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2 ║ Zemaria Pinto
Manaus, 26 de fevereiro de 2016
Posse de Zemaria Pinto na Cadeira n° 59, de
Nunes Pereira
4 ║ Zemaria Pinto
As razões do título e do subtítulo
1
PEREIRA, 1980, p. 5.
Algumas sombras
2
PEREIRA, 1942b, p. 77.
6 ║ Zemaria Pinto
aludimos no título, e que não nos permitem fazer um retrato completo de
Nunes Pereira.
Sombra nº 1: por que a universidade o ignora?
Seria por ele ser um autodidata, um simples técnico em Veterinária
que se meteu a antropólogo cultural, um péssimo exemplo para as novas
gerações? Nem o reconhecimento internacional de personalidades do
porte de Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide e Alfred Métraux mitigam a
falta do diploma? Seria a nossa academia tão tacanha?
Enquanto, durante a ditadura, se distribuíam títulos de Doutor
Honoris Causa com finalidade estritamente política – não muito diferente
de hoje, aliás, Nunes preferia o que chamava de “tropismo da selva”,3 que
ele não deixou de frequentar até perto dos 90 anos.
Nos países do primeiro mundo, sábios como Nunes Pereira são cumulados
de prêmios e honrarias; universidades disputam a honra de servir-lhes de
residência. Aqui, pra começo de conversa, poucos sabem quem é este
homem que dedicou 40 anos de sua vida à pesquisa e à coleta de lendas de
nossos índios, que despertou a atenção de Lévi-Strauss. Aos 83 anos,
Nunes Pereira – antropólogo e ictiólogo, cuja obra é respeitada
mundialmente, linguista, botânico, pesquisador de religiões primitivas –
vive com a família de uma pensão do estado, de 3 mil cruzeiros mensais. 4
3
PASQUIM, n° 359, p. 11.
4
PASQUIM, n° 359, p. 8. Como o salário mínimo à época, maio de 1976, era de Cr$
768,00, o valor corresponde a 3,9 salários mínimos; hoje: R$ 3.432,00. Se tomarmos o
dólar como parâmetro, entretanto, temos o seguinte. Dólar em maio de 1976: Cr$
10,55. 3 mil cruzeiros correspondiam a 284,36 dólares; algo, como R$ 1.137,44 de hoje.
É claro que essas contas são meros exercícios, pois para chegarmos ao valor preciso
muitas outras variáveis devem ser levadas em conta. O que queremos demonstrar é
que o valor da aposentadoria de Nunes Pereira era mesmo ridículo. Fontes para os
cálculos: sites guiatrabalhista.com.br e aasp.org.br, consultados dia 09/01/2016.
5
Foram consultados os sites Estante Virtual, Livronauta e Mercado Livre, em
08/01/2016.
8 ║ Zemaria Pinto
que pautou sua vida pela aventura e pelo risco, mas também pelo humor e
pela alegria, um herói a um só tempo épico e pícaro – eventualmente,
priápico. Para fazer frente a Macunaíma só mesmo Baíra ou
Poronominare.
Manoel Nunes Pereira nasceu em São Luís do Maranhão, no dia 26
de junho de 1893, filho de Manoel Nunes Pereira e Felicidade Nunes
Pereira. Ele, de ascendência lusitana; ela, de ascendência africana.
Durante algum tempo, perdurou um mal-entendido com relação ao ano
exato de seu nascimento, desfeito em uma entrevista, quando ele disse que
teve necessidade de alterar o ano para 1891, “para entrar num curso”. 6 Na
mesma entrevista, conta que começou a se interessar pela temática
indígena quando ouviu, em uma conversa de seu pai com amigos, a
descrição de um massacre de franceses contra índios do Amapá. Tinha 3
ou 4 anos. “Os franceses pegavam as crianças pelas pernas e
esborrachavam suas cabeças contra as árvores.”7 A imagem terrível
acompanhou o menino por toda sua vida, dedicada, talvez, a entender
aquele ato primordial – covarde, selvagem e fora de qualquer padrão de
humanidade.
