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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO


DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

LEONARDO GUEIROS DA SILVA

DA EMERGÊNCIA À CONSOLIDAÇÃO DA TRADIÇÃO SOCIODISCURSIVA NA


PESQUISA LINGUÍSTICA BRASILEIRA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A
REFLEXÃO SOBRE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA (1970-1999)

Recife
2019
LEONARDO GUEIROS DA SILVA

DA EMERGÊNCIA À CONSOLIDAÇÃO DA TRADIÇÃO SOCIODISCURSIVA NA


PESQUISA LINGUÍSTICA BRASILEIRA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A
REFLEXÃO SOBRE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA (1970-1999)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade Federal
de Pernambuco, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Letras.

Área de concentração: Linguística

Orientadora: Profª. Drª. Siane Gois Cavalcanti Rodrigues


Coorientador: Prof. Dr. Francisco Eduardo Vieira

Recife
2019
Catalogação na fonte
Bibliotecária Jéssica Pereira de Oliveira, CRB-4/2223

S586d Silva, Leonardo Gueiros da


Da emergência à consolidação da tradição sociodiscursiva na
pesquisa linguística brasileira e suas implicações para a reflexão sobre
ensino de língua portuguesa (1970-1999) / Leonardo Gueiros da Silva. –
Recife, 2019.
250f.: il.

Orientadora: Siane Gois Cavalcanti Rodrigues.


Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de
Artes e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2019.

Inclui referências.

1. Tradição sociodiscursiva. 2. Linguística brasileira. 3. Ensino de


Português. 4. Historiografia da Linguística. I. Rodrigues, Siane Gois
Cavalcanti (Orientadora). II. Título.

410 CDD (22. ed.) UFPE (CAC 2019-256)


Aos meus alunos do Sertão pernambucano, com quem aprendi novos sentidos
atribuídos à palavra resistência.
Aos linguistas e educadores brasileiros cujas reflexões sobre a língua e a linguagem
tecem histórias que anseiam por acolhimento historiográfico.
AGRADECIMENTOS

À professora Siane Gois, pela relação de orientação acalentadora, leve e sem vaidades,
pela absoluta confiança depositada em meu trabalho, pela sensibilidade com que lida com as
adversidades da escorregadia jornada acadêmica. Pela amizade.
Ao professor Francisco Eduardo Vieira, pelo preciosismo nas orientações, pelo
incentivo encorajador, pela amizade e parceria não de agora construídas; por despertar em
mim a curiosidade pelo trabalho historiográfico.
Às professoras Olga Coelho, Beth Marcuschi e Lívia Suassuna, inspirações
acadêmicas, pelo privilégio da interlocução quando das bancas de qualificação.
Ao professor Carlos Alberto Faraco, pelas ricas e generosas contribuições que se
estenderam para além da banca de qualificação.
Às professoras Ana Lima, Lívia Suassuna e Mônica Mano Trindade Ferraz e ao
professor Pedro Farias Francelino, pela gentileza de terem aceitado o convite para compor a
banca da tese.
Ao professor Marcos Bagno, pela conversa informal que iluminou o túnel escuro do
qual saiu, depois de algumas reconfigurações, a noção de tradição sociodiscursiva.
Aos membros do grupo de pesquisa Historiografia, Gramática e Ensino de Línguas,
da Universidade Federal da Paraíba, primeiros interlocutores das versões preliminares deste
trabalho.
À professora Evandra Grigoletto, pilar fundamental de minha formação acadêmica,
por ter acreditado em mim e me encorajado a crescer.
Às professoras e aos professores que, ao longo de mais de uma década na UFPE,
contribuíram significativamente com minha formação e cujas vozes de algum modo se
manifestam nesta tese, em especial Márcia Mendonça, Ana Lima, Lívia Suassuna, Beth
Marcuschi, Siane Gois, Evandra Grigoletto e Fabiele Stockmans de Nardi, mulheres em
quem me espelho na tentativa de ser um professor melhor a cada dia.
A Felipe Augusto Nascimento e Maria Sirleidy Cordeiro, amigos com quem aprendi a
lidar com os percalços da vida acadêmica de forma mais leve e divertida.
A Mizael Nascimento, Anderson Lins, Flávia Farias e Maria Alcione, amigos do
PPGL da UFPE com quem dividi sorrisos e aflições durante todas as etapas do doutorado.
Aos amigos do Instituto Federal do Sertão Pernambucano, cujo afeto foi fundamental
para amenizar o peso de uma jornada doutoral dividida entre Recife e Salgueiro,
especialmente Kélvya Freitas Abreu, Francisco Kelsen de Oliveira, Juciel Lima, Adeísa
Guimarães, Jardiene Ferreira, Fernanda Novaes, Rafael Aquino e Williard Scorpion.
Aos amigos que acompanharam os momentos altos e baixos da produção desta tese e
que, pacientemente, compreenderam minhas ausências, como Shenia Bezerra, José Daniel
Santana, Pablo Lima e Renan Valadão.
A Natalia Souza, lugar de conforto e fonte de inspiração, pelo carinho,
companheirismo e suporte emocional; por acreditar em mim mais do que ninguém.
Às minhas duas mães, Maria Cristina Gueiros e Cleide Gueiros, pelo amor e tudo que
a ele subjaz.
Ao meu irmão, Genivaldo Gueiros, pelo companheirismo fraterno e pela torcida.
Ao meu pai, em memória.
“the past is soon forgotten, and people are happy to be part of a trendy present which
holds out the promise of becoming the future” (KOERNER, 1991, p. 57).
RESUMO

Esta tese investiga, numa perspectiva historiográfica, a construção da tradição


sociodiscursiva na pesquisa linguística brasileira e suas implicações para a reflexão sobre o
ensino de língua portuguesa. Compreende-se a tradição sociodiscursiva (TSD) como uma
tradição, no sentido atribuído por Laudan (2011 [1978]) e Hymes (1983), constituída por
diferentes empreendimentos teórico-metodológicos que concebem a linguagem como um
fenômeno social e discursivo – como a sociolinguística, a linguística de texto, a análise do
discurso e o funcionalismo. Partindo desse pressuposto, o objetivo geral da pesquisa consiste
em apresentar uma narrativa historiográfica sobre a emergência, o desenvolvimento e a
consolidação da TSD na pesquisa linguística brasileira entre 1970 e 1999, observando-se, a
partir de fontes historiográficas publicadas nesse período, a construção do conhecimento
sobre língua enquanto objeto teórico e ensinável. A pesquisa se situa no domínio da
Historiografia da Linguística, campo disciplinar que busca compreender como e em que
condições as ideias linguísticas são concebidas, processadas, recebidas, interpretadas,
legitimadas ou esquecidas (KOERNER, 1996; ALTMAN, 2012; SWIGGERS, 2013). Busca-
se, assim, interpretar o conhecimento sobre a linguagem, ao mesmo tempo, em sua imanência
e na relação com um contexto intelectual, social, político e cultural. O corpus investigativo é
composto por fontes historiográficas publicadas em quatro periódicos de alto impacto –
ALFA: Revista de Linguística Aplicada, Letras de Hoje, Cadernos de Estudos Linguísticos,
Trabalhos em Linguística Aplicada –, espaço em que se concentra parte expressiva da
pesquisa linguística brasileira legitimada pela comunidade científica. O corpus analisado
contempla fontes: (i) publicadas entre 1970 e 1999; (ii) em que circulam os fundamentos
epistemológicos da TSD e seus objetos constitutivos; (iii) caracterizadas como textos
propositivos e de aplicação de teorias. Os resultados da investigação apontam que a
construção da TSD na reflexão sobre língua e seu ensino no Brasil acontece em três
momentos, a saber: (i) a emergência da TSD, momento em que as primeiras reflexões sobre
texto, discurso e variação linguística são produzidas por pesquisadores brasileiros, embora
ainda não exista a consolidação de grupos preocupados com o estudo desses objetos; (ii) o
desenvolvimento da TSD, momento em que já é possível observar a construção de grupos de
especialidade em torno dos quais se discutem com maior intensidade os fundamentos
sociodiscursivos da linguagem e suas implicações para o ensino de língua portuguesa; (iii) a
consolidação da TSD, momento em que se solidificam na pesquisa linguística brasileira
pautas atreladas aos diferentes empreendimentos sociodiscursivos, bem como se intensifica,
tornando-se lugar comum, a crítica contundente à gramática tradicional como instrumento de
ensino de português.

Palavras-chave: Tradição sociodiscursiva. Linguística brasileira. Ensino de Português.


Historiografia da Linguística.
RESUMEN

Esta tesis investiga, desde una perspectiva historiográfica, la construcción de la


tradición sociodiscursiva en la investigación lingüística brasileña y sus implicaciones para la
reflexión sobre la enseñanza de lengua portuguesa. Se comprende la tradición sociodiscursiva
(TSD) como una tradición, en el sentido atribuido por Laudan (2011 [1978]) y Hymes (1983),
constituida por diferentes emprendimientos teórico-metodológicos que conciben el lenguaje
como un fenómeno social y discursivo – como la sociolingüística, la lingüística de texto, el
análisis del discurso y el funcionalismo. Partiendo de este presupuesto, el objetivo general de
la investigación consiste en presentar una narrativa historiográfica sobre el surgimiento, el
desarrollo y la consolidación da la TSD en la investigación lingüística brasileña entre 1970 y
1999, observando, a partir de fuentes historiográficas publicadas en ese período, la
construcción del conocimiento sobre la lengua como objeto teórico y enseñable. La
investigación se sitúa en el dominio de la Historiografía de la Lingüística, campo disciplinario
que busca comprender cómo y en qué condiciones las ideas lingüísticas son concebidas,
procesadas, recibidas, interpretadas, legitimadas u olvidadas (KOERNER, 1996; ALTMAN,
2012; SWIGGERS, 2013). Se busca, así, interpretar el conocimiento sobre el lenguaje, tanto
en su inmanencia como en la relación con el contexto intelectual, social y cultural. El corpus
investigativo está compuesto por fuentes historiográficas publicadas en cuatro revistas
científicas de alto impacto – ALFA: Revista de Linguística Aplicada, Letras de Hoje,
Cadernos de Estudos Linguísticos, Trabalhos em Lingüística Aplicada – espacio en el que se
concentra una parte expresiva de la investigación lingüística brasileña legitimada por la
comunidad científica. El corpus analizado contempla fuentes: (i) publicadas entre 1970 y
1999; (ii) en las que circulan los fundamentos epistemológicos de la TSD y sus objetos
constitutivos; (iii) caracterizadas como textos propositivos y de aplicación de teorías. Los
resultados de la investigación indican que la construcción de la TSD en la reflexión sobre la
lengua y su enseñanza en Brasil ocurre en tres momentos, a saber: (i) el surgimiento de la
TSD, momento en que las primeras reflexiones sobre texto, discurso y variación lingüística
son producidas por investigadores brasileños, aunque no exista todavía la consolidación de
grupos preocupados con el estudio de esos objetos; (ii) el desarrollo de la TSD, momento en
el que ya es posible observar la construcción de grupos especializados alrededor de los cuales
se discuten, con mayor intensidad, los fundamentos sociodiscursivos del lenguaje y sus
implicaciones en la enseñanza de lengua portuguesa; (iii) la consolidación de la TSD,
momento en que se solidifica, en la investigación lingüística brasileña, una agenda de asuntos
vinculados a los diferentes emprendimientos sociodiscursivos, así como se intensifica,
transformándose en un lugar común, la crítica contundente a la gramática tradicional como
instrumento de enseñanza de portugués.

Palabras clave: Tradición sociodiscursiva. Lingüística brasileña. Enseñanza de Portugués.


Historiografía de la Lingüística.
ABSTRACT

The purpose of this thesis is investigate, from a historiographic perspective, the


construction of the socio-discursive tradition in the field of linguistic research in Brazil and its
implications for the reflections on the teaching of the Portuguese language. Socio-discursive
tradition (SDT) is understood as a tradition that, according to Laudan (2011 [1978]) and
Hymes (1983), consists of theoretical-methodological factors that conceive language as a
social and discursive phenomenon, just as sociolinguistics, text linguistics, discourse analysis
and functionalism also do. Having this concept as a starting point, the main goal of this
research aims to present a historiographic narrative on the emergence, development and
consolidation of the SDT in the field of linguistic research in Brazil between 1970 and 1999
by observing, with the help of historiographic resources published in that period, the
construction of knowledge about language as a theoretical and teachable object. This research
is situated within the domain of Linguistic Historiography, a field of knowledge that aims to
understand how and under which circumstances linguistic ideas are conceived, processed,
received, interpreted, legitimized or set to oblivion (KOERNER, 1996; ALTMAN, 2012;
SWIGGERS, 2013). Therefore, in this study, it has been sought to interpret the knowledge
about language in its immanence and in its relation to an intellectual, social and cultural
context. Our investigative corpus consists of historiographical resources published in four
highly renowned journals in the area, namely ALFA: Revista de Linguística Aplicada, Letras
de Hoje, Cadernos de Estudos Linguísticos, and Trabalhos em Linguística Aplicada, all of
which concentrate a significant part of the academically legitimized linguistic research in
Brazil. The analyzed corpus consists of the following types of sources: (i) the ones that were
published between 1970 and 1999; (ii) the ones in which the epistemological fundamentals of
SDT and its constitutive elements are present; (iii) the ones characterized as propositional
texts and action research. Results show that the construction of the socio-discursive tradition
in the reflection on language happened in three different moments, namely, (i) the emergence
of SDT, a moment in which the first reflections on text, discourse and linguistic variation
were made by Brazilian researchers, even though there was no consolidation of research
groups dedicated to the study of those three objects; (ii) the development of SDT, a period in
which it was possible to notice the creation of research groups where the socio-discursive
fundamentals of language and their implications to the teaching of the Portuguese language
were heavily discussed, and (iii) the consolidation of SDT, a period where the discussions
about different socio-discursive phenomena were not only solidified, but also intensified in
the Brazilian linguistic research, which led to a frequent severe criticism of traditional
grammar as a tool to the teaching of Portuguese in Brazil.

Keywords: Socio-discursive tradition. Brazilian linguistics. Portuguese language teaching.


Linguistic Historiography.
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Disposição dos programas de investigação na tradição linguística ocidental........78


Quadro 2 – Diálogos entre diretrizes epistemológicas da TSD e domínios disciplinares
da linguística........................................................................................................82
Quadro 3 – Periodização de análise da TSD e fatos relevantes..............................................113
Quadro 4 – Periódicos indexados selecionados para coleta de fontes....................................117
Quadro 5 – Seleção de fontes do periódico ALFA: Revista de Linguística: década de
1970.....................................................................................................................118
Quadro 6 – Seleção de fontes do periódico ALFA: Revista de Linguística: década de
1980.....................................................................................................................118
Quadro 7 – Seleção de fontes do periódico ALFA: Revista de Linguística: década de
1990.....................................................................................................................118
Quadro 8 – Seleção de fontes do periódico Letras de Hoje: década de 1970.........................119
Quadro 9 – Seleção de fontes do periódico Letras de Hoje: década de 1980.........................119
Quadro 10 – Seleção de fontes do periódico Letras de Hoje: década de 1990.......................120
Quadro 11 – Seleção de fontes do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos: década
de 1970.............................................................................................................120
Quadro 12 – Seleção de fontes do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos: década
de 1980.............................................................................................................120
Quadro 13 – Seleção de fontes do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos: década
de 1990.............................................................................................................121
Quadro 14 – Seleção de fontes do periódico Trabalhos em Linguística Aplicada: década
de 1980.............................................................................................................121
Quadro 15 – Seleção de fontes do periódico Trabalhos em Linguística Aplicada: década
de 1990.............................................................................................................122
Quadro 16 – Distribuição das categorias de análise nos eixos de análise interna e
externa..............................................................................................................125
Quadro 17 – Informações das fontes analisadas do periódico ALFA: Revista de Linguística
publicadas no período de emergência da TSD.................................................130
Quadro 18 – Informações das fontes analisadas do periódico Letras de Hoje publicadas
no período de emergência da TSD...................................................................134
Quadro 19 – Informações da fonte analisada do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos
publicada no período de emergência da TSD..................................................141
Quadro 20 – Informações das fontes analisadas do periódico ALFA: Revista de Linguística
publicadas no período de desenvolvimento da TSD.........................................144
Quadro 21 – Informações das fontes analisadas do periódico Letras de Hoje publicadas
no período de desenvolvimento da TSD...........................................................152
Quadro 22 – Informações das fontes analisadas do periódico Cadernos de Estudos
Linguísticos publicadas no período de desenvolvimento da TSD...................166
Quadro 23 – Informações das fontes analisadas do periódico Trabalhos em Linguística
Aplicada publicadas no período de desenvolvimento da TSD.........................174
Quadro 24 – Informações das fontes analisadas do periódico ALFA: Revista de Linguística
publicadas no período de consolidação da TSD..............................................190
Quadro 25 – Informações das fontes analisadas do periódico Letras de Hoje publicadas no
período de consolidação da TSD.....................................................................203
Quadro 26 – Informações das fontes analisadas do periódico Cadernos de Estudos
Linguísticos publicadas no período de consolidação da TSD..........................213
Quadro 27 – Informações das fontes analisadas do periódico Trabalhos em Linguística
Aplicada publicadas no período de consolidação da TSD...............................221

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Convergências no domínio da TSD.......................................................................103


LISTA DE ABREVIATURAS

AD Análise do Discurso
ALB Associação de leitura do Brasil
ANPOLL Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística
CAC Centro de Artes e Comunicações
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CEDOCH Centro de Documentação em Historiografia da Linguística
CFE Conselho Federal de Educação
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
FAE Fundação de Assistência ao Estudante
GT Grupo de trabalho
HGEL Historiografia, Gramática e Ensino de Línguas
HiL História das Ideias Linguísticas
HL Historiografia da Linguística
IEL Instituto de Estudos da Linguagem
LD Livro didático
LDP Livro didático de português
LT Linguística de texto
MEC Ministério da Educação
NGB Nomenclatura Gramatical Brasileira
NURC Projeto Norma Urbana Culta
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
PNLD Programa Nacional do Livro Didático
PPGL Programa de Pós-graduação em Letras
PUCRS Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica
SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
TLA Trabalhos em linguística aplicada
TSD Tradição sociodiscursiva
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFMT Universidade Federal do Mato Grosso
UFPB Universidade Federal da Paraíba
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UFPI Universidade Federal do Piauí
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
UFU Universidade Federal de Uberlândia
UNESP Universidade Estadual Paulista
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO: EM BUSCA DE MEMÓRIAS ACERCA DA REFLEXÃO


LINGUÍSTICA NO BRASIL.......................................................................................20
1.1 PERGUNTAS DE PESQUISA.....................................................................................27
1.2 OBJETIVOS DE PESQUISA.......................................................................................28
1.3 OBJETIVO GERAL.....................................................................................................28
1.4 OBJETIVOS ESPECÍFICOS........................................................................................29
1.5 JUSTIFICATIVAS........................................................................................................29
1.6 ORGANIZAÇÃO DA TESE........................................................................................32
2 FUNDAMENTOS DA HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA.........................33
2.1 MODELOS DE CONSTRUÇÃO HISTÓRICA: HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA,
HISTÓRIA DAS IDEIAS LINGUÍSTICAS, HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA...34
2.2 OBJETOS E OBJETIVOS DA HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA .................41
2.3 ENTRE A HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA E A HISTÓRIA DAS
CIÊNCIAS: DOS PARADIGMAS AOS PROGRAMAS DE INVESTIGAÇÃO
E ÀS TRADIÇÕES DE PESQUISA...............................................................................46
2.4 DIÁLOGOS ENTRE A HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA E A SOCIOLOGIA
DA CIÊNCIA: A FORMAÇÃO DE GRUPOS DE ESPECIALIDADE.........................53
2.5 DIMENSÕES, PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS DA CONSTRUÇÃO
HISTORIOGRÁFICA...................................................................................................57
3 A TRADIÇÃO SOCIODISCURSIVA NOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS
OCIDENTAIS..............................................................................................................65
3.1 ATÉ QUE PONTO SE PODE FALAR EM UMA VIRADA NA LINGUÍSTICA
OCIDENTAL?..............................................................................................................67
3.2 TRADIÇÃO SOCIODISCURSIVA: DOMÍNIOS E FRONTEIRAS............................72
3.2.1 Diretrizes epistemológicas..........................................................................................77
3.2.1.1 Discurso.........................................................................................................................83
3.2.1.2 Texto..............................................................................................................................87
3.2.1.3 Variação linguística.......................................................................................................91
3.2.1.4 Usos e funções...............................................................................................................97
3.2.2 Diálogos entre os empreendimentos sociodiscursivos e a solidificação
da TSD........................................................................................................................101
4 ASPECTOS METODOLÓGICOS..........................................................................107
4.1 PERIODIZAÇÃO.......................................................................................................108
4.2 PARÂMETROS PARA A SELEÇÃO E O MAPEAMENTO DAS FONTES
HISTORIOGRÁFICAS..............................................................................................114
4.3 PARÂMETROS E CATEGORIAS DE ANÁLISE....................................................122
5 A TRADIÇÃO SOCIODISCURSIVA NA PESQUISA LINGUÍSTICA
BRASILEIRA E IMPLICAÇÕES PARA A REFLEXÃO SOBRE ENSINO
DE LÍNGUA PORTUGUESA..................................................................................126
5.1 A EMERGÊNCIA DA TSD E EFEITOS NA REFLEXÃO SOBRE ENSINO
DE LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL (1970-1979).........................................129
5.1.1 ALFA: Revista de Linguística...................................................................................129
5.1.2 Letras de hoje............................................................................................................134
5.1.3 Cadernos de Estudos Linguísticos...........................................................................140
5.1.4 Atando os nós: à guisa de sistematização.................................................................143
5.2 O DESENVOLVIMENTO DA TSD E EFEITOS NA REFLEXÃO SOBRE
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL (1980-1989).........................144
5.2.1 ALFA: Revista de Linguística...................................................................................144
5.2.2 Letras de Hoje............................................................................................................151
5.2.3 Cadernos de Estudos Linguísticos...........................................................................166
5.2.4 Trabalhos em Linguística Aplicada.........................................................................174
5.2.5 Atando os nós: à guisa de sistematização.................................................................188
5.3 A CONSOLIDAÇÃO DA TSD E EFEITOS NA REFLEXÃO SOBRE ENSINO
DE LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL (1990-1999).........................................189
5.3.1 ALFA: Revista de Linguística...................................................................................189
5.3.2 Letras de hoje............................................................................................................203
5.3.3 Cadernos de Estudos Linguísticos...........................................................................213
5.3.4 Trabalhos em Linguística Aplicada.........................................................................221
5.3.5 Atando os nós: à guisa de sistematização.................................................................229
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................231
REFERÊNCIAS........................................................................................................235
FONTES HISTORIOGRÁFICAS...........................................................................247
20

1 INTRODUÇÃO: EM BUSCA DE MEMÓRIAS ACERCA DA REFLEXÃO


LINGUÍSTICA NO BRASIL

A memória torna as experiências inteligíveis, conferindo-lhes significados. Ao trazer


o passado até o presente, recria-o, ao mesmo tempo em que o projeta no futuro;
graças a essa capacidade da memória de transitar livremente entre os diversos
tempos, o passado se torna verdadeiramente passado, e o futuro, futuro (AMADO,
1995, p.132).

Nossa conexão com o passado se realiza através da memória: „recordação‟,


retrospecção e (consciente ou inconscientemente) „experiência‟ adquirida. Há, no
entanto, mais do que isso: esta memória „integrada‟ – ou corporificada – nos prepara
(muitas vezes, implicitamente) para o futuro. Obviamente, historiógrafos cultivam
memórias: ela é, por assim dizer, o habitat natural deles. Nós falamos de „tradição‟,
„patrimônio‟, „escolas‟, „paradigmas‟, „transmissão de ideias‟, „influência‟,
„empréstimo‟, „recepção‟, „horizonte de retrospecção‟, etc., termos mais ou menos
técnicos que compartilham uma característica fundamental, a saber: eles estão todos
baseados em memória e em memórias (SWIGGERS, 2018, p. 27).

As memórias socialmente construídas e compartilhadas ao longo da história de


comunidades organizadas permitem que crenças, práticas e concepções de toda sorte sejam
encaradas no presente pelo prisma da obviedade. O resgate das memórias que constituem a
história da humanidade em suas práticas variadas, a partir do qual se pode construir um
grande mosaico multifacetado, complexo em sua essência, permite que compreendamos,
ainda que por intermédio de pistas por vezes imprecisas, nosso lugar no mundo, nossas
posturas e atitudes. As práticas do presente são, pois, consequência do curso da história, que,
ao longo do tempo, em processos de continuidades e rupturas com tradições vigentes,
condiciona a instalação de bases que constituem plataforma para a emergência e sedimentação
de concepções hoje amplamente aceitas e difundidas.
Pelo crivo do discurso acadêmico-científico-intelectual, a compreensão consensual,
por exemplo, do efeito da gravidade, da evolução das espécies, dos processos criativos de
textos literários, da construção retórica dos discursos públicos, do componente social das
línguas naturais, entre outros, só nos é possível porque, enquanto indivíduos social e
historicamente organizados, compartilhamos uma memória coletiva que fala antes de nós.
Memória cuja tessitura é, ao longo do tempo, esquecida: conhecemos os produtos acabados
(as teorias, os saberes, as práticas, as tradições), mas muitas vezes o caminho percorrido até
seu acabamento nos é estranho. É necessário, entretanto, defende Borges Neto (1999), um
ponto de equilíbrio entre passado e presente: se, por um lado, “o homem sem história perde
sua humanidade e se iguala ao animal”, por outro, “a história o algema ao passado” (p. 2). Na
21

busca pelo equilíbrio que defende o autor, cabe ao homem entender o curso de sua história
para que, no presente, possa compreender apropriadamente a memória coletiva que o constitui
enquanto sujeito de seu tempo.
No âmbito das ciências em seus múltiplos campos de atuação intelectual, o resgate de
memórias que constituem as práticas investigativas do passado oportuniza à comunidade
compreender que a configuração dos objetos teóricos resulta de um trabalho coletivo que se
dá no interior das comunidades científicas, espaço marcado por conflitos internos e tensões
entre agentes que, por meio de retóricas orientadas à persuasão, buscam legitimar suas teses
no contexto do circuito de discussão acadêmica. O retorno à história de qualquer área do
conhecimento com razoável tradição construída ao longo do tempo permite ao pesquisador
desconstruir o mito do herói intelectual que, num dado momento de epifania, teria encontrado
solução para os problemas postos em pauta nos debates de sua área. Ao resgatar as memórias
de sua tradição epistemológica, está apto, o pesquisador, a compreender sua prática como
parte do fluxo (des)contínuo da produção do conhecimento, o que pressupõe olhar para a
emergência ou queda de paradigmas, para a manutenção ou não da ciência em seu estado
normal, para as tensões e embates inerentes aos estados de crise de teorias hegemônicas –
tomando de empréstimo os termos de Kuhn (1998 [1962]).
Dessa forma, ao reconhecer a necessidade e a importância do resgate de memórias do
homem em suas práticas científicas – atualizando-as e adequando-as ao olhar do homem
presente –, este trabalho traz como tema o processamento, ao longo de três décadas, de uma
intensa e profícua produção de conhecimento acadêmico no campo dos estudos da linguagem
no cenário brasileiro. Mais detidamente, proponho-me a investigar, a partir de uma
abordagem historiográfica, a construção do que denomino tradição sociodiscursiva na
pesquisa linguística brasileira, apontando suas implicações para a reflexão sobre o ensino de
língua portuguesa promovida no Brasil entre os anos de 1970 e 1999.
Parto do pressuposto de que o resgate de memórias sobre a produção intelectual da
linguística brasileira, teórica ou aplicada ao ensino, contribui sobremaneira para se pensar na
língua e nas linguagens em geral como objetos teóricos e ensináveis que se moldam ao sabor
das condições de reflexão em que são discutidos. Assim, defendo a necessidade do
empreendimento do retorno ao passado de modo a contribuir para que o estudioso da
linguagem e o professor de língua portuguesa do presente compreendam que os saberes que
subjazem às práticas escolares são produtos da História e de estórias que, retomando a
metáfora do mosaico, se organizam organicamente formando um só painel. A observação e a
22

análise do mosaico de memórias contribuem para o entendimento de que os saberes são, pois,
arquiteturas cujas bases se erigem no seio de condicionantes ligados ao momento de sua
configuração. Compreendemos, por consequência, que o estabelecimento da língua e das
linguagens como objetos teóricos e ensináveis se desenha no bojo dos conflitos entre agentes
e discursos que, de modo organizado, configuram retóricas de convencimento aceitas ou
negadas pela coletividade acadêmica.
Neste trabalho, estou chamando de tradição sociodiscursiva (TSD) um complexo e
heterogêneo domínio epistemológico, erguido e sustentado por diferentes empreendimentos
teórico-metodológicos que, a despeito de diferenças no trato descritivo, convergem em certos
pontos específicos, na medida em que compreendem a linguagem como um fato
sociodiscursivo1, afastando-se, assim, de perspectivas inscritas numa tradição formalista,
como o estruturalismo e o gerativismo. Fundamentalmente, as abordagens que constituem a
TSD analisam a língua como um objeto cuja compreensão se processa a partir da relação
constitutiva entre estruturas linguísticas (sons, palavras, frases) e múltiplas questões que
residem na exterioridade da linguagem. Assim operam analiticamente, por exemplo: (i) a
linguística de texto, que estuda o texto falado ou escrito como atividade de natureza
linguística, sociocultural e cognitiva, configurada em práticas de interlocução; (ii) a análise
do discurso, que investiga o funcionamento dos processos sociais, históricos e ideológicos
que se materializam na e pela linguagem; (iii) a sociolinguística, que discorre sobre a
variação linguística a partir do olhar para a língua em sua relação direta com a estrutura e a
organização da sociedade; e (iv) o funcionalismo, que estuda a linguagem como resultado de
práticas sociopragmaticamente orientadas. Emergem daí enfoques investigativos que, devido
à sua relação com a indeterminação dos elementos externos ao sistema linguístico, foram
recusados da agenda da linguística enquanto ciência por consequência do fundador corte
saussureano – como o texto, o discurso, a variação, os usos e as funções pragmáticas da
linguagem.
Muito mais que um conjunto de teorias agrupadas, entendo a TSD como uma
tradição de pesquisa, no sentido atribuído por Hymes (1983) e Laudan (2011 [1978]), ou seja,
como um macrodomínio epistemológico que, consolidado numa dada conjuntura intelectual e
social, angariou espaço e legitimidade ao longo do curso da história. É inegável que a
natureza mutável, heterogênea, flexível e instável da língua consiste num saber, pode-se dizer,

1
Estou tomando o epíteto sociodiscursivo em sentido global e generalizador. O social e o discursivo, grosso
modo, residem no domínio fortuito da parole e da performance, instâncias marginalizadas pelos
empreendimentos ligados à tradição formalista. Aprofundarei a discussão no capítulo 3.
23

incorporado à linguística contemporânea como um lugar comum, um pressuposto


razoavelmente consensual, uma ideia linguística consolidada. É nesse sentido que a TSD
consiste numa tradição, entre outras, cujos efeitos ecoam em diferentes espaços,
institucionalizados ou não.
Uma vez que o conhecimento sobre a linguagem não emerge senão atrelado a um
contexto intelectual e social particular, como resultado de ações empreendidas por certos
grupos articulados, compreendo que a pauta sociodiscursiva, no interior da linguística
ocidental, carrega uma história passível a descrição e a interpretação. A essa história global,
emergente, inicialmente, na Europa da década de 1960, ligam-se outras histórias, dentre elas a
protagonizada pela linguística brasileira. É aí que reside meu foco investigativo. Nesta tese,
detenho-me aos desdobramentos da TSD protagonizada pela pesquisa linguística brasileira,
desde seus primeiros momentos de emergência, na década de 1970, passando pelo seu
desenvolvimento, até sua consolidação, a partir, principalmente, da década de 1990 (com
desdobramentos até os dias de hoje).
Partindo do pressuposto de que há uma correlação direta entre concepções de língua e
linguagem e concepções de ensino de língua, interessa-me como se desenvolveram no Brasil
as pesquisas sobre o texto, o discurso, a variação linguística, os usos e as funções da
linguagem – objetos constitutivos da TSD –, mas também como a pesquisa linguística
brasileira, nesse horizonte, refletiu sobre o ensino de língua portuguesa. Em outras palavras,
nesta narrativa historiográfica sobre a TSD, atenho-me à compreensão da reflexão sobre a
língua tanto como objeto teórico quanto como objeto ensinável, duas faces que costuram uma
mesma história.
A propósito da relação entre a TSD e o ensino de língua portuguesa, considero que
residem aí diferentes histórias das quais dariam conta, consequentemente, diferentes
narrativas. A consolidação do empreendimento sociodiscursivo no Brasil resultou na
promoção de alguns deslocamentos – cada um com uma história particular, ainda que
entrelaçadas –, a saber:

a. um deslocamento na reflexão sobre o ensino de língua portuguesa, que pressupõe o


estabelecimento de um novo objeto ensinável para as aulas de língua materna, com foco
no texto contextualizado (não mais na oração isolada e descontextualizada), nas intenções
dos indivíduos que utilizam a língua em situações reais de interlocução, no
atravessamento social das variedades linguísticas, entre outros. Desenha-se, assim, um
24

novo modo de se ensinar (sobre) os conhecimentos gramaticais, a leitura, a produção de


textos (aqui, orais e escritos);
b. um deslocamento na produção de material didático destinado ao ensino de língua na
educação básica, legitimado, a essa altura, por currículos e orientações curriculares
oficiais (cf. SÃO PAULO, 1988 e 1992; FRANCHI, 1988; BRASIL, 1997) e políticas
públicas como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Nesse momento, que
data de meados da década de 1980, os livros didáticos começam a incorporar
sistematicamente saberes ligados às abordagens sociodiscursivas, ainda que muitos outros
(com tiragem e adoções consideráveis), orientados por perspectivas mais voltadas à
estrutura da língua, com grande apelo à metalinguagem e ao ensino de uma norma-padrão
artificial, continuem a circular nas escolas públicas e privadas (SOARES, 1986);
c. um deslocamento nas práticas de ensino de língua no contexto escolar, movimento que
está ainda em curso nos dias de hoje, a passos lentos, a considerar, por exemplo, (i) o
massivo número de trabalhos escritos nos últimos dez anos por linguistas e educadores
cujo objetivo maior é a orientação de professores quanto ao ensino inclusivo e
democrático a partir de metodologias alinhadas à concepção de língua subjacente à TSD,
como se pode observar em Antunes (2009), Guedes (2009), Neves (2010), Elias (2011),
Bagno (2012), Silva et. al. (2012), Rojo e Moura (2012), Bunzen e Mendonça (2013),
Bortoni-Ricardo et. al. (2014), Antunes (2014), Martins et. al. (2014), Faraco e Zilles
(2015), Abreu e Sperança-Criscuolo (2016), Marquesi et. al. (2017), Gonçalves (2017),
Azeredo (2018), Carvalho e Ferrazi (2018), para citar alguns; (ii) o quantitativo
considerável de trabalhos (dissertações, teses, artigos) que atestam, a partir de observação
de práticas escolares atuais, a frequente recorrência do ensino de língua, nos diferentes
eixos, vinculado à tradição normativa, prescritiva, classificatória, beletrista, limitada à
oração e à sua imanência semântica; os trabalhos de Silva (2009), Souza (2010), Santos
(2010), Silva e Morais (2011), Ibiapina (2012) e Lima (2016) ratificam tal afirmação.
Defendo, portanto, que se trata de um deslocamento em curso; o enraizamento e a
legitimação desse movimento dependem de muitos fatores – de natureza social,
ideológica, política – os quais não cabe aqui discutir de modo pormenorizado.

Cada um desses movimentos contempla diferentes micronarrativas que, em conjunto,


compõem uma narrativa global, esta ainda em curso e por nós protagonizada. Compreendendo
os limites (de espaço e de fôlego) desta tese, considero que seria inexequível o tratamento
25

aprofundado dos três deslocamentos acima referidos. Dessa forma, repouso meus esforços,
exclusivamente, na compreensão historiográfica do deslocamento promovido pela TSD na
reflexão acadêmica sobre o ensino de língua portuguesa – sem, entretanto, desconsiderar as
demais micronarrativas que, em conjunto, constituem importantes pilares da história dos
saberes que orbitam em torno do ensino de língua portuguesa no cenário brasileiro.
Em suma, busco compreender como se deu a construção histórica da TSD na pesquisa
linguística brasileira, em seus processos de continuidades ou rupturas com tradições e saberes
vigentes, investigando como emergiram, desenvolveram-se e foram consolidadas as ideias
linguísticas que constituem essa tradição. Em outras palavras, proponho tecer uma narrativa
historiográfica capaz de mapear, descrever e interpretar textos, agentes e discursos que
conduziram o empreendimento sociodiscursivo na linguística brasileira entre 1970 e 1999.
Este trabalho segue o rumo, ainda pouco explorado no Brasil, de pesquisas
historiográficas que se empenharam em resgatar memórias dos estudos linguísticos brasileiros
em suas diferentes épocas. Nesse domínio, é de suma importância resgatar alguns trabalhos
que por esse caminho enveredaram, contribuindo para a reconstrução histórica da linguística
brasileira em seus diferentes momentos e espaços institucionais. Cito, primeiramente, Mattoso
Câmara (1975), cuja obra apresenta “reflexão sistemática, suficientemente abrangente, sobre
autores, obras, periodização, tradições, continuidades, descontinuidades, alternância,
coocorrência e recorrência de problemas da linguística” (ALTMAN, 1996, p. 175), ainda que
se trate de uma história mais descritivo-narrativa que interpretativa (COELHO &
HACKEROTT, 2012); na mesma linha, Elia (1975), que descreve e interpreta estudos
gramaticais produzidos no Brasil entre o final do século XIX e a década de 1960; Altman
(1994, 1995, 2004), que busca reconstruir historiograficamente passagens da produção
intelectual da linguística brasileira a partir da segunda metade da década de 1960; Castilho
(1962) e Cavaliere (2001), que propõem uma periodização da Linguística brasileira em
diferentes fases; além de Batista (2007, 2010) e Cavaliere (2014), cujos propósitos,
respectivamente, recaem na recepção e circulação de teorias linguísticas no cenário
acadêmico brasileiro, a saber, também respectivamente, o gerativismo e a sociolinguística. No
que tange à história do processo do ensino de língua no Brasil, destaco Bastos (1998) e as
relevantes coletâneas de textos organizados por Bastos e Palma (2014, 2016 e 2018), no
âmbito do projeto História Entrelaçada, cuja contribuição historiográfica consiste na
26

descrição e interpretação de importantes fontes que dão corpo à história da educação


linguística entre as décadas de 1960 e 19802.
Como aparato teórico-metodológico para fundamentar a construção da narrativa
historiográfica aqui desenhada, tomo as diretrizes da Historiografia da Linguística (HL),
orientada, sobretudo, pelos postulados de Koerner (1996, 1999, 2014), Swiggers (1990, 2010,
2013) e Altman (2004, 2012), em articulação com as propostas de Hymes (1983) e Murray
(1994). A HL consiste em uma disciplina cujo expediente está centrado na reconstrução da
história do conhecimento linguístico, situado num tempo e espaço, em seus processos de
continuidades e descontinuidades, unificação e diversidade. Cabe à HL, desse modo,
investigar como e em que condições as formas de conhecimento linguístico – produzidas pela
tradição acadêmica ou não – foram concebidas, recebidas, interpretadas, consolidadas,
legitimadas, deslegitimadas e até mesmo esquecidas. Desse modo, em sentido amplo, uma vez
orientado pelos fundamentos da HL e preocupado com a reconstrução de uma parcela da
tradição acadêmica brasileira, este trabalho conversa diretamente com áreas como a História
das Ciências, a Filosofia da Ciência e a Epistemologia.
Ao assumir uma abordagem historiográfica, a reconstrução histórica da TSD se orienta
por um aparato metodológico norteado fundamentalmente pelas pistas e pelos vestígios
observáveis em diferentes fontes historiográficas que, de algum modo, são capazes de clarear
questões obscuras ou postas ainda em nível hipotético. Pela criteriosa seleção, organização,
descrição e interpretação das fontes historiográficas – o que Swiggers (2013) chama de
postura heurística e hermenêutica –, o historiógrafo cria condições para a reconstrução do
clima de opinião (KOERNER, 1996), ou seja, da atmosfera intelectual em que se inserem os
textos submetidos à análise, abrindo caminho para a elucidação dos problemas focados na
investigação.
É evidente a importância das fontes historiográficas para a construção das narrativas,
afinal, elas constituem o caminho de acesso através do qual o pesquisador exerce o complexo
trabalho de resgate e reconstrução da história do conhecimento linguístico. São exemplos de
fontes historiográficas: obras propositivas, manuais, artigos, ensaios, registro de falas
públicas, documentos oficiais, resenhas, documentos institucionais, materiais didáticos,
dicionários, gramáticas, relatórios, atas, depoimentos pessoais, editoriais etc. O mergulho

2
Cabe aqui mencionar outros trabalhos que, embora não partilhem da perspectiva hermenêutica da
Historiografia da Linguística, abordam, direta ou indiretamente, a história dos estudos linguísticos brasileiros e
sua relação com o ensino de língua: Brandão (1991), Zanini (1999), Koch (1997 e 1999), Soares (2002), Clare
(2002, 2003), Bunzen (2011), Fávero (2012), Santos (2014), Matos (1992, 1995, 2012, 2013), Lorenset (2014),
Fávero e Molina (2017) e Pietri (2010, 2013, 2018).
27

profundo no domínio dessas fontes deve ser metodologicamente conduzido, num trabalho
analítico contextualmente situado. O historiógrafo compreende as memórias do passado,
dessa forma, interligando-as, atando-as, pondo-as em contraponto, adequando-as à visão do
homem presente, com vistas à compreensão do fenômeno almejado – no nosso caso, a
emergência, o desenvolvimento e a consolidação da TSD no Brasil.
É possível constatar o compromisso da HL com a reconstrução do passado a partir de
um recuo que possibilita ao pesquisador do presente compreender mais profundamente seu
objeto investigativo. Ao linguista e, mais especificamente, ao professor de língua portuguesa,
esse trabalho permite a elucidação da natureza mutável da reflexão sobre a língua enquanto
objeto teórico e enquanto objeto ensinável. Se, por um lado, o ponto de vista cria o objeto,
como defende precisamente Saussure (2006 [1916]) na obra que funda a Linguística como
ciência moderna, por outro, esse ponto de vista emerge num determinado tempo e espaço, ou
seja, no interior de um (por vezes conflituoso) clima de opinião intelectual, social, histórico,
político. Mais do que pensar no objeto criado por um ponto de vista, a agenda da HL está
interessada em compreender, antes, em que condições esse ponto de vista surge e delimita um
dado objeto linguístico. Nessa esteira, enquanto trabalho historiógrafo, a tese aqui apresentada
busca antes de tudo entender como se desenha, em seu tempo, o ponto de vista que concebe a
tradição sociodiscursiva na pesquisa linguística brasileira.

1.1 PERGUNTAS DE PESQUISA

Partindo da premissa de que a tradição sociodiscursiva instaurou deslocamentos


significativos no que tange à reflexão sobre o objeto língua no contexto acadêmico brasileiro,
bem como considerando que a investigação desse momento de produção intelectual permite
que o estado da arte dos estudos sobre ensino de língua materna seja compreendido em seus
momentos de continuidades e rupturas, defino como pergunta norteadora deste trabalho: como
se deram, entre 1970 e 1999, a emergência, o desenvolvimento e a consolidação da tradição
sociodiscursiva (TSD) na pesquisa linguística brasileira?
A motivação central da pesquisa, portanto, consiste na compreensão das etapas de
constituição da TSD no curso da história da linguística brasileira, partindo do pressuposto de
que o desenrolar desse movimento construiu plataforma favorável à emergência, no interior
dos centros de ensino e pesquisa do país, de novos rumos para o estudo sobre a língua e seu
ensino.
28

Como se pode observar, seja pela natureza da pergunta de pesquisa levantada, seja
pelo caminho historiográfico daí pressuposto, a resposta ao questionamento central lançado só
pode ser concebida por intermédio de uma observação minuciosa da complexa rede de fatores
internos e externos às ideias linguísticas e pedagógicas que atravessam a reflexão sobre o
ensino de língua no Brasil ao longo do período delimitado. Sendo assim, com o intuito de
elucidar do modo mais adequado possível a problemática norteadora, pormenorizo o
questionamento central, supramencionado, em outras seis perguntas, que listo abaixo:

a. de que modo a emergência, o desenvolvimento e a consolidação da TSD se relacionam


com atmosfera intelectual e social em que se procedeu a pesquisa linguística brasileira no
período de 1970 a 1999?
b. como se caracteriza, no interior de um programa de investigação (SWIGGERS, 1981), o
modelo teórico-metodológico em que se inscreve a TSD e que concepções de língua e seu
ensino, nos seus diferentes eixos constitutivos, estão aí subjacentes?
c. que lideranças intelectuais e organizacionais conduziram a divulgação dos saberes
estabelecidos em torno da TSD e como se deu essa condução no contexto intelectual da
época?
d. de que modo textos de ação e de diluição contribuíram com a divulgação e propagação da
TSD no circuito de discussão linguística durante o período analisado?
e. como se configuram os grupos de especialidade (MURRAY, 1994) que estabelecem as
bases necessárias à emergência, ao desenvolvimento e à consolidação da TSD no Brasil?
f. que tipo de retórica (MURRAY, 1994) os agentes que conduziram a construção da TSD
promovem em relação à tradição formalista?

1.2 OBJETIVOS DE PESQUISA

1.3 OBJETIVO GERAL

Partindo dos questionamentos norteadores da pesquisa, tomo como objetivo geral


deste trabalho apresentar uma narrativa historiográfica sobre a emergência, o
desenvolvimento e a consolidação da TSD na pesquisa linguística brasileira, entre os anos de
1970 e 1999.
29

1.4 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Em sintonia com o objetivo geral, visando à compreensão sistemática das perguntas de


pesquisa e, consequentemente, atendendo aos princípios necessários à construção da narrativa
historiográfica que me proponho a tecer, considero primordial o atendimento aos seguintes
objetivos específicos:

a. analisar a relação entre (i) o clima de opinião (contexto social, histórico, político e
atmosfera intelectual) em que se situa a pesquisa linguística brasileira entre 1970 e 1999 e
(ii) a constituição da TSD ao longo desse período;
b. estabelecer relações entre o paradigma em que se inscreve a TSD e a configuração de um
novo objeto ensinável para o ensino de língua portuguesa;
c. identificar quem foram as lideranças intelectuais e organizacionais que conduziram a
emergência e propiciaram o desenvolvimento e a consolidação da TSD;
d. analisar as contribuições de textos de ação e de diluição, no intervalo de tempo
examinado, para a promoção e o fortalecimento de ideias linguísticas atreladas à TSD;
e. compreender como se deram, nesse período, o surgimento e o desenvolvimento de grupos
de especialidade em torno dos diferentes empreendimentos teóricos ligados à TSD;
f. analisar o tipo de retórica – de ruptura ou de continuidade – exercida pelos agentes que,
coletivamente, conceberam a construção da TSD na pesquisa linguística brasileira.

1.5 JUSTIFICATIVAS

Swiggers (2018), em texto que homenageia a trajetória acadêmica de Cristina Altman


e que não por acaso ratifica a importância do resgate de memórias, trata da importância do
trabalho historiográfico para a compreensão da constituição histórica de nossas práticas,
afinal, esse esforço “nos prepara (muitas vezes, implicitamente) para o futuro” (SWIGGERS,
2018, p. 27). O futuro inevitavelmente pressupõe um presente, que, por sua vez, carrega um
passado. É no intervalo (e na interface) entre esses espaços de tempo que o conhecimento
histórico deve ser compreendido.
Partindo dessa premissa, considero que este trabalho se justifica na medida em que
permite compreender:
30

a. a TSD em suas condições históricas de existência, a partir do cotejo dos momentos que
conduziram, através de ações, agentes e retóricas de convencimento, a emergência, o
desenvolvimento e a consolidação dessa tradição. Tal movimento contribui, a meu ver,
com a construção de uma visão crítica sobre a constituição, ao longo do tempo, dos
saberes sobre língua e seu ensino;
b. o estabelecimento das bases teórico-metodológicas que serviram de modelo para a
implementação de políticas no futuro. É relevante destacar a importância da pesquisa para
a compreensão das formas de conhecimento sobre língua e seu ensino que, a partir da da
década de 1990, se desdobraram em diretrizes norteadoras oficiais e políticas públicas,
como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e o Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD);
c. a intrínseca relação entre conhecimento e sociedade, contribuindo para a imprescindível
reflexão sobre a construção dos saberes científicos no âmago da complexa trama social e
histórica que ultrapassa as ações e as vontades de um pesquisador genial e pioneiro que
inauguraria certa tendência intelectual inédita e inovadora. Em outras palavras,
desconstrói-se o mito do indivíduo “heroicizado” cujo trabalho se construiria na solidão
de sua genialidade e reforça o caráter coletivo e colaborativo que circunda a produção do
conhecimento científico.
Como se pode notar, os três itens elencados convergem na medida em que caminham
para mesma direção: todos nos permitem olhar para a história do conhecimento sobre a
linguagem e do ensino de língua portuguesa no Brasil em suas verdadeiras condições de
produção e recepção. Tal movimento contribui com a formação crítica do pesquisador e do
professor de língua portuguesa, tendo em vista que lhes permite enxergar entrelinhas
subjacentes à concepção das ideias sobre a linguagem e sobre o ensino desenvolvidas na
pesquisa linguística e educacional brasileira. Essa consciência proporcionada, defendem
Coelho & Hackerott (2012, p. 383), também

aguça a capacidade do linguista [e do professor de língua portuguesa, no caso desta


tese] de distinguir dentre as variações temáticas os (...) avanços no campo de estudo.
Leva-o, além disso, a reconhecer, numa época de crescente especialização, as linhas
gerais dos esforços científicos no passado e sua relevância para a pesquisa atual ou
futura.

De modo complementar, Batista (2013), apoiando-se em Koerner (1999), também


advoga pela relevância da HL na formação geral do cientista e do intelectual (e aqui,
novamente, reforço a figura do professor de língua portuguesa). Ignorar a conjuntura
31

intelectual, social e histórica em que as proposições e as práticas científicas são desenvolvidas


resulta na formação de um técnico, não de um cientista ou pesquisador. Para Batista (2013, p.
105),

um linguista (ou um bom gramático) será realmente um linguista (ou um gramático)


se souber não só avançar nos conhecimentos de sua área, mas também se puder
recuar, em uma reflexão teórica, ao passado de seu campo de estudos. A
Historiografia da Linguística colabora, portanto, para a formação de um pesquisador
completo, por assim dizer, intelectualmente apto a realizar avaliações sobre o
desenvolvimento de sua área de interesse.

Parto da ideia de que a afirmação acima também vale para o professor de língua
portuguesa, que deve ultrapassar o nível de formação técnica, sob pena de reduzir suas
práticas pedagógicas diárias a reproduções acríticas, não raro fora de sintonia com as
necessidades de seus estudantes. O professor deve ser, também, um “pesquisador completo”,
tomando as palavras de Batista. Assim sendo, ressalto a importância deste trabalho para que
linguistas, independentemente de orientação teórica, e professores de língua possam recuar ao
passado para avaliar e compreender, de modo crítico e aguçado, como se constituem as ideias
sobre língua, linguagem e seu ensino que atravessam a história da pesquisa linguística
brasileira.
Partindo, por fim, para um âmbito maior, para além das contribuições mais
detidamente ligadas à formação do professor e do linguista, pensemos que, antes das teorias e
proposições científicas construídas ao longo do tempo, a linguagem é manifestação simbólica
intrínseca ao homem, uma vez que lhe permite enxergar e significar o mundo. Nesse sentido,
fazer historiografia, qualquer que seja, contribui com a sociedade em geral na medida em que
põe em questionamento a história daquilo que interpela e constitui o homem em sua essência:
a linguagem. Tal consideração nos permite enxergar o trabalho da HL como um resgate,
também, de nossa história enquanto seres humanos (SWIGGERS, 2013), afinal, seu estudo
não só ensina sobre a história da linguística, como também “sobre o papel central que exerceu
e ainda exerce a linguagem na história das culturas, das sociedades, das atividades intelectuais
da humanidade” (SWIGGERS, 2013, p. 49).
32

1.6 ORGANIZAÇÃO DA TESE

Feitas as considerações iniciais necessárias à compreensão da proposta desta tese –


contextualização da pesquisa, perguntas motivadoras, objetivos e justificativas –, passo,
agora, à sumarização das seções que compõem o desenvolvimento do trabalho.
No capítulo 2 – Fundamentos da Historiografia da Linguística –, apresento o objeto,
os objetivos e os métodos investigativos que caracterizam o trabalho em Historiografia da
Linguística. Discuto, ainda, o contexto em surge a HL no âmbito da linguística ocidental e sua
articulação com outros campos disciplinares que direta ou indiretamente contribuem com a
compreensão historiográfica das formas de conhecimento, mais particularmente do
conhecimento sobre a linguagem.
No capítulo 3 – A tradição sociodiscursiva nos estudos linguísticos ocidentais –,
partindo de uma reflexão epistemológica sobre a noção de tradição, discuto em detalhes o que
entendo por tradição sociodiscursiva (TSD). Nesse percurso, apresento que empreendimentos
teóricos e metodológicos constituem as bases desse domínio, destacando pontos de
convergências entre essas abordagens.
No capítulo 4 – Aspectos metodológicos –, justifico e apresento as diretrizes
metodológicas estabelecidas para o trabalho, a saber: periodização, critérios de seleção das
fontes historiográficas, mapeamento das fontes selecionadas, parâmetros e critérios de
análise.
No capítulo 5 – A tradição sociodiscursiva na pesquisa linguística brasileira e
implicações para a reflexão sobre ensino de língua portuguesa –, analiso as fontes
historiográficas selecionadas em sua imanência e em seu contexto de produção e recepção.
Dessa análise resulta a costura de uma narrativa historiográfica acerca da emergência, do
desenvolvimento e da consolidação da TSD na pesquisa linguística brasileira, enfatizando-se
os deslocamentos, consequentes desse movimento intelectual, promovidos na reflexão sobre
língua e seu ensino.
Nas Considerações Finais, enfim, apresento as conclusões gerais da pesquisa,
atentando às indagações que motivaram este empreendimento.
33

2 FUNDAMENTOS DA HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA

Atribui-se ao poeta francês Paul Valéry (1871-1945) o seguinte dizer: “o homem


quase sempre sabe o que faz, mas quase nunca sabe o que faz fazer o que faz”. Em outras
palavras, a despeito da racionalidade do homem, que lhe confere percepção de domínio quase
absoluto sobre suas práticas e seu modo de pensar, esse indivíduo costumeiramente não
compreende (ou, melhor dizendo, não busca compreender) as raízes que sustentam seu modo
de ser no mundo. É na contramão da afirmação subjacente ao dizer do poeta simbolista que a
Historiografia da Linguística (HL) se fundamenta e configura sua especificidade no intervalo
entre as ciências da linguagem e a história da ciência. A HL está preocupada, portanto, em
investigar o que faz fazer com que floresçam, circulem ou até mesmo sejam esquecidas
formas de pensar a língua e as linguagens ao longo da história.
Este capítulo objetiva contextualizar o surgimento da HL no âmbito da linguística
ocidental, bem como elucidar os fundamentos que dão corpo ao empreendimento intelectual
proposto pela disciplina em articulação com outras áreas do saber que contribuem para a
concepção do pensamento historiográfico. A abordagem que segue se ancora, sobretudo, nos
postulados de Swiggers (1981, 1990, 2010, 2013), Koerner (1996, 1999, 2014), Altman
(2004, 2012), Hymes (1983) Murray (1994), nomes cujas reflexões são de reconhecida
importância para o campo da HL.
Antes, porém, como justificativa para o tom da seção que segue, julgo relevante e
necessário destacar a escassez de trabalhos de cunho historiográfico (nos moldes descritivos e
interpretativos preconizados pela HL) desenvolvidos no âmbito do Programa de Pós-
graduação em Letras da UFPE (PPGL) ao longo de seus mais de quarenta anos de existência 3.
Entretanto, olhando para os centros universitários do Nordeste como um todo, pode-se dizer
que os estudos historiográficos da linguagem têm angariado força e representatividade em
alguns pontos isolados da região. Cito, por exemplo, os trabalhos desenvolvidos na
Universidade Federal da Paraíba e na Universidade Federal do Piauí. Os grupos de pesquisa
Historiografia, gramática e ensino de línguas (HGEL)4 e Historiografia Linguística no
Brasil: estudo de fontes pretéritas e contemporâneas5, liderados, respectivamente, por
Francisco Eduardo Vieira (UFPB) e Marcelo Alessandro Limeira dos Anjos (UFPI),

3
Convém mencionar, todavia, o trabalho de Vieira (2015), que investiga as gramáticas brasileiras
contemporâneas do português em sua imanência e no contexto social e epistemológico que circunscreve a
linguística e a gramatização brasileiras no século XXI.
4
Espelho do grupo no Diretório do CNPq: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/6433198070413694
5
Espelho do grupo no Diretório do CNPq: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/2196204928483826
34

representam importantes ações em prol da divulgação e da consolidação de uma agenda de


pesquisas historiográficas no debate linguístico do Nordeste brasileiro.
Compreendendo a necessidade de maior engajamento na tarefa de discussão e difusão
dos fundamentos da HL no cenário local, assumo nesta seção uma abordagem de divulgação
desse campo da linguística imprescindível à compreensão da construção das ideias
linguísticas, sem, entretanto, perder de vista o princípio básico de uma fundamentação teórica
necessária à compreensão da arquitetura global do trabalho.

2.1 MODELOS DE CONSTRUÇÃO HISTÓRICA: HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA,


HISTÓRIA DAS IDEIAS LINGUÍSTICAS, HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA

A tarefa de construção histórica das diversas áreas do saber e, mais restritamente, das
subdisciplinas que lhes dão sustentação – no sentido de resgatar teorias, concepções, datas e
autores importantes – já carrega algum tempo enquanto prática acadêmica. Em se tratando,
especificamente, da história da linguística brasileira, Altman (1996) destaca algumas
referências que promoveram esse movimento de construção cronista do passado, como Elia
(1963), Borba (1967) e Miazzi (1972); já Batista (2013), por sua vez, abarcando a linguística
em cenário global, aponta os nomes de Ramanzini (1990) e Carboni (2008), aos quais eu
acrescentaria Mounin (1970), Robins (1979) e, mais recentemente, Weedwood (2002). Essas
obras retomam a história do conhecimento linguístico numa perspectiva linear, cumulativa,
sustentada pela visão de que a emergência de uma teoria resulta da consequente superação de
modelos teóricos que a precedem.
Para Coelho e Hackerott (2012), a seção que abre o Curso de Linguística Geral, de
Saussure (2006 [1916]), intitulada Visão geral da história da linguística, ilustra bem o modo
de fazer história acima destacado. Essa passagem do Curso, na interpretação das autoras,
apresenta uma cronologia progressiva e linear da história da linguística desenvolvida até o
século XIX, com foco nos temas, autores e escolas que protagonizaram os estudos da
linguagem no Ocidente até antes do estabelecimento da linguística saussureana (posta, no
texto, como inovadora, científica e, por isso, mais adequada ao tratamento dos fatos de
língua). O resgate do passado registrado na obra

parece indicar que os „gramáticos‟ conheciam menos sobre língua e linguagem que
os „filólogos‟, que sabiam menos que os „comparatistas‟, que, por sua vez, erraram
mais do que os „linguistas históricos‟, cujos conhecimentos seriam, por fim,
iluminados por uma linguística geral de orientação sincrônica. Essa visão
35

cumulativa da história, em última instância, desautoriza as conclusões a que


chegaram os estudiosos e as escolas anteriores e concebe as propostas mais recentes
como mais verdadeiras (COELHO e HACKEROTT, 2012, p. 387).

A Historiografia da Linguística investe em outro projeto de resgate das memórias


sobre as línguas e a linguagem, ainda que as datas, os nomes e as ações desenvolvidas lhe
sejam também relevantes.
Antes do mergulho mais profundo no domínio da HL, considero importante esclarecer
os limites do que se pode compreender por História da Linguística, História das Ideias
Linguísticas e, finalmente, Historiografia da Linguística6, afinal, apesar das diferenças de
abordagem, todas as três disciplinas lidam com o resgate do pensamento linguístico pretérito.
As diferenças (e, em alguns casos, divergências) metodológicas e conceituais existentes entre
as disciplinas serão aqui destacadas7.
A História da Linguística8 agrega trabalhos que buscam arrolar as teorias, os métodos
e os teóricos da linguagem numa linha do tempo contínua e progressiva, marcada por
sucessões e superações (ALTMAN, 1996 e 2004), tal como exemplificado acima na análise
da Visão geral da história registrada em Saussure (2006 [1916]). Esse tipo de História
concentra seu esforço analítico, portanto,
a. na definição dos objetos teóricos construídos por diferentes modelos da linguística (com
foco em suas especificidades conceituais e categoriais e nas terminologias adotadas);
b. no levantamento de reconhecidos teóricos (com status de heróis) que (re)definiram os
objetos de estudo e por consequência inauguraram uma nova forma – à época – de
enxergar a língua e a linguagem;
c. no enaltecimento das rupturas estabelecidas por teorias ultramodernas em relação às
teorias precedentes, enfatizando-se sua capacidade de superar as eventuais limitações e
inconsistências teórico-metodológicas atreladas às formas de pensar pretéritas.

6
De modo análogo a Koerner (1995), não faço distinção entre Historiografia da Linguística e Historiografia
Linguística. Tomo como duas formas de designar o mesmo campo do saber, apesar do conhecimento de que não
há um consenso absoluto entre os pesquisadores do campo sobre essa questão de ordem nominal.
7
Devido à proximidade terminológica advinda da determinação adjetival, destaco também a Linguística
Histórica, campo da linguística que não está preocupado, como HL e as demais histórias mencionadas, com o
resgate das formas de se conceber a língua e a linguagem ao longo do tempo. A Linguística Histórica objetiva,
por outro lado, compreender, diacronicamente, as mudanças que ocorrem nas línguas naturais, as quais são
determinadas pelo processo histórico inerente às mudanças do homem e da sociedade. (cf. PERROT, 1970;
ELGIN, 1974; KIPARSKY, 1976; HOCK, 1986; LASS, 1997; FARACO, 2006).
8
Segundo Batista (2013), em alguns casos, a expressão História da Linguística pode se referir aos trabalhos
desenvolvidos sob orientação da Historiografia da Linguística, do mesmo modo que a palavra historiador pode
ser utilizada com sentido de historiógrafo. Nesses casos, para além das nomenclaturas atribuídas, o modo como
se encara o resgate do passado é que definirá natureza do trabalho em questão (histórico ou historiográfico).
36

Em resumo, trata-se de uma abordagem que apresenta “uma sucessão de grandes


momentos privilegiados de inspiração, em que dúvidas, hesitações, erros e trabalho diário
(muitas vezes coletivo) de construção e reconstrução do conhecimento não pareceram existir”
(ALTMAN, 1996, p. 182).
A História das Ideias Linguísticas (doravante HiL), por sua vez, concentra trabalhos
em torno das proposições do francês Sylvain Auroux e, no Brasil, sob a liderança de Eni
Orlandi e Eduardo Guimarães, dialoga com fundamentos da Análise do Discurso (AD).
No que concerne ao resgate do passado, afastando-se da perspectiva cronista da
História da Linguística, a HiL enxerga a construção do conhecimento linguístico situado em
certas condições de produção, amarrado às tramas socioculturais que se estabelecem no
interior das comunidades, partindo do pressuposto de que “as grandes transformações dos
saberes linguísticos são, antes de tudo, fenômenos culturais que afetam o modo de existência
de uma cultura do mesmo modo que dela procedem” (AUROUX, 1992, p. 29). Desse modo, a
HiL enxerga o conhecimento linguístico, ou melhor, as ideias linguísticas (AUROUX, 1989),
em íntima relação com a constituição cultural e social de um povo. Ao olhar para os
instrumentos linguísticos (AUROUX, 1992) – gramáticas, dicionários, glossários, manuais
etc. –, em busca da compreensão das ideias linguísticas ali subjacentes, encara-os como
produtos que, para além de simples receptáculos de concepções sobre a linguagem, refletem
modos de ser de uma nação.
Em solo brasileiro, a consolidação da HiL está diretamente atrelada a ações bem
sucedidas implementadas por Eni Orlandi e Eduardo Guimarães, da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), e Diana Luz Pessoa de Barros, da Universidade de São Paulo (USP),
no contexto dos projetos História das Ideias Linguísticas: construção de um saber
metalinguístico e a constituição da língua nacional e, posteriormente, História das Ideias
Linguísticas no Brasil: Ética e Política de Línguas (ambos fruto de cooperação com a
Universidade de Paris VII). Os estudos daí emergentes, em diálogo direto com os postulados
da Análise do Discurso de linha francesa (cf. PÊCHEUX, 2009 [1975], 2010 [1969];
ORLANDI, 1996), investigam a construção histórica das memórias sobre a língua nacional no
interior das ideias linguísticas produzidas no Brasil (GUIMARÃES, 1996; ORLANDI, 2002).
É importante salientar que a HiL instalada no Brasil, na sua interface com os estudos
discursivos, enxerga os instrumentos linguísticos em seu caráter discursivo, como
materialidades que evocam memórias as quais, no espaço de tensão interdiscursiva, produzem
(efeitos de) evidências de sentidos que se ligam a construções identitárias. Diante disso, no
37

que concerne à abordagem discursiva cara à HiL institucionalizada no Brasil, convém


enfatizar que

esse grupo procura articular o saber histórico e sua interpretação aos procedimentos
da análise do discurso francesa, tendo em vista investigar a constituição histórica de
um sujeito da linguagem, de suas imagens simbólicas e discursivas engendradas e
dos instrumentos linguísticos a essas imagens também associados (BATISTA, 2013,
p. 19)

No que diz respeito à consideração das fontes historiográficas em seu caráter


necessariamente histórico, como produto de um tempo e de um espaço, a Historiografia da
Linguística promove interlocuções diretas com a HiL preconizada por Auroux. O
organograma investigativo da HL propõe uma articulação entre dimensões de análise de
cunho internalista e externalista a partir da qual se analisam as fontes (internamente) como
resultado (e como determinante, de algum modo, num movimento dialético) do que está à sua
volta.
Tomando rumo distinto do que chamamos, acima, de História da Linguística, a HL, ao
analisar as evidências historiográficas subjacentes às fontes do passado, se opõe à ideia de que
o avanço do pensamento linguístico aconteceria linearmente, a partir da sucessão de teorias e
empreendimentos que se sobreporiam ao longo do curso da história. Contrariamente,
compreende o passado em seus momentos conflituosos de tensão estabelecidos no interior da
luta pela legitimação e aceitação das formas de conhecimento desenvolvidas no circuito do
debate acadêmico.
Não se confunde com a História da Linguística, ainda, uma vez que nega o
tratamento do passado com foco exclusivo na imanência interna dos arcabouços teórico-
metodológicos produzidos e desenvolvidos, ao longo do tempo, de modo isolado, por
pesquisadores considerados brilhantes pela sua genialidade e pela sua capacidade de inaugurar
uma abordagem inovadora e paradigmática.
Até certo ponto, a HL também se diferencia da tradição brasileira da História das
Ideias Linguísticas, embora dela se aproxime em alguns aspectos e com ela promova
interlocuções. Se, por um lado, no cenário intelectual europeu, as fronteiras entre a HL e a
HiL são tênues e porosas (não se constata reivindicação explícita, de alguma das partes, por
um lugar de legitimação e hegemonia no interior dos estudos historiográficos), por outro, no
Brasil, pode-se afirmar que os diferentes modos de fazer história do saber linguístico
carregam uma identidade própria, um modo particular de enxergar os/as sentidos/evidências
que subjazem aos textos-fonte submetidos ao olhar do historiógrafo. Sendo assim, a HL, de
38

um lado, encara as fontes historiográficas em seu caráter empírico, como material de acesso
às evidências do passado; de outro, a HiL de tradição brasileira, como materialidade
discursivo-textual que evoca memórias que se entrecruzam no complexo processo de costura
do interdiscurso.
Apesar dessas tênues distinções que marcam a identidade de uma e de outra
perspectiva, vale ressaltar que tanto a HL quanto a HiL não limitam sua abordagem
investigativa aos instrumentos linguísticos canônicos e legitimados como “receptáculos” do
saber sobre a linguagem, uma vez que o termo linguística tanto de Historiografia da
Linguística quanto da História das Ideias Linguísticas “pode se referir a qualquer estudo sobre
a linguagem que tenha sido feito pelo homem, onde quer que se encontre dele vestígios de
documentação” (ALTMAN, 2009, p.20).
Em suma, à tradição da Historiografia da Linguística se vinculam pesquisadores
adeptos das proposições de Konrad Koerner, Pierre Swiggers, e, no Brasil, Cristina Altman;
em torno da História das Ideias Linguísticas, por sua vez, reúnem-se os trabalhos em sintonia
com Sylvain Auroux e, no Brasil, com a perspectiva discursiva de Eni Orlandi (BATISTA,
2013). É falsa, porém, a pressuposição de que exista uma barreira que isola e separa os
modelos da HL e da HiL; pelo contrário: os trabalhos de Koerner, Swiggers e Auroux,
sobretudo na Europa, dialogam entre si de modo consistente e, em conjunto, apesar das tênues
diferenças, contribuem para uma compreensão global da história do conhecimento sobre a
linguagem difundido, recebido e até mesmo esquecido pelo homem ao longo de sua história.
Ao discutir sobre a história da institucionalização da HL como campo disciplinar,
Altman (2012), num movimento meta-historiográfico, destaca a importância do texto
Discours préliminaire, publicado em 1796, de François Thurot, anexado à sua tradução do
livro Hermes, or a philosophical inquiry concerning universal grammar (1751), de James
Harris. Para a autora, o texto apresenta uma perspectiva historiográfica que, à frente, iria
influenciar sobremaneira o trabalho da HL (e, naturalmente, também da HiL) como campo
disciplinar. Thurot (1976 [1796]) apresenta um panorama retrospectivo da produção
gramatical situada entre o Crátilo, de Plantão, e a Logique, de Étinne Condillac, tornando-se o
primeiro trabalho ocidental a apresentar um estudo essencialmente historiográfico, em se
tratando da história dos estudos da linguagem (ALTMAN, 2012). Atestando a relevância do
Discours préliminaire, a autora conclui que, por influência desse texto,

a reflexão retrospectiva sobre questões de linguagem tornou-se uma prática cada vez
mais constante em certos círculos acadêmicos ligados à filologia germânica,
39

românica ou eslava e, muito recentemente, também à disciplina linguística stricto


sensu (ALTMAN, 2012, p. 15).

