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H) / HH MUSEU Hi CoLEgAo Af BERARDS iH } (i) i Hii) Hii) Hh Ha t Mi) HM} a } Ky batt Huy Hui i | emoriz Hh at dh My Ki i i vi 1 AAR iia o 7) naga 1 Av a At ; mn IAN HA ttn SE RH \ a ih Hoy i Ne \ XN r ni ny i Vf aa AN ANN i Ce Ha i an Ant i F AY ( i 4 ‘ Ai ni \y 7 i Ay hy a Ne yy i NN ‘ aaa aH a ANY ‘ sins’ Wane Ay Wane) RARE ‘ A LRA ay ADEA RN RA R) aN RR San iy aR ERR i Ht a x Aan Ane H % i i i ae a AHH HA A i aa a AO i Ni AH Hh Hay wy We ee Hi a Tn f Wy Ny f Vy HN Wt a AH Hit i Udyy AI i Hy WA Hi oe AY Mey Hy Ay 1, a Ruth Rosengarten Entre meméria e documento: a viragem arquivistica na arte contemporanea Nurse Cole¢to Deresdo. ‘Arie Uodema e Cortemporires: SEs TITULO. nt Entre moméria e documento: a viragom arquivistica na arte contemporanea Anoria Ruth Rosengarten Diretor Antistico Pedro Lapa Coordenagio Editarial ¢ Revisio Clara Tivore Vilar Nuno Ferreira de Carvalho Tradusio Cristina Carvalho Ediggo de Imagem David Rato Design Grifico Re Produgdo Grifica Norpsint ‘Todos os direitos reservados. © do texto: Ruth Rosengarten, 2012. ®os autores, a spa ¢ 2 Fundagdo de Arce Modema c Contemporines - Colegio Berardo, 2012. 3" Edigdo: Outubro, 2012, 350 Exemplares ISBN 978-989-8239-34-1 Museu Colegio Berardo Praga do Impétio, 1449-003 Lisboa. Portugal + 351213 G12 878 muscubcrardo@museuberando.pt tareccacamtutena wate Coveeas pemutre cou arco Camm =—- se ZON wrens g Totes Robbiatec” Ruth Rosengarten Entre meméria e documento: a viragem arquivistica na arte contemporanea Se o modernismo apagou a presenga da memoria nas praticas artisticas para as reconduzir a um entendimento exclusivo de uma visualidade pura, as sucessivas décadas do pds-guerra aos nossos dias tém procurado reavivar essa dimensio, através das mais variadas formas e processos. A nogao de arquivo, que, paradoxalmente, o mundo moderno desenvolveu mais do que qualquer outra época, tem assumido neste quadro um crescente significado enquanto forma privilegiada de acumulagio e organizagao objetiva do conhecimento histérico e mesmo da memoria da experiéncia individual, depois de as grandes narrativas, que encadeavam os factos e os dados do conhecimento numa ordem especifica, terem sido destituidas de valor. Esta objetividade do arquivo no constitui, porém, um lugar neutro. Ela implica o repositério de um sistema ordenado de documentos e registos por um Estado ou diversas instituig6es, por uma colecio, um saber, ou pela subjetividade de alguém. As praticas artisticas dos Ultimos cinquenta anos tém trabalhado G nocid arquivo de forma a reexaminar as suas significacdes, definicdes ¢ conceitos, bem coma o poder, sobre amem6ria, que dai emerge. O presente ensaio de Ruth Rosengarten, ao cbrugar ec sobseaIgtnnas vbrerder{ioseu Colegio Berardo, traga um complexo quadro das problematicas suscitadas por estas relativamente as varias assergGes e possibilidades das praticas artisticas reclamarem a memo6riz-histéricac— individual como a experiéncia de um testemunho contra oO Pedro Lapa Diretor Anistico do Museu Colegio Berarlo Ha uma histéria que se conta sobre o criminoso de guerra Ratko Mladic, que passou meses a bombardear Sarajevo a partir das montanhas circundantes. Certa vez, notou que o alvo seguinte era a casa de um seu conhecido. O general telefonou ao seu conhecido e informou-o de que the dava cinco minutos para reunir os seus “albuns” porque decidira fazer explodir a casa. Quando disse “dlbuns”, o assassino queria dizer os dlbuns de fotografias da familia. O general, que destruta a cidade havia jd alguns meses, sabia justamente como aniquilar a memoria. Essa éa razao pela qual concedeu “gencrosamente” a vida do seu conhecido o direito @ lembranga. A vida, pura e simples, e algumas fotografias de familia. Dubravka Ugresic, O Museu da Rendiydo Incondivional Ordena a Gapka que traga dois melées e, ato continuo, corta-os, junta as pevides num papel, e comeca a comer. Depois, ordena a Gapka que the alcance o tintetro e, pelo seu proprio punho, escreve estas palavras no papel das pevides: “Estes meloes foram comidos a tantos de tal”. Se estiver presente um convidado, escreve: “Fulano de tal testemunhou-v". Nikolai Gogol, Historia de como se enganaramr Ivan twanovitch ¢ tyan Nikiforoviteh PROLOGO Prélogo Oconvite para participar na colegio Sem titulo, organizada pelo Museu Colegio Berardo, foi muito bem-vindo. Sendo-me dada, digamos assim, a liberdade da colegio, fiquei encantada com a possibilidade de poder definir o meu percurso por entre obras acumuladas ao longo de anos. A este sentir-me encantada nao é alheio um certo tipo de indoléncia, pois a curadoria de uma exposicio virtual nao acarreta qualquer dos encargos ¢ tribulagocs priticesspara jd nada dizer dos custos, implicados na curadoria de uma exposigao num espaco real, Porém, se, em virtude destas vantagens ¢ limitagées, nao me foi dado o prazer de experienciar as