Vous êtes sur la page 1sur 18

LIVIO SANSONE

Desigualdades
duráveis,
relações raciais
e modernidades
no Recôncavo:
o caso de
São Francisco
do Conde
LIVIO SANSONE
é coordenador
do Programa de Pós-
Graduação em Estudos
Étnicos e Africanos e
do Programa Fábrica
de Idéias do Centro de
Estudos Afro-Orientais
da UFBA.
É determinante buscar desvendar o
funcionamento daquela que pode-
mos chamar de “cultura das desigualdades”, sem
a qual desigualdades extremas não poderiam
funcionar de forma durável: a forma pela qual
as diferentes camadas sociais olham uma para
outra, comentam e justificam ou aceitam, de
alguma forma, as diferenças socioculturais e as
desigualdades. Igualmente importante é entender
como essa cultura muda – se muda – devido a, ou
em relação com, o contexto das oportunidades e
da economia, e como essa cultura é transportada
de uma geração para a próxima. Uma pesquisa
que tenta entender como se cria e mantém no
tempo o habitus da distância social necessita de
1 A pesquisa recebeu apoio do
uma perspectiva longitudinal. Conselho Nacional de Pesqui-
sa, na forma de uma bolsa de
produtividade, uma bolsa de
Neste trabalho pretendo contextualizar uma apoio técnico e dinheiro para
custeio. A Fundação de Amparo
pesquisa, já em andamento desde meados de à Pesquisa do Estado da Bahia
(Fapesb) disponibilizou duas
2003, que, a partir de outubro de 2005, entra bolsas de Iniciação Científica.

numa nova fase 1. A pesquisa deverá contribuir


para a compreensão da forma pela qual a mo-
bilidade social e as desigualdades, sobretudo
aquelas que podemos definir como extremas e
duráveis, estão sendo percebidas em gerações
diferentes, de pais e de filhos (estes, na faixa
etária de 15 a 30 anos). Seu foco analítico prin-
cipal reside no estudo da mudança geracional: a
transferência de desigualdades de uma geração
para outra e os efeitos da ascensão social entre
alguns e da miragem da mesma entre os demais,
assim como o processo pelo qual esse conjunto
cria os limites dentro dos quais são construídas
noções de cidadania, expectativas com relação
ao mundo do trabalho e novas identidades so-
ciais e raciais. Neste último caso, trata-se de
entender como, quando e por que as pessoas
começam a se dizer negros.
236 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006
Escolhemos uma região que apresenta econômico, pouco aumento da população
aspectos específicos embora esteja histo- se comparado com outras cidades do Re-
ricamente associada à trajetória de duas côncavo, mais perto de Salvador e mais
importantes mercadorias globais – o açú- beneficiada pelas contratações em resulta-
car, desde 1550, e o petróleo, desde 1950. do das instalações da Petrobras, como era
O foco são duas gerações: aquela, em sua o caso de parte do município limítrofe ao
maioria empregada no mundo do açúcar, município de Candeias – assim como de
que foi atingida direta ou indiretamente pela uma parte “avançada” – notadamente a
chegada na região da companhia petrolífera grande vila operária e os poços petrolíferos
de estado (antigamente Companhia Nacio- em torno da Usina Dão João.
nal do Petróleo e agora Petrobras), já no A questão mais geral levantada pela
começo dos anos de 1950, hoje constando pesquisa é como a transição do açúcar
de aposentados (e pensionistas); e os filhos para o petróleo, como fonte principal de
deles, hoje entre 15 e 35 anos de idade. Com riqueza direta ou indireta, afeta as expec-
isso, será possível reconstruir, na base de tativas, narrativas e práticas em torno das
relatos e documentos, cerca de 50 anos de desigualdades, assim como do processo de
história dessas famílias. redefinição identitária, da relação das jovens
Este proposto segue as pegadas do gran- gerações com o trabalho, o lazer, o consumo
de projeto de pesquisa da Unesco que, em e a sexualidade. Pretendemos pesquisar a
colaboração com a Columbia University percepção das desigualdades, extremas e du-
e a então nascente Universidade Federal ráveis, resultado dessa importante transição
da Bahia, a partir dos primeiros anos 50, econômica e de novas demandas de cida-
escolheu na Bahia cinco contextos sociais dania, estimuladas pela combinação entre
para estudo das relações raciais e, mais aumento da escolaridade, se comparado com
em geral, da mudança social: as “elites de a geração anterior, complemento da fase
cor” na cidade de Salvador e mais quatro da democratização, crescente exposição
comunidades no interior do estado da Bahia, à globalização (das idéias, expectativas,
naqueles anos então ainda definidas como mercadorias e mercados) e mudanças nas
rurais. Eram comunidades que represen- relações de classe, de raça e de gênero.
tariam as diferentes regiões geográficas e Postulamos que o mundo do açúcar criou
sociais da Bahia assim como graus dife- estruturas sociais extremamente desiguais,
rentes de “desenvolvimento” ou “atraso”. mas também modernas, que se mostraram
Tratava-se, de fato, de pesquisar como e bastante capazes de continuar funcionado
até que ponto a Bahia – ou as regiões desse mesmo quando o açúcar deixou de ser
estado mais bem conectadas com sua capital, central na economia local.
Salvador – estava mudando (Wagley, 1963; Num âmbito mais geral, a presente
Hutchinson, 1957; Brandão, 1998). pesquisa visa a medir como mudaram as
Assim, com o propósito de reavaliar relações sociais, sobretudo as relações
esse grande projeto da Unesco, a pesqui- raciais, em SFC nas últimas décadas. É
sa aqui apresentada foi desenvolvida no preciso entender como se articulam novos
município de São Francisco do Conde discursos e práticas em torno do ser negro
(SFC), a 70 km de rodovia de Salvador. e do ser branco, e como mudam os ícones
Ela pretende medir o impacto da transição desse processo, colocando as relações
de uma economia simbolizada pelo açú- raciais e o processo identitário entre os
car para outra simbolizada pelo petróleo negros num conjunto mais amplo, cujos
– ambos produtos característicos de eco- fatores principais são: a crise de trabalho;
nomias e rede “globais”. Trata-se de uma mudanças radicais nas relações de gênero
das comunidades pesquisadas pelo projeto – menor número de filhos, famílias meno-
e que, naqueles anos, foi escolhida por res, popularização do amor romântico; a
constar de um núcleo “atrasado” – por estar invenção do ser jovem; o aprofundamento
numa situação de pouquíssimo crescimento da globalização das expectativas de con-