Como campo disciplinar da linguística, pode-se dizer, com razoável consensualidade


(ALTMAN, 2012; KOERNER, 2014), que o embrião da HL aflora por consequência (decerto
não objetivamente planejada) da recepção, no interior da linguística, sobretudo entre as
décadas de 1960 e 1970, da controversa obra de Noam Chomsky, Linguística Cartesiana
(CHOMSKY, 1972 [1966]). Nesse escrito, o autor propõe, de modo distinto das abordagens
comuns à época, uma comparação entre a linguística por ele preconizada e a linguística dita
cartesiana, atravessando, assim, a tradição que se desenrolou em torno de nomes como René
Descartes, Port Royal e Wilhelm Von Humboldt. No que toca à compreensão de como a
Linguística Cartesiana contribuiu para a formulação do pensamento historiográfico, tal como
entendido pela HL, interessa-nos compreender que, “ao vincular sua linguística a teorias do
passado, anteriores àquelas que lhe seriam contemporâneas, ou imediatamente antecedentes, e
às quais fez franca oposição, Chomsky inaugura uma maneira inusitada de revisitar a história”
(ALTMAN, 2012, p. 16).
O caráter inusitado da abordagem chomskyana, acima referido, se traduz no que
colocam Coelho & Hackerott (2012, p. 390):

saltar a tradição precedente e, em certa medida, vincular seu pensamento de fazer


ciência a uma tradição longínqua e de estatuto „científico‟ de valor, naquele período,
discutível, por meio de uma operação de „apagamento‟ dos períodos de predomínio
de uma linguística mais rigorosamente „científica‟, contribuiu para que se percebesse
que nem sempre o que está em evidência é o mais relevante e que a pesquisa
historiográfica não precisa seguir uma linearidade temporal, principalmente quando
constrói uma história de „problemas‟ enfrentados pela disciplina.

É por esse caminho, em sintonia com Chomsky, opondo-se à interpretação do passado


como processo linear de sucessão de modelos teórico-metodológicos construídos ao longo da
história, que a HL estabelece suas bases investigativas, instituindo-se como importante
disciplina no âmbito dos estudos da linguagem.
A HL que aqui defino e em que me apoio começa a se configurar em meados da
década de 1970, a partir, principalmente, dos trabalhos de Konrad Koerner e Pierre Swiggers.
Como consequência da chegada da HL ao debate linguístico, um expressivo número de
trabalhos com orientação historiográfica passa a transitar como voz ecoante na conjuntura
acadêmica. De modo consequente e natural, a partir daí, como aponta Swiggers (2010), são
criados periódicos de alto impacto internacional com temas voltados ao trabalho
40

historiográfico, como é o caso da Historiographia Linguistica (1974), da Histoire


Épistémologie, Langage (1979) e, mais recentemente, da Revista Argentina de Historiografia
Linguística (2009); também passam a circular no meio acadêmico inúmeros boletins
publicados com regularidade por grupos de trabalho e associações científicas (ALTMAN,
2012). Todos esses meios constituem importantes espaços que, ao mesmo tempo, contribuem
com a divulgação das proposições da HL e legitimam, face à comunidade, o trabalho
historiográfico como parte essencial do estudo das ciências da linguagem.
No Brasil, a pesquisa historiográfica nos moldes da HL começou a tomar forma na
década de 1990, por influência dos trabalhos desenvolvidos por Cristina Altman, na
Universidade de São Paulo, instituição em que, no ano de 1994, junto ao Departamento de
Linguística, a pesquisadora fundou o Centro de Documentação em Historiografia da
Linguística (CEDOCH), pioneiro e até hoje importante grupo em torno do qual se reúnem
pesquisadores e alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado interessados no trabalho
historiográfico preconizado por Koerner, Swiggers e pela própria Altman.
Na cena global, pode-se dizer que a HL já angariou certo respaldo acadêmico, a
considerar seu alcance e poder de influência para além da linguística strito sensu (ALTMAN,
2012). Num cotejo do estado da HL face aos desafios enfrentados, às conquistas obtidas e às
perspectivas para o futuro, Swiggers (2010, p. 8) atesta que

dentro do campo englobante das ciências da linguagem, [a Historiografia da


Linguística] experimentou um crescimento espetacular, não só pelo puro número de
publicações, mas também pelo número de profissionais acadêmicos e pelas
associações e sociedades nacionais e internacionais. Há, entretanto, ainda muito
trabalho a ser feito, não somente em termos de contribuições historiográficas
empíricas e de avaliações teóricas, mas também em termos de futura (e definitiva)
integração da historiografia linguística nos currículos acadêmicos do mundo todo.

É notável, pois, que a jovem disciplina da HL, a despeito do avanço considerável


atestado acima por Swiggers, carrega consigo alguns desafios de ordem institucional,
sobretudo no Brasil, dentre os quais eu destacaria: (i) a organização de ações com vistas a um
maior alcance de seus trabalhos no contexto dos programas de pós-graduação do país (o que
justifica, de algum modo, a abordagem histórica aqui proposta, dada a pouca tradição na
UFPE); e (ii) uma agenda de trabalho nacional voltada ao intercâmbio entre pesquisadores da
área atuantes nos diferentes centros universitários do país. Uma vez atestada a relevância dos
estudos historiográficos, bem como a legitimidade por eles já alcançada até aqui, ações como
as apontadas favoreceriam o estabelecimento do estágio posterior ao cluster de Murray
41

(1994), entendido como a etapa de amadurecimento de um grupo e reconhecimento de sua


identidade e suas tarefas no interior de uma comunidade científica. Tais ações contribuiriam,
portanto, para o reconhecimento, por parte da comunidade acadêmica em geral, da relevância
e da necessidade dos estudos empreendidos pela HL.
Como o futuro carrega muitas incertezas, fica como tarefa para narrativas futuras (ou
“do passado”, tomando o ponto de vista do historiógrafo do futuro) descrever e interpretar os
caminhos trilhados pela HL no Brasil e no mundo.

2.2 OBJETOS E OBJETIVOS DA HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA

Altman (2012) define como objetivo primordial da HL “descrever e explicar como se


produziu e desenvolveu o conhecimento linguístico em um determinado contexto social e
cultural, através do tempo” (p. 29). Pode-se dizer que a autora parte, entre outros, dos
princípios de Swiggers (2010), que, em importante texto meta-historiográfico, assim define o
trabalho da HL: “um estudo interdisciplinar do curso evolutivo do conhecimento linguístico”,
de sorte que o itinerário investigativo do pesquisador nesse campo “engloba a descrição e a
explicação, em termos de fatores interdisciplinares e extradisciplinares, de como o
conhecimento linguístico, ou, mais genericamente, o know-how linguístico foi obtido e
implementado” (p. 2). As definições postas por Altman e Swiggers nos permitem
compreender que, para muito além da história da linguística enquanto disciplina científica em
sentido estrito, a HL procura interpretar toda e qualquer forma de pensamento acerca do
conhecimento sobre a linguagem produzida pelo homem ao longo dos tempos e nos diferentes
espaços.
No seio dessa discussão, Altman (2012) coloca como primeiro grande desafio do
historiógrafo a demarcação do domínio que constitui o horizonte a ser interpretado. Desse
modo, no que tange mais detidamente ao trabalho da HL, o desafio preliminar consiste em
discernir o que se pode compreender por linguística, afinal, apesar de esse campo científico se
debruçar na descrição das línguas naturais enquanto objeto teórico, outras disciplinas também
tomam as línguas e as linguagens como pressuposto para definir seus objetivos investigativos,
como é o caso, por exemplo, da lógica, da retórica, da poética, da filosofia e da teologia
(ALTMAN, 2012). Destarte, é evidente que, dada a natureza própria da linguagem humana,
esse objeto multifacetado cuja compreensão interessa a diversos campos do saber, a HL não
42

pode repousar sua investigação apenas na linguística em sentido estrito. Altman (2012) mais
uma vez reforça a questão:

As múltiplas dimensões da linguagem humana despertaram, ao longo da história, a


atenção de muitas disciplinas, sob perspectivas diferentes. Em um determinado
momento, e em um determinado lugar, uma ou várias dessas dimensões se
institucionalizaram, se distribuíram por diferentes domínios e se desenvolveram de
maneira desigual, o que as habilita, todas, em princípio, a fazer parte da história dos
estudos linguísticos (p. 20).

Indo ainda mais adiante, podemos pensar no trabalho da HL em sentido mais


abrangente, talvez aquele subjacente ao pensamento de Swiggers (2010) quando define como
objeto da disciplina o conhecimento linguístico. Interessaria ao historiógrafo, por esse viés,
toda e qualquer formulação linguística – científica ou não, legitimada pela academia ou não,
institucionalizada ou não –, afinal, o homem, muito antes de qualquer modelo teórico
existente, sempre se interessou pela linguagem e sua relação com a práxis humana. É por isso
que o termo linguística que acompanha a Historiografia da Linguística pode se referir a
qualquer tipo de reflexão acerca da linguagem produzida pelo homem, em qualquer que seja o
contexto (ALTMAN, 2012).
A partir do expediente caracterizado pelo trabalho de descrição e interpretação das
formas de processar o conhecimento linguístico desenvolvidas ao longo do tempo, segundo
Swiggers (2010), a configuração da HL se dá pela interseção entre linguística, história,
filosofia e sociologia da ciência; desse intercâmbio resulta um domínio capaz de oferecer
“uma descrição e uma explicação da história contextualizada das ideias linguísticas”
(SWIGGERS, 2010, p. 2).
Descrever e explicar (ou interpretar) a história, tomando as palavras de Swiggers
(2010 e 2013), implica um trabalho que se divide em duas etapas: uma heurística e uma
hermenêutica. A primeira etapa, heurística, envolve o levantamento de fontes historiográficas
e a consequente catalogação desse material, formando uma base documental (SWIGGERS,
2013) a partir da qual o historiógrafo, quando do trabalho interpretativo, pode buscar por
evidências históricas, sempre orientado pelos objetivos que justificam sua pesquisa. A
segunda etapa do trabalho historiográfico, de cunho hermenêutico, está atrelada ao tratamento
interpretativo das fontes historiográficas que compõem a base documental, sob orientação de
criteriosas ferramentas analíticas. Trata-se, pois, da etapa em que o historiógrafo, a partir do
olhar para as fontes, “liga as pontas soltas”, atribui valor à descrição, busca compreender as
relações que se estabelecem entre as ideias linguísticas subjacentes aos textos de sua base
43

documental; interpreta, enfim, o material de que dispõe, sempre norteado pelos objetivos do
empreendimento historiográfico proposto.
Para Batista (2018), que resgata Swiggers (1991), esse trabalho de natureza heurística
e hermenêutica se compara ao ofício de um arqueólogo, já que, como este,

o historiógrafo da linguística não retira a „terra‟ em busca somente de vestígios por


eles mesmos, mas afasta a poeira dos saberes solidificados em posicionamentos
canonizados para compreender estágios de formação e desenvolvimento do
conhecimento sobre a linguagem, tendo em mente interpretações que possam
ampliar nossa percepção dos alcances do passado em relação com preocupações do
presente, em um movimento contínuo de retroalimentação (sem página) 9.

Ainda no tocante à natureza do produto historiográfico resultante das etapas heurística


e hermenêutica, vale salientar que não cabe ao historiógrafo buscar incansavelmente por uma
verdade única e incontestável. Uma historiografia resulta do olhar interpretativo (pressuposto
pela etapa hermenêutica) de um indivíduo que, a despeito da arquitetura metodológica com a
qual opera analiticamente, reveste-se de intenções e se insere num contexto social e
intelectual particular (KOERNER, 1996). Assim, a quantidade de caminhos interpretativos
possíveis é proporcionalmente equivalente à quantidade de projetos historiográficos – com
diferentes propósitos e consequente planejamento metodológico – existentes. Pode-se dizer,
então, que uma história resgatada e costurada pelo historiógrafo é, antes de tudo, uma
“verdade relativa” ou, tomando de empréstimo as palavras de Cavaliere (2013), um “prisma
de verdade”. Em linhas gerais, a HL se apoia na ideia de que “há mais de uma versão possível
para a história e que o valor daquela que se advoga para um autor, período, problema, tradição
ou escola depende da boa costura dos elementos para compô-la” (COELHO &
HACKEROTT, 2012, p. 406). A esse respeito, Altman (2004) compara um produto
historiográfico com o empreendimento de uma gramática descritiva: “assim como a gramática
não esgota a língua sob descrição em toda sua complexidade, o trabalho historiográfico
também efetua um recorte” (ALTMAN, 2004, p. 25).
A discussão empreendida até aqui nos permite compreender com razoável clareza que
a HL, mais do que apenas descrever os momentos pretéritos, propõe-se a interpretar o rumo
trilhado na construção do conhecimento sobre as línguas e as linguagens. Assim, para além da
escrita de crônicas do passado, tarefa que caracterizaria uma descrição “neutra” dos fatos, dos
produtos e dos agentes passados, cabe ao historiógrafo a construção de uma narrativa. Esse
produto, resultado da operacionalização da etapa heurística e da hermenêutica, reveste-se de
9
A obra em que consta a passagem da citação foi publicada exclusivamente em formato digital, com acesso
restrito a e-readers, motivo pelo qual não há numeração de páginas de modo tradicional.
44

um ponto de vista que estabelece a história narrada a partir do modo como o historiógrafo
opera metodologicamente com os dados, como estabelece hierarquizações de dados, como
recorta do todo aquilo que interessa a seus objetivos investigativos. Trata-se, pois, de uma
versão entre outras possíveis.
O simples levantamento de dados biográficos de protagonistas da história da
linguística tem menor valor para o historiógrafo se não houver, a partir dele, um gesto de
problematização capaz de descortinar questões relevantes para a compreensão da reflexão
sobre língua e linguagem proposta por esse agente biografado. O mesmo vale para o
levantamento de datas, que deve, antes de tudo, contextualizar a narrativa de modo amplo,
tocando diretamente em acontecimentos de ordem social, política, econômica etc. Por
exemplo, a uma narrativa historiográfica de nada adianta a constatação de que, no então
primeiro grau, a disciplina Língua Portuguesa passou a se chamar Comunicação e Expressão
na década de 1970, no Brasil, se a tal fato não estiver imbricada a reflexão sobre os motivos
de ordem sociopolítica que, no país em período da Ditadura Militar, condicionaram essa
mudança na estrutura da educação básica. Ou, no tocante à temática deste trabalho, é
reducionista afirmar (e aí mesmo encerrar a discussão) que a tradição sociodiscursiva foi
consolidada na pesquisa linguística brasileira na década de 1990 se não houver atrelado a essa
constatação um olhar para as condições socioepistemológicas e políticas em que esse fato se
torna realidade.
Do trabalho arqueológico que define a especificidade da HL (BATISTA, 2018),
determinado fundamentalmente pelo gesto descritivo-interpretativo que atravessa as
narrativas que resgatam e compreendem as memórias do passado, emerge uma diversificada
agenda de propostas historiográficas. Do estudo de gramáticas produzidas entre os séculos
XIX (cf. POLACHINI, 2013; COELHO & DANNA, 2015; POLACHINI & DANNA, 2016;
CAVALIERE, 2018) e XX (cf. CAVALIERE, 2015) ou na contemporaneidade do século
XXI (cf. VIEIRA, 2015) à investigação de formas de reflexão sobre linguagem observáveis
em textos religiosos ou em ritos da tradição de povos indígenas, por exemplo, é expressiva a
pluralidade de propostas que a HL pode abraçar.
Nessa direção, considerando a multiplicidade de caminhos investigativos que podem
ser contemplados pela HL, parto do pressuposto de que a pesquisa historiográfica, qualquer
que seja, deve se fundamentar em um questionamento central. Esse ponto norteador definirá
tanto o tipo de historiografia a ser costurada, como os procedimentos metodológicos
necessários à sua consecução. Ciente da vastidão de possibilidades investigativas passíveis de
45

tratamento historiográfico, Batista (2013, p. 41, grifos meus) elenca algumas perguntas – às
quais se ligam diferentes abordagens historiográficas – que interessam à HL, a saber:

a. de que forma estruturas linguísticas foram sistematizadas como objeto de estudo?


b. quais seriam os pressupostos para a sistematização, descrição e análise das línguas?
c. que teorias sobre a linguagem foram propostas?
d. o que se considerou língua e linguagem?
e. como se estabeleceram metalinguagens de tratamento linguístico?
f. como religiões, mitos e mitologias trataram línguas e linguagem?
g. qual a percepção que os usuários têm sobre a linguagem e seus fenômenos?
h. quem foram os agentes que pensaram a linguagem?
i. de que forma as ideias linguísticas se estabeleceram em configurações sociais?
j. quais as relações possíveis entre ideias linguísticas e o complexo história-sociedade-
ideologia-cultura?
k. quais foram os materiais (e suas condições de produção) elaborados nas diferentes
propostas de tratamento das questões linguísticas?
l. como se processam as formas de ensino de língua?
m. de que modo foram se configurando e se desenvolvendo tradições de tratamento de
linguagem?

Ainda que as questões acima arroladas não esgotem as possibilidades de perguntas


relevantes para a HL, a partir delas é possível enxergar a abrangência de atuação desse campo,
bem como constatar que todos esses questionamentos convergem para o mesmo caminho: a
compreensão de formas de processar e conceber as línguas e as linguagens no passado. As
perguntas em negrito demarcam pontos de afinidade com o trabalho aqui desenvolvido, que
busca, entre outros pontos, (i) analisar que empreendimentos teórico-metodológicos
sustentam o domínio epistemológico da TSD no interior da linguística brasileira; (ii) mapear
quem foram os agentes que pensaram fenômenos sobre a linguagem no circuito de discussão
em torno da TSD e compreender sua relevância para a construção dessa tradição; (iii)
estabelecer relações entre as ideias linguísticas que erigem a TSD e o complexo história-
sociedade-ideologia-cultura da época; e, enfim, (iv) compreender como, nesse contexto
intelectual, se processa a reflexão sobre língua como objeto teórico e ensinável.
46

2.3 ENTRE A HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA E A HISTÓRIA DAS


CIÊNCIAS: DOS PARADIGMAS AOS PROGRAMAS DE INVESTIGAÇÃO E ÀS
TRADIÇÕES DE PESQUISA

Salvas algumas especificidades, é possível afirmar que o pensamento historiográfico


sofreu influências fundamentais da reflexão proposta por Thomas Kuhn em sua obra A
estrutura das revoluções científicas, publicada em 1962. Apesar das inúmeras críticas
recebidas (as quais foram, em edições posteriores, refutadas pelo próprio autor), não é
exagero dizer que a forma como Kuhn (1998 [1962]) compreende o desenrolar do progresso
científico foi um divisor de águas para o campo da História das Ciências. O filósofo entende a
construção do conhecimento a partir de rupturas instauradas ao longo do tempo, contrariando,
assim, a visão cumulativa do progresso científico que, de modo consensual, imperava no
domínio da história das ciências até a década de 1960. Por essa visão de progresso científico
como uma acumulação de conhecimento, o surgimento de novos empreendimentos teóricos
não promove, necessariamente, uma ruptura com o modelo vigente no passado, mas, por outro
lado, a ele se soma, aperfeiçoando-o e estreitando o caminho da ciência rumo à “verdade”.
Para Kuhn (1998[1962]), por outro caminho, o verdadeiro progresso científico se dá
como consequência de rupturas estabelecidas em relação à tradição então vigente (ruptura no
modo de conceber os objetos, os problemas, as ferramentas metodológicas para lidar com
esses problemas). Uma vez consolidada, essa ruptura estabelece um novo paradigma,
incompatível com o empreendimento teórico a que se opõe, que passa a servir como modelo
vigente. Ao recusar a ideia de que o progresso da ciência aconteceria de modo linear e
cumulativo, Kuhn defende que só há avanço quando se instala no cenário intelectual uma
verdadeira revolução científica (KUHN, 1998 [1962]) resultante da “superação” de um
paradigma então vigente.
Ao longo da história da humanidade, nos deparamos com o surgimento de diversos
novos problemas cujas soluções a ciência seria capaz de oferecer. Diferentes modelos e
propostas teórico-metodológicas atribuiriam para si a capacidade de apresentar respostas e
soluções às problemáticas atestadas pelas comunidades científicas, porém, na dinâmica e no
curso da história, apenas um modelo seria eleito como aquele capaz de solucionar as questões
com adequabilidade e razoabilidade. A legitimação desse modelo perante os demais se dá não
apenas em função de sua capacidade de solucionar problemas, mas também pela consistente
articulação interna dos agentes que dão corpo ao paradigma edificado. Uma vez legitimado e,
47

consequentemente, posto como o paradigma hegemônico, a ciência assume o estágio que


Kuhn chama de ciência normal. Nesse estágio, não há, por parte dos pesquisadores, a busca
pelo novo, pelo questionamento; ao contrário: repete-se o modelo teórico-metodológico, tal
como concebido e enraizado na tradição paradigmática vigente. Os problemas resolvidos pelo
paradigma em estado de ciência normal seriam, assim, aqueles já previstos pelos contornos
do próprio paradigma proclamado como hegemônico.
O estágio paradigmático de ciência normal, entretanto, para Kuhn, apesar de sua
consolidação e legitimidade, não está isento de questionamentos. Uma vez instaurados, os
questionamentos estabeleceriam, por assim dizer, furos na tradição até então aparentemente
intransponível; as contestações e os questionamentos combativos, se não sanados a partir do
quadro conceitual defendido pelo paradigma vigente, motivariam o surgimento de anomalias
nesse domínio, comprometendo sua legitimidade. Essas anomalias poderiam ser combatidas
pelo próprio paradigma hegemônico ou, não representando problemas merecedores de
atenção, seriam por ele negadas. Todavia, uma vez que a anomalia não fosse recusada ou
resolvida no interior do paradigma, instalar-se-ia um estado de crise na ciência (estado de
ciência extraordinária). Nesse estágio, a legitimidade e a capacidade de solucionar problemas
do paradigma são postas em xeque. Uma vez não superada a crise, instala-se cenário
favorável para a emergência de uma revolução científica, cujo desfecho coroa o surgimento
de um novo paradigma. E assim o ciclo retorna ao estágio inicial da ciência normal, até que
novas contestações conduzam o surgimento de novas anomalias, de consequente estado de
crise... e assim por diante.
É inegável que a visão de Kuhn sobre o avanço do conhecimento científico inaugura
um novo modo de compreender a história das ciências. Os estudos historiográficos são em
muito devedores do pensamento kuhniano, uma vez que, a partir dele, como oportunamente
colocam Coelho e Hackerott (2012), podemos perceber facetas importantes do conhecimento
científico, a saber:

1) ele não brota no vácuo, há cientistas que o produzem; 2) o fato de certas hipóteses
serem mais privilegiadas, num dado período, depende não só de suas qualidades
intrínsecas, mas também das relações dessas hipóteses com ambientes intelectual,
interpessoal, social, político específicos (p. 395).

A despeito de ter sido endereçada para a compreensão da dinâmica epistemológica das


ciências naturais, pode-se dizer, com algumas ressalvas, que a proposta de Kuhn contribuiu,
também, para a história e a filosofia das ciências humanas e sociais. Entretanto, voltando-nos
48

para o campo da ciência linguística, segundo Altman (2004), dada a especificidade dos
objetos de linguagem, as teses de Thomas Kuhn não encontram aí lugar de absoluta
ratificação. Para a autora, embora se possa conceber uma ruptura promovida por Saussure em
relação à pretérita perspectiva histórico-comparativa, ruptura essa que funda e estabelece o
objeto da linguística moderna, não é razoável pensar na história da linguística como um todo
com base na proposição de Kuhn. A história da linguística não pode ser compreendida a partir
da dinâmica de rupturas típicas das revoluções científicas, afinal, ao longo dos tempos,
diferentes (e, em alguns casos, incomensuráveis) modelos teóricos conviveram
concomitantemente, num mesmo espaço de tempo, propondo soluções diferentes aos
problemas evidenciados e atestados pela comunidade científica. Nessa direção, a soberania de
um modelo teórico, no caso da linguística, não pressupõe necessariamente o desaparecimento
de outro (KOERNER, 1989). É o caso, por exemplo, das teorias estruturalistas e
funcionalistas, que, apesar das divergências, coexistiram num certo momento da história da
linguística, ainda que uma ou outra tivesse maior destaque em um ou outro espaço.
Para Altman (2004), que reforça a perspectiva de Koerner (1989), a história da ciência
pode ser analisada a partir de diferentes modelos interpretativos, alguns dos quais poriam em
xeque a proposição kuhniana do progresso necessariamente sustentado por rupturas
revolucionárias, a saber:

a. um modelo de progresso por acumulação, que representa o modo como tradicionalmente


é interpretada a história da ciência, de modo linear, cumulativo, a partir do cotejo dos
modelos teórico-metodológicos que, ao longo do tempo, sobrepõem-se uns aos outros.
Esse modelo representa o extremo oposto daquilo que Kuhn defende;
b. um modelo principal vs secundário, que propõe a coexistência de dois ou mais modelos
investigativos num dado espaço de tempo. Um deles, porém, dado seu poder de
convencimento no interior das comunidades científicas, ganha destaque, cabendo ao(s)
outro(s) o lugar de marginalidade;
c. um modelo pendular, que também trabalha com a possibilidade de convívio entre dois ou
mais modelos, porém, considera a possibilidade de alternância deles entre principal e
secundário. Ou seja, uma corrente dita principal pode, em alguma medida, tornar-se
secundária, a depender das condições de produção e recepção de sua agenda de trabalho;
o contrário também é verdadeiro;
49

d. um modelo de descontinuidades vs continuidades, que enxerga o avanço científico


baseado no fluxo contínuo de momentos de manutenção e outros de recusa das correntes
postas em evidência. Para Altman (2004), este modelo apresenta ferramentas adequadas
para a interpretação de grande parte da história da linguística;
e. um modelo de progresso relativo, que propõe o avanço da ciência sem que rupturas
absolutas sejam estabelecidas. Aqui, embora possam ser mantidas categorias
interpretativas de modelos anteriores (movimentos de continuidade), é possível perceber
uma relativa guinada (movimentos de deslocamentos) em certos aspectos de tradições
anteriormente hegemônicas.
Em perspectiva análoga, Dell Hymes também delineia orientações interpretativas para
a compreensão da história da linguística que refutam a aplicação direta do modelo kuhniano.
Entre outras questões, Hymes (1983) defende que a “queda” de um modelo anteriormente
posto em estado de hegemonia não garante necessariamente seu desaparecimento, ratificando
a posição de Koerner (1989), sobretudo aquela subjacente ao modelo principal vs secundário.
Hymes traz como exemplo o caso da linguística histórico-comparativa, que, para o autor, a
despeito da considerável diminuição de adeptos ao longo do século XX, passou a circular
como teoria secundária no interior da agenda de estudos linguísticos. Assim, admite-se que “o
avanço do conhecimento que produzimos em ciência(s) da linguagem ocorre não só por
rupturas e descontinuidades, mas também por acumulação e continuidades” (ALTMAN,
2004, p. 38), tese que seria fatalmente recusada pelo modo como Kuhn interpreta a história
das ciências naturais.
Entretanto, é importante (e honesto) destacar que Thomas Kuhn propôs seu modelo
interpretativo da história das ciências tendo como ponto de referência o progresso científico
das ciências naturais. A aplicação de um mesmo modelo interpretativo para a compreensão de
campos disciplinares cujos objetos e cujas metodologias são, no mínimo, bastante diferentes
não seria razoável. A teoria de Kuhn, portanto, aparece neste trabalho menos como ponto a
ser superado e mais como uma plataforma a partir da qual a HL pode repensar suas bases
diante das especificidades de seu objeto, a saber, a história do conhecimento linguístico.
Dada a limitação do modelo interpretativo kuhniano para a compreensão da história da
linguística, cuja narrativa impõe modelos interpretativos específicos, Altman (2004), em
trabalho cujo propósito é investigar o desenvolvimento da pesquisa linguística brasileira, opta
pelo tratamento dessa história a partir da noção de programas de investigação, advinda de
50

Swiggers (1981), como alternativa ao trabalho com os paradigmas de Kuhn, opção que
também assumo neste trabalho.
Os programas de investigação, para Swiggers (1981), grosso modo, consistem em
conjuntos de práticas e procedimentos teórico-metodológicos sustentados por escolas,
tendências e autores ao longo do curso da história dos estudos linguísticos. Cada programa de
investigação adota certas categorias e ferramentas analíticas específicas emparelhadas ao
modo como cada corrente enxerga o fenômeno linguístico e aos seus objetivos fundamentais.
Isto é, a diferentes programas de investigação estão atreladas diferentes concepções de língua
e de linguagem e, por conseguinte, diferentes objetos investigativos e métodos descritivos.
O conceito de programa de investigação permite que ultrapassemos a noção por vezes
reducionista de quadro teórico, uma vez que diferentes teorias podem estar agrupadas num
mesmo programa, afinal, é possível que elas de alguma forma compartilhem uma forma
específica de fazer linguística (SWIGGERS, 1981).
Swiggers (1981) elenca quatro programas de investigação observáveis ao longo da
história do conhecimento linguístico, a saber:

a. O programa de correspondência: reúne trabalhos que visam compreender a relação entre


sujeito, linguagem, pensamento e realidade. Platão, Aristóteles, Varrão, Port-Royal e
Chomsky seriam, para Swiggers, expoentes desse programa.
b. O programa descritivista: caracteriza-se pelo estudo da língua enquanto objeto autônomo
passível de descrição e de prescrição. Panini, os gramáticos alexandrinos, os
neogramáticos e os estruturalistas – como Bloomfield, Martinet e Harris – apresentam
abordagens condizentes com esse programa (ALTMAN, 2004).
c. O programa sociocultural: abarca estudos que compreendem a língua e a linguagem
como produto das condições sociais, culturais, históricas e pragmáticas (extralinguísticas,
portanto) em que são concebidos os sistemas linguísticos. Esse programa, portanto, reúne
uma gama variada de disciplinas que propõem um olhar para além da estrutura oracional
e do modo como o pensamento expressa a linguagem – por exemplo, Sociolinguística,
Análise da Conversação, Pragmática, Análise(s) do Discurso, Linguística Textual,
Antropologia Linguística, Enunciação, entre outras.
d. O programa de projeção: engloba uma agenda de estudo voltada para a análise da língua
numa perspectiva formal orientada por sistemas e ferramentas de análise lógico-
matemáticas.
51

A análise desses quatro programas de investigação nos permite constatar a pluralidade


de empreendimentos – aos quais se vinculam diferentes concepções de língua e de linguagem
– que caracterizam a história da linguística. A categorização proposta por Swiggers (1981)
possibilita ao historiógrafo detectar, meio à vastidão de modelos que se dispuseram a pensar
sobre a linguagem humana, “um conjunto de problemas e interesses privilegiados por uma
comunidade científica e a maneira preferencial de tratá-los” (ALTMAN, 2004, p. 43).
A adoção dos programas de investigação como categoria analítico-interpretativa,
entretanto, não deve se dar de modo engessado e definitivo, como se os limites de um ou de
outro programa fossem capazes de enquadrar de modo absoluto todo e qualquer trabalho ou
conjunto de trabalhos produzidos ao longo da história da linguística. A esse respeito, Altman
(2004) analisa a teoria chomskyana, que, embora pressuponha um trabalho voltado à
perspectiva formalista da autonomia linguística – o que a caracterizaria enquanto investigação
inscrita no programa descritivista –, mais se aproxima, de modo geral, ao programa de
correspondência, tendo em vista sua preocupação global em compreender a relação entre a
linguagem e a mente humana. Análise semelhante se daria ao conjunto de trabalhos que, ainda
que considerem fatores externos ao sistema linguístico (o que, isoladamente, os inseriria no
programa sociocultural), lidam com a descrição da língua do ponto de vista formal,
enfatizando, na análise, as estruturas linguísticas – esses, pois, definem-se mais como
descritivistas que socioculturais. Para reforçar a questão, trago Altman (2004), cuja precisão
no dizer me induz a citá-la diretamente:

Num sentido, o conceito de programa de investigação aqui adotado é restritivo, na


medida em que faz pressupor ao trabalho do linguista uma determinada concepção
do objeto-linguagem que dirige sua prática. Mas, noutro sentido, é vantajosamente
não restritivo, na medida em que permite detectar, por trás das diferentes formas por
que, historicamente, pode se manifestar o estudo das línguas, visões comuns do
objeto-linguagem e do fazer linguística. Entre uma vasta gama de possibilidades, há
dois extremos que balizam nossa interpretação: a) é possível que teorias
historicamente dispersas, por exemplo, sejam reaproximadas epistemologicamente,
na medida em que compartilham da mesma concepção geral de como deve ser o
fazer da Linguística e do linguista; b) é possível que teorias contemporâneas, ao
contrário, divirjam fundamentalmente quanto às suas concepções gerais de ciência e
de fazer ciência, na medida em que se enquadram em programas de investigação
diferentes (p. 42-43).

Diante disso, torna-se necessário que observemos com atenção como a história do
conhecimento linguístico tem se configurado ao longo do tempo. Trata-se de uma história
marcada por movimentos de unificação e diversificação, continuidades e descontinuidades
52

que se apresentam pendularmente, fato que conduz o historiógrafo da linguagem a


ressignificar a hipótese de que o avanço do conhecimento científico, no que tange aos estudos
da linguagem, tenha se dado por meio de rupturas revolucionárias e consequente coroamento
de um modelo em posição hegemônica. Nesse sentido, parece-me adequado olhar para a
história da linguística através do cotejo de movimentos (de continuidade e descontinuidade
pendulares) protagonizados por empreendimentos que se inscrevem em diferentes programas
de investigação.
Trazendo a reflexão para o contexto deste trabalho – sem, entretanto, antecipar a
narrativa interpretativa que toma forma no capítulo 5 da tese –, podemos pensar que a história
da TSD na pesquisa linguística brasileira é marcada pela coexistência de diferentes
programas de investigação (embora um deles se apresente em evidência), os quais são
incorporados (ratificados) ou recusados ao longo da construção dessa tradição. Essa história,
posso adiantar, é caracterizada ora pela continuidade (por um progresso relativo) de
perspectivas que, até certo ponto, enxergam a linguagem como instrumento de comunicação
(sobretudo nos primeiros momentos de emergência da TSD), ora pela sua descontinuidade
(que se dá, principalmente, entre o desenvolvimento e a consolidação da TSD), momento em
que ganham destaque modelos investigativos mais próximos do que concebe o programa
sociocultural.
Intimamente ligado à categoria dos programas de investigação, outro conceito caro à
pesquisa historiográfica aqui proposta é o de tradição de pesquisa (HYMES, 1983). Uma
tradição se firma a partir da consolidação de um programa de investigação, que se mostra,
num dado momento, como modelo mais valorizado pela comunidade científica (ainda que
existam outros com os quais coexiste). Uma tradição de pesquisa não constitui um conjunto
de teorias, como se pode enganosamente acreditar; na verdade, trata-se de uma agenda de
trabalhos que, no interior de um programa de investigação e por ele orientados, congregam
interesses afins, ainda que existam diferenças conceituais observáveis. Tais interesses, quando
legitimados e encarados com relativa consensualidade pela comunidade científica, solidificam
uma tradição de pesquisa.
A noção de tradição de pesquisa é fundamental para a investigação empreendida nesta
tese, uma vez que, afinal, enxergo a TSD, antes de tudo, como uma tradição que ao longo do
tempo se consolida na pesquisa linguística brasileira. Em torno dessa tradição estão reunidos
empreendimentos teóricos cujos interesses investigativos apontam para uma mesma direção: a
reflexão sobre a língua e a linguagem como fatos sociodiscursivos, o que pressupõe recusa da
53

concepção de língua formalista que se restringe à análise dos elementos estruturantes do


sistema linguístico; consequentemente, depreende-se daí uma reflexão sobre ensino de língua
portuguesa que põe em discussão a pluralidade e variabilidade linguística, a natureza
interacional, pragmática, sociocognitiva e discursiva dos textos orais e escritos a partir dos
quais se praticam habilidades de fala e escrita, escuta e leitura. No capítulo 3, retomarei a
noção de tradição de pesquisa para caracterizar a TSD como uma tradição solidificada na
cultura linguística ocidental e na pesquisa linguística brasileira.

2.4 DIÁLOGOS ENTRE A HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA E A SOCIOLOGIA


DA CIÊNCIA: A FORMAÇÃO DE GRUPOS DE ESPECIALIDADE

A incursão feita até aqui, sobretudo no tocante à passagem pelos modelos de


investigação do progresso científico da linguística (KOERNER, 1989) e pelos conceitos de
programa de investigação (SWIGGERS, 1981) e tradição de pesquisa (HYMES, 1983), nos
possibilita compreender a dinâmica interna do avanço da linguística no que tange à
organização de modelos e práticas. Entretanto, a produção e a difusão do conhecimento no
interior das comunidades científicas devem também ser interpretadas à luz de um olhar para
as condições externas aos programas de investigação, o que nos conduz à adoção de uma
postura que busca analisar, também, a produção da ciência do ponto de vista sociológico.
Ciente da vastidão de perspectivas que encaram as condições sociais em que emerge o
conhecimento científico, opto por trazer para a reflexão historiográfica aqui proposta alguns
preceitos da Sociologia da Ciência, mais detidamente aquela proposta por Stephen Murray.
Em Theory Groups and the Study of Languages in North America, obra que investiga
a emergência e o desenrolar da Antropologia Linguística norte-americana, Murray (1994)
propõe um olhar para o desenvolvimento científico da linguística intrinsecamente atrelado a
variáveis de ordem social e organizacional que, para o autor, determinariam o fracasso ou o
sucesso de um ou outro modelo teórico em atuação. No interior dessa discussão, ressalto as
noções de grupo de especialidade, liderança intelectual, liderança organizacional, retórica
continuísta e retórica revolucionária, as quais nos auxiliam a compreender o organograma
reflexivo de Murray e, ao mesmo tempo, concedem ferramentas adequadas ao cumprimento
dos objetivos interpretativos desta tese.
A noção de grupo de especialidade ratifica a ideia de que o conhecimento não se erige
atrelado exclusivamente à vontade de um cientista “genial” e pioneiro, cuja representatividade
54

e expertise seriam, por si sós, condição sine qua non para a aceitação de suas proposições e
indagações numa comunidade científica. Para Murray (1994), um grupo de especialidade é
constituído por pesquisadores (de diferentes graus e representatividades no cenário
acadêmico-científico) que se organizam institucionalmente visando convencer a comunidade
científica da legitimidade e da capacidade resolutiva do modelo teórico que defendem. Nesse
sentido, um indivíduo isolado jamais estaria apto a difundir uma corrente teórica, qualquer
que seja, embora muitas narrativas históricas sugiram essa linha de compreensão através do
apagamento que promovem dos agentes que compõem os grupos e, ao mesmo tempo,
propagam as ideias das lideranças. Um pesquisador com ideias inovadoras e cuja tese
defendida apresenta considerável potencial resolutivo, porém sem a capacidade de articular e
liderar um grupo que divulgue e ratifique suas ideias – por meio de debates, publicação de
textos propositivos, articulação em discussões públicas etc. –, segundo Murray (1994),
provavelmente não conseguirá convencer a comunidade acadêmica da assertividade de suas
proposições.
O “sucesso” de um grupo de especialidade – entendido no sentido mais detidamente
coletivo e colaborativo associado à expressão grupo – está atrelado, entre outros fatores, à
presteza e perspicácia de lideranças intelectuais e organizacionais, que, num dado contexto,
com o auxílio de outros agentes, conduzem a emergência e a fixação das bases que constituem
plataforma para o estabelecimento de um dado empreendimento epistemológico. A primeira
liderança, intelectual, por meio retóricas persuasivas, conduz a comunidade científica a
reconhecer suas proposições como boas ideias (ALTMAN, 2004). A definição do que se pode
compreender por boas ideias é relativa e, a depender do ponto de vista referencial,
questionável. A qualidade das boas ideias está atrelada ao modo como a comunidade as
recebe no interior de um contexto específico. As boas ideias são aquelas “percebidas como,
pelo menos, formas prováveis de solucionar questões de pesquisa. Sua qualidade é, desse
modo, historicamente relativa e atribuída pelos próprios pesquisadores” (COELHO &
HACKEROTT, 2012, p. 396). Desse modo, as boas ideias devem ser capazes de resolver
problemas perceptíveis pelos pesquisadores numa dada conjuntura intelectual; além disso, “o
que prevalece é o poder de persuasão, não apenas das ideias, mas também de quem as
defende” (COELHO & HACKEROTT, 2012, p. 406).
A liderança intelectual, pois, enxerga as demandas postas como problemas num
determinado contexto e, a partir das ferramentas teóricas e metodológicas de que dispõe,
propõe soluções que, uma vez atestado seu potencial resolutivo, são acatadas e difundidas
55

pela uma parcela da comunidade científica. É preciso, entretanto, em paralelo, que as bases
instaladas pelo grupo de especialidade tomem proporções maiores, que os ecos de seu
discurso se propaguem para além dos limites do grupo, que suas proposições cheguem a (e
convençam) outros pesquisadores. É justamente aí que reside o papel da liderança
organizacional. Esse movimento de expansão articulado pelas lideranças organizacionais se
desenvolve por meio de ações intencionais capazes de assegurar o espaço angariado pelo
grupo no interior de uma conjuntura intelectual, como, por exemplo, divulgação das teses
defendidas pelo grupo em diferentes espaços institucionais, intercâmbio promovido por meio
de referências intertextuais explícitas e implícitas, publicação de textos propositivos e textos
que sintetizam essas proposições, formação de novos pesquisadores etc.
Para Altman (2004), a articulação das lideranças é fundamental para a consolidação
dos grupos de especialidade, afinal, a consolidação de programas de investigação
concorrentes (para usar a alternativa à noção de paradigma de Kuhn) “depende tanto quanto,
ou mais, de fatores externos, relativos ao grupo de especialidade que lhe dá sustentação, do
que das qualidades intrínsecas das teorias que os constituem” (ALTMAN, 2004, p. 46).
Coelho e Hackerott (2012), na mesma direção, destacam a relevância da articulação entre os
elementos apontados por Murray (1994), afinal: “[um] conjunto de cientistas sem um desses
três elementos acabam por não construir grupos e, em função disso, não desempenham, em
seu contexto, papel relevante na condução da ciência” (p. 397). É nesse sentido que a teoria de
Murray auxilia a HL na interpretação da produção do conhecimento linguístico a partir do
olhar para as proposições teóricas dos programas de investigação e também para as condições
externas em que esse conhecimento é concebido, processado, recebido, incorporado ou
refutado.
Para Murray (1994), a concepção de um grupo de especialidade, da sua emergência à
sua consolidação, compreende quatro estágios fundamentais. Os dois primeiros situam a fase
de emergência do grupo, ou seja, compõem os primeiros passos de sua existência; os outros
dois correspondem ao seu desenvolvimento e à sua consolidação. Ei-los:
1º estágio: etapa embrionária da configuração de um grupo de especialidade. Nele, são
escassas ações organizadas e colaborativas, tendo em vista a inexistência de lideranças, e a
interlocução entre os pesquisadores, consequentemente, ainda é incipiente. Essa etapa é
marcada pela baixa frequência de publicações (majoritariamente de caráter não propositivo) e
pela ausência de contribuições objetivas no que tange à resolução de novos problemas.
56

2º estágio: etapa em que surgem as lideranças intelectuais e organizacionais em torno


das quais pesquisadores e estudantes criam uma rede de conexão. Como consequência da
produção e circulação de textos de ação, entendidos como “textos propositivos que oferecem
aplicação inovadora de uma abordagem” (SWIGGERS, 2013, p. 41), de textos de diluição e
de reação, compreendidos, respectivamente, como “textos que apresentam uma
versão/aplicação „diluída‟ de uma teoria” (SWIGGERS, 2013) e textos que propõem uma
avaliação crítica de outros textos (geralmente propositivos), estabelece-se um princípio de
amadurecimento da unidade do grupo de especialidade.
3º estágio: etapa caracterizada pelo “sucesso” do grupo (ALTMAN, 2004). Aqui,
intensifica-se o intercâmbio interno do grupo e suas proposições já são percebidas,
razoavelmente aceitas e incorporadas à discussão empreendida pela comunidade científica.
4º estágio: etapa que corresponde à configuração do cluster (MURRAY, 1994). Nesse
momento, há uma consciência coletiva da rede de pesquisadores e estudantes de que, juntos,
constituem efetivamente uma unidade coerente. As lideranças organizacionais são evidentes
nesse estágio e seu trabalho é imprescindível, afinal, o cluster pressupõe um alto número de
publicações propositivas e de debates públicos em torno das teses que compõem a identidade
teórica do grupo. Todavia, mais importante ainda para esse estágio é a reação externa dos
outros grupos, que refutam ou ratificam as proposições do grupo de especialidade
consolidado. Os “ataques” recebidos pelo grupo em estado de cluster reforçam seu “sucesso”,
afinal, são refutadas aquelas teses que são sistematicamente reverberadas no circuito
acadêmico em um dado momento.
O modo como é interpretado um grupo no seio acadêmico está atrelado à sua
condição, de prestígio ou desprestígio, perante a comunidade científica. Nesse sentido, dois
fatores são de suma importância à consolidação de um grupo de especialidade: o potencial de
elite e a idade profissional10 de seus partícipes (MURRAY, 1994).
O potencial de elite, que se organiza num continuum elástico, com variações de
intensidade para maior ou menor grau, diz respeito ao valor atribuído à instituição ou ao
grupo de pesquisa em que se desenvolvem os trabalhos de um grupo (geralmente, instituições
mais prestigiadas coincidem com aquelas em que atuam as lideranças intelectuais e
organizacionais). Nesse sentido, em muitos casos, há uma relação direta entre poder de
convencimento perante a comunidade científica e o potencial de elite de uma coletividade. A
capacidade de convencimento de um grupo está, também, atrelada à idade profissional dos

10
Tradução livre, respectivamente, dos termos eliteness e professional age (MURRAY, 1994).
57

agentes que em torno dele se organizam. Para Murray (1994), não se trata de idade no sentido
cronológico da palavra, mas sim do tempo de atuação e da expertise do indivíduo que produz
ou reproduz conhecimento; um estudante, assim, tenderia a apresentar menor idade
profissional, enquanto um pesquisador com longa tradição numa determinada área do
conhecimento, maior.
Tomando as proposições de Murray em seu conjunto, entendemos que o “sucesso” dos
grupos que entram em conflito no interior das comunidades científicas, clamando para si o
lugar de modelo capaz de resolver os problemas detectados pela coletividade, está diretamente
ligado a questões variadas, as quais, como se pode perceber, não se limitam à formulação do
conhecimento em si mesmo.

2.5 DIMENSÕES, PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS DA CONSTRUÇÃO


HISTORIOGRÁFICA

A discussão promovida até aqui permite que compreendamos a HL como disciplina


que se fundamenta na busca pelo passado a partir do cotejo de momentos de continuidades e
descontinuidades, uniformização e diversificação. Narrativas historiográficas buscam
reconstruir um espaço temporal, no qual se situam práticas específicas, a partir de critérios e
parâmetros objetivos capazes de subsidiar a interpretação do historiógrafo. Para que uma
narrativa tome forma, duas dimensões de análise distintas, porém irremediavelmente
correlacionadas, devem ser consideradas: uma dimensão interna e uma dimensão externa. O
trabalho situado na interface entre essas duas dimensões permite ao pesquisador olhar para o
interior das práticas e, ao mesmo tempo, para as condições externas em que são concebidas e
recebidas.
Vimos que o processamento das formas de conhecimento sobre a linguagem se dá no
interior de práticas organizadas e executadas por grupos de especialidades, os quais,
capitaneados por lideranças, podem construir colaborativamente, no interior dos programas
de investigação, uma tradição de pesquisa reconhecida como domínio consolidado e
amplamente difundido, ainda que não necessariamente hegemônico. O produto desse
organograma é o conhecimento linguístico. O conjunto dessas práticas colaborativas deve ser
analisado em sua relação constitutiva com as condições sociais, históricas, políticas e culturais
em que o conhecimento linguístico é concebido. Diante disso, constituem um equívoco
fundamental olhar para as práticas e para as ideias linguísticas em sua imanência sem que, ao
58

mesmo tempo, sejam consideradas as condições exteriores em que se dão a emergência, o


desenvolvimento e a consolidação dessas formas de conceber a linguagem. Ao recusar a
dissociação entre produção linguística e contexto, a HL encara a construção do conhecimento
como prática socialmente situada, justificando, assim, o porquê de trabalhar com as
dimensões interna e externa de modo correlato (SWIGGERS, 1990; ALTMAN, 1996).
Swiggers (1990) aponta que, por muito tempo, duas formas isoladas de encarar o
trabalho historiográfico foram concebidas: uma conteudisticamente orientada11 e outra
contextualmente orientada12. A primeira orientação direciona a investigação para a imanência
das práticas e das fontes historiográficas no sentido de analisar isoladamente (sem a
interferência diacrônica) teorias, concepções e metodologias descritivas subjacentes ao
material investigado. Já a segunda, de natureza extralinguística e extraorganizacional, enxerga
as fontes historiográficas no âmago do contexto social em que vêm a lume. Para Altman
(1996), essas duas dimensões de análise não existem senão para fundamentar uma à outra,
afinal, “embora requeiram procedimentos metodológicos diferentes, conteúdo e contexto
estão inevitavelmente ligados, embora nossa maneira de percebê-los possa, às vezes, sugerir o
contrário” (ALTMAN, 1996, p. 181).
Partindo das considerações acima, pode-se afirmar que a HL não busca, portanto,
operar com uma análise dicotomizada que separa aspectos conceituais e contextuais. Sendo
assim, a descrição que segue acerca das dimensões interna e externa, apresentadas uma por
vez, se dá exclusivamente por questões de ordem didática, isto é, com vistas à melhor
compreensão dos limites e das especificidades das dimensões em suas individualidades.
A dimensão interna contempla a análise das concepções e dos modelos teórico-
metodológicos desenvolvidos por uma determinada escola, teoria, obra, por um autor, por um
grupo de especialidade, por uma tradição de pesquisa etc. A essa dimensão se ligam
perguntas como, por exemplo:

a. que aspectos da linguagem foram considerados relevantes num dado conjunto de textos
publicados em décadas passadas?
b. que noções de competência comunicativa podem ser depreendidas de exames de
avaliação em larga escala aplicados no Brasil durante o período da ditadura militar?
c. qual o papel e o espaço concedido à reflexão sobre oralidade em livros didáticos
produzidos antes da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais?
11
Tradução livre do termo “content-oriented” (SWIGGERS, 1990).
12
Tradução livre do termo “context-oriented” (SWIGGERS, 1990).
59

d. de que modo gramáticos brasileiros do passado compreendem o funcionamento da


colocação pronominal?
e. que modelos e disciplinas teóricas compuseram a grade curricular dos cursos de Letras no
Brasil entre as décadas de 1960 e 1980?
f. que metodologias de ensino de língua materna estão pressupostas em documentos oficiais
norteadores do ensino básico no passado?
g. que teorias foram contempladas pelos manuais de linguística publicados no Brasil em
décadas pretéritas?
h. como se constituem as práticas, a técnica e as fontes de um dado programa de
investigação emergente na história da linguística brasileira?

Essas perguntas ilustram as inúmeras possibilidades de investigações que podem ser


desenvolvidas no interior da dimensão interna de análise historiográfica e nos permitem, além
disso, compreender que tipo de motivações estabelecem essa etapa internalista da pesquisa
historiográfica.
A dimensão externa, por seu turno, compreende a etapa da investigação que, para além
da imanência das fontes, considera

o aspecto social como parte do processo histórico de formação e desenvolvimento de


uma ciência ou área do saber e de suas práticas discursivas, revelando
posicionamentos ideológicos, sociais e históricos, em torno do estabelecimento de
retóricas típicas de comunidades de pesquisadores e intelectuais (BATISTA, 2013,
p. 57).

A dimensão externa prevê duas instâncias investigativas entrelaçadas: (i) uma voltada
à análise temporal, a partir da qual se observam movimentos de continuidade e
descontinuidade com tradições de pesquisa numa período de tempo específico; e (ii) uma
voltada à análise da conjuntura social, tarefa que envolve considerar tanto o modo como se
organizam os pesquisadores no interior de retóricas específicas, como a atmosfera social e
intelectual em que o conhecimento sobre as línguas e a linguagem é produzido.
No cerne da discussão sobre a dimensão externa de investigação historiográfica, o
conceito de clima de opinião (KOERNER, 1995) toma lugar de destaque. A discussão até
aqui desenvolvida nos permite compreender que as “ideias linguísticas não se desenvolvem
no vazio, desvinculadas das outras ideias que as circundam no momento em que entram em
evidência, e das práticas que lhe são paralelas” (ALTMAN, 2012, p. 23). É nessa direção que
60

o clima de opinião – entendido como a atmosfera intelectual, social, política e cultural em que
o conhecimento é produzido – se reveste de importância para o trabalho historiográfico. Uma
narrativa historiográfica que se propõe a investigar o passado da linguística, considerando a
configuração hermenêutica que lhe cabe, não pode abrir mão de (i) olhar para as opções
ideológicas que, num dado contexto histórico, conduziram um modelo (ou um programa de
investigação) ao fracasso ou ao sucesso; (ii) investigar as motivações que levaram à
emergência de uma ou outra perspectiva; (iii) analisar como, no interior de um contexto
temporal e local, um grupo de especialidade foi coroado como aquele capaz de apresentar
soluções para certos problemas evidenciados pela comunidade; entre outras ações.
Não basta, portanto, reconhecer e atestar a existência e a hegemonia de grupos que
num dado momento ganharam destaque graças ao potencial resolutivo de suas teses
(excluindo-se, nesse movimento, os demais modelos, grupos e teorias que coexistiram durante
esse período); é preciso, mais que isso, questionar que condicionantes teriam determinado o
sucesso de um modelo que se tornou hegemônico e, ao mesmo tempo, o fracasso de
perspectivas que ficaram à sua margem. Afinal, o silenciamento ou até o apagamento de um
determinado grupo se dão, muitas vezes, menos pela natureza interna do modelo teórico
proposto e mais pelas condições externas em que se inscrevem no circuito acadêmico. Em
outras palavras, o grau de aceitabilidade dos saberes não está atrelado apenas à qualidade da
tese proposta ou à sua capacidade de solucionar problemas discutidos. A aceitação está
também (e, às vezes, sobretudo) vinculada às condições impostas pelo clima de opinião
(escorregadio e mutável) em que floresce o conhecimento. Desse modo, o “fracasso” de
determinado grupo pode indicar que suas teses foram propostas e discutidas no lugar errado e
na hora errada (ALTMAN, 1997).
Considerar o clima de opinião na compreensão de momentos pretéritos nos livra da
reincidente e tão perigosa postura de encarar a produção científica como centrada em sujeitos
individualizados, cuja genialidade lhes concederia o título de herói salvador de uma disciplina
que clama por mudança. Não raro, como se pôde perceber pelo modo como muitos manuais
de linguística interpretam a história pretérita, o “avanço” da linguística se explica a partir de
uma sobreposição de empreendimentos, dispostos linearmente num continuum temporal,
capitaneados por precursores geniais isolados. Todavia, convém destacar que a eleição de um
ou outro indivíduo como precursor, como grande linguista que enxergou para além do seu
tempo se dá, com certa inadequação, a partir do ponto de vista privilegiado do historiador
situado no presente (ALTMAN, 2012). Olhar para trás, pincelando indivíduos sem considerar
61

as condições de representatividade e visibilidade de seu pensamento, bem como


desconsiderando o coletivo que, com ele, permitiu a emergência e a difusão de um
determinado modo de conceber a linguagem, parece-me consistir em postura pouco razoável
quando penso no produto final de uma narrativa de caráter historiográfico.
O culto ao herói típico da história da linguística tradicional apaga, pois, a existência
daqueles indivíduos que não obtiveram “sucesso” em meio ao conflito epistemológico (o que
não significa uma necessária inviabilidade de suas teses). Com efeito, por consequência do
culto ao herói, pode-se dizer que centenas de pessoas “atravessaram o Rubicon no ano 49 a.C,
mas só a passagem de César é que pode ser relacionada com o estabelecimento de uma nova
ordem política no Império Romano” (ALTMAN, 2012, p. 24).
Isso tudo não quer dizer, entretanto, que a HL defenda o apagamento de indivíduos
cuja importância aos estudos da linguagem é inequivocadamente atestada (toma-os, na
verdade, como lideranças). A HL propõe, na verdade, que a narrativa historiográfica não deve
focar nas soluções ultramodernas dos heróis e na sua capacidade inovadora de identificar e
resolver “novos” problemas, mas sim no levantamento de questões que nos permitem
entender por que determinados problemas receberam atenção num dado momento, por
determinados agentes que propuseram uma forma e não outra de enxergar os fenômenos de
linguagem. Ou, ainda, por que outras formas de resolução do problema não foram
consideradas relevantes à época; ou, se foram consideradas, por que foram logo
desconsideradas, silenciadas, esquecidas, deslegitimadas. Esse itinerário investigativo
possibilita ao historiógrafo olhar para os agentes da produção do conhecimento linguístico
sem a ingenuidade que nos faz acreditar, por influência da tradição, na absoluta genialidade
de indivíduos que surgem de tempos em tempos.
Desse modo, trazendo tais questões para o foco desta tese, não há como olhar para a
tradição sociodiscursiva e seus corolários pedagógicos, em suas retóricas estabelecidas, em
seus processos de continuidades e descontinuidades, sem que encaremos a emergência, o
desenvolvimento e a consolidação dessa tradição em sintonia com os problemas que, à época,
foram considerados relevantes. Também não podemos acreditar que a relevância atribuída a
esses problemas brota do acaso; pelo contrário: os problemas postos em evidência e para os
quais a TSD busca solução estão atrelados, entre outras questões, às mudanças por que
passavam a sociedade, a escola, o alunado da época. As lideranças intelectuais e
organizacionais, os grupos de especialidade e, enfim, a tradição de pesquisa se moldam e se
organizam em torno de uma atmosfera social e intelectual que não pode ser ignorada.
62

Por essa orientação, isto é, buscando sempre resgatar a história de ideias linguísticas
no interior de práticas situadas social, histórica e culturalmente, busco reconstruir a história da
TSD na pesquisa linguística brasileira em íntima relação com o clima de opinião do período
investigado (1970-1999), analisando, entre outras questões, a partir das fontes
historiográficas, como se articulam os indivíduos que constroem e propagam os saberes dessa
tradição e de que modo se desenvolvem grupos de especialidades cujas lideranças não se
sustentam senão pelo caráter colaborativo intrínseco à prática de produção do conhecimento.
Assim definida, à dimensão externa se ligam questionamentos como, por exemplo:

a. que fatores sócio-históricos ou políticos motivaram/influenciaram a emergência de um


determinado modo de compreender a linguagem?
b. em que medida os objetos de ensino definidos nos livros didáticos se ligam a movimentos
de continuidade ou descontinuidade por que passou o cenário intelectual de uma época?
c. de que modo propostas curriculares para o ensino básico de língua portuguesa se
relacionam à conjuntura política de um dado momento histórico?
d. em que medida o acirrado conflito no interior do debate acadêmico determina o
surgimento de uma ou outra teoria em manuais de linguística publicados no passado?

Em suma, à dimensão interna corresponde a observação das fontes historiográficas em


sua imanência conceitual, enquanto à dimensão externa, o tratamento da dinâmica social em
que se situam tais fontes. A formação linguística do pesquisador se mostra relevante para a
execução adequada da dimensão interna, na medida em que se busca, nessa etapa, apreender
os modelos descritivos e metodológicos que subjazem às fontes investigadas. Já para o
adequado tratamento da dimensão externa, o pesquisador-linguista precisa interagir com
disciplinas que compreendam o conhecimento em seu âmbito social, como é o caso, por
exemplo, da Sociologia da Ciência. A articulação entre as duas dimensões e sua execução
adequada concedem ao historiógrafo as ferramentas adequadas para a construção de uma
narrativa historiográfica capaz de compreender os textos, os agentes intelectuais, os modelos
teóricos e os fundamentos conceituais no curso da história, em seus movimentos de
continuidades e descontinuidades, unificação e diversificação, resgate e ruptura.
Na mesma direção, ou seja, compreendendo a relação constitutiva entre as dimensões
interna e externa, entre as ideias linguísticas e o contexto em que são processadas, Koerner
63

(1996) propõe três princípios que norteiam a construção das narrativas historiográficas, a
saber: princípio da imanência, princípio da contextualização e princípio da adequação.
O princípio da imanência orienta a observação das fontes a partir do estabelecimento
de um recorte sincrônico. Assim, um historiógrafo que toma como objeto investigativo, por
exemplo, o modo como gramáticas das primeiras décadas do século tratam o fenômeno dos
tempos verbais, opera, antes de tudo, com um recorte temporal e conceitual bem específico:
esse é o horizonte do qual não deve escapar. As fontes historiográficas pertinentes a seus
propósitos devem ser analisadas em sua imanência, sem a interferência da visão
“privilegiada” do pesquisador do presente e das teorias modernas que se desenvolveram
posteriormente. O que o princípio da imanência busca garantir, desse modo, é a interpretação
de como os textos definem/entendem/teorizam os fatos de linguagem em sua essência,
circunscritos numa contexto específico de produção e recepção.
O princípio de contextualização corresponde à reconstrução das condições em que o
conhecimento linguístico é concebido. Dessa forma, o acesso ao clima de opinião (BECKER,
1932) de época é imprescindível, uma vez que cabe ao historiógrafo, aqui, orientado por esse
princípio extrateórico, extraconceptual e extraepistemológico, a tarefa de reconstruir o
contexto em que se inscreve o processamento das práticas linguísticas em toda a sua
complexidade. Situa-se aqui toda a reflexão acima empreendida sobre a dimensão externa de
investigação historiográfica.
Por fim, tendo o historiógrafo atentado aos princípios da imanência e da
contextualização, resta-lhe agora partir para as avaliações e os julgamentos sem os quais não
existe narrativa historiográfica. Eis, pois, a etapa que caracteriza o princípio de adequação.
Nesse último movimento, tendo observado as fontes em sua imanência situacional, bem como
levantado o clima de opinião em que estão inseridos tais textos, o historiógrafo está apto a
traçar as bases do trabalho historiográfico, fundamentado, essencialmente, pelo
direcionamento descritivo-interpretativo que caracteriza a abordagem hermenêutica defendida
por Swiggers (2013). Nesta etapa da prática historiográfica, aquele que se dispõe a reconstruir
o passado – sobretudo aquele passado que se afasta em demasia do presente – se depara com o
desafio de lidar com a metalinguagem empregada nas fontes investigadas. O historiógrafo,
então, para Altman (2012), se vê enfrentando o dilema entre reproduzir fielmente “os termos
com que o linguista se expressou, correndo o risco de não ser compreendido pelo seu leitor
contemporâneo, ou modernizar argumentos e a metalinguagem do autor do passado, correndo
o risco de desvirtuar suas propostas originais” (p. 26). No entremeio entre o passado e o
64

presente, entre a manutenção da fidelidade às fontes e a necessidade de interlocução com o


leitor de seu tempo, o historiógrafo deve buscar o caminho ponderado do equilíbrio. Não se
deve perder de vista, como tem sido aqui salientado, que o trabalho historiográfico é, antes de
tudo, um discurso sobre o passado, um posicionamento interpretativo autoral. Assim, a etapa
final regida pelo princípio da adequação exige do historiógrafo o olhar criterioso de um
sujeito de seu tempo que resgata e atualiza o passado sem, entretanto, descaracterizá-lo.
Diante da complexidade que tipifica a agenda de trabalho da HL, encerro esta
subseção com Altman (2012), que enfatiza: “elaborar uma historiografia adequada é, pois,
tarefa bem mais complexa do que „contar as coisas como se passaram‟” (p. 26).
65

3 A TRADIÇÃO SOCIODISCURSIVA NOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS


OCIDENTAIS

Este capítulo tem como propósito definir e conceituar o que tenho chamado de
tradição sociodiscursiva (TSD). Mais precisamente, nas seções que seguem, além de
apresentar justificativas para a terminologia adotada, discuto sobre as fronteiras que
demarcam os limites da TSD, bem como os objetos investigativos que estabelecem as
diretrizes epistemológicas que configuraram, sustentaram e solidificaram essa tradição.
Naturalmente, a apresentação da TSD e de seus desdobramentos aqui desenvolvida
não se insere numa abordagem historiográfica num sentido mais particular do termo, embora
fundamentos da HL de algum modo perpassem a reflexão aqui discorrida. Não abordarei, por
exemplo, questões mais detidamente ligadas às condições sócio-históricas que situam a
emergência da TSD ou à recepção, no contexto ocidental, das teorias que configuram esse
domínio do saber linguístico. Meu foco, aqui, reforço, reside na apresentação, definição e
discussão dos fundamentos epistemológicos da TSD, partindo da observação dos modelos
teóricos que, a despeito de suas particularidades e diferenças quanto ao tratamento dos fatos
de linguagem, dão corpo a essa tradição que protagoniza uma parcela significativa da
linguística contemporânea.
Convém salientar que, apesar do tom expositivo e da já anunciada postura em grande
medida internalista que assumo neste capítulo, não parto do pressuposto de que saberes
linguísticos em geral e, mais restritamente, as proposições teórico-metodológicas
desenvolvidas por indivíduos ou grupos de pesquisa surgem num vazio contextual. Pelo
contrário, concebo a construção do conhecimento como produto que emerge senão pelo
trabalho coletivo que se desenvolve no interior de contextos sociais, históricos, ideológicos e
culturais, tal como compreende a Historiografia da Linguística (cf. Capítulo 2). Todavia, um
trabalho historiográfico em torno da TSD que fosse capaz de contemplar aspectos mais
detidamente ligados ao clima de opinião europeu em que a tradição se desenvolveu, além de
se distanciar do objetivo central da tese, demandaria considerável fôlego de pesquisa, uma vez
que a reconstrução do contexto social da época não seria possível senão por meio de pistas e
vestígios que se materializam em fontes primárias e secundárias que circularam em diferentes
espaços e épocas. A escolha por desenvolver este capítulo destacando questões internas à
tradição contribui com a consecução do objetivo central da tese, que gira em torno da
compreensão da emergência, do desenvolvimento e da consolidação da TSD no Brasil e seus
66

efeitos na reflexão sobre ensino de língua portuguesa. É preciso, pois, que compreendamos a
tradição sociodiscursiva em sua constituição interna para que, quando das análises, possamos
descrever e interpretar seus desdobramentos na reflexão empreendida pela linguística
brasileira ao longo dos trinta anos que situam a pesquisa aqui empreendida.
Convém também enfatizar que, em consonância com pressupostos da Historiografia da
Linguística, não enxergo a TSD como resultado de uma superação natural da tradição
formalista que até a primeira metade do século XX orientava, com certa hegemonia, o
pensamento linguístico ocidental. Encaro tanto as teorias como os objetos investigativos a
partir delas delimitados como constructos que emergem emparelhados a certas demandas que
se mostram relevantes para a comunidade científica num dado momento da história. Isto é, as
ideias linguísticas subjacentes aos diferentes modelos descritivos traduzem as aspirações
coletivas de seu tempo. Diante disso, não reivindico o status de revolucionário a um ou outro
modelo teórico, tampouco, consequentemente, julgo inadequadas ou insuficientes as
proposições teóricas e as aplicações práticas de modelos a que a TSD se opõe.
Feitas essas considerações necessárias, passo agora à reflexão centrada nos aspectos
internos à TSD. Para melhor organizar a apresentação da tradição em sua complexa
heterogeneidade constitutiva, as seções a seguir estão divididas em diferentes blocos, os quais,
a despeito da separação que se justifica por fins didático-expositivos, estão conceptualmente
entrelaçados. As seções a seguir têm por objetivo:

a. apresentar, delimitar e discutir o conceito de tradição sociodiscursiva (TSD),


destacando que objetos investigativos são conceituados e descritos nesse domínio
epistemológico, bem como que ferramentas e procedimentos metodológicos são
adotados no trabalho de análise e descrição dos fenômenos de linguagem empreendido
pelos modelos que erigem essa tradição;
b. expor e precisar as fronteiras que demarcam o domínio da TSD, a partir da
apresentação e discussão das diretrizes epistemológicas que dão corpo a essa tradição
de pesquisa linguística;
c. compreender de que modo e até que ponto os diferentes empreendimentos teórico-
metodológicos que erigem a TSD encontram pontos de convergência no que diz
respeito à reflexão sobre a linguagem.
67

3.1 ATÉ QUE PONTO SE PODE FALAR EM UMA VIRADA NA LINGUÍSTICA


OCIDENTAL?