Sombra nº 4: do material a que tive acesso, e não foi pouco, quase
nada se diz sobre a formação de Nunes Pereira, sendo que algumas notícias
aparecem de forma desencontrada. Em entrevista à Tribuna da Imprensa,
por exemplo, ele diz que ficara até os 13 anos em São Luís, para logo em
seguida afirmar que passara a infância em Belém, onde concluíra os
6
Entretanto, para complicar um pouco, no dia 26 de junho de 1912, ele publicava um
poema com o título de “Vinte anos”, dedicado “à minha velha Mãe, e à Dona dos meus
versos”. Neste caso, aumentava a idade para parecer mais maduro? Fonte: CORREIO
DO NORTE.
7
PASQUIM, n° 359, p. 8.
8
PORTO, p. 121.
9
PEREIRA, 1989, p. 7.
10
BIBLIOTECA NACIONAL, p. 34.
11
Este fato é referido em duas entrevistas, ao Pasquim e à Tribuna da Imprensa, sendo
que naquele Nunes refere-se a Manuel Tibiriçá de Lemos. De qualquer forma, houve
uma “família Lemos”.
12
Na entrevista ao PASQUIM n° 360, p. 11, Nunes declara que o curso “não era de nível
universitário”, donde se conclui ser um curso de nível técnico.
10 ║ Zemaria Pinto
traz à Amazônia, ao município de Boa Vista do Rio Branco, hoje a capital
de Roraima, em 1918, em missão oficial.
13
Entrevista à Tribuna da Imprensa: PORTO, p. 122-123.
14
Pesquisa no site memoria.bn.br, da Biblioteca Nacional, nos dias 26 a 28 de janeiro
de 2016.
15
No Pasquim, Nunes chama Rondon de capitão, o que era uma impropriedade, visto
que Rondon era coronel desde 1912, conforme apuramos em vários estudos biográficos
daquele militar.
12 ║ Zemaria Pinto
Amazonense de Letras, instalada formalmente no dia 9 de janeiro daquele
ano – e não no dia 1º, como registra a mitologia a respeito, em sessão
solene realizada na Assembleia Legislativa do Estado, nos altos da
Biblioteca Pública, fartamente noticiada pela imprensa local. O poeta
Nunes Pereira, muito provavelmente fora da cidade, não compareceu ao
evento.16
No ano anterior, em março, dera-se a fundação do Instituto
Geográfico e Histórico do Amazonas. Roppa afirma que Nunes foi um dos
“criadores” do IGHA.17 Outros autores, sem qualquer preocupação em
comprovar o que escrevem, afirmam que Nunes Pereira foi membro, sim,
do IGHA. Posso lhes garantir, entretanto, que, infelizmente – e não
sabemos por qual razão, Nunes Pereira jamais foi associado ao Instituto
Geográfico e Histórico do Amazonas, uma lacuna que se corrige hoje,
vinculando definitivamente o nome do grande cientista à centenária Casa
de Bernardo Ramos.
Naquele mesmo ano de 1918, casou-se com Maria Rodrigues
Ribeiro, filha do coronel José Alexandre Ribeiro, de Parintins.18 Roppa
assevera que nesse meio tempo Nunes Pereira foi incumbido pelo
governador Pedro de Alcântara Bacelar de uma missão que poderia ser o
estopim do seu interesse pela causa indígena, incluindo o incidente acima
relatado:
Percorrer os campos naturais do Amazonas e do Território do Rio Branco
para fazer um extenso relatório sobre o potencial pastoril dessas regiões,
16
PINTO, 2010, p. 37-39. Nesta nova empreitada, encontrei novidades sobre a fundação
da SAHL, que deverão ensejar a escrita de um novo artigo a respeito.
17
PEREIRA, 1989, p. 9.
18
Outra sombra: nada apuramos desse casamento, a não ser que D. Maria Ribeiro
Nunes Pereira faleceu no Rio de Janeiro, em março de 1977. BIBLIOTECA NACIONAL, p.
197-198, documentos 1235 e 1242.
19
PEREIRA, 1989, p. 8.
20
PEREIRA, 1989, p. 8.