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006 237


sumo. Até há uma década a relação com a da Região Metropolitana de Salvador. O
economia global era pelas redes do açúcar Recôncavo teve e ainda tem, ademais, um
e do petróleo, hoje essa conexão se dá, so- papel central na construção das expressões
bremaneira, pelo consumo. Logo, interessa afro-baianas na cidade de Salvador: atuan-
examinar como, dentro desse contexto de do como um tipo de retaguarda cultural,
grandes novidades em termos de trabalho o lugar de onde provêm as tradições do
e exposição a fluxos de culturas e merca- samba-de-roda, a culinária afro-baiana e
dorias que “vêm de fora”, mudam práticas boa parte do artesanato comumente tido
e discursos em torno do consumo, da festa como (afro-)baiano.
(São João, carnaval, samba de roda, reg- Um motivo adicional de interesse por
gae e, de alguma forma, candomblé) e do essa região se deve à sua especificidade para
2 A presente pesquisa já realizou
um conjunto de atividades, corpo (cuidado do corpo, noções de beleza, uma pesquisa centrada nas desigualdades. O
subdividido em duas seções: sexualidade). município onde se realiza a pesquisa goza
1) pesquisa documental nos
arquivos da prefeitura e da Interessa analisar ainda como diferentes de um alto índice de repasse do ICMS (im-
Igreja Católica, assim como
nos arquivos estaduais e na
grupos da população estão reagindo fren- posto), derivado da refinação do petróleo.
mídia impressa de SFC e/ou de te à crescente exposição a mercadorias, Esse repasse o torna o segundo ou terceiro
outros municípios da região (por
exemplo, Santo Amaro). Foram valores e idéias “que vêm de fora”, algo município do estado em renda per capita.
procuradas matérias de jornais possibilitado pelo fato de a cidade estar se Essa riqueza relativa, porém, anda pari
e revistas, bem como material
iconográfico, diários, poesia e inserindo em redes mais amplas; é preciso passu com um dos mais altos índices de
literatura popular. Além disso,
efetuou-se um levantamento entender como essa crescente abundância desigualdades da Bahia e com um baixo
de todo material estatístico, de referências contribui para a rearticulação Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
de 1940 até hoje, que pode
ser encontrado junto ao IBGE de identidades e sentidos coletivos em torno Se o IDH municipal cresceu de 0,622 em
e ao Estado; 2) observação
participante e entrevistas em
de noções como comunidade, cor ou “raça”, 1990 para 0,714 em 2000, o IDH da renda
profundidade com todos os gênero e sexualidade (a cesta dos parceiros, no município, que era 0,544 em 1990, cres-
integrantes de algumas famílias
escolhidas para representar as o homem ideal, etc.), o sentir-se jovem, a ceu somente até 0,589 em 2000 (fonte: lista
diferentes camadas sociais e posição social (entendida como uma com- do IDH municipal, www.ibge.gov.br). Em
grupos de renda da cidade.
Nos concentramos em algu- binação de renda e lugar no mercado de 2000 o IDH de longevidade continua baixo
mas famílias de (ex-)donos de
usinas, nos funcionários ativos trabalho). É nesse contexto, feito de redes em SFC: 0,689. Somente o IDH com relação
e aposentados da Petrobras e fontes mais complexas, assim como de à educação aumentou muito, no município,
e nas pensionistas da mesma
empresa, e nos ex-funcionários horizontes geograficamente mais amplos, de 1990 a 2000: de 0,728 a 0,863. Podemos
da Usina Dão João. Tentou-
se também identificar quais
que podemos chamar de habitus, que os dizer que SFC se caracteriza no Nordeste
indivíduos e famílias foram moradores tentam rearticular e reorganizar por mostrar uma renda relativamente alta,
entrevistados na região no âm-
bito do projeto Columbia/UFBA suas estratégias de sobrevivência2. uma longevidade baixa (em virtude da pobre
sob os auspícios da Unesco nos saúde da população) e um nível educacional
anos de 1951-53, fazendo-se
o possível para reconstruir a relativamente alto e crescente (devido aos
memória em torno da pesquisa
do jovem Hutchinson. Dessa esforços por parte do governo federal, mas
forma, a pesquisa tem, até o
presente momento, mapeado a
NO CORAÇÃO DO MUNDO DO sobretudo estadual, de aumentar o número
situação e identificado, na base de matrículas no ensino básico – isso, em
de observação participante,
encontros com diversos grupos
AÇÚCAR si, obviamente não significa um aumento
culturais, pesquisa documental e da qualidade e da quantidade da formação
60 entrevistas em profundidade
coletadas nos últimos 12 meses, O município de São Francisco do Conde educacional em geral).
os grupos e as mais candentes
e seu imediato redor (partes dos municípios SFC, nos anos 50, era uma cidade
questões sociais no município.
Importantíssimo para nossa de Santo Amaro e de Candeias) formam completamente centrada na economia
pesquisa foi a vontade dos
(ex-)operários da Petrobras parte do Recôncavo Baiano, uma região que açucareira, altamente segmentada entre
de serem entrevistados, assim teve um papel central em toda a história da grupos populacionais associados a classes
como, no contexto do mundo do
açúcar, caracterizado por muito escravidão e do açúcar, que hoje podemos sociais que eram também grupos de status
mais silêncios, analfabetismo
e “perdas” de memória, ter chamar de rurban, por ter sempre tido uma e quase estamentos. A elite local era restrita
encontrado milhares de fichas relação muito intensa em termos de capitais e quase que inteiramente branca. Como em
sindicais, jamais sistematiza-
das, e o livro com pagamentos e força de trabalho com a cidade de Salva- outras áreas da Bahia (Harris, 1966), exis-
e contratações da Usina Dão
dor e por estar se constituindo em um novo tia uma forte correlação entre cor, tipo de
João, que abarca o período
de 1930 a 1969. cinturão, densamente povoado, em torno trabalho, lugar de moradia e tipo de arranjo

238 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006


familiar. Mesmo entre os negros havia uma tipos de tratos, inspirados por relações con-
segmentação interna bastante acentuada, tratuais e introduzindo direitos trabalhistas
baseada no tipo de trabalho (carregar lenha, para uma parcela importante da população
por exemplo, era uma das atividades com que, até então, tinha ficado à mercê da elite
menor prestígio) e na rua de residência. A açucareira – ainda que o “ser petroleiro”
cor formava grupos definidos em termos de tenha se configurado muito mais como um
“raça social” – como dizia Charles Wagley, mito do que como realidade para a grande
era a posição social, definida em termos de maioria dos empregáveis, que acabaram se
posse de capital econômico, social e cul- encontrando desamparados (desemprega-
tural, que, em associação com o fenótipo, dos pelo mundo do açúcar e abandonados
definia a “cor” da pessoa – e os grupos de ou simplesmente esquecidos pelo mundo
cor se constituíam em “raças sociais”. Os do petróleo). Mesmo que empregando, de
espaços de lazer refletiam devidamente forma direta, relativamente poucos homens,
essa rígida segmentação da população. O o açúcar, afinal, empregava, direta ou in-
carnaval ainda nada mais era que uma festa, diretamente, muitas mulheres (a Petrobras
em clubes fechados, da elite, que, por meio contrata, por definição, somente homens).
disso, criava um elo social e simbólico com a A migração para Salvador ou cidades do
vida cultural soteropolitana. A festa do povo Sudeste dos integrantes das famílias da elite
era celebrada durante e graças a festividades foi aumentando conjuntamente com o surgi-
em torno do São João e do Natal. Salvador, mento de uma nova elite política local, cujo
embora relativamente próxima em termos crescimento está associado à expansão da
geográficos, era distante, sendo o transporte máquina burocrática municipal. Já a partir
sobretudo por barco. Do ponto de vista eco- dos anos de 1980 a prefeitura se torna a mais
nômico, a não ser pelas trocas econômicas e importante empregadora – as atividades li-
financeiras em torno da indústria açucareira, gadas à extração do petróleo têm significado
SFC vivia uma vida bastante independente a mais importante arrecadação para os caixas
– a população se nutrindo de comida produ- do município. Enquanto aumenta, e se man-
zida localmente ou nos arredores. Querendo tém constantemente alta, a renda originada
uma definição de fácil efeito, podemos dizer das atividades petrolíferas, diminui aquela
que SFC, naqueles anos, era um sociedade oriunda de outras atividades produtivas.
sobretudo local, com elos com os mundos Como em outras regiões do Brasil, como o
de fora, mantidos somente por uma pequena norte do estado do Rio de Janeiro, a extração
parcela da população, a elite, que, segundo do petróleo significa a chegada de técnicos
Hutchinson, nada mais significava do que de fora, maior circulação de dinheiro, mu-
um ou dois por cento do total da população, dança nos padrões locais de consumo e no
que tinha ramificações sociais e familiares mercado habitacional, disponibilidade de
que chegavam até Salvador. Era sobretudo o fundos para a prefeitura – que, geralmente,
açúcar que permitia e possibilitava a criação o poder local usa para se manter no lugar.
de redes translocais a partir de SFC. O sucesso de um prefeito depende da sua
Cinqüenta anos depois, nos deparamos capacidade de gerenciar e tornar visíveis
com uma SFC radicalmente mudada. Se- esses fundos, realizando obras de impacto,
gundo os dados do Censo, SFC tinha cerca distribuindo cestas básicas, contratando
de 11.000 habitantes em 1950 e 26.250 em centenas de pessoas sem concurso, enfim,
2000. Desses, os brancos eram cerca de 9% distribuindo renda entre os que o elegeram,
em 1950 e 8% em 2000. assim como se mostrando implacável entre
A instalação de diferentes atividades os desafetos – a cada troca de prefeito há
ligadas à Petrobras (sobretudo, poços e refi- centenas de demissões entre os beneficia-
narias), a partir dos anos logo após o estudo dos pelos cargos de confiança na prefeitura
de comunidade realizado por Hutchinson, anterior (em sua maioria, varredores de rua,
tem forçado uma profunda transformação jardineiros, ajudantes de serviços gerais e,
do tipo de relação laboral, impondo novos sobretudo, os mais jovens, entre os quais