Inicio esta seção tratando de uma questão de terminologia. O domínio epistemológico


que chamo de tradição sociodiscursiva se aproxima do movimento que pesquisadores – com
ou sem propósitos historiográficas – têm chamado de virada/guinada pragmática
(WEEDWOOD, 2002; MARCUSCHI, 2008) ou virada linguística (VIEIRA, 2015).
Justificarei por que não compreendo esse domínio como resultado de uma virada na
linguística, bem como por que não o enxergo como um movimento que se dá no âmbito
(apenas) da pragmática.
Aqui, tomo os termos virada e guinada como designações equivalentes. No contexto
da discussão sobre virada/guinada pragmática, as duas denominações dizem respeito ao
mesmo movimento. Virada pragmática e guinada pragmática resultam, na verdade, de duas
diferentes traduções do termo linguistic turn, cuja origem pode ser apontada “no discurso
filosófico do Ocidente, mais precisamente nos textos de filósofos como Richard Rorty e
Jürgen Habermas” (VIEIRA, 2015, p. 19). A partir de agora, quando me referir à palavra
virada, leia-se, também, guinada.
A palavra virada, no meu entendimento, designa a ideia de movimento;
particularmente, um movimento de ruptura cujo resultado é a reconfiguração das regras ou
estado de um objeto, evento ou fenômeno. Voltando-nos para a história da linguística
ocidental, pode-se dizer que a virada a que se referem os autores acima mencionados se trata
do movimento por que passa a linguística ocidental, no momento em que, a partir da segunda
metade do século XX, perspectivas formalistas – nas quais se inserem tanto o estruturalismo
como o gerativismo – passam a ser questionadas, abrindo espaço para a emergência do que
Marcuschi (2008, p. 38) chama de “tendências hifenizadas ou genitivas”: a linguística de
texto, a análise do discurso, a análise da conversação e a sociolinguística, para citar algumas
dessas tendências.
Nesse momento, mais precisamente no final da década de 1950, a linguística ocidental
assiste à chegada de modelos que, em intercâmbio direto com outros campos disciplinares das
ciências humanas e sociais – como a sociologia, a antropologia, a filosofia e a psicologia –,
convocam à reflexão sobre a linguagem saberes até então encarados pela tradição formalista
como exteriores ao fenômeno da linguagem humana, motivo pelo qual não deveriam ser
objeto de investigação de uma ciência autodenominada linguística. Os modelos teóricos
68

emergentes promovem fissuras nessa tradição cristalizada, propondo o estudo de objetos cuja
compreensão depende da relação entre elementos linguísticos e elementos que residem na
exterioridade da linguagem.
Dessa forma, o estudo da língua, antes situado exclusivamente na forma, passa a
residir na performance, na realização, na atualização. Passa a residir, enfim, nos usos
linguísticos operados por sujeitos situados em circunstâncias de comunicação específicas.
Esse movimento de passagem ou, em outras palavras, de mudança de paradigma compreende
a virada/guinada pragmática (MARCUSCHI, 2008; WEEDWOOD, 2002) ou virada
linguística (VIEIRA, 2015).
Não é meu propósito recusar a existência do que se pode compreender pelas
designações das viradas mencionadas. Ademais, convém destacar enfaticamente que os
trabalhos a que faço referência não têm como propósito primário desenvolver uma discussão
historiográfica análoga à que aqui desenvolvo, motivo pelo qual seus autores qual não
dedicaram esforços mais acentuados à discussão sobre a designação que fazem quando se
referem à abertura da linguística para questões situadas na dimensão extralinguística. Dito
isso, como estratégia retórica para justificar minha escolha pela designação tradição
sociodiscursiva em detrimento de virada pragmática ou linguística, gostaria de propor um
exercício de reflexão sobre alguns elementos da história da linguística ocidental no século XX
e sobre e os fundamentos epistemológicos atrelados às teorias hifenizadas e genitivas a que se
refere Marcuschi (2008).
Para pensar nas implicações das viradas como forma de designação do momento da
história da linguística aqui discutido, bem como para justificar a escolha terminológica
alternativa, apoio-me em Koerner (1989) e Hymes (1983), pesquisadores que tratam da
complexa dinâmica pendular que caracteriza muitas das história das ciências humanas e
sociais, dentre elas a da linguística.
Num sentido mais amplo, o termo virada pode ser compreendido no interior de um
campo semântico em que também se situam termos como mudança, deslocamento e
transferência. Todos esses itens lexicais indicam ideia de movimento, isto é, a passagem de
um estado (ou paradigma) a outro. Do ponto de vista semântico, de modo análogo, virada
também pressupõe movimento de passagem de um ponto ou estado a outro, todavia, com um
diferencial: trata-se de um movimento cujo novo estado dele consequente se opõe ao eixo,
polo ou paradigma, por assim dizer, “deixado para trás”, “superado”. Não por acaso a mesma
expressão é utilizada em situações que marcam, de fato, uma superação: “O time que estava
69

perdendo virou o jogo!”; ou “Depois da promoção de emprego, minha vida deu uma virada
radical!”, para citar alguns exemplos utilizados em situações do cotidiano. O verbo virar, em
contextos de deslocamentos, costuma marcar, portanto, um tipo de mudança mais acentuada,
uma reconfiguração ou reorganização da ordem das coisas.
Se nos detivermos a essa reflexão de natureza semântica, perceberemos as implicações
atreladas às designações das viradas e seus correlatos. Para Koerner (1989) e Hymes (1983), a
história das ciências humanas em geral e da linguística em particular não se desenrolam num
plano linear em que é possível identificar momentos de superação, como compreende Kuhn
(1998) em seu modelo interpretativo da história das ciências naturais. Koerner (1989) parte da
ideia de que a história das ciências pode ser interpretada, entre outros, por um meio de um
modelo pendular ou de progresso relativo. O autor compreende que, a despeito da mudança,
do deslocamento ou da alteração por que passa um campo científico, diferentes (e até
dissidentes) modelos teóricos podem coexistir num mesmo espaço, ainda que um ou outro, a
depender das condições determinadas pela atmosfera intelectual vigente, possa gozar de maior
prestígio perante a comunidade científica. Por esse motivo, à compreensão da emergência das
teorias sociodiscursivas como resultado de uma virada na linguística subjaz a ideia de
superação da tradição formalista, que, uma vez superada, passaria a não mais ser reconhecida
no circuito de discussão linguística.
Tanto Hymes (1983) como Koerner (1989), ao interpretar o desenvolvimento da
história das ciências, em particular das ciências humanas e sociais, defendem que a
emergência e o posterior “sucesso” de um modelo ou conjunto de modelos – nos termos de
Murray (1994) – não implicam, necessariamente, no absoluto apagamento de
empreendimentos a que as perspectivas consideradas modernas se opõem. Por esse motivo, na
esteira da reflexão dos autores, entendo que, a despeito da emergência, do desenvolvimento,
da consolidação e da legitimação de teorias que compreendem a linguagem como um objeto
social e discursivo, empreendimentos subscritos no programa formalista continuam a existir,
propondo modelos teórico-descritivos para explicar os certos fenômenos de linguagem; as
concepções formalistas continuam sendo reverberadas na pesquisa linguística e no espaço
escolar, nesse último caso sob a tutela da gramática tradicional.
Dessa maneira, uma vez que assumo o modelo hermenêutico de Hymes (1983) e
Koener (1989) para compreender a história da linguística, as designações virada pragmática
ou virada linguística, no contexto desta tese, mostram-se reducionistas – se consideramos
que podem de algum modo indicar a superação de modelos “ultrapassados” –, uma vez que,
70

em sentido estrito, não podemos falar em uma legítima virada na/da linguística. Ao adotar o
termo tradição sociodiscursiva como designação alternativa, estou compreendendo que a
emergência das teorias com ênfase investigativa nos usos linguísticos e nos aspectos
sociodiscursivos a eles atrelados impulsiona o desenvolvimento de um novo programa de
investigação (SWIGGERS, 1981; LAUDAN, 2011 [1978]) que passa a concorrer e coexistir
com outros programas que compõem, em conjunto, o que compreendemos, naquele momento,
por linguística ocidental. Esse programa inaugurado, cuja recepção e cujo desenvolvimento
acontecem ao sabor das condições impostas pelo clima de opinião da época, incorpora à
linguística ocidental uma tradição investigativa que, no seu modo de enxergar e analisar os
fenômenos linguísticos, não separa a forma dos usos, a língua de fatores extralinguísticos,
como o fizeram Saussure e Chomsky, duas lideranças importantes para a consolidação,
respectivamente, do estruturalismo europeu e do gerativismo.
Composto por diferentes modelos teóricos que adotam postura distinta daquela que
resulta no corte saussureano – langue x parole –, esse novo programa que entra em cena na
linguística moderna é definido por Swiggers (1981) como o programa sociocultural. A partir
da década de 1950, na Europa, prolongando-se até os dias de hoje, o programa sociocultural
passa a dividir espaço com outros programas, como o descritivista, de caráter estruturalista, e
o de correspondência, mais atento às questões de ordem cognitivas atreladas à perspectiva
gerativista. Ao longo dos anos, pode-se dizer que os pressupostos do programa sociocultural
passam a ecoar mais fortemente nos espaços institucionais ocupados pela linguística
ocidental, constituindo, assim, uma tradição consolidada e legitimada.
Para atestar a consolidação dessa tradição, basta que lancemos olhar para a história do
programa sociocultural, em geral, e dos campos disciplinares que compõem esse domínio
epistemológico, em particular. Essa história, cuja narrativa se prolonga até os dias atuais,
atesta que saberes e concepções subjacentes a esse programa já gozam de legitimidade nos
espaços acadêmicos, motivo pelo qual é possível constatar em trabalhos atuais, ligados às
mais variadas perspectivas teóricas da linguística, produzidos por pesquisadores ligados a
importantes centros de pesquisa no Brasil e no exterior, a frequente circulação de conceitos
como os de discurso, interdiscurso, formação discursiva, memória discursiva, condições de
produção, intertextualidade, contexto, polifonia, diálogo, dialogismo, interlocução,
intersubjetividade, enunciação, autoria, sujeito, variação, variedades, heterogeneidade,
intencionalidade, ideologia, modalização, referenciação, entre tantos outros a eles correlatos.
Naturalmente, grande parte desses conceitos não carrega definições fechadas, prontas e
71

acabadas; pelo contrário, diferentes modelos interpretativos lidam com as categorias a partir
do modo como delimitam seus objetos e objetivos investigativos. É o caso, por exemplo, da
noção de discurso, que é tomado pelas diferentes vertentes da análise do discurso, como
também pela linguística textual, pelas teorias enunciativas e pelas abordagens funcionalistas.
Todavia, apesar das diferenças conceituais, os modelos subscritos no domínio do programa
sociocultural encararam esse conceito, o de discurso, a partir da relação entre linguagem e
exterioridade; seja pelo ponto de vista do encontro entre língua e ideologia, da relação entre
língua e vozes sociais, da influência que as questões pragmáticas exercem na língua em uso...
o discurso, no âmbito do programa sociocultural, sempre aponta para a estrita relação entre
estrutura e questões que estão para além de sua materialidade. Esse ponto de convergência a
partir do qual dialogam as abordagens a despeito das suas diferenças e divergências já é hoje
um lugar comum, um ponto de consenso, um pressuposto e pré-concebido que reforçam a
constituição do domínio sociodiscursivo como uma tradição: a tradição sociodiscursiva – na
qual se inscrevem as reflexões do discurso, do texto, da enunciação, da mudança linguística,
da pragmática etc.
Diante das reflexões até aqui empreendidas, defendo que o desenvolvimento e a
difusão do programa sociocultural impulsionaram a construção de uma nova tradição
investigativa consolidada na linguística. Esse domínio consolidado e legitimado inaugura um
“corte” na pesquisa linguística ocidental cujo resultado é a separação dos estudos em
diferentes blocos (programas), que coexistem, embora um ou outro, em algum momento e em
alguns contextos de pesquisa, possa ser reconhecido como o mais adequado para pensar nas
indagações sobre a linguagem postas em discussão. A consolidação do programa
sociocultural e o consequente estabelecimento de uma tradição de natureza sociodiscursiva
conduzem a emergência de novas diretrizes descritivas que abrem caminhos para a
interlocução direta entre a ciência da linguagem e outros campos disciplinares que auxiliam
na compreensão da linguagem humana como um fato sócio-histórico e cultural.
Tendo proposto outro caminho como alternativa para as designações atreladas às
viradas e seus correlatos, convém, a partir de agora, apresentar justificativas mais consistentes
para sustentar o conceito de tradição sociodiscursiva (TSD). Para tanto, a seguir, discuto
sobre o domínio epistemológico cujas fronteiras nos permitem designá-lo como
sociodiscursivo, bem como discorro de modo mais prolongado sobre o conceito de tradição a
partir de dois pontos de vista – um mais geral, sem necessário vínculo teórico, e outro mais
72

específico, respaldado em fundamentos caros à epistemologia ou filosofia da ciência.


Comecemos pela discussão sobre a noção de tradição.

3.2 TRADIÇÃO SOCIODISCURSIVA: DOMÍNIOS E FRONTEIRAS

Em um sentido mais geral, toda tradição comporta uma memória historicamente


construída que garante a permanência de certas práticas, concepções e valores que são
incorporados ao imaginário de um grupo, garantindo a formação de uma identidade coletiva.
Atravessadas pela historicidade, as tradições resultam, pois, de um trabalho de construção que
se dá no curso do tempo. Desse modo, se as tradições carregam memórias que tecem sua
história, é possível ao historiógrafo, a partir do resgate e interpretação dessas memórias,
reconstruir o percurso de constituição, recepção, desenvolvimento e consolidação de uma
tradição ao longo do tempo.
Uma vez que parto do pressuposto de que as tradições carregam uma história, entendo
que um domínio conceptual assim designado não adquire o prestígio e a legitimação de uma
tradição pelo simples trabalho do acaso. Assumir a hipótese de que tradições são domínios
com histórias próprias pressupõe, ao mesmo tempo, entender que a consolidação de suas
fronteiras e a propagação de seus pressupostos (fatores que lhe garantem e reforçam seu status
de tradição) resultam de um complexo e tentacular caminho trilhado ao longo do tempo por
sujeitos com propósitos específicos, situados em determinadas condições sociais, históricas e
culturais. Esses sujeitos, consciente ou inconscientemente, agem em prol da construção de um
domínio que é difundido, propagado, consolidado e legitimado. Naturalmente, a consolidação
e a ampla aceitação de uma tradição (condições, aliás, de sua existência) estão diretamente
atreladas à construção, execução e recepção de retóricas de convencimento que, subscritas
num contexto favorável atrelado à atmosfera de uma época, obtiveram êxito.
Trabalhar com a ideia de que tradições carregam uma história não implica acreditar
que um domínio pode ser assim designado desde seus primeiros estágios de emergência. As
tradições, na verdade, passam a ser compreendidas desse modo a partir do ponto de sua
história que demarca o florescer de um efeito de consensualidade que passa a circular num
determinado espaço marcado pela oposição de ideias. Assim, a expressão “emergência da
tradição” se refere, precisamente, ao ponto da história em que os primeiros e mais evidentes
indícios de sua identidade conceptual podem ser identificados numa dada conjuntura. Não
estou tratando, ainda, quando falo em emergência, do estabelecimento de uma tradição em si,
73

mas sim dos primeiros vestígios que podem indicar o florescer de seu estágio inicial. As bases
ainda frágeis desse domínio emergente podem, uma vez consolidadas, favorecer a
constituição de uma tradição propriamente dita. Nada garante, entretanto, que o domínio
emergente atingirá o estatuto de tradição, cabendo a fatores internos e externos de toda sorte
determinar se obterá êxito no que tange à recepção e propagação de saberes atrelados a esse
domínio. Sendo assim, pode-se dizer que uma tradição passa a sê-la, assim designada, a partir
do momento em que é possível identificar indícios suficientes que atestem a existência efetiva
de um efeito de consensualidade cujo resultado, a despeito dos confrontos e da coexistência
de outras formas de compreensão da realidade, é o estabelecimento de sólidas fronteiras de
um domínio conceptual no qual indivíduos se apoiam, muitas vezes sem questionamentos,
para olhar para si, para o outro e para o que o mundo que os cerca. Pode-se dizer, nesse
momento, que o domínio emergente obteve êxito e, enfim, tornou-se uma tradição.
Se nos voltarmos para a origem etimológica da palavra tradição, remetendo-nos ao
termo traditio, do latim, conseguiremos observar que, em alguma medida, a noção de
consensualidade está enraizada a esse vocábulo. Traditio significa “transmitir”, “passar
adiante”. Tradicionalmente, está elegível para ser propagado ou transmitido apenas aquilo que
é encarado como pertencente a um legado de crenças, hábitos e práticas que configura a
memória coletiva de um grupo; isto é, propaga-se aquilo que é consensual. Na designação
contemporânea de tradição está assegurada a permanência da essência de traditio, na medida
em que toda tradição deve ser necessariamente propagada pelos seus adeptos ou, em outras
palavras, “passada adiante” como um legado que não deve ser esquecido.
Em alguns casos, em função da irrefutabilidade que atravessa o modo como são
interpretadas algumas tradições consolidadas ao longo da história da humanidade, o conjunto
de preceitos propagados pela tradição assume um caráter dogmático. Não é por acaso, por
exemplo, que a gramática, instrumento milenar construído pelos gregos alexandrinos,
consolidado pelos romanos e cristalizado no imaginário ocidental até hoje, carrega em sua
forma de designação o epíteto tradicional – gramática tradicional. Trata-se, efetivamente, de
uma tradição consolidada e legitimada que, a despeito das frequentes e contundentes críticas
a ela lançadas, continua sendo, no sentido visceral do termo traditio, “passada adiante” como
uma doutrina.
Em suma, ao tratar da tradição sociodiscursiva, parto, inicialmente, desse amplo
conceito de tradição como um domínio que tem uma história passível de descrição e de
interpretação e cujos saberes que o sustentam são tomados por uma coletividade em seu
74

caráter consensual. A compreensão, por exemplo, de que a língua é fenômeno de natureza


mutável e heterogênea ou de que o texto não é um simples conjunto de palavras dispostas
linearmente constituem saberes já enraizados na linguística contemporânea; configuram, pois,
ideias linguísticas consolidados cuja validade é hoje consensualmente atestada pela
comunidade científica. Esses saberes passam a circular no domínio da linguística por
consequência da emergência algumas abordagens sociodiscursivas que, ao longo do tempo,
com o trabalho de divulgação orientado por retóricas de ruptura, condicionam a construção de
uma tradição.
Por outro lado, não raro, sobretudo no espaço do senso comum, circulam análises
linguísticas e opiniões públicas que compreendem a língua a partir de outros saberes que não
aqueles atestados pela tradição de natureza sociodiscursiva instalada na linguística
contemporânea. Nesse domínio da opinião pública, a língua é, grosso modo, um conjunto de
regras prescritas pela gramática tradicional como compêndio normativo (no sentido mais
jurídico do termo) e o texto, um conjunto de palavras que formam frases, parágrafos e
unidades maiores. Não se pode negar que esses sentidos ecoam de uma tradição milenar que
exerce na sociedade em geral um efeito de obviedade quase inabalável. Poderíamos falar,
nesse caso, de uma tradição que se apoia nos preceitos fundamentais da gramática tradicional,
cuja história foi descrita por Vieira (2018).
Feitas essas considerações sumárias acerca do termo tradição, convém agora, a partir
de discussões que giram em torno da epistemologia da ciência, destacar alguns pontos
relevantes para a compreensão da TSD como uma tradição de pesquisa. Ainda que nos
afastemos do domínio mais geral a partir do qual se pode analisar a designação tradição e nos
aproximemos de um espaço mais detidamente ligado à reflexão de natureza epistemológica,
podemos enxergar que os sentidos que orbitam em torno desse termo, após esse
deslocamento, de alguma forma se mantêm.
Laudan (2011) e Hymes (1983), pesquisadores que se debruçaram sobre questões
atreladas ao domínio da epistemologia das ciências, contribuíram de modo expressivo para o
debate sobre a noção de tradição. Adianto que neles me apoio, em grande medida, tanto para
justificar a designação da tradição sociodiscursiva como para compreendê-la como uma
tradição, entre outras, cuja história pode ser compreendida do ponto de vista historiográfico.
Em suas reflexões acerca do desenvolvimento do conhecimento científico e da
constituição de tradições na esfera acadêmica, Larry Laudan compreende que a ciência só
existe e se desenvolve na medida em que se propõe a resolver problemas que carecem de
75

resolução e os quais, em alguma medida, indicam insuficiência ou fragilidade das ferramentas


investigativas construídas por modelos teóricos então vigentes. Nesse ponto, Laudan (2011)
se aproxima da noção kuhniana de anomalia.
Nesse processo de desenvolvimento da ciência caracterizado pela constante busca pela
resolução de problemas ou, em outras palavras, pelo reparo de “fissuras” não consertadas por
um ou outro modelo analítico, naturalmente vão se firmando na história de um campo
disciplinar científico, como alternativas teórico-metodológicas às abordagens que não dão
conta de resolver os problemas evidenciados, determinadas tradições de pesquisa (LAUDAN,
2011).
Para Laudan (2011), uma tradição de pesquisa congrega um conjunto de teorias ou
modelos investigativos que mantêm, até certo ponto, alinhamento e afinidade no que tange a
concepções subjacentes a seu modo descrever os fenômenos sob análise. Tomemos como
exemplo, para situar a tradição sociodiscursiva na esteira da reflexão de Laudan, o fato de
que tanto as análises do discurso como a linguística de texto ou, ainda, a sociolinguística, a
despeito de suas diferenças no que diz respeito aos objetivos investigativos e às ferramentas
analíticas adotadas, tomam a língua em funcionamento, desconsideram a possibilidade de
analisar a língua do ponto de vista exclusivamente estrutural ou linguístico-frasal. Esses
modelos teóricos, portanto, nos termos de Laudan (2011), constituem uma tradição de
pesquisa.
Já Hymes (1983), por sua vez, embora se aproxime da posição de Laudan,
particularmente no que tange à constituição interna das tradições, compreende que as
tradições de pesquisa necessariamente são atravessadas por discursos legitimadores, os quais
promovem sua ampla aceitação e consequente consolidação no espaço intelectual. Ou seja,
toda tradição de pesquisa, nesses termos, consiste num domínio conceptual cuja retórica de
convencimento obteve êxito e que, por isso, passou a circular nos espaços intelectuais com
legitimidade e sob o crivo do reconhecimento coletivo. Nesse ponto, Hymes (1983) se
aproxima fortemente do entendimento das tradições pela perspectiva mais geral, que
pressupõe, necessariamente, a construção de uma razoável consensualidade instalada no
imaginário coletivo.
Partindo da reflexão de Hymes (1983), Altman (2004) relaciona a noção de tradição
de pesquisa à de programa de investigação advinda de Swiggers (1981). Para a autora, uma
tradição de pesquisa se constitui, entre outros fatores, na medida em que a agenda de trabalho
de um programa de investigação passa a circular e reverberar em diferentes espaços,
76

constituindo-se como um discurso legitimado. Nesse sentido, pode-se dizer que a tradição
sociodiscursiva consolida-se como tal por consequência da ampla aceitação e propagação do
programa sociocultural, no qual se inscrevem as abordagens que delimitam as fronteiras da
TSD, constituindo, pois, suas diretrizes. A relação proposta por Altman (2004) corrobora a
ideia de que tradições são construídas no interior da acirrada disputa por legitimidade que
marca a institucionalização dos diferentes empreendimentos teóricos.
Uma vez consolidadas, as tradições podem coexistir no mesmo espaço e num mesmo
período em que se desenvolvem outras tradições dissidentes, compostas por outros modelos
com as quais não promovem interlocução. Não é apenas possível, como também natural que
diferentes tradições “disputem” pelo reconhecimento de suas proposições, fato que pode ser
constatado a partir de um olhar para a história da linguística, que, como consequência da
emergência e consolidação da tradição sociodiscursiva, protagoniza disputas entre modelos
descritivos centrados na forma e outros centrados no funcionamento da linguagem.
Pela reflexão desenvolvida até aqui, percebe-se que tanto Laudan (2011) como Hymes
(1983) buscam olhar para a historicidade que atravessa as tradições de pesquisa. As tradições
não correspondem a um domínio estático, um bloco homogêneo que reúne um conjunto de
teorias, abordagens descritivas e procedimentos metodológicos. As tradições carregam uma
história a partir da qual é possível que percebamos os problemas privilegiados por uma
coletividade num determinado espaço e ao longo do tempo, bem como os caminhos traçados
com vista à resolução dessas problemáticas postas em discussão. Do pondo de vista
historiográfico, a interpretação da história de uma tradição compreende um trabalho que não
se limita à descrição interna das teorias e dos modelos que compõem esse domínio, mas, mais
que isso, abarca uma hermenêutica que busca entender a tradição em sua constituição
epistemológica interna e, ao mesmo tempo, as motivações, ligadas a questões externas que
justificam as escolhas retóricas exercidas pelos agentes que nela encontram lugar de
identificação.
Por fim, antes de adentrar na discussão mais específica acerca das diretrizes
epistemológicas que delimitam a TSD, trago uma citação de Altman (2004), para advogar
pela pertinência do termo tradição sociodiscursiva como forma de designar o domínio
conceptual da linguística brasileira objeto de análise nesta tese:

Mais do que uma história de revoluções e paradigmas, (...), a produção linguística


brasileira pode ser vista como uma história de tradições, continuidades e
descontinuidades para a qual contribuíram – e têm contribuído – trabalhos
77

desenvolvidos a partir de programas de investigação diferentes (ALTMAN, 2004, p.


44. Grifo meu).

Assim, em consonância com a autora, assumindo uma posição distinta da proposta


kuhniana de revoluções paradigmáticas, compreendo que a TSD se instala na linguística
brasileira como uma tradição que estabelece alguns deslocamentos, ou, nos termos de Altman
(2004), algumas descontinuidades no modo de conceber certos fenômenos de linguagem. No
meu entendimento, como já discutido, sua consolidação não promove uma virada na
linguística, tampouco no ensino de língua portuguesa, visto que outros modelos a que se opõe
também continuam a angariar espaço no circuito de discussões, sobretudo no estágio de
emergência da TSD no Brasil, na década de 1970, época em que o gerativismo era
amplamente difundido nos centros universitários do país.
É perceptível, entretanto, que os efeitos da TSD ecoam fortemente ao longo dos trinta
anos aqui investigados, nos diferentes espaços institucionais – na academia, na escola, nos
cursos de formação continuada, em avaliações de larga escala, em livros didáticos –, o que
reforça seu status de tradição que, até os dias atuais, tem sido “passada adiante” como
discurso legitimado pela comunidade científica.

3.2.1 Diretrizes epistemológicas

Até então, foram aqui discutidas questões que giram em torno da compreensão da TSD
como uma tradição instalada na linguística ocidental. Nesta subseção, detenho-me à discussão
sobre o epíteto sociodiscursivo, apresentando argumentos que justificam a escolha dessa
adjetivação para qualificar a TSD. Os argumentos levantados se organizam em torno de uma
discussão sobre as teorias e os modelos a partir dos quais, no meu entender, configuram-se as
diretrizes epistemológicas da tradição sociodiscursiva.
Como já destacado em passagens anteriores, as fronteiras da TSD emergem
alicerçadas aos fundamentos que engendram o programa sociocultural. Nesse sentido, com o
intuito de explorar as diretrizes epistemológicas da TSD de modo mais apropriado, convém
aqui retomar sumariamente a reflexão de Swiggers (1981) acerca dos programas de
investigação e das características do programa sociocultural.
Fundamentalmente, os programas de investigação se organizam a partir de três eixos
constitutivos, a saber: visão, técnica e incidência (SWIGGERS, 1981). Respectivamente,
dizem respeito: (i) à concepção de língua e linguagem subjacente ao trabalho descritivo; (ii) à
metodologia investigativa mobilizada; (iii) aos aspectos privilegiados na análise linguística. O
78

resgate dos três eixos que configuram os programas de investigação importa na medida em
que parto do pressuposto de que as teorias que se inscrevem no programa sociocultural,
direta ou indiretamente, a partir de retóricas de ruptura, promoveram alguns deslocamentos
em relação aos três eixos constitutivos que definem tanto o programa descritivista como o
programa de correspondência13, os quais, hegemonicamente, configuravam sobremaneira a
agenda de pesquisa da linguística ocidental até o início da segunda metade do século XX.
Observemos, abaixo, como se organizam os principais programas de investigação
desenvolvidos ao longo da história da linguística no século XX, a fim de melhor compreender
como se dão os deslocamentos instituídos pelo programa sociocultural:
Quadro 1 – Disposição dos programas de investigação na tradição linguística ocidental

PROGRAMAS DE INVESTIGAÇÃO
Concepção de língua como sistema estruturado
Visão
autossuficiente.
Programa
Técnica Análise descritiva do sistema linguístico abstrato.
descritivista
A estrutura do sistema linguístico em sua
Incidência
Tradição imanência.
formalista Visão Concepção de língua como um fenômeno mental.
Análise descritiva da estrutura gramatical
Programa de Técnica
residente na cognição humana.
correspondência
Regras combinatórias organizadas em torno da
Incidência
competência linguística inata aos falantes.
Concepção de língua como atividade social,
Visão
cultural e historicamente situada.
Tradição Programa
Análise descritiva de práticas de linguagem
sociodiscursiva sociocultural Técnica
inscritas em condições de produção específicas.
Incidência A linguagem em funcionamento.

Fonte: o autor, 2019.

A análise do quadro acima nos permite observar panoramicamente como se distribuem


diferentes agendas de trabalho da linguística contemporânea. Também nos permite identificar
que o programa sociocultural, subscrito no domínio sociodiscursivo, promove, em relação
aos programas situados na tradição formalista, deslocamentos no que diz respeito à visão, à
técnica e à incidência. Especifico-os:

a. um deslocamento no modo de encarar a organização do sistema linguístico: da


autossuficiência linguístico-frasal às influências ou determinações dos contextos, das

13
Discuti sobre os diferentes programas de investigação definidos por Swiggers (1981) no Capítulo 2 –
Fundamentos da Historiografia da Linguística.
79

condições de produção, das relações sociais e de poder, do efeito da ideologia, das


intenções dos indivíduos/sujeitos/atores sociais;
b. um deslocamento na técnica de descrição da língua: da descrição do sistema virtual ou da
competência linguística à descrição da língua funcionando em sua variabilidade,
heterogeneidade e flexibilidade constitutivas;
c. um deslocamento na incidência dos aspectos linguísticos privilegiados: do sistema virtual
ou potencial a usos reais, materializados em textos falados e escritos, atualizados em
contextos de interlocuções social, histórica, ideológica e pragmaticamente situados.

Em linhas gerais, em virtude desses deslocamentos promovidos nos três eixos


constitutivos dos programas de investigação, o que interessa às abordagens sociodiscursivos
inscritas no programa sociocultural é a “análise da variação das formas linguísticas no âmbito
de uma comunidade linguística e no âmbito das performances linguísticas dos falantes”
(ALTMAN, 2004, p. 41). Destaco da citação de Altman duas palavras que definem
precisamente as bases desse programa: variação e performance. Variação indica
heterogeneidade, pluralidade, mutabilidade, características próprias da linguagem tal como a
concebe o programa sociocultural. Performance, por sua vez, nos remete à linguagem em
funcionamento como prática intersubjetiva, ou seja, à atualização e ao rearranjo que assume o
sistema linguístico cada vez que indivíduos, pela linguagem, interagem uns com os outros.
Naturalmente, as diferentes teorias que constroem as bases da TSD não lidam da
mesma forma com a variação e com a performance. Tomemos a título de exemplo as
diferentes abordagens do discurso: de um lado, a teoria francesa fundada pelo pensamento de
Michel Pêcheux encara a performance como resultado do assujeitamento ideológico (cf.
PÊCHEUX, 2009 [1975]); de outro, a vertente da análise do discurso crítica orientada pelas
proposições do linguista britânico Norman Fairclough, como ação de um sujeito que age e
trabalha intencionalmente, ainda que afetado pela ideologia (FAIRCLOUGH, 2001). Apesar
dessas distinções, tanto Pêcheux como Fairclough se inscrevem no programa sociocultural e,
consequentemente, são agentes cujo trabalho reside no domínio da TSD, uma vez que,
independentemente de como lidam com a performance, ambos compreendem a linguagem e
os sujeitos em sua constituição social e histórica, afastando-se dos programas orientados pela
tradição formalista.
Os deslocamentos promovidos pelo programa sociocultural resultam na emergência
de novos pontos de vista sobre a linguagem humana, o que pressupõe, consequentemente, a
80

delimitação de outros objetos investigativos, afinal, “bem longe de dizer que é o objeto que
precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto” (SAUSSURE,
2006, p. 15). Esses novos objetos emergem como resultado da interlocução, motivada pela
necessidade de se compreender as relações sociais, históricas, ideológicas, antropológico-
culturais, entre a linguística e outras disciplinas das ciências humanas e sociais. Esse
intercâmbio torna-se necessário uma vez que, agora, a análise linguística deve ultrapassar os
limites estruturais da frase, contemplando fatores que residem nas práticas sociais.
Entram em cena, assim, novas objetos e problemas de pesquisa a eles atrelados. Esses
objetos sociodiscursivos caracterizam a essência da TSD e delimitam sua fronteira de atuação;
são eles: (i) o discurso; (ii) o texto; (iii) a variação linguística; e (iv) os usos e funções
linguísticas. A cada um desses objetos investigativos se liga um domínio epistemológico
subscrito no programa sociocultural; respectivamente, são eles: (i) a análise do discurso; (ii) a
linguística de texto; (iii) a sociolinguística; (iv) o funcionalismo.
São necessárias algumas notas sobre os empreendimentos acima especificados.
Primeiramente, convém salientar que não estou tomando esses domínios como blocos
uniformes e homogêneos, como se não existisse pluralidade em seu interior. Diferentes (e até
divergentes) abordagens que ao longo da história da linguística foram desenvolvidas podem,
por exemplo, advogar para si a designação análise do discurso. Hoje, pode-se falar de análise
do discurso francesa, análise crítica do discurso, análise dialógica do discurso, entre outras;
ou, ainda, apenas análise do discurso, seguido de uma adjetivação que demarca o teórico a
que se filia – análise do discurso foucaultiana, análise do discurso gramsciana, análise do
discurso bakhtiniana, análise do discurso pecheutiana etc. Com algumas ressalvas, o mesmo
vale para a sociolinguística, que se desmembra em diferentes abordagens. Também para os
funcionalismos e para as teorias do texto. A diversidade epistemológica no interior desses
domínios é fato natural, afinal, diferentes problemas pululam a todo instante, colocando em
questionamento os limites conceituais e metodológicos das vertentes até então estabelecidas.
Desse modo, ao mencionar qualquer dos empreendimentos descritivos, refiro-me a um
domínio epistemológico maior que encontra ponto de convergência conceptual entre as
variações desse macrodomínio. A despeito das diferenças no modo de abordar os fenômenos
linguísticos, pode-se dizer que as variantes de um empreendimento disciplinar encontram de
algum modo uma linha condutora que as une, permitindo que compartilhem pertencimento a
um mesmo macrodomínio. Assim, para os fins deste trabalho, entendo a análise do discurso,
81

a linguística de texto, a sociolinguística e a teoria funcionalista num sentido macro, não


particularizado em uma ou outra abordagem.
O trabalho com as particularidades teórico-metodológicas de cada uma das variantes
desses domínios demandaria grande esforço e me afastaria do ponto central desta seção, que é
delimitar pontos centrais caracterizadores das diretrizes epistemológicas da TSD. Lidar com
os quatro domínios da TSD, tomando-os como se fossem grandes “guarda-chuvas”, nos
auxilia a melhor compreender mais precisamente os quatro objetos investigativos que
caracterizam o escopo do programa sociocultural e constituem as diretrizes epistemológicas
da TSD – o discurso, o texto, a variação linguística e os usos linguísticos.
Embora tenha optado por apresentar e discutir cada um desses objetos, num primeiro
momento, de modo razoavelmente isolado, isso não quer dizer que parto do princípio de que
esses fenômenos linguísticos não se relacionem entre si. Pelo contrário: no domínio da TSD, o
texto, falado ou escrito, é um objeto cuja estrutura varia de acordo com as situações
comunicativas e cujo funcionamento se dá atrelado a discursos que nele se materializam a
partir de usos linguísticos específicos. Cada objeto constitutivo da TSD funciona como se
fosse um membro de um corpo maior: podemos explicar isoladamente a função do tronco, das
pernas, dos braços ou dos dedos sem desconsiderar que todos esses membros fazem parte do
mesmo corpo e que juntos permitem que ele funcione de modo coeso e harmônico. No
interior do domínio conceptual da TSD, de modo articulado, como membros de um mesmo
corpo, os quatro objetos investigativos se entrelaçam, moldando as diretrizes epistemológicas
dessa tradição cujo fio condutor caracterizador é a busca pela compreensão da linguagem
humana como um complexo fato sociodiscursivo.
Por fim, gostaria de acentuar que, ao apresentar os quatro objetos investigativos que
caracterizam as diretrizes da TSD, atrelando a eles apenas quatro domínios disciplinares,
tenho ciência de que a essa escolha estão imbuídos alguns perigos. O ponto que merece maior
atenção diz respeito à possibilidade de a decisão aqui adotada ser interpretada como
generalizante ou excessivamente reducionista. Um olhar mais profundo para a história da
linguística ocidental nos mostra, afinal, que inúmeras outras abordagens sociodiscursivas
foram também desenvolvidas ao longo do tempo, dentre as quais se podem destacar, por
exemplo, a análise da conversação, a linguística enunciativa, a linguística cognitiva, a
pragmática, a sociologia da linguagem, a semântica enunciativa.
Entendo que todas as abordagens acima mencionadas encontram no programa
sociocultural lugar de identificação e, por isso, dialogam, implícita ou explicitamente, com os
82

propósitos dos empreendimentos que tomo como nucleares para investigação da TSD – a
análise do discurso, a linguística de texto, a sociolinguística e o funcionalismo –, estando
neles presentes, direta ou indiretamente, seus objetos e objetivos descritivos, como ilustra o
quadro abaixo:
Quadro 2 – Diálogos entre diretrizes epistemológicas da TSD e domínios disciplinares da linguística.

OBJETOS DOMÍNIO ENFOQUE DOMÍNIOS


INVESTIGATIVOS DISCIPLINAR INVESTIGATIVO DISCIPLINARES AFINS
Estudo do texto como evento
comunicativo, falado ou
Linguística de Análise da conversação
TEXTO escrito, em que convergem
Texto Linguística cognitiva
ações linguísticas,
socioculturais e cognitivas.
Estudo do funcionamento
social, histórico e ideológico
Análise(s) do Linguística enunciativa
DISCURSO dos discursos e processos
Discurso Semântica enunciativa
enunciativos que se
materializam na linguagem.
Estudo da relação entre a
VARIAÇÃO
Sociolinguística língua e aspectos sociais e Sociologia da linguagem
LINGUÍSTICA
culturais.
Estudo da linguagem como
USOS E FUNÇÕES Pragmática
Funcionalismo uma atividade social e
LINGUÍSTICAS Análise da conversação
pragmaticamente orientada.

Fonte: o autor, 2019.

O quadro acima ilustra a relação que há entre os quatro domínios nucleares e outros
domínios que, embora não tenham sido destacadas, ressoam significativamente nas fronteiras
da TSD, constituindo-a. A ênfase aos quatro domínios destacados se justifica pela
abrangência e amplo alcance tanto de seu quadro descritivo como dos objetos dele resultantes.
Para explicar de modo mais objetivo essa relação de pressuposição ou de intercâmbio
existente entre os diferentes domínios disciplinares sociodiscursivos, analisemos o seguinte
cenário: enquanto a análise da conversação investiga “os aspectos essenciais para a
organização do texto conversacional” (DIONÍSIO, 2012 p. 82) e a linguística cognitiva de
orientação sociointeracional, os “aspectos cognitivos de processos de interação pela
linguagem” (KOCH e CUNHA-LIMA, 2011, p.256), a linguística de texto, de modo mais
abrangente, lida com o fenômeno texto em sua ampla concepção, seja ele falado ou escrito,
abarcando tanto a produção como a compreensão, o que envolve, necessariamente, considerar
aspectos interacionais da conversação, bem como os processos cognitivos que permitem a
interação acontecer. Em resumo, a linguística de texto, ao adotar o texto como um “evento
83

comunicativo em que convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas” (BEAUGRANDE,


1997 p. 10), dialoga diretamente tanto com a linguística cognitiva (de orientação social) como
com a análise da conversação, contemplando, ainda que sem o mesmo grau de
aprofundamento, alguns de seus objetivos fundamentais. A mesma análise funcionaria para os
demais campos disciplinares que dialogam com as outras três domínios nucleares da TSD.
Passo agora à discussão sobre os objetos investigativos que estabelecem as diretrizes
epistemológicas constitutivas da TSD.
Comecemos pelo discurso.

3.2.1.1 Discurso

Antecipadamente, reitero que a designação análise do discurso aqui adotada, quando


não especificada com algum determinante qualificador, se refere a uma postura investigativa
ampla cujo propósito fundamental é o estudo dos processos discursivos que se manifestam na
e pela linguagem compreendida como um fenômeno social. Assim, as discussões que seguem
não pressupõem inclinação para uma ou outra perspectiva, tampouco, por consequência,
pretendem promover qualquer tipo de apagamento de abordagens quaisquer que sejam.
Nesta subseção enfatizarei os traços de convergência que permitem compreender as
diversas proposições como teorias do discurso. Todas elas se encontram no que tange à
investigação que, para além do tratamento linguístico, lida com o complexo e escorregadio
espaço das relações sociais, ideológicas e históricas.
Num sentido amplo, as diferentes abordagens discursivas convergem na medida em
que compreendem o discurso:

a. como um domínio cujos sentidos se constituem para além da materialidade de


linguagem.

Os estudos do discurso que entram em cena na linguística contemporânea no início da


segunda metade do século XX constituem-se, fundamentalmente, como dispositivos
interpretativos. Ou seja, trata-se de um campo disciplinar cujo trabalho mobiliza um gesto de
leitura sobre a linguagem em sua relação com a exterioridade; particularmente, uma
exterioridade concebida numa esfera que ultrapassa as fronteiras do contexto comunicativo
restrito à relação entre emissor e receptor (eu-tu) e à situação imediata (aqui-e-agora).
84

O discurso enquanto objeto investigativo é definido a partir do gesto de leitura que se


faz da linguagem em funcionamento, ou seja, inserida em condições de produção ou contextos
comunicativos específicos. O resultado desse trabalho de análise em que se consideram os
fatores exteriores à linguagem e aos sujeitos que dela fazem uso e nela se subjetivam é a
demarcação de um dispositivo analítico que, embora parta da materialidade ou superfície de
linguagem, repousa olhar nos sentidos possíveis que nela se inscrevem. Assim, em oposição
às perspectivas cujo dispositivo analítico da linguagem enfatiza o(s) sentido(s) do texto, por
meio de uma abordagem centrada nas estruturas linguísticas e a elas limitada, a análise do
discurso investiga os sentidos possíveis que se materializam no texto em sua relação com as
condições de produção e recepção em que se situam as práticas de linguagem.
Desse modo, compreende-se que os sentidos não estão no texto, mas, por outro lado,
são construídos a partir da relação que ele estabelece com elementos da exterioridade. É
justamente nesse intervalo entre a linguagem e as condições sociais, históricas, ideológicas e
culturais em que ela se manifesta que o discurso é concebido pela(s) análise(s) do discurso.
Trata-se, portanto, de um fenômeno que se materializa na linguagem a cada nova atualização
que assume por consequência dos movimentos de subjetivação em práticas interlocutivas.
Assim compreendido, o discurso não é apreensível como um objeto transparente. Pelo
contrário, compreende um domínio opaco: constitui-se como efeito, isto é, como um objeto
cuja evidência material nunca se mostra definitivamente pronta e acabada.
Numa comparação entre mensagem, do pondo de vista da teoria comunicacional, e
discurso, do ponto de vista das perspectivas discursivas, pode-se dizer que o primeiro diz
respeito a um objeto passível de descrição razoavelmente objetiva executada a partir do
resgate de certos elementos que compõem a esfera comunicativa imediata (eu-tu-aqui-agora);
já o segundo, o discurso, habita num plano da ordem do sócio-histórico e ideológico cuja
compreensão não se encerra na situação imediata. O discurso, destarte, se reconfigura ao
sabor das atualizações estabelecidas em cada gesto único de interlocução. Trata-se de um
objeto fluido, em movimento, sempre em reconstrução.

b. como produto e modificador de práticas sociais.

Este ponto está diretamente atrelado ao item a. A não transparência e o não


acabamento do discurso são, como vimos, consequência direta de seu caráter social, histórico
e ideológico. Se o discurso não é da ordem da língua, mas sim do social, sua constituição se
85

dá sempre no interior de práticas sociais. Na verdade, mais do que resultado das práticas
sociais, o discurso também opera com a transformação/modificação dessas práticas que
orientam a relação do homem com o mundo. Por esse motivo, compreende-se o discurso
como um objeto que estabelece uma relação dialética com as práticas sociais, as quais, de
igual modo, se constituem pelo atravessamento histórico e ideológico.
A noção de práticas sociais, naturalmente, não encontra absoluto lugar de consenso
entre diferentes teorias discursivas e sociais. Sendo assim, opto por lidar com essa noção a
partir de um olhar mais geral, buscando encontrar entre as diferentes abordagens pontos de
convergência a despeito das diferenças. Grosso modo, as práticas sociais organizam e de
algum modo determinam a relação que estabelecemos entre linguagem e mundo, relação a
partir da qual se configuram os discursos.
As práticas sociais não se organizam nos diferentes espaços empíricos como
consequência da aleatoriedade do acaso. O modo de ser e existir das práticas sociais resulta de
um processo histórico-cultural e ideológico ao qual estão atrelados sentidos, vozes e
memórias que, em diálogo contínuo, nos permitem significar. Em outras palavras, toda prática
social traz consigo o atravessamento de efeitos não evidentes de sentidos, vozes e imaginários
cristalizados num espaço a que nos reportamos para interagir com o outro e com o mundo.
Tomemos como exemplo a interação entre patrão e empregado. A relação entre esses
indivíduos, que assumem discursivamente diferentes posições em torno das quais orbitam as
imagens de autoridade e subordinação, configura-se a partir de relações de poder construídas
historicamente. Consciente ou inconscientemente, esses sujeitos interagem entre si
influenciados ou determinados por esses imaginários socialmente cristalizados como lugares
comuns, os quais, por vezes sem questionamentos, são partilhados, validados e aceitos pela
sociedade como verdades irrefutáveis. Estão aí envolvidos tanto o atravessamento da história
como os processos ideológicos, os quais permitem que os indivíduos, subjetivados
discursivamente, compreendam seu lugar no mundo e como devem nessa situação se portar
no que tange à atividade verbal.
Em síntese, quando agimos sobre o outro ou sobre o mundo, fazemo-lo sempre
orientados por algumas “regras de conduta” que orientam nossas práticas com a linguagem.
Tais “regras”, às quais nos subordinamos e as quais geram estranheza quando não cumpridas
por outrem, resultam de práticas discursivas e, ao mesmo tempo, de práticas sociais.
Discursivas, uma vez que se constituem no espaço das relações históricas e ideológicas;
sociais, tendo em vista que se materializam em certas práticas constitutivas das diferentes
86

esferas sociais. Deslocamentos na práxis social promovem deslocamentos nos imaginários


estabilizados discursivamente, os quais são resultado dessas práticas que mobilizamos
cotidianamente enquanto sujeitos. Trata-se de uma constituição concomitante e dialética.
O exemplo acima ilustra bem como a prática social influenia a prática discursiva e
vice-versa. Nessa esteira, por consequência do movimento dialético que caracteriza a relação
entre prática social e prática discursiva, o discurso não apenas reproduz/espelha práticas,
sentidos, vozes e memórias pré-estabelecidos, como também neles promove deslocamentos.

c. como produto de relações dialógicas e interdiscursivas.

Como já adiantado, o discurso não reside na ordem (apenas) da língua(gem). O mesmo


vale para a ordem do sujeito: os discursos não emergem do pensamento individual dos
indivíduos que da linguagem se apropriam para interagir. Nem na língua, nem no sujeito, a
materialidade do discurso se costura através da relação que ele, o discurso, estabelece com um
horizonte conceptual com o qual dialoga para que possa significar. Com algumas ressalvas
conceituais que não convém aqui pormenorizar, esse espaço no qual dialogam sentidos,
enunciados, vozes e memórias socialmente construídos e a partir do qual o discurso significa
pode ser designado como interdiscurso.
Em seu Dicionário de Análise do Discurso, assim compreendem Charaudeau e
Maingueneau (2016, p. 172) a relação que há entre discurso e interdiscurso:

O discurso não adquire sentido a não ser no interior de um universo de outros


discursos, através do qual ele deve abrir um caminho. Para interpretar o menor
enunciado, é preciso colocá-lo em relação com todos os tipos de outros, que se
comentam, parodiam, citam.

Na mesma direção, Pêcheux (2009) entende que pelo interdiscurso é possível


compreender que na prática discursiva “algo fala sempre antes, em outro lugar e
independentemente” (p. 149), posição que, com algumas ressalvas, é corroborada pelo
pensamento bakhtiniano, particularmente no que tange à noção de dialogismo como
fundadora de qualquer que seja a prática de linguagem.
Em linhas gerais, o discurso sempre dialoga com sentidos construídos ao longo da
história, em práticas sociais variadas. No discurso, portanto, sempre ecoam vestígios de vozes
anônimas (COURTINE, 1984) às quais se ligam outras tantas vozes cuja fundação é
impossível precisar.
87

3.2.1.2 Texto

Passo agora às considerações sobre as diretrizes estabelecidas pelo objeto texto.


Partirei, para tanto, de fundamentos advindos da linguística textual (LT).
Antes de tratar das questões conceituais concernentes ao texto, convém destacar que a
designação linguística de texto (ou linguística textual) abarca um domínio cuja configuração e
cujos propósitos fundamentais se modificaram ao passar dos anos. Todavia, a despeito das
reconfigurações naturais a qualquer campo do saber, pode-se identificar um fundamento
basilar que perpassa todas as abordagens que podem ser caracterizadas como textuais: das
primeiras incursões, na década de 1960, na Alemanha, às mais recentes discussões, inclusive
no Brasil, de caráter sociocognitivo, o texto é sempre encarado como um objeto cuja
configuração se dá num domínio que excede o nível da frase. Tal máxima, cara e fundamental
à perspectiva textual da LT, reforça que esse domínio não concentra esforços descritivos no
sistema virtual ou na competência dos falantes para formar frases; vai além, na medida em
que compreende a linguagem a partir de sua capacidade própria de significar através de textos.
No começo da segunda metade do século XX, momento em que, na Europa, ainda não
existia um grupo de especialidade consolidado preocupado com questões residentes no texto,
as incursões teóricas sobre esse objeto eram referidas por meio de outras designações que não
linguística de texto. Dentre elas, Fávero e Koch (1983) apontam: análise transfrástica,
textologia, teoria de texto, hipersintaxe e teoria da estrutura do texto. Essas diferentes
abordagens textuais contribuíram significativamente, cada uma a seu modo, com a construção
e consolidação da linguística de textual que se estabeleceria na década de 1960. Os pontos que
serão aqui sumariamente levantados consideram as discussões mais recentes atribuídas à
linguística de texto, sem, entretanto, desconsiderar o progresso histórico que marca esse
campo do saber14.
Dos primeiros estudos em torno do texto, convém destacar a perspectiva de Isenberg
(1970), para quem esse objeto consiste numa unidade caracterizada como uma sequência
coerente de enunciados. A preocupação central desse tipo de abordagem textual reside na
investigação dos processos de articulação entre as unidades do texto, sobretudo no que tange

14
Não tratarei, entretanto, de estudos recentes, como os de Dionísio (2011), que articulam uma teoria textual
com uma teoria descritiva de imagens em sua composição híbrida e multimodal (cf. KRESS & VAN
LEUWEEN, 1996), tendo em vista que esses trabalhos, embora alinhados a uma perspectiva sociodiscursiva de
linguagem, passaram a circular na linguística muito recentemente. Essa abordagem textual, portanto, não ressoa
na TSD que se estabeleceu entre 1970 e 1999, interstício que delimita a análise historiográfica aqui
desenvolvida.
88

aos processos de referenciação, aqui analisados como fenômeno de coesão inerente à prática
linguística.
Num segundo momento, os estudos do texto, agora já designados como linguística de
texto, preocupam-se com os fenômenos textuais de modo amplo, partindo da observação de
certos fatores de textualidade atrelados a situações comunicativas específicas, a intenções
determinadas pragmaticamente e, mais à frente, ao atravessamento de questões
sociocognitivas. Em outras palavras, trata-se de um campo que investiga as “operações
linguísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento
e recepção de textos escritos ou orais” (MARCUSCHI, 1983, p. 12-13).
Em linhas gerais, a partir dos pressupostos inerentes às abordagens textuais que
lançam a LT como empreendimento subscrito no programa sociocultural, pode-se entender o
texto, objeto investigativo que estabelece uma das diretrizes da TSD, como:

a. uma unidade linguística com funcionamento próprio.

Antes de tudo, é necessário destacar que não subjaz a essa afirmação a ideia de que o
texto é um objeto estritamente e exclusivamente linguístico. O que se quer destacar, na
verdade, é a existência de certos princípios reguladores dos textos, sejam eles falados ou
escritos, que não podem ser compreendidos senão por meio de categorias e instrumentos
descritivos específicos para esse fim. Por esse motivo, “não é possível aplicar ao texto as
mesmas categorias gramaticais que possuímos para o estudo da frase” (MARCUSCHI, 1983,
p. 29).
Se, por um lado, a frase é concebida como unidade eminentemente linguística que se
constrói a partir de arranjos morfossintáticos, o texto, por outro, é compreendido como
unidade linguístico-discursiva cujos princípios reguladores se estabelecem a partir da relação
entre a linguagem, os sujeitos e o mundo. O texto tem a sua especificidade, seu
funcionamento próprio, sua organização particular.

b. um objeto em que convergem regularidades linguísticas e processos sociais, discursivos,


pragmáticos e cognitivos.

O objeto texto comporta, por assim dizer, duas faces: (i) uma linguística, a que
correspondem as unidades morfossintáticas, lexicais e os processos de coesão que costuram
89

sua superfície material, garantindo-lhe interpretabilidade; e (ii) uma discursiva, em que se


situa o complexo e tentacular processo de construção de sentidos atrelados às condições
sociaiscognitivas de produção e recepção dos textos.
A essa ideia de dupla face está atrelada uma das teses centrais dos estudos textuais
contemporâneos: um conjunto de palavras ou de frases, por si só, não forma um texto. Para sê-
lo, é preciso que o arranjo linguístico (lexical e morfossintático) resulte de um real evento
comunicativo orientado por intenções específicas. Textos são produzidos pelos indivíduos,
afinal, visando agir sobre o outro e sobre o mundo: produzimos textos porque, numa situação
de interlocução, temos algo a dizer a alguém com quem interagimos e dialogamos. Além
disso, diferentemente da oração enquanto unidade situada no nível das articulações
sintagmáticas, o texto sempre funciona atrelado a um contexto de comunicação. É por
intermédio da relação entre o texto e o contexto de comunicação que, enquanto produtores e
receptores de textos, a partir de diferentes movimentos sociocognitivos referenciais,
produzirmos sentidos e interagimos uns com os outros.
Subjacente à superfície material tecida pelos elementos linguísticos que garantem a
textualidade, reside um complexo conjunto de sentidos cujo resgate acontece mediante a
relação dialógica entre sujeitos e elementos da exterioridade. A superfície textual, ou seja, a
face linguística do texto, funciona como um ponto de acesso a partir do qual os sentidos
podem ser processados nos diferentes gestos de leitura que operam os indivíduos em sua
experiência com a linguagem, aqui concebida em seu caráter fundamentalmente dialógico e
interacional.

c. lugar de interação entre sujeitos.

O texto é o lugar primordial da interação intersubjetiva que se estabelece a partir dos


diálogos entre os indivíduos que fazem uso da linguagem para falar ou para escrever.
Através de ações linguísticas e sociocognitivas, os indivíduos (ou sujeitos sociais)
“negociam” sentidos em sua experiência com textos. Ao operar com escolhas linguísticas
significativas – social, cultural, histórica e pragmaticamente orientadas –, aquele que se
coloca no lugar de autor constrói objetos de discursos a partir dos quais compreende o mundo
que o cerca (KOCH e ELIAS, 2007) e a partir dos quais interage com seu parceiro de
interlocução. O produto textual resultante dessas escolhas intencionais funciona como ponto
de encontro entre aquele que produz e aquele a quem se dirige o texto. A relação entre esses
90

indivíduos, porém, não é unilateral e previamente estabelecida. Pelo contrário: trata-se de uma
relação dialética, cabendo a ambos os lados um papel ativo na construção de sentidos que,
como disse acima, são “negociados” durante o processo de interação.
Disso resulta a ideia de que ao texto subjaz uma gama variada de implícitos cuja
compreensão se dá no interior da interação estabelecida entre interlocutores em sua relação
com o contexto social, histórico e pragmático. De um lado, aquele que produz, assumindo o
lugar de autor, elabora a unidade textual cuja superfície é constituída por um balanceamento
entre informações explícitas e implícitas, pela escolha lexical e disposição dos elementos
léxico-gramaticais diretamente atrelados à sua forma de enxergar o mundo e às suas intenções
enunciativas, bem como por um uso particular da linguagem que, pragmaticamente orientado,
se situa num continuum variável de monitoramento. Do outro lado, o sujeito que “recebe”
(não passivamente), no gesto de leitura, trabalha com a superfície textual construída,
atribuindo-lhe sentidos possíveis e preenchendo “lacunas” a partir de uma atividade de
natureza sociocognitiva. Nesse gesto interpretativo, que é muito mais do que um simples
trabalho de decodificação de um código linguístico compartilhado, são acionadas as
experiências de vida e as concepções de mundo que configuram a identidade do indivíduo que
assume o lugar de leitor/ouvinte.
Em síntese, o texto aqui é compreendido como a unidade linguística em que
convergem subjetividades e intenções dos atores sociais que pela linguagem participam
ativamente da construção/negociação de sentidos.

d. uma atividade linguística consciente.

O texto resulta de um gesto consciente. Isso não quer dizer, entretanto, que nele está
materializada a representação do pensamento de um sujeito cartesiano individualizado. Ainda
que a linguística de texto contemporânea lide com o texto como reflexo de uma prática
fundamentalmente social e interacional – como reforçam os itens anteriores –, os estudos
desse campo disciplinar não recusam a existência de um indivíduo que assume
conscientemente o lugar de autor.
A linguística de texto, portanto, ao trabalhar com o sujeito pragmático (diferente da
análise do discurso francesa, por exemplo, que lida com o sujeito como posição discursiva,
portanto assujeitado à ideologia), considera que as escolhas e a ordenação dos itens
linguísticos que compõem a costura textual resultam do trabalho relativamente autônomo de
91

um indivíduo que, enquanto ator-construtor, objetiva atingir determinados fins


comunicacionais.
Sigamos, agora com as considerações sobre a variação linguística.

3.2.1.3 Variação linguística

Ainda que outros campos de atuação lidem com questões atreladas à variação
linguística, é a sociolinguística que se preocupa com esse fenômeno como objetivo
investigativo primário.
Sob o grande guarda-chuva aqui designado como sociolinguística, entretanto, estão
presentes diferentes abordagens teórico-metodológicas, ainda que todas elas conversem entre
si na medida em que adotam em seus modelos analíticos a constitutiva relação entre
linguagem e sociedade. Não desejo apresentar um quadro aprofundado em que constem as
especificidades de cada uma das diferentes abordagens sociais da linguagem, tampouco
construir uma narrativa histórica acerca desse vasto domínio disciplinar da linguística. Meu
intuito aqui, na verdade, é discutir, partindo de saberes inerentes às múltiplas abordagens
sociais da linguagem, alguns fundamentos centrais e consensuais a partir dos quais podemos
compreender a variação linguística como objeto que constitui uma das diretrizes
epistemológicas da TSD.
Para início de discussão, convém destacar que a evidência de que as línguas variam
não está atrelada à emergência da sociolinguística enquanto teoria científica da linguagem.
Qualquer olhar atento, fundamentado ou não em critérios científicos, é capaz de enxergar a
indiscutível heterogeneidade que atravessa e caracteriza as línguas naturais. Pessoas de
diferentes classes sociais falam diferente; pessoas de diferentes faixas etárias falam diferente;
pessoas de diferentes regiões de um mesmo país falam diferente. A mutabilidade da língua é,
pois, um fato evidente. Todavia, a despeito dessa evidência que independe de teorização
científica, o modo de encarar a variação linguística assume nova configuração a partir do
quadro investigativo da sociolinguística.
Até o fim da primeira metade do século XX, o fenômeno da variação linguística não
era sistematicamente investigado pelas perspectivas teóricas então vigentes, uma vez que se
trata de um funcionamento que reside na performance ou, pela ótica estruturalista, na
atualização do sistema. Não há variação no sistema virtual da língua se o encaramos pelo
ponto vista sincrônico e em sua autossuficiência e autorregulação, tal como preconizam as
perspectivas subscritas nos programas descritivista e de correspondência. Isso justifica a
92

ausência de estudo da variação linguística nos quadros descritivos que compõem a agenda de
trabalho da linguística em momento anterior à emergência do programa sociocultural.
Para a sociolinguística, a análise dos fatos de linguagem deve contemplar, ao mesmo
tempo, (i) fenômenos regulares da estrutura linguística, cujo funcionamento pode e deve ser
descrito cientificamente, e (ii) questões que residem na exterioridade da estrutura linguística,
as quais influenciam o modo como a língua se organiza em todos seus níveis constitutivos.
Essa postura pressupõe uma análise que enxerga os fatos de linguagem como produtos das
relações sociais em sua ampla dimensão. Ou seja, considera-se a língua uma instituição
intimamente arraigada à cultura, à história e à identidade de uma coletividade. Desse modo,
compete à sociolinguística a compreensão dos fatores – sociais, linguísticos ou
sociolinguísticos – que determinam ou influenciam a variação como um fato natural ao modo
de ser e de existir das línguas naturais.
Os primeiros estudos que relacionaram a estrutura linguística com a estrutura social
foram concebidos, na década de 1960, por William Labov, nos Estados Unidos. Esse modelo,
designado por sociolinguística variacionista, contempla em seu quadro analítico-descritivo
aspectos da estrutura linguística relacionando-os diretamente às estruturas sociais e culturais
das comunidades de fala. A investigação da sociolinguística laboviana busca, nessa direção,
explicações para fenômenos da ordem linguística no modo como a sociedade se organiza.
Enxerga, pois, a relação entre linguagem e sociedade em sua natureza dialética. Esse
empreendimento pioneiro de Labov abriu caminhos para que outras abordagens
sociolinguísticas – essas mais preocupadas com aspectos sociais do que com os linguísticos –
surgissem na Europa, trazendo outros pontos de vista atrelados aos fundamentos do programa
sociocultural.
Em seu Dicionário crítico de sociolinguística, Bagno (2017) propõe pensarmos no
domínio da sociolinguística a partir de um continuum em que estão arroladas, de um lado,
perspectivas mais ligadas às questões sociais e interacionais e, de outro, abordagens que,
embora também “sociais”, dão mais ênfase ao aspecto linguístico no tratamento investigativo
do fenômeno da variação. Mais próxima do eixo “socio”, como afirma Camacho (2013),
encontram-se pesquisas em sintonia com uma sociologia da linguagem (BERNSTEIN, 1971;
FISHMAN, 1972) ou com uma sociolinguística de enfoque discursivo-interacionista
(GUMPERZ, 1982; ECKERT, 2000), enquanto que, adjunto ao eixo “linguística”, teríamos o
modelo variacionista (LABOV, 2008 [1972]).
93

Não há espaço, aqui, para o aprofundamento de questões mais pormenorizadas que


justificam e demarcam as fronteiras entre as diferentes abordagens sociolinguísticas.
Pretendo, na verdade, buscar traços mais gerais e convergentes entre as diferentes
sociolinguísticas, tarefa que, no meu entendimento, nos permite definir com mais precisão as
especificidades da variação linguística enquanto diretriz epistemológica da TSD sem que nos
limitemos a uma ou outra visão em particular.
Sem desconsiderar, portanto, a pluralidade de perspectivas sociolinguísticas, convém
aqui destacar (ou reforçar, em alguns casos) algumas questões centrais e razoavelmente
consensuais que configuram os fundamentos dos estudos que relacionam fenômenos
linguísticos a fenômenos de ordem social. Desse modo, para melhor compreender a variação
linguística enquanto diretriz epistemológica da TSD aqui discutida, destaca-se que:

a. a heterogeneidade da língua resulta da heterogeneidade social.

Do ponto de vista sociolinguístico, a unicidade das línguas é um mito. Toda e qualquer


língua natural, mesmo que observada a partir de um recorte sincrônico, apresenta inúmeras
variações em todos os seus níveis estruturais e em todas suas esferas de realização. Desse
modo, pode-se falar em variação que afeta os sistemas fonético-fonológico, morfológico,
sintático, semântico, lexical e até mesmo estilístico.
A irrecusável heterogeneidade que caracteriza as línguas naturais não se dá por acaso.
É na heterogeneidade social que a sociolinguística encontra respostas que explicam a
mutabilidade, a flexibilidade e a instabilidade que caracterizam as línguas. Não há, para esse
campo do saber, como estudar a linguagem humana sem que a esse estudo estejam atreladas
considerações acerca da estrutura social, das relações de poder, das desigualdades
socioeconômicas e das diferentes culturas que permitem aos falantes se reconhecerem no
mundo.
Para o programa sociocultural, a linguagem é uma atividade social, um domínio que
resulta de trabalho coletivo. Linguagem e sociedade estão visceralmente entrelaçadas,
constituem-se mutuamente, motivo pelo qual a heterogeneidade linguística representa reflexo
direto da heterogeneidade social.
Observemos a pluralidade de realizações linguísticas que constituem, por exemplo, o
português brasileiro contemporâneo. Inúmeras são as possibilidades de uso, linguística e
pragmaticamente funcionais, que caracterizam o português falado no Brasil; não por acaso
94

estamos nos referindo a um país marcado pela pluralidade de culturas, hábitos, costumes e
tradições. Não só plural do ponto de vista cultural, mas também socioeconômico. A
heterogeneidade do português brasileiro – língua em que ressoam traços das culturas
africanas, indígenas e europeia – reflete a instabilidade, multiplicidade, complexidade e
variedade do povo que habita em terras brasileiras.
Em suma, estudar língua através da perspectiva da sociolinguística é estudar, também,
pela língua, a sociedade. Mudanças sociais resultam em mudanças no modo como os sujeitos
enxergam a si mesmos, os outros e o mundo. Não há outra forma de olhar para a realidade
senão pela linguagem, que funciona como intermediadora da relação homem-sociedade. Por
esse motivo, os estudos sociolinguísticos afirmam que as mudanças sociais de toda ordem
promovem consequentes deslocamentos no modo como os indivíduos compreendem e
efetivamente utilizam a linguagem como forma de expressão social.

b. as línguas são constituídas por um conjunto de variedades linguísticas.

Uma das significativas contribuições dos estudos sociolinguísticos consiste na


constatação de que, em função de sua heterogeneidade constitutiva, as línguas não se limitam
a um único modo de falar e escrever definido como modelo no qual todo falante supostamente
deveria se espelhar.
A tese da sociolinguística vai de encontro à milenar tradição normativa circunscrita no
domínio da gramática tradicional, cujos preceitos, particularmente no que diz respeito aos
aspectos normativos, nos conduzem a conceber a língua como objeto homogêneo e estático
(cf. VIEIRA, 2018). Pela perspectiva prescritiva da gramática tradicional, todas as realizações
linguísticas que fogem às regras estabelecidas pelos compêndios gramaticais são consideradas
desvios, erros, inadequações; devem ser evitadas, portanto.
O investimento na compreensão do fenômeno da variação linguística trouxe à
reflexão dos estudos da linguagem um caminho alternativo, diferente da perspectiva
gramatical, para pensar sobre as diferentes realizações linguísticas que permeiam os falares
dos múltiplos grupos sociais. A partir de uma perspectiva fundamentalmente descritiva, ou
seja, preocupada antes em explicar os padrões e as regularidades que configuram os diferentes
falares, sejam eles quais forem, a sociolinguística está preocupada em compreender a língua
como ela efetivamente é utilizada por indivíduos em situações reais de comunicação. Disso
resulta que não há, nesse trabalho, qualquer tipo de julgamento em relação às variedades
95

linguísticas, sejam elas mais ou menos prestigiadas no imaginário cultural. A sociolinguística,


portanto, dedica-se ao estudo da língua que é realmente utilizada pelas diferentes camadas que
compõem a sociedade em sua complexidade e heterogeneidade, não à prescrição impositiva e
arbitrária de um modelo idealizado de língua que, por motivos mais políticos que linguísticos,
deveria supostamente ser utilizado.
Toda língua, por essa perspectiva, comporta um conjunto de variedades linguísticas,
ou seja, diferentes formas de expressão por meio da linguagem verbal. A análise descritiva
proposta pelo quadro da sociolinguística se preocupa em compreender como se organizam, na
relação com os fatores de ordem social, essas diferentes variedades que, em conjunto,
constituem as línguas naturais. Sem julgá-las, sem atribuir-lhes valor.

c. toda variedade linguística segue regularidades que lhe garantem pleno funcionamento.