14 ║ Zemaria Pinto
sua condição de maçom.21 Do seu Arquivo nos anais da Biblioteca
Nacional consta um Passaporte emitido pela Grande Loja do Estado do
Pará, em outubro de 1954, atestando sua filiação ativa à Loja Maçônica
Renascença, de Belém.22
Nunes Pereira fundou em Manaus, em 1944, juntamente com
Geraldo Pinheiro, André Araújo e Mário Ypiranga Monteiro, entre outros,
o Instituto de Etnologia e Sociologia do Amazonas – do qual foi o primeiro
e parece que único presidente. Nos referidos anais, há vários documentos
dando conta das atividades do Instituto, inclusive do lendário caso
envolvendo os despojos de Koch-Grünberg.23
E já que aludimos a um caso que vai muito além do mero anedotário,
e é sobejamente conhecido, me vem à memória um outro, que li ou ouvi
em algum lugar, e que dá bem a dimensão do humanismo de Nunes
Pereira. A história teria sido contada pelo próprio protagonista, ninguém
menos que o mitológico comandante Luís Carlos Prestes, o tanto amado
quanto odiado “Cavaleiro da Esperança”. Quando a Coluna Prestes,
percorrendo mais de 25 mil quilômetros do território nacional, passou pelo
Rio Grande do Norte, o veterinário Nunes Pereira declarou “condenadas”
várias cabeças de gado, que alimentaram por muitos dias os
revolucionários, com quem ele, certamente, simpatizava.
Lendo a coleção de documentos registrados no Arquivo Nunes
Pereira, deparamo-nos, na segunda metade de 1950, com uma sequência
de manchetes, soando entre o trágico e o cômico: “Desapareceu o
21
PASQUIM, n° 360, p. 9.
22
BIBLIOTECA NACIONAL, p. 34.
23
Em 1944, Nunes Pereira guardou – durante meses, em um quarto de hotel – os restos
mortais do notável cientista, que morrera em 1924, na localidade Vista Alegre, à
margem esquerda do Rio Branco, até conseguir lhe dar sepultura digna, no cemitério
de São João Batista, em Manaus.
24
BIBLIOTECA NACIONAL, p. 181, documento 1108 e outros.
25
PEREIRA, 1974, p. 5-8 e 350-355.
26
BIBLIOTECA NACIONAL, p. 67, documento 211 e outros.
27
BIBLIOTECA NACIONAL, p. 182, documento 1116 e outros.
28
PASQUIM, n° 360. p. 11.
16 ║ Zemaria Pinto
Uma obra em afluência
I – Etnologia Maué
Ensaio de Etnologia Amazônica, cuja primeira edição é de 1940, é
o primeiro desses livros-rios. Em 1954, Nunes o amplia e o publica como
Os índios Maué.30 Este, por sua vez, vai ajudar a compor Moronguetá,
treze anos depois.
Ensaio de Etnologia Amazônica é a primeira ousadia de Nunes
Pereira, a começar pelo título, em que a palavra “etnologia” se destaca: de
modo ligeiro, podemos dizer que é o estudo das características de um
29
A ideia de livro-rio nasceu do conceito de narrativa em afluência, que o professor
Marcos Frederico Krüger desenvolveu no ensaio “O mito de origem em Dois Irmãos”.
30
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), fundada em 1955, convencionou que
a primeira letra da grafia de grupos étnicos deve ser escrita com letra maiúscula, tanto
para registrar os substantivos quanto os adjetivos gentílicos. Quando contextualizados
no plural, substantivos e adjetivos não flexionam. Esta segunda regra não será
respeitada neste trabalho, a não ser, por inevitável, nas citações e títulos.
18 ║ Zemaria Pinto
grupo étnico, assim definido por ter em comum a língua, as tradições e o
território, elementos que fundamentam as relações ordinárias da vida
cotidiana, criando “interesses coletivos e vínculos de solidariedade
caracteristicamente comunitários”.31
Na primeira versão, publicada na revista Terra Imatura, de Belém,
apropriadamente chamada ensaio – porque experimento – o autor
concentra-se no estudo de um “porantim” ou “remo mágico”, uma peça
que lhe fora mostrada, em 1939, no rio Andirá, domínio dos Maués. A
peça foi fotografada e também reproduzida detalhadamente a bico de
pena. No livro de mesmo nome, publicado no ano seguinte, o ensaio se
expande para fazer jus ao vocábulo mais forte, trazendo informações sobre
a história dos Maués e suas desavenças com os Mundurucus, além de
análise sobre os tipos de habitação utilizados, meios de locomoção,
lavoura do guaraná, caça e pesca etc. Em pequenas notas, Nunes Pereira
faz observações sobre os costumes locais em relação ao nascimento,
puberdade, casamento e morte, entre outras abordagens. O pequeno livro,
de não mais que 50 páginas, traz ainda duas narrativas, recolhidas pelo
autor: “História do timbó e da primeira água” e “História do guaraná”.