obras em didlogo umas com as outras, vi-me também constrangida por uma outra circunstancia: vivo em Inglaterra, estou a escrever em casa, e, como tal, ndo posso dar um saltinho a rua para ir ao encontro das obras que acabarei por selecionar. Mercé desta desvantagem, nao me é possivel desenvolver essa forma de observagio mais intima, que me proporcionaria uma exposigio material e temporal as obras. A pintura - dominio em que algumas praticas exuberantes dos anos de 1990 constituiram uma tentagio - foi, claro esta, PR6L0GO imediatamente posta de parte, ea fotografia ceda sc afigurou como a escolha mais dbvia de tépico, porser de mais facil reproducao c,em porencial, infini iutivel As raz6es praticas para que este tépico se impusesse como evidente encontraram também respaldo na deriva do meu préprio trabalho, no qual tenho vindo, nos tiltimos anos, a inclinar-me para (e forografico\c suas reinvengGes cm outros meios), tanto cm termos teéricos, como em termos de pritica. Tenho estado sobretudo interessada nas exploracdes inicgiai mn presenca. A fotografia digital, com todas as vantagens que ofcrece, pés todavia fim a esses usos iniciais da fotografia, artefactos que esto hoje tio envoltos em nostalgia como qualquer outra obsoleta reliquia artesanal. E, claro, além de se apresentarem como imagens fotogrificas, as obras foram-me dadas numa ordem especifica, por os varios componentes da colegio estarem dispostos num arquivo online, em que as obras podem ser acedidas, ou através da categoria mais abrangente de “movimento artistico”, ou consultando o nome do artista numa listagem alfabética. Empreender a curadoria desta exposicao PROLOGU hipotética é também, ¢em condigées gratas, uma forma de minerar um arquivo jé existente. Assim, conquanto estcjam sempre interligados em contextos museolégicos, num formato virtual como este, colecao € arguivo apresentam-se perfeita ¢ naturalmente elididos, desdobrados um no outro. Ora, as questdes arquivisticas sio uma obsessao0 ———_—_——_— minha de sempre: a questo de como organizar, guardar, conservar ¢ aceder a informagio, € a questio da forma que o material arquivado é suscetivel de “tomar quando consultado no futuro, afiguram-se- -me como sendo de importincia cepital. Afeta de tal maneira o modo como o material se disponibiliza 4 mente esquecida que se debate para encontrar a palavra certa, ou 0 conceito associado, que, por vezes, tenho a impressdo de que muito do que fago tem lugar no emaranhado encoberto que subjaz a produgao visivel. Por cada ensaio escrito, ou conjunto de obras produzido no atelier, houve uma mesa de trabalho esvaziada; o experimentar de um novo método de arrumagio e organizacio, a compra de umas quantas caixas de arquivo ou, mais recentemente, a adogao de uma aplicacao informatica. Mais, acreditando inerentemente no trabalho subliminar que ocorre aquando do preparar da redagdo de um texto, foi com a meridiana clareza das PROLOGO coisas evidentes que algo que juntasse “o fotografico” ¢ “o arquivistico” se tivesse postado diante de mim, nio sé como meio de escrita deste texto, mas também como seu objeto, Foram muitas as obras da colegio que se perfilaram como candidatas, incluindo-se, entre elas, trabalhos fotograficos realizados como registos quase-arquivisticos de, ou estudos para, ages (Vito Acconci [pp. 62-63], Helena Almeida [p. 64], Hamish Fulton, Ana Mendieta), bem assim como trabalhos de base arquivistica que contestam declaradamente a nogio de fotografia qua testemunho nao-mediado (Tracy Moffat [pp. 72-75], Vivan Sundaram, John Hilliard), um ou outro dos quais esticando 0 fotogrdfico para la das certezas oferecidas pela possibilidade de reconhecimento (José Luis Neto). As obras que selecionci sao poucas, e delineiam uma trajetoria particular, que se inicia em Marcel Duchamp, cuja Boite en valise (1935-1941) {p. 61], embora sobressaindo como uma inclusio inusitada face as outras obras que escolhi, fornece um fundamento estrutural e arte-histérico necessario. A inclusio de apenas um trabalho nao fotografico, da autoria de Anselm Kiefer, serve como um contraponto que, espero, venha a demonstrar-se significativo no contexto. 10 A FOTOGRAFIA EO ARQUIVO: TEORIA EM PRATICA O arquivo e a fotografia As ligagées histéricas entre a fotografia e 0 arquivo foram, nao apenas ampli e criticamente documentadas, como também incorporadas ¢ exploradas em varias praticas, amitide empreendimentos visionarios do modermismo inicial e do modernismo tardio (ou pés-modernismo) na arte, na literatura, nas dreas em que arte ¢ literatura se justapdem: do presciente Mnemosyne-Atlas (1924-1929), de Aby Warburg, passando por Passagens (1927-1940), 0 monumental projeto inacabado de Walter Benjamin, e pelo imagindrio arquivista de W. G. Sebald ¢o.uso por cle feito da fotografia como lugar de transagao com 0 mortos, ao Atlas heterogéneo de Gerhard Richter (iniciado em 1964), na sua aspiracdo a