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006 239


há maior escolarização, animadores no os trabalhadores que nunca receberam,
crescente número de atividades culturais ou bem como os aposentados e pensionistas
assistentes numa das inchadas secretarias da Petrobras (sobretudo aqueles que en-
da própria prefeitura). traram em serviço na década de 50 e 60, e
A melhora da rede rodoviária torna aqueles que trabalharam no açúcar antes de
SFC muito mais próxima de Salvador. se mudar para o petróleo); e os membros
Mercadorias, assim como idéias e modas ativos de grupos culturais (os dois terreiros
da grande cidade, formam muito mais que de candomblé mais “tradicionais”, ambos
antes parte dos horizontes simbólicos e de com alvará da nação angola, os grupos
consumo dos moradores de SFC. Idéias, musicais e teatrais).
mercadorias e pessoas são mais móveis As entrevistas foram realizadas no terri-
que antigamente. SFC parece ter passado tório do município de SFC. Algumas foram
da condição de comunidade segmentada no município limítrofe de Santo Amaro da
por status, mas coesa socialmente, relati- Purificação. A maioria dos ex-trabalhadores
vamente local, para aquela de comunidade da Usina foi entrevistada nas casas do antigo
em rede, relativamente global. núcleo habitacional, na frente da Usina, ou
O cultivo do açúcar na região é tão antigo na “aldeia”, um conjunto de casas edificado
como a fundação da vila, e determina, durante pela prefeitura nos anos 70, para abrigar
mais de 400 anos, absolutamente todo o uso parte dos ex-moradores da vila ao redor
do espaço cultivável assim como as relações da usina, quando o novo dono insistiu em
de trabalho, profundamente marcadas pela desalojá-los. As entrevistas com funcioná-
escravidão, a monocultura, a polaridade rios e pensionistas da Petrobras tiveram,
inconciliável entre interesses do latifúndio em sua grande maioria, lugar nos distritos
e do minifúndio, e a dependência dos preços denominados de Vila (o centro urbano mais
do açúcar, que sempre foram muito ligados importante, onde fica a prefeitura) e de
ao mercado internacional. Como ensina Monte Recôncavo (o segundo maior centro
Sidney Mintz (1985), o açúcar representou, urbano do município).
durante séculos, o principal produto da eco-
nomia global, lugar tomado justamente pelo
petróleo, no começo do século XX.
A exploração petrolífera, por definição, CONTRAPONTO E TRANSIÇÃO
começa com um grande impacto sobre o
meio ambiente, os usos e costumes “locais”, Sabemos que o açúcar foi a primeira
os padrões de consumo e até as relações de mercadoria autenticamente global até o
gêneros. Esse impacto tende a diminuir com advento do petróleo (Mintz, 1985). Sabemos
o tempo, tanto porque o meio “local” passa também que, após o açúcar, já a partir do
a se acostumar, pelo menos em parte, quanto começo do século XX, a segunda mercado-
porque, pela própria dinâmica da exploração ria, ou commodity, com um mercado global
do solo e do extrativismo, um poço produz foi o petróleo (Bayat, 1999). Ainda hoje a
muito no começo para depois render menos, riqueza de um país e seu grau de autonomia
até ser selado para futuros usos. no cenário internacional provêm, em boa
parte, do quantum de cereais e de petróleo
Seguem alguns achados dos primeiros que ele consegue produzir em relação ao
24 meses de pesquisa. seu consumo interno. Por isso o governo
A pesquisa tem enfocado três grupos de Lula está lutando contra o tempo para
informantes: os ex-trabalhadores da grande anunciar o fato histórico de que o Brasil,
Usina Dão João – que chegou a empregar nesta década, será de fato auto-suficiente
1.100 pessoas e que faliu barulhentamente em termos de hidrocarburetos. Tanto o
em 1969, devendo a trabalhadores e grandes açúcar como o petróleo são mercadorias,
credores, mas finalmente solvendo estes digamos assim, cheias de cultura e de poder
últimos por meio da venda do maquinário; (Apter, 2004).

240 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006


O Recôncavo Baiano é uma região com a dinâmica cidade de Candeias e até
que se interligou com o mundo durante com Santo Amaro. Realmente, percebe-se
quatro séculos graças à rede produzida pouco comércio e pouca iniciativa privada
pelo mundo do açúcar. A partir dos anos – até os restaurantes, as duas pousadas e
de 1950 a extração e refinação do petróleo a maioria dos grupos culturais dependem
foi a modalidade econômica que interligou financeiramente da prefeitura. Afinal,
a região com o resto do Brasil e com outros o único mercado e o único cinema do
países (dos quais vêm navios, tecnologia município se encontravam no complexo
e, às vezes, os próprios técnicos). Ora, os da Usina Dão João. Tradicionalmente as
dois produtos apresentam redes, hierar- pessoas sempre fizeram compras em Santo
quias, culturas e processos produtores de Amaro e, nos últimos anos, em Candeias,
memória muito diferentes. o entreposto para Salvador. Outra carac-
Por exemplo, o açúcar tinha um tipo de terística, enraizada na relação entre os
ligação com o solo diferente do petróleo. donos dos engenhos e, mais tarde, usinas
O cultivo da cana requisitava um cuidado e o município, é o absenteísmo das elites
extremo com a qualidade da terra, che- – segundo os dados do IBGE nem mesmo
gando até ao culto do massapé – o tipo de os fisioterapeutas e odontotécnicos residem
terreno ideal para o cultivo, cuja qualidade no município, mas em Salvador – junto com
determinava o preço de uma plantação. O a relativa ausência, entre os moradores do
petróleo, por sua vez, está ligado ao extra- município, de um grupo com renda inter-
tivismo e seus rasgos culturais. O apego é mediária. Segundo todos os informantes,
ao “mineral”, como falava o aposentado da a maioria ligada a atividades empresariais,
Petrobras Antonio, e não ao chão. Nisso, a relativa riqueza de SFC repousaria em
misturado à história da criação um tanto cima do confortável colchão formado pela
quanto autoritária da Petrobras, dirigida boa arrecadação de ICMS da qual goza a
pelo general Geisel nos anos da sua for- prefeitura.
mação, está a origem de um certo tipo de Não é de estranhar que as pessoas de
relação, digamos assim, presentista com idade e os jovens tenham lembranças bem
o meio ambiente – as instalações ligadas diferentes. Quase todos os mais velhos, até
ao petróleo (torres, tanques, cais, etc.) não mesmo os que trabalharam na Petrobras
somente podiam ser vistas, mas deviam após terem trabalhado em usina ou com a
estar à vista de todos. A Petrobras, afinal, cana, têm saudade de uma parte do pas-
mudava e modernizava a Bahia e, por meio sado agrícola – do “respeito”, do namoro
dela, o Brasil. à antiga, da harmonia entre vizinhos e na
O cultivo e a refinação do açúcar comunidade, da “falta de violência”, da
foram os empreendimentos econômicos tranqüilidade e da falta de desemprego
que absolutamente hegemonizaram a (todo mundo trabalhava, até mesmo as
economia durante quatro séculos. Esse crianças!) que o mundo do açúcar propi-
cultivo chegou a ocupar 90% da terra do ciava. Em geral os jovens sabem pouco
município e somente entrou em crise nos do passado, e não têm interesse por ele. A
anos de 1950, mas continua na região e história da região, dizem em sua maioria, é
mais fortemente em municípios limítrofes, algo que se aprende na escola, muito mais
onde a Petrobras recrutou menor número do que em casa, e que pertence ao reino
de pessoas. Quatro séculos dominados das coisas que interessam aos velhos ou
pelo açúcar nos instigam a procurar tanto que se é obrigado a aprender na escola.
rupturas como continuidades no uso do Não é, portanto, algo que os excita e os
território e nas formas sociais. Possíveis deixa curiosos. Os jovens têm, por assim
continuidades podem ser encontradas dizer, saudade do futuro e fome de tudo
numa certa manifesta passividade empre- aquilo que identificam com ser ou parecer
sarial que, até mesmo segundo a cultura “moderno”. Mais do que resgatar um pas-
popular, caracterizaria SFC, se comparada sado que eles identificam como algo que

