoiando-se
em Bakhtin para tratar dos aspectos dialógicos e polifônicos da linguagem, a autora
compreende que “nenhuma palavra é neutra, mas inevitavelmente carregada, ocupada,
habitada, atravessada pelos discursos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada”
(AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 27). Além disso, busca na psicanálise fundamento para
desconstruir a centralidade e a autonomia do sujeito, o que implica acreditar que “não há
centro para o sujeito fora da ilusão e do fantasmagórico” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28).
Nesse horizonte epistemológico, Authier-Revuz (1990) discute detidamente formas de
manifestações marcadas de heterogeneidade mostrada, como nas situações em que “o
fragmento mencionado é ao mesmo tempo um fragmento do qual se faz uso: é o caso do
elemento colocado entre aspas, em itálico” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 29). Nesses casos
de heterogeneidade mostrada, “o fragmento designado como um outro é integrado à cadeia
discursiva sem ruptura sintática do discurso ao mesmo tempo que, pelas marcas, que neste
caso não são redundantes, é remetido ao exterior do discurso” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.
29-30). Por outro lado, as formas não mostradas da heterogeneidade, como “discurso indireto
livre, ironia... de um lado, metáforas, jogos de palavras... de outro”, representam
Eni Orlandi também segue, em texto de diluição, na discussão sobre o objeto discurso.
Entretanto, diferentemente de Fiorin (1990), Orlandi (1996) foca, especificamente, a análise
do discurso francesa, teoria com a qual tem trabalhado desde a década de 1970 e cuja
divulgação, no Brasil, tem protagonizado enquanto liderança. Mais detidamente, busca
analisar de que modo a AD se afasta da pragmática no que diz respeito ao trabalho com os
elementos da exterioridade. O grande foco da autora nessa análise contrastiva reside, mais
particularmente, em dois pontos centrais que diferenciam a AD da pragmática: “1. A ordem
da língua como ordem própria; 2. O sujeito como de-centrado (dividido): a intervenção do
inconsciente e da ideologia” (ORLANDI, 1996, p. 27).
Para a AD, afirma Orlandi (1996), a língua detém de uma ordem própria. Ordem e
organização da língua não se confundem: esta consiste no sistema léxico-gramatical e suas
regras combinatórias, aquela, por sua vez, num “sistema significante em sua relação com a
história, considerada em sua materialidade simbólica” (ORLANDI, 1996, p. 27). É nesse
espaço da ordem da língua que a análise do discurso investiga a construção histórico-
ideológica do discurso que nela (na língua) se materializa. A respeito dessa distinção entre
ordem e organização, salienta Orlandi (1996):
O que interessa é a ordem da língua. Não é, por exemplo, a relação entre sujeito e
predicado que é relevante, mas o que esta organização sintática pode nos fazer
compreender dos mecanismos de produção de sentidos (linguístico-históricos) que aí
funcionam, enquanto ordem significante (p. 30).
Observa-se que, ao enfatizar o estudo da ordem da língua, tal como a concebe, Orlandi
(1996) parte do pressuposto de que “a língua não é só um código ou um instrumento de
comunicação ideologicamente neutro. Nem apenas um sistema abstrato” (ORLANDI, 1996,
p. 30). Isto é, a autora toma a língua em sua relação com a exterioridade, mais
especificamente, a exterioridade que reside no complexo espaço do interdiscurso.