uma “totalidade abrangente”: ¢ correspondente (definidora) “devastagao de tal promessa”. As frontciras entre o catalogo H od ie, n ae s: . semelhante também desfeitas na obra de outra artista concetual alemé, cuja produgao ¢ dotada de grande riqueza material: Hanne Darboven. A Kulturgeschichte 1880-1983 [Histéria cultural 1880-1983] de Darboven, desenvolvida entre 1980 ¢ 1983, uma vasta colegio de fotografias, postais e documentos que, percorrendo um século de histéria ¢ dispostos em grelha, sugere, ¢ ainda assim recusa conceder, uma sintese entre o vernaculo ¢ o universal, a histéria ¢ o quotidiano, o documental ¢ 0 estético.: 1 Benjamin Buchloh, “Gerhard Richter’s Alas: The Anomic Archive", October, vol. 88 (primavera 1999), pp. 117-145. Reimpresso in Gerhard Richter Atlas: The Reader, Londres: Whitechapel Gallery, 2003, pp. 99-114. 2 Lynne Cooke, intredugio a exposigde Gerhard Richter: Atlas, Dia Foundation, Nova Torque (27 de abril de 1995 - 25 de feverciro de 1996). Texto disponivel online: hetp://www.diaar. org/exhibitions/introduction/s4 (consultade 2 6 de outubro de 2011). 3. Of Dan Adler, Hanne Darboven: Cultural History 1880-1983, Londres: Afterall Books, z009, L A FOTOGRAFIA E 0 ARQUIVO: TEOREA EM PRATICA Esta tensao entre o histori no campo ue aqui exploro de modo sintético. Vale a pena salientar que as imagens forogrificas estabelecem, de manciras especificas, um ponto axial entre as esteras puiblica ¢ privada. O termo “pés-meméria” foi cunhado por Marianne Hirsch: para captar essa intercede peculiar enquanto manifestada na reverberagao trans-geracional de um evento, Em termos materiais, 0 conceito de pés-memoria materializa-se na imagem residual que certas fotografias provocam, fotografias que parecem pairar entre a memoria de um individuo ¢ a histéria impessoal. nao tenhamos vivido esses acontecimentos na primeira pessoa, mas que uma imagem deles infunda a cultura que habitamos. Oconceito de pos-memédria de Hirsch é afim a teoria desenvolvida no campo da psicanalise por Nicholas Abraham e Marina Torok. Estes autores alargaram o sistema freudiano de andlise do individuo, com vista a explorar o cfeito patolégico, em certos individuos, dos segredos traumaticos mantidos em segredo pelos seus pais ¢ avés. Para Abraham e Torok, a falsificagao ou rasura do passado praticada por pessoas que passaram pelo Holocausto (por exemplo), e que quiseram proteger a geragao seguinte dos horrores vividos, torna-se terreno fércil para depressdcs, ansiedade ¢, eventualmente, sentimentos de vergonha, em individuos, familias, comunidades, e mesmo nagées. Para Hirsch, as experiéncias coletivas de trauma podem surgir destiladas cm fotografias individuais danificadas ou esmaccidas de alguém ou de algo perdido ainda que desconhecido. possivel que 4 Marianne Hirsch, Harvard University Press, 1997. f Nicholas Abraham, Maria Tarok ¢ Nicholas ‘Thomas Rand, The Shell and the Keruct: Renewals of Psychoanalysis, Chicago: University af Chicago Press, 1994. E.com grande surpresa que se constata que Hirsch ndo faz qualquer mengdo a Abraham ¢ a Torok no seu erudite estinto, ily Frames: Photography, Narrative and Postmemory, Cambridge, MA: uw 13 A FOTOGRAFIA EO ARQUIVO! TEORIA EM PRATICA A exposigio a tais imagens fotograficas entrelaga-se com as historias daqueles que testemunharam pessoalmente os acontecimentos e, assim mescladas, introduzem-se ambas, através de varios meios culturais, na urdidura do cu. C cito circunscreve-se, claro esta, ao estatuto de testemunho de que ¢ portadora a forma de fotografia anterior a introdugio das tecnologias digitais, com a inoy coriginalmente problematicas relagao que estas novas tecnologias estabelecem entre o real ¢ 0 ficcional; entre tempo histérico ¢ tempo narrativo. Nos produtos da velha tecnologia analégica, a indexicalidade da fotografia — 0 facto de, porquanto captagao de um acontecimento real numa superficie fotossensivel, a fotografia ser um residuo, um registo vestigial de algo que aconteceu - faz cam que a imagem fotogrifica tradicional, ela mesma, seja um stico. Okwui Enwezor, na sua excelente introdugio a uma exposigéo que abordava precisamente este tdpico, escreve: “A possibilidade de inscriggo mecanica, a ordem de referéncia direta que liga a fotografia ao facto indisputavel da existéncia do objeto fotografado”, ¢ que funciona como a pedra basilar da fotografia analégica, confere a este medium um estatuto até entio desconhecido no que respeita ao real, tal que, como medium, essa fotografia ¢ capaz - ¢ ¢ vista como sendo capaz - de fornccer um relato fenomenoldgico do mundo sob a forma de imagem. fotografia é, simultaneamente, a prova documental co registo de arquivo dessas transagdes”. 6 — Okwui Enwezor, “Archive Fever: Photography Beuseen History and the Monument’, Archive Fever: ses of the Decunient in Contemporary An, (eatdlogo da exposigdo), Nova lorque: International Center el Photography, 2008, p. 12. 