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006 241


preocupa à velha geração, eles se importam
bastante com aquele que será o seu lugar
MEMÓRIA
no futuro próximo. Embora para os pais,
sobretudo aqueles que vivenciaram uma Embora não estivesse nos planos ini-
forte ascensão social graças à Petrobras, os ciais, a pesquisa se deparou com rico ma-
jovens hoje não tenham futuro ou tenham terial, problemas e autênticos enigmas em
um futuro pouco promissor, só porque a torno da questão da memória do açúcar e do
Petrobras não contrata mais pessoas pouco petróleo. Aqui pretendo apenas mencionar
escolarizadas, para os jovens o futuro não alguns problemas.
amedronta, atrai. As estatísticas, como, por exemplo, cen-
Mesmo identificando uma mudança gera- so agrícola e PNAD, não estão detalhadas
cional, é preciso matizar. Assim, existem dois em nível de município; não existe qualquer
tipos de jovens: os da cidade e os do campo arquivo digno desse nome no município,
(principalmente os dos povoados crescidos com a exceção do arquivo do Convento,
ao redor das antigas plantações). Entre esses que, porém, não é de grande relevância
a reprodução da vida dos pais é recorrente, para esta pesquisa. O Museu da Cidade foi
como a entrada no mercado de trabalho com fechado há anos (ao que parece o material
7 a 9 anos de idade. Por exemplo, na Fazenda se encontra na sede do IBGE em Salvador),
Macaco, dois jovens irmãos começaram a até mesmo o Arquivo Municipal está ina-
vender frutas, deslocando-se todos os dias cessível porque, como diz o responsável,
para Salvador, sendo que um deles tinha “está cheio de cobras e ratos”3.
apenas 7 anos de idade. Atualmente com 24 e Não há coleção de fotografias ou ico-
26 anos, desenvolvem trabalhos nas fazendas nografia. As secretarias da prefeitura foto-
vizinhas, cortando cana, consertando cercas grafam e filmam as obras que inauguram,
e “destocando” o pasto. Moram em casas mas esse material se perde quando, a cada
cedidas (localizadas dentro da proprieda- eleição, outro governo assume a prefeitura.
de das fazendas) e sonham com um “bom Tal governo, na fúria de mostrar que começa
emprego” (“que pague 300 reais mais ou da estaca zero, nega todo o material cole-
menos”) de segurança da escola. Deixaram tado até então. As fotografias estão sendo
precocemente a escola, pois não conciliavam reunidas por nós. Nesse sentido está sendo
com o trabalho. Para esses jovens, futuro é produzido um CD-Rom com centenas de
uma palavra incerta. fotos coletadas em bares, no sótão da pre-
Já os jovens da cidade geralmente feitura, em residências particulares e no
moram em casas próprias ou alugadas e terreiro de candomblé da Mãe Aurinha.
permanecem mais tempo na escola, o que Um terceiro e irrecuperável obstáculo é
possibilita a troca de experiências com que nestes últimos dois anos têm morrido
outros jovens e professores e permite ter muitos dos protagonistas da vida cultural dos
3 Vale a pena salientar que a uma expectativa de trabalho diferenciada anos 50. Em 2003 morreram o pesquisador
contabilidade da prefeitura de seus pais e avós, mesmo com a escas- Bill Hutchinson e o sr. Durval, animador do
de SFC, notoriamente pouco
escrupulosa, foi sorteada para sez de postos de trabalho na cidade. Vale a carnaval de SFC e líder de um importante trio
ser investigada pela Receita
Federal, duas vezes nos últimos pena notar que os dois jovens da Fazenda carnavalesco; em 2004 morreu o sr. Aurinho,
três anos; até mesmo o cargo de Macaco eram conhecidos como “regueiros”, esposo de dona Aurinha, animador do mais
prefeito tem sido sujeito a pesa-
das críticas nas últimas quatro apaixonados por música reggae, que tocam importante candomblé da sede, e, finalmente,
legislaturas – desde quando o
cargo de prefeito começou a
a todo volume na casinha onde moram, na em 2005, morreu dona Carlita, a mãe-de-san-
se tornar exclusividade da elite qual o único eletrodoméstico é o aparelho to do outro importante terreiro de candomblé,
mulato-negra local, substituindo
o tradicional representante das de som. Em termos de estilos musicais e enraizado na comunidade de São Bento, tida
famílias dos usineiros, a partir roupa, jovens com perspectivas de futuro como a mais pobre (e negra) do município.
do começo dos anos de 1970.
O atual prefeito, que goza do diferentes são surpreendentemente pare- Com a exceção de dona Carlita, desses outros
apoio do partido de direita
PFL e do atual governador do cidos e bem informados, mesmo aqueles personagens-chave somente logramos seguir
Estado, já foi afastado pelos que não têm condições de participar como os rastros deixados na memória dos vizinhos
tribunais regionais duas vezes
no último ano. consumidores na cultura juvenil. e em escassos documentos.

242 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006


Sabe-se, como ensinam Le Goff e mostra Miguel Vale de Almeida (1999) na
Halbwachs, que a memória tem a ver com sua excelente e pormenorizada etnografia do
poder e, nesse sentido, o açúcar perde caso de Ilhéus, no sul da Bahia, até mesmo a
enquanto o petróleo ganha. Açúcar e pe- memória dos assim definidos grupos culturais
tróleo formam o mais recente contraponto não chega a 30 anos – embora eles façam do
na economia baiana, que já conheceu os enraizamento na tradição sua razão de ser, so-
do açúcar e do tabaco e do açúcar e da bretudo no caso das duas casas de candomblé
mandioca. Trata-se de um contraponto que que pesquisamos, ambas da nação angola.
penetra até na estrutura e na narrativa da Além da escassez de materiais que
lembrança. Sendo que no açúcar se perce- lembrem de açúcar, há outro problema em
be quanto o (quase) analfabetismo afeta a relação à qualidade daquilo que se lembra.
memória, assim como a falta de imagens Na região da pesquisa têm sido criadas fortes
do passado – certificados, quadros e fotos. condições para que a cultura operária que
O antropólogo Jack Goody explica como a se formou nos canaviais e na usina seja es-
escrita muda a arte de contar e a mnemônica; quecida, mantendo-se apenas as lembranças
o antropólogo e historiador Ernst Gellner adoçadas da relação senhores/trabalhadores.
informa como a escrita e os letrados (cultos Na família Tourinho, uma das famílias se-
e populares) são essenciais na construção nhorais da região, isso se deve ao trabalho de
da noção de patrimônio assim como em seu resgate do passado desenvolvido pelos filhos
aproveitamento no desenvolvimento de um do antigo dono da Usina Dão João, entre
processo identitário ou nacionalista. Pelo os quais um conhecido senador, certamente
contrário, na Petrobras temos o resgate de inspirado pela saga açucareira do escritor
antigas fotos e relatos pessoais realizados autobiográfico pernambucano José Lins do
pelo Projeto Memória (financiado pela Rego, que produziu o comentário literário
empresa), por um sindicato ativo, pelas ao trabalho de Gilberto Freyre, celebrando
celebrações de momentos importantes da a relativa harmonia de sua infância, como
vida dos funcionários na empresa, pelos filho de um dono de usina.
clubes recreativos (onde funcionários de Já o historiador S. Schwarz4 queixou-se
diferentes escalões podem se encontrar, da pouca documentação que ficou sobre os
corroborando a idéia de que a empresa engenhos e que estes quase sempre foram
valoriza o trabalhador manual) e pela as- relatados a partir da varanda da casa-grande
sistência médica e social – todos deixando – a morada dos senhores, onde se hospeda-
documentos, atestados, e fotos. vam viajantes e ensaístas que nos deixaram
Se excluirmos os funcionários da Petro- escritos. O mesmo pode ser dito a respeito
bras e seus dependentes e as lideranças das da pesquisa de Bill Hutchinson, que, como
duas maiores casa de candomblé, somente conta dona Isabel, empregada da família
outro grupo bem menor parece ter um projeto Tourinho, chegou a morar na residência
organizado ao redor da memória. Esse grupo deles nos cottages da usina. Até então Bill
é formado por alguns representantes da pe- é sempre lembrado em associação com a
quena elite açucareira local, hoje produtores família Tourinho-Aires Junqueira: por dona
de cana para a grande usina no município Isabel, pela senhora que cuida da igreja da
de Amélia Rodrigues, sendo que os descen- Conceição, por Nequinha Amaral e pelos
dentes da grande elite já não moram mais na próprios integrantes da família Tourinho.
região. Seja por motivos de negócios seja por Claro, Bill casou com Carmelita Tourinho-
operar dentro da cultura cartorial (sobretudo Aires Junqueira, filha do dono da usina e
em torno da propriedade da terra), esse grupo estudante de antropologia no recém-estabe-
guarda documentos e saudosas lembranças lecido curso de antropologia na Universida-
de um passado pré-Petrobras. de Federal da Bahia. Antes de se casar com
4 Autor do magistral Segredos
De resto, as lembranças das pessoas Bill, Carmelita foi sua assistente. Internos, até hoje o livro que
são pouco profundas: a memória deve ser Esse olhar de Bill desde a varanda in- mais minuciosamente descreve
o mundo do açúcar durante a
exercitada para funcionar bem. Como nos fluenciou a linguagem do etnógrafo – na sua escravidão no Nordeste.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006 243