Esta afirmação dá continuidade à ideia discutida no item anterior. Do ponto de vista


linguístico e do ponto de vista interacional, toda variedade linguística reconhecida como
forma de expressão de uma coletividade comporta um sistema linguístico-gramatical
funcional e bem estruturado. Ou seja, toda variedade, seja ela mais ou menos aceita
socialmente, é composta por uma gramática própria, aqui entendida como conjunto de
regularidades combinatórias que estruturam as unidades da língua com vistas à consecução da
interação social. Essa gramática particular das variedades oferece aos falantes recursos
linguisticamente funcionais suficientes para que possam interagir nas diferentes situações de
interlocução.
Na esteira desse pensamento, se toda variedade linguística segue regularidades que
lhe garantem pleno funcionamento, pode-se deduzir que não há formas de falar mais corretas
que outras. A ideia de que existem variedades mais ou menos sofisticadas está atrelada a um
posicionamento de base ideológica fundamentalmente excludente. Do ponto de vista
sociolinguístico, particularmente daquele vinculado à sociologia da linguagem, as noções de
“certo” e “errado”, “sofisticado” e “rudimentar”, em se tratando de línguas, estão sempre
ancoradas em julgamentos sociais. Nessa avaliação social, não estão em discussão as formas
linguísticas, mas sim os grupos sociais – mais ou menos prestigiados – que as utilizam
regularmente.
Em decorrência do exposto, pode-se afirmar que a sociolinguística analisa toda e
qualquer forma de expressão verbal real a partir dos mesmos critérios descritivos. Se, partindo
96

desse pressuposto, compreende-se que todas as formas de expressão linguística obedecem a


princípios de organização próprios que garantem aos falantes plenas condições para que as
múltiplas interações cotidianas aconteçam com eficácia, subentende-se que qualquer
julgamento que ponha em avaliação a capacidade funcional das variedades se mostra, em
alguma escala, reducionista, generalizante, excludente e preconceituoso.

d. toda variação é ordenada.

Os estudos sociolinguísticos partem do princípio de que há sempre uma explicação


que justifica o fenômeno da variação. Pode-se daí depreender que toda variação é ordenada,
isto é, que toda mudança das regularidades estruturais do sistema linguístico não resulta de
uma aleatoriedade incompreensível. Pelo contrário: toda variação é passível de descrição, ou
seja, sempre pode ser objetivamente explicada, seja por meio de uma investigação interna às
unidades linguísticas que configuram as variedades, seja por meio de uma observação atenta
ao modo como a sociedade e os grupos coletivos se organizam e interagem entre si.
Nada na língua acontece por acaso. Todos os arranjos linguísticos que costuram a
organização interna das diferentes variedades, sejam elas mais ou menos prestigiadas, têm um
porquê de existir; na mesma medida, todo e qualquer rearranjo proveniente de algum processo
de variação linguística está visceralmente atrelado a algum funcionamento da ordem da
língua, de sua exterioridade ou de ambas as ordens.
As explicações para o processo de variação linguística vinculadas a aspectos
extralinguísticos são as mais comumente conhecidas e difundidas. Origem geográfica, acesso
a escolarização, sexo e faixa etária são alguns dos fatores sobre os quais estudos
sociolinguísticos têm se debruçado, na tentativa de compreender como e por que as línguas,
na sua relação constitutiva com a sociedade e com os sujeitos falantes, variam.
Por outro lado, ao tratar da variação, além de considerações acerca de traços
socioculturais que residem fora da língua, é preciso também compreender como ela se
estrutura internamente enquanto sistema organizado, tendo em vista que as mudanças seguem
alguns padrões regulares determinados, muitas vezes, pela própria gramática da língua. Para
ilustrar a regularidade e a ordenação interna que subjazem às variações, tomemos, a título de
exemplo, um fenômeno de variação que reside no nível sintático. Regularmente, quando
procedemos com a concordância nominal, enquanto falantes do português brasileiro,
independentemente da norma que dominamos e efetivamente utilizamos, sempre
97

apresentamos marca de plural no(s) determinante(s) e no item determinado; ou apenas no(s)


determinante(s) ou em um dos determinantes (quando há dois ou mais). Exemplos: (i) “os
alunos inteligentes”; (ii) “os aluno inteligentes” ou “os aluno inteligente”. Nunca, em hipótese
alguma, independentemente do grau de escolaridade ou da classe social, o indivíduo marca o
plural apenas no determinado, deixando o(s) determinante(s) no singular (ou um deles), como
em “o alunos inteligente” ou “o alunos inteligentes”. Essas formas são, pois, agramaticais, ou
seja, não pertencem à língua portuguesa brasileira, não encontram lugar de identificação em
qualquer que seja a norma linguística falada em território nacional.
O exemplo acima ilustra como a variação linguística não funciona de modo caótico.
Como se pode observar, é possível compreender algumas variações morfossintáticas, como as
acima discutidas, a partir do conhecimento sobre como a língua se organiza internamente, ou
seja, sobre as regras de funcionamento que regem sua estruturação. No caso do português
brasileiro, as formas agramaticais acima referidas não são identificáveis como variedades
possíveis da língua, uma vez que estão em desacordo com as regras de funcionamento que
orientam a organização do português brasileiro em sua sistematicidade.
Quando me refiro a regra, não estou tratando das noções de certo e errado que prega a
gramática tradicional. No domínio das discussões da sociolinguística, regra diz respeito a
certos padrões de organização estrutural que estão na base do funcionamento da língua; ou
seja, dizem respeito às regularidades, em se tratando de realizações linguísticas, observáveis a
partir de um estudo descritivo das diferentes manifestações verbais que compõem a língua em
sua heterogeneidade.
Em síntese, os quatro pontos acima discutidos acerca do trabalho sociolinguístico –
seja ele mais linguístico ou mais social – inscrito no domínio do programa sociocultural nos
possibilitam compreender a variação linguística como um fenômeno passível de descrição e
explicação científica. Os saberes que orbitam em torno das questões sobre a variação – objeto
investigativo que estabelece uma das diretrizes da TSD – nos permitem questionar a
autossuficiência, independência e autorregulação do sistema linguístico.

3.2.1.4 Usos e funções

Passo, finalmente, à discussão acerca da última diretriz epistemológica da TSD: os


usos e as funções. Para pensar na linguagem em uso e nas funções que ela assume na práxis
interacional, parto das contribuições advindas dos estudos funcionalistas.
98

Por funcionalismo estou entendendo todo e qualquer investimento teórico-


metodológico que busca compreender a estrutura da língua a partir das funções linguístico-
enunciativas que a prática verbal assume no ato de comunicação. Desse modo, uma vez que
intenciono aqui apenas tratar dos fundamentos centrais concernentes às diretrizes da TSD, não
tratarei, como tenho feito até aqui com outros empreendimentos teórico-metodológico, das
especificidades de cada uma das abordagens ditas funcionalistas. Funcionalismo diz respeito,
nesta seção, portanto, a um macrodomínio em cujo espaço se subscrevem abordagens que
compartilham afinidades quanto ao trato dos fenômenos linguísticos, particularmente no que
diz respeito à agenda de trabalho centrada no estudo da língua a partir das funções que assume
no ato comunicacional, o que envolve, necessariamente, pensá-la como um objeto ao qual
estão entrelaçadas questões de ordem sociointeracional.
A base do pensamento funcionalista decerto encontra lugar de fundação fora da
linguística, mais precisamente na filosofia da linguagem, em cujo domínio Ludwig
Wittgenstein e John Austin compreendem a linguagem como forma de ação. Os ecos dessa
perspectiva filosófica chegam à linguística e influenciam diretamente os estudos de natureza
pragmática que começam a questionar o paradigma formalista então vigente: até que ponto a
concepção sistêmica daria conta do estudo de um fenômeno que se organiza como forma de
ação?
Também convém destacar que, já no campo da linguística, as primeiras incursões
funcionalistas estão atreladas aos trabalhos da Escola de Praga, grupo formado por
pesquisadores europeus cujas proposições encontram inspiração no trabalho de, entre outros,
Roman Jakobson e Nikolai Trubetzkoy. Fundamentalmente, a perspectiva de Praga de algum
modo combina uma abordagem estruturalista a uma de ordem funcionalista. Diante disso,
nesse intervalo, compreende a existência de um sistema regido por regras de funcionamento,
porém, ao mesmo tempo, concebe também a determinação dos usos e das funções sobre esse
sistema. É no bojo dessas discussões que surgem as primeiras reflexões, na linguística, acerca
da língua como instrumento de comunicação, da qual, por consequência, resultam as
proposições sobre as funções da linguagem e o esquema comunicacional, conceitos que
fundamentaram em grande medida o pensamento linguístico a partir do final da década de
1960.
Pode-se dizer que as abordagens funcionalistas subscritas no domínio do programa
sociocultural e cujas proposições delimitam a diretriz epistemológica dos usos linguísticos
partem do princípio de que:
99

a. a língua é um fenômeno de interação.

Por essa perspectiva, a essência da língua reside na sua capacidade de permitir que
indivíduos interajam entre si, negociando e confrontando sentidos, com vistas à consecução
de determinados objetivos comunicativos. Fica claro que aqui não há espaço para uma
descrição linguística concentrada senão no uso, ou seja, na (re)atualização que o sistema
linguístico assume quando a língua está em funcionamento.
Subjacente à noção de uso linguístico está pressuposta a ideia de interação; é no
movimento interlocutivo da interação, afinal, que utilizamos a linguagem para agir sobre o
outro. Interlocutores agem uns sobre os outros, de modo colaborativo e cooperativo,
orientados por intenções pragmáticas específicas e por um contexto social que influencia a
todo instante o modo como a interação se desenrola.
A língua, então, existe na medida em que serve para mediar a interação entre
indivíduos: de um lado, indivíduos que, tendo algo a dizer, organizam seu discurso com vistas
à consecução desse propósito, agindo sobre o outro e sobre o mundo; do outro lado,
indivíduos que trabalham ativamente, num dado contexto, para construir sentidos ao passo
que a interação acontece. Em suma, a língua permite formas de ação, trocas de experiência,
colaboração e negociação de sentidos.

b. a estrutura linguística varia de acordo com as funções que ela assume na interação.

Uma vez que se adota a concepção de língua como interação, passa-se


automaticamente a conceber sua organização estrutural (fonológica, morfológica, sintática)
em relação direta com elementos que residem na exterioridade de seu sistema de regras
combinatórias. Nessa esteira, a estrutura linguística não se fecha e se limita à sua aparente
autossuficiência; pelo contrário: depende do que está fora dela para, na interação, atualizar-se
e assim tomar forma ao sabor das funções que assume nos discursos. Em síntese, a gramática
da língua, concebida como unidade que garante a estrutura básica da frase, por essa
perspectiva, subordina-se ao contexto sociopragmático em que acontecem as interações.
Tal perspectiva reforça a máxima da não transparência e não imanência semântica
atrelada às unidades linguísticas, fundamento que atravessa as diferentes abordagens situadas
no programa sociocultural e, por conseguinte, no domínio da TSD. O recorte de objeto que
operam as abordagens funcionalistas pressupõe o estudo da semântica a partir de uma
100

abordagem pragmática. Ou seja, a não transparência e a não imanência semântica das


estruturas linguísticas, no domínio de uma abordagem funcionalista, advêm da ênfase
atribuída às questões que se situam na esfera das intenções que se materializam no uso. Para
pensar nessas questões, o intercâmbio com a pragmática é um movimento natural, tendo em
vista seu interesse em investigar as condições que situam e governam a utilização da
linguagem.
Do ponto de vista pragmático, o sentido não está na língua em si mesma, mas resulta
do processo de interação. As estruturas linguísticas, por consequência, não funcionam
isoladas de contextos sociopragmáticos de comunicação. Ao entrar no jogo enunciativo, a
língua se rearranja de um modo ou outro, tendo em vista sua ligação direta com os propósitos
de quem dela se apropria ao enunciar. Em outras palavras, a estrutura linguística varia de
acordo com as funções que ela assume na interação.
É no interior dessa discussão de ordem pragmática que as abordagens funcionalistas
lidam, por exemplo, com os fenômenos da topicalização, da modalização, da polidez e
impolidez, da preservação de face. Trata-se de fenômenos que se organizam no entremeio
entre a morfossintaxe e a pragmática, isto é, entre os elementos linguísticos e as situações
sociopragmáticas em que acontecem as interações. Do ponto de vista funcionalista, a escolha
de uma ou outra forma de arranjo das unidades linguísticas, seja, por exemplo, para evidenciar
um tópico discursivo em detrimento de outro ou para que o falante não se comprometa diante
de um público que ele julga exigente, depende diretamente de elementos pragmáticos que
orbitam em torno das práticas de linguagem.
Em resumo, a função da língua e os efeitos pretendidos pelos falantes é que
determinam e organizam, por essa perspectiva, o modo como os elementos gramático-lexicais
se dispõem estruturalmente.

c. os indivíduos, conscientemente, operam com escolhas linguísticas.

De modo geral, tendo em vista a ênfase nas questões que giram em torno das escolhas
dos indivíduos no ato de interação, as abordagens funcionalistas trabalham com a noção de
sujeitos enquanto indivíduos “conscientes, dotados de um saber, de uma capacidade de
escolhas e de dar-se conta de como o contexto deve ser relevantemente considerado e até
mesmo alterado” (POSSENTI, 2011, p. 363). Ou seja, estamos falando de um sujeito que
deliberadamente, diante de propósitos e diante de certas condições contextuais de
101

comunicação (de onde fala, para quem fala, de que lugar está falando, que efeito quer atingir
no outro com sua fala etc.), opta por uma forma entre outras de se expressar linguisticamente.
Isso não significa que estamos aqui lidando com uma concepção de sujeito centrado
em um ego individualista à qual subjaz a noção de um indivíduo dono absoluto dos efeitos de
sentidos que pretende atingir. Pelo contrário, trata-se de um sujeito social, influenciado pelas
circunstâncias em que enuncia e pelo outro ou outros que com ele interagem. É justamente no
entremeio entre a influência dos fatores que o cercam e sua capacidade de escolha com vistas
ao cumprimento de objetivos comunicativos particulares que o sujeito e os sentidos são
concebidos pela abordagem funcionalista.
Com esta terceira consideração sobre o trabalho funcionalista, encerro a discussão
sobre as quatro diretrizes que orientam, organizam e delimitam o domínio da tradição
sociodiscursiva tal como a compreendo. A seguir, busco abordá-las de modo integrado,
ligando os pontos e atando os nós que amarram os diferentes empreendimentos
sociodiscursivos no interior de uma mesma tradição.

3.2.2 Diálogos entre os empreendimentos sociodiscursivos e a solidificação da TSD

O texto, o discurso, a variação, e os usos linguísticos, objetos investigativos atreladas


aos estudos da linguística de texto, das análises do discurso, da sociolinguística e do
funcionalismo constituem diretrizes epistemológicas que estabelecem as fronteiras da TSD
enquanto tradição cujas raízes foram, ao longo do tempo, se fortalecendo no terreno da
linguística ocidental.
Naturalmente, uma análise menos geral poderia trazer à discussão outros pensamentos
e outras proposições sobre a linguagem que de algum modo contribuíram com a consolidação
da TSD. Optei, porém, pelo trabalho com os quatro domínios aqui discutidos, por acreditar
que em torno deles, num nível hierárquico mais alto, circulam os principais deslocamentos
efetuados pelas abordagens sociodiscursivas que emergiram na segunda metade do século
XX. As discussões em torno das quatro diretrizes epistemológicas trazem à tona diferentes
perspectivas que, a despeito das diferenças, convergem na medida em que todas elas resgatam
os aspectos extralinguísticos (de diferentes ordens e naturezas) não considerados nas
pesquisas subscritas na tradição formalista.
Nesta seção, apresento alguns pontos de convergência que ligam os quatro domínios
nucleares da TSD, garantindo-lhe coerência interna e poder de convencimento no interior do
102

circuito de discussões sobre a linguagem. A coerência interna, construída através da


pluralidade de teorias que conversam entre si, é fundamental para o desenvolvimento e,
principalmente, para a consolidação da TSD na cultura linguística ocidental. No interior da
atmosfera intelectual marcada pelo que Camacho (1994) chama de crise de identidade da
ciência linguística, as diferentes vozes que auxiliam na costura das fronteiras da TSD e na
configuração de sua identidade, de algum modo, se cruzam. Esse encontro, ou melhor, esse
diálogo estabelecido entre diferentes disciplinas, impulsiona a consolidação da TSD.
Acreditando na relevância da compreensão do modo como se constitui esse diálogo,
trato, aqui, das “convergências apesar de divergências”, as quais, ao mesmo tempo, delimitam
a identidade epistemológica da TSD e garantem que seus ecos continuem reverberando em
diferentes espaços em que os fenômenos linguísticos são discutidos. Antes de “ligar pontas”,
porém, sugiro um exercício de reflexão sobre a constituição e emergência de teorias
científicas, mais particularmente das teorias linguísticas.
A complexidade que caracteriza a realidade, os sujeitos e os diferentes fenômenos
linguísticos de algum modo explica a existência da pluralidade de teorias que se debruçam
sobre a linguagem em suas diversas dimensões. A pluralidade de teorias resulta da pluralidade
de perspectivas a partir das quais se podem enxergar os fenômenos de linguagem. A
linguagem, em sua complexidade, existe enquanto realidade exterior às teorias e às
proposições; o que fazem essas teorias é observá-la por um ou outro ângulo, recortando-lhe
uma pequena fatia que lhes serve como “material” a ser analisado em seu “laboratório”
investigativo. Esse “material” recortado do grande corpo que é a linguagem traz consigo um
conjunto limitado de possibilidades investigativas, afinal, “toda descrição, através da qual a
ciência apreende e explica seu objeto, é necessariamente finita”, enquanto que os fenômenos
descritos “apresentam-se infinitamente complexos e variáveis” (CAMACHO, 1994, p. 19).
Se praticarmos o exercício de pensar na construção de teorias a partir dessa analogia
com o trabalho laboratorial (seleção e coleta de um material de um corpo maior e mais
complexo), podemos chegar à conclusão de que os diferentes empreendimentos teóricos que
sustentam a TSD efetuam diferentes recortes; todavia, cada “material recortado”, ainda que
singular, traz em sua constituição uma parcela que pode ser encontrada nos diferentes
“recortes sociodiscursivos”. Essa parcela que se repete, pois, aproxima os empreendimentos
sociodiscursivos e lhes garante o que acima chamei de “convergências apesar das diferenças”.
Para melhor compreender o raciocínio, vejamos a figura abaixo:
103

Figura 1 – Convergências no domínio da TSD

Fonte: o autor, 2019.

O esquema nos auxilia a visualizar os fenômenos de linguagem como um grande corpo


a partir do qual o domínio sociodiscursivo, resultado de um recorte, constitui-se. Esse
domínio, porém, ainda traz em sua configuração uma vastidão de fenômenos de linguagem
passíveis de análise, dos quais eu tenho destacado, para compreender as diretrizes
epistemológicas da TSD, o texto, o discurso, a variação e os usos e funções. Tais fenômenos
são investigados e descritos por diferentes e, ao mesmo tempo, convergentes
empreendimentos sociodiscursivos, motivo pelo qual os diferentes objetos dialogam entre si,
como ilustra o esquema através do ponto de interseção.
Como apontei acima, defendo que esse diálogo estabelecido a partir do ponto de
interseção entre os diferentes empreendimentos sociodiscursivos reforça, no circuito de
discussão científica, a legitimidade da TSD, permitindo que, atrelado a outros fatores, esse
domínio se consolide e, ao longo do tempo, assuma o status de tradição.
Os fundamentos que configuram as diretrizes da TSD encontram lugar de
convergência na medida em que, de modo geral, compreendem:

a. a linguagem como um fenômeno social, interativo, cultural, histórico e ideológico;


104

b. a heterogeneidade, mutabilidade e pluralidade da linguagem como fatos naturais cujas


regularidades podem ser explicadas a partir de dispositivos descritivos;
c. as unidades linguísticas estruturais (sons, palavras e frases) em sua relação com a
exterioridade;
d. a impreterível necessidade de analisar a linguagem sempre a partir de usos concretos;
e. a opacidade e heterogeneidade semântica que caracterizam os usos reais da linguagem em
funcionamento;
f. a constituição histórica e social dos falantes, indivíduos ou sujeitos que, consciente ou
inconscientemente, se subjetivam e assumem identidades na e pela linguagem;
g. a linguagem como lugar de interação, interlocução e diálogo entre sujeitos/atores sociais.

Esses fundamentos traduzem o ponto de interseção destacado na figura 1, isto é, a


“convergência apesar das divergências” que caracteriza o domínio da TSD em sua
heterogeneidade.
Como se pode notar, todos os pontos, direta ou indiretamente, destacam o caráter
social da linguagem e dos sujeitos/indivíduos que dela fazem uso, bem como lidam com
aspectos que residem na atualização do sistema linguístico ou, em outras palavras, na
performance linguística. À espinha dorsal da TSD, portanto, estão ligados fenômenos de
linguagem que estão na ordem do social (cultura, heterogeneidade, história, ideologia) e do
discurso (uso, interação, funções, diálogo). Convém lançar algumas considerações sobre esses
dois termos que, unidos, formam o epíteto sociodiscursivo que compõe a designação tradição
sociodiscursiva.
Social, aqui, não se confunde com a concepção saussureana de língua como um fato
social. Para Saussure (2006), a língua é constituída por duas faces: de um lado, por uma
imagem acústica (significante); de outro, por um conceito (significado) a ela atribuído. A
relação entre a imagem acústica e o conceito é, para Saussure, arbitrária, cabendo aos
indivíduos efetuar, em seu pensamento, a relação inequívoca entre esses dois elementos
abstratos. O caráter social atribuído à língua, por essa perspectiva, reside na sua capacidade de
funcionar como meio de comunicação entre indivíduos. Todavia, nessa esteira de pensamento,
a comunicação “social” acontece a partir do conhecimento que detém cada indivíduo sobre as
regras de funcionamento e as relações arbitrárias que permitem à língua funcionar como
sistema autorregulado.
105

Para além dessa visão sistêmica de língua, os fundamentos da TSD, no que tange ao
seu aspecto social, se aproximam das relações complexas, contraditórias e escorregadias que
configuram as interações que os sujeitos estabelecem entre si e com o mundo que os cerca.
Trata-se de um social que compreende a sociedade, em sua complexidade e em sua
imprevisibilidade, como um domínio multifacetado.
Discurso, por sua vez, não se limita ao objeto da análise do discurso ou apenas ao
objeto homônimo aqui discutido. Em sua origem etimológica, a palavra “discurso”
corresponde à ideia de movimento, de curso fluido, de percurso, de correr por (ORLANDI,
2009). Inserido no espaço da performance, assim compreendo a designação discurso da TSD:
um domínio em que se inscrevem a imprevisibilidade, fluidez, flexibilidade e variabilidade
das diferentes materialidades intradiscursivas (texto, fala, conversação, enunciado) e
interdiscursivas (diálogo, memória, frames etc.). O qualificador discursivo do termo
sociodiscursivo se refere aos fenômenos que, através da linguagem em funcionamento,
orbitam em torno da interação intersubjetiva. Intersubjetividade, aqui, compreende tanto uma
interação pragmaticamente orientada na qual ações conscientes são processadas a todo
instante, como um diálogo que ultrapassa as fronteiras do face a face, estabelecendo relações
pouco evidentes entre vozes anônimas que ressoam nas diferentes (e irrepetíveis) atualizações
que se fazem da linguagem.
Entendo a TSD, portanto, como domínio em que se discutem os aspectos sociais da
linguagem e fenômenos de natureza discursiva residentes na instância das múltiplas
performances processadas na e pela linguagem em uso. Esse domínio é tanto social como
discursivo na medida em que parte de uma concepção de linguagem como “atividade
sociocultural coletiva, como instrumento de poder e controle social, como trabalho dialógico
por natureza e exclusivamente realizado na interação, no intercurso verbal falado e escrito”
(BAGNO, 2017, p. 11).
Finalmente, para sistematizar as discussões empreendidas ao longo deste capítulo,
compreendo a tradição sociodiscursiva, em linhas gerais, como:

a. uma tradição no sentido mais geral do termo, atrelado à noção de traditio, de “passar
adiante” um conjunto de preceitos e fundamentos consolidados num determinado espaço;
aqui, o espaço institucionalizado da linguística ocidental;
b. uma tradição no sentido mais restrito, ligado às reflexões epistemológicas que propõem
Laudan (2011) e Hymes (1983), que entendem as tradições, respectivamente, como (i) um
106

conjunto de teorias que partilham compromissos e pressupostos conceituais e (ii) como


resultado da consolidação e da legitimação da agenda de programas de investigação
específicos;
c. uma tradição de caráter social, uma vez que compreende a linguagem humana como um
fato social, como o encontro de culturas, ideologias, memórias, vozes sociais e
subjetividades;
d. uma tradição de caráter discursivo, na medida em que compreende a linguagem em
funcionamento através de textos como forma de ação pragmaticamente orientada, como
efeito da ideologia, como reflexo da relação intersubjetiva estabelecida dialogicamente.
107

4 ASPECTOS METODOLÓGICOS

A construção e a operacionalização dos procedimentos metodológicos desta tese estão


alinhadas ao tipo de historiografia aqui executado. Desse modo, é preciso antecipar que
desenvolvo uma historiografia linguística do tipo atomística, narrativa e nocional-estrutural,
tal como as concebe Swiggers (2013). Para o autor, a primeira diz respeito a “uma
apresentação analítica de acontecimentos e fatos da história da linguística”, a segunda, por sua
vez, “relata, na sucessão cronológica, os „acontecimentos‟ na história da linguística”,
enquanto que a última parte de uma “análise estrutural de conjunto de ideias, de tipos de
abordagens na história da linguística” (SWIGGERS, 2013, p. 45). A narrativa aqui
desenvolvida, em torno dos momentos constitutivos da tradição sociodiscursiva (TSD) na
pesquisa linguística brasileira, buscou comtemplar essas três dimensões.
Naturalmente, com respaldo nos fundamentos da HL, as decisões metodológicas
tomadas neste trabalho partem, em primeiro lugar, dos pressupostos inerentes às dimensões
externa e interna de investigação, as quais se configuram pelo movimento de alteridade e
constituição mútua – uma existe senão para fundamentar a outra. Os princípios de imanência,
contextualização e adequação, nos moldes de Koerner (1996), também nortearam os
procedimentos metodológicos no que tange, principalmente, à análise das evidências
históricas subjacentes às fontes. Esse conjunto de ferramentas procedimentais concede
instrumentos suficientemente abrangentes para o trabalho heurístico e hermenêutico
necessário à compreensão historiográfica da TSD uma vez que, ao mesmo tempo, permite
olhar para as fontes em sua imanência epistemológica e em sua relação com o contexto sócio-
histórico à sua volta15.
Neste capítulo, pretendo abordar as diretrizes metodológicas norteadoras do trabalho, a
saber: (i) a periodização estabelecida, bem como, principalmente, a justificativa dessa
escolha; (ii) os parâmetros de seleção das fontes de pesquisa; (iii) o mapeamento das fontes
selecionadas; e (iv) os parâmetros e as categorias de análise.

15
Na seção 2.5 – Dimensões, princípios e procedimentos da construção historiográfica –, expliquei, de modo
detalhado, os fundamentos basilares das dimensões interna e externa, bem como os pontos necessários à
compreensão dos princípios de imanência, contextualização e adequação propostos por Koerner (1996).
108

4.1 PERIODIZAÇÃO

O estabelecimento de um período objetivamente definido para a observação do


desenrolar de um determinado movimento intelectual ou tradição de pesquisa no interior da
linguística local, nacional ou internacional pode acarretar alguns perigos que deve o
historiógrafo da linguagem considerar. Em primeiro lugar, não se deve acreditar, como
pressuposto atrelado a uma ou outra decisão de recorte cronológico, que as formas de
conceber o conhecimento emergem subitamente, como consequência da constatação de um
dado problema e de sua fortuita solução. Em outras palavras, estabelecer um interstício de
tempo que demarca as fronteiras da investigação historiográfica não significa acreditar na
evidência de uma cronologia linear inquestionável cuja compreensão – centrada na imanência
de um espaço situado entre um ponto de partida e um ponto de chegada – seria por si só
autossuficiente para o tratamento dos fatos históricos investigados. O estabelecimento de um
recorte diacrônico deve estar amparado por uma metodologia bem estruturada, pautada por
escolhas racionais e suficientemente convincentes do ponto de vista de sua capacidade de
resolver, com exequibilidade, os problemas da pesquisa e de atingir os objetivos traçados.
Desse modo, sem pressupor um início e um fim para a história da TSD engessados
numa linha cronológica predeterminada, estabeleço o interstício de 1970 a 1999 como
periodização que situa e orienta o trabalho historiográfico aqui proposto. Sendo assim, o
material historiográfico investigado nesta tese é composto por fontes que foram concebidas e
que circularam no âmbito da pesquisa linguística brasileira ao longo desses trinta anos de
produção científica. A escolha desse intervalo de tempo, porém, não se dá de modo aleatório.
O final da década de 1960 e a primeira metade dos anos de 1970 marcam importantes
acontecimentos que, à frente, estabeleceriam campo fértil para o florescer do embrião da
tradição sociodiscursiva. Embora não seja o intuito desta seção metodológica aprofundar
questões atinentes ao clima de opinião em que se situam as incursões preliminares e
posteriores à emergência da TSD, abordarei, brevemente, algumas questões centrais desses
períodos, como forma de justificar a escolha do intervalo de tempo selecionado para situar a
investigação historiográfica aqui desenvolvida.
A definição do ano de 1970 como ponto de partida para a investigação da TSD se
justifica por questões de ordens variadas. Primeiramente, é relevante considerar que a década
de 1970 marca os primeiros dez anos de dois acontecimentos cujos efeitos para a
profissionalização dos estudos da linguagem no Brasil são inegáveis (ILARI, 1985): (i) a
109

institucionalização da matéria Linguística como componente curricular obrigatório nos cursos


de Letras de todo o território brasileiro, em 1962, por força do parecer nº 283/62 emitido pelo
Conselho Federal de Educação (CFE)16; e (ii) a abertura, em 1966, do primeiro curso
brasileiro de pós-graduação em linguística, concebido e ofertado pela Universidade de São
Paulo (USP).
Embora os primeiros anos da década de 1960, no cenário intelectual da linguística
brasileira, situem reflexões mais voltadas a perspectivas de cunho filológico e dialetológico
(ALTMAN, 2004), a “profissionalização linguística” dos centros de pesquisa prepara o
terreno para a chegada, a passos lentos, de ideias linguísticas que dialogam diretamente com
tradição sociodiscursiva emergente a partir da década de 1970, como atestam Tocaia e Batista
(2014). Segundo Ilari (1985), como consequência, sobretudo, da institucionalização da
Linguística no currículo mínimo dos cursos de Letras e da abertura de cursos de pós-
graduação em estudos linguísticos pelo país, passam a circular no interior da ainda jovem
linguística brasileira uma gama variada de novas abordagens teórico-metodológicas
importadas de respeitados centros de pesquisa estrangeiros. Entre essas perspectivas, destaco,
principalmente, a sociolinguística, a psicolinguística e a pragmática. Cada um a seu modo, os
três empreendimentos em questão trazem à cena dos estudos linguísticos questões que até
então não eram discutidas pelas pesquisas de cunho formalista que predominavam nesse
período, a saber, sobretudo: os aspectos sociais da linguagem, o indivíduo enunciador e as
situações e intenções pragmático-enunciativas que giram em torno das práticas de linguagem.
Tomando a história da TSD por meio de uma analogia metafórica com o plantio
agronômico, podemos assim pensar: a década de 1960 seria o período em que o terreno é
preparado, pelo trabalho de aragem da terra, para a plantação das sementes que à frente
florescerão. Isto é, os acontecimentos que marcam a passagem dos anos de 1960 para os de
1970 condicionaram a emergência (preparam o terreno), na década seguinte, de discursos (as
sementes) que apontam para a um deslocamento no modo de conceber a língua como objeto
teórico e como objeto ensinável (os frutos colhidos).
Os efeitos da década de 1960 para o desenvolvimento da linguística brasileira são
inegáveis. No entanto, é na década de 1970 que a TSD começa efetivamente a ganhar seus

16
O referido parecer do CFE configura um texto aditivo intitulado Currículo dos cursos superiores, no qual são
expostas orientações sobre a reconfiguração de cursos de graduação, entre eles o de Letras. A propósito dessa
reformulação, Castilho (1965) ressalta o papel norteador da comunicação do professor Aryon Rodrigues,
intitulada Sugestões de medidas relacionadas à inclusão de Linguística no currículo mínimo de letras, proferida
por ocasião do Simpósio sobre estrutura das faculdades de filosofia, ocorrido em Brasília entre 13 e 15 de
fevereiro de 1963, um ano após a emissão do parecer da CFE.
110

contornos mais evidentes. Esse período da linguística brasileira é marcado por acontecimentos
internos relevantes, os quais, direta ou indiretamente, impulsionaram o estabelecimento de
alguns deslocamentos nas pesquisas linguísticas empreendidas no país, sejam elas teóricas ou
aplicadas ao ensino de língua materna. É nesse contexto de deslocamentos que começa a se
desenhar o que aqui chamo de emergência da tradição sociodiscursiva. Entre os
acontecimentos que, nesse período, impulsionaram a emergência da TSD, destacam-se:

a. a criação do Projeto Norma Urbana Culta (NURC), cujo objetivo consiste na descrição
das regularidades constituintes da norma culta do português brasileiro (CASTILHO,
1991). A empreitada, que se desenrolou por décadas à frente e que se mantém até hoje,
foi responsável pela criação de um amplo corpus linguístico que possibilitou a linguistas
brasileiros descrever, nos diferentes níveis, a partir de dados empíricos, as características
próprias do português culto brasileiro, distinguindo-o do português europeu. Os trabalhos
em torno do NURC interessam a esta historiografia na medida em que contribuem para os
estudos sobre a língua falada e as questões sociolinguísticas subjacentes às normas
linguísticas brasileiras (CASTILHO, 1981), além de sua influência direta, como aponta
Vieira (2015), na produção de gramáticas do português brasileiro falado e, mais
recentemente, das gramáticas brasileiras contemporâneas do português (VIEIRA, 2015,
2016), como as de Neves (1999), Azeredo (2008), Perini (2010), Castilho (2010) e Bagno
(2012), para citar algumas. Pode-se dizer que todos esses produtos da gramatização
brasileira contemporânea são resultado, em alguma medida, da consolidação da TSD na
pesquisa linguística brasileira;

b. o surgimento e a divulgação, no Brasil, de perspectivas teórico-metodológicas que


encaram a linguagem como um fenômeno social, discursivo e pragmático que se
materializa na manifestação textual. É nesse período que circulam pelos centros
universitários brasileiros trabalhos (alguns deles originados de tradução) em torno da
sociolinguística (cf. FOSNECA & NEVES, 1974; MARCUSCHI, 1975; PRETI, 1974,
BORTONI, 1978), da linguística textual (cf. SCHMIDT, 1978; OSAKABE, 1979) e dos
estudos discursivo-enunciativos (cf. VOGT, 1977; ORLANDI, 1978a, 1978b e 1979);

c. a tradução de importantes textos de ação que discutem questões centrais à TSD e cuja
influência ressoa até os dias de hoje, tais como Problemas de linguística geral I
111

(BENVENISTE, 1976), Princípios de semântica linguística (DUCROT, 1977) e


Marxismo e filosofia da linguagem (BAKHTIN, 1979);

d. as primeiras proposições brasileiras que discutem as limitações do ensino de língua


portuguesa que se concentra na análise da oração isolada de contextos de uso, na
apreensão da metalinguagem determinada pela Nomenclatura Gramatical Brasileira
(NGB)17 e nas regras do “bom escrever” espelhadas na língua escrita da literatura
pregressa (cf. ILARI, 1976; CASTILHO, 1978; SANTOS, 1978);

e. a publicação de importantes obras de referência, dedicadas a subsidiar o trabalho do


professor de ensino de língua portuguesa, em que estão presentes concepções
sociodiscursivas de linguagem e ensino, como é o caso, para citar alguns, de Prática de
ensino de língua portuguesa (MATTOS & BACK, 1974), Pragmática linguística e
ensino de português (FONSECA & FONSECA, 1977) e as traduções de As ciências
linguísticas e o ensino de línguas (HALLIDAY et. al., 1974) e Linguística e o ensino do
Português (GENOUVRIER & PEYTARD, 1973)18.

Respaldado pelos acontecimentos e argumentos acima apresentados – que vão de


questões de ordem organizacional do estabelecimento da profissionalização da linguística
brasileira ao consequente circuito de produção intelectual daí decorrente –, defendo que a
emergência da tradição sociodiscursiva pode ser objetivamente observada a partir dos anos
de 1970, período em que começam a ecoar “as primeiras intervenções mais substanciais (isto
é, materializadas não apenas em questões gerais, mas em diretrizes e proposições
metodológicas abrangentes) de linguistas nos debates sobre o ensino de português no Brasil”
(FARACO, 2008, p. 163). Eis, portanto, os porquês que justificam a escolha do início de
periodização da narrativa tecida nesta tese.
O ano que marca o ponto final do recorte estabelecido é o de 1999. Vale ressaltar que,
do mesmo modo que não acredito no surgimento súbito e fortuito da TSD nos anos de 1970,

17
Regida pela Portaria Nº 36/1959 do MEC, a NGB apresentou uma proposta de padronização da nomenclatura
gramatical que, a partir daquele momento (1959), deveria ser utilizada na produção de gramáticas e livros
didáticos produzidos no Brasil. Seus efeitos ecoam na produção desse tipo de material até os dias de hoje (cf.
HENRIQUES, 2009).
18
A tradução de Rodolfo Ilari da obra Linguistique et enseignement du françois pode ser considerada, com
poucas ressalvas, uma recriação do texto original de Genouvrier e Peytard, dada a engenhosidade da adaptação
de Ilari (GERALDI, 2001). A tradução foi publicada originalmente em Coimbra, Portugal, pela editora
Almedina, porém circulou intensamente no Brasil, servindo como material referencial no círculo de debates
empreendidos na linguística local ao longo dos anos de 1970 e adiante.
112

não defendo que o ano de 1999 marque o fim de sua história. Ainda que assuma que ao longo
dos anos de 1990 esse domínio se consolide como uma tradição na pesquisa linguística
brasileira, não entendo que sua história aí se encerre. Para além do espaço institucional dos
centros de ensino e pesquisa brasileiros, a TSD tem até hoje costurado uma história de
enfrentamento. É fato que a tradição formalista, cuja principal representante no espaço
pedagógico é a gramática tradicional, ainda fundamenta em grande medida práticas de ensino
de língua portuguesa e a opinião pública sobre a linguagem, o que me conduz a pensar que a
história de deslocamentos da TSD se prolonga para além do ano de 1999, cruzando o século.
Apesar dessa consideração, a escolha do fim da década de 1990 como limite temporal se
ampara em justificativas concretas, sobre as quais passo agora a discorrer.
Os anos de 1990 delineiam alguns acontecimentos internos à linguística brasileira que
foram de suma importância para a consolidação da TSD no país. É nesse período que saberes
sociodiscursivos passam a circular com maior frequência na esfera acadêmica brasileira, dessa
vez, diferentemente das décadas passadas, amparados por certo efeito de consensualidade
coletiva. Isto é, ao longo da década de 1990, a discussão sobre texto, discurso, variação e
outras questões correlatas já se encontra solidificada, legitimada e amplamente difundida.
Pode-se dizer que os objetos constitutivos da TSD constituem pauta regular nesse período
devido, entre outros fatores:

a. ao fortalecimento de grupos de especialidade que se preocuparam em discutir fenômenos


atrelados ao texto falado e escrito, ao discurso, aos usos e à variação linguística. Nessa
época, Grupos de Trabalho (GT) interessados nesses fenômenos de linguagem, criados no
âmbito da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística
(ANPOLL), completam sua primeira década de atuação. Entre esses grupos, destaco o GT
Linguística de texto e Análise da conversação, coordenado por Luiz Antônio Marcuschi; o
GT Sociolinguística, liderado por Jürger Heye e Sebastião Votre; e o GT Análise do
Discurso, que teve Eni Orlandi como primeira coordenadora;

b. à expressiva atuação de lideranças intelectuais e organizacionais que, no interior dos


diferentes grupos de especialidade, conduziram a TSD à sua consolidação;
113

c. à formação intensa de novos pesquisadores, que, ancorados aos diferentes campos de


atuação da TSD, passam a colaborar com a divulgação de pesquisas teóricas ou aplicadas
ao ensino de língua portuguesa.

Em linhas gerais, pelo disposto até aqui, parto do pressuposto de que o interstício de
tempo entre 1970 e 1999 configura uma linha temporal adequada para analisarmos os
movimentos que culminaram na emergência, no desenvolvimento e na consolidação da TSD.
De modo sistemático, como forma de tornar mais claros os argumentos que sustentam
o recorte de tempo estabelecido na historiografia aqui desenvolvida, trago o quadro a seguir,
organizado a partir de acontecimentos que julgo relevante destacar.

Quadro 3 – Periodização de análise da TSD e fatos relevantes

Fatos a. Obrigatoriedade de oferta da matéria Linguística aos cursos de Letras (1962)


antecedentes b. Abertura do primeiro curso de pós-graduação em linguística (1966)
relevantes

a. Primeiras reflexões sobre a constituição da norma culta brasileira (projeto NURC)


b. Primeiras incursões brasileiras na Linguística Textual e na(s) Análise(s) do
discurso
c. Primeiros apontamentos para a pedagogia da variação linguística
(sociolinguística educacional)
Marco inicial
d. Intensa circulação – na pesquisa acadêmica e na produção de livros didáticos de
do recorte –
português – de conceitos da teoria comunicacional e das teorias pragmáticas
anos de 1970
e. Tradução de obras importantes para o desenvolvimento da TSD no Brasil
f. Primeiras críticas sistemáticas ao ensino tradicional da gramática no cenário
brasileiro
g. Publicação (de originais ou de traduções), no Brasil, das primeiras obras de
orientação para o ensino de língua pela orientação da TSD

a. Continuidade do boom (iniciado nos anos de 1980) de publicações de trabalhos


dedicados a fenômenos sociodiscursivos
b. Intenso debate sobre os “novos” rumos para o ensino de língua portuguesa, com
Marco final do ênfase no ensino de conhecimentos gramaticais (é preciso ou não ensinar
recorte – gramática?)
Década de 1990 c. Fortalecimento de grupos de especialidade em torno da linguística de texto, da
análise do discurso e da sociolinguística
d. Formação e atuação de novos pesquisadores (baixa idade profissional), que
passam a atuar colaborativamente na divulgação de ideias linguísticas atreladas à
TSD

Fonte: o autor, 2019.


114

4.2 PARÂMETROS PARA A SELEÇÃO E O MAPEAMENTO DAS FONTES


HISTORIOGRÁFICAS

Devido ao tipo de historiografia desenvolvida nesta tese, bem como às perguntas de


pesquisa e aos objetivos que dão sustentação à tarefa investigativa daí resultante, a matéria
fundamental que compõe as fontes historiográficas aqui analisadas é a produção intelectual
em torno da tradição sociodiscursiva desenvolvida pela linguística brasileira entre 1970 e
1999. Esse material diversificado, todavia, dada a sua ampla abrangência e sua indubitável
heterogeneidade, foi selecionado a partir de parâmetros específicos, os quais acarretaram um
enxugamento, em certa medida, da ampla produção linguística publicada nesses trinta anos de
labor intelectual. Os parâmetros de seleção, bem como o recorte final deles consequente, são
aqui discutidos em detalhes.
Nesta etapa metodológica, o primeiro passo executado girou em torno da composição
de um grande portal de documentação significativamente representativo da produção da
linguística brasileira em torno da TSD. Para Swiggers (2013), em texto cujo propósito é
delimitar as especificidades do trabalho historiográfico, a construção de um portal de
documentação consiste num levantamento mais geral do qual resulta um mapeamento de
fontes (gerais e específicas) caras ao tipo de historiografia e objetivos pretendidos. O
levantamento e a coleta desse material mais geral foram orientados por alguns parâmetros
norteadores; desse modo, compuseram esse portal apenas textos:

a. publicados entre 1970 e 1999;


b. cujo enfoque apontasse para algum dos objetos constitutivos que estabelecem as
diretrizes da TSD, em abordagem teórica ou aplicada ao ensino de língua portuguesa;
c. publicados em periódicos indexados de alto impacto nas áreas de Letras, Linguística ou
Educação.

A opção por concentrar o trabalho de seleção das fontes em publicações veiculadas a


periódicos indexados não se dá por acaso. Esses veículos são de extrema importância
enquanto repositórios de fontes para a análise da TSD, na medida em que apresentam a
essência da pesquisa linguística brasileira em sua pluralidade de abordagens e perspectivas
teóricas. De modo distinto do que acontece com livros, não há na publicação de periódicos a
intervenção do mercado editorial, fato que lhes garante a capacidade de retratar, com razoável
115

fidelidade, o quadro geral dos problemas considerados relevantes pela comunidade científica.
Além disso, é importante destacar que todos os trabalhos publicados pelos periódicos
indexados são, antes, submetidos à avaliação de um corpo editorial composto por
pesquisadores de reconhecida expertise técnico-científica na área, medida que confere
credibilidade aos trabalhos aprovados e que atesta a relevância e a seriedade das proposições
neles veiculadas. Como salienta Altman (2004),

a revista periódica permite, de modo econômico, a concentração de um repertório


extremamente importante – e, em princípio, variado – de dados cientificamente
produzidos. Este aspecto é fundamental, dado o caráter extremamente disperso da
literatura científica brasileira. Em segundo lugar, a publicação em um periódico
pressupõe certa compatibilidade com o que a comunidade científica – ou, ao menos,
parte dela – considera relevante. A publicação periódica constitui, dessa maneira,
uma bússola para a identificação dos rumos preferencialmente seguidos por uma
comunidade científica (p. 48-49).

A coleta das fontes se deu majoritariamente no espaço online. Hoje, felizmente, já


temos acesso a um grande acervo de importantes periódicos publicados nos últimos sessenta
anos, todos em formato digital.
Antes da seleção definitiva do material que seria submetido à análise historiográfica,
optei por fazer um levantamento geral de fontes a partir dos três critérios de seleção já
explicitados. Esse levantamento resultou num acervo expressivo – um portal de
documentação – composto por 165 fontes (divididas entre artigos científicos e ensaios
teóricos). Naturalmente, este número, apesar de razoavelmente significativo do ponto de vista
quantitativo, não engloba toda a produção da linguística brasileira em torno da TSD. A
completude, nesse caso, seria uma meta inatingível, se considerarmos que muitas das
discussões promovidas entre 1970 e 1999 sequer chegaram a circular materialmente em textos
de ampla divulgação; outros, embora publicados, são de difícil acesso, como é o caso de
comunicações e palestras proferidas em eventos do passado e registradas exclusivamente em
anais impressos com tiragem limitada. Creio que tal fato, todavia, não fragiliza a
historiografia aqui executada, pois esse levantamento geral preliminar me permitiu cotejar um
amplo e diversificado acervo da produção linguística brasileira, publicada em diferentes
regiões do país e em veículos legitimados pela comunidade acadêmica.
Diante desse vasto portal de documentação construído, o processo seguinte consistiu
na seleção das referências que efetivamente comporiam um acervo analisável mais restrito,
que fosse capaz de, com exequibilidade, diante das condições de produção desta tese,
conduzir-me às respostas procuradas. O produto resultante desse recorte efetuado consiste na
116

base documental (SWIGGERS, 2013) do trabalho. Nessa etapa de construção de um corpus


mais restrito, trabalhei com parâmetros que me permitiram chegar a uma base documental que
abrange: (i) um conjunto de textos representativos no que tange ao tema da TSD, (ii) a
produção intelectual advinda de diferentes centros de pesquisas espalhados pelas regiões do
Brasil e (iii) diferentes épocas de desenvolvimento da TSD. Para Swiggers (2013), tema,
região e época são parâmetros objetivos para a construção de uma base documental capaz de
apresentar pistas relevantes para um trabalho historiográfico que lida com a produção
intelectual no âmbito institucional.
Desse modo, as fontes que compõem a base documental desta tese representam,
quanto à categoria tema:

 trabalhos em torno das diferentes abordagens da linguística de texto, da


análise do discurso, do funcionalismo e da sociolinguística;
 trabalhos que refletem (teoricamente ou de modo aplicado) sobre os eixos de
produção textual, leitura ou análise linguística/conhecimentos linguísticos
fundamentados por uma concepção de linguagem como fenômeno
sociodiscursivo.

Quanto à categoria região:

 trabalhos representativos de diferentes centros de pesquisa e ensino brasileiros,


localizados em diferentes regiões do país.

Quanto à categoria época:

 trabalhos publicados entre 1970 e 1999, os quais foram divididos em três


grupos – (i) 1970-1979, (ii) 1980-1989 e (iii) 1990-1999 –, com objetivo único
de melhor observar os momentos que configuram o desenrolar da TSD.

Após o estabelecimento desses parâmetros circunscritos nos eixos tema, região e


época (SWIGGERS, 2013), optei por concentrar a seleção das fontes em 04 periódicos
117

indexados de atestado reconhecimento nas áreas Linguística, Educação e Ensino19, os quais


reúnem textos assinados por pesquisadores atuantes em diferentes centros de pesquisa do país
em que são discutidas ideias linguísticas subjacentes às diferentes diretrizes constitutivas da
TSD.
O quadro abaixo apresenta informações sobre os periódicos indexados em que foram
coletadas fontes historiográficas submetidas à análise:

Quadro 4 – Periódicos indexados selecionados para coleta de fontes.

Ano do Qualis/Capes Número de


Instituição
Periódico primeiro quadriênio textos
responsável
volume 2013-2016 selecionados
ALFA: revista de
UNESP 1962 A1 20
linguística aplicada
Letras de Hoje PUCRS 1967 B1 24
Cadernos de Estudos
UNICAMP 1978 A1 15
Linguísticos
Trabalhos em
UNICAMP 1983 A1 14
Linguística Aplicada

Fonte: o autor, 2019.

A base documental cuja composição foi orientada pelos parâmetros acima descritos é
composta por um acervo de fontes que totaliza 73 textos. Essa base representa um recorte
significativo da produção linguística brasileira em torno da TSD; abarca, portanto, o resultado
de pesquisas desenvolvidas em diferentes centros de pesquisa e ensino do país ao longo dos
trinta anos que delimitam o período aqui estabelecido.
A seguir, apresento o mapeamento da base documental. As fontes estão divididas por
décadas e periódicos, organizadas em quadros que trazem as seguintes informações: (i) título,
(ii) autoria, (iii) volume do periódico e (iv) ano de publicação.

19
As áreas mencionadas são definidas CAPES, órgão que avalia periodicamente qualidade e o poder de impacto
dos periódicos indexados publicados no Brasil. Os periódicos são avaliados e enquadrados em categorias
(Qualis) que, da mais impactante à menos impactante, são distribuídas da seguinte forma: A1, A2, B1, B2, B3,
B4, B5 e C.
118

Quadro 5 – Seleção de fontes do periódico ALFA: Revista de Linguística: década de 1970

Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
A significação linguística e sua análise João de Almeida 18 1972
Dos ruídos na comunicação Suzi Franki Sperber 20 1974
Uma nota sobre redação escolar Rodolfo Ilari 22 1976

Fonte: o autor, 2019


Quadro 6 – Seleção de fontes do periódico ALFA: Revista de Linguística: década de 1980

Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Padrões linguísticos e estratificação
Roberto Gomes Camacho 24 1980
social
Norma, ideologia e teoria da linguagem Roberto Gomes Camacho 25 1981
A interferência de fatores sociais na
Roberto Gomes Camacho 26 1982
aquisição da norma culta
Leonor Lopes Fávero
Discurso e referência 28 1984
Ingedore G. Villaça Koch
O sistema escolar e o ensino da língua
Roberto Gomes Camacho 29 1985
portuguesa
Ensino do português: a formação do
Regina Maria Pessoa 30 1986
professor
Coesão e coerência textual em Claudete Moreno
33 1989
composições infantis Ghiraldelo
Língua natural: enfoque sociolinguístico Devino João Zambonim 33 1989

Fonte: o autor, 2019

Quadro 7 – Seleção de fontes do periódico ALFA: Revista de Linguística: década de 1990

Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Leitura: aspectos sociais da compreensão Roberto Gomes Camacho 36 1992
Maria Helena Vieira-
A leitura na sala de aula 36 1992
Abrahão
Linguística textual e ensino de língua: Maria do Rosário V.
37 1993
construindo a textualidade na escola Gregolin
Reflexões sobre o estudo da gramática Maria Helena de Moura
37 1993
nas escolas de 1º e 2º graus Neves
O papel do contexto social na teoria
Roberto Gomes Camacho 38 1994
linguística
Um ponto de vista funcional sobre a Ataliba Teixeira de
38 1994
predicação Castilho
Maria Helena de Moura
Uma visão geral da gramática funcional 38 1994
Neves
A análise do discurso: conceitos e Maria do Rosário V. 39 1995
119

aplicações Gregolin
A gramática de usos é uma gramática Maria Helena de Moura
41 1997
funcional Neves

Fonte: o autor, 2019


Quadro 8 – Seleção de fontes do periódico Letras de Hoje: década de 1970

Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
José Fernando de L.
A redação no curso médio 6 1971
Miranda
A linguagem de propaganda aplicada ao Vera Regina Araújo de
11 1976
ensino de língua materna Pereira
A língua portuguesa no Brasil Stella Maris Bortoni 13 1978

Fonte: o autor, 2019

Quadro 91 – Seleção de fontes do periódico Letras de Hoje: década de 1980

Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Bernstein e a sociolinguística Delmar Steffen 15 1980
Por uma gramática textual Ignacio Antonio Neis 16 1981
O fator cultural na compreensão da Maria Izabel S. Magalhães
16 1981
leitura Stella Maris Bortoni
Uma tentativa de gramática do texto
Maria da Glória Bordini 17 1982
narrativo
A competência de leitura Ignacio Antonio Neis 17 1982
Análise da coerência textual em
Maria Izabel da Silveira 17 1982
redações escolares
Por que uma linguística textual? Ignacio Antonio Neis 20 1985
A informatividade como elemento de
Leonor Lopes Fávero 20 1985
textualidade
A situacionalidade como elemento de
Ingedore G. Villaça Koch 20 1985
textualidade
Ignacio Antonio Neis
Leitura de textos no 1º grau: nova José Marcelino Poersch
20 1985
alternativa de ensino/apredizagem Lia Lourdes Marquandt
Maria Tasca
Recepção e produção textual em 5ª série
Maria Eduarda Giering 20 1985
do 1º grau
A história do sujeito-leitor: uma questão
Eni P. Orlandi 21 1986
para a leitura
Leitura e escrita: uma visão mais
Irandé Antunes 23 1988
produtiva
A análise do discurso na escola de Márcia C. Santos
24 1989
segundo grau Marlene L. Teixeira
Fonte: o autor, 2019
120

Quadro 10 – Seleção de fontes do periódico Letras de Hoje: década de 1990


Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Português falado e ensino de gramática Ataliba Teixeira da Castilho 25 1990
Texto: um problema para o exercício
João Wanderley Geraldi 25 1990
da capatazia
Uma introdução à análise do discurso Aracy Ernst Pereira 26 1991
Uma aplicação da análise do discurso
Regina Maria Varini Mutti 26 1991
à leitura e análise de textos
Elementos de Análise do Discurso para
Valdir Flores 32 1997
uma epistemologia da Linguística
Sujeito do inconsciente e
interdiscursividade: observações sobre Yeda Swirski de Souza 32 1997
a interseção dos conceitos
O objeto língua: unidade constituída
pela ausência: repercussões para uma Marlene Teixeira 34 1999
abordagem do discurso
Fonte: o autor, 2019

Quadro 11 – Seleção de fontes do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos: década de 1970

Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Variação dialetal e ensino
institucionalizado da língua Ataliba Teixeira de Castilho 1 1978
portuguesa
Fonte: o autor, 2019

Quadro 12 – Seleção de fontes do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos: década de 1980

Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Linguagem e estratificação social Jonas de A. Romualdo 2 1981
Leitura e alfabetização Luiz Carlos Cagliari 3 1982
Gramaticalidade aceitabilidade: uma
Jonas de A. Romualdo 5 1983
nova reformulação do certo-errado?
O sujeito na teoria enunciativa de
Catherine Fuchs 7 1984
Culioli: algumas referências
Interação face-a-face:
Neide M. Durães Sette 7 1984
simetria/assimetria
Do dialogismo à forma dialogada:
sobre os fundamentos da abordagem Francis Jacques 9 1985
pragmática
Principais mecanismos de coesão
Ingedore G. Villaça Koch 15 1988
textual em português
A imposição da leitura pelo texto:
Sírio Possenti 18 1988
casos de humor
Fonte: o autor, 2019
121

Quadro 13 – Seleção de fontes do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos: década de 1990

Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Heterogeneidade(s) enunciativa(s) Jacqueline Authier-Revuz 19 1990
Tendências da análise do discurso José Luiz Fiorin 19 1990
A atividade de produção textual Ingedore G. Villaça Koch 24 1993
Aquisição da escrita e textualidade Ingedore G. Villaça Koch 29 1995
Estratégias pragmáticas de
Ingedore G. Villaça Koch 30 1996
processamento textual
Exterioridade e ideologia Eni P. Orlandi 30 1996

Fonte: o autor, 2019

Quadro 14 – Seleção de fontes do periódico Trabalhos em Linguística Aplicada: década de 1980

Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Em terra de surdos-mudos (um estudo
sobre as condições de produção de Percival Leme Brito 2 1983
textos escolares)
Significação, leitura e redação Eni P. Orlandi 3 1984
Leitura como suporte para a produção Freda Indursky
5 1985
textual Maria Alice Kauer Zinn
Prática de produção de textos na
João Wanderley Geraldi 7 1986
escola
Criatividade e gramática Carlos Franchi 9 1987
Situações dialógicas assimétricas:
Stella Maris Bortoni 12 1988
implicações para o ensino
Níveis de detalhamento na descrição
gramatical: uma perspectiva Mario A. Perini 12 1988
pedagógica
Contribuições de uma gramática do
texto para o ensino de língua materna Maria Christina Diniz Leal 12 1988
(O caso da língua portuguesa)

Fonte: o autor, 2019


122

Quadro 15 – Seleção de fontes do periódico Trabalhos em Linguística Aplicada: década de 1990

Volume do Ano de
Título Autoria
periódico publicação
Análise do discurso e leitura:
elementos para uma “progressão Rosa Maria Nery 15 1990
textual”
Aspectos do processo de produção de
José Luiz Meurer 21 1993
textos escritos
Interação em aula de leitura: a
atuação do aluno nas margens e no Marisa Grigoletto 29 1997
centro da construção da significação
A inter-relação oralidade-escrita no
Maria da Graça Costa Val 29 1997
aprendizado da redação
Concepção de língua falada nos
manuais de português de 1º e 2º graus: Luiz Antônio Marcuschi 30 1997
uma visão crítica
Interferências da oralidade na
Ingedore G. Villaça Koch 30 1997
aquisição da escrita

Fonte: o autor, 2019

Também foram coletados prefácios, apresentações e outros textos publicados nos


periódicos ou a eles anexados, os quais, a despeito de não apontarem aplicações ou avanços
teóricos, apresentam indícios e pistas historiográficas relevantes para a compreensão do clima
de opinião da época, afinal, em muitos deles constam informações sobre escolhas temáticas
dos periódicos e sua justificativa, além de veicularem dados relevantes no que tange à
organização dos grupos de pesquisa, pautas e ações.

4.3 PARÂMETROS E CATEGORIAS DE ANÁLISE

O modo de olhar para o corpus de pesquisa historiográfica deve estar em íntima


relação com os questionamentos de investigação e com os consequentes objetivos que
fundamentam o trabalho desenvolvido. Assim, antes de apresentar os parâmetros e as
categorias de análise, como forma de esclarecer com maior objetividade as escolhas
analíticas, julgo relevante retomar o objetivo central desta tese: apresentar uma narrativa
historiográfica sobre a emergência, o desenvolvimento e a consolidação da TSD no Brasil
entre os anos de 1970 e 1999. É preciso, pois, que esse objetivo central esteja sempre ecoando
123

em todas as etapas da pesquisa, de modo que as decisões, sobretudo aquelas de caráter


metodológico, estejam vinculadas ao propósito de sua resolução.
Como tenho defendido, compreendo que o estabelecimento da TSD pode ser analisado
em três momentos, os quais, interligados, costuram a história de deslocamentos característica
da TSD. Tanto a escolha das fontes que compõem a base documental apresentada no tópico
anterior quanto os parâmetros que orientam a análise desse material devem criar condições
para a costura da narrativa da TSD nos três momentos aqui considerados.
A concretização da narrativa anunciada no objetivo geral será processada em duas
dimensões complementares: (i) uma descrição dos textos e seus contornos no âmbito da
produção linguística brasileira e (ii) uma interpretação desses dados no interior do clima de
opinião em que foram concebidos. Assim, esse duplo encaminhamento, aliado às categorias
de análise que serão explicitadas, nos permite analisar:

a. o enquadramento e a categorização dos tipos de fontes historiográficas e sua relação com


a construção da TSD;
b. modelos teórico-metodológicos que atravessaram com maior ou menor frequência as
fontes, bem como as noções de língua, linguagem e seu ensino subjacentes a esses
empreendimentos ou que a partir deles são concebidas;
c. a atuação dos diversos agentes – lideranças intelectuais e lideranças organizacionais,
pesquisadores com diferentes potenciais de elite e idade profissionais –, bem como o tipo
de retórica que desenvolvem;
d. a relação constitutiva entre a emergência, o desenvolvimento e a consolidação da TSD e o
contexto sócio-histórico que circunscreve cada um desses momentos.

Para o tratamento da base documental, orientado pelos princípios de imanência,


contextualização e adequação (KOERNER, 1996), estabeleço as seguintes categorias e
subcategorias para investigação das fontes20:

a. Tipo de texto. A partir dessa categoria, analiso como se configuram as diferentes posições
das fontes no interior do circuito de reflexão da linguística brasileira. Classificarei, a
partir de Swiggers (2013), os textos em três tipos: (i) textos de ação, ou seja, fontes que
apresentam uma abordagem propositiva, em contraposição ou não a algum modelo

20
As categorias e seu modo de organização foram baseados na metodologia proposta por Altman (2004), com
adaptações necessárias ao tipo de historiografia por que optei.
124

legitimado pela comunidade científica; (ii) textos de diluição, entendidos como aqueles
que apresentam uma “aplicação” de modelos divulgados em textos propositivos
(geralmente, em textos de ação); e (iii) textos de reação, os quais apontam algum tipo de
avaliação crítica de textos que circulam na esfera acadêmica.

b. Natureza da reflexão sobre língua. A partir dessa categoria, identifico se o texto


apresenta uma abordagem mais voltada para proposições teóricas (língua como objeto
teórico) ou se apresenta proposições teórico-metodológicas aplicadas ao ensino (língua
como objeto teórico e ensinável). Nos textos do segundo tipo, observo, também, em que
eixo de ensino de língua portuguesa reside a reflexão neles empreendida – escrita,
oralidade, leitura ou conhecimentos linguísticos. É possível, todavia, que uma mesma
fonte promova discussões em torno de dois ou mais eixos.

c. Concepção de língua(gem) e referencial teórico. Guiado por essa categoria, identifico


que concepção(ões) de língua e linguagem subjaz(em) às fontes e que arcabouços
teóricos orientam as discussões problematizadas.

d. Autoria. Norteado por essa categoria, observo a posição acadêmica e o tipo de retórica
estabelecida pelos agentes que assinam as fontes. Tais diretrizes nos permitem observar a
relação entre idade profissional, potencial de elite e retórica assumida diante do debate
científico.

e. Relação com a atmosfera intelectual e social. A partir dessa categoria, analiso as


possíveis relações entre os saberes subjacentes às fontes e o contexto em que emergem.
Questões de ordem social, política e histórica, bem como a organização interna das
comunidades científicas no seio desses condicionantes externos serão aqui consideradas.

Para melhor ilustrar a disposição e relação das categorias, subcategorias de análise e


seus desdobramentos, apresento o quadro abaixo.
125

Quadro 16 – Distribuição das categorias de análise nos eixos de análise interna e externa

Textos de ação
Tipo de texto Textos de diluição
Textos de reação

Proposições teóricas

DIMENSÃO Natureza da
Escrita
reflexão sobre
INTERNA Proposições teórico- Oralidade
língua Eixo de ensino de
metodológicas língua portuguesa
Leitura
aplicadas ao ensino Conhecimentos
linguísticos
Concepção de
língua e
referencial teórico
Posição acadêmica
Autoria Retórica de continuidade
Tipo de retórica
Retórica de ruptura
DIMENSÃO Relação com o
EXTERNA contexto sócio-
histórico e
acadêmico

Fonte: o autor, 2019

Como se pode constatar, as categorias de análise estão situadas nos eixos das
dimensões interna e externa. Ou seja, os dispositivos de análise situam a compreensão das
fontes em sua imanência e, ao mesmo tempo, como resultado das condições externas à sua
constituição. Dessa forma, como já enunciado no capítulo 2 – Fundamentos da Historiografia
da Linguística –, não há separação estanque entre um olhar internalista e outro externalista: a
compreensão da TSD se dá, portanto, em seu caráter epistemológico, social e histórico, afinal,
o conhecimento se erige senão como consequência direta das condições de sua concepção.
126

5 A TRADIÇÃO SOCIODISCURSIVA NA PESQUISA LINGUÍSTICA


BRASILEIRA E IMPLICAÇÕES PARA A REFLEXÃO SOBRE ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA

Este capítulo constitui, efetivamente, o espaço dedicado à costura da narrativa


historiográfica acerca da tradição sociodiscursiva na pesquisa linguística brasileira. Aqui,
proponho olhar para as fontes como objetos históricos, fruto de um contexto específico de
produção e recepção do conhecimento sobre a linguagem. Esse trabalho segue as diretrizes
metodológicas estabelecidas no capítulo anterior.
Para melhor organizar a etapa executiva da pesquisa, optei por dividir a investigação
em três grandes blocos. Primeiramente, analiso as fontes publicadas entre 1970 e 1979,
visando observar, nos periódicos, de que modo emergem na linguística brasileira as primeiras
incursões sociodiscursivas; em seguida, no segundo bloco, me debruço sobre as fontes
publicadas entre 1980 e 1989, com o intuito de interpretar como se dá o amadurecimento da
TSD em seu processo de desenvolvimento; e, por fim, fechando a narrativa, analiso as fontes
publicadas nos quatro periódicos entre 1990 e 1999, com vistas à compreensão de como a
TSD se consolida como uma tradição na pesquisa linguística brasileira.
Nos três blocos, dedico espaço para a análise individual de cada um dos periódicos
indexados – ALFA: Revista de Linguística, Letras de Hoje, Cadernos de Estudos Linguísticos
e Trabalhos em Linguística Aplicada. Ao término, à guisa de sistematização, teço algumas
considerações gerais sobre a produção de cada uma das décadas, visando compreender as
ideias linguísticas e as escolhas retóricas dos agentes em consonância com a atmosfera
intelectual de cada período.
Para contextualizar as análises, convém apresentar, brevemente, algumas informações
sobre os quatro periódicos que figurarão nas seções subsequentes.

a. ALFA: Revista de Linguística21

O periódico ALFA: Revista de Linguística (doravante ALFA) nasce em 1962, em


tempos de mudanças no cenário acadêmico da linguística brasileira, que começa a se
“profissionalizar”. Torna-se público com o objetivo inicial, já anunciado em seu primeiro
Editorial, de divulgar os trabalhos dos professores do Departamento de Letras da Faculdade

21
O periódico ALFA pode ser acessado em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/.
127

de Filosofia, Ciência e Letras de Marília-SP, “o que não significa, todavia, que a revista se
circunscreva à Faculdade, estando, antes, aberta à colaboração de todos” 22.
Revista classificada como A1 na última avaliação Quais da CAPES (2013-2016), o
que comprova a excelência e credibilidade do conjunto dos trabalhos nela publicados, a ALFA
é um importante suporte em que são veiculados resultado de pesquisas linguísticas
desenvolvidas no Brasil e no exterior. Em atividade até hoje, o periódico edita três volumes
por ano (além de números especiais, quando do interesse editorial), nos quais são publicados
artigos, resenhas, retrospectivas e traduções.
Hoje, a ALFA está sob a responsabilidade editorial de Roseane de Andrade Berlinck
(UNESP) e traz em seu conselho pesquisadores de reconhecida expertise, muitos dos quais
compuseram importantes vozes para o desenvolvimento da TSD, como Ataliba de Castilho
(USP), Freda Indursky (UFRGS), João Wanderley Geraldi (UNICAMP), Luiz Carlos
Travaglia (UFU) Maria Helena de Moura Neves (UNESP), Sírio Possenti (UNICAMP), entre
outros.

b. Letras de Hoje23

Classificado como periódico Qualis B1 pela última avaliação da CAPES (2013-2016),


a revista Letras de Hoje vem contribuindo sobremaneira com a difusão do conhecimento
linguístico desde 1967. Desde sua fundação, sob a responsabilidade do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),
abrange as áreas de linguística, literatura, teoria da literatura e língua portuguesa. A
concepção e a realização de seu projeto inicial resultam de ação conjunta dos professores Elvo
Clemente, Plínio Cabral e Leonor Scliar Cabral, todos vinculados à PUCRS.
Com periodicidade trimestral, a Letras de Hoje é composta por duas seções, sendo
uma temática e outra livre. São aceitos para avaliação pelo corpo editorial artigos, resenhas e
textos literários (poemas e contos). Maria Eunice Moreira e Cláudio Primo Delanoy
respondem pela atual chefia editorial. O conselho editorial, por sua vez, é composto por
pesquisadores de várias instituições nacionais e internacionais, dentre os quais destaco, em
razão de sua contribuição para a realização da TSD, Sírio Possenti (UNICAMP) e Dominique
Maingueneau (Université Paris XII).