14 A FOTOGRAFIA 1 0 ARQUIVO: TEORIA FM PRATICA Deve di em jeito de aparte essencial, que as tec] digitais njo se cximem do estatuto de testent hes das tecnologias precedentes cui itos si C écalidade de outras » i icular, ¢ como assinalado por Mary Ann Doane, na forga da sua exortagio - “Olha aqui!” ou “Vé isto!” - agindo como “um dedo que aponta [...] A ‘vitalidade’ (de tais imagens] assegura a adesio da imagem ao seu referente, tal como o indice adere ao seu objeto, ¢ o website torna essa ‘vitalidade’ revivivel com um mero toque de dedo"; chamando a atengio, como o fizeram os seus antecessores, para o instante singular. Se, historicamente, a capacidade da fotografia para captar o extraordindrio ou 9 contingente provocou maravilhamento, conseguindo a magia de embalsamar o tempo, “resgatando-o, de maneira simples, 4 sua corrupgao inerente”s éde igual modo verdade que essa capacidade trouxe, também, uma certa ansiedade epistemolégica, pois esse captar do momento transitério nao é apenas uma forma de preservagio, servindo outrossim, paradoxalmente, como um memorando da morte, da corrupgao que ¢inerente ao tempo. No arquivo, vemos em escala magnificada o que a fotografia faz numa escala modesta: um didlogo com a posteridade, uma projegio num tempo por vir em que esse artefacto devird antigo, uma recordagao; ¢, conversamente, um memorando sombrio de que, no passado, a morte era algo que estava no futuro. A imbricagio de passado ¢ futuro em objetos de investigacao histérica tem uma abrangéncia politica mais ampla do que a alcangada por interpenetragées. semelhantes em objetos arqucolégicos: Peter Gay alertou a dada altura para os perigos de cratar todas as idgias e as instituigdes Mary Ann Doane. The Emergence of Cinematic Time: Modernity, Contingency, the Archive, Cambridge, MA: Harvard University Press, 2003, p. 208. 8 André Bazin, Witat & Gincina?, (ung, ¢ rad. Hugh Gray), vol. 1, Berke California Press, 1967. p. 14. st 15 A FOTOGRAPIA EO ARQUIVO: TEORIA EM PRATICA alemis do século XIX como meras “pistas de crimes futuros"» ou, por outras palavras, como a pré-histéria do nazismo. memento mori: funcionando como destilagées do tempo ¢ -materializagoes da memsria, ambos passuem uma dimensio funére: . = de : eembora contribuam para um corpus de conhecimento ¢ saber, convertem-se também ¢ em pouco tempo em espacos de devogio ao passado. No caso da fotografia individual, (conhecimento) proporcionado &sc 3. NO caso dof ao fornecer um testemunho coligido (ainda que deiticoy qua prova documental, o que é proporcionado afigura-se como tendo plenitude, completude. “Mal d ” foi facques Derrida para exprimir a pulsio para acumular e armazenar deste modo: recolher, categorizar ¢ ordenar, numa tentativa, nio s6 de relembrar ¢ de guardar, mas também de animar, de revivificar. Derrida explora o fascinio de Sigmund Freud por Gradiva, livro do escritor alemo Wilhelm Jensen publicado em 1903. Nele, conta-se a histéria de um arquedlogo, Hanold, cujo desejo ¢inflamado por um baixo-relevo antigo que figura uma jovem a andar (0 significado da palavra gradiva). Hanold regressa a Pompeia em busca da pegada da jovem; regressa, em suma, para seguir o rasto do indice, Para Derrida, 0 estado de mal de arquivo de que Hanold padece ¢ governado por aquilo a que Freud chama a pulsdo de morte, que é tanto um movimento para a destruigio 9 Peter Gay, Freud, fows and Other German: Masters and Victins in Modernist Culture, Osford: Omtord University Press, 1979, p. 8. A ideia de “pressigio” ¢ imanente as tentativay de historiadores alemses para destringar a polmica de uma “histéria da vida quotidiana” na Alemanha no periado entre as duas guerras, tentativas essas em que pretendiam apurar se 0 “histérico”e o “patoldgico” eram intrinsecamente indissociav cin. 16 A FOTOGRAFEA EO ARQUIVU! TEORIA EM PRATICA eparaa aniquilagio, como uma consciéncia dos limites que o tempo nos impée, a nds seus objetos. A pulsio de arquivo luta para estancar a inelutabilidade da passagem do tempo, da destruigao ¢ da morte, através de uma rasura da diferenga entre o indice, como sinal, ¢ o referente deste: Hanold sonha este lugar insubstituivel, a propria cinza, onde a marca fmpressa singular, come uma assinatura, mal se distingue da impressio. Ecsta a condigao da singularidade, o idioma, o segredo, o testemunho. E a condigao de unicidade do impressor-imprimido, da impressia ¢ da marca impressa, da pressiio e do vestigio desta, no instante tinico em que as duas ainda ndo se distinguem uma da outra [... 