volta ao campo, em 1953, ele já sinalizava trabalhadores da terra nessa região nas últi-
as atividades de “agitadores comunistas” mas três décadas foi o relativamente recém-
na plantação, descritos como elementos formado MST. Há (pobres) acampamentos
estranhos à cultura do açúcar – e pôde do movimento na estrada que liga SFC a
contribuir para amenizar a descrição das Santo Amaro, nas terras que já pertenciam à
condições de vida na usina e na plantação: Usina Santa Elisa. Nas conversas na “aldeia”,
ele fala que o tabaco permitia acumular cash onde moram os velhos que trabalharam na
que depois era gasto com os extras, mas usina e seus descendentes, o MST representa
os ex-funcionários fichados não lembram uma alternativa de vida, com um estilo de
disso e acrescentam que eles nem tinham vida próprio, enfim, a possibilidade de mudar
direito de ter uma bananeira, a planta mais um contexto em que a quase todos a posse
simples. Fica a dúvida se essas brechas, da terra sempre foi negada. O MST é, por
esses espaços para ganhos extras, eram assim dizer, uma válvula de escape para
possíveis antes da chegada do empresário e aqueles aos quais a terra sempre foi nega-
investidor de origem suíça (membro da fa- da. O messianismo desse movimento deve
mília Wildberger, hoje dona de prédios e de ter atingido os ex-operários da usina! Mas
um celebrado salão de festas em Salvador), isso ainda não se constitui numa memória,
que tinha se enriquecido na região baiana digamos assim, solidificada, como no caso
do cacau e resolveu investir no açúcar, com do Projeto Memória para a celebração dos
o objetivo de “modernizá-lo”. Com efeito, 50 anos da Petrobras.
nossos informantes somente lembram da
usina pós-suíço, mais dura, impessoal e
“racional” com todos.
Na usina não havia um moderno sindicato FOTOGRAFIA
dos trabalhadores, embora o jornal semanal
O Momento, do partido comunista, relate Passamos por uma grande mudança
inúmeras tentativas de fundá-lo e de algumas geracional no que diz respeito à fotogra-
malogradas greves na região, que acabaram fia. Antigamente somente os ricos tinham
com centenas de operários presos na cadeia de “retratos”. Para os funcionários da usina a
Santo Amaro e, como nos contam os velhos única foto era aquela da carteira de trabalho,
informantes, com alguns líderes da greve e se tratava quase sempre de homens. Por
sendo espancados e até mortos. Agia na usina isso eles ficaram chocados quando a usina,
o Sindicato doAçúcar, estrutura corporativista logo depois de falida, jogou uma caixa de
do mundo do açúcar, ao que parece sempre documentação na maré. As pessoas che-
mais próximo dos donos que dos operários. gavam a ver a própria fotografia flutuando
Dessa forma, não descobrimos nenhum ar- no manguezal.
quivo do movimento sindical no mundo do Antigamente ninguém tirava retratos
açúcar baiano. Como nos diz o ex-prefeito de num matrimônio, mas este durava muito.
SFC, atual cultivador de cana, e já gerente da Hoje qualquer casamento, até de pessoas de
Usina Dão João: “Na época não precisava de baixa renda, é amplamente fotografado e até
sindicato, tudo se resolvia comigo mesmo, filmado, mas a união é de curta duração. Tais
na conversa. Fazia isso tão bem que todos fotos “valem”, para nossa memória, bem
os operários da Usina com cédula de eleitor menos que as poucas fotos do passado.
votaram em mim. Foi graças a eles que me Em torno das fotos que deveriam ter sido
elegi”. Nisso, esse primeiro prefeito mulato guardadas pela Secretaria de Cultura e Tu-
teve que enfrentar o seu poderoso ex-padrinho, rismo se deu uma verdadeira novela. Fomos
o (branco) dr. Vicente Porciúncula, autêntico avisados por uma informante que no Bar do
senhor de cerca da metade das terras do mu- Rocha havia um monte de fotos, às vezes
nicípio e de muito canavial. exibidas em painéis. Fomos ver e realmente
Aliás, se não o primeiro, certamente o achamos, muito mal acondicionadas, cerca de
mais importante movimento organizado de 250 fotos que testemunham obras e manifes-

244 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006


tações culturais das prefeituras anteriores. As terreiro de candomblé que se localizava
fotos foram encontradas no lixo, não sabemos no interior da Fazenda D. João, sendo um
se jogadas fora pela atual administração ou lugar comum das festas, para os moradores
por aquela que estava saindo da prefeitura. do local. A vida cultural se construía em
Assim que foram encontradas, as fotos foram torno das casas de santo: grupos de sam-
aproveitadas para animar o Bar do Rocha. ba, reisados e carurus. Festas que, muitas
Elas eram mostradas aos fregueses que, vezes, “uniam”, no mesmo espaço físico,
reconhecendo um parente ou a si mesmos, patrões e empregados e saciavam a fome
podiam comprá-las. A mais requisitada era dos funcionários.
a foto de um jogador do Vitória, nascido em Atualmente, na cidade, muitos grupos
SFC, pela qual foram oferecidos 50 reais, culturais estão intimamente ligados aos
mas Rocha não quis vender. dois terreiros mais importantes e são esses
grupos que representam a cultura local em
Salvador e até na França. Eles são a marca
da cidade, ou melhor, a tradição da cidade.
ELITES Essa “tradição” está sendo revisitada, como
o Lindro Amor, uma forma muito original
Quase todas as famílias que antigamente de celebrar Deus com cantos e danças de
tinham prestígio, os donos de usinas e ca- origem portuguesa e africana, e que, após
naviais, que já faziam o belo e mau tempo 40 anos de “esquecimento”, foi resgatado,
em SFC, se retiraram para Salvador ou São agora, como conjunto folclórico. À frente
Paulo. Aquelas que ficaram modificaram-se desse movimento de resgate e reinvenção
bastante – morenizando-se e até enegrecen- está uma casa de santo, com o objetivo de
do-se (por efeito de casamentos com pessoas dar continuidade às manifestações cultu-
negras, sobretudo empregados da Petrobras), rais locais e, talvez, manter-se como elo
como no caso da família Bulcão, da qual o entre essas tradições. As duas mães-de-
atual prefeito (negro) faz parte, ou se manti- santo representam a geração que assistiu
veram brancas por meio de casamentos com às mudanças e participaram delas, e as
parceiros brancos de Salvador, mas tiveram mães-pequenas, suas filhas de sangue, re-
que desenvolver estratégias para ser aceitos presentam a geração escolarizada, em que
e respeitados numa cidade onde os brancos as mulheres têm empregos fixos e dividem
são oficialmente 8% (estimativa, a meu ver, com o companheiro a posição de “chefe de
exagerada) e até o poder político, há pelo família”. O grupo Lindro Amor é dirigido
menos três legislaturas, não está mais nas por uma mãe-pequena, a filha-de-santo e
mãos dos brancos. Assim a família Peralva, sangue de uma importante mãe-de-santo
ainda dona de muitíssima terra até mesmo do local, que concluiu o curso superior em
dentro da vila de SFC, continuou sendo Salvador. Cerca de uns dez anos atrás essa
aceita, embora completamente branca, por- mãe-pequena começa a utilizar na região os
que investiu na política local quando todas termos “cultura negra” e “cultura popular”,
as outras famílias de usineiros já tinham se às vezes como equivalentes, para validar
mudado para outra cidade. e diferenciar o seu grupo de vários outros
grupos locais. Esses termos aparecem nos
pedidos de apoio e patrocínio que o grupo
encaminha à prefeitura e a diferentes órgãos
CULTURA POPULAR, CULTURA do governo do Estado que apóiam a cultura
popular. O prestígio e o acesso a outras esfe-
NEGRA E CULTURA AFRO-BAIANA ras, como viajar pelo Brasil e até o exterior
para apresentar a cultura negra e local, só
As narrativas em torno do lazer e re- podem ser aceitos a partir do momento que
ligiosidade dos informantes mais velhos esses grupos se assumem como verdadeiros
remetem a grupos culturais ligados ao descendentes do legado cultural negro do