O livro Os índios Maués, que compulso na edição de 2003, da
editora Valer, foi publicado pela primeira vez em 1954. Trata-se da
evolução do Ensaio de Etnologia Amazônica, acrescentando a este novas
informações e detalhes preciosos, como a transcrição de canções da etnia
estudada e várias ilustrações, além de fotos inéditas – mas conservando a
essência de sua origem. Trechos inteiros do livro foram copiados em
Moronguetá, que traz, claro, muito mais informações, não só sobre os
Maués, mas sobre todos os nativos habitantes do que ele chamou de área
31
LEVI, p. 449-450.
II – O deus bem-humorado
Bahira e suas experiências teve a sua edição príncipe em 1940. É a
primeira manifestação significativa do contador de estórias, porque esse é
objetivo do livro – trazer à luz as aventuras daquele anti-herói índio.
Entretanto, o subtítulo – Etnologia amazônica – reforçava a intenção do
autor de posicionar-se como um cientista. A edição que tenho em mãos,
presente da querida Ivete Ibiapina – a 2ª, de 1944, com ilustrações de
Morbach, guarda duas curiosidades: é o vol. 1 da Biblioteca do Instituto
de Etnografia e Sociologia do Amazonas, presidido pelo autor; e traz uma
curiosa dedicatória ao então governador do Amazonas, Álvaro Maia:
“com a recordação da nossa atormentada mocidade”.32 Quantas histórias
haveria sob o véu destas poucas palavras...
Na apresentação de Bahira e suas experiências, Nunes Pereira
declara que destaca aquelas “experiências” de sua obra então em preparo,
acerca dos Kawahiwa-Parintintins. Essa obra jamais foi publicada;
entretanto, está lá, em Moronguetá, nas mais de 150 páginas dedicadas aos
Cauaiua-Parintintins, habitantes da área cultural Tapajós-Madeira. Nunes
faz uma profissão de fé, um autêntico manifesto por uma cultura nacional
indígena:
Nessa obra tais “experiências”, tradições e histórias são particularmente
comentadas, no intuito de salientar-se a contribuição do índio ao
32
PEREIRA, 1944, p. 5.
20 ║ Zemaria Pinto
conhecimento de certos fenômenos biológicos, religiosos, econômicos,
sociais e humanos do mundo amazônico.
33
PEREIRA, 1944, p. 17-18.
34
PEREIRA, 1944, p. 23.
35
PEREIRA, 1944, p. 24.
36
PINTO, 2011, p. 23-28.
37
PEREIRA, 1944, p. 25.
22 ║ Zemaria Pinto
segunda, intitulada “Histórias de Bahira e sua gente”, 38 é composta de 11
narrativas e “duas tradições” – estas são lembranças de uma possível
origem dos Cauaiuas em terras próximas ao mar, de onde teriam imigrado
para a selva amazônica. O livro tem ainda um breve glossário de palavras
e expressões usadas nas narrativas.
A edição da Valer conserva os textos introdutórios, inclusive as
dedicatórias, mas, em acertada decisão editorial, serve-se de Moronguetá
para expandir o volume de experiências e estórias, adotando o título deste,
Experiências e estórias de Baíra – o grande burlão. O livro original é,
sem dúvida, um tributário daquele riomar – e aqui violento a gramática de
forma consciente, fundindo os significantes, buscando o efeito de
transformá-los em um ente único.
38
Em Moronguetá e na edição da Valer, foi adotado o termo “estórias”, usado para
definir narrativas populares e/ou tradicionais, em oposição a “história”, empregado em
narrativas ditas sérias. Essa oposição “história X estória” não está isenta de polêmica.
39
PEREIRA, 1974, p. 8.
40
PEREIRA, 1974, p. 207-208.
24 ║ Zemaria Pinto
As bebidas são divididas em dois grupos, seguindo a lição de Koch-
Grünberg: as refrigerantes, feitas de frutas, e as alcoólicas, fermentadas.
O capítulo dedicado aos alucinógenos, lembra que o seu uso,
originalmente, era apenas ritual; o contato com o branco, entretanto,
estimulou o uso indiscriminado. Panorama da alimentação indígena
conclui com uma série de 16 narrativas, todas elas relacionadas ao seu
tema. O contador de estórias não perdia uma oportunidade...