22
Fragmento retirado do Editorial de abertura do volume 1 da ALFA (1962). O documento não traz paginação
nem autoria. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/3128/2859, acesso em 10/08/2019.
23
A revista Letras de Hoje pode ser acessada em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale.
128

Consolidado como importante veículo de divulgação de pesquisas linguísticas em


âmbito nacional e internacional, a Letras de Hoje reúne em seu acervo fontes relevantes para
a costura da narrativa interpretativa sobre a TSD, uma vez que, além de tornar públicas
inúmeras pesquisas que orbitam das diretrizes epistemológicas que constituem essa tradição,
trata-se de um periódico cuja atividade perpassa todo o interstício de tempo aqui focalizado
(1970-1999).

c. Cadernos de Estudos Linguísticos 24

O periódico Cadernos de Estudos Linguísticos foi concebido para funcionar,


inicialmente, como instrumento cujo propósito era “proporcionar circulação rápida e pronta
discussão de resultados finais ou parciais de estudos e pesquisas desenvolvidos no
Departamento [de Linguística da UNICAMP]” (CYRINO, 1978, p. 1). Com o passar das
edições publicadas, pesquisadores de outros centros de pesquisas e ensino espalhados pelo
Brasil passaram também a contribuir com o conjunto de publicações, o que proporcionou ao
periódico maior poder de alcance e impacto no meio acadêmico.
Os primeiros volumes do Cadernos de Estudos Linguísticos foram publicados em
intervalos irregulares; hoje, porém, está fixada a periodicidade semestral. O periódico goza de
prestígio enquanto importante instrumento de divulgação científica de pesquisas linguísticas
produzidas no país, fato confirmado pela classificação Qualis A1, a mais alta, atribuída pela
última avaliação da CAPES (2013-2016).
Atualmente, a revista está sob a responsabilidade editorial de Ruth Lopes e Suzy
Lagazzy, ambas professoras da UNICAMP, e reúne um conselho editorial composto por
professores doutores com ampla experiência nas diversas áreas da linguística. Compõem o
conselho, para citar alguns nomes que de algum modo reverberaram os ecos da TSD, Ataliba
de Castilho, Beth Brait, Carlos Alberto Faraco, Eni Orlandi, João Wanderley Geraldi e Sírio
Possenti.

24
O periódico Cadernos de Estudos Linguísticos pode ser acessado em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel.
129

d. Trabalhos em Linguística Aplicada25

O periódico Trabalho em Linguística Aplicada (TLA), publicação vinculada ao


Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Unicamp, foi concebido na década de
1980, mais precisamente em 1983, momento em que a TSD, passada sua etapa de
emergência, começava a ganhar cada vez mais espaço instucional. Dentre as revistas aqui
selecionadas, a TLA é a que reúne o maior número de trabalhos que se detiveram a reflexões
acerca do ensino de língua portuguesa em suas diferentes dimensões.
Na última avaliação Qualis da CAPES (2013-2016), obteve o grau máximo de
excelência (A1), o que comprova sua relevância enquanto repositório de fontes importantes
para a compreensão de diferentes fragmentos da pesquisa linguística brasileira. Atualmente,
publica quadrimensalmente artigos e ensaios em português, inglês, francês e espanhol
inseridos em diferentes eixos temáticos, dentre os quais destaco: educação linguística;
antropologia linguística; políticas linguísticas; e discursos e políticas.
Viviane Veras, professora da Unicamp, assume, atualmente, o cargo de editora-chefe.
Avaliam trabalhos submetidos à TLA pesquisadores renomados nacional e
internacionalmente. Dentre os brasileiros em atuação, destaco Marcos Bagno Raquel Salek
Fiad, Roxane Rojo e Ana Maria Stahl Zilles.
Feitas essas considerações, passo às análises.

5.1 A EMERGÊNCIA DA TSD E EFEITOS NA REFLEXÃO SOBRE ENSINO DE


LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL (1970-1979)

5.1.1 ALFA: Revista de Linguística

Analiso nesta seção apenas três fontes. A baixa quantidade de textos que lidam com
questões atreladas às diretrizes da TSD traduz o momento da Linguística brasileira, que, na
década de 1970, em grande medida, ainda trazia vestígios de pesquisas dialetológicas e
filológicas, às quais se somavam trabalhos gerativistas. Todavia, a despeito dessa agenda
predominante, vestígios da TSD começavam a emergir em trabalhos publicados na ALFA, os
quais passo agora a analisar.
Segue, abaixo, a relação das fontes analisadas.
25
O periódico Trabalhos em Linguística Aplicada pode ser acessado em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/tla.
130

Quadro 17 – Informações das fontes analisadas do periódico ALFA: Revista de Linguística publicadas no
período de emergência da TSD

IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES


Título Autoria Referência
A significação linguística e
João Almeida Almeida (1972)
sua análise
Dos ruídos na
Suzi Franki Sperber Sperber (1974)
comunicação
Uma nota sobre redação
Rodolfo Ilari Ilari (1976)
escolar
Fonte: o autor, 2019.

Em duas das três fontes selecionadas da ALFA, nesse primeiro momento de


emergência da TSD, é possível observar fortes vestígios de concepções mais diretamente
ligadas à teoria da comunicação, sobretudo aos postulados de Roman Jakobson, cuja obra
Linguística e Comunicação (JAKOBSON, 1969) tinha sido traduzida para o português havia
pouco tempo. É o caso de Almeida (1972) e Sperber (1974), dois textos de diluição que
propõem aplicação direta das categorias e dos fundamentos da teoria da comunicação.
Almeida (1972), particularmente, busca em categorias fundamentais ao modelo de
Jakoson, como emissor, receptor e mensagem, apoio para pensar no processamento da
comunicação interpessoal. A despeito da inscrição no domínio da teoria da comunicacional,
na medida em que compreende a linguagem como instrumento de comunicação atravessado
pela previsibilidade do ato comunicativo, Almeida (1972) também reflete, brevemente, sobre
a organização da língua em sua constituição para além da frase: “em geral transmitimos as
nossas significações por meio de frases, as quais se organizam numa unidade mais ampla, que
se denomina habitualmente de discurso” (ALMEIDA, 1972, p. 289). Evidentemente, os
fundamentos arraigados à concepção de língua(gem) como instrumento de comunicação (por
exemplo: “transmitimos nossas significações”) não podem ser desconsiderados numa análise
mais atenta da fonte, porém, julgo relevante pontuar o destaque atribuído ao discurso como
unidade que ultrapassa o nível frasal, ainda que o autor não o tome em seu caráter sócio-
histórico.
Sperber (1974), de modo análogo, também diluindo as categorias fundamentais que
arquitetam o esquema comunicacional de Jakobson, visa refletir acerca da interferência dos
ruídos no processo de comunicação intermediada pela escrita. A menção a ruídos da
comunicação ressalta sua inscrição no domínio da teoria da comunicação bem como,
consequentemente, sua identificação com a concepção de língua(gem) como instrumento de
comunicação. Nesse domínio, aponta Sperber (1974):
131

É certo que o contato com o receptor só se estabelece se ele, receptor, estiver na


mente do emissor, quando escreve. Do mesmo modo, a linguagem deverá estar
versada em um código conhecido; este código não é que deva ser obrigatoriamente
conhecido pelo receptor, mas deve dar-se a conhecer, através do próprio texto, ao
receptor (p. 288).

Ressalta-se a relação estabelecida entre os dois agentes da comunicação durante o


processo de produção de textos escritos, os quais são codificados por um sistema
compartilhado entre os pares. Embora sejam destacados os indivíduos que “jogam” com a
linguagem e constroem textos (cujos sentidos devem ser decodificados) nos atos de
comunicação, não se estabelece, nessa “interação”, a propriedade da interlocução e da
alteridade.
É pertinente que compreendamos os apontamentos de Almeida (1972) e Sperber
(1974) inseridos no contexto institucional e social que os cerca. Desse modo, olhar para o
clima de opinião da primeira metade da década de 1970 é fundamental e nos permite
compreender que os trabalhos de ambos os autores – vinculados ao modelo da teoria da
comunicação e, por consequência, à concepção de língua como perfeito instrumento de
comunicação – atendem a demandas e discussões postas na ordem do dia nos primeiros anos
dessa década, as quais se estendem também à escola: é nessa época, marcada pelo regime de
governo militar, que se busca e valoriza o (suposto) progresso, a produtividade tecnicista em
todos os setores da atividade humana, o aperfeiçoamento da comunicação com vistas ao
avanço do homem em suas práticas cotidianas e de trabalho. Nesse cenário, a teoria da
comunicação parecia oferecer ferramentas adequadas para a compreensão do funcionamento
previsível da comunicação humana, conhecimento imprescindível ao aperfeiçoamento da
eficácia comunicativa e condição direta para o progresso da nação.
Ainda que a concepção de linguagem como instrumento de comunicação não esteja
completamente alinhada às diretrizes da TSD, julgo relevante olhar para trabalhos que partem
dessa perspectiva nos anos de 1970, período de emergência dessa tradição, devido à discussão
que levantam em relação a fatores externos à langue de Saussure e à competence de
Chomsky. Ou seja, embora o esquema comunicacional de Jakobson se limite ao contexto
imediato e conceda papel passivo ao receptor, o olhar que lança à comunicação humana em
funcionamento, escapando dos limites do sistema de signos ou da competência linguística,
não deve ser ignorado num contexto de emergência da TSD, dada a sua tentativa de pensar na
língua para além das dos arranjos linguísticos. Lembremos que, nesse momento, a TSD está
132

ainda tomando forma, ou seja, não há a organização nítida de um grupo de especialidade


coeso e bem articulado, com pautas e agenda de trabalho bem definidas.
Seguindo outro caminho, e aproximando-se mais diretamente do núcleo
epistemológico da TSD, Rodolfo Ilari, em seu texto de 1976, apresenta algumas proposições
teórico-metodológicas aplicadas ao ensino, contemplando, nesse escopo, o eixo de escrita.
Concebendo a língua como processo de interação/interlocução, de modo distinto do que se
pôde observar em Almeida (1972) e Sperber (1974), Ilari (1976) apresenta um texto de
diluição em que são abordados fundamentos da linguística textual aliados a uma contundente
crítica ao ensino de produção textual (à época, consensualmente, ainda denominado redação)
cujas metodologias promovem uma um trabalho pedagógico que se assemelha a um acerto de
contas, por parte do aluno, sobre pontos gramaticais e de ortografia (ILARI, 1976).
A despeito de compartilhar do mesmo espaço de tempo dos autores das duas fontes
acima mencionadas, Rodolfo Ilari fez (e ainda faz) parte do Instituto de Estudos da
Linguagem (IEL) da UNICAMP, grupo que pode ser considerado, sem qualquer exagero, um
dos primeiros e mais sólidos pilares institucionais da TSD no Brasil. Compuseram o grupo, a
partir da década de 1970, além do próprio Rodolfo Ilari, nomes como Ângela Kleiman,
Ataliba de Castilho, Haquira Osakabe, Maurizzio Gnerre e Carlos Franchi, linguistas que
contribuíram de modo expressivo para a emergência da TSD no cenário intelectual brasileiro.
Nesse sentido, pode-se dizer que a atmosfera intelectual em que Ilari desenvolveu seu
trabalho, diante das evidências de formação embrionária de um grupo de especialidade em
torno da TSD no IEL, conduziu-o, naturalmente, ao tratamento dos fatos de linguagem (e seu
ensino) numa perspectiva interacional.
Pode-se dizer, então, que Ilari (1976) soma voz ao discurso de recusa às metodologias
tradicionais de ensino dos conhecimentos linguísticos em voga à época (e, em alguma medida,
presentes ainda hoje). O ponto central da crítica, defendida tanto por Ilari nesse texto como
por outros linguistas que contribuíram com a construção do embrião da TSD ao longo da
década de 1970, reside na constatação da ineficácia do ensino de língua voltado à
identificação de categorias linguísticas em textos isolados de seu contexto de comunicação. A
esse respeito, aponta Ilari (1976): “dedica-se parte preponderante das aulas de gramática à
assimilação de uma nomenclatura gramatical cuja funcionalidade é linguisticamente
discutível, e que, aliás, não encontra aplicação imediata fora dos exercícios de análise” (p.
81).
133

A alternativa proposta por Ilari (1976), então, como forma de aliar o estudo dos
conhecimentos linguísticos à prática de redação, apoia-se, particularmente, nos fundamentos
da linguística textual, empreendimento que, exportado da Europa, começara a circular nos
centros universitários brasileiros no eixo Sul-Sudeste, ainda timidamente, a partir da segunda
metade da década de 1970 (cf. KOCH, 1999). A inscrição no domínio da linguística textual
para pensar no ensino da redação/produção de texto pode ser observada na passagem que
segue: “a perspectiva em que se deve pensar a redação escolar é a de uma linha de
investigação linguística cujas versões modernas tem sido às vezes chamadas „teoria do texto‟
ou „teoria do discurso‟” (ILARI, 1976, p. 84).
É conveniente tomar nota sobre a menção feita às teorias do texto e do discurso, as
quais, pelo modo como são trazidas no argumento do autor, parecem constituir, juntas, um
mesmo domínio conceitual. Apesar de os estudos discursivos orientados pela análise do
discurso francesa já terem encontrado lugar de circulação na UNICAMP na segunda metade
da década de 1970, liderados, principalmente, por Eni Orlandi (cf. ORLANDI, 1978a, 1978b
e 1979), a não distinção entre teoria do texto e teoria do discurso (indistinção, aliás, replicada
muitas vezes em outros trabalhos) indica pistas relevantes que devem aqui ser consideradas. O
objeto texto, nos moldes da mencionada teoria do texto, não se limita às estruturas linguísticas
em sua autossuficiência, mas, para além delas, relaciona-se às condições externas, as quais
abarcam o contexto interacional e as intenções comunicativas dos partícipes da interação.
Disso resulta a menção, além de texto, ao discurso, fenômeno que se materializa, por assim
dizer, no texto, entrelaçado ao domínio linguístico-frasal, constituindo-o, como se pode
observar pela passagem que segue:

É sobretudo como decorrência dos interlocutores, de suas posições sociais, do papel


respectivo que exercem na situação de fala (...) que o texto representa uma particular
forma de interação. Esta forma de interação se traduz por sua vez na escolha de um
registro, com realizações típicas em todos os níveis estruturais de análise, desde a
fonologia até a sintaxe e a disposição das sentenças. (ILARI, 1976, p. 88)

A proposta metodológica defendida por Ilari (1976), que compreende a produção


textual e a análise da língua em sua relação com elementos da exterioridade, não raro era
interpretada erroneamente como discurso antigramática. Toda a década de 1970, afinal, a
despeito do cenário de emergência da TSD que já se anunciava, ainda marca expressiva
produção de pesquisas subscritas na tradição formalista – estruturalismo e gerativismo
constituíam grande parcela da pesquisa linguística brasileira à época. Nas discussões voltadas
ao ensino de língua portuguesa, devido à legitimação de que gozava a gramática tradicional
134

como instrumento pedagógico, reflexões como as de Ilari (1976) eram pouco frequentes nesse
período.

5.1.2 Letras de hoje

Este primeiro bloco de fontes do periódico Letras de hoje apresenta um relevante


demonstrativo da pluralidade de perspectivas que de alguma forma se aproximam das
diretrizes da TSD. A compreensão do modo como se desenvolvem e se articulam essas
perspectivas nos auxilia a melhor entender como se desenvolve o período de emergência da
TSD nessa revista científica ao longo da década de 1970.
Segue, abaixo, a relação das fontes aqui analisadas. Como na ALFA, figuram nesta
seção apenas três textos.

Quadro 18 – Informações das fontes analisadas do periódico Letras de Hoje publicadas no período de
emergência da TSD

IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES


Título Autoria Referência
A redação no curso médio José Fernando de L. Miranda Miranda (1971)
A linguagem de propaganda
aplicada ao ensino de língua Vera Regina Araújo de Pereira Pereira (1976)
materna
A língua portuguesa no Brasil Stella Maris Bortoni Bortoni (1978)
Fonte: o autor, 2019

Não nos causa estranheza constatar, aqui, a existência de textos fundamentados pela
teoria da comunicação, fato também observado na análise dos textos da ALFA, tendo em vista
o clima de opinião da década de 1970, também conhecida, no campo das linguagens, como a
década da Comunicação (MIRANDA, 1971). Miranda (1971) e Pereira (1976), nesse sentido,
são exemplos de textos de diluição que apresentam uma aplicação prática dos fundamentos da
teoria da comunicação, com apoio nos preceitos basilares, principalmente, de Roman
Jakobson.
Miranda (1971), situado no início da primeira metade da década de 1970, portanto
mais distante, temporalmente, das discussões em torno da linguagem como interação,
sustenta toda a reflexão sobre a natureza da linguagem humana a partir da concepção de
língua enquanto instrumento de comunicação. Fundamentado por esse espaço conceitual, que
135

à época, nas palavras do autor, estava na moda, apresenta algumas reflexões teóricas e
algumas sugestões práticas para o ensino da produção de textos (redação).
A concepção de língua e linguagem como instrumento de comunicação é reforçada
pela tomada de posição acerca da relação entre o sistema linguístico abstrato e sua realização
individual no ato comunicativo, reflexão que interage diretamente com a abordagem
estruturalista de Saussure, para quem língua e fala são concebidas pelo ponto de vista da
dicotomia: “na Comunicação, o codificador usa um sistema conhecido, a língua nativa, mas
recria dando-lhe um tratamento próprio a que denominamos estilo” (MIRANDA, 1971, p.
75).
A despeito da indubitável orientação comunicacional, reforçada, inclusive, pelo uso
das categorias próprias do esquema comunicacional de Jakobson, Miranda (1971) traz alguma
alusão ao processo de alteridade que constitui a comunicação interpessoal: “todos os seres
humanos sempre estão vivendo em processo de comunicação, mas quem apreende não deve
ser apenas um recebedor amorfo, um ouvinte desatento, um assistente enfastiado. Ao
contrário, deve manter um diálogo vivo” (MIRANDA, 1971, p. 74). Naturalmente, de modo
geral, essa posição isolada, diante do conjunto das proposições de Miranda (1971), não lhe
garante inscrição no programa sociocultural de investigação; todavia, a menção, ainda que
sem aprofundamento ou aplicação prática direta, merece destaque nesta interpretação, tendo
em vista sua interlocução com diretrizes da TSD.
Para Miranda (1971), uma vez que a linguagem humana se fundamenta senão pela
comunicação, o ensino de “redação”, ou, em termos mais abrangentes, da produção de textos
escritos, deve “visar à Compreensão e Expressão” (p. 71). Por essa orientação, o autor aponta
algumas sugestões pedagógicas que se limitam a atividades de identificação dos elementos da
comunicação em textos verbais e não verbais. Por esse caminho, para Miranda (1971),
“alcançaremos o primeiro degrau para o planejamento das redações” (p. 78).
Influenciada pelo mesmo clima de opinião da década da Comunicação (MIRANDA,
1971), Pereira (1976) também apresenta um texto de diluição com proposições teórico-
metodológicas aplicadas ao ensino, enfatizando o eixo dos conhecimentos linguísticos.
Pereira (1976) discute sobre o potencial pedagógico do gênero textual propaganda.
Para melhor compreender a proposta de trabalho com o texto publicitário na década de 1970,
convém destacar que nesse período proposições didático-pedagógicas e a produção de
material didático (livros, apostilas e outros materiais destinados ao uso escolar) estavam, em
grande medida, alinhadas a um amplo projeto que buscava levar às aulas de Comunicação e
136

Expressão uma gama variada de linguagens. Assim, nessa década, no espaço escolar, se
juntam ao tradicional texto literário gêneros fundamentalmente multimodais, cuja organização
se constrói pelo entrecruzamento de diferentes semioses, como os quadrinhos, a charge, os
cartazes de todo tipo e, como é o caso da proposta de Pereira (1976), a propaganda (ou
“anúncio publicitário”). A ideia em voga na década de 1970 é que esses textos

possam contribuir para a absorção de teorias da comunicação que influenciam a


produção do conhecimento linguístico e dos livros didáticos. Do mesmo modo, é
como se as cores e formas rompessem o espaço em branco da folha para anunciar a
existência de outros códigos de comunicação e novas formas de sociabilidade no
interior da escola (BELMIRO, 2000, p. 19).

Pereira (1976) se posiciona teoricamente a partir de crítica e recusa direta à concepção


de língua como expressão do pensamento, posição atrelada ao programa de correspondência.
O enfrentamento do psicologismo linguístico resulta na tomada de posição sobre o objeto
língua, que é assim definido: “Língua é comunicação: é através da língua que o homem pode
transmitir o maior número de mensagens, expressando seus sentimentos, suas experiências,
seus pensamentos, atuando no grupo em que vive” (PEREIRA, 1976, p. 73).
Respaldada pela proposta de análise da comunicação interpessoal defendida por Karl
Bühler e reformulada por Jakobson, Pereira (1976) define detalhadamente as seis funções da
linguagem – referencial, emotiva, conativa, fática, metalinguística e poética – e, a partir dessa
explanação, justifica a relevância de cada um dos elementos que compõem o evento
comunicativo. Sugere, ainda, a aplicação direta, nas aulas de língua portuguesa, dos
fundamentos que sustentam a concepção de língua enquanto instrumento de comunicação, o
que corresponde a uma das agendas de discussão que caracterizam a essência das pesquisas
linguísticas brasileiras da década de 1970.
Com vistas à eficácia comunicativa, a partir da descrição de como se constituem as
diferentes funções da linguagem, nos moldes da teoria de Jakobson (1969), a análise de textos
em sua natureza fundamentalmente instrumental possibilita ao aluno compreender que
a língua, dentro do ato comunicacional, possui funções diversas, segundo o elemento
do processo de comunicação para o qual se volta, porque acreditamos que tal
conhecimento poderia trazer um incremento de sua capacidade comunicativa
(PEREIRA, 1976, p. 80).

Stella Maris Bortoni26 assume no Brasil papel fundamental no processo de divulgação


da perspectiva teórica da sociolinguística de William Labov. Além disso, a pesquisadora

26
Em textos posteriores, a autora passa a assumir o sobrenome Bortoni-Ricardo.
137

também é responsável pela construção e divulgação de teses que dariam corpo ao que hoje se
convencionou chamar de sociolinguística educacional. Desse modo, em virtude de sua
contribuição para a reflexão, no interior da linguística brasileira, sobre a condição mutável das
línguas naturais, bem como pelo seu empenho em combater as desigualdades e o preconceito
a partir do ensino de língua materna alinhado a práticas pedagógicas menos conservadoras e
mais abertas à heterogeneidade, fica evidente o papel de destaque assumido por Stella Maris
Bortoni no processo de difusão de diretrizes da TSD na pesquisa linguística brasileira.
Devido à apropriação dos fundamentos centrais da sociolinguística laboviana, Bortoni
(1978) assume o caráter de texto de diluição, apresentando, sobretudo, proposições teóricas
que encontram lugar de identificação nesse campo disciplinar. Entretanto, não se limita à
mera replicação do modelo sociolinguístico de Labov, na medida em que desenvolve uma
abrangente análise das características fundamentais do português brasileiro, além de
relacionar essa análise a apontamentos para o ensino de língua portuguesa no contexto
brasileiro da década de 1970, período em que a desigualdade social passa a se mostrar mais
evidente nas escolas brasileiras. Por esse motivo, trata-se, também, de um texto de ação cujas
proposições serão à frente, nas etapas de desenvolvimento e consolidação da TSD, aplicadas a
diversas pesquisas análogas (cf. MATTOS & SILVA, 1989; LUCCHESI, 1994).
O artigo de Bortoni (1978) foi publicado no final da década de 1970, período em que a
sociolinguística já circulava em importantes centros de pesquisa e ensino brasileiros, como a
UnB, Unicamp e a USP, por exemplo. Constituindo voz importante no coro de divulgação da
sociolinguística no Brasil, afastando-se da tradição formalista, Bortoni (1978) toma a língua
em sua constituição social e histórica: “[a língua é] uma instituição social e, portanto, ao se
proceder ao seu estudo é indispensável que se levem em conta variáveis extralinguísticas”
(BORTONI, 1978, p. 71). Assim sendo, ao encarar a língua em sua natureza mutável, situa
sua reflexão nos limites do programa sociocultural de investigação linguística.
Ao reconhecer a característica plural da sociedade brasileira, cindida entre diferentes
grupos sociais, uns mais, outros menos socialmente privilegiados e prestigiados, Bortoni
(1978) entende que o português brasileiro não pode ser compreendido pela visão dicotômica
que separa falares certos dos errados. Após breve consideração sobre como se organizam os
grupos sociais e como seus membros interpretam a língua que falam, conclui que o português
brasileiro deve ser analisado a partir de um continuum cujos extremos assim se configuram:
de um lado, um eixo mais urbano; de outro, um eixo mais rural. Os falares característicos do
eixo mais urbano, para Bortoni (1978), por questões históricas, resguardam alguns traços
138

mais próximos do português europeu, além de representarem, em grande medida, a expressão


verbal de camadas que gozam de maior prestígio, motivo pelo qual, entre outros fatores, são
costumeiramente encarados como espelho do bem falar.
A reflexão sobre o continuum urbano – rural mais à frente será desenvolvido com
maior detalhamento e profundidade pela própria linguista (BORTONI-RICARDO, 2002 e
2004)27, e servirá, além disso, como ponto referencial para diversos trabalhos cujo propósito
recai na análise da a organização do português brasileiro em diferentes circunstâncias
contextuais e eventos comunicativos (cf. BAGNO, 2007).
No contexto brasileiro da época, marcado pelo intenso fluxo migratório do campo para
os centros urbanos, Bortoni (1978) aponta a presença da discriminação social pela linguagem
analisando como as camadas mais rurais enxergam seu próprio falar e como as camadas mais
urbanas interpretam essas manifestações linguísticas advindas, em grande escala, do campo.
Assim percebe a questão:
Ao se radicar na zona urbana, o indivíduo egresso de zonas rurais ou semi-rurais
percebe mais facilmente a estigmatização que recebem os itens lexicais e expressões
mais salientes de sua fala regional. Por isso, tende a substituí-las por sinônimos de
cunho urbano (BORTONI, 1978, p. 73).

Ao reconhecer a heterogeneidade linguística que marca o português brasileiro, cuja


pluralidade resulta da diversidade social, cultural e econômica do país, Bortoni (1978) propõe
um olhar para a língua como uma realidade tripartida, que se subdivide em: vernáculos,
língua urbana e língua oficial. A reflexão em torno dos diferentes modos de organização
linguística do português, os quais se dividem em realizações empíricas e modelo abstrato,
retoma, de algum modo, as proposições de Coseriu (1979 [1950]) e contribuem com a
discussão em torno das normas linguísticas do português que à frente se desenvolveria de
modo mais sistemático (cf. LUCCHESI, 2002; FARACO, 2002 e 2008; MATTOS E SILVA,
2004; BAGNO, 2007)
Os vernáculos reúnem as variedades situadas no eixo rural do continuum. Esses falares
sofreram, possivelmente, maior influência da língua geral tupi do litoral brasileiro até meados
do século XVII e do pidgin utilizado na comunicação em comunidades de escravos 28. Já a
língua urbana, por sua vez, inclui

27
Além do eixo mais urbano – mais rural, Bortoni-Ricardo (2002, 2004) propõe outros eixos, na perspectiva de
continuum, para melhor compreender como se configura o português brasileiro: mais monitorado – menos
monitorado; oralidade – letramento.
28
Amadeu Amaral já apresentara, em 1920, discussões relevantes acerca dos vernáculos, em obra cujo propósito
era descrever as especificidades do dialeto caipira (AMARAL, 1920).
139

as diversas modalidades estratificadas da língua, usadas nas zonas urbanas, na fala e


na escrita. Tais modalidades que dependem da classe social, da profissão, da zona de
residência e, principalmente, do grau de escolaridade dos indivíduos, vão desde as
variedades populares, que se aproximam muito dos vernáculos, até a variedade culta,
empregada pelas pessoas de nível alto de escolarização e pelos meios de
comunicação de massa (...) (BORTONI, 1978, p. 75).

Como aponta a passagem acima, vê-se que a língua urbana não se restringe ao falar
que goza de prestígio social, afinal, os centros urbanos, sobretudo após reincidência do fluxo
migratório do campo para a cidade, são compostos por comunidades heterogêneas. Desse
modo, fazem parte da língua urbana tanto as normas populares como a norma culta (ou
norma de prestígio). Convém destacar que a reflexão de Bortoni acerca da pluralidade
linguística do português brasileiro e, mais especificamente, das características da norma culta,
está situada na mesma década em que foram iniciados os trabalhos do projeto NURC, cujos
esforços para a descrição da norma culta brasileira são de fundamental importância para o
momento de emergência da TSD. Não é forçoso, portanto, interpretar o trabalho de Stella
Maris Bortoni como peça e ao mesmo tempo consequência do embrião de um grupo de
especialidade que estava àquela época se formando no interior da linguística brasileira.
A língua oficial consiste em um modelo abstrato cuja reprodução não se vê senão nos
compêndios normativos da gramática tradicional. Não se trata, como no caso da língua
urbana, de usos reais empiricamente observáveis em comunicações interpessoais. Trata-se,
pois, de uma diretriz linguística que espelha aquilo que se convencionou chamar de língua
correta. Assim descreve Bortoni (1978) a língua oficial:
a descrita na gramática normativa. Do fato de se basear em escritores não
contemporâneos resulta o seu distanciamento, em muitos pontos, da realidade
linguística oral e literária do Brasil. Detentora, porém, do beneplácito do sistema,
que a considera correta em detrimento de todas as outras variedades, impõe-se o seu
emprego em documentos oficiais formais, bem como o seu estudo na escola, onde o
professor a ensina, embora ele próprio não a use em sua fala coloquial (BORTONI,
1978, p. 75).

A concepção de língua oficial que Bortoni assume se assemelha, com algumas


ressalvas, à noção de norma-padrão amplamente difundida nos dias de hoje, uma vez que
norma, nesse domínio, “é o que é posto como normativo, preceituado, prescrito, exigido,
imposto, inculcado. Por isso, é também referência usada para sustentar juízos sociais de
correção ou incorreção linguística” (FARACO & ZILLES, 2017, p. 177). Dessa forma, a
discussão empreendida por Stella Maris Bortoni sobre as normas linguísticas e sobre a
constituição do português brasileiro, já na década de 1970, contribui sobremaneira com a
emergência de elementos da TSD a ser desenvolvida e consolidada nas décadas subsequentes,
como é possível notar. Ainda que pesquisas posteriores avancem em algumas questões
140

discutidas por Bortoni (como a noção de língua oficial como variante ou a ideia questionável
de “fala coloquial”), é inegável que aqui, no estágio de emergência da TSD, encontram algum
lugar de sustentação conceitual.
Por fim, convém destacar que, ao tratar dos traços distintivos das diferentes variedades
que compõem a língua portuguesa, Bortoni (1978) defende a legitimidade, estrutural e
funcional, de toda e qualquer norma linguística, seja ela culta ou popular. Ao advogar pelo
reconhecimento da lógica gramatical e comunicacional das normas estigmatizadas (sobretudo
aquelas que, tomando suas palavras, se situam na extremidade do eixo rural), contribui com o
combate ao mito da língua homogênea, pronta e acabada, num contexto conflituoso em que
prevalecia o discurso de manutenção e exaltação da “língua pátria” (cujo referente maior era a
língua portuguesa meticulosamente retirada dos cânones literários). A autora sintetiza a
questão na passagem que segue:

no Brasil, são socialmente estigmatizados os vernáculos e as variedades populares


da língua urbana. Nunca é supérfluo reafirmar-se, porém, que, do ponto de vista
linguístico, essas variedades não são estruturalmente inferiores à norma padrão. O
conceito de „erro gramatical‟ é tão somente uma questão de diferença entre dois
dialetos (BORTONI, 1978, p. 76-77).

Ao olharmos para o debate em torno das normas linguísticas e ensino de língua


portuguesa que se desdobra nas próximas etapas da TSD entre as décadas de 1980 e 1990,
sobretudo no que diz respeito às ações de combate ao preconceito linguístico, percebemos que
aqui, em 1978, a discussão já começa a ganhar corpo e substância. Não por acaso, ao fechar o
artigo ora analisado, Bortoni proclama: “é tempo de se conferir prioridade ao estudo da
„linguagem das minorias‟” (BORTONI, 1978, p. 77), e convoca a comunidade de linguistas e
educadores para o cumprimento de uma agenda que se coloca naquele momento: “Abre-se,
pois, na área da educação e nos demais setores das relações sociais, um imenso campo de
trabalho para a linguística nacional” (BORTONI, 1978, p. 77). A história da linguística
brasileira nos comprova, pois, que a agenda foi razoavelmente contemplada, tendo em vista os
inúmeros trabalhos que, à frente, questionaram as arbitrariedades e as injustiças presentes no
tratamento conservador dos fatos de linguagem.

5.1.3 Cadernos de Estudos Linguísticos

Considerando que o primeiro volume do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos


foi publicado já no final da década de 1970 (o segundo volume foi disponibilizado apenas na
141

década seguinte, em 1981), será analisado nesta seção apenas o texto de Ataliba de Castilho,
publicado em 1978, como representativo da década da emergência da TSD no periódico em
questão.
Seguem, abaixo, as informações sobre a fonte em questão.

Quadro 19 – Informações da fonte analisada do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos publicada no


período de emergência da TSD
IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES
Título Autoria Referência
Variação dialetal e ensino
Ataliba Teixeira de Castilho Castilho (1978)
institucionalizado da língua portuguesa
Fonte: o autor, 2019

Ataliba de Castilho é, sem dúvida, figura central no processo de emergência da TSD


na pesquisa linguística brasileira, devido, entre outras ações, a seu trabalho enquanto
liderança organizacional, a julgar pelo conjunto de sua produção científica e, sobretudo, pelo
seu trabalho no projeto Norma Urbana Culta (NURC).
É inegável a contribuição do NURC no que tange à abertura de caminhos para
importantes discussões, no Brasil, acerca da variabilidade linguística, da configuração das
diferentes normas e, por consequência direta, das características estruturais e funcionais do
português brasileiro. Castilho (1978) (e outros textos que o referenciam), destarte, consiste
numa fonte que não pode ser compreendida senão como fruto de ações exitosas concebidas no
interior da agenda de trabalhos empreendidos no âmbito do projeto NURC.
Outro ponto a ser destacado, antes de adentrarmos nos aspectos mais internos da fonte,
é que o artigo em questão consiste em uma versão de trabalho apresentado pelo autor um ano
antes, em 1977, por ocasião da XXIX Reunião Anual da SPBC, no Simpósio Língua
Portuguesa e sociedade brasileira. As reflexões apresentadas no texto, portanto, são
consequência direta dos primeiros resultados dos trabalhos de Ataliba de Castilho enquanto
liderança do NURC, que começara a funcionar havia poucos anos.
O texto tem caráter propositivo e combativo, na medida em que confronta diretamente
os modelos constituídos pelos programas descritivista e de correspondência que, à época,
configuravam uma tradição de pesquisa hegemônica que não privilegiava os aspectos sociais,
históricos e culturais na reflexão linguística. Ao mesmo tempo, deve também ser encarado em
sua caracterização como texto de diluição, uma vez que se apoia em muitos dos fundamentos
142

da sociolinguística, que começara a circular nos centros universitários brasileiros naquela


época (cf. FONSECA & NEVES, 1974).
Fundamentalmente, o artigo de Castilho (1978) é dividido em três partes: “o problema
da variação linguística, o conceito de norma e o tratamento que o ensino institucionalizado da
língua portuguesa tem dado à variação linguística” (CASTILHO, 1978, p. 13). Pode-se dizer,
ainda, que, para além desses três eixos anunciados, há também um quarto fundamento
trabalhado, o qual lhe confere o caráter propositivo: alternativas teoricamente fundamentadas
para o ensino da norma culta.
A concepção de língua como objeto social e histórico, fundamento basilar do
programa sociocultural, ecoa fortemente no trabalho de Castilho (1978), como se vê na
passagem que segue: “as línguas variam em razão de condicionamentos situacionais que
afetam os falantes, tais como o momento histórico em que se acham, o espaço geográfico,
social e temático em que se movem” (CASTILHO, 1978, p. 13).
Ao compreender a interferência externa no modo como o homem se comunica, o autor
aponta lacunas no modelo comunicacional de Jakobson, perspectiva amplamente
desenvolvida e divulgada ao longo da década de 1970 (cf. MIRANDA, 1971; ALMEIDA,
1972; SPERBER, 1974; PEREIRA, 1976), advogando por uma mudança de enfoque “que
poderá humanizar a Linguística” (CASTILHO, 1978).
Diante disso, questiona qual seria, então, o papel do professor de língua portuguesa no
que tange à reflexão linguística em nível básico e ao ensino da norma de prestígio. Aponta o
autor:

Houve uma fase, infelizmente ainda em vigor em alguns ambientes, em que a


visão do fenômeno linguístico era bastante simplificadora. Dispunham em planos
diferentes os canais da comunicação, privilegiando-se a língua escrita como fonte do
padrão. Identificava-se determinada variante diacrônica ou geográfica como melhor
português. Valorizava-se o registro refletido e se desconsideravam as interferências
de uma variante em outra, tudo o que levava a uma visão rígida e preconceituosa da
linguagem (CASTILHO, 1978, p. 14, grifos meus).

É oportuno destacar algumas passagens da citação acima, as quais ilustram bem o


modo como Ataliba de Castilho se posiciona face à tradição hegemônica no que diz respeito à
concepção de língua e, mais particularmente, ao ensino da norma de prestígio. O linguista
confronta, pois, uma “visão do fenômeno linguístico bastante simplificadora”, que privilegia
exclusivamente a língua escrita como modelo imutável e algumas variantes como traços do
143

“melhor português”, culminando na constatação de que tal postura, sobretudo no contexto


escolar, fomenta o preconceito linguístico.
Vê-se que Castilho (1978), já na década de 1970, ao abordar questões centrais da TSD
– como a concepção de língua aberta à heterogeneidade e o combate ao preconceito
linguístico – prepara o terreno para o desenvolvimento de pesquisas teóricas e aplicadas ao
ensino que se multiplicariam a partir da década de 1980 no Brasil. Além disso, é relevante
salientar que o núcleo fundamental da reflexão em torno da sociolinguística educacional (ou,
mais recentemente, pedagogia da variação), perspectiva amplamente difundida e hoje
legitimada em diferentes espaços (BAGNO, 2007; ZILLES e FARACO, 2015) e presente
como orientação em documentos norteadores oficiais desde a década de 1990 (BRASIL,
1997), fundamenta toda a linha argumentativa de Castilho (1978), fato que confere à fonte um
lugar de importância em seu contexto.
Ciente das lacunas que caracterizam o ensino de língua portuguesa em nível básico
naquele momento (particularmente no que diz respeito à reflexão sobre variação linguística,
normas e discriminação), aponta o autor: “Resolver esse problema é o desafio lançado aos
linguistas” (CASTILHO, 1978, p. 18). E fecha o texto com um questionamento relevante para
pensarmos na figura de Ataliba de Castilho como importante articulador no contexto de
emergência da TSD, ciente de que mudanças, naquele momento, eram necessárias: “Que fará
o linguista brasileiro diante de tudo isso, no que resta da década de 70?” (CASTILHO, 1978,
p. 19).

5.1.4 Atando os nós: à guisa de sistematização

A análise de fontes historiográficas publicadas na década de 1970 indicia algumas


questões relevantes sobre o período de emergência da TSD na pesquisa linguística brasileira.
Em linhas gerais, constata-se, nesse período:

a. o baixo quantitativo de fontes a que subjazem ideias linguísticas atreladas às diretrizes da


TSD;
b. a frequente produção de trabalhos que buscam na teoria comunicacional fundamentos para
a compreensão da linguagem e, a reboque, de questões atreladas ao ensino de língua
portuguesa;
144

c. a predominância de textos de diluição em torno da TSD, cenário que de algum modo se


liga ao fato de a pesquisa sociodiscursiva, nesse período, configurar uma abordagem ainda
marginal;
d. a baixa articulação interna entre os (poucos) agentes que se propuseram a pensar em
questões sociodiscursivas para além do esquema comunicacional;
e. as primeiras incursões brasileiras na sociolinguística e na sociolinguística educacional;
f. críticas às inconsistências da gramática tradicional como instrumento de ensino de língua
portuguesa, pauta que se intensificará sobremaneira nas décadas seguintes.

5.2 O DESENVOLVIMENTO DA TSD E EFEITOS NA REFLEXÃO SOBRE ENSINO


DE LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL (1980-1989)

5.2.1 ALFA: Revista de Linguística

O conjunto de fontes selecionadas para análise da produção científica da ALFA na


década de 1980 indicia algumas questões relevantes sobre o desenvolvimento da TSD na
pesquisa linguística brasileira. Uma análise superficial dos títulos dos trabalhos selecionados
para análise nesta seção nos permite constatar um abandono da teoria comunicacional, que
cede espaço para estudos ligados à linguística de texto e, principalmente, à sociolinguística.
Esse deslocamento está atrelado às mudanças por que passava a linguística brasileira de então,
em decorrência da difusão dos estudos sobre o texto e a textualidade e da consolidação da
sociolinguística como teoria que poderia contribuir no combate contra as formas de
discriminação pela linguagem, pauta que se tornava cada vez mais frequente.
Segue, abaixo, a relação das fontes analisadas nesta seção.

Quadro 20 – Informações das fontes analisadas do periódico ALFA: Revista de Linguística publicadas no
período de desenvolvimento da TSD
IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES
Título Autoria Referência
Padrões linguísticos e
Roberto Gomes Camacho Camacho (1980)
estratificação social
Norma, ideologia e teoria da
Roberto Gomes Camacho Camacho (1981)
linguagem
A interferência de fatores
sociais na aquisição da Roberto Gomes Camacho Camacho (1982)
norma culta
Leonor Lopes Fávero
Discurso e referência Fávero e Koch (1984)
Ingedore G. Villaça Koch
O sistema escolar e o ensino Roberto Gomes Camacho Camacho (1985)
145

da língua portuguesa
Ensino do português: a
Regina Maria Pessoa Pessoa (1986)
formação do professor
Coesão e coerência textual
Claudete Moreno Ghiraldelo Ghiraldelo (1989)
em composições infantis
Língua natural: enfoque
Devino João Zambonim Zambonim (1989)
sociolinguístico
Fonte: o autor, 2019

É notável a expressiva contribuição de Roberto Gomes Camacho, liderança que,


sozinha, assinou metade dos trabalhos da ALFA aqui analisados. A intensa produção de
Camacho (1980, 1981, 1982, 1985), com a qual dialoga Zambonim (1989), ilustra a diluição
da teoria sociolinguística em trabalhos brasileiros que, partindo do modelo variacionista,
refletem sobre a heterogeneidade da língua e, direta ou indiretamente, ao negar o trabalho
pedagógico centrado na gramática tradicional, propõem alternativas para o ensino de
português. Então professor da UNESP, importante centro de pesquisa paulista no qual
ingressou em 1978, ano em que também obteve o título de mestre pela Unicamp, Roberto
Gomes Camacho se mostrou importante articulador da TSD, tendo em vista seu papel, mais
marcadamente a partir da década de 1980 (e se estendendo até os dias de hoje), na divulgação
de pesquisas que atestam a intrínseca relação entre a linguagem humana e a estrutura social.
Em seu trabalho de 1980, que sintetiza alguns dos resultados de sua pesquisa de
mestrado29, Camacho (1980) visa investigar o desempenho linguístico de adolescentes
inseridos em dois distintos estratos sociais. Para tanto, apoia-se no arcabouço teórico e
categorial da sociolinguística variacionista de William Labov e nas contribuições de Basil
Bernstein, assumindo, portanto, o caráter de texto de diluição. Nesse domínio epistemológico,
entende que a “investigação sociolinguística tem demonstrado que a língua reflete, de modo
irrefutável, uma refinada estratificação social na alternância de suas formas de uso” (p. 59-
60), bem como reconhece a influência das agências de socialização, como a família, a escola
e o trabalho, nos termos de Bernstein (1971), no desempenho linguístico dos indivíduos.
Situam-se no mesmo horizonte teórico, ainda que os objetivos sejam outros, os trabalhos de
Camacho publicados em 1981, 1982 e 1985.
Dando continuidade aos estudos sobre ensino de língua de natureza sociodiscursiva
emergentes na década de 1970, mais especificamente aqueles atinentes à sociolinguística
educacional, Camacho, ao reconhecer a frequente postura conservadora e beletrista da escola
brasileira, que “se preocupa exclusivamente com o ensino de uma gramática do tipo

29
Trabalho intitulado Duas fases na aquisição de padrões linguísticos por adolescentes, defendido em 1978, na
Unicamp (CAMACHO, 1978).
146

normativo” (CAMACHO, 1980, p. 60), se posiciona como defensor de uma educação


inclusiva e democrática que “1. tolere diferenças regionais; 2. apresente variação segundo as
circunstâncias do ato de comunicação verbal (estilística); 3. (...) não se sobreponha à
variedade do educando, mas a ela se acrescente” (CAMACHO, 1981, p. 29). Todavia, embora
tenha erguido a bandeira da sociolinguística educacional, em sintonia com essa perspectiva e
antecipando respostas a certas críticas que se tornariam frequentes nos anos seguintes,
compreende que a principal tarefa do ensino da língua materna pelo sistema escolar “consiste
a rigor na transmissão de uma forma padrão de linguagem, também denominada norma culta
ou de prestígio” (CAMACHO, 1982, p. 13). Não convém aqui me prolongar na discussão
sobre as implicações do uso do termo forma padrão de linguagem, tampouco, com o olhar do
pesquisador de hoje, julgar adequado ou inadequado essa modo de categorizar aquilo que se
tem chamado de norma-padrão, objeto linguístico que não se confunde com a norma culta ou
de prestígio, como tem discutido, por exemplo, Faraco (2008). É relevante para esta narrativa
compreender o que subjaz à afirmação de Camacho, para quem é dever da escola ensinar as
habilidades linguísticas com as quais os sujeitos estarão aptos ao exercício da cidadania, nos
diferentes espaços de interlocução social. Dessa forma, para o autor, uma educação linguística
transformadora permite que o estudante consiga, com autonomia, “eleger a variante que julgar
não mais correta ou menos, porém mais adequada ou menos à diversidade das circunstâncias
em que ocorre o processo de interação verbal” (CAMACHO, 1981, p. 29).
Convém destacar que, com maior ou menor profundidade, a discussão sobre norma
está presente nos quatro textos que Camacho assina nesta década da ALFA. Tanto em seu
artigo de 1981 como no de 1982, em que trata, respectivamente, do caráter ideológico das
normas e da interferência de fatores extralinguísticos na aquisição da norma culta, o autor se
reporta explicitamente aos trabalhos do NURC, projeto que, em suas palavras, “investiga,
com seriedade e profissionalismo, a variedade culta em cidades com mais de um milhão de
habitantes” (CAMACHO, 1981, p. 29). A menção (e o reconhecimento) às ações do NURC
reforça a importância do projeto, como tenho discutido, como parte constitutiva da história da
TSD no Brasil.
Em Camacho (1981), o autor entende que existem normas efetivamente praticadas por
grupos sociais detentores de certos bens culturais letrados – norma objetiva – e, no plano
ideal, um conjunto de regras fixadas nas gramáticas tradicionais, baseadas na escrita literária
de autores consagrados, que definem um padrão modelar, ainda que não utilizado pelos
falantes que advogam pela sua legitimidade, independentemente de classe social – norma
147

subjetiva. Diferentemente da norma subjetiva, a que subjaz a ideia arbitrária de certo e


errado, a norma objetiva “reconhece a existência de uma norma culta, mas a considera apenas
uma variedade dialetal a mais, em nenhum aspecto e sob quaisquer critérios, jamais superior
às demais variedades alternativas” (CAMACHO, 1981, p. 23).
De modo natural, a discussão sobre as formas de discriminação pela linguagem,
consequentes do modo como a sociedade em geral lida com os diferentes falares, influencia a
reflexão sobre ensino de língua materna, tendo em vista o papel decisivo da escola como
agência mediadora da construção de saberes, dentre eles o saber linguístico. Nessa esteira,
Camacho (1981, 1982, 1985) discute questões sobre o papel da educação linguística na
desconstrução de formas de discriminação enraizadas na cultura brasileira, como é o caso do
silencioso preconceito linguístico, pauta que começava a aparecer com maior frequência em
trabalhos publicados na década de 1980, tendo em vista a “crise na educação” que marca o
período. Em sintonia com os fundamentos da sociolinguística, Camacho (1980) critica o
ensino de língua ancorado à gramática tradicional e preso a uma ideologia dominante cujo
efeito opera no imaginário social um apagamento das formas de discriminação pela
linguagem:

A ideologia resume-se, portanto, num corpo explicativo (representações) e prático


de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma
sociedade dividida em classes uma explicação racional e coerente para as diferenças,
obscurecendo a própria existência delas (CAMACHO, 1981, p. 24).

Como alternativa, em seu texto de 1982, Camacho propõe que, entre outras questões, a
escola se comprometa com um ensino capaz de habilitar o aluno a compreender, com
criticidade e autonomia, os valores sociais atrelados à linguagem e à forma como eles são
construídos. Pouco tempo depois, no artigo publicado em 1985, em que traz parte das
reflexões empreendidas em sua tese de doutorado30, Camacho aprofunda as questões atinentes
ao ensino de língua portuguesa, analisando a relação entre o sistema educacional brasileiro e o
“insucesso escolar” frequentemente discutido por linguistas e educadores ao longo da década
de 1980 (cf. GERALDI, 1981 e 1984; ZILBERMAN, 1982; PÉCORA, 1983; ILARI, 1985;
SOARES, 1986; STAUB, 1987). Em linhas gerais, busca denunciar a contradição presente no
discurso do Estado, que, para o autor, tenta “sustentar a ilusão de que se dispõe no Brasil de
um sistema de ensino aberto e igual para todos” (CAMACHO, 1985, p. 1). No que tange à

30
Trabalho intitulado Conflito entre Norma e Diversidade Linguística no Ensino da Língua Portuguesa,
defendida em 1984, na UNESP (CAMACHO, 1984).
148

educação linguística, a agência que teria por função incluir, sem distinções, acaba segregando,
na medida em que

a linguagem exigida, especialmente nas aulas de língua portuguesa, corresponde a


um modelo próprio das classes dominantes e das categorias sociais a elas
vinculadas, sendo as demais variedades consideradas realizações imperfeitas que
cumpre reprimir. Essa modalidade prescritiva de ensino se apresenta, entretanto,
como uma linguagem neutra, um modelo ideal, que paira acima de toda diversidade,
assim como as demais formas simbólicas de inculcação desenvolvidas pelo sistema
educacional (CAMACHO, 1985, p. 4).

Como alternativa para lidar com esse problema latente que urge por mudança, o autor
propõe o trabalho com o modelo da diferença verbal (CAMACHO, 1985), herdado da
sociolinguística e da sociologia da linguagem, segundo o qual “diferenças de expressão
constituem, na realidade, regras variáveis inerentes ao sistema linguístico, com graus relativos
de prestígio social” (CAMACHO, 1985, p. 6), cabendo à escola adotar uma “estratégia
bidialetalista para a instrução da língua materna, pois o desenvolvimento da variedade padrão
não implica a eliminação do dialeto desprestigiado que o educando domina” (p. 6).
Ainda no interior dessa discussão acerca das raízes que justificariam os problemas que
orbitam em torno das aulas de português, Pessoa (1986) também apresenta contribuições
relevantes ao debate; todavia, concentra seus esforços em outra instância, até então não
debatida pelas fontes aqui analisadas: a formação do professor. Para a autora – professora
então vinculada ao Departamento de Educação da UNIFESP –, a entrada de teorias
linguísticas contemporâneas (que dão forma à TSD) nos cursos de Letras do país não garante,
isoladamente, a promoção de reais transformações na prática dos professores egressos desses
cursos, que continuam, em muitos casos, presos à gramática tradicional e a seus pressupostos
pedagógicos. É preciso, defende Pessoa (1986), a integração entre estudo descritivo da
linguagem e estudo de práticas pedagógicas. Trata-se, portanto, de uma mudança curricular
necessária nos cursos de formação de professores de português: “como discutir
comportamentos didáticos estreitamente relacionados a uma nova concepção de linguagem
com alunos que recebem apenas informações de teorias linguísticas?” (PESSOA, 1986, p. 13).
No interior dessa discussão, Pessoa (1986) assume a concepção de língua como
atividade social e interacional, da qual resultam práticas escolares que permitem que o aluno
tenha “condições de constituir-se locutor e, mais ainda, de constituir os outros como
interlocutores” (PESSOA, 1986, p. 12). Nesse horizonte, convém destacar a discussão
empreendida sobre a importância do ensino da oralidade, modalidade historicamente
marginalizada no espaço escolar. Nesse quesito, retomando o eixo central da discussão –
149

formação do professor –, a autora afirma que “o próprio professor não está convencido da
necessidade e da importância desse tipo de trabalho” (PESSOA, 1986, p. 13), realidade cuja
explicação reside na formação docente: “em que momento se discute com o aluno [de
graduação em Letras] o porquê da necessidade do trabalho com a linguagem oral, as razões
pelas quais este trabalho deve sempre preceder qualquer atividade de linguagem escrita?”
(PESSOA, 1986, p. 13-14).
Afastando-se das reflexões de natureza pedagógica, Zambonim (1989), por sua vez,
apresenta um texto de diluição no qual discute a visão de língua empreendida pelos estudos
sociolinguísticos desenvolvidos por importantes nomes, como Bright, Fishman, Labov,
Bernstein e Marellesi. Diferente de Camacho, que, como vimos, também se apoia no modelo
da sociolinguística e da sociologia da linguagem, Zambonim conduz a discussão assumindo
nítida retórica de ruptura, na medida em que, situado no eixo do programa sociocultural e,
consequentemente, no domínio da TSD, recusa explicitamente a tradição formalista. Destaca
que o programa descritivista, no qual está situado o empreendimento estruturalista, ao
concentrar esforços nos elementos internos, abdicando da análise dos aspectos funcionais, “vê
a língua como sistema autônomo e que só conhece sua própria ordem. Relega,
conscientemente, as variedades, considerando-as livres e sem importância ao que se propõe.”
(ZAMBONIM, 1989, p. 137). Já a sociolinguística, teoria com a qual se identifica, “ressalta o
papel dos fatores socioculturais na produção e manutenção de variáveis em suas causas e
funções” (p. 137), estando apta, dessa forma, “a fornecer um modelo de pesquisa, análise e
interpretação dos dados de uma língua natural de forma mais abrangente e satisfatória”
(ZAMBONIM, 1989, p. 141, grifos meus). O trecho em destaque ilustra o tom de crítica
constitutiva da retórica de ruptura assumida por Zambonim, reforçada em outras passagens,
como a que segue: “a ideia de uma variedade comum e representativa de toda a comunidade é
uma falácia, e a existência de um falante ideal numa comunidade homogênea, irreal, mera
abstração de analista” (ZAMBONIM, 1989, p. 142, grifos meus).
Se nos reportarmos à atmosfera intelectual do final da década de 1980, podemos
melhor compreender a construção histórica da retórica assumida por Zambonim (1989): trata-
se do momento em que a TSD já circula intensamente nos centros de pesquisa brasileiros,
assumindo o status de tradição que se consolidaria nos anos subsequentes, como veremos
adiante. Se, por um lado, textos publicados na década de 1970 e nos primeiros anos da de
1980 buscavam, com regularidade, apresentar os fundamentos da TSD enfatizando em suas
próprias concepções e metodologias analíticas, num contexto em que o programa
150

sociocultural dava seus primeiros passos no Brasil, por outro, muitos dos textos publicados na
etapa de desenvolvimento assumem uma retórica de ruptura que, como estratégia de
convencimento intencionando angariar espaço e legitimidade, se orienta estruturalmente a
partir da recusa daquilo que se julga, até certo ponto, defasado. Não raro, ainda hoje,
deparamo-nos com estratégias retóricas dessa natureza em trabalhos sociodiscursivos que,
explícita e deliberadamente, encaram a tradição formalista – sobretudo os postulados
estruturalistas e gerativistas – como a personificação de um inimigo que deve ser combatido.
Passemos para as fontes situadas no domínio dos estudos textuais. Nesse horizonte,
destaco o trabalho de Fávero e Koch (1984), duas lideranças organizacionais cuja
contribuição para a divulgação dos estudos da linguística de texto no Brasil é incontestável,
tendo em vista o quantitativo de obras propositivas, artigos e ensaios publicados acerca de
questões atreladas ao texto e à textualidade, além de palestras proferidas e mesas de que
participaram como debatedoras em eventos científicos espalhados por todo o país. Trata-se de
duas pesquisadoras que, devido ao alto potencial de elite e à idade profissional que à época já
era perceptível, foram peças fundamentais para o desenvolvimento e posterior consolidação
do grupo de especialidade em torno da linguística textual.
Fávero e Koch (1984) examinam o processo de construção de objetos de discurso em
movimentos de referenciação, partindo, para tanto, de uma articulação sistemática entre
linguística e filosofia. Assumindo uma concepção de língua como interação, compreendem o
texto como evento comunicativo em que convergem ações interlocutivas, as quais se
constituem no diálogo estabelecido entre os indivíduos, que, situados num determinado
contexto social, constroem objetos de discurso operando com estratégias textual-discursivas.
Por esse prisma, os sentidos não residem na linguagem em si mesma, tampouco no
pensamento individual de sujeitos psicológicos, mas, sim, na relação que, pela linguagem, os
sujeitos estabelecem com o mundo a partir de suas experiências e intenções. Em linhas gerais,

em toda situação comunicativa, existem conhecimentos comuns partilhados pelo


falante e seus ouvintes, e, normalmente, o falante inclui em seu enunciado uma
expressão que considera adequada, naquela circunstância, para indicar aos ouvintes
de que coisa, dentre todas as que são de conhecimento comum, ele está tratando
(FÁVERO e KOCH, 1984, p. 14).

Seguindo no mesmo domínio dos estudos textuais, já no final da década em que


acontece o desenvolvimento da TSD, Ghiraldelo (1989) apresenta um texto de diluição cuja
natureza da reflexão recai tanto em proposições teóricas como, mais indiretamente, em
proposições teórico-metodológicas aplicadas ao ensino, com ênfase no eixo da escrita. O
151

objetivo de seu trabalho é compreender como estudantes do primeiro grau (hoje, ensino
fundamental) “utilizam recursos de coesão e coerência na construção de textos produzidos em
determinadas situações de interlocução” (GHIRALDELO, 1989, p. 9).
Ao admitir a concepção de língua como interação, Ghiraldelo (1989), assim como
Zambonim (1989), assume clara retórica de ruptura, erguendo uma das principais bandeiras
que constituem o cerne do discurso da mudança (PIETRI, 2003): é preciso repensar o ensino
de português que, preso à gramática tradicional, “analisa a língua através de orações soltas,
desconsiderando o contexto em que estão inseridas, bem como os interlocutores”
(GHIRALDELO, 1989, p. 9). A retórica de ruptura e o tom combativo assumidos pelo autor
reforçam que, como em Zambonim (1989), a pesquisa linguística brasileira assistia ao início
da consolidação da TSD, ou seja, presenciava os primeiros indícios do cluster (MURRAY,
1994) dos grupos que, entoando o discurso da mudança, se organizavam em torno da
concepção sociodiscursiva da linguagem.
Diferentemente de linguistas com alto potencial de elite e reconhecida idade
profissional, Ghiraldelo, então estudante de mestrado pela UNESP, sob a orientação de Maria
do Rosário Gregolin, apoia-se em vários pesquisadores brasileiros (muitos deles lideranças)
de reconhecida contribuição para a TSD, autores de textos de ação que se tornaram
referências clássicas em cursos de graduação de pós-graduação em Letras, como João
Wanderley Geraldi, Rodolfo Ilari, Luiz Antônio Marcuschi, Mário Perini, além de Leonor
Lopes Fávero e Ingedore Koch, pesquisadoras que assinaram fonte analisada nesta seção. A
rede intertextual implícita e explícita costurada por Ghiraldelo (1989), composta
majoritariamente por nomes da linguística brasileira, corrobora a tese de que é na década de
1980 que se configura o pleno e acelerado desenvolvimento da TSD na pesquisa linguística
nacional.

5.2.2 Letras de Hoje

O conhecimento linguístico subjacente às fontes historiográficas da revista Letras de


Hoje analisadas nesta seção reforçam uma das máximas fundamentais da Historiografia da
Linguística: o conhecimento sobre a linguagem (ou qualquer outro tipo de conhecimento)
emerge sempre atrelado a um clima de opinião com o qual estabelece relação de determinação
direta. Se, por um lado, textos da Letras de Hoje publicados na década de 1970, auge da “era
da comunicação”, se apoiavam em fundamentos da teoria comunicacional – com exceção de
Bortoni (1978) – por outro, aqui, na fase de pleno desenvolvimento da TSD, vê-se um
152

panorama epistemológico distinto, mais heterogêneo, resultante da intensificação da agenda


sociodiscursiva na pesquisa linguística brasileira com a qual algumas lideranças
organizacionais e intelectuais contribuíram diretamente. Não por acaso, algumas dessas
lideranças assinam trabalhos aqui analisados – como Ignácio Neis, Stella Maris Bortoni,
Ingedore Koch, Leonor Lopes Fávero e Eni Orlandi.
A importância da produção intelectual publicada pela Letras de Hoje na década de
1980 para o desenvolvimento da TSD no Brasil se traduz pela diversidade e qualidade da
discussão em torno de questões de natureza sociodiscursiva, teóricas ou aplicadas ao ensino.
Dentre os objetos constitutivos da TSD, figuram nos artigos selecionados a variação, o
discurso e, especialmente, o texto, objeto para o qual foi dedicado um volume especial da
revista.
Segue, abaixo, a relação das fontes analisadas nesta seção.

Quadro 21 – Informações das fontes analisadas do periódico Letras de Hoje publicadas no período de
desenvolvimento da TSD
IDENTIFICAÇÃO DOS TEXTOS
Título Autoria Referência
Bernstein e a sociolinguística Delmar Steffen Steffen (1980)
Por uma gramática textual Ignacio Antonio Neis Neis (1981)
O fator cultural na compreensão da Maria Izabel S. Magalhães Magalhães e
leitura Stella Maris Bortoni Bortoni (1981)
Uma tentativa de gramática do texto
Maria da Glória Bordini Bordini (1982)
narrativo
A competência de leitura Ignacio Antonio Neis Neis (1982)
Análise da coerência textual em
Maria Izabel da Silveira Silveira (1982)
redações escolares
Por que uma linguística textual? Ignacio Antonio Neis Neis (1985)
A informatividade como elemento de
Leonor Lopes Fávero Fávero (1985)
textualidade
A situacionalidade como elemento de
Ingedore G. Villaça Koch Koch (1985)
textualidade
Ignacio Antonio Neis
Leitura de textos no 1º grau: nova José Marcelino Poersch
Neis et al (1985)
alternativa de ensino/apredizagem Lia Lourdes Marquandt
Maria Tasca
Recepção e produção textual em 5ª
Maria Eduarda Giering Giering (1985)
série do 1º grau
A história do sujeito-leitor: uma
Eni P. Orlandi Orlandi (1986)
questão para a leitura
Leitura e escrita: uma visão mais Irandé Antunes Antunes (1988)
153

produtiva
A análise do discurso na escola de Márcia C. Santos Santos e Teixeira
segundo grau Marlene L. Teixeira (1989)

Fonte: o autor, 2019

Duas fontes figuram o domínio dos estudos sociolinguísticos. Tanto em Steffen (1980)
como em Magalhães e Bortoni (1981), encontra-se uma extensa discussão acerca dos
fundamentos da teoria do sociólogo britânico Basil Bernstein, particularmente no que tange à
reflexão sobre a variação linguística e sua relação com as diferenças que demarcam fronteiras
entre classes sociais. Embora tratem de questões muito próximas, os textos se posicionam de
modo distinto em relação ao empreendimento de Bernstein, assumindo, assim, diferentes tipos
de retórica. Steffen (1980), caracterizando-se como texto de diluição e assumindo uma
retórica de continuidade, apenas reproduz o quadro teórico geral apresentado em Class, code
and control (BERNSTEIN, 1971), enquanto que Magalhães e Bortoni (1981), por outro lado,
embora também diluam os fundamentos do sociólogo britânico, fazem-no como parte da
estratégia retórica orientada pela contestação.
Dos fundamentos sociolinguísticos de Bernstein apresentados pelas fontes em questão,
interessam-nos, em especial, as noções de código restrito e código elaborado ou,
respectivamente, linguagem pública e linguagem formal (BERNSTEIN, 1971). Ao
reconhecer o caráter social das línguas naturais, bem como, por consequência dele, sua
natureza fundamentalmente mutável, Bernstein observa como diferentes classes sociais
(classe operária e classe média) utilizam diferentes códigos, ou seja, como se expressam
verbalmente de modo distinto. Em linhas gerais,

os membros de uma determinada classe, em virtude das relações sociais prevalentes


em seu grupo, desenvolveriam um código linguístico específico, pois diferenças no
relacionamento social teriam como resultado diferentes códigos de comunicação
(MAGALHÃES e BORTONI, 1981, p. 35).

A discussão de Bernstein acerca dos códigos linguísticos se aproxima, com algumas


ressalvas, do que outros estudos sociolinguísticos já empreendidos no Brasil no começo da
década de 1980 entendiam por normas, sendo elas de prestígio ou estigmatizadas. Numa
sociedade marcada por desigualdades estruturantes, não era de se estranhar que formas de
discriminação se manifestassem na e pela linguagem, uma vez que “o código elaborado
facilita o acesso a privilégios, enquanto o código restrito o impede” (STEFFEN, 1980, p. 72).
154

Para Bernstein, o código restrito é caracterizado por “vocabulário e estruturas


sintáticas reduzidas, o que determinaria um alto grau de previsibilidade; os significados
seriam condensados, dependentes do contexto, implícitos e não explícitos” (MAGALHÃES e
BORTONI, 1981, p. 36); já o código elaborado, por sua vez, é constituído por “sintaxe mais
complexa (...), menor grau de previsibilidade estrutural, um vocabulário mais amplo e menor
dependência do contexto” (MAGALHÃES e BORTONI, 1981, p. 36).
Steffen (1980), diferente de Magalhães e Bortoni (1981), enfatiza, de um lado, a
simplicidade e o aspecto pobre do código restrito, e, de outro, a natureza lógica e a
capacidade estruturante do código elaborado (na compreensão de Bernstein, com a qual
concorda). O autor busca explicações para a restrição ou elaboração das formas linguísticas
no modo como se estruturam as classes sociais (operária e média), uma vez que, para Steffen
(1980), “a classe operária é menos formalmente organizada no que tange ao desenvolvimento
da criança” (STEFFEN, 1980, p. 74).
Para além da sumarização da proposta sociolinguística de Bernstein, Magalhães e
Bortoni (1981) levantam críticas à noção de códigos linguísticos, à qual, segundo as autoras,
subjaz uma contestável ideia determinista que responsabiliza o indivíduo pela falta de
domínio das expressões verbais que gozam de prestígio na sociedade. Apropriando-se da
teoria das diferenças linguísticas advinda da sociolinguística de Labov, compreendem que
toda e qualquer forma de expressão verbal cumpre satisfatoriamente as necessidades
comunicativas das comunidades falantes que dela fazem uso.
Na esfera do ensino de língua materna, segundo as autoras, as razões da dificuldade de
apreensão das formas prestigiadas de uso da linguagem por parte das camadas desprestigiadas
da sociedade não residem no aluno em si – como postula a teoria do déficit linguístico
advinda das proposições de Bernstein; o problema está diretamente relacionado aos métodos
de ensino e às concepções (de língua, linguagem, variação e ensino) a eles atreladas. Apoiadas
em Labov (1972), que investigou aspectos linguísticos e sociais de comunidades negras de
Nova Iorque, pontuam que

a escola, ao deparar com essa língua diferente, não tendo conhecimento de teoria
linguística, nem a boa vontade para entender a natureza real do problema,
simplesmente reprova os alunos que, quer por bloqueio ou por recusa a falar a
variedade padrão da língua (entre outras razões), não aprendem o inglês [português]
padrão (MAGALHÃES e BORTONI, 1981, p. 37).