A propósito do ponto 2 acima levantado – O sujeito como de-centrado (dividido) –,
Orlandi (1996) ressalta a importância da teoria psicanalítica para a constituição teórica da AD
francesa. Ao tomar o sujeito lacaniano, ou seja, aquele atravessado pelo inconsciente, a AD
abandona “a noção psicológica de sujeito, empiricamente coincidente consigo mesmo”, o que
significa dizer que, por consequência do atravessamento do inconsciente e do efeito da
ideologia, “o sujeito só tem acesso a parte do que diz” (ORLANDI, 1996, p. 28). Em linhas
gerais,
ideologia e inconsciente, na análise de discurso, estão materialmente ligados. A
interpelação do indivíduo em sujeito, pela ideologia, traz necessariamente o
apagamento da inscrição da língua na história para que ela signifique. O efeito é o da
218
Passo agora a analisar fontes, todas assinadas por Ingedore Koch, em que aspectos do
texto são discutidos. Convém antes de tudo adiantar que a expressiva contribuição de
Ingedore Koch nesta década do Caderno de Estudos Linguísticos materializa o resultado de
pesquisas que delinearam as fronteiras de um novo momento da linguística de texto no Brasil.
Situada na (e protagonista da) atmosfera de consolidação da TSD na pesquisa linguística
brasileira, momento em que a concepção interacional da linguagem se torna um conhecimento
linguístico legitimado, Koch (1993, 1995 e 1996) se concentra no estudo dos processos e das
estratégias textuais, discursivas e cognitivas envolvidas na produção e na recepção de textos
falados e escritos. Trata-se de uma abordagem textual que interage diretamente com teorias
cognitivas do conhecimento, como a psicologia cognitiva e a neuropsicologia.
219
Tanto em seu texto de 1993 como no de 1995, Ingedore Koch se dedica à discussão
sobre “o processo de produção textual no quadro das teorias interacionais da linguagem, isto
é, como atividade interacional de sujeitos tendo em vista a realização de determinados fins”
(KOCH, 1993, p. 65), ainda que, sobretudo em Koch (1993), a autora também discuta
elementos atinentes à leitura. Já em Koch (1996), texto em que a autora propõe a “ampliação
da noção de contexto, de modo a englobar o conjunto do que [chama de] estratégias
pragmáticas de processamento textual” (p. 35), investigam-se tanto a produção como a
recepção de textos. Em todos os casos, a linguista parte da concepção de texto como atividade
linguístico-discursiva resultante de processo interacional pragmaticamente orientado.
O dispositivo pragmático no quadro descritivo da LT é aqui enfatizado – tal como já o
fizeram os estudos textuais empreendidos nas décadas passadas –, na medida em que se
concebe o texto para além de sua estrutura léxico-gramatical. Desse modo, o a dimensão
pragmática subjacente à atividade textual interfere diretamente na constituição dos níveis
estruturantes da língua: “o plano geral do texto determina as funções comunicativas que nele
irão aparecer e estas, por sua vez, determinam as estruturas superficiais” (KOCH, 1993, p.
69). Diante desse pressuposto, a LT, neste momento, ao analisar o texto e seus processos de
produção e recepção, reconhece
Em Koch (1996), ao considerar que, em “uma interação, cada um dos parceiros traz
consigo sua bagagem cognitiva” (p. 36), a autora reforça a questão:
220
Para que duas ou mais pessoas possam compreender-se mutuamente, é preciso que
seus contextos cognitivos sejam, pelo menos, parcialmente semelhantes. Em outras
palavras, seus conhecimentos enciclopédico, episódico, macro- e superestrutural ou
esquemático devem ser, ao menos em parte, compartilhados (KOCH, 1996, p. 36).
