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resenha
processos de civilização no diálogo
entre sociologia e psicanálise
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refere ao “eu” e ao “supereu” como instân- dade, o que teria levado à construção de
cias psíquicas de autorregulação (“O con- mitos, inclusive o mito freudiano das ori-
ceito freudiano de sociedade e para-além”). gens, fundado na ideia de uma violência
Por outro lado, o autor também critica sem limites do pai originário para com
Freud, principalmente, conforme destaca seus filhos como instigadora da funda-
Bernard Lahire em seu posfácio, pela noção ção da cultura e sociedade. Elias critica a
de inconsciente como entidade a-histórica questão das origens como uma falsa ques-
e por conceber o homem como um sistema tão; procura-se o início lá onde tudo leva
fechado ou um Homo clausus. a crer em um processo sem começo: as so-
No principal ensaio da obra, “O conceito ciedades humanas provavelmente apenas
freudiano de sociedade e para-além”, Elias evoluíram a partir das sociedades animais.
afirma que Freud oferece um dos modelos Seu viés sociológico inovador pode ser
mais realistas para explicar como os seres percebido na ideia de que os processos de
humanos, de seres totalmente sem limites, civilização ou descivilização só se tornam
tornam-se capazes de autocoação. Entre- visíveis se se comparam as sociedades umas
tanto, para o autor, apesar de conceber o às outras em diferentes estágios de seu de-
eu e o supereu como as funções autorregu- senvolvimento e diferentes gerações no de-
ladoras da psique, desenvolvidas no qua- senvolvimento de uma mesma sociedade.
dro das relações sociais da pessoa, Freud Segundo Elias, à época de Freud, esse tipo de
as conceberia como entidades estáticas, processo não intencional de longa duração
não afetadas pelas modificações no curso talvez ultrapassasse o poder de imaginação
do desenvolvimento da sociedade humana. das pessoas. A formação de uma consciência
A perspectiva freudiana estaria centrada individual autopunitiva (por atos e também
no indivíduo enquanto mundo fechado e, por pensamentos), que Freud teoriza, seria,
como consequência, a sociedade seria uma para Elias, o sintoma de uma modificação na
soma de indivíduos isolados. Freud teria relação de forças entre a regulação por ou-
concebido um modelo eminentemente so- trem e a autorregulação, em benefício desta
ciológico do indivíduo (este como comple- última. Modificação situada no curso de um
xo multipolar) e um modelo eminentemen- longo processo histórico.
te individualista da sociedade (como quan- A aprendizagem progressiva da auto-
do articula o conceito de pai originário que, coação é tida como necessária para que os
sob os traços de uma pessoa individual, indivíduos vivam uns com os outros. Para
personifica o grupo social inteiro). Elias, as mudanças na estrutura psíquica
Para Freud, a regulação das pulsões se- estão inextricavelmente referidas às mo-
ria um sintoma da submissão do indiví- dificações relativas ao hábito social, como
duo à sociedade, nunca uma condição da no caso da evolução da posição social das
autonomia relativa deste em suas relações mulheres jovens não casadas de classes
consigo mesmo e com os outros. Assim, médias urbanas em certas sociedades eu-
Elias considera unilateral a perspectiva ropeias mais desenvolvidas, no curso do
freudiana das formações sociais por ação século XX: de uma estrita vigilância pa-
da libido (Eros). A teoria social de Freud rental e de uma situação de forte repressão
seria o produto de uma época obstinada social de sua autonomia e de seus desejos,
em descobrir a origem da vida em socie- elas passaram a uma situação em que as