Nessa esteira de pensamento, na tentativa de melhor compreender os problemas da


educação linguística, apresentando caminhos para solucioná-los, Magalhães e Bortoni (1981)
155

encontram na sociolinguística de Labov alternativas para a execução de um ensino inclusivo e


transformador. Como resultado de suas análises, as autoras mostram que, no que diz respeito à
habilidade leitora, indivíduos pertencentes a classes sociais menos favorecidas apresentam
dificuldades significativas em atividades de interpretação de textos mais complexos. Todavia,
a mesma pesquisa mostra que a raiz do problema não está na criança individualmente ou na
camada social da qual faz parte, mas na “experiência prévia cultural do aluno”
(MAGALHÃES e BORTONI, 1981, p. 60), explicação que reforça a ideia (fundamental à
TSD) de que um texto não é apenas um conjunto de frases às quais estão arraigados sentidos
codificados passíveis à decodificação. No fim das contas, a teoria do déficit linguístico como
aparato para explicar a crise que afetava a educação linguística de então, de modo geral, prega

um determinismo sociocultural cujas consequências últimas seriam considerar-se os


indivíduos da classe baixa como inerentemente inferiores e leva à hipótese falaciosa
de que a uma manifestação linguística deficiente corresponde uma capacidade
cognoscitiva deficiente (MAGALHÃES e BORTONI, 1981, p. 61) .

Considerando o papel inclusivo e democrático da educação básica, sem desconsiderar


que o aluno “precisa conhecer o dialeto padrão, para que não seja estigmatizado por falar
dialetos desprestigiados” (MAGALHÃES e BORTONI, 1981, p. 64), defendem as autoras
que cabe à escola “respeitar as características culturais dos alunos dos diferentes estratos
socioeconômicos, principalmente os das classes menos favorecidas” (idem). A pesquisa
linguística brasileira teria papel fundamental nessa mudança de mentalidade sobre a língua e
seu ensino, tendo em vista a “necessidade da descrição das variedades não padrões da língua
(...), tarefa necessária e urgente” (MAGALHÃES e BORTONI, 1981, p. 63).
Partindo para o domínio dos estudos da linguística de texto, pode-se dizer que os
volumes da Letras de Hoje publicados na década de 1980 reúnem fontes historiográficas
fundamentais à compreensão da história desse empreendimento no Brasil. Em primeiro lugar,
pela veiculação do artigo Por uma gramática textual, de Ignácio Antônio Neis, importante
texto de ação que, além de ser considerado o primeiro trabalho brasileiro propositivo em
linguística textual (cf. KOCH, 1999; FÁVERO, 2012), estabelece as bases da teoria e discute
a proposta pioneira de construção de uma gramática textual. Em segundo lugar, a importância
da Letras de Hoje para o desenvolvimento e a divulgação da linguística de texto no Brasil se
confirma pela publicação, em 1985, do volume 60, dedicado exclusivamente a trabalhos que
discutem aspectos do texto e da textualidade. Além do próprio professor Ignácio Antônio
Neis, autor do artigo pioneiro supramencionado e organizador do volume 60 da Letras de
156

Hoje, assinam artigos publicados nesse caderno especial outras lideranças importantes para o
desenvolvimento TSD no Brasil, em especial Leonor Lopes Fávero e Ingedore Koch.
Antes da análise das fontes publicadas no volume 60, analisarei algumas fontes
publicadas na primeira metade da década de 1980, momento em que, como já apontado,
começam a surgir textos de ação e de diluição brasileiros em torno da reflexão sobre o texto
enquanto objeto investigativo. Dentre essas fontes, destaco Neis (1980), Bordini (1982), Neis
(1982) e Silveira (1982).
Tomo o artigo propositivo de Neis (1980) como um texto, ao mesmo tempo, de
diluição e de ação. Reverberam na fonte em questão os fundamentos basilares da linguística
de texto desenvolvida na Europa, particularmente a perspectiva atrelada às reflexões de Dijk
(1977) e de Schmidt (1978), motivo pelo qual compreendo o trabalho de Neis (1980) como
texto de diluição. Todavia, a diluição dos fundamentos da linguística de texto europeia serve
como ponto de apoio para proposições autorais veiculadas no texto, que, no contexto da
pesquisa linguística brasileira, passa a circular como fonte recorrente a que outros trabalhos se
reportam referencialmente (cf. FÁVERO, 2012). Por esse motivo, a que se somam o
pioneirismo e o tom propositivo do artigo, bem como a alta idade profissional e capacidade
de liderança do autor, agente fundamental no contexto de pesquisas desenvolvidas no Rio
Grande do Sul, classifico o trabalho de Neis (1980) como texto de ação.
No interior de um clima de opinião marcado pela forte presença de trabalhos
descritivos ligados à linguística estruturalista e ao gerativismo, Neis (1980) apresenta uma
visão geral dos fundamentos que engendram o empreendimento da gramática textual,
fundamentando-se, para tanto, na linguística de texto, “uma abordagem nova e atualizada no
estudo da linguagem humana” que se dedica ao estudo dos “enunciados textuais como
manifestações linguísticas nos atos sociocomunicativos” (NEIS, 1980, p. 37).
Embora inscritos no horizonte do programa sociocultural e no domínio da TSD –
tendo em vista a compreensão do texto como evento linguístico-pragmático –, os estudos
desenvolvidos tanto por Neis (1981, 1982) como por Bordini (1982) não buscam romper
absolutamente com a gramática gerativo-transformacional. Nesse primeiro momento da
linguística de texto no Brasil (KOCH, 1999), o empreendimento descritivo do gerativismo
serve como base para a construção conceitual e categorial da gramática textual, como
confirmam as passagens a seguir:
157

é na linguística gerativa que se encontra um conjunto de procedimentos


metodológicos e de descrição empíricas que servirão de base sólida para se proceder
à extensão da gramática frasal para uma gramática textual (NEIS, 1980, p. 26).
[as gramáticas textuais] devem sua fundação definitiva à gramática gerativo-
transformacional, cuja metodologia hipotético-dedutiva revolucionou os atuais
modos de pensar os diversos sistemas semióticos (BORDINI, 1982, p. 59).

Naturalmente, a gramática gerativo-transformacional isolada, tal como concebida pela


linguística gerativa – tendo em vista seus propósitos descritivos e o recorte epistemológico
deles consequente –, não daria conta de explicar o texto como resultado de ações
sociocomunicativas (NEIS, 1980), pois se trata, fundamentalmente, de “uma gramática frasal,
que se preocupa com tarefa formal de enumerar e descrever estruturalmente o conjunto
infinito de frases de uma língua” (p. NEIS, 1980, p. 28). Assim, embora a proposta de
construção da gramática textual se apoie em procedimentos advindos da gramática gerativo-
transformacional, “o ponto de partida da teoria de texto deve situar-se em entidades
complexas da comunicação linguístico-social” (NEIS, 1980, p. 27). Nessa direção,

ao lado da sintaxe, da morfologia e da semântica, postula-se que a gramática, como


toda teoria semiótica, deve ter um componente pragmático que dê conta dos
sistemas que subjazem à utilização, pelo falante, de enunciados ou textos em
situações apropriadas (NEIS, 1980, p. 26-27).

Como se pode perceber, o empreendimento da gramática textual, a despeito do apoio


na gramática gerativa, promove em relação a ela alguns deslocamentos, na medida em que
incorpora o componente pragmático à análise do fenômeno linguístico. O principal
deslocamento promovido pelos estudos textuais em relação à gramática gerativa reside na
noção de competência comunicativa, capacidade que, diferente da competência linguística
advinda da dicotomia chomskyana, permite ao sujeito “selecionar os discursos aceitáveis no
ato da comunicação, tendo em vista os efeitos que tenciona exercer sobre o ouvinte”
(BORDINI, 1982, p. 60). Para Neis (1980), a gramática gerativa, tal como esboçada, não daria
conta de explicar, efetivamente, a competência do falante, uma vez que ele “não se comunica
por meio de frases, mas de textos (mesmo no caso de um texto de uma só frase)” (NEIS,
1981, p. 31). E completa:

A hipótese fundamental é a de que todo falante conhece as regras que subjazem às


relações entre as frases que fazem parte de um texto; só isso explica a capacidade de
interpretar/produzir enunciados textuais coerentes, de fazer resumos, de atribuir um
título geral a um texto, de distinguir um texto coerente de um conjunto de frases sem
nexo, de compreender a intenção geral do autor, de distinguir diferentes tipos de
discurso, de identificar incoerências, repetições, progressões, ênfases e outros
fenômenos de relação entre as frases (NEIS, 1981, p. 31-32).
158

No campo da educação linguística, o arcabouço teórico, metodológico e conceitual


erguido pela linguística de texto, nesse primeiro momento, possibilitou a emergência de um
novo olhar para a língua enquanto objeto ensinável, partindo-se da hipótese de que “a
comunicação linguística se efetua não como frases sucessivas, mas como textos, e de que, em
qualquer texto, encontram-se elementos essenciais, ausentes ou inexplicáveis dentro das
frases tomadas isoladamente” (NEIS, 1980, p. 21). Partindo desse pressuposto estruturante
sobre a linguagem e os textos, o trabalho com a leitura e a escrita em sala de aula ganha
outros contornos, afinal, entende-se que ler se constitui como habilidade que “ultrapassa a
decifração e compreensão de palavras e frases isoladas” (NEIS, 1980, p. 37), ao passo que
escrever exige muito mais que a simples “utilização adequada de itens lexicais ou de frases”
(NEIS, 1980, p. 38). Em linhas gerais, pode-se dizer que a linguística de texto, ao possibilitar
a emergência de “novos enfoques aos problemas de produção e recepção de textos” (NEIS,
1982, p. 43), contribuiu sobremaneira com a reflexão sobre ensino de língua portuguesa no
Brasil na década de 1980, ainda que fissuras sistemáticas na tradição escolar possam ser
percebidas apenas em momento posterior.
No domínio da reflexão pedagógica, Neis (1982), Neis et al (1985) e Giering (1985)
discutem questões concernentes ao ensino da leitura, enquanto que Silveira (1982) concentra-
se no debate acerca da escolarização da escrita. Os quatro trabalhos assumem a concepção de
língua como interação subjacente à noção de texto como atividade linguístico-pragmática, tal
como concebido em Neis (1980). Nesse sentido, a noção de competência comunicativa é
fundamental para a compreensão do processo de leitura e escrita, bem como seu trabalho na
escola, que, em “crise”, carece de novas estratégias pedagógicas (NEIS, 1982).
Neis (1982) assume uma retórica de ruptura explícita em relação ao ensino tradicional
de leitura, o qual, para o autor, não raro “se reduz a uma explicação do vocabulário, a um
estudo de sinonímia, a uma simples „explicação do texto‟, quando não é pretexto para uma
aula de gramática” (NEIS, 1982, p. 56). No mesmo caminho, embora em tom mais ameno e
menos combativo, Giering (1985) também critica o ensino tradicional que enfatiza a “leitura
isolada das frases que compõem o texto e percepção deste como uma simples sucessão de
frases” (GIERING, 1985, p. 77).
Em sintonia com os fundamentos do programa sociocultural, esses autores tomam o
texto como unidade de ensino a partir do qual se processa a leitura enquanto prática que
“supõe o conhecimento dos códigos linguísticos e também o conhecimento pragmático das
convenções enunciativas socialmente reguladas” (NEIS, 1982, p. 46). Disso resulta uma
159

concepção de leitor como sujeito ativo, não como receptor/decifrador de um sentido que está
preso às estruturas linguísticas, como se pode constatar em Neis (1982):
o leitor, longe de ser passivo, intervém ativamente, formulando suas hipóteses
(explícitas ou implícitas). Pode-se afirmar que, inicialmente, sua leitura corresponde
a um projeto pré-concebido: o leitor tem hipóteses globais, talvez vagas (...).
Baseado nessas hipóteses, procura reconstruir o sentido global do texto, e a leitura
pode levá-lo a confirmar ou reformular (em parte) as hipóteses anteriores (NEIS,
1982, p. 54-55).

Giering (1985), em relato de experiência didática conduzida sob a égide dos


fundamentos da linguística textual, discute as possibilidades do trabalho com a leitura numa
abordagem que leva em consideração o texto como ponto de partida e ponto de chegada.
Concebendo a unidade textual como evento cujas unidades se articulam globalmente,
abandonando a ideia de texto como sucessão de frases interpostas, a autora sinaliza a
necessidade de se trabalhar em sala a partir dessa abordagem textual-discursiva. Por fim,
Giering (1985) apresenta alguns resultados exitosos do trabalho nessa perspectiva, obtidos
numa turma da então 5ª série do 1º grau:

Ao se defrontarem com um texto, feita a primeira leitura, já tentavam definir a


superestrutura, os articuladores principais que introduziam as partes, as informações
novas e antigas e a sequência em que essas eram apresentadas (GIERING, 1985, p.
91).

Na mesma direção, ou seja, buscando apresentar “contribuição para a melhoria do


ensino de leitura (...), seguindo a linha e adotando estratégias propostas pela linguística
textual” (NEIS et al, 1985, p. 41), Neis et al apresentam outros pontos relevantes para se
pensar no processo de aprendizagem das habilidades leitoras e em suas implicações e
problemáticas. Para os autores, numa análise acerca da crise no ensino de língua portuguesa,
“a prática pedagógica é apontada (...) como fator preponderante na produção do fracasso”,
motivo pelo qual “será, pois, necessário questionar os objetivos e a metodologia do ensino de
língua materna” (NEIS et al, 1985, p. 43). Compreendem, portanto, que as concepções
subjacentes às práticas escolares, bem como as metodologias adotadas no processo de ensino
e aprendizagem, que devem estar adequadas aos objetivos almejados, são, em grande medida,
responsáveis pelo sucesso ou fracasso escolar. Nesse sentido, apoiando-se em Halliday et al
(1974) – texto de ação que já circulava com certa intensidade no Brasil –, Neis e outros
(1985) defendem o trabalho pedagógico com textos variados, não restritos à esfera literária, e
o abandono da “ênfase demasiada no ensino prescritivo” como “condição para que o ensino se
torne realmente produtivo” (NEIS, et al, 1985, p. 43).
160

Partindo da noção de competência comunicativa advinda da pragmática, Neis et al


(1985) refletem sobre a competência textual concebida pela linguística de texto como “a
capacidade de agir linguisticamente no âmbito de um ato de comunicação realizado mediante
o componente „texto‟” (NEIS et al, 1985, p. 45); dela, para pensar no ensino da leitura,
desmembram a noção de competência leitora, compreendida como

conhecimento e experiência do uso do sistema linguístico, conhecimento e prática


do sistema pragmático de usos e convenções ligados à comunidade linguística, e
conhecimentos referentes ao tema do texto (NEIS et al, 1985, p. 47).

No domínio do ensino da escrita ou produção textual, figura como representativo


nesta seção o trabalho de Silveira (1982), cujo objetivo consiste em “analisar textos redigidos
por alunos de 1º grau, focalizando sua coerência textual” (SILVEIRA, 1982, p. 90). Aludindo
o caráter pragmático dos textos e, consequentemente, do processo de escrita, reivindica que
escrever com adequabilidade e coerência implica habilidade que “extrapola o âmbito sintático
e estabelece relações com fatores „extralinguísticos‟” (SILVEIRA, 1982, p. 88).
O artigo de Silveira (1982) reveste-se de importância na medida em que passamos a
considerar o estado da reflexão sobre ensino da escrita – em grande medida reduzidas a
propostas concentradas numa escrita artificial e engessada –, bem como as práticas
efetivamente promovidas na escola na primeira metade da década de 1980, muitas vezes
reduzidas ao exercício da redação desprovida de contextos e interlocução concretas. A
despeito dessa atestada contribuição para a época, Silveira (1982) não assume, como Neis
(1982), retórica de ruptura; apoiando-se teoricamente no trabalho pioneiro e propositivo de
Neis (1980) – acima discutido – e nos fundamentos da linguística de texto europeia
(SCHMIDT, 1978), apresenta-nos um texto de diluição. A baixa idade profissional do autor
pode de algum modo indiciar a condição assumida pelo trabalho de Silveira (1982).
Voltando-nos ao volume 60 da Letras de hoje – caderno especial destinado a trabalhos
em linguística de texto –, edição em que se encontram Neis (1985), Fávero (1985) e Koch
(1985), é possível perceber no conjunto de fontes selecionadas um quadro epistemológico
que, embora em harmonia com os trabalhos da primeira metade da década, avança sutilmente
em alguns pontos relevantes da reflexão sobre o texto, o que reforça o caráter continuamente
histórico da pesquisa brasileira.
Em 1985, a pesquisa linguística exercida pelo grupo de especialidade dedicado aos
estudos textuais brasileiros já tinha atingido resultados expressivos, como afirma Elvo
Clemente, professor da PUCRS, na Apresentação do volume 60 da Letras de Hoje. A essa
161

altura, o Brasil já contava com expressivo acervo de referências assinadas por linguistas
brasileiros, das quais podemos destacar, na qualidade de textos de ação, além do artigo
pioneiro de Neis (1980), os trabalhos de Marcuschi (1983) e Fávero e Koch (1983). Além
disso, vale destacar que em 1985 foi criado o Grupo de Trabalho Linguística de texto e
Análise da conversação, por ocasião do I Encontro Anual da ANPOLL, acontecido em
Curitiba. Essa atmosfera intelectual favorável impulsionou o avanço dos estudos textuais no
Brasil (em quantidade e em qualidade), como podemos confirmar em trabalhos publicados
nesse período na Letras de Hoje.
Em Neis (1985), diferentemente de seu trabalho pioneiro de 1980, é perceptível que o
autor promove um intercâmbio explícito com trabalhos de outras lideranças da linguística de
texto brasileira, como Marcuschi (1983) e Fávero e Koch (1983), reforçando o caráter
colaborativo do grupo de especialidade já formado à época. Outra mudança em relação ao
trabalho de 1980 reside na compreensão da linguística de texto como empreendimento já
enraizado na agenda de pesquisas brasileiras, cenário diverso daquele em que publicou seu
texto de 1980: “Até há bem pouco tempo, as pesquisas linguísticas concentravam-se quase
exclusivamente nos problemas relativos à frase ou aos componentes frasais” (NEIS, 1985, p.
7, grifos meus). A afirmação confirma que, na visão do autor, os estudos sobre o texto
representavam pauta recorrente e razoavelmente consensual na linguística brasileira da época
(segunda metade da década de 1980); a mesma afirmação não faria sentido em seu texto de
1980, tendo em vista o cenário de emergência de abordagens sobre o texto em que fora
publicado o trabalho, fato que explica o porquê da retórica de ruptura assumida pelo autor
naquele momento, bem como o tom propositivo que imprime ao artigo.
Nesse novo contexto da linguística de texto brasileira, ainda que, como no começo da
década, prevaleça a “concepção de linguagem como atuação sociocomunicativa inserida numa
situação específica de comunicação” (NEIS, 1985, p. 9), o experimento da gramática textual
perde força, cedendo lugar a investigações mais detidamente preocupadas com “os fatores
pragmáticos ligados à enunciação, ou seja, a fatores de produção, de recepção e de
interpretação de textos” (NEIS, 1985, p. 9). Para Neis (1985), trata-se do “terceiro momento
da linguística de texto no Brasil”.
Sem negar “a pertinência dos estudos que se restringem a aspectos frasais, pois muitos
fatos realmente são observáveis e descritíveis neste nível” (NEIS, 1985, p. 8), assumindo o
caráter de texto de ação, o autor propõe que
162

o objeto da linguística deve ser o estudo do texto; e como o texto é o objeto legítimo
dos estudos linguísticos, toda descrição de frases deve ser integrada numa descrição
de textos; e mais, toda descrição de sentido de elementos de um texto deve ser
realizada contextualmente (NEIS, 1985, p. 12).

No âmbito da reflexão sobre ensino, opõe-se à educação linguística que, alinhada com
os fundamentos epistemológicos da gramática tradicional, “restringe-se em geral a um
determinado registro da língua, o registro padrão da língua escrita”, desconsiderando, assim,
“as características do uso dos diferentes registros, de acordo com as diferentes situações de
comunicação” (NEIS, 1985, p. 7). A propósito do ensino da redação (ou, seguindo o princípio
da adequação, produção textual), essa ênfase atribuída à escrita modelar, encarada como
homogênea e única realidade aceitável, traduz-se numa metodologia que, excessivamente
preocupada com “a correção de desvios ortográficos e morfossintáticos”, não concede atenção
aos “problemas de coerência, de organização textual, de progressão temática” (NEIS, 1985, p.
8).
Juntam-se a Neis (1985), representando esse novo momento da linguística de texto
brasileira, os trabalhos de Fávero (1985) e Koch (1985), nos quais são discutidos os critérios
de textualidade estabelecidos por Beaugrande e Dressler (1981). Tendo em vista o
alinhamento com os fundamentos dos autores europeus, ambas as fontes assumem o caráter
de texto de diluição. Convém destacar, ainda, que os trabalhos se ligam a um projeto maior
iniciado anteriormente pelas autoras – do qual emergiram outros trabalhos (cf. FÁVERO e
KOCH, 1985) – cujo objetivo consistia num exame crítico dos critérios de textualidade.
O rumo que tomou a pesquisa em linguística de texto empreendida no Brasil até a
segunda metade da década de 1980 – da qual os textos analisados nesta seção são uma
amostra expressiva, ainda que reduzida –, marcada por intensa produtividade e intercâmbio
institucional, confirma a previsão lançada por Neis (1980), em seu texto pioneiro, para quem
os estudos textuais poderiam (e deveriam, tomando suas palavras) “constituir um novo foco
de interesse para os estudiosos da linguagem, sejam eles professores, pesquisadores, ou
estudantes de cursos de pós-graduação” (NEIS, 1980, p. 37).
Partindo para os demais volumes da Letras de Hoje publicados na segunda metade da
década de 1980, chegamos ao trabalho de Irandé Antunes, então professora da UFPE.
Assumindo clara retórica de ruptura e incorporando o discurso da mudança (PIETRI, 2003)
que marcou a reflexão sobre ensino de língua portuguesa no Brasil, com maior intensidade, a
partir da segunda metade da década de 1980, Antunes (1988) visa, em texto de ação,
163

apresentar uma “visão mais produtiva”, como anuncia no título do trabalho, sobre ensino de
leitura e escrita na educação básica.
Subjaz à reflexão empreendida pela autora a concepção de linguagem do ponto de
vista da enunciação, ou seja, como trabalho intersubjetivo processado em eventos de
interação. A natureza enunciativa da linguagem e das interações humanas que sustenta a tese
central de Antunes (1988) advém, entre outros, dos fundamentos do linguista francês Émile
Benveniste, para quem

a linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito remetendo


a ele mesmo como eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquele que,
sendo embora exterior a “mim”, torna-se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz
“tu” (BENVENISTE, 1976, p. 286, apud ANTUNES, 1988, p. 53)

No bojo da discussão sobre a natureza enunciativa da linguagem e dos sujeitos,


defende a autora que a leitura e a escrita devem ser encaradas (e trabalhadas na escola) como
“atividades verbais de comunicação e interação humanas” (ANTUNES, 1988, p. 53)
processadas colaborativamente por indivíduos e situadas em certos contextos de interlocução.
Em linhas gerais, leitura e escrita são “aqui compreendidas como atos de comunicação
verbal, envolvendo, pois, naquele sentido definido por Benveniste, o „eu‟ e o „tu‟ sujeitos da
linguagem” (ANTUNES, 1988, p. 55).
Intensifica-se a natureza propositiva do texto, reforçada pela retórica de ruptura que se
imprime ao trabalho, no momento em que são discutidas com mais atenção questões sobre o
ensino de línguas. Somando voz ao coro do discurso da mudança, Antunes (1988) aponta
falhas e lacunas de práticas pedagógicas tradicionais situadas nos eixos dos conhecimentos
linguísticos, da leitura e da escrita, as quais, argumenta, contribuem com o tão discutido
fracasso escolar brasileiro.
No eixo dos conhecimentos linguísticos, Antunes (1988) critica a predominância quase
absoluta, em sala de aula, da gramática tradicional, que, segundo a linguista, “inadequada e
falseada – porque aborda uma língua descontextualizada e/ou despregada de sua função
interativa –, deixa os alunos sem oportunidade de criar, na escola, vínculos efetivos e afetivos
com a leitura e a escrita” (ANTUNES, 1988, p. 51). Na mesma direção, no eixo da escrita,
aponta problemas atrelados aos tradicionais exercícios de “redação” que, “quase sempre tão
vazios de sentido, (...) não passam de uma tosca simulação do ato de encontrar ou de atuar
com o outro pela escrita” (ANTUNES, 1988, p. 57). No eixo da leitura, por fim, opõe-se ao
trabalho a que subjaz a noção de leitor passivo, cujo trabalho é decifrar o sentido único que
164

reside nos textos: “a intervenção do leitor não se esgota pelo simples ato de „entender‟ um
sentido (supostamente) invariável, como acredita a, quase sempre, ingênua „interpretação de
texto‟ da escola” (ANTUNES, 1988, p. 54).
Como alternativa às práticas tradicionais alvos de críticas contundentes, Antunes
(1988) propõe um trabalho pedagógico que, antes de tudo, lide com a leitura e a escrita como
“partes integradas e dependentes entre si” (ANTUNES, 1988, p. 52): escreve-se para que seja
lido; lê-se porque alguém escreveu. Assim, ao assumir a concepção intersubjetiva da
linguagem, enfatizando o caráter constitutivamente colaborativo de suas práticas, a autora
compreende que tanto a leitura quanto a escrita sempre acontecem “de um sujeito a outro, de
um sujeito com outro” (ANTUNES, 1988, p. 54), devendo a escola partir desse pressuposto
basilar. Em resumo,

a solidão do escritor quanto aquela outra do leitor são apenas aparentes. O escritor
projeta o outro da interação e tem-no presente (embora, simulado ou previsto), de
modo que o encontro dos dois, (...) em nenhum momento, pode deixar de acontecer
(ANTUNES, 1988, p. 53).

No que toca ao trabalho com textos, deve o professor, defende a autora, levar para a
sala de aula aqueles “derivados da própria vida dos alunos ou da comunidade. Sem que seja
preciso „inventar‟ situações”, afinal, “os acontecimentos estão aí. Palpáveis. Por que
desperdiçá-los?” (ANTUNES, 1988, p. 57).
A natureza da reflexão empreendida no texto de ação de Antunes (1988) e o tom
combativo advindo da retórica de ruptura assumida pela autora traduzem a atmosfera da
época, final da década de 1980, momento em que, no Brasil, a reflexão sobre ensino de língua
inscrita no domínio da TSD já era pauta recorrente – resultado de ações iniciadas desde a
década de 1970, como temos discutido –, ainda que a sociedade em geral, majoritariamente
presa à tradição gramatical milenar, resistisse ao discurso da mudança (PIETRI, 2003). No
domínio da linguística nacional, por tudo até então enfatizado sobre o trabalho de Irandé
Antunes, via-se surgir indícios do terceiro momento da TSD na reflexão brasileira.
Por fim, para fechar esta década da Letras de Hoje, passo a analisar dois trabalhos –
Orlandi (1986) e Santos e Teixeira (1989) – orientados pela análise do discurso, domínio a
partir do qual são propostas reflexões de natureza teórica e, direta ou indiretamente, aplicadas
ao ensino de língua.
A reflexão de Orlandi (1986) gira em torno do lugar da leitura e do leitor no espaço
escolar. Aqui, compreende-se a leitura como um gesto imbricado a um processo de construção
165

histórica atravessado pela incompletude. Nesses termos, enquanto gesto da ordem do


discurso, a leitura é produto (sempre em construção) da subjetivação de um sujeito-leitor
histórico em determinadas condições de produção (ORLANDI 1986).
É possível perceber no trabalho de Orlandi (1986) a diluição de conceitos-chave da
análise do discurso preconizada por Michel Pêcheux; ainda que a autora não faça menção
explícita ao filósofo francês, noções como as de assujeitamento, posição sujeito e condições
de produção reverberam no modo como concebe a linguagem, a leitura e o leitor. Partindo
para o domínio pedagógico, ao refletir sobre o processo de escolarização da leitura, a autora
encerra seu curto artigo com um questionamento acerca da historicidade dos sujeitos-leitores,
das leituras e suas implicações para o ensino:

se sabemos (...) que há essa constituição histórica do sujeito na sua relação com a
linguagem (logo, com a leitura) e se sabemos que, ideologicamente, o sujeito-leitor
se apresenta como esse sujeito capaz de livre determinação dos sentidos ao mesmo
tempo em que é um sujeito submetido às regras das instituições, como agir na escola
em relação à formação do sujeito-leitor? (ORLANDI, 1986, p. 48).

Santos e Teixeira (1989) se aproximam de Orlandi (1986) na medida em que também


refletem sobre questões relativas à leitura e suas implicações pedagógicas sob o prisma de
uma abordagem discursiva. Entretanto, diferentemente de Orlandi (1986), que se apropria dos
preceitos de Michel Pêcheux, fundamentam suas indagações em Charaudeau (1983), autor
cuja teoria “estabelece um avanço no percurso da análise do discurso” (SANTOS e
TEIXEIRA, 1989, p. 111). Ao longo do texto são discutidos conceitos e categorias da teoria
discursiva do linguista francês, motivo pelo qual a fonte em questão se caracteriza como um
texto de diluição.
Ao recusar o esquema comunicacional de Jakobson e, consequentemente, a concepção
de linguagem como instrumento de comunicação a ele subjacente – fato que ratifica os
deslocamentos promovidos ao longo da fase de desenvolvimento da TSD no Brasil –,
Charaudeau (1983) vê o ato de linguagem “não como um simples ato de comunicação em
que um emissor produz uma mensagem e a dirige a um receptor, mas como um encontro
dialético (...)” (SANTOS e TEIXEIRA, 1989, p. 112, grifos meus). Em outras palavras, a
linguagem em funcionamento não se reduz ao movimento unilateral estabelecido entre
emissor e receptor a partir do qual se construiria uma mensagem codificada e decodificável.
Por outra direção, o encontro dialético e cooperativo entre os agentes da interlocução é que,
para Charaudeau, traduz a essência do ato de linguagem.
166

Ao se apropriarem desse empreendimento discursivo assim estabelecido, Santos e


Silveira (1989) apresentam alternativas para o trabalho com a leitura do texto literário em
turmas do então segundo grau. Propõem que o texto literário, como qualquer outra
materialidade significante, não comporta uma leitura preestabelecida, presa a uma
interpretação autorizada e por isso imposta; pelo contrário, os sentidos se constroem ao sabor
das experiências variadas e dos contextos sócio-históricos, motivo pelo qual “a análise dos
atos de linguagem”, como é o caso do texto literário, “deve pretender dar conta dos „possíveis
interpretativos‟ que surgem no ponto de confluência dos processos de produção e de
interpretação” (SANTOS e SILVEIRA, 1989, p. 116).

5.2.3 Cadernos de Estudos Linguísticos

As fontes que compõem o recorte do Caderno de Estudos Linguísticos (CEL) da


década de 1980 apresentam uma fatia significativa das diretrizes que compõem a TSD, tendo
em vista a pluralidade de abordagens sociodiscursivas pulverizadas nesses textos. Além disso,
é relevante destacar que lideranças intelectuais e organizacionais importantes para o
desenvolvimento e, mais à frente, para a consolidação da TSD assinam artigos analisados
nesta seção. Merece nota, também, o papel decisivo do corpo docente da Unicamp neste
momento de amadurecimento da TSD no Brasil. Os efeitos do protagonismo assumido por
esse grupo de professores resultam numa relevante, consistente e sólida produção intelectual
da qual fazem parte seis das oito fontes aqui investigadas.
Segue, abaixo, a relação das fontes que compõem material de análise desta seção.

Quadro 22 – Informações das fontes analisadas do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos


publicadas no período de desenvolvimento da TSD
IDENTIFICAÇÃO DOS TEXTOS
Título Autoria Referência
Linguagem e estratificação Romualdo (1981)
Jonas de A. Romualdo
social
Leitura e alfabetização Luiz Carlos Cagliari Cagliari (1982)
Gramaticalidade
aceitabilidade: uma nova Romualdo (1983)
Jonas de A. Romualdo
reformulação do certo-
errado?
O sujeito na teoria
Catherine Fuchs (Tradução de Fuchs (1984)
enunciativa de Culioli:
Letícia Robert)
algumas referências
Interação face-a-face: Sette (1984)
Neide M. Durães Sette
simetria/assimetria
Do dialogismo à forma Francis Jacques (Tradução de Jacques (1985)
167

dialogada: sobre os Lígia Fonseca Ferreira)


fundamentos da abordagem
pragmática
Principais mecanismos de Koch (1988)
Ingedore G. Villaça Koch
coesão textual em português
A imposição da leitura pelo Possenti (1988)
Sírio Possenti
texto: casos de humor
Fonte: o autor, 2019

Começo pelo trabalho de Jonas Romualdo, então professor da Unicamp. Embora não
demonstre explicitamente amarras a um ou outro campo disciplinar, fica subentendido que
Romualdo (1981 e 1983) parte dos estudos sociolinguísticos para fundamentar sua
argumentação, haja vista a direção que tomam as reflexões do autor. Convém destacar que seu
texto de 1981 reproduz uma conferência pública proferida pelo linguista na Quinzena do
negro, evento promovido pela USP em 1977 (período de emergência da TSD no Brasil). É
importante trazer essa questão, principalmente, por dois motivos: pela necessária
contextualização das ideias linguísticas subjacentes à fonte analisada e por indicar que Jonas
Romualdo – assim como outros agentes dos anos de 1970 – propagou a discussão sobre
preconceito linguístico, pauta frequente até hoje.
Como temos discutido, a década de 1980 marca uma expressiva presença da
sociolinguística variacionista na agenda de pesquisas brasileiras. Nessa esfera, Romualdo
(1981 e 1983), ao discutir sobre a variabilidade das línguas naturais, se apropria de questões
centrais da teoria de Labov, na tentativa de “enxergar algumas conexões entre estratificação
social e variação dialetal do português” (ROMUALDO, 1981, p. 15-16). Entretanto, para
além do reconhecimento da evidência de que as línguas variam, a reflexão do autor reside,
mais precisamente, no funcionamento das formas de discriminação pela linguagem no jogo
ideológico das relações de poder que se estabelecem no Brasil, país marcado historicamente
por desigualdades e injustiças estruturais. Além da forte presença da sociolinguística
variacionista nas proposições autor, é possível também constatar um posicionamento
fundamentalmente sociológico subjacente à sua argumentação.
No bojo da discussão sobre as formas de discriminação pela linguagem, as quais se
vinculam a questões mais sociais que linguísticas, Romualdo (1983) propõe uma relevante
incursão pela história da reflexão sobre a linguagem, na tentativa de mostrar como as noções
de certo e errado – das quais derivam outros pares igualmente contestáveis, como bonito e
feio, rico e pobre, complexo e rudimentar etc. – estão enraizados no imaginário ocidental
desde a cultura grega, período em que “a chamada lógica oferecia os instrumentos que
168

justificavam a „legitimação‟ e exclusão de formas linguísticas” (ROMUALDO, 1983, p. 85).


Aponta, ainda, como essa questão se manifesta nos estudos filológicos alexandrinos, nos
quais há uma supervalorização do que se entendia por “pureza linguística”, característica da
“língua utilizada pelos autores clássicos, tidos como portadores de bons modelos de
linguagem”. (ROMUALDO, 1983, p. 86). Chega, por fim, à linguística moderna, apontando
como a dicotomia saussureana – língua x fala –, de certo modo, corrobora a questão, uma vez
que “a língua (seja ela o que for) aparece como uma instituição social (forçosamente tida
como uma invariante) e a fala aparece como algo espúrio” (ROMUALDO, 1983, p. 86).
Como alternativa às noções arbitrárias de certo e errado, em sintonia com estudos
sociolinguísticos desenvolvidos no Brasil desde a década passada e compreendendo a
heterogeneidade linguística no interior das relações de poder, o linguista traz à discussão os
conceitos de normas de prestígio e normas estigmatizadas (ROMUALDO, 1981). Embora
toda e qualquer forma de expressão verbal reconhecível como legítima manifestação do
português brasileiro comporte “todos os recursos para permitir, dadas as condições, a
expressão de qualquer conteúdo que o grupo tenha necessidade de transmitir” (ROMUALDO,
1981, p. 18), o modo como as normas são interpretadas socialmente segue parâmetros
determinados pelas relações desiguais de poder, as quais, estruturalmente, orientam como os
indivíduos enxergam uns aos outros. Em linhas gerais,

sentimos que existem variantes prestigiadas socialmente e outras estigmatizadas,


quando nos deparamos com julgamentos preconceituosos do tipo: português certo,
português errado, falar feio, falar bonito. A variante do português sentida como feia,
errada, sem lógica, está relacionada, de alguma forma, com os falares das classes
menos favorecidas. Em contrapartida, o português tido como bonito,
desembaraçado, certo, coincide, grosso modo, com o ideal de língua imposto pelas
classes favorecidas (ROMUALDO, 1981, p. 16).

As questões que giram em torno da discussão promovida por Romualdo (no Brasil,
desenvolvida inicialmente na segunda metade da década de 1970, vale lembrar) e por alguns
outros que, de modo pioneiro e propositivo (cf. BORTONI, 1978), se preocuparam com
questões concernentes às formas de discriminação pela linguagem (em outras palavras,
preconceito linguístico) exerceram forte influência no rumo que tomou a reflexão sobre a
linguagem e ensino de língua portuguesa no país, a julgar pelo considerável volume de
publicações, eventos científicos e cursos de atualização docente sobre o tema que eclodiram
no Brasil nos últimos, pelo menos, trinta anos.
Já no campo da pedagogia de línguas, o texto de Cagliari (1982), única das fontes do
CEL da década de 1980 que toca diretamente em questões de ensino, traz, em tom
169

propositivo, contribuições consistentes à reflexão sobre a aprendizagem inicial da leitura na


educação infantil. Mais que isso, ao admitir que habilidades e competências linguísticas
devam ser trabalhadas de modo articulado, uma vez que é função da escola “ensinar como o
português (e a linguagem de modo geral) funciona e habilitar os alunos a entenderem ao
máximo os usos que eles podem fazer de sua língua nas mais variadas situações”
(CAGLIARI, 1982, p. 7), o autor também discute questões atinentes aos eixos de
conhecimentos linguísticos, escrita e oralidade.
Assim como Romualdo (1981 e 1983), assumindo a concepção de linguagem como
um fato social e histórico, Cagliari (1982) destaca a natureza mutável das línguas e aponta
como as formas de segregação pela linguagem, reforçada em muitos casos pela própria escola,
assolam a sociedade em geral. O autor reconhece que, “no quadro nacional da língua
portuguesa, há variedades de prestígio e variedades estigmatizadas pela sociedade”
(CAGLIRIARI, 1982, p. 8) e que é papel da escola trabalhar em prol da desconstrução do
preconceito linguístico, cabendo ao professor, para tanto, abandonar metodologias presas à
dicotomia certo-errado proclamada pela gramática tradicional. Em vez de corrigir os falares
que não correspondem às variedades de prestígio, apoiando-se em uma concepção homogênea
e estática de língua, a escola deve “ensinar como ela [a língua] funciona, os usos que tem, as
variedades que apresenta e seus valores sociolinguísticos” (CAGLIARI, 1982, p. 8).
A despeito da clara defesa de uma pedagogia inclusiva que ponha em discussão as
múltiplas variedades linguísticas, seu funcionamento e seus efeitos, Cagliari (1982) enfatiza
que isso não anula o compromisso da educação básica com o ensino da variedade de prestígio,
cujo domínio representa “uma forma de promoção social de que a escola não pode descuidar”
(CAGLIARI, 1982, p. 9). Reforçando a coesão interna dos agentes que permitiram a
emergência e o desenvolvimento da TSD no Brasil, é possível observar que a posição de
Cagliari (1982) converge com o que têm defendido, desde o final da década de 1970,
linguistas e educadores sobre ensino de língua portuguesa pelo viés da sociolinguística
educacional: a escola deve enfatizar a heterogeneidade linguística, a pluralidade de falares,
sem, entretanto, abdicar do ensino da norma de prestígio, que deve ser estudada como uma
entre outras formas de manifestação verbal.
Por fim, ainda sobre Cagliari (1982), destaco a breve discussão que o autor promove
acerca das modalidades de uso da língua – fala e escrita –, reflexão desenvolvida com maior
profundidade em trabalhos ligados à linguística de texto. A reflexão sobre as características da
fala e da escrita é de fundamental importância para o ensino, tendo em vista que textos
170

falados e escritos são objetos de análise e objetivo de produção em sala de aula. Contrariando
o que costumeiramente se acreditava na opinião pública e em muitos dos materiais didáticos
de então, “a escrita não é um espelho da fala, mas uma realidade linguística à parte”
(CAGLIARI, 1982, p. 12). Defende o autor a importância de compreender que falar e
escrever constituem habilidades diferentes, ou seja, cumprem propósitos comunicativos e
interacionais distintos, abrindo, assim, espaço para um trabalho pedagógico que contempla a
flexibilidade de realizações característica da língua em funcionamento efetivo.
No horizonte dos estudos discursivo-enunciativos, três trabalhos selecionados para
esta seção figuram nesse domínio (FUCHS, 1984; SETTE, 1984; JACQUES, 1985). Desses,
dois (FUCHS, 1984; JACQUES, 1985) são traduções de textos publicados originalmente na
França, berço dos estudos discursivos. O trabalho de Catherine Fuchs, intitulado O sujeito na
teoria enunciativa de Culioli: algumas referências, foi traduzido por Letícia Robert; já o
artigo Do dialogismo à forma dialogada: sobre os fundamentos da abordagem pragmática,
assinado originalmente por Francis Jacques, ganhou versão em português advinda da tradução
de Lígia Fonseca Ferreira.
Embora tratem de questões distintas, os três trabalhos supramencionados se encontram
em alguns pontos, sobretudo no que diz respeito à reflexão sobre o processo de enunciação e o
papel dos interlocutores no ato interlocutivo. Também compartilham, por consequência do
ponto de convergência destacado, visão de língua como um processo instável e dialógico que
se constrói/reconfigura constantemente. Fuchs (1984), por exemplo, em oposição à tradição
formalista, afirma que

o sistema linguístico não é mais um espaço homogêneo, um conjunto de regras


interiorizado por todo locutor de uma comunidade linguística, mas um espaço que é,
ele próprio, recortado pela oposição entre o estável e o instável, lugar de
ajustamentos e desvios (FUCHS, 1984, p. 78).

Já Sette (1984), também assumindo oposição explícita à tradição formalista, abre seu
artigo com uma célebre passagem de Marxismo e filosofia da linguagem, de
Volochínov/Bakhtin, importante obra que, àquela época, já circulava nos centros de pesquisa
brasileiros:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de
formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação (VOLOCHÍNOV, 1981, apud SETTE, 1984, p. 87).

Partindo, portanto, de uma concepção dialógica de língua e de linguagem, os autores


mostram como compreendem o processo de interlocução e seus protagonistas, os
171

interlocutores. Naturalmente, uma vez que se fundamentam numa perspectiva dialógica e


interacional, afastam-se de esquemas comunicacionais/enunciativos que julgam mais
engessados, haja vista o papel centralizador que esses empreendimentos teóricos atribuem à
figura do eu-emissor. Fuchs (1984), por exemplo, ao propor a noção de coenunciação,
advinda do linguista francês Antoine Culioli, como alternativa ao esquema comunicacional de
Jakobson, substitui os papéis de emissor e receptor por interlocutores ou coenunciadores. A
coenunciação é tratada pela autora como um processo interacional estabelecido a partir das
“relações complexas que tecem os interlocutores por meio da linguagem” (FUCHS, 1984, p.
80). Sette (1984), por sua vez, ao analisar os processos de simetria e assimetria em diálogos
espontâneos, também reconhece a relação dialógica estabelecida entre os interlocutores, que,
enquanto coenunciadores, determinam/influenciam uns aos outros. Ao tratar da questão, Sette
(1984) busca apoio em Brown e Ford, para quem “the selection of certain linguistic forms is
governed by the relation between the speaker and his addressee” (BROWN e FORD, 1961,
apud SETTE, 1984, p. 375). Jacques (1985), por fim, na mesma esteira, se opõe à teoria
enunciativa do linguista francês Émile Benveniste – para quem o centro da enunciação reside
no Eu –, justificando que “não basta afirmar que o discurso é dirigido a alguém. Esta
trivialidade não leva a nada. Deve-se chegar à concepção do ouvinte como verdadeiro
coenunciador” (JACQUES, 1985, p. 23, grifo meu). Enfatizando a natureza interlocutiva e
dialógica do processo de enunciação, complementa:
A enunciação não é apenas „a atividade exercida por aquele que fala no momento
em que fala‟. Ela é também a atividade exercida por aquele que escuta, sem prejuízo
do fato de que a característica da comunicação verbal é que aquele que fala pode
ouvir-se eventualmente a si mesmo pelo ouvido do outro (JACQUES, 1985, p. 25).

A análise desses trabalhos nos permite enxergar a expressividade dos estudos


discursivo-enunciativos no Brasil, que, iniciados na década de 1970, começavam, nos anos de
1980, a ganhar força e notoriedade. Embora dois dos três textos selecionados tenham sido
produzidos originalmente na Europa, sua tradução para o português e, mais que isso, a
veiculação em periódico de alto impacto reforçam que as reflexões de natureza discursiva,
àquela altura, primeira metade da década de 1980, constituem pauta de interesse da linguística
brasileira.
No domínio dos estudos sobre o objeto texto, Koch (1988) apresenta, ao mesmo
tempo, um texto de diluição, no qual se fundamenta nos preceitos básicos da linguística de
texto, e um texto de ação, na medida em que estabelece, propositivamente, avanços e
deslocamento em relação à teoria. À época, segunda metade da década de 1980, o grupo de
172

especialidade em torno dos estudos textuais já mostrava reconhecível organização interna e


gozava de acentuada credibilidade no interior da linguística brasileira, cenário resultante,
principalmente, de ações concretas desse grupo, a exemplo da criação do já mencionado GT
da Anpoll Linguística de texto e Análise da conversação (1985) e da publicação de obras
propositivas importantes (cf. MARCUSCHI, 1983; FÁVERO e KOCH, 1983). O trabalho de
Koch (1988) aqui analisado se insere nessa atmosfera intelectual, marcada por uma forte e
coesa articulação entre os agentes ligados ao grupo de especialidade da linguística de texto.
Não por acaso, no artigo mencionado, Ingedore Koch lança nota em agradecimento aos
colegas Luiz Antônio Marcuschi e Luiz Carlos Travaglia, pela, em suas palavras, leitura
criteriosa e discussão da versão preliminar do trabalho.
Em consonância com os principais aspectos investigativos enfatizados ao longo do
primeiro momento da linguística de texto no Brasil, período que se prolonga até o final da
década de 1980, o interesse central de Koch (1988) reside na compreensão dos mecanismos
de coesão do português brasileiro e suas funções na construção da textualidade. Partindo
inicialmente das classificações de Halliday (1976), Faria et al. (1983) e Marcuschi (1983) – o
que reforça a natureza de diluição do texto –, a linguista propõe uma “reclassificação dos
procedimentos coesivos mais utilizados em nossa língua” (KOCH, 1988, p. 73, grifo meu) –
abordagem característica de textos de ação.
Embora Koch (1988) não trate explicitamente de questões discursivo-pragmáticas em
sentido estrito – uma vez que seus objetivos giram em torno de aspectos da textualidade no
domínio frasal –, é possível perceber, ao longo da discussão sobre as regularidades que
orientam a coesão referencial e a coesão sequencial, o atravessamento da concepção de
linguagem como interação tal como a concebem os estudos do texto desenvolvidos à época.
Ainda que não seja o foco do artigo, convém destacar a importância da discussão
empreendida por Koch (neste e em outros trabalhos) para o amadurecimento da reflexão sobre
ensino de língua a partir de uma abordagem do texto, este encarado como unidade linguístico-
discursiva a partir da qual os indivíduos compreendem o mundo e nele (e com ele) interagem.
Enquanto Koch (1988) se preocupou em tratar de aspectos relativos à construção dos
textos, Possenti (1988), por sua vez, dedicou-se à reflexão sobre sua (dos textos) apreensão
em atividades de leitura. Sem advogar para si pertencimento a um ou outro campo disciplinar
da linguística (não há nenhuma referência bibliográfica citada no texto, por exemplo),
Possenti (1988) busca comprovar que, em alguns casos, o texto determina (impõe, nas
palavras do autor) o sentido da leitura. A proposta contempla o frequente debate da época –
173

que surge emparelhado à emergência de proposições atreladas à TSD – do qual surge o


seguinte questionamento: afinal, como se constrói(em) o(s) sentido(s) pela leitura?
Empreendimentos ligados à(s) análise(s) do discurso, como vimos no capítulo 4, lidam
com a questão partindo da hipótese de que o texto funciona como via de acesso ao discurso,
espaço onde residem os (efeitos de) sentidos (cf. ORLANDI, 2009). Esse modo de enxergar o
gesto de leitura, do qual resultam as interpretações, surge na cultura linguística em
contraposição aos estudos que enxergam os sentidos imanentes às estruturas linguísticas (o
sentido reside no texto) ou como resultado da expressão do pensamento do autor (o sentido
reside no pensamento do autor). Todavia, embora compreenda a natureza discursiva da leitura
e o atravessamento dialógico da linguagem, Possenti (1988) afirma que, em alguns casos, ao
se negar a especificidade do texto e sua “determinação” na construção de leituras autorizadas,
corre-se o risco de se cair num “subjetivismo grosseiro do vale-tudo, sem nenhum lugar para
uma teoria minimamente séria sobre qualquer aspecto da linguagem, ou, pelo menos, da
interpretação” (POSSENTI, 1988, p. 111).
Em linhas gerais, o linguista entende que as três formas de se encarar a leitura –
incluindo-se aí a discursiva, se de alguma forma se desconsidera a determinação/imposição do
texto em certos casos – são extremos que não explicam, efetivamente, como os indivíduos
produzem sentido através da leitura. A passagem que segue reforça a posição assumida pelo
autor:
Há propostas que argumentam em favor da existência de um grau de literalidade, e
outras que pretendem que um texto não passa de uma pista para a interpretação do
leitor, cujo papel seria de certa forma predominante. (...) Ambas as situações são
provavelmente absurdas (...) (POSSENTI, 1988, p. 111).

Como alternativa às posições extremadas, Possenti (1988) postula que a multiplicidade


de estratégias de leitura é proporcional à variedade de textos existentes nos contextos de
interação: “há textos de variada natureza, cada um deles, ou cada tipo, exigindo o
acionamento de diversos fatores, uns linguísticos e outros contextuais (...)” (POSSENTI,
1988, p. 111). Se, por um lado, existem textos plurissignificativos, por outro, existem também
aqueles aos quais só se permite uma única leitura, como é o caso de alguns textos
humorísticos analisados pelo autor ao longo do artigo, os quais,“se não interpretados da
maneira demandada por ele, não produzem seu principal efeito” (POSSENTI, 1988, p. 112).
Ainda sobre a leitura desse tipo de texto, reforça: “a cada passo da leitura, o leitor é obrigado
a deixar de lado alguma das possíveis interpretações, por ser incongruente em relação ao
restante do texto” (POSSENTI, 1988, p. 114).
174

Respondendo às críticas que eventualmente poderiam surgir como reação à sua


posição sobre a leitura – afinal, pululavam na segunda metade da década de 1980 trabalhos
que advogavam por uma teoria da interpretação de natureza fundamentalmente discursiva –,
ressalta Possenti (1988): “argumentar que um texto impõe a seus leitores uma leitura única
sob pena de não entenderem sua razão de ser não é a mesma coisa que dizer que o leitor é um
receptor passivo do texto, diante do qual só lhe resta a mera decodificação” (p. 116). Vê-se,
portanto, que, uma vez proposta uma explicação para o funcionamento leitura em que são
considerados os sujeitos e os contextos, mas também (ou “sobretudo”, em alguns casos) o
texto (ainda que em sua unidade significativa), não se pode negar que Possenti (1988)
contribuiu com questões que orbitam em torno da TSD, sendo dela um agente articulador
relevante.

5.2.4 Trabalhos em Linguística Aplicada

O periódico Trabalhos em linguística aplicada (doravante TLA) assume importância


expressiva para esta tese, na medida em que, enquanto receptáculo de fontes historiográficas,
reúne importantes textos de ação que tratam do ensino de língua portuguesa do ponto de vista
sociodiscursivo, escritos por lideranças intelectuais e organizacionais imprescindíveis ao
desenvolvimento e posterior consolidação da TSD no Brasil. Convém destacar que,
contrariando a regularidade observada nas seções de análise anteriores, todos os textos aqui
investigados lidam diretamente com questões atreladas a algum aspecto do ensino de língua
portuguesa em seus diferentes eixos constitutivos.
Segue, abaixo, a relação das fontes analisadas nesta seção.

Quadro 23 – Informações das fontes analisadas do periódico Trabalhos em Linguística Aplicada publicadas no
período de desenvolvimento da TSD

IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES


Título Autoria Referência
Em terra de surdos-mudos (um
estudo sobre as condições de Percival Leme Brito Brito (1983)
produção de textos escolares)
Significação, leitura e redação Eni Orlandi Orlandi (1984)
Leitura como suporte para a Freda Indursky
Indursky e Zinn (1985)
produção textual Maria Alice Kauer Zinn
Prática de produção de textos na João Wanderley Geraldi Geraldi (1986)
escola
Criatividade e gramática Carlos Franchi Franchi (1987)
Situações dialógicas Stella Maris Bortoni Bortoni (1988)
assimétricas: implicações para o
175

ensino
Níveis de detalhamento na
descrição gramatical: uma Mario A. Perini Perini (1988)
perspectiva pedagógica
Contribuições de uma gramática
do texto para o ensino de língua Maria Christina Diniz Leal Leal (1988)
materna (O caso da língua
portuguesa)

Fonte: o autor, 2019

No domínio do ensino de produção textual – ou redação, para utilizar o termo mais


recorrente na década de 1980 –, duas fontes se destacam: Brito (1983) e Geraldi (1986). Pode-
se dizer que os dois autores são peças fundamentais da construção de um grupo de
especialidade em torno da TSD preocupado com questões de ensino de língua materna cuja
fundação se dá, principalmente, no interior do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da
Unicamp e que, ao longo das décadas de 1980 e 1990, se espalha para outras instituições de
pesquisa e ensino brasileiras. As ações desse grupo – do qual fazem parte, além de Wanderley
Geraldi e Percival Leme Brito, nomes como Sírio Possenti, Haquira Osakabe, Carlos Franchi,
Maurício Gnerre, Cláudia Lemos, Antônio Alcir Pécora, entre outros – foram de suma
importância para consolidação do discurso da mudança e sua divulgação em diferentes
espaços. Destacar esse caráter colaborativo da produção do conhecimento reforça que a TSD
e seus corolários angariaram status de tradição não devido ao trabalho do acaso, como tenho
insistentemente defendido.
Brito (1983) tem consciência do atravessamento de outras vozes em suas proposições,
reconhecendo, pois, que sua reflexão resulta de um trabalho coletivo do qual faz parte – “Sei
que não estou sendo original, nem viajo sozinho” (BRITO, 1983, p. 150). Ao tratar do lugar
da escrita na educação básica, tentando, nesse percurso, “identificar os elementos que
subjazem e dirigem a produção do texto escolar, caracterizando o quadro de suas condições de
produção” (BRITO, 1983, p. 150), apoia-se em trabalhos anteriores – “Se não parti deles,
tomei-os como fontes e interlocutores” (p. 151) –, como o de Lemos (1977), que “propôs
explicar os problemas de redação (...) desviando o problema da mera questão da norma
colocando-o numa visão funcional e discursiva” (BRITO, 1983, p. 151); bem como em
Pécora (1980), que, em texto de ação, “desenvolveu bastante o quadro das condições de
produção, levantando questões inéditas e instigadoras” (BRITO, 1983, p. 151).
176

Os trabalhos de Brito (1983) e Geraldi (1986) convergem em alguns pontos


particulares. Além de pertencerem ao mesmo circuito de reflexões que emergiu em torno do
IEL, situam-se no mesmo clima de opinião, o que justifica terem lidado, em seus trabalhos,
com questões e abordagens bastante próximas sobre ensino de produção textual. A inclusão
da prova de “redação” nos exames vestibulares ainda era pauta recorrente dentro e fora da
escola, motivo pelo qual muito se discutia sobre o ensino de competências textuais de escrita.
Nesse contexto, pesquisadores e professores buscavam elaborar estratégias metodológicas
capazes de solucionar o problema do atestado baixo desempenho dos alunos secundaristas em
atividades de redação, bem como refletiam sobre as possíveis causas do problema
generalizado. É no bojo dessa discussão que surgem os trabalhos de Brito (1983) e Geraldi
(1986).
Ambos os autores enfatizaram em suas análises fatores diversos que poderiam explicar
os porquês do baixo rendimento na produção escrita dos alunos, opondo-se à regular opinião
pública que se limitava à “condenação pura e simples do estudante” (BRITO, 1983, p. 150).
Para Brito (1983), a raiz do problema não reside nos sujeitos que escrevem, afinal, o resultado
dos textos produzidos pelos alunos na escola – espaço em que não raro acontece um tipo de
“ritual pedagógico destruidor das características fundamentais da linguagem” (GERALDI,
1986, p. 24) – “mostra algo mais que falta de leitura ou má aquisição de conectivos, regras e
técnicas” (p. 150).
Para os autores, os problemas inerentes às práticas de redação na escola estão
diretamente relacionados às concepções de linguagem – das quais resulta o que se entende por
escrita de textos – subjacentes ao trabalho com a escrita nesse espaço. Assim, opondo-se à
prática de produção textual que, artificial, parece negar o caráter interacional e dialógico da
linguagem a que subjaz uma concepção de língua (e de escrita) concentrada antes na
estrutura, Brito (1983) e Geraldi (1986) compreendem a linguagem como trabalho dialógico
construído em situações de interlocução, ou seja, “como uma atividade interacional,
constitutiva dos sujeitos que a praticam, mas também constituída por estes mesmos sujeitos e
por esta mesma prática” (GERALDI, 1986, p. 23). Em resumo,
é próprio da linguagem seu caráter interlocutivo. A língua é o meio privilegiado de
interação entre os homens e, em todas as circunstâncias em que se fala ou se escreve
há um interlocutor. (...) O monólogo não é mais do que uma situação comunicativa
em que o locutor elege a si mesmo como interlocutor (BRITO, 1986, p. 151).

Assumindo a concepção de linguagem como interação, os autores apontam os


problemas e as consequências da prática de redação escolar, trabalho que, em circularidade,
177

serve apenas para “ultrapassar os obstáculos construídos pela própria escola. (...) Aprende-se
a escrever na escola para a própria escola” (GERALDI, 1986, p. 24). Ou seja, o trabalho com
a escrita na escola (ou para a escola?), na grande maioria dos casos, se reduz ao cumprimento
de uma demanda artificial imposta pela própria escola, tarefa que traz como consequência a
negação do caráter interacional dos textos que circulam nas diferentes esferas de interlocução.
No tempo destinado à redação escolar, defende Brito (1986), os alunos escrevem para um
destinatário falseado, artificial, tendo o professor como único interlocutor presumido, uma vez
que, no fim, o produto de sua escrita estará sujeito à avaliação. Nas próprias palavras de Brito
(1986, p. 154-155),
dentro da situação escolar existem relações muito rígidas e bem definidas. O aluno é
obrigado a escrever dentro de padrões previamente estipulados e, além disso, o seu
texto será julgado, avaliado. O professor, a quem o texto é remetido, será o principal
– talvez o único – leitor da redação. Consciente disto, o estudante procurará escrever
a partir do que acredita que o professor gostará. Mais precisamente, fará a redação
com base na imagem que cria do “gosto” e visão de língua do professor. Serviço à la
carte.

Geraldi (1986) corrobora a visão de Brito (1983) sobre a questão, confirmando a


coesão interna do grupo de especialidade do qual fazem parte, condição necessária a seu
sucesso (cf. MURRAY, 1994):
O destinatário mais evidente, mais próximo, é o professor, ainda que o exercício seja
escrever para um amigo um bilhete convidando para uma festa que não ocorrerá.
Note-se, no entanto, que o professor é o papel institucional: representa a escola,
representa quem ensina. Não se trata, pois, de um destinatário „real‟ que ouvirá/lerá
o texto, mas de um papel que anula este destinatário. O aluno vive a contradição de
escrever para quem lhe ensina a escrever, que lerá o texto não para saber o que o
texto diz, mas para ver se o aluno sabe ou está aprendendo a escrever. A presença
deste interlocutor, com esta imagem, é tão forte que acaba destruindo o próprio
locutor (GERALDI, 1986, p. 25).

Enquanto Brito (1983) não indica ações explícitas para a resolução do problema
inerente à prática de redação escolar – é possível, entretanto, pressupô-las –, Geraldi (1986),
que se dirige diretamente a professores do ensino básico 31, aponta caminhos exequíveis com
vistas a um trabalho transformador com a escrita na (e não apenas para a) escola,
confirmando o caráter propositivo de seu texto de ação. Assim, Geraldi (1986) frisa a
necessidade de se compreender que:

a) a sala de aula é um espaço físico como qualquer outro (o escritório, a casa, etc.) e
nela é possível escrever;
b) a aula de redação não é mais do que espaço temporal, aproveitável ou não, para
iniciar um processo de interlocução à distância (...);

31
O texto analisado, Prática de produção de texto na escola, é fruto da conferência proferida por João
Wanderley Geraldi no III Encontro de professores de redação do estado do Rio de Janeiro, ocorrido em 1985.
178

c) só se aprende a escrever escrevendo, e não simulando situações de escrita (p. 26-


27).

No domínio da leitura como atividade discursiva em que, na relação com a


materialidade textual, indivíduos assumem a posição de sujeito-leitor, figuram neste recorte
da TLA os textos de ação de Orlandi (1984) e Indursky e Zinn (1985). Como se pode
perceber, os trabalhos em questão partem dos fundamentos da análise do discurso preconizada
por Michel Pêcheux, teoria que “trata da determinação histórica dos processos de
significação” (ORLANDI, 1984, p.37), o que implica, necessariamente, o trabalho com “o
contexto sócio-histórico, ideológico, a situação, os interlocutores e o objeto de discurso”
(ORLANDI, 1984, p. 37).
Por esse viés, reconhecendo a natureza heterogênea da linguagem e dos sujeitos, bem
como sua determinação social, histórica e ideológica, tanto Orlandi (1984) quanto Indursky e
Zinn (1985) lidam com a leitura enquanto prática de linguagem “produzida em condições
determinadas, ou seja, em um contexto sócio-histórico que deve ser levado em conta”
(ORLANDI, 1984 p. 38). Essa postura sobre a leitura como um processo de construção se
opõe a práticas pedagógicas que, partindo de uma concepção estrutural de língua e texto,
trabalham-na (a leitura) “de forma homogeneizada (e homogeneizante)” (ORLANDI, 1984, p.
43), como parte de “um projeto programado pelo professor para obter uma resposta única e
universal” (INDURSKY e ZINN, 1985, p. 77).
À perspectiva da leitura como trabalho discursivo está atrelada a noção de texto como
unidade significativa complexa (INDURSKY e ZINN, 1985) e de leitor como sujeito que
trabalha com a opacidade da linguagem. Desse modo, nesse trabalho, o sujeito-leitor “interage
com o texto, relaciona-se dinamicamente com ele, estabelece trocas, analisa, questiona,
capacitando-se para selecionar dados significativos desta experiência” (INDURSKY e ZINN,
1985, p. 78), afinal, “todo leitor tem sua história de leituras. As leituras já feitas configuram
(...) a compreensão do texto de cada leitor específico” (ORLANDI, 1984, p. 39).
Dessa forma, uma vez assumida a opacidade da linguagem (e dos textos), a
historicidade dos sujeitos e sua relação com as condições de produção quando do trabalho
enquanto sujeito-leitor, depreende-se que “não há leituras previstas por um texto, em geral,
como se o texto fosse fechado em si mesmo e autossuficiente. Há leituras previstas pra ele”
(ORLANDI, 1984, p. 39). Isso não quer dizer, entretanto, que toda e qualquer leitura esteja,
por assim dizer, “autorizada”, cabendo aos sujeitos determiná-las ao sabor de suas vontades e
experiências passadas. A esse respeito, salienta Orlandi (1984, p. 37): “enquanto parte do
179

funcionamento social geral, a linguagem é regulada, ou melhor, as situações de linguagem são


reguladas: (...) não se pode entender o que se quer, de qualquer maneira, em qualquer
situação”.
Partindo desses pressupostos que estão na base de uma perspectiva discursiva atrelada
à TSD (como discutido no capítulo 4), as autoras propõem o trabalho com a leitura na escola
como um exercício de percepção da natureza sociodiscursiva da linguagem, trabalho este
necessário à formação de leitores-cidadãos autônomos. Em suma, defendem que
através da leitura, o aluno assuma uma postura crítica. Ler criticamente é admitir
pluralidade de interpretação, desvelar significados ocultos, resgatar a consciência do
mundo, estabelecendo, por meio dela, uma relação dialética com o texto
(INDURSKY e ZINN, 1985 p. 78).
[a escola deve] modificar as condições de produção de leitura do aluno, dando
oportunidade a que ele construa sua história de leituras e estabelecendo, quando
necessário, as relações intertextuais, resgatando a história dos sentidos do texto, sem
obstruir o curso da história (futura) desses sentidos (ORLANDI, 1984, p. 39).