No mesmo texto, Koch (1996) faz alusão a três tipos de estratégias pragmáticas de
processamento textual, a saber: estratégias cognitivas, que envolvem as operações mentais a
partir das quais construímos hipóteses que possibilitam a constante “formação, atualização e
modificação de nossos modelos cognitivos (frames, scripts, modelos de situação), bem como
de nosso conhecimento enciclopédico, atitudes, ideologias” (KOCH, 1996, p. 37); estratégias
interacionais, que visam a estabelecer o funcionamento da interação a partir de certas regras e
convenções socioculturais que governam a prática verbal, como “as estratégias de preservação
das faces (...), que envolvem o uso das formas de atenuação, as estratégias de polidez, de
negociação, de atribuição de causas aos mal-entendidos, entre outras” (KOCH, 1996, p. 38);
e, por fim, as estratégias textuais, que apontam para a seleção dos elementos linguísticos e
seu encadeamento na sequência textual com vistas ao cumprimento de certas finalidades
comunicativas; residem nesse domínio das estratégias textuais
Quadro 27 – Informações das fontes analisadas do periódico Trabalhos em Linguística Aplicada publicadas no
período de consolidação da TSD
IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES
Título Autoria Referência
Análise do discurso e leitura:
elementos para uma “progressão Rosa Maria Nery Nery (1990)
textual”
Aspectos do processo de produção
José Luiz Meurer Meurer (1993)
de textos escritos
Concepção de língua falada nos
manuais de português de 1º e 2º Luiz Antônio Marcuschi Marcuschi (1997)
graus: uma visão crítica
Interferências da oralidade na
Ingedore G. Villaça Koch Koch (1997)
aquisição da escrita
Interação em aula de leitura: a
atuação do aluno nas margens e no
Marisa Grigoletto Grigoletto (1997)
centro da construção da
significação
A inter-relação oralidade-escrita
Maria da Graça Costa Val Costa Val (1997)
no aprendizado da redação
tratam-na a partir de perspectivas distintas, ainda que ambas de natureza discursiva. Nery
(1990) apoia-se na semiolinguística do discurso, teoria preconizada pelo linguista francês
Patrick Charaudeau, para pensar na linguagem como um fenômeno de natureza social e
histórica e na leitura, por conseguinte, como um “um processo de construção de sentidos, no
qual estão envolvidos, além de fatores linguísticos, elementos de diferentes ordens” (NERY,
1990, p. 49). Já Grigoletto (1997), por sua vez, assume a perspectiva da análise do discurso de
Michel Pêcheux, teoria que aparece diluída ao longo de seu texto.
Para Nery (1990), pensar em leitura implica, antes, pensar na linguagem e nos
indivíduos que, através dela, constroem sentidos. Para a autora, o ato de linguagem “não deve
ser considerado como um ato de comunicação, isto é, como um processo simétrico de
transmissão de informações, codificadas por um locutor e decodificadas por um receptor”
(NERY, 1990, p. 50). Consequentemente, ao recusar a concepção codificada de linguagem
codificada, bem como a hipótese de que a comunicação intersubjetiva se daria linearmente
entre emissor e receptor, Nery (1990) toma a leitura como prática dialética resultante de um
trabalho ativo do sujeito que lê: “a leitura não pode ser compreendida como um ato passivo de
reconstituição. Trata-se de construir significação a partir da palavra do outro” (NERY, 1990,
p. 50).
Convém destacar que a teoria semiolinguística do discurso, diferentemente da AD
francesa, como salienta Nery (1990), trabalha com um sujeito pragmático, ator social
consciente de seus atos. Por esse viés, “a leitura implica num processo contínuo de
formulação e verificação de hipóteses de significação” (NERY, 1990, p. 56) operado pelo
sujeito em sua relação com os textos. Disso se depreende, enfim, que “toda interpretação é um
„acordo de intenções‟” (CHARAUDEAU, 1983, p. 118, apud NERY, 1990, p. 50)
estabelecido entre leitor e autor a partir do plano textual.
A prática pedagógica com a leitura na escola, segundo Nery (1990), está atrelada a um
projeto de educação pressuposto: “aqui se coloca uma questão delicada, implícita em toda
prática pedagógica e que se liga sobretudo a uma problemática social: que leitor pretendemos
formar?” (NERY, 1990, p. 56). Ao levantar a discussão semiolinguística do discurso para
pensar no ensino da leitura, entendendo a função da escola enquanto instituição de inclusão e
transformação social, a autora propõe um trabalho pedagógico com a leitura que permita ao
estudante, enquanto ator social e leitor ativo, construir sentidos de modo crítico e autônomo,
confrontando-os com outras possibilidades advindas de outras possíveis leituras, sendo essa
ação condição do exercício da cidadania.