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006 245


Recôncavo Baiano. Como afirmou uma fi- contratando artistas e trios elétricos da
lha-de-santo que participa do grupo Lindro capital, seja, nos últimos anos, promoven-
Amor, “[…] pediram lá uma negra do beiço do o Carnaval Cultural – um processo de
alto, que ela é bem negra… Alta e que os valorização dos grupos locais. Começa a se
franceses pediram uma dessa lá, levaram desenvolver, no discurso do poder público,
as roupas pra vestir lá. Pra apresentar lá, a noção da “cultura” como patrimônio a
levou um mês […]”. preservar. Nisso se vê a influência forte
A terminologia da cor, a forma pela qual do discurso hegemônico no poder político
os informantes se autodefinem e definem baiano: a Bahia como modelo de economia
os outros, foi um dos alvos da pesquisa. centrada espetacularmente no turismo e no
Nas entrevistas e nas conversas captadas consumo conspícuo. Marcando uma fase
durante a observação participante, a cor, não nova para a cultura de SFC, a prefeitura
obstante a insistência dos pesquisadores, mandou produzir e distribuir centenas de
se apresenta quase como tema exógeno: camisetas com a inscrição “São Francisco
não surge espontaneamente, nem mesmo do Conde capital cultural”.
quando se fala de cultura. Isso leva a re- Se falar de cultura negra é algo pouco
fletir sobre o que podem ser as relações problemático, dizer-se negro já corresponde
raciais e a cultura negra numa região onde a uma postura política frente ao racismo,
os brancos são minoria. Há, nas opiniões mesmo que discreta. Ser negro aparece
das pessoas, uma quase equivalência entre muito mais nas narrativas dos operários
cultura popular e o ser negro – ser pessoa sindicalizados na Petrobras do que entre os
de cor é o normal – tão normal que nem ex-trabalhadores da usina, mesmo se leva-
precisa nomeá-la como tal. É o ser branco mos em conta os que desenvolvem tarefas
que se constitui uma pequena exceção. Ora, mais especializadas. Dizer-se negro aparece
cultura popular e cultura negra não são per- ainda mais entre os filhos desses antigos
cebidas como equivalentes – mesmo que as funcionários da Petrobras. É como se fosse
expressões definidas como pertencentes à necessário ter, primeiro, uma geração de
cultura popular sejam praticadas (quase que pais maciçamente atingidos pela “moderni-
exclusivamente) por pretos e pardos, elas dade” – no sentido de relações de trabalhos
não são vistas por quem as pratica como regidas por regras contratuais, mais do que
eminentemente negras. O termo “cultura por acordos fundados em status diferentes
negra” tende a ser usado, sobretudo, pelos de padrões e trabalhadores – para que se
animadores culturais da prefeitura, que pudesse efetivar a transição do dizer-se
provêm de Salvador e que fazem da assim preto (um dos cinco termos relacionados à
dita cultura afro-baiana um modelo a ser cor do censo brasileiro, desde 1872) para
seguido – no entendimento de que aquele o ser negro (um termo que, no Brasil, mais
modelo também pode ser aproveitado para do que uma cor, sugere o pertencimento,
aumentar o “potencial turístico” do municí- político e assertivo, a um grupo racializado
pio. A relação Salvador-Recôncavo, no que e agora em curso de emancipação).
diz respeito à criação de uma cultura negra,
precisa ser problematizada em detalhe.
Até então, pode se dizer que, por cultura HOMBRIDADE
afro-baiana entende-se na realidade cultura
afro-soteropolitana. Se a cor não surge quase nunca espon-
Na última década, muito inspirados na taneamente, o tema da hombridade, muitas
mensagem do órgão estadual de promoção vezes associado ao tema do respeito e da
do turismo, Bahiatursa, a prefeitura de SFC honra, aparece como central nas falas e
tem investido, mais ainda do que qualquer memórias.
outra na região, em festa. O São João virou Os discursos e lembranças em torno
atração para milhares de forasteiros e no do dr. Vicente Porciúncula, branco, antigo
carnaval também se investiu muito, seja senhor das usinas e canaviais ao redor do

246 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006


povoado do Monte, parecem confirmar a assim como elevou dramaticamente o pa-
importância da hombridade. Trata-se de um drão de vida dos interessados. Com relação
jogo centrado em torno da noção de respeito ao mundo industrial-agrícola do açúcar, o
que une homens que podem se encontrar em petróleo significou uma masculinização do
posição muito diferente um do outro. Assim mercado de trabalho – na região, a Petrobras
o seu Cula, negro, responsável pela pesagem empregou somente homens. Mas a Petrobras
da cana na Usina Engenho D’Água, e o dr. tanto dá (renda, assistência médica, aposenta-
Vicente tinham uma relação respeitosa. Nas doria) como toma (nos primeiros anos, foram
memórias dessas relações o caráter belicoso muitíssimos os infortúnios mortais na região
mas honrado do dr. Vicente parece ter muito e grupos inteiros de funcionários chegaram
mais espaço que a diferença de classe. A cor, a se demitir por medo disso). Sobretudo nos
ademais, nunca é mencionada e, quando anos da construção das estradas e plataforma,
insisto nessa questão, eles respondem que o trabalho era de altíssima periculosidade.
os Porciúncula eram brancos legítimos, Encontramos muitas famílias com parentes
achando minha pergunta meio fora de lugar. ou amigos mortos no trabalho (ver o culto
Ao perguntar mais diretamente se havia ra- de Santo Antônio, venerado como protetor
cismo, as pessoas (todas) responderam que dos queimados).
não, que os funcionários eram respeitados Inúmeros são os relatos de como o alto
e que havia momentos de convívio entre salário pago a quem até então tinha traba-
os senhores e os funcionários (Natal e São lhado por um baixo salário chega a afetar
João). Os filhos dos funcionários recebiam o estilo de vida, o padrão de consumo e a
presentes de Natal da família Porciúncula. vida (extra)conjugal.
E os salários nunca eram pagos com atraso, Percebe-se uma mudança dos com-
como se houvesse um compromisso entre portamentos sexuais e até da noção de
senhores e funcionários – um compromisso parceiro (homem) ideal. Mas ainda é forte
altamente valorizado. Outros entrevistados, a dupla moral: “o que ele faz longe de
sobretudo aqueles que trabalharam no mim pouco me interessa”. Pergunto-me
campo, no cultivo da cana, têm lembranças como o modelo homem-Petrobras – com
muito menos agradáveis no que diz respeito sua esposa (a “federal”) e as outras mu-
à relação entre trabalhadores e chefia. lheres (“sucursais”) das quais também
A sensação que tivemos durante as tomava conta – pode ter contribuído para
entrevistas e as conversas informais é que a continuação da dupla moral.
mencionar a cor e uma possível tensão Claro que a memória acompanha
racial na região, sobretudo quando a con- esses processos: as mulheres lembram
versa gravitou ao redor de lembranças de da instalação da Petrobras como algo
um passado tido como harmonioso, é como que lhes permitiu se tornar dona de casa
querer estragar uma comida boa. Pior ainda e, mais tarde, pensionista que vive da
foi sugerir, como os pesquisadores tentaram aposentadoria do marido (ambas figuras
fazer durante a primeira fase do trabalho de que não existiam na usina, já que todos
campo, que os entrevistados associassem aqueles definidos como aptos ao trabalho
alguns dos tratos da vida social e cultural tinham que trabalhar o tempo todo, e
da região, da usina, do açúcar e das relações poucos funcionários gozavam de direitos
hierárquicas contemporâneas a um passado de aposentadoria), o que garantiu uma
escravocrata. A escravidão é algo que pre- vida mais longa e saudável aos filhos e
cisa ser exorcizado. permitiu um padrão de consumo novo
(os petroleiros foram os primeiros, entre
os trabalhadores, a adquirir, em SFC,
E O GÊNERO ? gêneros de consumo como TV, geladeira
e carro); as mulheres porém, também
Percebe-se que a instalação da Petrobras lembram da vida conjugal tumultuada e
afetou profundamente as relações de gênero, do marido infiel.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006 247