41
Registro meu agradecimento para com a jornalista e escritora Leyla Leong, que
gentilmente me emprestou o livro. Leyla Leong é autora, entre outros títulos, de João
Barbosa Rodrigues e o Museu de Botânica do Amazonas (Manaus: Valer, 2010).
42
PORTO, p. 83-84.
43
PEREIRA, 1942b, p. 21-22.
44
PEREIRA, 1942b, p. 76.
26 ║ Zemaria Pinto
É no capítulo “Índios: origens – arte – pacificação” que
compreendemos porque Nunes Pereira era uma alma gêmea de Barbosa
Rodrigues. O naturalista não era apenas um botânico, talvez o maior de
seu tempo, tendo mergulhado fundamente no que Nunes chama de
“indianologia”, com estudos sobre as origens do Homem Americano, que
ele relaciona aos muiraquitãs encontrados nas regiões do Tapajós e do
Nhamundá. Estudioso das artes cerâmicas indígenas, Barbosa Rodrigues
coroa seu conhecimento de indianologia com a pacificação dos Crichanás.
Para Nunes Pereira, “com Barbosa Rodrigues, a gente aprende a amar o
índio e a compreendê-lo,”45
Curt Nimuendaju (síntese de uma vida e de uma obra) também teve
origem em Manaus, em uma sessão conjunta do IGHA e do Instituto de
Etnografia e Sociologia do Amazonas, quando o autor proferiu uma
conferência, no dia 10 de janeiro de 1946. O motivo da sessão era uma
homenagem ao cientista, desaparecido um mês antes, em circunstâncias
mal explicadas. A relação entre Nunes Pereira e Nimuendaju era,
sobretudo de amizade, mas – dez anos mais velho e um renome
internacional – Nimuendaju era para Nunes um mestre a ser seguido.
O texto, talvez pela proximidade da tragédia, é sombrio e amargo,
mas traça, a partir de um painel tripartite, a trajetória de Curt Unckel:
desde a infância, na fabulosa floresta da Turíngia, na Alemanha, onde
nasceu; passando pela floresta de Piratininga, onde chegou aos 20 anos e
metamorfoseou-se em Nimuendaju; até a floresta amazônica, onde viveu
aventuras, produziu alta ciência e pereceu, violentamente, aos 62 anos.
Numa passagem que dá bem uma ideia de quem foi Curt
Nimuendaju, que “viveu entre os índios, como índio”,46 Nunes Pereira
45
PEREIRA, 1942b, p. 71.
46
PEREIRA, 1946, p. 20.
47
Apud PEREIRA, 1946, p. 11.
48
PEREIRA, 1946, p. 20.
49
PEREIRA, 1946, p. 39.
50
Nimuendaju, apud PEREIRA, 1946, p.23.
51
PEREIRA, 1946, p. 26.
28 ║ Zemaria Pinto
O livro traz ainda uma dramática narrativa da pacificação e do
aniquilamento da etnia Parintintim, além de um breve estudo sobre as
obras publicadas de Nimuendaju e referências a obras inéditas, entre as
quais uma coletânea de 300 histórias, lendas e contos, “na sua maioria
escabrosas e obscenas mesmo”,52 que Nimuendaju pretendia publicar sob
o título de Trezentas – um documento inestimável da literatura oral das
etnias estudadas.
Outros livros foram publicados a partir de conferências e hoje são
objetos raros, como Introdução à dramaturgia indígena, de 1947, e O
índio, esse desconhecido, de 1949 – ambas proferidas no Museu Emílio
Goeldi, em Belém. Registre-se ainda, dentro da temática amazônica, os
livros Histórias e vocabulário dos índios Uitoto, de 1951, e Vocabulário
da língua Tukano, de 1966.
52
PEREIRA, 1946, p. 46.
53
PEREIRA, 1955, p. 12.
54
PEREIRA, 1955, p. 12.