223
Grigoletto (1997) também trata da leitura escolar numa perspectiva discursiva. O foco
de seu trabalho, entretanto, não reside diretamente na discussão sobre possíveis contribuições
que pode a análise do discurso oferecer ao trabalho pedagógico com a leitura. A autora, na
verdade, a partir de uma análise discursiva, discute sobre a construção, no processo de ensino-
aprendizagem da leitura, de certos imaginários sobre o texto como unidade homogênea e o
leitor (aluno-leitor) como sujeito que se subordina a uma leitura autorizada pelo professor,
representante do conhecimento legitimado pelo aparelho ideológico escolar. Assim,
Grigoletto (1997) visa “analisar o discurso dos alunos para verificar em que medida ele é
reflexo dessa imposição de um modelo escolar de homogeneidade, ou se eles, de alguma
forma, se contrapõem ao modelo” (p. 86).
Para investigar o funcionamento ideológico imbuído na relação aluno-texto-professor
na prática da leitura escolar, Grigoletto (1997) busca apoio na análise do discurso francesa,
diluindo, a partir daí, seus fundamentos sobre o discurso, o sujeito e a ideologia, categorias
que, para a autora, “parecem pertinentes para explicar a atuação do aluno na sala de aula
porque historicizam o contexto sociocultural do qual o aluno participa” (GRIGOLETTO,
1997, p. 86). Toma, por esse prisma, o discurso como “o lugar onde se articula o sistema
linguístico com a historicidade que lhe confere sentidos” (GRIGOLETTO, 1997, p. 86); e o
sujeito como posição assumida discursivamente e assujeitada à ideologia. O fragmento a
seguir, que trata das noções de sujeito e de ideologia, sintetiza a diluição de fundamentos
básicos da análise do discurso pecheutiana empreendida por Grigoletto (1997):
Uma teoria não subjetivista do sujeito concebe uma relação necessária entre
ideologia e sujeito, mas de maneira inversa à concepção idealista: as ideologias não
têm sua origem nos sujeitos, mas, ao contrário, são elas que constituem os
indivíduos em sujeitos. (...) O sujeito não é, pois, fonte, origem ou centro, mas
aparece como tal, inclusive a si próprio, pelo efeito ideológico (GRIGOLETTO,
1996, p. 87).
mais indivíduos; [já] o discurso é o conjunto de princípios, valores e significados „por trás‟ do
texto” (MEURER, 1993, p. 38-39).
A proposta de Meurer (1993) para o trabalho com produção de textos escritos na
escola está atrelada a um modelo que visa contemplar essa atividade em diferentes etapas, as
quais se articulam entre si. Em primeiro lugar, todo processo de escrita parte de uma
motivação específica, isto é, está atrelada a uma realidade ou a um fato “exterior ou interior
ao próprio indivíduo, real ou imaginário, sobre o qual alguém quer ou precisa se expressar”
(MEURER, 1993, p. 40). A relação entre o produtor de um texto e a realidade a ele exterior se
estabelece por intermédio de processos sociocognitivos cuja tarefa é selecionar e organizar, na
estrutura mental do autor, formas discursivas de compreender o mundo. Finalmente, dá-se,
então, a produção do texto: “aqui ele [o autor] tenta concretizar sua mentalização através da
representação linguística” (MEURER, 1993, p. 42). Naturalmente, embora conceda bastante
atenção aos processos cognitivos dos indivíduos que se põem a escrever, ao assumir uma
concepção de linguagem como prática de interação, Meurer (1993) não desconsidera o
atravessamento social da linguagem, dos sujeitos e, por conseguinte, dos textos, posição que
se ratifica quando o autor afirma que o ato de produção de textos envolve a “história
discursiva particular de cada escritor” (MEURER, 1993, p. 41).