Neste momento de desenvolvimento da TSD no Brasil, sobretudo na primeira metade


da década de 1980, poucas eram as pesquisas acerca do ensino de língua desenvolvidas em
torno da análise do discurso de orientação pecheutiana. Grande parte dessa produção, sem
dúvida, está de algum modo relacionada à liderança de Eni Orlandi, inclusive o texto de
Indursky e Zinn (1985), a julgar pela relação estabelecida na Unicamp, instituição em que
Orlandi orientou o processo de doutoramento de Freda Indursky, iniciado em 1985.
Além de trabalhos dedicados ao ensino da leitura e da produção textual, também
fazem parte do recorte deste momento da TLA fontes cuja reflexão sobre linguagem recai no
domínio do ensino da gramática, pauta em voga no contexto do desenvolvimento da TSD no
Brasil, momento em que o discurso da mudança começa a ganhar mais força dentro e fora do
espaço universitário. Nesse horizonte de discussão, enquadram-se Franchi (1987), Perini
(1988) e Leal (1988). Embora essas fontes partam de princípios similares – ligados à TSD –
no que diz respeito ao ensino dos conhecimentos gramaticais, tratarei, num primeiro
momento, apenas do texto de Franchi (1987), devido à importância decisiva tanto do autor,
enquanto liderança, como da fonte em si, para a discussão sobre noções de gramática e suas
implicações para a educação linguística.
Carlos Franchi foi figura decisiva no IEL da Unicamp, onde, ao lado de nomes como
Haquira Osakabe, Carlos Vogt e Rodolfo Ilari, teve papel de liderança na articulação de
pautas importantes para a TSD na pesquisa linguística brasileira. Publicações em sua
homenagem – como é o caso do volume 22 do Caderno de Estudos Linguísticos (1992) ou do
Caderno Temático do Jornal da Unicamp, número 161 (2001) – e a organização de coleção
180

composta por textos de sua autoria (FRANCHI, 2006) reforçam a importância do seu legado
para a linguística brasileira. No que concerne à história da TSD no Brasil, convém destacar,
ainda, que lideranças organizacionais importantes para o desenvolvimento (e para a
consolidação, posteriormente) dessa tradição, como Sírio Possenti e João Wanderley Geraldi,
foram orientadas por Carlos Franchi, de quem, pode-se dizer, sofreram forte influência no que
tange à reflexão sobre linguagem e ensino32. Como reforça Possenti (2006, p. 9), é preciso
“fazer justiça a Carlos Franchi, cujas ideias sobre ensino são frequentemente repetidas sem
que se diga ou se saiba de onde vieram”, ratificando a importância do linguista, enquanto
liderança intelectual, por vezes esquecida ou desconhecida. A esse respeito, João Wanderley
Geraldi, resgatando memórias da trajetória de Franchi, confirma uma de suas marcas
características que de algum modo pode explicar parte do desconhecimento que paira sobre a
produção do linguista: “ele tinha uma grande formação, mas sempre se recusou a correr atrás
de „papers‟ e de publicação”33. Se, de um lado, Franchi foi peça-chave na formação intelectual
do grupo de especialidade emergente na Unicamp, de outro, a tarefa de divulgação sistemática
de resultados de pesquisas – em artigos, ensaios, livros e conferências – ficou a cargo de seus
orientandos e parceiros, agentes que, nesta narrativa, estou chamando de lideranças
organizacionais.
Em Franchi (1987), deparamo-nos com uma versão reformulada de um trabalho de
mesmo nome – Criatividade e Gramática –, que, segundo o autor, circulava em versão
mimeografada, servindo de apoio para discussões em diferentes contextos acadêmicos. Essa
nova versão, destinada explicitamente aos “professores que ainda insistem em ser professores,
apesar de tudo” (FRANCHI, 1987, p. 5), apresenta linguagem menos técnica e estrutura
argumentativa mais dialogada. O artigo em questão é notadamente do tipo texto de ação,
tendo em vista o tom propositivo que assume. O reconhecimento da natureza de ação da fonte
se confirma pelo fato de o texto ter servido como material referencial em ação do Governo do
Estado de São Paulo, que, em 1991, publicou o trabalho na íntegra, visando possibilitar ao
“professor de língua materna aprofundar e compreender melhor o enfoque da Proposta
Curricular para o Ensino de Língua Portuguesa – 1º grau” (SÃO PAULO, 1991, p. 5). Além
disso, em 2006, o texto de Franchi foi publicado na obra Mas o que é mesmo “Gramática”?,

32
É honesto destacar, ainda, a importância de Haquira Osakabe, a quem Sírio Possenti e João Wanderley Geraldi
devem as primeiras orientações no curso de mestrado e com quem interagiram diretamente enquanto docentes e
pesquisadores do IEL. Osakabe foi, sem dúvidas, protagonista direto de discussões sociodiscursivas
empreendidas na Unicamp, sendo sua obra Argumentação e discurso político (1979) uma das responsáveis pela
divulgação de pesquisa brasileira em torno de questões do texto e do discurso.
33
Depoimento relatado no Jornal da Unicamp. Ano XV, nº 161, de 2001. Disponível em:
www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/set2001/unihoje_ju166_tema05.html, acesso em 09/09/2019.
181

organizada por Sírio Possenti, reforçando ainda mais a relevância do autor e a natureza da
fonte enquanto texto de ação.
A discussão de Franchi (1987) gira em torno da gramática e seu ensino na educação
básica. O autor parte da ideia de que é papel da escola exercitar a capacidade criativa do
estudante através de atividades de reflexão sobre a linguagem. Lançada a questão, indaga que
concepção de gramática daria conta da tarefa de proporcionar ao aluno diferentes formas de
significar a realidade através da linguagem, prática à qual está pressuposto o trabalho com a
criatividade.
Naturalmente, a julgar pela data de publicação da fonte, o trabalho de Franchi (1987)
se situa no contexto conturbado, dentro e fora dos centros de pesquisa linguística, em que
surgem questionamentos sobre o papel da escola no trabalho com a gramática – “Deve-se ou
não ensinar gramática? Se sim, que gramática?”. Como coloca o linguista, a década de 1980
vivenciou a emergência de críticas que apontavam a “insuficiência das noções e
procedimentos da gramática tradicional; a inadequação dos métodos de ensino da gramática; o
fato de que essa gramática não é relacionada a um melhor entendimento dos processos de
produção e compreensão de textos” (FRANCHI, 1987, p. 5). Entretanto, em alguns casos, não
vindo acompanhadas de “reflexões amadurecidas e bem informadas”, muitas dessas críticas,
aparentemente sob o rótulo de mudança paradigmática – rejeição da gramática –, caíam na
“inconsequência de uma prática „envergonhada‟ dos mesmos exercícios antigos sob outras
capas” (FRANCHI, 1987, p. 5).
Para pensar na gramática e sua relação com a criatividade, Franchi (1987) adota uma
visão de língua interacional, fundamentada na e pelas funções que esta assume nas interações.
Disso resulta uma posição de ruptura assumida pelo autor, que se opõe, para pensar na língua
e na linguagem, aos pressupostos da tradição formalista, em especial aos empreendimentos
estruturalista e gerativista. A passagem que segue sintetiza o modo como Franchi (1987) se
posiciona no interior da TSD, assumindo, nesse movimento, uma retórica de ruptura:

Em primeiro lugar, as línguas naturais não são sistemas tão sistemáticos como
pensaram os estruturalistas: cada ato de fala é sempre um ato de opção sobre um
feixe de possibilidades de expressão que o sujeito correlaciona às condições
variáveis da produção do discurso. Em segundo lugar, as regras da linguagem não
possuem, no geral, uma necessidade biológica ou lógica: sua regularidade tem um
fundamento social e antropológico e a obediência a elas tem um fundamento
funcional. Por isso essas regras podem ser alteradas, sobretudo quando o sujeito
investe de significação recursos expressivos não necessariamente "catalogados" ou
"codificados" (FRANCHI, 1987, p. 12).
182

Na continuidade dessa discussão, opõe-se ao corte saussureano – ao menos quando


esse ponto de partida determina o trabalho com o ensino de língua –, do qual resultou o
apagamento dos sujeitos (e sua capacidade criativa) de um quadro descritivo da linguagem. O
estudo da língua, para Franchi (1987), deve residir no entremeio entre as formas linguísticas e
as escolhas dos sujeitos, afinal, “a criatividade se manifesta quando o falante ultrapassa os
limites do „codificado‟ e manipula o próprio material da linguagem, investindo-o de
significação própria” (FRANCHI, 1987, p. 13).
Após considerações sobre as noções de gramática como sistema nocional descritivo e
como condições do “bom uso”, Franchi (1987) discute as implicações da gramática
tradicional para o ensino de língua portuguesa. Analisando gramáticas escolares, mostra como
os exercícios gramaticais, em muitos casos, limitam o trabalho na escola à apreensão de um
“sistema de noções e uma linguagem representativa (na verdade, uma nomenclatura) para
poder falar de certos aspectos da linguagem” (FRANCHI, 1987, p. 26). Além disso, descreve-
se uma língua que, órfã de contextos significativos, não encontra lugar na prática cotidiana.
As consequências dessa postura eram claras para o autor:

É justamente essa posição que justifica inteiramente o desapreço pelo estudo


gramatical nas escolas. Quando a gramática se estuda pelos seus aspectos
descritivos, vimos a pobreza de seus critérios e a inadequação dos métodos: faz-se
da linguagem um objeto morto para as biópsias e autópsias da segmentação, da
análise, da classificação (FRANCHI, 1987, p. 27).

O estudo da gramática em salas de aula, portanto, deve tomar como base fundamental
a relação entre língua e práticas sociais significativas, uma vez que

somente se aprende a gramática quando relacionada a uma vivência rica da língua


materna, quando construída pelo aluno como resultado de seu próprio modo de
operar com as expressões e sobre as expressões, quando os fatos da língua são fatos
de um trabalho efetivo e não exemplos descolados da vida (FRANCHI, 1987, p. 26).

Indo na direção contrária da prática escolar tradicional, e partindo do pressuposto de


que o ensino de língua deve residir no “estudo das condições linguísticas da significação”
(FRANCHI, 1987, p. 35), o autor assim define o principal papel da gramática na sala de aula:
“estudar a variedade dos recursos sintáticos expressivos, colocados à disposição do falante ou
do escritor para a construção do sentido” (FRANCHI, 1987, p. 35). Assim, não nega a
importância da gramática no ensino de língua materna – “ela está na frasezinha mais simples
que pronunciamos” (FRANCHI, 1987, p. 42) –, contanto que adotada com vistas à
compreensão da linguagem em sua práxis, traduzida na vida cotidiana. Por esse caminho,
183

pode o professor trabalhar o conhecimento linguístico enquanto prática criativa; em linhas


gerais,

baseando-se quase exclusivamente em sua própria intuição e sensibilidade, pode o


professor explorar em cada texto ou discurso, até na mais simples oração, as
inúmeras possibilidades de um exercício gramatical diretamente relacionado com as
condições linguísticas de produção dos enunciados, com o desenvolvimento dos
recursos expressivos de seus alunos, com a arte de selecionar entre eles os que mais
lhe pareçam adequados a suas intenções e ao estilo com que se quer caracterizar
(FRANCHI, 1987, p. 43).

Um ano após a publicação de Franchi (1987), a TLA organizou um volume especial


do periódico dedicado aos anais do I Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada, ocorrido
em setembro de 1986, na Unicamp. O evento foi de suma importância para a discussão de
temas caros à TSD, mais detidamente aqueles atrelados ao discurso da mudança. Entre as
falas, destaco a sessão plenária de Stella Maris Bortoni – Situações Dialógicas Assimétricas:
implicações para o ensino – e a fala de Mário Perini na mesa redonda Conceituação
gramatical na escola: questões e controvérsias. As duas apresentações, que foram publicadas
na TLA, compõem fontes historiográficas que passo agora a analisar.
O trabalho de Bortoni (1988) se reveste de relevância para esta tese por alguns
motivos particulares. Primeiramente, pela posição de importância que ocupava a autora
naquele momento do cenário da linguística nacional, fato que justifica ter sido ela a convidada
para abrir a primeira edição do Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada. Para além da
questão de autoria, a fonte em si nos apresenta questões relevantes para pensarmos na história
aqui interpretada. No texto em questão, deparamo-nos com avanços e deslocamentos no
trabalho da linguista – reconhecido pelas incursões na sociolinguística – sobretudo no que diz
respeito a questões de natureza teórica.
Em textos de autoria de Stella Maris Bortoni aqui analisados (cf. BORTONI 1978;
MAGALHÕES e BORTONI, 1981), percebe-se a forte presença da teoria sociolinguística de
vertente variacionista, preconizada por Labov, fato que, em 1988, não se repete. Visando
refletir acerca dos “problemas de comunicação entre falantes de diferentes variedades da
língua nacional” e destacando as “diferenças de comportamento linguístico-cultural
correlacionadas à estratificação socioeconômica e origem rural versus urbana dos falantes”
(BORTONI, 1988, p. 1-2), a autora busca fundamentação na sociolinguística interacional,
com ênfase nas contribuições advindas do linguista americano John Gumperz.
Embora todo empreendimento sociolinguístico se comprometa com o estudo de
fenômenos que residem no funcionamento das variações da língua, as perspectivas
184

variacionista e interacionista não se confundem, ainda que dialoguem. Como aponta Bortoni
(1988, p. 2),
enquanto o objeto da primeira circunscreve-se, basicamente, à descrição quantitativa
da variação linguística, inter e intraindividual, na segunda, o método heurístico é
interpretativo e seu objeto, o estudo do papel que as estratégias comunicativas
desempenham no processo de produção e reprodução da identidade social na
interação humana.

Em outras palavras, enquanto a sociolinguística variacionista concentra esforços no


aspecto linguístico da variação, embora busque fora da língua explicações para sua existência,
a sociolinguística interacional procura nas relações interlocutivas respostas para a
compreensão do funcionamento da linguagem. Portanto, ao “analisar a conversação
contextualmente situada, associando construtos sociais, sociocognitivos e linguísticos e
concentrando-se em estratégias discursivas” (BORTONI, 1988, p. 2), a sociolinguística
interacional dialoga com outros domínios epistemológicos, como, por exemplo, “a etnografia
da comunicação, a semântica cognitiva associada à pragmática dos atos de fala e a análise da
conversação” (BORTONI, 1988, p. 2-3).
Outro aspecto importante da sociolinguística interacional destacado por Bortoni
(1988) é sua contribuição para a discussão sobre os limites da noção de competência
linguística, defendida por Chomsky, para quem o falante detém de capacidade instintiva para
formular sequências linguísticas inteligíveis. Ao analisar as questões sociodiscursivas que
orbitam em torno da produção linguística, destaca que “há uma diferença fundamental entre o
que não é dito porque não há ocasião para dizê-lo e o que não é dito porque o falante não
dispõe dos meios para dizê-lo” (BORTONI, 1988, p. 4). Enquanto a tradição formalista lida
com o que é linguisticamente possível, a “sociolinguística e a etnografia voltam-se,
principalmente, para o que é adequado” (BORTONI, 1988, p. 4, grifo meu).
Na esfera educacional, em defesa de “uma escola comprometida com uma filosofia de
educação democrática e igualitária” (BORTONI, 1988, p. 8), Bortoni propõe uma reflexão
centrada na noção de “flexibilidade comunicativa”, à qual se liga uma prática docente
preocupada antes de tudo com as formas de interação pela linguagem cuja compreensão é
fundamental ao exercício da cidadania. Em suma, é papel da escola, nesse quesito,

sensibilizar o educando, fazendo-o refletir sobre atividades de linguagem que, por


sua própria natureza, não são reflexivas. Trata-se mesmo de transferir para a sala de
aula parte do trabalho de campo, transformando professores e alunos em verdadeiros
analistas de conversação. (...) o aluno será confrontado com episódios de interação,
preferencialmente autênticos e etnográficos, e deverá interpretá-los, identificando as
estratégias de negociação dos significados, a negociação do controle e do poder
(BORTONI, 1988, p. 8).
185

Para fechar esta seção da TLA, passemos à análise de duas fontes que dialogam
diretamente: Perini (1988) e Leal (1988). O texto de Mário Perini, como adiantei acima,
reproduz sua fala no I Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada, em que discutiu
concepções de gramática e algumas implicações pedagógicas; Leal (1988), também
participante do congresso, segue caminho análogo, ainda que não tenha composto a mesa em
que Perini expôs seu trabalho. As duas fontes traduzem o clima de opinião em que a discussão
sobre educação linguística acontecia no Brasil, dentro e fora da universidade, no qual a
pergunta que gramática ensinar na escola? era recorrente.
Pode-se dizer que Perini (1988) representa um texto de ação que dá continuidade às
proposições de renovação da gramática tradicional adotada na escola lançadas pelo autor,
mais precisamente em 1985, em sua obra Para uma nova gramática do português. Para Perini
(1988), o trabalho com a gramática tradicional na escola se compara a um programa de
geografia que “se propusesse como objetivo levar alunos do primeiro grau a um conhecimento
total da topografia de determinada parte do globo” ou a um programa de química que
“pretendesse capacitar os alunos a analisar totalmente certo número de substâncias, algumas
delas complexas” (PERINI, 1988, p. 23). Em outras palavras, espera-se de um programa de
gramática, tal como é frequentemente trabalhado, que

a certa altura dos estudos os alunos sejam capazes de classificar com segurança
todas, ou praticamente todas, as palavras da língua; e que sejam capazes de analisar
qualquer frase em seus termos e funções sintáticas. Espera igualmente que um
graduado em Letras seja capaz de fazer tudo isso, e mais alguma coisa, como poder
julgar da „correção‟ de qualquer construção encontrada em redações de seus alunos.
Acho que isso equivale, em termos de didática, a colocar no mesmo nível conhecer o
Himalaia e conhecer o Morro do Pinto (MG) (PERINI, 1988, p. 23).

Perini (1988) defende que certos aspectos descritivos e certas análises de natureza
metalinguística da língua deveriam se restringir a profissionais da linguagem, não a estudantes
da educação básica cuja demanda primeira reside no domínio de habilidades necessárias à
comunicação diária. E vai adiante, ao defender que “o estudo da gramática não tem
finalidades de aplicação prática imediata, em especial aplicações ao desenvolvimento das
habilidades de leitura e redação” (PERINI, 1988, p. 24). Acredita que o conhecimento sobre a
gramática serve como bem cultural, uma informação necessária à formação intelectual e
histórica do aluno, “como a de que Colombo descobriu a América em 1492” (PERINI, 1988,
p. 24).
186

Além disso, ainda no interior das críticas contundentes lançadas à gramática


tradicional, Perini (1988) aponta algumas inconsistências das classificações sugeridas pela
NGB, as quais “pecam pelo uso de critérios semânticos mal definidos, por pressuporem uma
relação entre sintaxe e semântica muito mais simples do que a que se observa na realidade,
por certo apriorismo das definições e por inconsistência generalizada” (p. 25).
É possível notar nas proposições de Perini (1988), apresentadas a partir de críticas às
inconsistências da gramática tradicional, que o linguista assume clara retórica de ruptura,
advogando por uma renovação sistemática e estruturante no modo de ensinar português na
educação básica. Naturalmente, enquanto liderança intelectual e pesquisador com alta idade
profissional, suas ideias (que não emergem da fonte ora analisada nem a ela se limitam) foram
de fundamental importância para o desenvolvimento da TSD na esfera educacional e do
discurso da mudança daí consequente. O texto que passo a analisar (e com o qual fecho esta
seção) reforça a influência das ideias de Mário Perini na reflexão sobre a educação linguística.
Somando voz ao acirrado debate sobre o lugar da gramática na escola, estabelecido no
interior da atmosfera intelectual da década de 1980, Leal (1988) busca, em texto de diluição,
“apresentar algumas reflexões sobre problemas que envolvem a gramática e o ensino da
língua portuguesa, particularmente no que diz respeito à sintaxe” (LEAL, 1988, p. 139).
Nessa discussão, promove intercâmbio explícito com as teses de renovação de Mário Perini,
como se pode perceber na seguinte passagem: “é necessária a elaboração de uma nova
gramática da língua portuguesa, nos moldes propostos por Perini. (...) Ampliam-se desta
forma as perspectivas dos estudos gramaticais para além do ponto de vista simplesmente
prescritivo” (LEAL, 1988, p. 140).
A fonte em questão nos permite reconhecer alguns traços do clima de opinião do
período, reforçando que a discussão sobre ensino de gramática na educação básica era
atravessada por muitas incertezas e imprecisões, o que justificaria certas interpretações
equivocadas sobre o discurso da mudança. A primeira consequência resultante dessa
atmosfera atravessada por incertezas (afinal, questionava-se a legitimidade da milenar
tradição gramatical, já enraizada na cultura ocidental) era

uma reação de insegurança quanto ao trato com a gramática que se manifesta, muitas
vezes, em orientações pedagógicas como „não se pode ensinar gramática‟ (...), nas
quais parece haver uma intenção velada de se alijar a gramática do âmbito do ensino,
como se o problema pudesse ser resolvido desta forma (LEAL, 1988, p. 139).
187

Nesse quesito, vê-se que as proposições pedagógicas atreladas a uma concepção


sociodiscursiva de língua e de seu ensino, ainda que em pleno desenvolvimento da TSD no
Brasil, enfrentaram dois problemas sutilmente distintos, porém interconectados: de um lado,
um grupo, geralmente ligado à sociedade geral, entendia (ou supunha) que a gramática estava
ameaçada e que a consequência primeira desse movimento seria um ensino de português
permissivo, tolerante ao erro; de outro, geralmente dentro da própria universidade (e isso se
aplica, com menor intensidade, até os dias de hoje), acreditava-se que os linguistas que davam
voz ao discurso da mudança, ao defenderem um trabalho focado na valorização da
pluralidade linguística e do respeito às normas desprestigiadas, recusavam o conhecimento
gramatical.
Tendo pontuado a inconsistência teórica, a falta de coerência interna e o caráter
predominantemente normativo da gramática tradicional – em intercâmbio direto com as teses
de Mário Perini –, Leal (1988) propõe uma prática com a gramática na escola (mais
detidamente com a sintaxe) e de análise de textos fundamentada numa abordagem funcional
da língua. Alinha-se, assim, ao empreendimento da linguística de texto tal como desenvolvida
na década de 1980 no Brasil, momento em que o projeto de uma gramática textual tinha
angariado força considerável34. Por esse caminho, defende a autora que “a integração da
perspectiva funcional da frase e da gramática do texto ao estudo da sintaxe da língua
portuguesa poderia trazer resultados dos mais positivos, não só resolvendo problemas,
corrigindo falhas, mas também preenchendo lacunas” (LEAL, 1988, p. 142).
As principais falhas e lacunas apontadas por Leal (1988) advêm da análise descritiva
subjacente à gramática tradicional, reduzida à oração – despida de contextos interlocutivos –
como unidade máxima de análise. Para a autora, o estudo da gramática deve necessariamente
estar atrelado ao estudo do texto em seu contexto, buscando-se, nesse trabalho, a “ampliação
dos limites da análise sintática da gramática tradicional, isto é, o exame não só das relações no
âmbito da frase, mas das interfrásicas, levando em consideração os princípios da textualidade,
sobretudo a coesão e a coerência” (LEAL, 1988, p. 142).

34
Na seção dedicada aos trabalhos da revista Letras de Hoje publicados na década de 1980 (5.3.1.2), analisei
fontes em que a proposta da gramática textual aparece definida precisamente. Vide, por exemplo, Neis (1981) e
Bordini (1982).
188

5.2.5 Atando os nós: à guisa de sistematização

As análises empreendidas nesta seção nos permitem compreender, em linhas gerais,


como se deu a constituição histórica da etapa de desenvolvimento da tradição sociodiscursiva
na pesquisa linguística brasileira e suas implicações para a reflexão sobre ensino de língua
portuguesa. No interior dessa trama histórica aqui interpretada, constatamos:

a. o abandono da teoria comunicacional, perspectiva que fundamentou sobremaneira


pesquisas que protagonizaram a etapa de emergência da TSD no Brasil, cedendo espaço
para trabalhos fundamentados pela linguística de texto, sociolinguística e análise do
discurso;
b. a expansão dos estudos brasileiros sobre o texto, iniciados, na primeira metade da década,
com o empreendimento da gramática textual;
c. a ampla divulgação de trabalhos da sociolinguística que tratam de questões atreladas às
normas linguísticas e às formas de discriminação pela linguagem;
d. a importância do trabalho de lideranças atreladas a diferentes grupos de especialidade que,
coletivamente, contribuíram com o desenvolvimento da TSD no Brasil;
e. o maior alcance das bases epistemológicas da TSD em centros de pesquisa e ensino
brasileiros, a julgar pelo número de textos de diluição fundamentados pelas diferentes
abordagens sociodiscursivas assinados por pesquisadores em formação (baixa idade
profissional);
f. o intercâmbio frequente (implícito ou explícito) entre trabalhos inscritos no domínio da
TSD, condição necessária ao desenvolvimento e posterior sucesso (MURRAY, 1994) de
uma tradição;
g. um conjunto de pesquisas comprometidas com a apresentação de alternativas para o
combate à crise do ensino de português pela qual, acreditam linguistas e educadores, o
ensino gramatical era em grande medida responsável;
h. um número expressivo de trabalhos sobre o ensino da leitura e produção de textos numa
perspectiva dialógica e interacional, enfatizando a importância do trabalho em sala de aula
com leitura e escrita significativas, inseridas em eventos reais de interlocução para além
das exigências escolares;
189

i. a emergência do discurso da mudança (PIETRI, 2003), entoado por lideranças e outros


agentes que apresentaram inconsistências conceituais e metodológicas atreladas à
gramática tradicional.

5.3 A CONSOLIDAÇÃO DA TSD E EFEITOS NA REFLEXÃO SOBRE ENSINO DE


LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL (1990-1999)

5.3.1 ALFA: Revista de Linguística

Os trabalhos da ALFA selecionados para esta seção trazem evidências historiográficas


relevantes à compreensão deste terceiro momento da TSD na pesquisa linguística brasileira.
No que diz respeito a trabalhos de natureza teórica, figuram aqui textos de ação e textos de
diluição que tratam de questões centrais da linguística textual, da análise do discurso e,
principalmente, do funcionalismo, abordagem para a qual foi dedicado um caderno especial
da revista. No eixo do ensino de língua portuguesa, discutem-se, numa abordagem textual-
discursiva ou funcional, aspectos relativos à escrita, à leitura e, sobretudo, aos conhecimentos
gramaticais.
Uma comparação entre os temas abordados nos trabalhos da ALFA da década de 1980
e os desenvolvidos agora, na de 1990, nos permite constatar um fato relevante para esta
historiografia: enquanto que muitos trabalhos publicados na etapa de desenvolvimento da TSD
no Brasil se dedicaram, principalmente, ao estudo da variação linguística e das formas de
discriminação pela linguagem, os publicados aqui, na etapa de consolidação dessa tradição,
concentraram-se em questões mais voltadas ao conhecimento gramatical (numa perspectiva
funcionalista, sobretudo) e seu lugar no ensino de português. É perceptível, portanto, um
deslocamento temático, ao longo dos anos, estabelecido pelas publicações da ALFA em torno
dos objetos constitutivos da TSD. Naturalmente, esse fato contribuiu com o desenvolvimento
do acirrado debate em torno do ensino de gramática na educação básica – e é também, de
certo modo, resultado dele – que marcou fortemente o clima de opinião em que se desenrolou
a pesquisa linguística brasileira na década de 1990.
Seguem as informações das fontes analisadas:
190

Quadro 24 – Informações das fontes analisadas do periódico ALFA: Revista de Linguística publicadas no
período de consolidação da TSD

IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES


Título Autoria Referência
Leitura: aspectos sociais da
Roberto Gomes Camacho Camacho (1992)
compreensão
Vieira-Abrahão
A leitura na sala de aula Maria Helena Vieira-Abrahão
(1992)
Linguística textual e ensino de
língua: construindo a textualidade Maria do Rosário V. Gregolin Gregolin (1993)
na escola
Reflexões sobre o estudo da
Maria Helena de Moura
gramática nas escolas de 1º e 2º Neves (1993)
Neves
graus
O papel do contexto social na
Roberto Gomes Camacho Camacho (1994)
teoria linguística
Um ponto de vista funcional sobre
Ataliba Teixeira de Castilho Castilho (1994)
a predicação
Uma visão geral da gramática Maria Helena de Moura
Neves (1994)
funcional Neves
A análise do discurso: conceitos e
Maria do Rosário V. Gregolin Gregolin (1995)
aplicações
A gramática de usos é uma Maria Helena de Moura
Neves (1997)
gramática funcional Neves

Fonte: o autor, 2019

No interior de uma atmosfera intelectual em que os saberes sociodiscursivos atrelados


à linguística de texto e à(s) análises(s) do discurso já constituíam pautas consolidadas na
agenda de pesquisa da Linguística brasileira, Roberto Gomes Camacho e Maria Helena
Vieira-Abrahão promoveram a discussão sobre a leitura enquanto trabalho que mobiliza
estratégias linguístico-textuais e discursivas, enfoque que supõe que “o processo de
compreensão deve ser abordado a partir de uma relação dialética entre texto e condições de
produção” (CAMACHO, 1992, p. 14). Depreende-se daí uma concepção de língua como
atividade social e discursiva e de texto como ponto de convergência entre indivíduos que, em
interação, agem colaborativamente; o texto, assim, agrega “mais do que a soma dos elementos
linguísticos do qual é composto” (VIEIRA-ABRAHÃO, 1992, p. 53).
Camacho (1992) apresenta-se como texto de ação e de diluição. Ao mesmo tempo em
que o autor dilui ideias sedimentadas por abordagens sociodiscursivas – como a
191

sociolinguística, a pragmática, a análise do discurso, a análise da conversação e a linguística


de texto, –, apresenta, de modo autoral, proposições para um trabalho com a leitura em sala
de aula.
Àquela altura, estava claro para Camacho (1992) o fato de que conviviam na
linguística de então duas tradições que se opunham: de um lado, uma ligada ao
empreendimento formalista ao qual subjaz “um modelo abstrato de relações que descarta o
estudo de todas as determinantes autorizadas pelo domínio da enunciação” (CAMACHO,
1992, p. 16); de outro, uma tradição (aqui, entendida como a TSD) que analisa os
constituintes linguísticos em relação direta com “fatores extralinguísticos, situacionais, que,
conjugados, participam ativamente da seleção de regras de formulação sentencial,
favorecendo algumas e inibindo outras” (CAMACHO, 1992, p. 16). Para o autor, as práticas
descritivas inerentes à tradição formalista, sendo o corte saussureano talvez a escolha mais
influente dentro desse paradigma, deixaram lacunas significativas nos estudos linguísticos, as
quais coube à TSD de algum modo preencher. Ainda que sejam compreensíveis as intenções
descritivas que moveram a instalação da dicotomia língua x fala, “pagou-se por isso um preço
muito caro, cujo débito a teoria da linguagem vem resgatando recentemente, através da
Linguística Textual, da Análise do Discurso, da Sociolinguística, da Filosofia da Linguagem
(...)” (CAMACHO, 1992, p. 16).
Inscrevendo-se no domínio dessas teorias sociodiscursivas cujos objetos resgatam
aspectos recusados pela tradição formalista, Camacho (1992) reflete sobre a leitura como uma
prática construída na relação dos sujeitos (leitor e autor) com a materialidade significante. O
trabalho com a leitura envolve, assim, “os interlocutores do processo de enunciação verbal
que, supõe-se, façam parte das condições gerais de produção e recepção do discurso”
(CAMACHO, 1992, p. 14). Pressupõe-se dessa perspectiva uma noção de leitor ativo e de
compreensão como um trabalho que excede a mera identificação, posição advinda, neste
artigo, das noções de língua e enunciação propostas por Bakhtin, autor de quem Camacho
sofre forte influência. À ideia de identificação está atrelada a concepção de língua como
sistema autorregulado, enquanto à noção de compreensão como trabalho enunciativo, o
entendimento da língua como prática dialógica historicamente situada. Como se vê,
depreende-se daí uma “importante distinção entre identificação e compreensão, de que se
aproveita Bakhtin para introduzir crítica já bem conhecida à linguística formalista,
especialmente o estruturalismo saussuriano, que rotulou de objetivismo abstrato”
(CAMACHO, 1992, p. 14).
192

Ao reconhecer que o trabalho da compreensão “é, antes, uma habilidade prática para
interpretar um contexto” (CAMACHO, 1992, p. 14), Camacho, apoiando-se diretamente na
teoria dialógica da linguagem, destaca que o “essencial da tarefa de descodificação não
consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto preciso,
compreender sua significação numa enunciação particular” (BAKHTIN, 1979, p. 79 apud
CAMACHO, 1992, p. 14). Para o linguista, a escola, ao insistir em práticas engessadas e
pouco produtivas do ponto de vista do exercício enunciativo da linguagem, tem recusado a
natureza fundamentalmente dialógica da compreensão, atitude que de algum modo justifica a
“'crise de leitura' consubstanciada em deficiências reais do sistema de ensino” (CAMACHO,
1992, p. 22). Grosso modo, a prática da leitura em sala de aula com a qual Camacho (1992)
busca romper se traduz

na insignificância quantitativa de textos, na má qualidade do material, no emprego


do texto artificial, muitas vezes funcionando como pretexto para o mero
reconhecimento das letras, considerados antes sinais de um código, que signos de
um verdadeiro sistema de representação (CAMACHO, 1992, p. 22).

Vieira-Abrahão (1992), ao refletir sobre a leitura e seu ensino, opondo-se às


abordagens formalistas, segue caminho similar ao de Camacho (1992). Através de análise e
comparação entre “o trabalho interpretativo proposto por um livro didático de Língua Materna
e algumas interpretações livremente realizadas por alunos da rede pública estadual” (VIEIRA-
ABRAHÃO, 1992, p. 54), a autora visa mostrar que, na leitura, a construção dos sentidos se
dá por meio de um trabalho textual-discursivo que não se reduz à identificação da significação
supostamente imanente às estruturas linguísticas.
É possível perceber que Vieira-Abrahão (1992), enquanto texto de diluição, se insere
no circuito de reflexões empreendidas pelo já consolidado grupo de especialidade brasileiro
dos estudos sobre o texto e a textualidade, tendo em vista seu apoio em estudos empreendidos
por lideranças intelectuais e organizacionais importantes desse grupo brasileiro, como Luiz
Antônio Marcuschi, Ingedore Koch e Luiz Carlos Travaglia. Fundamentada por esses nomes e
por referências europeias tradicionais – como Dijk (1977) e Beaugrande e Dressler (1981) –,
assume que “o texto contém mais do que a soma dos elementos linguísticos do qual é
composto, contendo também os conhecimentos e a experiência do cotidiano” (VIEIRA-
ABRAHÃO, 1992, p. 53).
Ao compreender a natureza interacional da língua e dos textos por ela materializados,
Vieria-Abrahão (1992) reflete sobre a coerência como uma característica do texto que
193

depende, fundamentalmente, de elementos que residem na exterioridade da estrutura


linguística; ou seja, com isso quer dizer que a coerência está atrelada a “fatores pragmáticos e
interacionais e (...) [ao] próprio conhecimento de mundo do receptor, que possibilita a
realização de processos relevantes para a interpretação” (VIEIRA-ABRAHÃO, 1992, p. 54).
Desse modo, negando a imanência e autossuficiência das estruturas textuais e opondo-se, por
conseguinte, à concepção de leitura como identificação ou decodificação, trata da coerência
partindo do pressuposto de que

nenhum texto é inerentemente coerente ou incoerente, já que tudo depende do


receptor e de sua habilidade de interpretar as indicações presentes no discurso, de
modo que ele consiga compreendê-lo de uma forma coerente. O receptor (ouvinte ou
leitor) age como se este fosse sempre coerente e faz tudo para calcular seu sentido,
encontrando sempre um contexto ou uma situação dentro do qual a coerência possa
ser estabelecida. Koch e Travaglia afirmam ser a coerência algo que se estabelece na
interação, na interlocução, numa situação comunicativa entre dois usuários, sendo
ela a responsável por tornar o texto com sentido para seus usuários, sendo vista
então como um princípio de interpretabilidade do texto. A coerência está
intimamente ligada à interação entre texto, produtor e receptor, não sendo uma
característica do texto em si (VIEIRA-ABRAHÃO, 1992, p. 54).

Percebe-se que Vieira-Abrahão (1992), em sintonia com os trabalhos da linguística de


texto brasileira já legitimados neste início da década de 1990, frisa o caráter colaborativo
inerente às práticas de linguagem organizadas em torno de textos. A coerência, nesse sentido,
se constrói pela relação entre autor e leitor, sujeitos que, colaborativamente, condicionam a
construção de sentidos em práticas interlocutivas. Por essa visão, entende-se que “um mesmo
texto pode conduzir a diferentes leituras” (VIERA-ABRAHÃO, 1992, p. 59), posição que,
todavia, para a autora, não nega a importância da organização linguística nesse processo: “não
estamos aqui defendendo uma liberdade total na construção da coerência, pois consideramos
também de suma importância o texto, nos seus aspectos linguísticos” (VIERA-ABRAHÃO,
1992, p. 59).
No mesmo domínio epistemológico dos estudos textuais, também refletindo sobre
questões pedagógicas, Maria do Rosário Gregolin – então professora da UNESP e importante
articuladora da TSD no Brasil a partir, principalmente, da segunda metade da década de 1980
– apresenta trabalho que busca na linguística de texto apoio para a reflexão sobre o ensino de
língua portuguesa. O texto de Gregolin (1993) traz como interlocutor presumido o professor
da educação básica, uma vez que, para a autora, a formação docente brasileira apresentava
inúmeras lacunas, dentre as quais “a falta de uma teoria que permitisse [ao professor]
trabalhar com o texto na sala de aula” (GREGOLIN, 1993, p. 23). A consequência direta
desse cenário é o estabelecimento de um “vazio teórico [que] leva a equívocos, como o de
194

privilegiar o ensino da nomenclatura gramatical, e à insegurança na transmissão dos


procedimentos de leitura, interpretação e produção de textos” (GREGOLIN, 1993, p. 23).
O artigo de Gregolin (1993) é típico exemplo de texto de diluição: são apresentados e
aplicados em análise os fundamentos básicos e as categorias da linguística de texto que se
desenvolvia no Brasil e na Europa. De referências brasileiras, reporta-se aos recorrentemente
citados trabalhos de lideranças como Marcuschi (1983) – Linguística de texto: o que é e como
se faz – e Fávero e Koch (1985) – Critérios de textualidade; já da linguística europeia, traz
Beaugrande e Dressler (1981), texto de ação que constitui a base do pensamento sobre texto
que se desenvolveu no Brasil. O intercâmbio explícito e o modo como Gregolin (1993)
articula as vozes que fundamentam seu trabalho nos fornecem indícios para se pensar na força
e na organização coesa do grupo de especialidade ligado à linguística de texto brasileira
estabelecido naquele momento.
Partindo do pressuposto de que “o objetivo principal do ensino de língua é a formação
de um usuário competente, que saiba utilizar a língua como instrumento de ação e de
reflexão” (GREGOLIN, 1993, p. 23) – ponto de partida, pode-se dizer, consensual nos
estudos sobre educação linguística nesta etapa de consolidação da TSD –, Gregolin (1993)
aponta o texto como centro do trabalho pedagógico, uma vez que é ele, o texto, a “unidade
essencialmente comunicativa da linguagem” (GREGOLIN, 1993, p. 24).
Naturalmente, para a autora, o texto, objeto central da aula de língua portuguesa, não
se reduz a um conjunto de palavras ou frases ao qual se ligam significados engessados; mais
que isso, tal como concebe a linguística de texto, trata-se de “uma unidade complexa,
estruturada por elementos linguísticos e elementos pragmáticos” (GREGOLIN, 1993, p. 24).
Para justificar essa concepção, Gregolin (1993) busca apoio em Marcuschi (1983) –
reforçando, ao mesmo tempo, a natureza de diluição do texto e a importância de Luiz Antônio
Marcuschi como liderança intelectual –, para quem o trabalho descritivo dos aspectos textuais
deve

preservar a organização linear que é o tratamento estritamente linguístico abordado


no aspecto da coesão e, por outro lado, deve considerar a organização reticulada ou
tentacular, não linear, portanto, dos níveis de sentido e intenções que realizam a
coerência no aspecto semântico e funções pragmáticas (MARCUSCHI, 1983, p. 12
apud GREGOLIN, 1993, p. 24).

Na esteira da reflexão pedagógica que toma o texto como unidade linguístico-


pragmática, o trabalho com a produção textual e com a leitura na sala de aula ganha outros
contornos. O gesto de escrever ou falar não existe senão para iniciar uma atividade
195

interacional, ou seja, produzem-se textos com intenções específicas e para agir sobre o outro.
Nesse sentido, defende Gregolin (1993) que a prática com a produção de textos na escola
deve levar em conta a natureza interacional da linguagem, permitindo ao aluno compreender
que “as marcas linguísticas que estruturam um texto guiam o leitor para a interpretação
semântica dos sentidos em uma determinada direção argumentativa” (GREGOLIN, 1993, p.
26). Em outras palavras, a escola deve enfatizar que as escolhas linguísticas, quando da
produção de textos, afetam diretamente o modo como o outro da interlocução interpreta o
dizer a ele direcionado, uma vez que “a significação deriva de instruções fornecidas por
elementos linguísticos em relação à sua situação discursiva” (GREGOLIN, 1993, p. 27).
Consequentemente, a prática da leitura envolve um trabalho ativo do leitor, que, a partir de
pistas linguísticas, aciona conhecimentos de mundo que tem armazenado na memória
(GREGOLIN, 1993). Em suma, na leitura, “os sentidos de um texto são construídos por
fatores linguísticos, cognitivos, culturais e interacionais” (GREGOLIN, 1993, p. 26).
Por fim, Gregolin (1993) encerra a discussão ratificando a importância do ensino de
língua portuguesa orientado por uma perspectiva textual-discursiva como condição para que a
escola cumpra seu papel: “se o professor conseguir mostrar ao aluno os mecanismos de
construção dos sentidos do texto, certamente estará no caminho que poderá levá-lo a
interpretar e a construir os seus textos com eficiência e espírito crítico” (GREGOLIN, 1993,
p. 30).
Passemos para as considerações sobre o trabalho de Maria Helena de Moura Neves e
sua importância para a consolidação de pautas sociodiscursivas na pesquisa linguística
brasileira. Então professora do curso de Pós-graduação em Letras da UNESP, Maria Helena
de Moura Neves assume na década de 1990 o importante papel de liderança que, através de
obras, palestras, artigos e orientações de teses e dissertações, contribuiu sobremaneira com a
divulgação e consolidação, no Brasil, da abordagem funcionalista da linguagem,
empreendimento que, à época, começava a ganhar força no interior do debate linguístico
brasileiro.
Em Neves (1993), a autora, através de texto de ação marcado por acentuada
objetividade, visa provocar algumas reflexões sobre “o tratamento que se tem dado à
gramática nas aulas de 1º e 2º graus” (p. 91). A linguista parte do pressuposto de que o ensino
da gramática na escola é atravessado por uma série de incertezas por parte do docente, que,
seguindo uma tradição gramatical sedimentada, continua, com auxílio do livro didático,
adotando-a acriticamente. Em pesquisa que realizou com 170 professores do ensino médio,
196

Neves (1993) verificou “que 100% deles „ensinam‟ gramática” (p. 92), ainda que muitos
tenham afirmado que “essa gramática „não está servindo para nada‟” (NEVES, 1993, p. 92).
Ou seja, a despeito do reconhecimento das limitações da pedagogia tradicional, “os
professores mantêm as aulas sistemáticas de gramática como um ritual imprescindível à
legitimação de seu papel” (NEVES, 1993, p. 92).
Ao apontar problemas que orbitam em torno do ensino de língua baseado
fundamentalmente na gramática tradicional (materializada nos livros didáticos), Neves (1993)
enumera, entre eles, dois que, para a autora, trazem problemas mais agravantes: (i) a divisão
da aula de língua portuguesa em três momentos distintos e desassociados – “redação, leitura e
gramática, como se esses fossem mundos à parte” (NEVES, 1993, p. 94); e (ii) o trabalho com
a metalinguagem como “um caminho autônomo para o fim último pretendido pela escola no
nível médio (com alunos de dez a dezoito anos)” (NEVES, 1993, p. 94). Como alternativa
para o caso (i), defende um ensino de língua que, observando o funcionamento da linguagem
em situações autênticas de interação, articule as práticas de leitura, escrita e conhecimentos
linguísticos; afinal, de um lado, “a gramática da língua está implicada na redação e na leitura;
de outro lado, leitura e redação são apenas duas direções de um mesmo fato, exatamente a
atuação linguística, a qual se rege pela gramática” (NEVES, 1993, p. 94). No caso (ii), a
autora não propõe a exclusão do exercício metalinguístico – atividade, aliás, “indispensável à
construção do saber sobre a língua (pelo menos tão legítimo quanto todos os outros saberes
sobre os demais objetos que a escola oferece)” (NEVES, 1993, p. 94) –, mas defende que a
escola não deve tomá-lo como propósito último da análise linguística, abdicando da
observação dos fenômenos linguísticos como resultado do processo de interação estabelecido
na e pela linguagem em uso.
Em suma, assumindo uma concepção de língua como unidade linguístico-pragmática-
funcional que serve aos propósitos interacionais de indivíduos que, na interação, agem uns
sobre os outros, Neves (1993) entende que

a reflexão sobre a língua, no nível médio, só pode partir do uso diretamente


observável, da observação da língua em função, com compreensão de que existe um
amálgama de componentes, desde o pragmático até o fonológico. Afinal, se, como
dizem os professores, a finalidade do ensino é o bom uso da língua, parece evidente
que se deva refletir sobre a língua em uso. E, (...) embora as palavras sejam unidades
intuitivamente evidentes a qualquer observador da língua, seu valor só se determina
com a configuração do fazer do texto (p. 98).
197

No ano de 1994, reforçando a afirmação de que objetos constitutivos da TSD


circulavam intensamente em trabalhos desenvolvidos em diferentes centros de ensino de
pesquisa do Brasil, a revista ALFA, em seu volume de número 38, publicou um caderno
especial dedicado ao tema O funcionalismo em Linguística. A escolha da temática central do
caderno se justifica na medida em que, àquela época, como afirma Rafael Eugenio Hoyos-
Andrade, editor responsável pelo volume em questão, as abordagens funcionalistas se
encontravam “no primeiro plano das preocupações e ocupações de linguistas de diferentes
escolas e tendências”; em outras palavras, “podemos até afirmar que o funcionalismo nunca
esteve tão em voga” (HOYOS-ANDRADE, 1994, p. 5). Dentre os trabalhos publicados no
volume 38 da ALFA, destaco os textos de Camacho (1994), Castilho (1994) e Neves (1994),
sobre os quais passo agora a levantar considerações.
Dentre as fontes até então analisadas, pode-se dizer que o texto ensaístico de Camacho
(1994) assume características bastante particulares. Trata-se, na verdade, de um trabalho de
natureza histórica e epistemológica em que o autor discute como os estudos linguísticos, ao
longo do tempo, incorporaram elementos exteriores ao sistema linguístico – particularmente,
o contexto – a uma agenda de pesquisa marcada pela hegemonia da tradição formalista.
Subjazem à apresentação e interpretação de fragmentos da história da linguística ocidental
apresentada por Camacho (1994) elementos da teoria das revoluções científicas defendida por
Thomas Kuhn. Assim, categorias como as de paradigma, anomalia, ciência normal e ciência
extraordinária são adotadas pelo autor para explicar a emergência do empreendimento
funcionalista na história da linguística.
Para Camacho (1994), a tradição formalista enraizou na linguística contemporânea um
paradigma, “normalizando” (nos termos de Kuhn), por assim dizer, o estado da ciência da
linguagem. Embora reconheça a importância dessa tradição para a consolidação do lugar de
autonomia da linguística em relação a outros campos do saber, defende que a exclusão dos
elementos da fala (ou da atualização do sistema) de seu quadro descritivo-explicativo
acarretou consequências drásticas, na medida em que se analisa uma língua idealizada,
reforçando a ideia de que “a linguagem é um sistema inteiramente independente do contexto
social em que se manifesta” (CAMACHO, 1994, p. 33).
Como “anomalias”, a emergência e a posterior propagação de abordagens que
evidenciaram em seu quadro descritivo elementos residentes na exterioridade do sistema
traduzem uma reação direta ao “recorte metodológico (...) ilusório e frustrante” (p. 21)
consequente das dicotomias langue x parole e competence x performance. Camacho (1994)
198

ratifica a questão na passagem que segue, com a qual me identifico ao pensar na noção de
tradição sociodiscursiva que tenho defendido:

os desenvolvimentos posteriores na teoria da linguagem, como a sociolinguística, o


funcionalismo renascido, a linguística textual, a análise da conversação e a análise
do discurso, decorrem de um desejo de superar a parcialidade imposta ao objeto de
estudo em razão de sua idealização (CAMACHO, 1994, p. 21).

Na compreensão do autor, as abordagens sociodiscursivas promoveram fissuras na


tradição formalista hegemônica, estabelecendo uma crise de identidade na linguística
ocidental (anomalias no estado normal da ciência), que passou, aos poucos, a se dividir.
Nesse momento, os grupos de especialidade organizados em torno de uma ou de outra
tradição buscaram, através de retórica orientada à persuasão, tomar para si o lugar de
legitimidade no debate epistemológico. Camacho (1994) ilustra como parte desse conflito se
desenvolve:

Recentemente, uma polêmica que envolveu no Brasil representantes típicos das duas
correntes, o funcionalismo e o gerativismo, atualmente em competição aqui e no
exterior, pode servir de caso exemplar da disputa pela hegemonia paradigmática. A
polêmica iniciou-se com um artigo de Votre & Naro (1989), em que consideram
duas hipóteses fundamentais: a de que a forma linguística deriva de seu uso no
processo real de comunicação e a de que a estrutura gramatical é dependente das
regularidades das situações de fala, constituindo, então, objeto probabilístico, ambas
opostas ao formalismo representado pela gramática gerativa (CAMACHO, 1994, p.
22).

Ao analisar o cenário da linguística ocidental naquele momento da década de 1990,


Camacho (1994) enxerga que as abordagens sociodiscursivas (ou, em suas palavras,
abordagens funcionalistas) constituíam, efetivamente, um paradigma sedimentado, enraizado,
legitimado e amplamente difundido. A passagem a seguir sintetiza o modo como Camacho
(1994) enxerga esse paradigma – no que tange, principalmente, à concepção de linguagem
assumida pelas abordagens que constituem esse domínio e aos métodos descritivos que
mobilizam:
O paradigma funcionalista vê a linguagem como instrumento de interação social
entre seres humanos, usado com a intenção de estabelecer comunicação.
Consequentemente, a interação verbal, definida como a interação social mediante o
uso da linguagem, constitui uma forma de atividade cooperativa estruturada, já que é
governada por regras, normas e convenções; é uma atividade cooperativa, porque
necessita pelo menos de dois participantes. Esse princípio parece óbvio, mas
assegura, na realidade, um princípio sonegado pelo objetivismo abstrato: a relação
entre interlocutores reais. Nesse caso, de um ponto de vista funcional, a linguística
necessitaria tratar de dois tipos de sistemas de regras: 1. as regras que governam a
configuração das expressões linguísticas, especificamente regras semânticas,
sintáticas, morfológicas e fonológicas; 2. as regras que governam os padrões de
interação verbal em que as expressões linguísticas são usadas, especificamente
199

regras pragmáticas. As expressões linguísticas não são, assim, objetos formais


abstratos; ao contrário, suas propriedades são sensíveis às determinações
pragmáticas da interação verbal (CAMACHO, 1994, p. 34).

Convém destacar que a interpretação de Camacho (1994) de que as abordagens


funcionalistas constituem um paradigma da linguística contemporânea – ou seja, um modelo
legitimado capaz de conceder à comunidade científica soluções adequadas aos problemas
identificados – ratifica a tese que tenho defendido aqui: a década de 1990 marca, de fato, o
momento de consolidação das ideias linguísticas atreladas à TSD no interior da linguística
brasileira e internacional.
Neves (1994 e 1997) e Castilho (1994) deram continuidade às reflexões sobre o lugar
da abordagem funcionalista na cultura linguística ocidental. Neves (1994 e 1997) nos
apresenta uma visão geral sobre uma proposta de gramática funcional e sua contribuição para
a análise linguística; já Castilho (1994), por sua vez, descreve os fundamentos basilares do(s)
funcionalismo(s) e, após, investiga elementos da predicação sob essa orientação. Analisarei as
três fontes em paralelo, uma vez que em muito se aproximam no que diz respeito à “diluição”
de preceitos fundamentais advindos de estudos funcionalistas europeus, sobretudo aqueles
desenvolvidos por Michael A. K. Halliday e Simon Dik.
Assim como Camacho (1994), Neves (1994), ao apresentar uma visão geral do que se
pode denominar funcionalismo em linguística, destaca alguns deslocamentos promovidos por
essa abordagem em relação à tradição formalista. Embora utilize o termo paradigma para
designar dois domínios epistemológicos distintos, não o toma, como Camacho (1994), nos
termos de Thomas Kuhn. O termo paradigma, para Neves (1994), “é proposto para designar
cada conjunto de crenças e hipóteses em interação” (p. 114). Desse modo, propõe a
(co)existência de dois paradigmas: de um lado, um paradigma funcionalista, no qual se
inscrevem, por exemplo, Halliday, “a Escola de Praga, além de Firth, Lamb e a Escola de
Londres” (NEVES, 1994, p. 125); e, de outro, um paradigma formalista, “representado
especialmente por Bloomfield e por Chomsky” (NEVES, 1994, p. 125). A citação a seguir
resume o modo como a autora analisa as diferenças entre esses dois paradigmas, considerando
as concepções de linguagem e os métodos descritivos que orientam empreendimentos
formalistas (particularmente, o gerativista) e, em oposição, funcionalistas:

os formalistas (o exemplo é Chomsky) encaram a linguagem como fenômeno


mental, enquanto os funcionalistas a veem como fenômeno primariamente social. Os
universais linguísticos são explicados, então, pelos formalistas, como herança
linguística genética comum da espécie humana e, pelos funcionalistas, como
derivação da universalidade dos usos da linguagem nas sociedades humanas. Quanto
200

à aquisição da linguagem pela criança, os formalistas apontam uma capacidade inata


humana para aprender a linguagem, enquanto os funcionalistas se inclinam para uma
explicação da aquisição em termos de desenvolvimento das necessidades e
habilidades comunicativas da criança. Acima de tudo, portanto, os formalistas
estudam a linguagem como um sistema autônomo, enquanto os funcionalistas a
estudam em relação com sua função social (NEVES, 1994, p. 116).

Assim, como é possível perceber, o estudo funcionalista se concentra,


fundamentalmente, no caráter interacional (social, portanto) da linguagem, sendo, por isso,
um empreendimento de suma importância para a consolidação de pautas da TSD. Embora
consista em tarefa complexa determinar objetivamente o que, naquele momento, se entendia
por funcionalismo, afinal, como afirma Neves (1994), muitas abordagens assim se rotulavam,
é possível apontar alguns elementos consensuais característicos desse tipo de investigação
linguística: “um bom modo de sintetizar o pensamento básico das teorias funcionalistas é
lembrar Martinet, que aponta, como objeto da verdadeira linguística, a determinação do modo
como as pessoas conseguem comunicar-se pela língua.” (NEVES, 1994, p. 109). Por essa
direção, em linhas gerais,

qualquer abordagem funcionalista de uma língua natural, na verdade, tem como


questão básica de interesse a verificação de como se obtém a comunicação com essa
língua, isto é, a verificação do modo como os usuários da língua se comunicam
eficientemente. Todo o tratamento funcionalista de uma língua natural põe sob
exame, pois, a competência comunicativa (NEVES, 1994, p. 109).

É no seio dessa discussão que surge a proposta de estudo do sistema linguístico sob
orientação funcionalista – uma gramática funcional –, como apontam Neves (1994 e 1997) e
Castilho (1994). Constituindo-se como “uma teoria geral da organização gramatical de
línguas naturais que procura integrar-se em uma teoria global de interação social” (NEVES,
1994, p. 112), a gramática funcional se afasta “da sintaxe gerativa, que interpreta a língua
como uma atividade mental, e da Sintaxe Estrutural, que a interpreta como um sistema”
(CASTILHO, 1994, p. 76). Grosso modo, em sua especificidade, a gramática funcional
integra à descrição sistêmica elementos pragmáticos advindos da interação verbal (NEVES,
1997).
Ainda que, como se vê, a abordagem funcionalista concentre esforços no estudo da
linguagem como atividade interacional, a proposta de uma gramática funcional não exclui de
seu quadro descritivo a análise dos elementos estruturais da língua. Trata-se, na verdade, de
uma teoria sobre a linguagem que parte da exterioridade para compreender como os sistemas
linguísticos, do fonético ao sintático, se organizam estruturalmente: “a correlação não
biunívoca entre funções e estruturas explica a natural heterogeneidade das línguas”
201

(CASTILHO, 1994, p. 76-77). Em outras palavras, estamos falando de “uma teoria segundo a
qual a multiplicidade funcional se reflete na organização interna da língua, e a investigação da
estrutura linguística revela, de algum modo, as várias necessidades a que a linguagem serve”
(NEVES, 1994, p. 110). Sem recusar a sistematicidade da estrutura, mas compreendendo-a
sob a influência dos elementos discursivo-pragmáticos próprios da práxis interacional,
defende-se, nessa abordagem, “uma relação entre gramática e discurso que entende que o
comportamento sintático-semântico pode ser mais bem explicado dentro de um esquema que
leve em conta a interação de forças internas e externas ao sistema” (NEVES, 1997, p. 22).
A respeito dessa relação entre estrutura e função, Castilho (1994) reconhece a
existência de dois tipos de funcionalismo: um radical e outro moderado. O primeiro,
compreendendo a determinação absoluta dos elementos discursivo-pragmáticos, enfatiza “as
pressões icônicas do discurso sobre a gramática, negando existência à sintaxe” (CASTILHO,
1994, p. 77); já o segundo, moderado, com o qual o autor se identifica e do qual se apropria,
“defende a confluência de fatores estruturais e discursivos sobre a sintaxe” (CASTILHO,
1994, p. 77). Também adepta de um funcionalismo do segundo tipo, Neves (1997) propõe,
com apoio em Du Bois, a ideia de gramática como conjunto de “sistemas adaptáveis”, isto é,
“sistemas parcialmente autônomos (por isso, sistemas) e parcialmente sensíveis a pressões
externas (por isso, adaptáveis)” (NEVES, 1997, p. 22).
Desse funcionalismo moderado emerge um programa de pesquisa que investiga os
processos de gramaticalização, admitindo, nesse trabalho, que “a língua se compõe de três
sistemas: o sistema semântico, o sistema sintático e o sistema discursivo, todos eles
articulados pelo léxico” (CASTILHO, 1994, p. 76). Nesse domínio, a gramática funcional
descreve fenômenos linguísticos que residem, por exemplo, na ordenação de palavras, como
nos casos de topicalização, extraposição e apassivação (NEVES, 1994).
Para fechar esta seção de análise de fontes da ALFA, consideremos, agora, o trabalho
de Gregolin (1995). A fonte em questão, diferentemente do que se tem visto até então na
década em estudo, traz a diluição de fundamentos da análise do discurso, particularmente das
vertentes greimasiana e pecheutiana, visando discutir alguns fundamentos desse domínio no
interior dos estudos linguísticos.
É interessante observar que, a despeito dos indícios de uma consolidação da TSD
nesse período e da razoável discussão empreendida em torno de questões discursivas desde a
década de 1980, Gregolin (1995) enxerga a análise do discurso como “um campo de estudos
em formação, cujas fronteiras não estão ainda claramente delimitadas” (p. 13). Embora
202

reconheça que esse tipo de trabalho de natureza discursiva tenha angariado força e prestígio
nos últimos anos, a autora destaca que “não se pode dizer, ainda, que [a AD] se constitua em
um campo claro de estudos” (GREGOLIN, 1995, p. 13). Tais afirmações vão ao encontro da
própria natureza do discurso enquanto objeto investigado por esse domínio: heterogêneo,
poroso, em constante construção. Devido ao caráter escorregadio do discurso, múltiplas
abordagens, ao longo do tempo, buscaram descrever, a partir de diferentes recortes, as
características imprecisas desse objeto histórico e ideológico. E esse cenário se mantém,
pode-se dizer, até os dias de hoje.
Para Gregolin (1994), embora seja possível identificar diferentes (e, em alguns casos,
contrastivos) empreendimentos teórico-metodológicos que se dedicam ao estudo do discurso,
pode-se definir um lugar comum para o qual convergem todas essas abordagens. Assim, “o
que as unifica (...) é o fato de tomarem o seu objeto do ponto de vista linguístico e de
procurarem, no texto, o estudo da discursivização” (GREGOLIN, 1995, p. 14). Ou seja, a
análise do discurso, para a autora, seja qual for, busca na materialidade de linguagem (no
texto) o acesso aos processos de produção do discurso (a discursivização). Em suma,
trabalhando com o texto como unidade em que se materializa(m) o(s) discurso(s), “através da
Análise do Discurso é possível realizarmos uma análise interna (o que este texto diz?, como
ele diz?) e uma análise externa (por que este texto diz o que ele diz?)” (GREGOLIN, 1995, p.
17).
Naturalmente, a análise do texto e de seus processos de discursivização se dá a partir
do resgate das condições de produção nas quais tomam forma. Desse modo, investiga-se o
texto em sua relação com a ideologia, analisando-se, portanto, ao mesmo tempo, “o campo da
língua (suscetível de ser estudada pela Linguística) e o campo da sociedade (apreendida pela
história e pela ideologia)” (GREGOLIN, 1995, p. 17). Dessa maneira, a discussão sobre a
ideologia torna-se indispensável na medida em que “o discurso é um dos aspectos da
materialidade ideológica” (GREGOLIN, 1995, p. 18). É a ideologia que, por essa perspectiva,
permite ao sujeito, na prática com a linguagem, significar e significar-se. Aqui, entende-se
ideologia como

um conjunto de representações dominantes em uma determinada classe dentro da


sociedade. Como existem várias classes, várias ideologias estão permanentemente
em confronto na sociedade. A ideologia é, pois, a visão de mundo de determinada
classe, a maneira como ela representa a ordem social. Assim, a linguagem é
determinada em última instância pela ideologia, pois não há uma relação direta entre
as representações e a língua (GREGOLIN, 1995, p. 17).
203

Em linhas gerais, partindo do pressuposto de que “o discurso é um objeto, ao mesmo


tempo, linguístico e histórico” (GREGOLIN, 1995, p. 20), a autora defende que constitui o
objetivo central do empreendimento discursivo “tentar entender e explicar como se constrói o
sentido de um texto e como esse texto se articula com a história e a sociedade que o produziu”
(GREGOLIN, 1995, p. 20). Além da contribuição para uma investigação descritiva da
linguagem em geral, a abordagem discursiva, defende Gregolin (1995), pode servir a fins
pedagógicos, na medida em que descortina o funcionamento não evidente de elementos sócio-
históricos e ideológicos inerentes à prática com a linguagem, objeto de reflexão na sala de
aula. Assim, por meio da análise do discurso, “o professor pode conduzir os alunos na
descoberta das pistas que podem levá-los à interpretação dos sentidos, a descobrirem as
marcas estruturais e ideológicas dos textos” (GREGOLIN, 1995, p. 20).

5.3.2 Letras de hoje

As fontes selecionadas para esta seção de análises da Letras de Hoje ilustram alguns
deslocamentos promovidos pela revista em relação aos trabalhos publicados na década
anterior. Como vimos (cf. 4.2.2), trabalhos em linguística de texto, sobretudo aqueles
inseridos no primeiro momento desse empreendimento no Brasil – caracterizado pela
construção dos fundamentos de uma gramática textual – constituíram o núcleo da produção
da Letras de Hoje na década de 1980. Agora, nos anos de 1990, trabalhos em análise do
discurso marcam fortemente a identidade do periódico, que traz uma variedade de pesquisas
desenvolvidas por autores com diferentes níveis de idade profissional (MURRAY, 1994).
Além de estudos sobre o discurso, figuram nesta década, também, textos de ação em que se
discutem questões centrais da educação linguística, como o lugar do texto falado nas aulas de
português e a concepção de texto e suas implicações para a avaliação da aprendizagem em
leitura e produção textual.
Segue, abaixo, a relação das fontes analisadas.

Quadro 25 – Informações das fontes analisadas do periódico Letras de Hoje publicadas no período de
consolidação da TSD
IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES
Título Autoria Referência
Português falado e ensino de
Ataliba Teixeira da Castilho Castilho (1990)
gramática
Texto: um problema para o João Wanderley Geraldi Geraldi (1990)
204

exercício da capatazia
Uma introdução à análise do
Aracy Ernst Pereira Pereira (1991)
discurso
Uma aplicação da análise do
discurso à leitura e análise de Regina Maria Varini Mutti Mutti (1991)
textos
Elementos de Análise do Discurso
para uma epistemologia da Valdir Flores Flores (1997)
Linguística
Sujeito do inconsciente e
interdiscursividade: observações Yeda Swirski de Souza Souza (1997)
sobre a interseção dos conceitos
O objeto língua: unidade
constituída pela ausência:
Marlene Teixeira Teixeira (1999)
repercussões para uma abordagem
do discurso
Fonte: o autor, 2019

O trabalho de Ataliba de Castilho, Português falado e ensino de gramática, reveste-se


de importância para este momento da história da TSD no Brasil na medida em que, enquanto
texto de ação, discute questões pouco debatidas à época, como a reflexão sobre fenômenos da
oralidade na educação básica. Já em 1990, momento que marca a transição do
desenvolvimento para a consolidação da TSD no Brasil, o autor reconhece que “a Linguística
brasileira estendeu extraordinariamente suas áreas de atuação” – fato que em grande medida
se explica pelo poder de alcance e convencimento exercido pelas abordagens atreladas à TSD
–, tendo como consequência, entre outras, o abalo de “nossas certezas nas lições da Gramática
Tradicional” (CASTILHO, 1990, p. 103). É nessa atmosfera intelectual marcada, entre outras,
pela produção de trabalhos em linguística de texto e em análise da conversação que a
discussão de Castilho (1990) sobre a língua falada está inserida. Dessa forma, contribui com a
divulgação de reflexões sobre as especificidades da oralidade, trabalho esse também
desenvolvido por Luiz Antônio Marcuschi a partir da segunda metade da década de 1980 e
desenvolvido com maior intensidade da década de 1990 em diante. Além disso, a reflexão
sobre aspectos da oralidade empreendida por Castilho (1990) se liga a uma discussão mais
ampla desenvolvida nesse período pela Linguística brasileira sobre o ensino de língua.
Para Castilho (1990), a origem da crise no ensino de português não se explica apenas
pela a mudança de perfil do aluno consequente do rápido e desgovernado processo de
urbanização por que passaram grandes capitais brasileiras, mas, sobretudo, pela orientação
205

gramatical adotada em sala de aula, que, essencialmente excludente, não dava conta de
promover um ensino transformador e democrático. Os efeitos da TSD ainda eram incipientes
para além de centros de pesquisa no começo da década; desse modo, o ensino tradicional,
baseado numa concepção de língua homogênea, espelho da escrita literária pregressa, ainda
prevalecia em muitas das escolas brasileiras, como assinala Castilho (1990):

muitas propriedades do Português do Brasil têm sido identificadas pela


Sociolinguística e pela Sintaxe. Entretanto, nas situações de ensino, continuamos a
nos servir de gramáticas que se concentram na língua escrita literária, quando não
privilegiam fenômenos hoje só perceptíveis no português europeu (p. 112).

Na esfera da pesquisa desenvolvida pela linguística brasileira, entretanto, Castilho


(1990) reconhece que abordagens sociodiscursivas constituem “o paradigma linguístico
vigente” (p. 106), corroborando, desse modo, a tese de que a TSD angariara sua consolidação,
ao menos no domínio acadêmico:

O pêndulo que assinala o paradigma linguístico vigente novamente oscila, e vai


deixando o polo da linguagem como enunciado, e se desloca para o polo da
linguagem entendida como enunciação. Já não se postula mais a linguagem como
um código abstrato, e se incorporam às análises do enunciado as condições de sua
produção. Em consequência, o eixo da indagação científica se desloca da análise
taxonômica dos produtos linguísticos para a análise dos processos psicossociais
que constituem esses processos (CASTILHO, 1990, p. 106, grifos meus).

Na discussão sobre o ensino de língua, Castilho (1990) reconhece a importância da


formação inicial e continuada do professor, que “precisa ter um ponto de vista sobre o objeto
de sua profissão, a língua portuguesa, e um ponto de vista sobre a gramática” (CASTILHO,
1990, p. 112); sem isso, “será um repetidor de manuais, e passará pela vida sem entender
muito bem a que veio” (p. 113). A partir daí, analisa três diferentes concepções de língua às
quais estão atreladas três concepções de gramática, enfatizando, nessa discussão, implicações
para o ensino de língua portuguesa. À concepção de língua como cognição subjaz a noção de
gramática como “um conjunto de regras puramente mentais” (CASTILHO, 1990, p. 119); à
de língua como código, a ideia de gramática como “um conjunto de regras que tentam
apreender as regularidades apresentadas na cadeia da fala” (p. 119). Por fim, em oposição às
duas posições anteriores, apresenta a concepção de língua como um conjunto de usos, ou seja,
“um conjunto de escolhas que o falante procede no sistema, tendo em vista suas necessidades
de interação social” (CASTILHO, 1990, p. 120). Nessa direção, sem recusar os elementos que
estruturam os sistemas linguísticos, “a gramática funcional, que perfilha este ponto de vista
sobre a língua, entende que cada categoria funcional reflete uma escolha concreta, dentro de
206

um leque de escolhas possíveis” (CASTILHO, 1990, p. 120). Partido desse ponto de vista
funcional sobre a língua,

em vez de passar aos alunos „pacotes acabados‟ sobre gramática do português, o


professor poderá transformar a aula de gramática num momento de reflexão, de
(re)descoberta das peculiaridades gramaticais de sua língua (CASTILHO, 1990, p.
120).

Nesse trabalho com o conhecimento gramatical fundamentado por uma concepção


funcional da linguagem, Castilho (1990) destaca a importância da reflexão, em sala de aula,
sobre os elementos da língua falada, uma vez que aí residem “muitos dos processos de
constituição da língua, os quais não aparecem na língua escrita” (CASTILHO, 1990, p. 121).
Convém destacar que os estudos sobre a oralidade estavam naquele momento começando a
ganhar força no Brasil, tendo se iniciado na segunda metade da década anterior, com a
divulgação de resultados de pesquisas empreendidas no interior do projeto NURC (cf.
CASTILHO e PRETI, 1986; MARCUSCHI, 1987). A partir daí, pode-se dizer que o estudo
da oralidade e sua relação com o ensino constituiu pauta relevante para a TSD nesse período
de consolidação de suas bases.
Assim, compreendendo a conversação como “o intercurso verbal em que duas ou mais
pessoas se alternam, discorrendo livremente sobre questões propiciadas pela vida diária”
(CASTILHO, 1990, p. 123), o linguista propõe que o trabalho com a oralidade na educação
básica se processe em três momentos distintos, porém interconectados, a saber: “(1) Análise
pragmática da língua falada. (2) Reflexões sobre o texto falado e o texto escrito: processos de
constituição; unidades. (3) Análise gramatical: perspectivas funcionais e formais sobre a
sentença e a palavra” (CASTILHO, 1990, p. 122). Nesse trabalho, devem ser estudadas
características próprias do texto falado, como, por exemplo, os marcadores conversacionais e
a estrutura funcional da conversação dividida em turnos.
Como se pode perceber, o itinerário proposto por Castilho (1990) pressupõe um
trabalho pedagógico que toma o texto falado como ponto de partida. Ou seja, antes de
qualquer reflexão gramatical residente no domínio das orações ou das palavras, deve o
professor “desenvolver algumas observações sobre o texto, valendo-se das descobertas da
Linguística do Texto (...), bem como da Análise do Discurso de orientação mais linguística”
(CASTILHO, 1990, p. 129). Dessa forma, “depois que os alunos tiverem sido sensibilizados
para as características pragmáticas da língua falada, é chegada a hora de principiar a reflexão
propriamente gramatical” (p. 129).
207

Em linhas gerais, a passagem a seguir sintetiza a proposta de Castilho (1990) para a


educação linguística, na qual enfatiza a necessidade e os benefícios do trabalho com textos
(falados e escritos, estudados na relação com suas condições de produção e recepção), que
devem ser o ponto de partida para a reflexão integrada sobre a língua em seus aspectos
estruturais e discursivos:

Agrupando os fenômenos linguísticos num quadro dinâmico que vai da língua falada
para a língua escrita, do discurso para a sintaxe, do texto para a oração e desta para a
palavra, poderão os professores resgatar o verdadeiro interesse da reflexão
gramatical para a formação da capacidade de observar e do espírito crítico de seus
alunos, conduzindo-os a considerar as propriedades da língua numa forma integrada,
não „descolada‟ do momento discursivo que as gerou (CASTILHO, 1990, p. 133).