0 vestigio jd ndo se distingue do seu substrata.» A indexicalidade - a marca do singular, a impressio diferenciadora - nado governa apenas a formacio de um arquivo: determina, também, aquilo que ¢ arquivavel. Contudo, na segunda metade do século XIX, a foronrafia ¢ocinema alteraram stentes armazenado, convertendo nogées acerca da memoria ¢ do conhecimento face ao énus da prova empirica, Os vestigios indexicais, garantes de um passado que ¢ sentido como perdido, emergem como mareas no presente: é nesta concegao que reside o fulcro das entao florescentes ciéncias da frenologia ¢ do estudo forense, presidindo também ao esforgos de Freud no sentido de minerar a psique humana ¢ de explorar de que modo, nela, © passado vive no presente. (Um sintoma ¢, ao fim ¢ ao cabo, uma marca deixada pelo passado, inconscientemente escavada, como 0 baixo-relevo de Hanold, ¢ somatisada.) Essas marcas que sao imobilizadas e preservadas na fotografia ¢ incorporadas no arquivo propdem, também elas, a oferta de uma historia 10 Prenowitz), A FOTOGRAFIA E 0 ARQUIVO! TEORIA EM PRATICA para o futuro: o tempo é, 4 uma, seccionado, tornado abstrato, racionalizado, prometido. Todavia, ¢ de modo muito evidente, 0 tempo ndo pode ser completamente controlado. Em ultima instancia, o arquivo subtrai-se 4 sua promessa de completude, simplesmente porque a vida excede necessariamente em quantidade as representagées da vida: dai o lamento de Pierre Nora - “arquiva, arq| ha-de faltar sempre qualquer coisa!” — que, diga-se, se aplica também a Benjamim ¢ a Richter. Pierre Nora manifesta-se, como alias o fazem Derrida, Paul Ricouer e Giorgio Agamben, ¢m prol da desacreditagio do arquivo enquanto fonte de conhecimento completa, segura, cientifica e objetiva, sendo uma das razdes nao despicienda para tal a propria relacao entre 0 arquivo ¢ a memoria - ou o que Agamben designa por “o arquivo ¢ a testemunha”* - nunca ter sido, nem estabelecida, nem completamente fidvel. Conversamente, nem todos os documentos s4o testemunhos. encontro com o passado via reminiscéncia, seja ele protagonizado r grupos, ¢, consabidamente, inconsistente {) facto de um arquivo conter vestigios do passado - marcas indexicais de algo que aconteceu - corrobora a ocorréncia de determinados acontecimentos histéricos, mas nada diz quanto ao modo como esses acontecimentos sio recordados. or individuos ou 11 Pierre Nora, “Archiver, archivee, ib en restera toujours chelque chose!” citado por Paul Ricoeur em Memory, History, Forgetting, (trad. Kathleen Blamey ¢ David Pellauer), Chicago: The University of Chicago Press, 2004, p. 12° Para um resumo das ideias essenciais de Pierre Nora sobre a sua eatensa investigagio académica sobre trabalho de meméria, Lieus de Mémoire, vet Pierre Nora, “Between Memory and History: Les Liewe de Mémoire”, (trad. Marc Roudebusch), Representations, n.* 26 (primavera 1989), pp. 7-25. 13 Esta a distingdo que firma o mictco do trabalho seminal de Giorgio Agamben, Reninants of Auschwits; The Witness and the Archive, (ad. Daniel Heller-Roazen), Nova lorque: Zone Books, 1999. 14 C£ Paul Ricoeur, op. cit, p. 161. 18 A FOTOGRAFIA E 0 ARQUIVO: TEORIA EM PRATIC’ A viragem arquivistica Otropo “a viragem” tem vindo a pontuar a histéria das humanidades ha mais de meio século: nos meios académicos, fomos assistindo as viragens quantitativa, linguistica, cultural c espacial. A figura de uma mudanga fisica de posigio ¢ de orientagio é, portanto, utilizada para tornar inteligivel uma estrutura de reflexividade c, significativamente, com ela, uma mudanga de orientagao, se nao mesmo de paradigma, estética ou cognitiva. As deslocagées de objeto de arte para evento, ¢ de evento para pos-producio constituem exemplos de tais viragens. Ame concetual, performance c land art, bem como arte enquanto_ critica institucional ¢ museoldgica, ¢ arte que-instigac denatia todas clas, ser enquadradas como momentos de uma taLroragio. Estas praticas tém sido diversamente reforgadas por um corpo teGrico significativo ¢ influente (Thierry de Duve, Lucy Lippard, Rosalind Krauss, Benjamin Buchloh, Hal Foster ¢ Nicolas Bourriaud sdo alguns dos nomes que ocorrem de imediato). A partir dos anos de 1960, os espagos puros, nao- -contaminados, idealistas ¢ idealizados, do modernismo foram radicalmente desalojados por diferentes formas ¢ procedimentos, entre os quais se incluem, num dos extremos, a materialidade, sa paisagem.c.no outro, a desconstrucio das instituicoes gue definem, armazenam ¢ ¢ poem arte. Arte efémera ou de base sonora; video ¢ performance 3 ica, nas suas variegadas expressées em galerias ¢ fora delas; arte indissocidvel dos espagos cm que se manifesta (site-specific art) — scja em espagos arquiteténicos, na paisagem, ou na cidade ~ ou obras que dependem, na sua esséncia, da relagao interativa com o publico, todas elas se apresentaram como viragens paradigmaticas. 