Passemos agora à análise de fontes em que ideias linguísticas acerca da língua falada
são debatidas.
Na segunda metade da década, mais especificamente em 1997, no volume 30 da TLA,
foram publicados importantes trabalhos em que se discutiu o funcionamento da oralidade
como modalidade de uso da língua e seu lugar no ensino de português. Vale salientar que, a
essa altura, já fora publicada a primeira versão dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
documento norteador em que se enfatiza a necessidade do trabalho com o texto falado a partir
do qual é possível discutir, na escola, o funcionamento da fala e sua importância para o
cumprimento de certas demandas interacionais do cotidiano. Para além de políticas
linguísticas oficiais, a discussão sobre a oralidade e sua relação com o ensino é, nesse
período, regular e amplamente empreendida em diferentes espaços, institucionalizados ou
não, como se pode depreender pelas palavras de Marcuschi (1997): “o certo é que hoje se
torna cada vez mais aceita a ideia de que a preocupação com a oralidade deve ser também
partilhada pelos responsáveis pelo ensino de língua” (p. 40, grifos meus).
Luiz Antônio Marcuschi, Ingedore Koch e Maria da Graça Costa Val encabeçaram a
discussão sobre a oralidade nessa década da TLA. Enquanto Marcuschi (1997) investiga como
226
Fala e escrita são duas modalidades de uso da língua, possuindo cada uma delas
características próprias; isto é, a escrita não constitui mera transcrição da fala.
Embora se utilizem, evidentemente, do mesmo sistema linguístico, elas possuem
características próprias (KOCH, 1997, p. 31).
Embora seja a fala uma “uma atividade muito mais central do que a escrita no dia a
dia da maioria das pessoas” (MARCUSCHI, 1997, p. 39), a instituição escolar tem concedido
a essa modalidade espaço restrito, o que se explica pela “crença generalizada de que a escola é
o lugar do aprendizado da escrita. Uma crença tão fortemente arraigada que já se transformou
numa espécie de consenso” (MARCUSCHI, 1997, p. 39). Além disso, não raro acreditava-se,
a partir de uma analogia desproporcional com o ensino da escrita em nível de alfabetização,
que não cabia à escola o estudo de aspectos da oralidade, tendo em vista que os estudantes já
“dominavam a fala”, devendo a escola, portanto, ensinar aquilo que o aluno ainda não sabia
ou sabia parcialmente: escrever. Naturalmente, quando se advoga pela importância da
oralidade em sala de aula, “não se trata de ensinar a falar”; trata-se, entre outras questões, de
sugerir um ensino que, pelo estudo da fala, proporcione ao aluno a capacidade de “identificar
a imensa riqueza e variedade de usos da língua” (MARCUSCHI, 1997, p. 41). Nessa esteira, é
papel da educação linguística mostrar que
a língua falada é variada e que a noção de um dialeto padrão uniforme (não apenas
no Português, mas em qualquer língua) é uma noção teórica e não tem um
equivalente empírico. Assim, entre muitas outras coisas, a abordagem da fala
permite entrar em questões geralmente evitadas no estudo da língua, tais como as de
variação e mudança, dois pontos de extrema relevância raramente vistos. Noções
como: "norma", "padrão", "dialeto", "variante", "sotaque", "registro", "estilo”,
”gíria” podem tornar-se centrais no ensino de língua e ajudar a formar a consciência
de que a língua não é homogênea nem monolítica (MARCUSCHI, 1997, p. 41).