30 ║ Zemaria Pinto
reservado o papel coadjuvante de tocar os instrumentos que acompanham
as músicas; estas alternam temas religiosos com temas profanos.55
Também a par com a tradição religiosa, o Marabaixo alterna canções
de teor sacro e profano, acompanhado de instrumentos de percussão, que,
aos poucos, botam todos para dançar, em atitudes “as mais estranhas e
emocionantes”, revelando, em acrobacias complexas, artes e negaças de
experientes capoeiristas. Mas há, dependendo do lugar, pequenas
variações no ritual. A uma exibição a que assistiu, o autor registra:
Nem lhes faltaram, nas máscaras luzidias de suor, no fulgor das pupilas e
nos ritus dos lábios carnudos, a expressão dramática, que a posse do guia,
santo ou vodum, lhes transmite, e a expressão sensual, que nasce dos
sentidos, açulados pelas libações e pelos contatos dos corpos em festa... 56
55
PEREIRA, 1955, p. 20-50.
56
PEREIRA, 1955, p. 104.
57
PEREIRA, 1955, p. 120.
58
PEREIRA, 1979, p. 20.
32 ║ Zemaria Pinto
exemplo, Nunes Pereira não reconhece no vodun Jeje o sincretismo tão
facilmente identificável entre os deuses do Candomblé e os santos
cristãos.59 Pelo menos mais dois livros de Nunes Pereira são tributários
deste: Negros escravos na Amazônia, de 1943, e Negros escravos na Ilha
de Marajó, cuja data não conseguimos precisar – ambos, conferências
apresentadas em Congressos de História e Geografia, no Rio de Janeiro.
59
PEREIRA, 1979, p. 32-33.
60
O título está relacionado nas obras a publicar de Um naturalista brasileiro na
Amazônia (1942) e Bahira e suas experiências (1944), 2ª edição.
61
PEREIRA, 1974, p. 310; PORTO, p. 126 (entrevista à Tribuna da Imprensa, em 1980.)
62
PORTO, p. 61.
34 ║ Zemaria Pinto
VIII – Um clássico selvagem
Gestado em mais de 40 anos de viagens pela Amazônia, Moronguetá
– um Decameron indígena é o grande livro-rio onde deságua a obra de
Nunes Pereira – um clássico da selva. Em carta a Arthur Reis, em outubro
de 1943, 24 anos antes do livro vir à luz, Nunes Pereira informava ao
amigo a respeito de uma viagem que fizera ao Alto Madeira:
Pelos resultados dessa viagem, posso afirmar a V. que foi das mais
proveitosas por mim realizadas nesta Amazônia (...) Entre aqueles
resultados há um livro – MORONGUETÁ (...) São cerca de 48 histórias
fabulosíssimas! Nelas reaparece Bahira com 10 experiências. E novos
heróis, como Tandavaoha, Anhang-pi e Pereté, rivalizam com aquele em
ações movimentadas e estranhas. Certos esclarecimentos que o Curt me
pediu recolher vêm nessas histórias e têm um valor extraordinário para os
estudos etnológicos.
63
PEREIRA, apud COSTA, p. 286-287. Em Moronguetá, os nomes dos personagens
citados aparecem grafados de forma diferente: Tandav-u e Anhanga-Piã.
64
PEREIRA, 1980, p. 6-16.
36 ║ Zemaria Pinto
fora do que é propriamente humano.”65 O riso, como o sexo, é um índice
de humanidade.
No capítulo “Situação atual dos indígenas”, que se repete em cada
uma das cinco partes em que se divide o livro, o tom dominante é sombrio:
Nunes Pereira tem consciência de que o avanço da “sifilização” – como
ele define com ironia o que nós representamos para o índio, é o ocaso
daquela cultura, daquela literatura, daqueles saberes que têm a exata idade
do tempo. Mais tarde, em entrevistas, já em idade avançada, ele não se
continha e dizia o que em Moronguetá está nas entrelinhas: “O drama do
índio é irreversível. O índio vai desaparecer.”66
Um dos textos mais contundentes dos modernos Estudos Literários,
no Brasil, Uma poética do Genocídio, de Antônio Paulo Graça, faz uma
análise dos dez mais importantes romances que têm o índio no centro dos
acontecimentos, e conclui assim:
O tema último do romance indianista é o genocídio, o extermínio total.
Cada herói é, no interior desse quadro teórico, abstrato, imaginário, de fato,
o último herói indígena. (...) Todo romance indianista é, já podemos dizer,
uma metáfora do genocídio. Mesmo quando expõe gritantemente a pureza
e a nobreza, como em Alencar, por exemplo, o que se diz por sob suas
palavras é: um ser puro como este não merece ser extinto – mas será.67
65
BERGSON, p. 7.