19 A FOTOGRAFIA EO ARQUIVO: TEORIA BM PRATICA Fomos assistindo, cm progressao crescente, ao aparecimento de obras que infiltraram, ¢ que foram infiltradas por, outros dominios epistemolégicos ¢ académicos. A “viragem etnogrifica” que Foster explorou na década de 1990, em parte bascada numa formulagio anterior de James Clifford, e ademais ocorrendo no contexto da expansdo dos estudos pés-coloniais, descreve uma crise de fronteiras, tanto na histéria e na tcoria da arte, como na respetiva pratica, A figura do artista gua etndgrafo albergou trabalhos que abarcavam um vasto leque de priticas materiais, findados nos valores relativistas promulgados pela disciplina (cntéo de novo em voga) da antropologia social: Jimmie Durham, Mark Dion, Susan Hiller, Lothar Baumgarten, Mary Kelly, Renée Green, Dan Graham, Sophie Calle, Allan Sekula, Phil Collins ¢ Kutlug Ataman sao apenas alguns dos artistas cujos nomes acorrem & memdria neste contexto. A deslocagio da viragem etnogrifica para a curatorial, ¢ desta para a viragem arquivistica, nao é nem revoluciondria hem, cm termos estritos, paradigmatica: é uma questo de bo fase oie gm que acol yezg: indiscriminadamente combinados como categorias, cmbora talvez com uma énfase acrescida quanto a0 estatuto do c e faz de um determinado objeto um documento. ——————————— 1g Hal Foster, “The Artist as Ethnographer”, The Retura of the Real. Cambridge, MA: ‘The MIT Press, 1996. Ver também Alex Coles (ong.), Site-Specificity: The Ethnographic Tum, Londres: Black Dog Publishing, z0v0. 16 Oestudo do antropélogo james Clifford sobre surrealismo como forma de etnogratia abriu uma brecha na diviséria entre disciplinas ¢, em inicios da década de 1990, a leitura desta obra passou a ser de igueur para historiadores de arte, sendo mesmo para artistas, Ver James Clittond, The Predicament of Culture: Twenticth-Century Ethnography, Literature, and art, Cambridge, MA: Harvard Unisersity Press, 1988, 20 A FOTOGRAFIA BO ARQUIVO! TEORIA EM PRATICA H4 também uma discussio acesa em torno da definigio d arquivo como forma ou como contetidojFaster recorre, nio 4 metafora de viragem, antes 4 de impulso, assim prestando uma homenagem implicita, primciro a Freud, ¢ em segundo lugar, mais especificamente, A anterior discussio de Craig Owens sobre o pés-modernismo em termos de impulso alegérico.” Muito embora, comd (Foster) econhece, ndo haja nada de original num “impulso arquivista’, este autor considera que a arte arquivistica, pelos prio, foi suficientemente prevalecente nos primeiros anos do século XX para que se The garanta o dircito a ser apreciada como forma artistica auténoma. Foster cita o trabalho de artistas como Pierre Huyghe, Philippe Parreno, Douglas Gordon ¢ Liam Gillick, bem ainda como Dion ¢ Green, que foram também, obviamente, importantes para a “viragem etnogrifica”, destacando ainda a obra de Sam Durant, de Thomas Hirschhorn, eo trabalho subtil de Tacita Dean, como merecedores de especial ¢ minuciosa atengao. Outros, que Foster no refere mas que poderia perfeitamente ter mencionado, incluem Glenn Ligon, Lorna Simpson, Roni Horn, Joao Penalva, Francis Als, Vivan Sundaram, Zoe Leonard e Taryn Simon, para citar apenas alguns. As carateristicas da arte arquivistica para as quais Foster zia do formato de instala u a ii provenientes da cu. q ~ radas com ug)a intengio de saber alternativo ou de contra-mem6éria”, el —E—E—E—E—E—eE—E—E—E—E—E—E—SE——_ 17 CraigOwens, “Th October, vols, 12413 (primavera-verio 1980). Hegorical Impulse: Notes toward a Theory of Postmodernism”, 21 A FOTOGRAFIA EO ARQUIVO: TEOREA EM PRATICA Aamostragem arquivistica)pode scr feita com base na Internet, mas estes artistas tem tendéncia para trabalhar com arquivos que nao sdo bases de dados propriamente ditas, ¢ que requerem “interpretagio humana, ndo reprocessamento maquinal”. Sao, consequentemente, trabalhos amitide encontrados em muscus ou galerias. O interesse pela colegio ¢ pela categorizacio, tal como herdado das epistemologias dos séculos XVIII e XIX, edas demandas com vista a ordenagdo e compreensao do mundo empirico, é agora declinado a favor da narrativa e da historia. Com as teorias da fusio das esferas politica e pessoal importadas do feminismo e das politicas de identidade, ¢ com o aumento do interesse pela historia ¢ pela semidtica da vida quotidiana, todas as matérias se tornam, necessariamente, matérias histéricas, ea tarefa de recordar ¢ arquivar faz de cada individuo o historiador de si proprio: dai o registo que Mary Kelly faz do percurso de desenvolvimento do seu filho em Post-Partum Document (Documento post-partum] (1973-1979); Everyone I Have Ever Slept With, 1963-1995 [Toda a gente com quem fui para acama, 1963-1995] (1995), de Tracey Emin; Day and Night and Day and... (Dia ¢ noite e dia e...] (2002), de Jef Geys, ¢ Prenez sain de vous [Cuida de ti] (2007), de Sophie Calle. Os riscos a que este tipo de empreendimento se expde sio evidentes: como acontece com a fotografia, também o arquivo, quando deixa de ser um repositorio de indicios “para a reconstrugio inferencial de processos historicos”, e passa a ser “um substituto da coisa perdida ela mesma”, pode tornar-se um fetiche.» Tal é particularmente arriscado quando, ao invés de 18 Hal Foster, “An Archival Impulse”, October, vol. 110 (autono 2004), pp. 4-5. 