(MARCUSCHI, 1997, p. 42), abordagem a que, com mais atenção, se dedicam Koch (1997) e
Costa Val (1997). Para Koch (1997), o estudante em processo de aquisição da escrita leva à
escola uma concepção oral de texto a partir da qual busca apreender as regularidades da
escrita. Essa concepção prévia com que os alunos chegam à escola “é responsável, sem
dúvida, pelo fato de seus textos escritos apresentarem uma série de características típicas do
texto falado, que perduram neles, às vezes, por vários anos” (KOCH, 1997, p. 31). Na mesma
direção, reforça Costa Val (1997): “na construção e no desenvolvimento da capacidade de
redigir, o aprendiz interage com o novo objeto de conhecimento, o texto escrito, a partir do
conhecimento que ele já tem quanto à estruturação do texto oral” (COSTA VAL, 1997, p. 69).
Por esse motivo, devido à relação intrínseca entre elementos fonético-fonológicos e o
processo de aquisição da escrita, “o conhecimento da língua falada, já dominado pelas
crianças, deveria ser tomado como ponto de partida, na escola, para o ensino do texto escrito”
(COSTA VAL, 1997, p. 83).
No que diz respeito à discussão sobre as características próprias da oralidade,
Marcuschi (1997), Koch (1997) e Costa Val (1997) levantam pontos centrais que
desmitificam algumas noções equivocadas sobre traços do texto falado, frequentemente
tomado injustamente como lugar da irregularidade e do caos linguístico. Devido à sua
organização interacional, marcada, principalmente, pela troca face a face, em tempo real, e
pela necessidade imediata de se dizer algo, o texto falado está sempre em construção e
reconstrução. Nesse sentido, como destaca Costa Val (1997, p. 70), “a situação e a cognição
são praticamente simultâneas à verbalização, o que explica os falsos começos, as hesitações,
as pausas, as autocorreções, que caracterizam o texto oral”.
Segundo Marcuschi (1997), o desconhecimento das condições em que o texto falado
se organiza, bem como das demandas de comunicação a que ele serve, tende a fomentar a
ideia de que a fala é uma reprodução rudimentar da escrita, modalidade à qual ela se
subordina, em posição marginal. Disso resulta um posicionamento que divide “a produção
linguística entre, de um lado, o padrão (equivalente à escrita) e, de outro, o não padrão
(equivalente à fala), o que pode trazer um duplo inconveniente: visão monolítica e
uniformizada, a par da desvalorização da língua falada”. (MARCUSCHI, 1997, p. 46). Para
Koch (1997), que partilha do mesmo ponto de vista, a visão limitada sobre o texto falado
advém de um julgamento imediatista que toma como parâmetro
o ideal da escrita (isto é, costuma-se olhar a língua falada através das lentes de uma
gramática projetada para a escrita), o que levou a uma visão preconceituosa da fala
(descontínua, pouco organizada, rudimentar, sem qualquer planejamento), que
228
Diante dessas considerações, percebe-se que o texto falado tem “uma estruturação que
lhe é própria, ditada pelas circunstâncias sócio-cognitivas de sua produção” (KOCH, 1997, p.
33). É nessa direção, defendem Marcuschi (1997), Koch (1997) e Costa Val (1997), que a
escola deve trabalhar com a oralidade em sala de aula, isto é, considerando o texto falado
enquanto evento interacional que segue regularidades próprias e que, assim estruturado,
cumpre demandas comunicativas específicas. O trabalho com as duas modalidades de uso da
língua, falada e escrita, sem dicotomizá-las ou hierarquizá-las, garante ao estudante o
domínio de múltiplas formas de interagir socialmente. E é esse, justamente, o objetivo da
escola, como salienta Marcuschi (1997): “ensinar os alunos a perceberem a riqueza que
envolve o uso efetivo da língua como um patrimônio maior do qual não podemos abrir mão.
Pois, se há um estudo que vale a pena no ensino básico é o estudo da língua e suas
possibilidades” (p. 75).