66
PORTO, p. 128.
67
GRAÇA, p. 148-149.
IX – E no princípio, a poesia
A trajetória de Nunes Pereira segue o padrão de muitos escritores: a
poesia como primeira inquietação – a magia das palavras transformadas
em música, paisagem, fantasia, e, sobretudo, o fascínio em dominá-las,
domá-las, subjugá-las. O jovem Nunes Pereira não é mau poeta: está
aprendendo, tem um ótimo domínio técnico, especialmente nos
alexandrinos, e se sai muito bem nos decassílabos. Seus poemas buscam a
expressão simbolista, mas a ênfase ainda é parnasiana, por vezes mesmo
romântica. E se aqui e ali nos deparamos com um verso menos fluido, mais
duro, especialmente nos poemas de circunstâncias, o que mais incomoda
é o vazio geral, a insubstância – o tédio das dores menores,
68
PEREIRA, 1980, p. 210.
38 ║ Zemaria Pinto
individualizadas. Em 24 poemas resgatados, o Zeitgeist ecoa as vozes de
Maranhão Sobrinho, Jonas da Silva e Hemetério Cabrinha, poetas com
quem Nunes Pereira possivelmente conviveu na longínqua Manaus de
1911/1912.
Um exemplo da poesia de Nunes Pereira é o soneto “Outonal”, do
qual transcrevo o segundo quarteto:
Horas longas, a sós, fico em cismas imerso,
como em frente da Luz um pintor simbolista,
ou dedilho em surdina o arrabil do meu Verso,
evocando o solau que nossa alma contrista...69
69
CORREIO DO NORTE, edição de 29 de junho de 1912.
70
BIBLIOTECA NACIONAL, p. 37.
Esboço de bibliografia
71
“Tambaramã”, na língua Macuxi, quer dizer “acabou-se”; é pronunciada sempre ao
fim de uma narrativa. Nunes Pereira usou-a no fim de Panorama...: PEREIRA, 1974, p.
344 e 386-387.
40 ║ Zemaria Pinto
rodas, eu não conheço meio mais adequado para multiplicar
conhecimento. Mas como fazê-lo, se de alguns livros eu não tinha nada
além do título? Um peixe enigmático, por exemplo. Termino este trabalho
sem saber qual é o peixe enigmático... Então, vai por data, mesmo, a
começar pelos sem data, e sempre com referência à primeira edição,
mesmo que ela tenha sido expandida depois. Acredito que será útil, de
qualquer forma. Eximo-me também de citar as edições e as editoras, me
atendo a título e ano, apenas. Afinal, excetuando Baíra, nenhum dos
outros livros passou da segunda edição.
As décadas de 1940 e 1950, quando o escritor está entre os 47 e os
63 anos são as mais produtivas. Entretanto, os dez anos que vão de 1957
a 1966 valem pela construção de Moronguetá. Não nos esqueçamos
também do tour de force que levou às segundas edições expandidas de
Panorama da alimentação indígena e A Casa das Minas, na década de
1970, quando o autor já ultrapassara a barreira dos 80 anos.
Sem data
– A indústria pastoril no Rio Grande do Norte
– A pesca no Rio Grande do Norte
– Couros e peles de animais domésticos
– Negros escravos na Ilha de Marajó
– Um peixe enigmático
1934
– Os Mura e o uso do Paricá e da Coca
1940
– Bahira e suas experiências
– Ensaio de etnologia amazônica
42 ║ Zemaria Pinto
1966
– Vocabulário da língua tukano
1967
– Moronguetá – um Decameron indígena
Prometidos
– Ensaio de sexologia indígena
– Gonçalves Dias – Naturalista
– Guimarães Rosa - Naturalista
– História do Guaraná
– José Veríssimo – Naturalista
– Memórias inconfessáveis
– Mitos, lendas e superstições vegetais da Amazônia
– O negro na Amazônia
– O negro no Maranhão
– Os Mura
– Os Parintintin
– Paixão, morte e glória do Índio
44 ║ Zemaria Pinto
PASQUIM. N° 359 e 360. Rio de Janeiro: Codecri, 1976.
46 ║ Zemaria Pinto
Sobre o autor
48 ║ Zemaria Pinto
Nunes Pereira – esboço em cinza e sombras ║ 49