19 Dominick LaCapra, “History and Psychoanalysis", Critical inquiry, vol. 13.17 2 limvemo 1987), Reimpresso em Dominick LaCapra, Soundings in Critical Theory, Nova lorque: Cornell University Press, 1989, p. 55- 22 A FOTOGRAIEA EO ARQUIVO! TLORIA pRATICn utilizar a obra de arte como a plataforma sobre a qual constrdi uma espécie de meta-arquivo, como fazem Anctte Messager, liya Kabakov ¢ Christian Boltanski, o artista se limita a recolher a re-producado de uma selegao previamente coligida de material de arquivo (nesta categoria, enquadraria Hirschhorn, cuja obra me provoca uma antipatia concetual ¢ material quase visceral). Lamentavelmente, 0 ubiquo estado de espirito que poderiamos designar por “qualquer coisa serve” encoraja trabalhos. preguigosos a pendurar-se na boleia de estruturas concetuais interessantes, pois proporciona um meio especialmente tépido ¢ acolhedor para a culuura de narcisismos (¢ utilize aqui o termo “cultura” no sentido microbiano), Na discuss30 que apresenta deste fendmeno no ambito da arte site-specific, Miwon Kwon exprime-o com toda a clareza, numa formulagao que ¢ igualmente aplicavel as armadilhas com que se confrontam os artistas que se sentem tentades a documentar as suas proprias vidas: A orquestragio intricada de espagas literais e discursivos que perfazem uma narrative némada exige o artista qua narrador-protagonista, Ent alguns casos, este cnfogue renovado sobre o artista, em nome da auto- reflexividade autoral, conduz a uma implosdo hernivtica de exageros auto (biogrdficos) ¢ subjetives. Os riscos increntes av narcisismo ¢ 4 autocomplacéncia colocam de ha muito um problema a arte dos séculos XX ¢ XXI. ecu ousaria recomendar no sentido da necessidade de se prover auma forma de mediagio entre uma histéria contessional, pessoal, ea adaptagio desta sab a forma de arte de arquivo, ou de base documental, com todas as estratégias narrativas ou antinarrativas que esta expressio artistica possa chamar a si. 20 Miwon Kwon, One Place Afier Another: Site Spec Cambridge. MA: The MI is Art and Locational Hdentity, Press. 2004, p. 51. 23 A FOTOGRAFIA EO ARQUIVO: TEOREA BM PRATICA As utilizages e a transformagio de material fotogrifico documental, com carater de prova, em arte contemporinca, s¢jam estes materiais trabalhos anteriores do proprio artista (como em Marcel Duchamp), ou estruturas do mundo exterior (Bernd ¢ Hilla Becher, Hiroshi Sugimoto); sejam eles imagens que exploram a fronteira difusa entre 0 ficcional ¢ 0 histérico (Boltanski); ou, ainda, materiais que se posicionam como “agentes histéricos da memoria™ (Anselm Kiefer, Daniel Blaufuks), ¢ o tépico a que dedicarei o resto deste pequeno livro. 1 Okwui Enwezor, op. cit. p46. if [IEE bag ty et y ep Gp My by bd, A, iN) Pp tn hy Ny Ue hy, Gey, Gay Uy / en Minit ity, iy My yy hy Uy Gy, (i! Malfty iy Ne bis Wy Ge By Ue Ge Ge mE Vi Uy, Me Gee iy eG, Gg Hed : Wi i My iy Ne ET Gye Sy Vy ae MN Hin, VPN ME MY YG Lt DAE LD Gye yp tip Vi} LE MM DE TS GG, Pr a Ay Wy, “Ny, My, 4 4 “ 4 4 Wd ni My May i Wey i se WRAL i ti ty yy GGG / witht Mi A VIRAGEM ARQUIVISTICA: Pt CASOS-ESPECIME ‘if DA COLEGAO BERARDO lata oe "1 i nt i tt Mf Bane on SAM At i ey Hi i " ri Mae ae ‘a an eins _ ea ae y eae an a ae Mi ne . Ha i ee ae R 4 nh yee tet HE Li anny i a { uh itty Pinte Ate i Oe a Mian My, Hite init “iin nih iy Pe ees Megs hey Uy tint Aer Wty) Mh ht Hn He hfs fee ty eet any ilar ail} ¢ Leet Pa ey a ae i ey Wie a ETA et 4 yy i TE fy gy iia fy ttiaglt eer A VIRAGEM ARQUIVISTICA: CASOS-ESPECIME DA COLEGAO BERARDO O arquivo mével: o artista como caixeiro-viajante A descoberta de que Boite (Série C) [Caixa (série C)] (1958) [p. 61]. de Marcel Duchamp, integra a Colegao Berardo foi, para mim, um momento de screndipidade na escrita deste texto, pois esta obra ¢o popteredcica perfeite para dar inicio a uma exploracio pratica da viragem arquivistica na arte contemporanca. O arquivo totogratico, enquanto uma das formas principais (embora no a Unica) em que a produgio arquivistica tem sido explorada na arte, constitui a coluna vertebral de qualquer debate sobre a viragem arquivistica, A Boite en valise [Caixa em mala] (1935-1941) de Duchamp foi pensada como um compéndio abrangente, ou um antologia, das obras do artista em forma de reprodugio; tendo evoluido entre 1935 ¢ 1941, a edigio completa nao estava ainda finalizada aquando da morte de Duchamp, em 1968, emprestando um toque irénico ao conceito de “dilagio” que Duchamp gostava de explorar no seu trabalho. Esta obra é, poder-se-ia dizé-lo, uma edigao adiada de um album ¢ uma reprodugio arquivistica de um oximoro, um miltiplo original. A primeira edigdo consistiu numa mala de cabedal no interior da qual se encontravam, em cada caixa, réplicas miniaturais ¢ reprodugoes a cores de obras de Duchamp, ¢ um “original” em formato pequeno, ou, mais precisamente, uma cépia feita a mao de uma das obras de Duchamp. A Boite en valise congrega varias