O modo como as três fontes que tratam da oralidade aqui analisadas interagem entre
si, implícita ou explicitamente, indicia uma das características do cluster (Murray, 1994), isto
é, do amadurecimento de um grupo em torno do qual se discutem certas pautas recorrentes no
debate acadêmico. A propagação da reflexão sobre a oralidade iniciou-se na segunda metade
229
da década anterior, mais especificamente a partir de 1986, quando Luiz Antônio Marcuschi
divulgara resultados de pesquisas sobre fenômenos do texto falado e da conversação (cf.
MARCUSCHI, 1986). Uma década depois, como se pode notar, a discussão sobre oralidade
ganhou força, seja pela publicação de textos de ação, pela diluição em documentos
curriculares norteadores ou pelo engajamento de outras lideranças que, de modo colaborativo,
contribuíram com a difusão da reflexão sobre o texto falado enquanto objeto teórico e
ensinável.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendi com esta tese apresentar uma narrativa historiográfica sobre a tradição
sociodiscursiva na pesquisa linguística brasileira desenvolvida entre 1970 e 1999. Para tanto,
busquei na Historiografia da Linguística ferramentas para compreender como essa tradição
emergiu, se desenvolveu e, finalmente, se consolidou no Brasil, bem como para entender seus
efeitos, ao longo do tempo, na reflexão sobre ensino de língua portuguesa.
A narrativa historiográfica concluída trouxe como resultado a compreensão do modo
como os objetos constitutivos da TSD se tornaram pauta na pesquisa linguística brasileira a
partir do trabalho empreendido, ao longo do tempo, por agentes vinculados a diferentes
centros de pesquisa e ensino, os quais impulsionaram o debate em torno dos fundamentos
sociodiscursivos da linguagem. Ratifica-se, portanto, que a consolidação de uma tradição
traduz um intenso trabalho coletivo desenvolvido no curso da história.
Convém salientar que não busquei apresentar uma interpretação unívoca, transparente
e inquestionável acerca das etapas de formação da TSD no Brasil. Isto é, a narrativa aqui
desenvolvida consiste em uma versão, entre outras, da história desse movimento intelectual
protagonizado pela Linguística brasileira ao longo de trinta anos. O produto de minhas
análises, portanto, estabelece um olhar historiográfico específico resultante de recorte
necessário e de outras escolhas metodológicas particulares. As fontes selecionadas,
evidentemente, não englobam toda a vastidão do que se pode chamar de pesquisa linguística
brasileira. Assim, esta versão interpretativa não abarca (e nem teria como abarcar) a
totalidade de movimentos e de ações executados por diversos outros agentes espalhados pelo
país, os quais discutiram sobre o texto, o discurso, a variação, as funções e usos da linguagem
e suas implicações para o ensino de língua portuguesa. Outras narrativas, resultantes de outros
recortes metodológicos, podem dar conta de descortinar esses fragmentos que não foram aqui
contemplados.
Dito isso, passo agora ao levantamento de algumas considerações gerais sobre os
resultados obtidos no capítulo 5 e, em seguida, a sugestões de trabalhos futuros que de algum
modo podem dar continuidade às discussões aqui empreendidas.
Antes de quaisquer considerações, retomo a máxima central da Historiografia da
Linguística: o conhecimento sobre a linguagem surge sempre emparelhado a condições
externas à sua concepção. Algumas mudanças na estrutura social do Brasil impulsionaram o
surgimento de certos problemas e questionamentos de pesquisa contemplados pela TSD, bem
232
como influenciaram no modo como agentes em torno dessa tradição se articularam para
solucioná-los. Como pudemos perceber, não por acaso há relação direta entre o grande
quantitativo de pesquisas em abordagens comunicacionais desenvolvidas na década de 1970 e
o contexto da era da comunicação que caracterizou esse período; ou, ainda, entre o grande
boom de discussões sobre a sociolinguística educacional e a mudança de perfil do aluno
resultante do processo de urbanização por que passou o Brasil até a década de 1980. Além
disso, movimentos internos à Linguística brasileira refletiram diretamente no modo como se
desenrolou a história da TSD. A esse respeito, observamos, por exemplo, que a chegada e a
difusão de teorias sociodiscursivas no Brasil coincidem com a “profissionalização” de
linguistas brasileiros que trazem da Europa novas concepções sobre a linguagem.