Ainda no domínio do ensino de língua portuguesa, João Wanderley Geraldi –


importante liderança na articulação da TSD no campo da educação linguística – apresenta, em
texto de ação, proposições fundamentais ao trabalho com a avaliação de textos, enfatizando
tanto a habilidade de produção como de leitura.
Geraldi (1990) inicia a discussão pontuando o lugar central do texto na aula de língua
portuguesa. Desde a década de 1970, período em que se enfatizava a importância da
comunicação e da expressão como competências que deveriam ser ensinadas, passando pelos
anos de 1980, marcados pela proliferação de estudos sobre o texto e a textualidade,
“independentemente das críticas que possamos tecer ao trabalho mais contemporâneo no
ensino de língua, a preocupação com textos é inegável” (GERALDI, 1990, 158). Todavia,
ainda que o texto tenha encontrado lugar garantido nas aulas de português ao longo do tempo,
sua abordagem na escola nem sempre se traduziu num trabalho efetivo capaz de garantir ao
aluno o domínio das habilidades de escrita e de leitura. Muitas vezes, destaca Geraldi (1990),
quando não exerce o papel de pretexto para o estudo isolado de aspectos gramaticais, em
práticas de leitura, “o texto é tomado como um produto pronto, acabado, com mensagem
explícita. Ler um texto é „extrair sua mensagem‟. E ela é uma só.” (GERALDI, 1990, p. 158).
Ou seja, nesse trabalho com a leitura, entende-se que o sentido reside na imanência no texto,
cabendo ao leitor (passivo) decodificar o (único) sentido codificado. O sentido está no texto e
dele deve ser extraído. Diante disso, o trabalho de avaliação da leitura, por parte do professor,
passa a ser um exercício de checagem automatizada – afinal, só há um sentido, já
preestabelecido pelo professor ou pelo livro didático.
Como resposta a essa concepção homogênea da leitura e dos textos, tem-se
considerado a heterogeneidade dos sujeitos leitores e, consequentemente, das leituras por eles
208

operadas. Nesse sentido, “o leitor, sua história, suas construções de sentido, no momento da
leitura, situação, contexto, etc. passam a ser „o sentido desta leitura deste texto‟”. (GERALDI,
1990, p. 158). Em outras palavras, diferentemente da concepção anterior, “a natureza
polissêmica do texto não é atribuída apenas ao texto, mas às leituras dos diferentes leitores”
(p. 158). Ainda que se considere a relação do texto com a exterioridade, ou seja, com as
condições de sua produção e recepção, entrega-se ao leitor a responsabilidade da leitura, que,
nesses termos, pode ser “qualquer leitura”.
Por fim, Geraldi (1990) propõe uma terceira perspectiva. Dessa vez, enfatizando-se o
caráter interacional da leitura e sua relação com a produção de texto – afinal, lê-se porque
alguém escreveu; escreve-se para que alguém leia –, entende-se que os sentidos não residem
no texto, bem como não são construídos (apenas) pelo leitor e suas referências, mas, por outro
lado, são produtos da relação entre interlocutores a partir da unidade textual, que lhes permite
interagir. Em suma,

o autor de um texto opera com a linguagem que não é só dele. Por isso, pertencente
a uma mesma comunidade interpretativa, pode calcular as leituras possíveis dos
leitores virtuais de seu texto. Escrever, neste sentido, é fornecer pistas ou instruções
de leitura. Ler é buscar, através das pistas fornecidas, o sentido ou os sentidos que o
autor pretendeu comunicar. Nem sempre, evidentemente, o sentido produzido pela
leitura corresponde ao sentido que o autor gostaria de ter transmitido. E isto não é
problema. Na linguagem, encontram-se sujeitos. Na construção dos sentidos, os
sujeitos se constituem (GERALDI, 1990, p. 159).

Nessa direção, o trabalho com a avaliação, tal como a linguagem, toma uma dimensão
discursiva. “Trata-se, agora, de reconstruir, face a uma leitura e um texto, a „caminhada
interpretativa‟ do leitor. (...) O importante é descobrir o porquê este sentido foi construído: a
partir de que „pistas‟, operando com que inferências (...)” (GERALDI, 1990, p. 159). O
professor, por esse caminho, torna-se “interlocutor ou mediador entre o objeto de estudos
(produção e leitura de textos) e a aprendizagem que se vai concretizando nas atividades de
sala de aula” (GERALDI, 1990, p. 160).
É evidente a natureza de texto de ação do artigo de Geraldi (1990), na medida em que,
partindo da concepção de linguagem como interação, introduz na discussão sobre a avaliação
da aprendizagem em língua portuguesa uma abordagem discursiva condizente com a natureza
discursiva da linguagem em funcionamento, objeto de estudo no espaço escolar. A fonte ora
analisada reforça a importância do autor para a divulgação e o fortalecimento da discussão
sobre educação linguística que parte de uma abordagem sociodiscursiva da linguagem e dos
sujeitos que dela fazem uso.
209

As próximas fontes serão analisadas em paralelo, uma vez que lidam com questões
que se entrecruzam e se inscrevem, todas elas, no domínio da análise do discurso. Pereira
(1991), Mutti (1991), Flores (1997), Souza (1997) e Teixeira (1999), em textos de diluição,
discutem aspectos atrelados ao discurso e à epistemologia da análise do discurso, domínio
que, como se pode perceber, angariara à época expressivo alcance institucional, consolidando-
se no circuito de discussão linguística brasileira.
Tanto Pereira (1991) como Flores (1997) analisam a emergência da AD no contexto
intelectual em que, no interior da linguística ocidental, a hegemonia construída pela tradição
formalista começava a ser questionada, movimento que culminou, segundo Pereira (1991),
numa “transição epistemológica no campo da ciência linguística” (p. 7). Nesse contexto
caracterizado por uma “crise de identidade da linguística moderna”, a AD assumiu, na
interpretação de Flores (1997), “a „voz‟ que verbaliza a crise do paradigma estrutural na
linguística” (p. 49). Configurou-se, desse modo, um empreendimento estabelecido com o
“intuito de escapar ao esgotamento provocado por um estudo que se enclausura num sistema
imanente” (TEIXEIRA, 1999, p. 39). Nessa atmosfera caracterizada por deslocamentos
epistemológicos e pela reconfiguração do domínio de estudos da linguagem, a AD buscou
resgatar os elementos marginalizados por consequência do corte saussureano; afinal, como
aponta Teixeira (1999), da dicotomia língua x fala emerge um problema fundamental, que
coube às teorias sociodiscursivas solucionar: “ainda que todas as precauções para delimitar
um campo como estritamente linguístico sejam tomadas, encerrando-se a língua nela mesma,
isso que a excede inevitavelmente retorna ao próprio objeto, pois só tem existência nele”
(TEIXEIRA, 1999, p. 31).
Convém destacar que, embora assuma protagonismo na derrubada da hegemonia
formalista, segundo defendem os autores, o projeto da AD não se confunde com um
empreendimento linguístico em sentido estrito: “o objeto da AD (...) diferencia-se do objeto
da linguística, em primeiro lugar, porque o objeto teórico específico da AD é o discurso (...) e
o da linguística é a língua” (PEREIRA, 1991, p. 18). Ou seja, ainda que parta da linguagem
enquanto forma material de acesso ao discurso, segundo Pereira (1991), a AD não se dedica
ao estudo descritivo da língua em si mesma, posição a qual Flores (1997) corrobora.
Tomando-se a perspectiva discursiva de Michel Pêcheux, teoria diluída por Pereira (1991),
pode-se dizer que “o objetivo da AD é mostrar a vinculação entre linguagem e ideologia”
(PEREIRA, 1991, p. 11), tarefa que “extrapola o campo linguístico, na medida em que busca
determinação do sentido também no campo sócio-histórico e psicanalítico” (p. 10).
210

Naturalmente, embora não vise construir uma teoria descritiva dos fenômenos
estritamente linguísticos, a AD, em suas diferentes vertentes, lida diretamente com a
linguagem, uma vez que é nela que os processos discursivos se manifestam materialmente.
Para a análise do discurso francesa preconizada por Michel Pêcheux, por exemplo, a língua
“passa a ser o lugar material dos confrontos sociais e a condição de se atribuir aos discursos
determinados efeitos de sentido” (FLORES, 1997, p. 52). Assim, em contraposição à
concepção estruturalista, que exclui os elementos que residem na exterioridade do sistema
imanente, a língua “deixa de ser vista como um sistema ideologicamente neutro para ser
entendida na realidade do discurso, ou seja, materialidade atravessada por posições subjetivas
e sociais” (FLORES, 1997, p. 57). Esse pensamento se aproxima da concepção de Authier-
Revuz, para quem, segundo Teixeira (1999), a língua, do ponto de vista discursivo, é
essencialmente constituída “pela falta daquilo que a linguística teve que abandonar para se
configurar como ciência. Isso que falta insiste na língua, comprometendo a regularidade”
(TEIXEIRA, 1999, p. 34).
Ao analisar a linguagem em relação com os elementos de sua exterioridade, a AD,
inevitavelmente, traz para o centro de sua discussão sobre o discurso a figura do sujeito,
elemento anulado pela tradição formalista por ocasião do corte saussureano. Souza (1997),
em texto de diluição, discute em detalhes o lugar do sujeito na teoria de Michel Pêcheux.
Nessa abordagem discursiva, a noção de sujeito encontra fundamentação direta na teoria
psicanalítica de Jacques Lacan, motivo pelo qual o sujeito é assumido na AD francesa como
um sujeito do inconsciente. Trata-se, pois, de “uma teoria do sujeito que pode situá-lo fora da
dimensão cartesiana ou idealista” (SOUZA, 1997, p. 90). Desse modo,

o conceito de Ego como imaginário e resultado do assujeitamento ao Outro, tomado


na psicanálise, permite uma visão não idealizada do sujeito que é tão importante
para a AD. Entendemos que uma visão idealizada é aquela das possibilidades do
livre arbítrio do indivíduo, ou mesmo, da possibilidade que o sentido de um
enunciado seja exatamente aquele pretendido por este que enuncia (SOUZA, 1997,
p. 96).

O sujeito da AD francesa, assujeitado ideologicamente, age com a linguagem sob a


ilusão de domínio e origem dos sentidos, sem perceber a determinação da ideologia em seu
dizer e em sua leitura do mundo através da linguagem. Isto é, o atravessamento da ideologia
“faz com que o sujeito tenha a impressão de ser a fonte de seu discurso, enquanto está,
verdadeiramente, apropriando-se de sentidos já existentes, bem como de convenções e formas
possíveis selecionadas entre as já existentes” (MUTTI, 1991, p. 90). Tanto a ideologia como
211

as formações discursivas dela resultantes, como discute Flores (1997), configuram as


condições de produção do discurso, espaço em que também se situam as “formações
imaginárias em que os sujeitos falam a partir de um jogo de imagens estabelecido entre os
interlocutores e desses com o referente” (FLORES, 1997, p. 45). Por esse motivo, “na AD, o
indivíduo se faz sujeito das condições histórico-ideológicas que preexistem à sua existência
singular” (SOUZA, 1997, p. 97).
Ao tomar a língua como materialidade dos processos discursivos que se constituem na
sua relação com a ideologia e ao trazer para a reflexão a figura do sujeito assujeitado, a AD
francesa trabalha com a não transparência dos sentidos, o que significa dizer que “o sentido
das palavras e dos enunciados caracteriza-se pela opacidade, não sendo, pois, evidente e nem
existindo em si mesmo. É ele determinado pelas posições ideológicas no processo sócio-
histórico” (PEREIRA, 1991, p. 14). A esse respeito, reforça Souza (1997):

o sentido de uma palavra, expressão ou proposição é determinado pelas posições


ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual são produzidas ou
reproduzidas. Pêcheux resume esta tese dizendo que as palavras, expressões,
proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles
que as empregam (SOUZA, 1997, p. 101).

No domínio da reflexão sobre ensino de língua portuguesa, Mutti (1991) parte dos
fundamentos basilares de Michel Pêcheux, assim como o fizeram os autores dos textos de
diluição acima considerados, mas não se restringe a eles: relaciona-os às proposições de
Authier-Revuz, que, inspirada no dialogismo bakhtiniano e na noção de interdiscurso advinda
da AD, “postula a heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso, indo esta
heterogeneidade através da presença do outro” (MUTTI, 1991, p. 94). Diante disso, as
reflexões sobre ensino da leitura e da produção de textos empreendidas pela autora se dão no
bojo da discussão sobre a natureza heterogênea da linguagem, dos textos e dos sujeitos (que
escrevem, falam, leem e escutam).
Partindo da noção de texto enquanto materialidade de discursos, e sendo estes, por sua
vez, concebidos não como “com uma mera transmissão de informações entre remetente e
destinatário, mas com um „efeito de sentido‟ que se estabelece entre os mesmos” (MUTTI,
1991, p. 89), a autora destaca a natureza heterogênea da escrita, sendo a autoria um gesto
discursivo que se estabelece na medida em que o indivíduo se subjetiva, assumindo a posição
de autor. Isto é,
212

assumindo o seu papel de autor, o sujeito se insere na cultura, definindo posição no


contexto histórico-social. Sendo múltiplas e dispersas as representações possíveis do
sujeito-enunciador, caberá ao sujeito-autor organizá-las, dando unidade e coerência
ao seu discurso, quando produz linguagem (MUTTI, 1991, p. 96).

A leitura toma contorno similar, sendo também tomada como um gesto da ordem do
discurso. Uma vez que, como discutiram Pereira (1991) e Souza (1997), o sentido não reside
nas palavras ou expressões linguísticas, mas advém da relação de tensão entre a linguagem e
os efeitos da ideologia, compreende-se que “um texto pode ser lido de várias maneiras, e este
aspecto é fundamental para o processo de significação” (MUTTI, 1991, p. 97). No trabalho de
avaliação da leitura, salienta Mutti (1991), “o professor não pode esquecer que a história de
leituras do aluno geralmente difere da sua” (p. 97). Ao invés de impor uma leitura única
legitimada, a escola deve considerar a característica heterogênea dos textos, da linguagem,
dos sujeitos, permitindo, assim, que o aluno construa sentidos de modo como o faz na vida,
enquanto sujeito de linguagem. Em suma,

embora haja leituras previstas para um texto, ele não é fechado em si mesmo. Estas
leituras previstas representam um dos componentes das condições de produção de
leitura do aluno, permitindo-lhe a construção de sua própria história de leitura e
estabelecendo relações intertextuais, resgatando a história dos sentidos do texto, sem
barrar o curso futuro desses sentidos (MUTTI, 1991, p. 97).

Como é possível observar a partir da análise das fontes da Letras de Hoje na década de
1990, os estudos em análise do discurso protagonizam parcela expressiva da pesquisa
linguística produzida no Brasil, sobretudo na região Sul do país. A frequente publicação de
textos de diluição que “aplicam” os fundamentos de uma teoria indicia que, naquele
momento, um grupo organizado em torno das pautas levantadas por esse empreendimento
teórico atingiu, nos termos de Murray (1994), seu cluster. Trabalhos como os de Aracy Ernst
Pereira, Regina Maria Varini Mutti e Valdir Flores – à época pesquisadores em processo de
formação (todos doutorandos pela PUCRS) –, enquanto fontes historiográficas, indiciam a
consolidação da abordagem discursiva no circuito de discussões linguísticas brasileiras e sua
importância para a cristalização da TSD no Brasil. Em se tratando da AD francesa,
abordagem que fundamentou a maioria dos trabalhos aqui analisados, vale salientar que nesse
período já circulava no Brasil a tradução de Semântica e Discurso, obra que instalou muitas
das bases da teoria discursiva de Michel Pêcheux35. Nessa atmosfera, pode-se dizer que
discurso, ao longo da década de 1990, não é mais discutido, como no período de emergência

35
Tradução liderada por Eni Orlandi, publicada, em 1988, pela Editora da Unicamp. Desde então, até os dias de
hoje, a obra vem recebendo reedições.
213

da TSD no Brasil, como uma novidade, mas, por outro lado, como um saber sobre a
linguagem amplamente difundido pela Linguística brasileira, diluído em trabalhos que
resultam em dissertações, teses, artigos, ensaios, conferências etc.

5.3.3 Cadernos de Estudos Linguísticos

Os trabalhos divulgados pelos Cadernos de Estudos Linguísticos na década de 1990


aqui analisados giram em torno, com exclusividade, dos objetos texto e discurso. Em ambos
os casos, vê-se a produção de textos de ação e de diluição que reforçam que tanto a linguística
de texto como a análise do discurso, nesse período, constituem campos já enraizados na
Linguística brasileira. No caso da linguística de texto, os trabalhos aqui analisados marcam a
terceira fase desse empreendimento na pesquisa linguística brasileira, momento em que, sob
liderança, principalmente, de nomes como Ingedore Koch e Luiz Antônio Marcuschi, o texto
é abordado numa perspectiva sociointeracional e cognitiva.
Embora nenhum das fontes trate diretamente de questões particulares do ensino de
língua portuguesa, considerar os saberes linguísticos imanentes a esse material nos permite
compreender de que modo certas concepções sociodiscursivas de língua e linguagem foram
discutidas na pesquisa linguística brasileira, costurando uma tradição que, inevitavelmente,
em outros espaços, atingiu a reflexão sobre a educação linguística.
Segue, abaixo, a relação das fontes analisadas.

Quadro 26 – Informações das fontes analisadas do periódico Cadernos de Estudos Linguísticos publicadas no
período de consolidação da TSD

IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES


Título Autoria Referência
Heterogeneidade(s) Authier-Revuz
Jacqueline Authier-Revuz
enunciativa(s) (1990)
Tendências da análise do
José Luiz Fiorin Fiorin (1990)
discurso
A atividade de produção textual Ingedore G. Villaça Koch Koch (1993)
Aquisição da escrita e
Ingedore G. Villaça Koch Koch (1995)
textualidade
Estratégias pragmáticas de
Ingedore G. Villaça Koch Koch (1996)
processamento textual
Exterioridade e ideologia Eni P. Orlandi Orlandi (1996)
Fonte: o autor, 2019
214

Começo pelo trabalho de Jacqueline Authier-Revuz, professora e pesquisadora da


Universidade de Paris III. O texto em questão é uma tradução para o português de seu artigo
Hétérogénéité(s) énonciative(s), publicado, originalmente, no periódico francês Langages, em
1984. Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi assinam a tradução que passo agora a
analisar.
Inicio a discussão salientando o caráter de texto de ação atribuído ao artigo de
Authier-Revuz (1990). Ainda que promova articulações com outras teorias e
empreendimentos (e, mesmo que sutilmente, diluições), como é o caso da análise dialógica de
Bakhtin e da psicanálise de Lacan, o produto intelectual resultante do trabalho da linguista
francesa instala, de modo autoral e propositivo, novos caminhos para se pensar na
heterogeneidade característica da linguagem e dos discursos.
Authier-Revuz (1990) inicia sua discussão destacando elementos da atmosfera
intelectual em que enuncia suas proposições: um contexto da Linguística em que a
“complexidade enunciativa” está na moda. Em outras palavras, a autora indicia que, no
momento em que se propõe a refletir sobre a heterogeneidade da linguagem e dos discursos
(1984, na França), o conhecimento sociodiscursivo, por assim dizer, sobretudo a parcela que
diz respeito à reflexão sobre os processos discursivo-enunciativos, já está solidificado na
cultura linguística europeia (cenário que começa a ser notado, também, no Brasil, entre as
décadas de 1980 e 1990). A esse respeito, destaca Authier-Revuz (1990):
deslocamentos enunciativos, polifonia, desdobramentos ou divisão do sujeito
enunciador... tantas são as noções que – em quadros teóricos diferentes – dão conta
de formas linguísticas discursivas ou textuais alterando a imagem de uma mensagem
monódica (p. 25).

O objetivo de Authier-Revuz (1990) consiste em discutir o que a autora denomina de


formas de heterogeneidade enunciativa, enfatizando, neste artigo, a heterogeneidade
mostrada, noção que, tal como a de heterogeneidade constitutiva, princípio fundamental da
linguagem, ancora-se ao “exterior da linguística trazendo concepções de sujeito e de sua
relação com a linguagem” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 25). Em linhas gerais, a autora parte
do princípio de que tanto a linguagem como o(s) sujeito(s) se constituem na medida em que
estabelecem relações dialógicas com vozes e discursos cuja origem não se pode definir
precisamente.
Para tratar das formas como se manifesta a heterogeneidade enunciativa constitutiva
da linguagem e dos sujeitos, a autora parte de “trabalhos que tomam o discurso como produto
de interdiscursos ou, em outras palavras, a problemática do dialogismo bakhtiniano”,
incorporando, também, a “abordagem do sujeito e de sua relação com a linguagem permitida
215

por Freud e sua releitura por Lacan” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26). Assim, apoiando-se
em Bakhtin para tratar dos aspectos dialógicos e polifônicos da linguagem, a autora
compreende que “nenhuma palavra é neutra, mas inevitavelmente carregada, ocupada,
habitada, atravessada pelos discursos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada”
(AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 27). Além disso, busca na psicanálise fundamento para
desconstruir a centralidade e a autonomia do sujeito, o que implica acreditar que “não há
centro para o sujeito fora da ilusão e do fantasmagórico” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28).
Nesse horizonte epistemológico, Authier-Revuz (1990) discute detidamente formas de
manifestações marcadas de heterogeneidade mostrada, como nas situações em que “o
fragmento mencionado é ao mesmo tempo um fragmento do qual se faz uso: é o caso do
elemento colocado entre aspas, em itálico” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 29). Nesses casos
de heterogeneidade mostrada, “o fragmento designado como um outro é integrado à cadeia
discursiva sem ruptura sintática do discurso ao mesmo tempo que, pelas marcas, que neste
caso não são redundantes, é remetido ao exterior do discurso” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.
29-30). Por outro lado, as formas não mostradas da heterogeneidade, como “discurso indireto
livre, ironia... de um lado, metáforas, jogos de palavras... de outro”, representam

a incerteza que caracteriza a referência ao outro, uma outra forma de negociação


com a heterogeneidade constitutiva; uma forma mais arriscada, porque joga com a
diluição, com a dissolução do outro no um, onde este, precisamente aqui, pode ser
enfaticamente confirmado mas também onde pode se perder (AUTHIER-REVUZ,
1990, p. 34).

Em suma, as reflexões de Authier-Revuz (1990) contribuem para a propagação da


concepção dialógica da linguagem, ocupando lugar relevante no circuito de discussões
linguísticas em torno do discurso, objeto investigativo que ganha força e expressividade ao
longo da década de 1990.
Ainda no domínio dos estudos discursivos, no mesmo volume do Caderno de Estudos
Linguísticos, José Luiz Fiorin contribui com a discussão sobre as tendências da análise do
discurso, partindo do pressuposto de que “não há uma análise do discurso; há análises do
discurso” (FIORIN, 1990, p. 173). Para o autor, dentre as diferentes tendências, “algumas
privilegiam os mecanismos internos de constituição do sentido, deixando de lado as relações
com a cultura e a história” (FIORIN, 1990, p. 173); outras, por sua vez, enfatizam as
“determinações históricas que incidem sobre a linguagem e dão pouca ou quase nenhuma
atenção à textualização e à discursivização” (p. 173). Entretanto, a despeito das divergências,
encontram pontos de encontro, tendo em vista que todas essas abordagens tomam a linguagem
216

“concomitantemente como mecanismo formal e como continente de determinações pulsionais


e sociais” (FIORIN, 1990, p. 174). Para Fiorin (1990), uma vez que visa “explicar o sistema
de regras que preside à constituição do sentido, bem como a ordem de necessidades a que o
texto responde” (p. 173), a AD “não busca „o‟ sentido verdadeiro do texto, nem „o‟ seu
sentido oculto, nem „a‟ interpretação nova e inédita destinada a derrubar todas as outras
interpretações e todos os outros sentidos” (p. 173). Isto é, trabalha-se, por essa perspectiva,
com a opacidade da linguagem em sua relação com as condições de produção.
Fiorin (1990) identifica-se com uma teoria discursiva que lida com o discurso como
objeto, ao mesmo tempo, linguístico e histórico – “esses dois pontos de vista não são
excludentes” (FIORIN, 1990, p. 176) –, cabendo ao analista de discurso, portanto, de um
lado, “aprofundar o conhecimento dos mecanismos sintáticos e semânticos geradores de
sentido” (p. 176) e, de outro, “compreender o discurso como objeto cultural, produzido a
partir de certas condicionantes históricas, em relação dialógica com outros textos” (p. 176-
177). No eixo histórico da análise discursiva, deve “levar em conta a heterogeneidade
constitutiva do discurso, estabelecer o primado do interdiscurso sobre o discurso” (FIORIN,
1990, p. 178); já no eixo linguístico, grosso modo,

não se trata evidentemente apenas de analisar categorias gramaticais que expressam


tempo, espaço e pessoa, mas de estudar problemas mais amplos como a questão das
vozes (modo de citar o discurso alheio, intertextualidade, interdiscursividade,
intersemioticidade); a questão ainda mais ampla da heterogeneidade constitutiva do
discurso e da heterogeneidade mostrada (FIORIN, 1990, p. 177).

Em resumo, trata-se de encarar o discurso como um objeto flexível, regulado por um


sistema (que não se fecha em si) e atravessado pela historicidade. Por esse motivo, defende
Fiorin (1990) que “a análise do discurso deverá ver o discurso em toda sua complexidade,
objeto linguístico e cultural. Não descurará da sintaxe e da semântica discursivas, uma vez
que o sentido é engendrado por elas” (p. 179).
Percebe-se que, em seu curto texto ensaístico, José Luiz Fiorin apresenta-nos um
mapeamento de saberes sobre o domínio dos estudos discursivos, diluindo conceitos e
perspectivas teóricas europeias. Não intencionou, com isso, propor novos caminhos para o
trabalho com a linguagem, mas, ainda assim, seu trabalho contribuiu de modo acentuado para
a divulgação do saber discursivo no Brasil, seja pela objetividade, seja pela reunião de
fundamentos-chave de teorias discursivas, seja, ainda, pela relevância do autor no cenário
intelectual brasileiro (professor e pesquisador vinculado à USP).
217

Eni Orlandi também segue, em texto de diluição, na discussão sobre o objeto discurso.
Entretanto, diferentemente de Fiorin (1990), Orlandi (1996) foca, especificamente, a análise
do discurso francesa, teoria com a qual tem trabalhado desde a década de 1970 e cuja
divulgação, no Brasil, tem protagonizado enquanto liderança. Mais detidamente, busca
analisar de que modo a AD se afasta da pragmática no que diz respeito ao trabalho com os
elementos da exterioridade. O grande foco da autora nessa análise contrastiva reside, mais
particularmente, em dois pontos centrais que diferenciam a AD da pragmática: “1. A ordem
da língua como ordem própria; 2. O sujeito como de-centrado (dividido): a intervenção do
inconsciente e da ideologia” (ORLANDI, 1996, p. 27).
Para a AD, afirma Orlandi (1996), a língua detém de uma ordem própria. Ordem e
organização da língua não se confundem: esta consiste no sistema léxico-gramatical e suas
regras combinatórias, aquela, por sua vez, num “sistema significante em sua relação com a
história, considerada em sua materialidade simbólica” (ORLANDI, 1996, p. 27). É nesse
espaço da ordem da língua que a análise do discurso investiga a construção histórico-
ideológica do discurso que nela (na língua) se materializa. A respeito dessa distinção entre
ordem e organização, salienta Orlandi (1996):

O que interessa é a ordem da língua. Não é, por exemplo, a relação entre sujeito e
predicado que é relevante, mas o que esta organização sintática pode nos fazer
compreender dos mecanismos de produção de sentidos (linguístico-históricos) que aí
funcionam, enquanto ordem significante (p. 30).

Observa-se que, ao enfatizar o estudo da ordem da língua, tal como a concebe, Orlandi
(1996) parte do pressuposto de que “a língua não é só um código ou um instrumento de
comunicação ideologicamente neutro. Nem apenas um sistema abstrato” (ORLANDI, 1996,
p. 30). Isto é, a autora toma a língua em sua relação com a exterioridade, mais
especificamente, a exterioridade que reside no complexo espaço do interdiscurso.
A propósito do ponto 2 acima levantado – O sujeito como de-centrado (dividido) –,
Orlandi (1996) ressalta a importância da teoria psicanalítica para a constituição teórica da AD
francesa. Ao tomar o sujeito lacaniano, ou seja, aquele atravessado pelo inconsciente, a AD
abandona “a noção psicológica de sujeito, empiricamente coincidente consigo mesmo”, o que
significa dizer que, por consequência do atravessamento do inconsciente e do efeito da
ideologia, “o sujeito só tem acesso a parte do que diz” (ORLANDI, 1996, p. 28). Em linhas
gerais,
ideologia e inconsciente, na análise de discurso, estão materialmente ligados. A
interpelação do indivíduo em sujeito, pela ideologia, traz necessariamente o
apagamento da inscrição da língua na história para que ela signifique. O efeito é o da
218

evidência do sentido (o sentido-lá), e a impressão do sujeito como origem do que


diz. Efeitos que trabalham, ambos, a ilusão de transparência da linguagem
(ORLANDI, 1996, p. 28).

É aí que reside a diferença mais expressiva entre análise do discurso francesa e a


pragmática, declara Orlandi (1996). Embora ambas considerem o trabalho do sujeito e sua
relação com a exterioridade, o modo como operam com essa categoria (o sujeito) diverge
fundamentalmente. Enquanto a AD toma-o como efeito da ideologia e determinado pelo
inconsciente, a pragmática trabalha com um indivíduo social que age com a linguagem, com
consciência, visando cumprir certas necessidades comunicativas. Ao comparar as duas
abordagens – AD e pragmática –, Orlandi (1996) assume uma retórica de ruptura, na medida
em que, negando o sujeito consciente enquanto ator social, aponta possíveis lacunas da teoria
pragmática, as quais estaria a AD, na interpretação da autora, apta a preencher:

A noção de “interlocução” vigente na pragmática admite a constituição pelo outro,


mas no exercício da imediatidade e não da história (interdiscurso). A memória aí é
definida como memória psicológica, enquanto para o analista de discurso, a
memória é linguístico-histórica. Esquece assim que não é pela soma de situações
enunciativas particulares que se constitui o sentido. É preciso, segundo a análise de
discurso, que as enunciações passem para o anonimato para que se institua o sentido,
o efeito de literalidade (ORLANDI, 1996, p. 28, grifos meus).
Todos esses aspectos que elencamos dão a diferença com a pragmática, já que para
esta o que está em vigência é o sujeito psicológico, as intenções, a exclusão da
ideologia e do inconsciente, a relação língua + contexto, havendo dominância deste
sobre aquela, o que reduz a língua a suporte (organização) (ORLANDI, 1996, p. 31,
grifos meus).
Aí se dá o processo de constituição do discurso, na memória, no domínio dos dizeres
já-ditos ou possíveis que garantem a formulação do dizer. É esse jogo entre a
formulação e a constituição dos sentidos que produz o efeito de exterioridade, o
sentido-lá. É esse jogo que a pragmática não toma em conta (ORLANDI, 1996, p.
31, grifos meus).

Passo agora a analisar fontes, todas assinadas por Ingedore Koch, em que aspectos do
texto são discutidos. Convém antes de tudo adiantar que a expressiva contribuição de
Ingedore Koch nesta década do Caderno de Estudos Linguísticos materializa o resultado de
pesquisas que delinearam as fronteiras de um novo momento da linguística de texto no Brasil.
Situada na (e protagonista da) atmosfera de consolidação da TSD na pesquisa linguística
brasileira, momento em que a concepção interacional da linguagem se torna um conhecimento
linguístico legitimado, Koch (1993, 1995 e 1996) se concentra no estudo dos processos e das
estratégias textuais, discursivas e cognitivas envolvidas na produção e na recepção de textos
falados e escritos. Trata-se de uma abordagem textual que interage diretamente com teorias
cognitivas do conhecimento, como a psicologia cognitiva e a neuropsicologia.
219

Tanto em seu texto de 1993 como no de 1995, Ingedore Koch se dedica à discussão
sobre “o processo de produção textual no quadro das teorias interacionais da linguagem, isto
é, como atividade interacional de sujeitos tendo em vista a realização de determinados fins”
(KOCH, 1993, p. 65), ainda que, sobretudo em Koch (1993), a autora também discuta
elementos atinentes à leitura. Já em Koch (1996), texto em que a autora propõe a “ampliação
da noção de contexto, de modo a englobar o conjunto do que [chama de] estratégias
pragmáticas de processamento textual” (p. 35), investigam-se tanto a produção como a
recepção de textos. Em todos os casos, a linguista parte da concepção de texto como atividade
linguístico-discursiva resultante de processo interacional pragmaticamente orientado.
O dispositivo pragmático no quadro descritivo da LT é aqui enfatizado – tal como já o
fizeram os estudos textuais empreendidos nas décadas passadas –, na medida em que se
concebe o texto para além de sua estrutura léxico-gramatical. Desse modo, o a dimensão
pragmática subjacente à atividade textual interfere diretamente na constituição dos níveis
estruturantes da língua: “o plano geral do texto determina as funções comunicativas que nele
irão aparecer e estas, por sua vez, determinam as estruturas superficiais” (KOCH, 1993, p.
69). Diante desse pressuposto, a LT, neste momento, ao analisar o texto e seus processos de
produção e recepção, reconhece

a existência de um sujeito planejador/organizador (entidade psico-físico-social) que,


em sua inter-relação com outros sujeitos, vai construir um texto, sob a influência de
um complexo de fatores, entre os quais a especificidade da situação, o jogo das
imagens recíprocas, as crenças, convicções, atitudes, os conhecimentos partilhados,
as expectativas mútuas, as normas e convenções sociais (KOCH, 1993, p. 65).

Vê-se, pela passagem acima, que a investigação dos fenômenos de processamento


textual opera, ao mesmo tempo, com um dispositivo sociointeracional, ao conceber o texto
como lugar de encontro entre sujeitos que, num dado contexto sociocultural, se inter-
relacionam, mas também com um dispositivo psicocognitivo. Assim, a partir de uma
perspectiva sociointeracional e psicocognitiva da atividade textual, ponto de vista que
caracteriza a identidade da LT desenvolvida por Ingedore Koch nessa década, entende-se que

a construção do „objeto-texto‟ exige a realização de uma série de ações cognitivo-


discursivas dos sujeitos no sentido de dotá-lo de certos elementos, propriedades ou
marcas que, em seu inter-relacionamento, são responsáveis pela produção do sentido
(KOCH, 1993, p. 65).

Em Koch (1996), ao considerar que, em “uma interação, cada um dos parceiros traz
consigo sua bagagem cognitiva” (p. 36), a autora reforça a questão:
220

Para que duas ou mais pessoas possam compreender-se mutuamente, é preciso que
seus contextos cognitivos sejam, pelo menos, parcialmente semelhantes. Em outras
palavras, seus conhecimentos enciclopédico, episódico, macro- e superestrutural ou
esquemático devem ser, ao menos em parte, compartilhados (KOCH, 1996, p. 36).

No mesmo texto, Koch (1996) faz alusão a três tipos de estratégias pragmáticas de
processamento textual, a saber: estratégias cognitivas, que envolvem as operações mentais a
partir das quais construímos hipóteses que possibilitam a constante “formação, atualização e
modificação de nossos modelos cognitivos (frames, scripts, modelos de situação), bem como
de nosso conhecimento enciclopédico, atitudes, ideologias” (KOCH, 1996, p. 37); estratégias
interacionais, que visam a estabelecer o funcionamento da interação a partir de certas regras e
convenções socioculturais que governam a prática verbal, como “as estratégias de preservação
das faces (...), que envolvem o uso das formas de atenuação, as estratégias de polidez, de
negociação, de atribuição de causas aos mal-entendidos, entre outras” (KOCH, 1996, p. 38);
e, por fim, as estratégias textuais, que apontam para a seleção dos elementos linguísticos e
seu encadeamento na sequência textual com vistas ao cumprimento de certas finalidades
comunicativas; residem nesse domínio das estratégias textuais

estratégias de referenciação, as estratégias de articulação tema-rema, as formas de


encadeamento de enunciados visando à sua orientação argumentativa, a combinação
de termos de diferentes campos lexicais com vistas à construção de novos sentidos,
as estratégias de desaceleração da fala, entre tantas outras (KOCH, 1996, p. 39).

O processamento textual, quer no eixo da produção, quer no da recepção, envolve o


trabalho de sujeitos – social e cognitivamente constituídos – que negociam os sentidos
colaborativamente diante do evento interativo que é o texto enquanto unidade linguística
significante. O autor de um texto, portanto, não domina os sentidos “do” texto, como se a
interação se reduzisse a uma transmissão unilateral de mensagem entre emissor e receptor,
mas, através de pistas materializadas na superfície do texto, permite ao outro (re)construir,
num movimento colaborativo, suas intenções comunicativas, atribuindo-lhes significação. O
leitor, então, diante desse processo de alteridade constitutivo da práxis linguística, “pode ou
não atribuir sentido ao texto, aceitá-lo como coeso e/ou coerente, considerá-lo relevante para a
situação de interlocução e/ou capaz de produzir nela alguma transformação” (KOCH, 1993,
p.72); não se limita, portanto, “a „entender‟ o texto no sentido de captar seu conteúdo
referencial, mas atua no sentido de reconstruir a intenção do falante” (KOCH, 1993, p. 69).
221

5.3.4 Trabalhos em Linguística Aplicada

Duas grandes frentes protagonizam as fontes da década de 1990 do periódico


Trabalhos em Linguística Aplicada (TLA): estudos do discurso e estudos sobre a oralidade.
No primeiro caso, deparamo-nos com trabalhos que lidam com aspectos do ensino da leitura;
já no segundo, com textos de ação em que se discute o lugar do texto falado no ensino de
português.
É relevante destacar que figuram aqui textos assinados por lideranças intelectuais e
organizacionais com alto potencial de elite e atestada idade profissional, como é o caso de
Luiz Antônio Marcuschi e Ingedore Koch, dois agentes cuja contribuição se fez presente
desde a emergência da TSD, na década de 1970. Aqui, os autores apresentam avanços sobre o
estudo da oralidade, consolidando essa pauta na agenda da linguística brasileira.
Segue, abaixo, a relação das fontes analisadas.

Quadro 27 – Informações das fontes analisadas do periódico Trabalhos em Linguística Aplicada publicadas no
período de consolidação da TSD
IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES
Título Autoria Referência
Análise do discurso e leitura:
elementos para uma “progressão Rosa Maria Nery Nery (1990)
textual”
Aspectos do processo de produção
José Luiz Meurer Meurer (1993)
de textos escritos
Concepção de língua falada nos
manuais de português de 1º e 2º Luiz Antônio Marcuschi Marcuschi (1997)
graus: uma visão crítica
Interferências da oralidade na
Ingedore G. Villaça Koch Koch (1997)
aquisição da escrita
Interação em aula de leitura: a
atuação do aluno nas margens e no
Marisa Grigoletto Grigoletto (1997)
centro da construção da
significação
A inter-relação oralidade-escrita
Maria da Graça Costa Val Costa Val (1997)
no aprendizado da redação

Fonte: o autor, 2019

Rosa Maria Nery e Marisa Grigoletto, professoras, respectivamente, da Unicamp e da


USP, em textos de diluição, discutem questões atreladas ao ensino de leitura. Entretanto,
222

tratam-na a partir de perspectivas distintas, ainda que ambas de natureza discursiva. Nery
(1990) apoia-se na semiolinguística do discurso, teoria preconizada pelo linguista francês
Patrick Charaudeau, para pensar na linguagem como um fenômeno de natureza social e
histórica e na leitura, por conseguinte, como um “um processo de construção de sentidos, no
qual estão envolvidos, além de fatores linguísticos, elementos de diferentes ordens” (NERY,
1990, p. 49). Já Grigoletto (1997), por sua vez, assume a perspectiva da análise do discurso de
Michel Pêcheux, teoria que aparece diluída ao longo de seu texto.
Para Nery (1990), pensar em leitura implica, antes, pensar na linguagem e nos
indivíduos que, através dela, constroem sentidos. Para a autora, o ato de linguagem “não deve
ser considerado como um ato de comunicação, isto é, como um processo simétrico de
transmissão de informações, codificadas por um locutor e decodificadas por um receptor”
(NERY, 1990, p. 50). Consequentemente, ao recusar a concepção codificada de linguagem
codificada, bem como a hipótese de que a comunicação intersubjetiva se daria linearmente
entre emissor e receptor, Nery (1990) toma a leitura como prática dialética resultante de um
trabalho ativo do sujeito que lê: “a leitura não pode ser compreendida como um ato passivo de
reconstituição. Trata-se de construir significação a partir da palavra do outro” (NERY, 1990,
p. 50).
Convém destacar que a teoria semiolinguística do discurso, diferentemente da AD
francesa, como salienta Nery (1990), trabalha com um sujeito pragmático, ator social
consciente de seus atos. Por esse viés, “a leitura implica num processo contínuo de
formulação e verificação de hipóteses de significação” (NERY, 1990, p. 56) operado pelo
sujeito em sua relação com os textos. Disso se depreende, enfim, que “toda interpretação é um
„acordo de intenções‟” (CHARAUDEAU, 1983, p. 118, apud NERY, 1990, p. 50)
estabelecido entre leitor e autor a partir do plano textual.
A prática pedagógica com a leitura na escola, segundo Nery (1990), está atrelada a um
projeto de educação pressuposto: “aqui se coloca uma questão delicada, implícita em toda
prática pedagógica e que se liga sobretudo a uma problemática social: que leitor pretendemos
formar?” (NERY, 1990, p. 56). Ao levantar a discussão semiolinguística do discurso para
pensar no ensino da leitura, entendendo a função da escola enquanto instituição de inclusão e
transformação social, a autora propõe um trabalho pedagógico com a leitura que permita ao
estudante, enquanto ator social e leitor ativo, construir sentidos de modo crítico e autônomo,
confrontando-os com outras possibilidades advindas de outras possíveis leituras, sendo essa
ação condição do exercício da cidadania.
223

Grigoletto (1997) também trata da leitura escolar numa perspectiva discursiva. O foco
de seu trabalho, entretanto, não reside diretamente na discussão sobre possíveis contribuições
que pode a análise do discurso oferecer ao trabalho pedagógico com a leitura. A autora, na
verdade, a partir de uma análise discursiva, discute sobre a construção, no processo de ensino-
aprendizagem da leitura, de certos imaginários sobre o texto como unidade homogênea e o
leitor (aluno-leitor) como sujeito que se subordina a uma leitura autorizada pelo professor,
representante do conhecimento legitimado pelo aparelho ideológico escolar. Assim,
Grigoletto (1997) visa “analisar o discurso dos alunos para verificar em que medida ele é
reflexo dessa imposição de um modelo escolar de homogeneidade, ou se eles, de alguma
forma, se contrapõem ao modelo” (p. 86).
Para investigar o funcionamento ideológico imbuído na relação aluno-texto-professor
na prática da leitura escolar, Grigoletto (1997) busca apoio na análise do discurso francesa,
diluindo, a partir daí, seus fundamentos sobre o discurso, o sujeito e a ideologia, categorias
que, para a autora, “parecem pertinentes para explicar a atuação do aluno na sala de aula
porque historicizam o contexto sociocultural do qual o aluno participa” (GRIGOLETTO,
1997, p. 86). Toma, por esse prisma, o discurso como “o lugar onde se articula o sistema
linguístico com a historicidade que lhe confere sentidos” (GRIGOLETTO, 1997, p. 86); e o
sujeito como posição assumida discursivamente e assujeitada à ideologia. O fragmento a
seguir, que trata das noções de sujeito e de ideologia, sintetiza a diluição de fundamentos
básicos da análise do discurso pecheutiana empreendida por Grigoletto (1997):

Uma teoria não subjetivista do sujeito concebe uma relação necessária entre
ideologia e sujeito, mas de maneira inversa à concepção idealista: as ideologias não
têm sua origem nos sujeitos, mas, ao contrário, são elas que constituem os
indivíduos em sujeitos. (...) O sujeito não é, pois, fonte, origem ou centro, mas
aparece como tal, inclusive a si próprio, pelo efeito ideológico (GRIGOLETTO,
1996, p. 87).

Ao analisar como se processa discursivamente o trabalho com a leitura, Grigoletto


(1997) aponta como a relação hierarquizada entre professor e aluno instaura uma prática que
oprime a subjetivação do leitor, indivíduo que, ao assumir a posição de aluno, deve
corresponder ao que dele se espera na escola. Desse modo, para a autora, o professor, posição
que, no plano discursivo, “personifica” a escola enquanto aparelho ideológico, “parece agir
movido pela busca de homogeneidade e de eliminação de qualquer conflito proveniente de
interpretações diferentes, ou de vontades divergentes” (GRIGOLETTO, 1997, p. 85). O
resultado mais imediato desse jogo de imaginários (imaginário do que é ser aluno e professor,
224

bem como qual o papel da leitura na escola) é o apagamento do “aluno do lugar da


interpretação, reservando-lhe o lugar de repetidor” (GRIGOLETTO, 1997, p. 89).
Por fim, compreendendo o papel da escola enquanto instituição que deve, antes de
tudo, fomentar o senso crítico e a autonomia dos estudantes, Grigoletto (1997) defende o
trabalho com a leitura nesse espaço como forma de acesso ao exercício da subjetivação, do
olhar para a linguagem como materialidade em que se inscrevem sentidos que escapam à
tentativa de homogeneizá-los. E assim a autora finaliza o texto, exprimindo um desejo:
“gostaríamos de crer que a nossa reflexão, como professores, possa nos levar a tentativas de
deslocamentos possíveis, que tenham como objetivo uma atuação mais significativa do aluno
na construção das leituras feitas em aula” (GRIGOLETTO, 1997, p. 95).
Saindo do domínio da leitura e adentrando na discussão sobre ensino da produção de
textos, consideremos, agora, o trabalho de José Luiz Meurer, então professor da Universidade
Federal de Santa Catarina (USFC). O artigo de Meurer (1993) apresenta traços característicos
de textos de diluição, tendo em vista que se apropria de fundamentos de Halliday (1978) e de
Kress (1989), sobretudo no que diz respeito às concepções de linguagem, de texto e de
discurso. Todavia, não se limita a uma aplicação direta desses fundamentos; a partir deles, o
autor propõe um “modelo para a produção de textos escritos dentro de uma perspectiva
psicossociolinguística” (MEURER, 1993, p. 37).
Para Meurer (1993), o processo de produção de textos envolve tanto habilidades
linguísticas como o conhecimento pragmático das formas de interação por meio da
linguagem, além de uma competência de natureza cognitiva. Dessa forma, entende que

ao construir um texto, o escritor faz uso de diferentes tipos de conhecimento e (...)


constrói textos para interagir com outros indivíduos dentro de determinados
contextos sociais. Além disso, ao interagir com outros indivíduos, o escritor faz
também uso de conhecimentos sobre mecanismos de interação. Assim sendo, a
escrita se constitui num fenômeno psicossociolinguístico (MEURER, 1993, p. 37-
38).

Ao tratar da produção de textos como prática psicossociolinguística, Meurer (1993)


busca em Kress (1989) fundamentação para pensar no discurso e no texto, dois fenômenos de
linguagem cuja constituição se dá, para o autor, de modo imbricado. Por esse viés, entende o
discurso como “o conjunto de afirmações que, articuladas através da linguagem, expressam os
valores e significados de um grupo social” (MEURER, 1993, p. 38); e o texto, por seu turno,
como a materialização linguística em que se inscreve o discurso. Em outras palavras, pode-se,
a partir daí, pressupor que “o texto é uma entidade física, a produção linguística de um ou
225

mais indivíduos; [já] o discurso é o conjunto de princípios, valores e significados „por trás‟ do
texto” (MEURER, 1993, p. 38-39).
A proposta de Meurer (1993) para o trabalho com produção de textos escritos na
escola está atrelada a um modelo que visa contemplar essa atividade em diferentes etapas, as
quais se articulam entre si. Em primeiro lugar, todo processo de escrita parte de uma
motivação específica, isto é, está atrelada a uma realidade ou a um fato “exterior ou interior
ao próprio indivíduo, real ou imaginário, sobre o qual alguém quer ou precisa se expressar”
(MEURER, 1993, p. 40). A relação entre o produtor de um texto e a realidade a ele exterior se
estabelece por intermédio de processos sociocognitivos cuja tarefa é selecionar e organizar, na
estrutura mental do autor, formas discursivas de compreender o mundo. Finalmente, dá-se,
então, a produção do texto: “aqui ele [o autor] tenta concretizar sua mentalização através da
representação linguística” (MEURER, 1993, p. 42). Naturalmente, embora conceda bastante
atenção aos processos cognitivos dos indivíduos que se põem a escrever, ao assumir uma
concepção de linguagem como prática de interação, Meurer (1993) não desconsidera o
atravessamento social da linguagem, dos sujeitos e, por conseguinte, dos textos, posição que
se ratifica quando o autor afirma que o ato de produção de textos envolve a “história
discursiva particular de cada escritor” (MEURER, 1993, p. 41).
Passemos agora à análise de fontes em que ideias linguísticas acerca da língua falada
são debatidas.
Na segunda metade da década, mais especificamente em 1997, no volume 30 da TLA,
foram publicados importantes trabalhos em que se discutiu o funcionamento da oralidade
como modalidade de uso da língua e seu lugar no ensino de português. Vale salientar que, a
essa altura, já fora publicada a primeira versão dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
documento norteador em que se enfatiza a necessidade do trabalho com o texto falado a partir
do qual é possível discutir, na escola, o funcionamento da fala e sua importância para o
cumprimento de certas demandas interacionais do cotidiano. Para além de políticas
linguísticas oficiais, a discussão sobre a oralidade e sua relação com o ensino é, nesse
período, regular e amplamente empreendida em diferentes espaços, institucionalizados ou
não, como se pode depreender pelas palavras de Marcuschi (1997): “o certo é que hoje se
torna cada vez mais aceita a ideia de que a preocupação com a oralidade deve ser também
partilhada pelos responsáveis pelo ensino de língua” (p. 40, grifos meus).
Luiz Antônio Marcuschi, Ingedore Koch e Maria da Graça Costa Val encabeçaram a
discussão sobre a oralidade nessa década da TLA. Enquanto Marcuschi (1997) investiga como
226

se apresentam a concepção e a análise da oralidade em livros didáticos de português, tanto


Koch (1997) como Costa Val (1997), por sua vez, propõem uma reflexão sobre a relação entre
oralidade e aquisição da escrita. Nas três fontes, principalmente em Marcuschi (1997) e em
Koch (1997) – ambos textos de ação –, encontra-se uma profunda reflexão sobre as
características da fala, seu modo de organização discursiva e interacional; além disso, os três
autores destacam em que medida falar se diferencia de escrever, sem, entretanto, cair numa
visão estanque e dicotomizada: “fala e escrita apresentam tipos de complexidade diferentes”
(KOCH, 1997, p. 32). A esse respeito, complementa Koch (1997):

Fala e escrita são duas modalidades de uso da língua, possuindo cada uma delas
características próprias; isto é, a escrita não constitui mera transcrição da fala.
Embora se utilizem, evidentemente, do mesmo sistema linguístico, elas possuem
características próprias (KOCH, 1997, p. 31).

Embora seja a fala uma “uma atividade muito mais central do que a escrita no dia a
dia da maioria das pessoas” (MARCUSCHI, 1997, p. 39), a instituição escolar tem concedido
a essa modalidade espaço restrito, o que se explica pela “crença generalizada de que a escola é
o lugar do aprendizado da escrita. Uma crença tão fortemente arraigada que já se transformou
numa espécie de consenso” (MARCUSCHI, 1997, p. 39). Além disso, não raro acreditava-se,
a partir de uma analogia desproporcional com o ensino da escrita em nível de alfabetização,
que não cabia à escola o estudo de aspectos da oralidade, tendo em vista que os estudantes já
“dominavam a fala”, devendo a escola, portanto, ensinar aquilo que o aluno ainda não sabia
ou sabia parcialmente: escrever. Naturalmente, quando se advoga pela importância da
oralidade em sala de aula, “não se trata de ensinar a falar”; trata-se, entre outras questões, de
sugerir um ensino que, pelo estudo da fala, proporcione ao aluno a capacidade de “identificar
a imensa riqueza e variedade de usos da língua” (MARCUSCHI, 1997, p. 41). Nessa esteira, é
papel da educação linguística mostrar que

a língua falada é variada e que a noção de um dialeto padrão uniforme (não apenas
no Português, mas em qualquer língua) é uma noção teórica e não tem um
equivalente empírico. Assim, entre muitas outras coisas, a abordagem da fala
permite entrar em questões geralmente evitadas no estudo da língua, tais como as de
variação e mudança, dois pontos de extrema relevância raramente vistos. Noções
como: "norma", "padrão", "dialeto", "variante", "sotaque", "registro", "estilo”,
”gíria” podem tornar-se centrais no ensino de língua e ajudar a formar a consciência
de que a língua não é homogênea nem monolítica (MARCUSCHI, 1997, p. 41).

Além de sua relevância para a compreensão da pluralidade constitutiva da língua, “o


estudo da oralidade pode mostrar que a fala mantém com a escrita relações mútuas e
diferenciadas, influenciando uma à outra nas diversas fases da aquisição da escrita”
227

(MARCUSCHI, 1997, p. 42), abordagem a que, com mais atenção, se dedicam Koch (1997) e
Costa Val (1997). Para Koch (1997), o estudante em processo de aquisição da escrita leva à
escola uma concepção oral de texto a partir da qual busca apreender as regularidades da
escrita. Essa concepção prévia com que os alunos chegam à escola “é responsável, sem
dúvida, pelo fato de seus textos escritos apresentarem uma série de características típicas do
texto falado, que perduram neles, às vezes, por vários anos” (KOCH, 1997, p. 31). Na mesma
direção, reforça Costa Val (1997): “na construção e no desenvolvimento da capacidade de
redigir, o aprendiz interage com o novo objeto de conhecimento, o texto escrito, a partir do
conhecimento que ele já tem quanto à estruturação do texto oral” (COSTA VAL, 1997, p. 69).
Por esse motivo, devido à relação intrínseca entre elementos fonético-fonológicos e o
processo de aquisição da escrita, “o conhecimento da língua falada, já dominado pelas
crianças, deveria ser tomado como ponto de partida, na escola, para o ensino do texto escrito”
(COSTA VAL, 1997, p. 83).
No que diz respeito à discussão sobre as características próprias da oralidade,
Marcuschi (1997), Koch (1997) e Costa Val (1997) levantam pontos centrais que
desmitificam algumas noções equivocadas sobre traços do texto falado, frequentemente
tomado injustamente como lugar da irregularidade e do caos linguístico. Devido à sua
organização interacional, marcada, principalmente, pela troca face a face, em tempo real, e
pela necessidade imediata de se dizer algo, o texto falado está sempre em construção e
reconstrução. Nesse sentido, como destaca Costa Val (1997, p. 70), “a situação e a cognição
são praticamente simultâneas à verbalização, o que explica os falsos começos, as hesitações,
as pausas, as autocorreções, que caracterizam o texto oral”.
Segundo Marcuschi (1997), o desconhecimento das condições em que o texto falado
se organiza, bem como das demandas de comunicação a que ele serve, tende a fomentar a
ideia de que a fala é uma reprodução rudimentar da escrita, modalidade à qual ela se
subordina, em posição marginal. Disso resulta um posicionamento que divide “a produção
linguística entre, de um lado, o padrão (equivalente à escrita) e, de outro, o não padrão
(equivalente à fala), o que pode trazer um duplo inconveniente: visão monolítica e
uniformizada, a par da desvalorização da língua falada”. (MARCUSCHI, 1997, p. 46). Para
Koch (1997), que partilha do mesmo ponto de vista, a visão limitada sobre o texto falado
advém de um julgamento imediatista que toma como parâmetro
o ideal da escrita (isto é, costuma-se olhar a língua falada através das lentes de uma
gramática projetada para a escrita), o que levou a uma visão preconceituosa da fala
(descontínua, pouco organizada, rudimentar, sem qualquer planejamento), que
228

chegou a ser comparada à linguagem rústica das sociedades primitivas ou à das


crianças em fase de aquisição de linguagem (KOCH, 1997, p. 32).

Objetivamente, Koch (1997) destaca algumas das características do texto falado,


diferenciando-o do texto escrito, no que tange, principalmente, à sua organização estrutural e
pragmática e aos seus propósitos comunicativos. O conhecimento desses traços típicos da
modalidade falada da língua possibilita a desconstrução do imaginário do texto falado como
um evento comunicativo desestruturado e caótico. Segundo a autora, esse tipo de texto,
diferentemente do escrito:

1. é relativamente não planejável de antemão, o que decorre de sua natureza


altamente interacional; isto é, ela necessita ser localmente planejada, ou seja,
planejada e replanejada a cada novo “lance” do jogo da linguagem;
2. apresenta-se “em se fazendo”, isto é, em sua própria gênese, tendendo, pois, a
“pôr a nu” o próprio processo da sua construção. Em outras palavras, ao contrário do
que acontece com o texto escrito, em cuja elaboração o produtor tem maior tempo de
planejamento, podendo fazer rascunhos, proceder a revisões e correções, modificar o
plano previamente traçado, no texto falado planejamento e verbalização ocorrem
simultaneamente, porque ele emerge no próprio momento da interação: ele é o seu
próprio rascunho;
(...)
4. apresenta uma sintaxe característica, sem, contudo, deixar de ter como pano de
fundo a sintaxe geral da língua (KOCH, 1997, p. 33).

Diante dessas considerações, percebe-se que o texto falado tem “uma estruturação que
lhe é própria, ditada pelas circunstâncias sócio-cognitivas de sua produção” (KOCH, 1997, p.
33). É nessa direção, defendem Marcuschi (1997), Koch (1997) e Costa Val (1997), que a
escola deve trabalhar com a oralidade em sala de aula, isto é, considerando o texto falado
enquanto evento interacional que segue regularidades próprias e que, assim estruturado,
cumpre demandas comunicativas específicas. O trabalho com as duas modalidades de uso da
língua, falada e escrita, sem dicotomizá-las ou hierarquizá-las, garante ao estudante o
domínio de múltiplas formas de interagir socialmente. E é esse, justamente, o objetivo da
escola, como salienta Marcuschi (1997): “ensinar os alunos a perceberem a riqueza que
envolve o uso efetivo da língua como um patrimônio maior do qual não podemos abrir mão.
Pois, se há um estudo que vale a pena no ensino básico é o estudo da língua e suas
possibilidades” (p. 75).
O modo como as três fontes que tratam da oralidade aqui analisadas interagem entre
si, implícita ou explicitamente, indicia uma das características do cluster (Murray, 1994), isto
é, do amadurecimento de um grupo em torno do qual se discutem certas pautas recorrentes no
debate acadêmico. A propagação da reflexão sobre a oralidade iniciou-se na segunda metade
229

da década anterior, mais especificamente a partir de 1986, quando Luiz Antônio Marcuschi
divulgara resultados de pesquisas sobre fenômenos do texto falado e da conversação (cf.
MARCUSCHI, 1986). Uma década depois, como se pode notar, a discussão sobre oralidade
ganhou força, seja pela publicação de textos de ação, pela diluição em documentos
curriculares norteadores ou pelo engajamento de outras lideranças que, de modo colaborativo,
contribuíram com a difusão da reflexão sobre o texto falado enquanto objeto teórico e
ensinável.

5.3.5 Atando os nós: à guisa de sistematização

A história da TSD na pesquisa linguística brasileira na década de 1990 traduz um


momento de amadurecimento dos grupos de especialidade que se propuseram a discutir
questões atreladas aos fundamentos que erigem essa tradição. Com amadurecimento, aqui,
me refiro à coesão interna desses grupos, ao reconhecimento mútuo de que constituem uma
coletividade, ao engajamento de lideranças e à consolidação de uma agenda voltada à reflexão
da linguagem como um fenômeno social e discursivo em sentido amplo. Refiro-me, enfim, ao
cluster desses grupos.
A análise aqui desenvolvida nos permite constatar:

a. uma intensificação do intercâmbio explícito estabelecido entre os agentes que


desenvolveram pesquisas em torno dos objetos constitutivos da TSD, seja no domínio
teórico, seja na reflexão sobre ensino de língua portuguesa;
b. uma menor incidência de retóricas de ruptura (se comparamos com a década de 1980), o
que se explica pelo fato de concepções sociodiscursivas constituírem, nesta etapa da TSD,
ideias linguísticas consolidadas, ao menos no circuito de discussões acadêmicas;
c. a publicação de textos de ação relevantes assinados por lideranças intelectuais e
organizacionais com alto potencial de elite e expressiva idade profissional, como Roberto
Gomes Camacho, Luiz Antônio Marcuschi, Ingedore Koch, Ataliba de Castilho e Maria
Helena de Moura Neves;
d. a difusão de trabalhos que investigam a gramática e seu ensino numa perspectiva
funcionalista;
e. a divulgação sistemática de pesquisas acerca da organização linguístico-pragmática do
texto falado e seu lugar no ensino de língua portuguesa;
230

f. a publicação em massa de trabalhos em diferentes perspectivas da análise do discurso,


assinados por agentes com diferentes níveis de idade profissional;
g. uma frequente discussão sobre o ensino da leitura e da escrita como práticas discursivas.
231

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendi com esta tese apresentar uma narrativa historiográfica sobre a tradição
sociodiscursiva na pesquisa linguística brasileira desenvolvida entre 1970 e 1999. Para tanto,
busquei na Historiografia da Linguística ferramentas para compreender como essa tradição
emergiu, se desenvolveu e, finalmente, se consolidou no Brasil, bem como para entender seus
efeitos, ao longo do tempo, na reflexão sobre ensino de língua portuguesa.
A narrativa historiográfica concluída trouxe como resultado a compreensão do modo
como os objetos constitutivos da TSD se tornaram pauta na pesquisa linguística brasileira a
partir do trabalho empreendido, ao longo do tempo, por agentes vinculados a diferentes
centros de pesquisa e ensino, os quais impulsionaram o debate em torno dos fundamentos
sociodiscursivos da linguagem. Ratifica-se, portanto, que a consolidação de uma tradição
traduz um intenso trabalho coletivo desenvolvido no curso da história.
Convém salientar que não busquei apresentar uma interpretação unívoca, transparente
e inquestionável acerca das etapas de formação da TSD no Brasil. Isto é, a narrativa aqui
desenvolvida consiste em uma versão, entre outras, da história desse movimento intelectual
protagonizado pela Linguística brasileira ao longo de trinta anos. O produto de minhas
análises, portanto, estabelece um olhar historiográfico específico resultante de recorte
necessário e de outras escolhas metodológicas particulares. As fontes selecionadas,
evidentemente, não englobam toda a vastidão do que se pode chamar de pesquisa linguística
brasileira. Assim, esta versão interpretativa não abarca (e nem teria como abarcar) a
totalidade de movimentos e de ações executados por diversos outros agentes espalhados pelo
país, os quais discutiram sobre o texto, o discurso, a variação, as funções e usos da linguagem
e suas implicações para o ensino de língua portuguesa. Outras narrativas, resultantes de outros
recortes metodológicos, podem dar conta de descortinar esses fragmentos que não foram aqui
contemplados.
Dito isso, passo agora ao levantamento de algumas considerações gerais sobre os
resultados obtidos no capítulo 5 e, em seguida, a sugestões de trabalhos futuros que de algum
modo podem dar continuidade às discussões aqui empreendidas.
Antes de quaisquer considerações, retomo a máxima central da Historiografia da
Linguística: o conhecimento sobre a linguagem surge sempre emparelhado a condições
externas à sua concepção. Algumas mudanças na estrutura social do Brasil impulsionaram o
surgimento de certos problemas e questionamentos de pesquisa contemplados pela TSD, bem
232

como influenciaram no modo como agentes em torno dessa tradição se articularam para
solucioná-los. Como pudemos perceber, não por acaso há relação direta entre o grande
quantitativo de pesquisas em abordagens comunicacionais desenvolvidas na década de 1970 e
o contexto da era da comunicação que caracterizou esse período; ou, ainda, entre o grande
boom de discussões sobre a sociolinguística educacional e a mudança de perfil do aluno
resultante do processo de urbanização por que passou o Brasil até a década de 1980. Além
disso, movimentos internos à Linguística brasileira refletiram diretamente no modo como se
desenrolou a história da TSD. A esse respeito, observamos, por exemplo, que a chegada e a
difusão de teorias sociodiscursivas no Brasil coincidem com a “profissionalização” de
linguistas brasileiros que trazem da Europa novas concepções sobre a linguagem.
Percebemos, também, que o desenvolvimento e a consolidação das pautas que orbitam em
torno da TSD se tornaram realidade devido, em grande medida, ao amadurecimento de certos
grupos de especialidade cujos agentes (pesquisadores formados ou em formação), em
intercâmbio direto, através de textos de ação e de diluição, permitiram que a concepção social
e discursiva de linguagem angariasse o status de ideia linguística consensual.
No domínio da reflexão sobre o ensino de língua portuguesa, pode-se dizer que a TSD
estabeleceu, ao longo do período investigado, uma história caracterizada por deslocamentos.
Em outras palavras, o processo de solidificação da TSD na tradição de pesquisas brasileira
trouxe, a reboque, novos conceitos, métodos e categorias à discussão sobre ensino de língua,
partindo-se do pressuposto de que é papel da escola criar condições para que o aluno
compreenda a linguagem em suas diferentes dimensões, o que engloba, necessariamente, a
dimensão sociodiscursiva. Desse modo, resumidamente, figuram nessa história de
deslocamentos:

a. o texto como centro do processo de ensino e aprendizagem, sendo ele, falado ou escrito,
produto das interações entre interlocutores e materialidade de processos discursivos que
nele se inscrevem;
b. o ensino dos conhecimentos gramaticais que leva em conta a heterogeneidade e a
variabilidade dos sistemas linguísticos, o que implica a consideração da natureza mutável
de toda língua natural;
c. o ensino da leitura e da produção de textos tomadas como práticas interacionais e
colaborativas que envolvem a mobilização de processos textuais, sociopragmáticos e
cognitivos operados por um indivíduos que, lendo ou escrevendo, negociam sentidos;
233

d. o ensino da leitura e da produção de textos tomadas como gestos da ordem do discurso, o


que implica pensar tanto no sujeito-leitor como no sujeito-autor como posições
discursivas, constituídas ideologicamente, que (re)constroem sentidos, subjetivando-se na
e pela linguagem como materialidade dialógica e interdiscursiva;
e. a valorização do texto falado como objeto de ensino nas aulas de português.

Saliento que uma história de deslocamentos não se confunde com uma história de
rupturas. Ainda que a TSD tenha permitido a emergência de novas formas de se conceber o
ensino de português, não se pode afirmar categoricamente que essa tradição rompeu com a
tradição formalista, tendo em vista que, até os dias de hoje, ensino de língua muitas vezes se
confunde com ensino de gramática (tradicional). A concepção homogênea e beletrista
subjacente à gramática tradicional ainda ressoa em diferentes espaços, constituindo parcela
significativa do imaginário linguístico brasileiro, motivo pelo qual, no meu entender, a
história da TSD costura uma história de deslocamentos, não de ruptura.
Vale reforçar, ainda, que essa história de deslocamentos não se encerra em 1999,
marco final aqui estabelecido. A história da TSD, domínio agora consolidado na pesquisa
linguística brasileira, cruza a virada do século XX para o XXI, ressoando até o presente.
Nessa virada de século, com mudanças no clima de opinião, novos problemas e novas pautas
de investigação passam a circular com maior intensidade na agenda de pesquisas da TSD.
Com o progresso da tecnologia e a emergência de novas formas de interação, chegam à
discussão sobre a educação linguística questões como as dos multiletramentos, dos gêneros
digitais e suas formas de organização no hipertexto, das discursividades no espaço virtual,
entre outras questões atreladas ao contexto sociocultural que caracteriza a identidade do
sujeito do século XXI. O exemplo serve para ratificar que a história de deslocamentos da
TSD, em suas diversas dimensões, comporta muitos capítulos que aguardam por acolhimento
historiográfico.
Diante disso, para concluir, gostaria de apontar algumas possibilidades de trabalhos
historiográficos cujo empreendimento pode contribuir significativamente para a compreensão
da complexa e tentacular história de deslocamentos da TSD em seus diferentes corolários.
Assim, narrativas do futuro podem se dedicar, entre outros enfoques, a investigar:

a. os efeitos da TSD na produção de materiais didáticos, como livros destinados ao ensino


básico, apostilas e manuais;
234

b. o atravessamento de fundamentos da TSD na organização de currículos e suas


consequências para o ensino de línguas em diferentes níveis educacionais;
c. a recepção, em décadas passadas, de ideias linguísticas subjacentes à TSD em revistas,
jornais e outros meios midiáticos;
d. o tratamento de objetos constitutivos da TSD – texto, discurso, variação – em exames de
avaliação em larga escala aplicados no passado.

Ainda que não esgotem as possibilidades de trabalhos em torno da história de


deslocamentos da TSD no Brasil, espero que as sugestões acima arroladas possam de alguma
forma despertar em linguistas e educadores o interesse pelo trabalho historiográfico,
empreendimento de vital importância ainda pouco explorado na pesquisa brasileira. E desejo,
também, que o trabalho que agora concluo tenha contribuído para a compreensão desse
importante fragmento da história da Linguística brasileira.
235

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