panhou aqueles anos, somente uma parte dos
A FAMÍLIA donos do açúcar voltou para essa produção
na região: aqueles que conseguiram se
A partir dos anos 60 as famílias de adaptar ao novo contexto e estabeleceram
petroleiros começam a mudar com relação um novo acordo com os ex-escravos, agora
aos arranjos familiares dos trabalhadores livres e assalariados.
do açúcar: a mãe deixa o trabalho nas plan- A Abolição redefine as noções em
tações de açúcar ou nas casas de família torno do trabalho físico. Ela possibilita e,
para cuidar da sua própria família. Nesse conseqüentemente, estimula a mobilidade
momento, há aumento na escolarização dos horizontal. Depois de gerações de pessoas
filhos, tendo em vista que não há mais neces- impossibilitadas de mudar de dono/patrão
sidade de trabalhar, e a figura materna passa por escolha própria, grandes números de tra-
a gerenciar a ida dos filhos à escola. Como balhadores, agora livres, nessa região, como
uma das conseqüências desse processo, os em muitas outras nas Américas, se mudam
homens se distanciam mais da estrutura para a cidade ou migram regularmente entre
familiar. O conforto que é oferecido a sua plantações e usinas limítrofes. Poder mudar
esposa e filhos faz contraponto com a au- de patrão, mesmo sem que isso levasse a
sência do homem na casa: bordéis, bares, uma melhora substantiva das condições de
amigos de “noitadas” e segundas famílias remuneração do trabalho, já era um passo
tornam-se comuns em face do aumento do adiante, uma prova de ser livre.
poder aquisitivo. É relatado que muitos ho- A outra determinante mudança, cha-
mens construíam novas famílias à proporção mada de segunda abolição por alguns
que seus salários aumentavam. Além do informantes5, acontece com a chegada da
pesar da morte, que se tornou comum no Petrobras: pela primeira vez, valoriza- se
local de trabalho, sobretudo nas perfurações, e paga-se bem o “técnico” e o trabalho
as mulheres tinham que suportar a dor da manual especializado. A empresa oferece
traição. Interessante notar que essa melhora critérios (quase) universais com relação às
na qualidade de vida dos funcionários da hierarquias e ascensão social. O mundo do
Petrobras não chegou a suportar uma ge- açúcar entra fortemente em crise em todas
ração, pois poucos filhos de petroleiros da as regiões onde se instala a Petrobras. Os
região cursaram uma faculdade. O que se funcionários, especialmente os mais qua-
vê são filhos(as) com famílias morando na lificados, das usinas e, em menor medida,
casa de seus pais, ou filhos solteiros que não das plantações são absorvidos pela Petro-
exercem nenhuma atividade remunerada por bras, ávida de mão-de-obra qualificada e,
acharem que não se adequam ao seu padrão sobretudo nos primeiro anos, também de
ou perfil (geralmente esses cursaram até o força de trabalho não-qualificada que a
segundo grau completo). empresa treina. As prefeituras deixam de
ser monopolizadas pelos donos do açúcar e
seus representantes, para tornar-se, ademais
nessa que foi declarada Área de Segurança
AS DUAS ABOLIÇÕES Nacional, cintos de transmissão da relação
entre a Petrobras e o território – donas,
A região pesquisada passou, nos últimos agora, de uma alta arrecadação vinda dos
5 Numa palestra no dia 11 de
novembro de 2005 no Centro 125 anos, por duas poderosas mudanças. impostos da indústria petrolífera repassados
de Estudos Afro-Orientais em A primeira foi, é evidente, a Abolição da ao município. Passamos do capitalismo
Salvador, o historiador José
Murilo de Carvalho apontou escravidão em 1888, que na região foi um com capitalistas do mundo do açúcar para o
que o povo brasileiro estaria
agora manifestando o desejo
momento dramático, já que os donos das capitalismo sem capitalistas da época deter-
de uma segunda abolição, plantações e usinas tentaram primeiro im- minada pela instalação e logo crescimento
resultado de novas e crescentes
demandas de cidadania. A pedi-la com todos os meios e depois manter da indústria petrolífera e, mais recentemen-
chegada da Petrobras, ao que os escravos até o último momento (Fraga te, para a riqueza sem capitalismo – agora
parece, criou condições nesse
sentido, já há três décadas. Junior, 2003). Após a forte crise que acom- que o impacto da indústria petrolífera para

248 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006


a economia local é, sobretudo, devido ao moralmente superior, mas inatendível. O
forte ICMS repassado para a prefeitura, segundo tende a ser visto como um mal
que permite aos políticos locais distribuir necessário. Quem escolhe apostar na edu-
riqueza não produzida, mas recebida. cação como vetor da ascensão social sabe
Vale a pena acrescentar que, durante que, se esta se realizar, o levará para fora de
essas duas crises e as três fases recém-men- SFC, sobretudo para Salvador. O “pistolão”
cionadas, nas narrativas dos trabalhadores requer menos investimento educacional,
a respeito das desigualdades, da riqueza e embora ajude, e ademais permite ficar na
da pobreza, a cor tende a ser esquecida ou localidade – nem todos querem sair. Trata-se
escondida e a classe, enfatizada. de recomendações para ter um dos tantos
cargos de confiança na máquina municipal,
uma vaga nas muitas empresas subsidiárias
da Petrobras (freqüentemente chamadas
CONCLUINDO de “gatas”) ou uma vaga em uma das três
fábricas de médio porte de calçados re-
Que indícios temos do funcionamento de cém-instaladas perto da sede da prefeitura
uma cultura das desigualdades extremas e graças a importantes subsídios de instalação
duráveis? Em primeiro lugar, averiguamos pagos por ela. O fato de os prefeitos serem
existir uma terminologia sobre as épocas pessoas locais, pretos e pardos de famílias
e os fatores que determinam pobreza ou conhecidas, ajuda muito a vislumbrar um
riqueza hoje, como se explica a insatisfa- tipo de forte ascensão social, a ascensão
ção para com a própria condição social, “pela política”. Nisso o pobre é aquele que
e, finalmente, como aparecem os termos não tem jeito nem vez, que fracassou tanto
“negros” e “cultura negra”. pelo viés da educação como por aquele do
Na época do açúcar, diz a maioria dos “pistolão”. Do lado oposto vem a figura do
informantes mais velhos, “não tinha pobre”, próprio prefeito, aquele com dinheiro “para
todos trabalhavam, inclusive os jovens, não fazer acontecer”, um sortudo capaz, dono
havendo inativos. Os mesmos informantes da coisa pública e que anseia por boa repu-
acrescentam, porém, que se morria e adoecia tação que o leve a ter sempre mais votos.
muito, sobretudo os meninos. Não é um capitalista. Muitos desejariam
Hoje os pobres são vistos como aqueles ser prefeito, ninguém jamais manifestou o
que ficam fora das redes de poder porque não desejo de se tornar um capitalista.
sabem ou não podem lidar com elas. Ter bons Vale a pena ressaltar que o impacto da
contatos com o prefeito, com os intermediários Petrobras na economia local é, hoje, menor
das empresas subsidiárias da Petrobras e com a que há duas décadas. Poucos dos antigos
elite local é visto como critério essencial para funcionários da Petrobras trabalham nessa
não se tornar pobre. As entradas do petróleo empresa, muitos deles são ou se sentem for-
são distribuídas de forma política pela má- mados, mas sem emprego, ou desenvolvem
quina da prefeitura, muito mais atendendo atividades econômicas bem menos remune-
a demandas de popularidade por parte dos radas que aquelas dos pais. Esperando um
políticos do que por se tratar de áreas mais emprego digno de sua formação, a maioria
necessitadas. Essas entradas permitem um prefere depender dos pais a fazer biscate
novo cachiquismo nas regiões onde elas são ou aceitar o tipo de trabalho mal pago da
expressivas, como parte da Bahia e do Rio de região, onde, por exemplo, as empregadas
Janeiro, pois pouco requerem algum tipo de domésticas ganham ainda menos do que
contrato social, já que o “ouro negro” vem em Salvador.
do chão e não precisa ser produzido por uma A pesquisa mostra, ademais, que já na
relação tradicional capital-trabalho. economia do açúcar se cria uma classe ope-
O sucesso é hoje determinado por uma rária de fato moderna, com comportamento
dupla de fatores: educação e “pistolão” que nos lembram os textos clássicos sobre a
(recomendação). O primeiro é tido como formação da classe operária, por exemplo,