Percebemos, também, que o desenvolvimento e a consolidação das pautas que orbitam em
torno da TSD se tornaram realidade devido, em grande medida, ao amadurecimento de certos
grupos de especialidade cujos agentes (pesquisadores formados ou em formação), em
intercâmbio direto, através de textos de ação e de diluição, permitiram que a concepção social
e discursiva de linguagem angariasse o status de ideia linguística consensual.
No domínio da reflexão sobre o ensino de língua portuguesa, pode-se dizer que a TSD
estabeleceu, ao longo do período investigado, uma história caracterizada por deslocamentos.
Em outras palavras, o processo de solidificação da TSD na tradição de pesquisas brasileira
trouxe, a reboque, novos conceitos, métodos e categorias à discussão sobre ensino de língua,
partindo-se do pressuposto de que é papel da escola criar condições para que o aluno
compreenda a linguagem em suas diferentes dimensões, o que engloba, necessariamente, a
dimensão sociodiscursiva. Desse modo, resumidamente, figuram nessa história de
deslocamentos:
a. o texto como centro do processo de ensino e aprendizagem, sendo ele, falado ou escrito,
produto das interações entre interlocutores e materialidade de processos discursivos que
nele se inscrevem;
b. o ensino dos conhecimentos gramaticais que leva em conta a heterogeneidade e a
variabilidade dos sistemas linguísticos, o que implica a consideração da natureza mutável
de toda língua natural;
c. o ensino da leitura e da produção de textos tomadas como práticas interacionais e
colaborativas que envolvem a mobilização de processos textuais, sociopragmáticos e
cognitivos operados por um indivíduos que, lendo ou escrevendo, negociam sentidos;
233
Saliento que uma história de deslocamentos não se confunde com uma história de
rupturas. Ainda que a TSD tenha permitido a emergência de novas formas de se conceber o
ensino de português, não se pode afirmar categoricamente que essa tradição rompeu com a
tradição formalista, tendo em vista que, até os dias de hoje, ensino de língua muitas vezes se
confunde com ensino de gramática (tradicional). A concepção homogênea e beletrista
subjacente à gramática tradicional ainda ressoa em diferentes espaços, constituindo parcela
significativa do imaginário linguístico brasileiro, motivo pelo qual, no meu entender, a
história da TSD costura uma história de deslocamentos, não de ruptura.
Vale reforçar, ainda, que essa história de deslocamentos não se encerra em 1999,
marco final aqui estabelecido. A história da TSD, domínio agora consolidado na pesquisa
linguística brasileira, cruza a virada do século XX para o XXI, ressoando até o presente.
Nessa virada de século, com mudanças no clima de opinião, novos problemas e novas pautas
de investigação passam a circular com maior intensidade na agenda de pesquisas da TSD.
Com o progresso da tecnologia e a emergência de novas formas de interação, chegam à
discussão sobre a educação linguística questões como as dos multiletramentos, dos gêneros
digitais e suas formas de organização no hipertexto, das discursividades no espaço virtual,
entre outras questões atreladas ao contexto sociocultural que caracteriza a identidade do
sujeito do século XXI. O exemplo serve para ratificar que a história de deslocamentos da
TSD, em suas diversas dimensões, comporta muitos capítulos que aguardam por acolhimento
historiográfico.
Diante disso, para concluir, gostaria de apontar algumas possibilidades de trabalhos
historiográficos cujo empreendimento pode contribuir significativamente para a compreensão
da complexa e tentacular história de deslocamentos da TSD em seus diferentes corolários.
Assim, narrativas do futuro podem se dedicar, entre outros enfoques, a investigar:
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