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006 249


na Inglaterra: são proletários, residentes
nas imediações da usina ou da plantação,
dependem da usina e de suas plantações
para a compra de alimentos, têm horários e
ritmos de trabalho estritamente estabeleci-
dos, tentam de muitas formas ganhar mais
alguma coisa ou produzir alimentos nas
poucas horas vagas. Mas a empresa tende a
dificultar todas essas atividades por medo de
o trabalhador se tornar mais independente.
Ademais, nas usinas de açúcar do muni-
cípio se concentraram, no pós-guerra, os
altos investimentos tecnológicos da região,
chegando máquinas e caldeiras importadas,
engenheiros franceses para instalá-las e
treinar a mão-de-obra local, contraindo-se
empréstimos com bancos para investir ain-
da mais. Em outras palavras, identificar o
mundo do açúcar com o “atraso” é um falso
histórico ainda que a chegada da indústria
petrolífera tenha modificado as relações de
trabalho radicalmente, sobretudo por pagar
bem o trabalho manual pela primeira vez na
história da região, por se basear em relações
mais abstratas e centradas no trânsito com
pessoas com nível de instrução diferente,
e por prever e necessitar da alfabetização
dos trabalhadores manuais.
Tanto no mundo do açúcar como naquele
do petróleo as desigualdades são verbalizadas
em termos de classe de acordo com a tentativa
tanto de empregados como de empregadores
de omitir a questão da cor nas entrevistas e na
auto-apresentação. Essa pervasiva consciên-
cia de classe anda junto com uma igualmente
onipresente cultura da cor – falar o tempo
todo do fenótipo, opinar a respeito, porém não
necessariamente discriminando racialmente.
Nos anos 60 e mais fortemente nos anos 70,
com a sindicalização e as lutas sindicais e com
a redemocratização, muda a representação
das desigualdades. Chegam termos como
“cidadania”, “caminhada” e “emancipação’.
Acontecem, em torno do final dos anos 50,
outros fenômenos relevantes: formalizam-se
nos dogmas e se urbanizam as casas de can-
domblé, em terreiros parecidos com aqueles
de Salvador, e se instala na região a Assem-
bléia de Deus (primeira igreja protestante a
chegar). Assim, o campo religioso se torna
mais “moderno” e variado. Nas entrevistas,

250 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006


observa-se que é ao redor desse período e rumo a uma das possíveis modernidades; não
desse conjunto de mudanças que começa a é somente um processo que se alimenta, por
aparecer o termo “negro” freqüentemente assim dizer, de modernidade, mas surge de
associado com o termo “cultura”. Enfim, forma polifônica e contraditória, associado
tornar-se negro não é algo que acontece de a outras identidades e ao desejo de cidadania
forma separada de uma série de mudanças mais completo.

BIBLIOGRAFIA

BARICKMAN, P. J. A Baian Counterpoint. Sugar, Tobacco, Cassava and Slavery in the Recôncavo 1780-1860. Stanford,
CA, Stanford UP, 1998.
BRAGA, Célia Maria Leal. Relações de Trabalho no Meio Rural. Dissertação de mestrado. Salvador, UFBA, 1970.
BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia. Sociedade e Economia em Transição. Salvador, Fundação
Casa de Jorge Amado, 1998.
CÂMARA, Marcos Paraguaçu de A. Termos de Referência para Elaboração do Plano Diretor de São Francisco do Conde.
Conder, janeiro de 1978.
CASTRO, Mary. Mudança, Mobilidade e Valores – Uma Experiência no Recôncavo Baiano: São Francisco do Conde.
Dissertação de mestrado. Salvador, UFBA, novembro 1971.
CHOR MAIO, Marcos. “Projeto Unesco e Agenda das Ciências Sociais no Brasil dos Anos 40 e 50”, in Revista Brasileira
de Ciências Sociais, 141, 1999.
COSTA PINTO, Luis da. Recôncavo.
HARRIS, Marvin. Town and Country in Brazil, 1958.
HUTCHINSON, Harry William. Village and Plantation Life in Northeastern Brazil. Seattle, University of Seattle Press, 1957.
MARGOLIS, Maxine. “The Ideology of Equality on a Brazilian Sugar Plantation”, in Ethnology, 1975.
MINTZ, Sidney. Sweetness and Power. The Place of Sugar in Modern History. New York, Penguin Books, 1985.
OLIVEIRA JR., Franklin. A Usina dos Sonhos, Sindicalismo Petroleiro na Bahia: 1954-1964. Salvador, EGBA, 1996.
PEDREIRA, Pedro Tomás. Memória Histórico-Geográfica de São Francisco do Conde. Prefeitura Municipal de São
Francisco do Conde.
PIERSON, Donald. Cruz das Almas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1966.
SANSONE, Livio. Negritude sem Etnicidade. Salvador/Rio de Janeiro, Edufba/ Pallas, 1994.
––––––. “Não Trabalho, Cor e Identidade Negra: uma Comparação entre Rio e Salvador”, in Yvone Maggie &
Cláudia Rezende (orgs.). Raça como Retórica: a Construção da Diferença em Perspectiva Comparada. Rio de
Janeiro, Record, 2002.
––––––. “Jovens e Oportunidades, as Mudanças na Última Década e as Variações por Cor e Classe – Não se
Fazem mais Empregadas como Antigamente”, in Carlos Hasenbalg & Nelson do Valle Silva (orgs.). Desigualdades
Sociais: o Estado da Nação. Rio de Janeiro, Topbooks, 2003.
SANTO, José Jorge Espirito. Panorama Geográfico e Sócio-Econômico de São Francisco do Conde.
––––––. São Francisco do Conde: Resgate de uma Riqueza Cultural. São Francisco do Conde, 1998.
SCHWARZ, Stuart. Segredos Internos. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
SOUZA, Guaraci Adeodato Alves de. A População do Recôncavo Baiano. Bahia, Centro de Recursos Humanos da
Universidade Federal da Bahia, 1976.
SOUZA, Regina Celeste de Almeida. A Fragilidade da Agricultura Alimentar no Recôncavo – o Exemplo de Candeias.
Dissertação de mestrado. Salvador, UFBA, dezembro de 1971.
TOURINHO, Maria Antonieta de Campos. A Instrução Agrícola e a Crise da Economia Açucareira na Segunda Metade do
Séc. XIX. Dissertação de mestrado. Salvador, UFBA, fevereiro de 1982.
VALE DE ALMEIDA, Miguel. “Poderes, Produtos, Paixões: o Movimento Afro-Cultural numa Cidade Baiana”, in Etnográ-
fica III (1), 1999, pp. 131-56.
WAGLEY, Charles & ROXO, Cecilia. “Serendipity in Bahia”, in Universitas, no 6 e 7, Bahia, maio/dezembro, 1970.
WAGLEY, Charles. “Plantation America: a Culture Sphere”, in Vera Rubin (ed.). Amsterdam, 1960.
––––––. (ed.). Race and Class in Rural Brazil. Paris, Unesco, 1963.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006 251

Vous aimerez peut-être aussi