metaforas, todas elas pertinentes face ao desejo de Duchamp de deitar abaixo os mutos institucionais ¢ concetuais que delimitam a definigio de um objeto artistico e do criador desse objeto. Estas metaforas incluem a de necessaire (a nogdo de artista como alguém que define oscu proprio estilo ¢ se autopromove); a de “cai com a sua maleta de amostras (sendo a ideia de mostrudrio como arte - ¢ a concomitante exploragao da transformagao da arte em eiro-viajante”, 26 A VIRAGES ARQUIVISTICAs CASOS-ESPECIME DA COLEGAO MERARDO mercadoria” - particularmente presciente); ¢ a nogao de “muscu portatil” - uma colegao numa mala de viagem. “A miniaturizagao levada a cabo por Duchamp da totalidade da sua obra numa edigao de luxo de reprodugées organizadas ¢ codificadas num sistema de arquivo cum muscu movel”, observa Okwui Enwezor, ela argumentar que a ideia de Duchamp serviu de inspiragio 4 mineragao contemporanca do museu, nao apenas enquanto enquadramento institucional, mas também enquanto arquivo, um conccito que mereceu diversas exploragdes, em teoria da arte ¢ na pratica artistica, de finais dos anos de 1980 a primeira década do século XI. Todavia, este conceito tinha sido ja ensaiado de mancira mais surpreendente nas décadas de 1950 ¢ 1960, e rambém entio nos planos tedrico ¢ pritico: do Musée imagiuaire (1951) de André Malraux, passando pelos escritos de Leo Steinberg, pelas Sitkscreen Paintings de Robert Rauschenberg (1962-1964) e, ainda deste artista, o Centennial Certificate, Metropolitan Museum of Art (1969), ao Musée d'art moderne, département des aigles (1968) de Marcel Broodthaers ~ uma colegio de imagens fotograficas de dguias ¢ objetos associados, dispostos a-hierarquicamente, como num arquivo, ¢ em exposigio na casa do proprio artista, uma instalagdo que Rosalind Krauss considerou como tendo introduzido a “condigao de auséncia de medium” como fundagio subjacente a pritica artistica contemporanea.* 22 A transformagio d2 ane em mereadoria foi uma das preocupagdes centrais do artista belga Marcel liroodthaers na década de 1960. Cf Marcel Broodthacrs, “To Be Bien Pensant... ar Not To Be. To be Blind”, (trad. Paul Schmidt), October, 1.2 2 {outone 1987), p. 35, 33 Okwui Enwezar, op. cit..p. a4. 24 Gf Rosalind Krauss, “A Voyage on the North Sea": Ant in the Age of the Pust- Medium Condition, Londres: Thames & Hudson, 2000. 27 A VIRAGEM ARQUIVISTICA! CASOS-ESPECIME DA COLEGAG UERARDO Nao obstante a insisténcia quanto 4 especiticidade do medium em obras historicamente definidas como “modernistas” ¢ portadoras do selo de aprovacio de criticos formalistas americanos, em particular Clement Greenberg, pode afirmar-se que a erup¢io de uma crise nas artes bascadas em media remonta a Duchamp, pelo que, de um ponto de vista cronoldgico, pode ser vista como tendo acompanhado em curso paralelo a época de ouro do préprio modernismo. Em 1922, com a verve espirituosa que The era caracteristica, Duchamp. em respostaa um inquérito, escreve ao fotégrafo Alfred Stieglitz: “Sabe exatamente o que eu penso da fotografia. Gostaria que a fotogr; lesprezar a pintura, até que outra coisa qualquer venha.a tornar a fotografia insuportavel. E isto."« Desde cedo, ja em 1912, que Duchamp vinha langando clara e sistematicamente uma ofensiva contra a ideia do artista gua criador tinico ¢ individual, Mas, como 3 Botte valsealirma marerlalmente, na arena cultural em geral, esta ofensiva data, em boa verdade, de momento anterior, com a coincidéncia dos momentos fundadores do modernismo e a invengdo da fotografia. A fotografia arrastou consigo nao sé a perda da aura que ligava uma obra de arte ao toque autografico da mio de quem a criou (essa perda da aura celebremente formulada ¢ teorizada por Walter Benjamin no ensaio de 1936 “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”), mas também a ideia de reprodutibilidade infinita, tal que, mais tarde, nas obras de, por exemplo, Andy Warhol ou Richard Hamilton, encontramos a proliferagao de serigratias como reprodugées desprovidas de original. Oantece or imediato de Boite en valise de Duchamp é um arquivo anterior: La Mari¢e mise @ nu par ses célibataires, méme 35 Marcel Duchamp, The Essential Writings of Marcel Duchamp, (org. Michel Sanauillet ¢ Elmer Peterson), Londres: Thames & Hudson, 1975, p. 165. 28 A VIRAGEM ARQUIVISTICAT CASOS-ESPECIME DA COLEGAG DERARDO (Boite verte) [A noiva despida pelos seus celibatdrios, mesmo (Caixa verde)}, que Duchamp publicou em 1934. A produgio desta obra consistiu numa edigdo de 300 caixas revestidas de feltro verde, cada uma contendo noventa ¢ quatro notas soltas a propésito da evolugao da obra de Duchamp Le Grand verre (La Mariée mise a nu par ses célibataires, méme) [O grande vidro (A noiva despida pelos seus celibatarios, mesmo)] (1915-2923). Quanto ao receio de arrancar a pintura ¢ o desenho aos seus modos antigos de produgao manual - ea reveréncia destes pela marca artesanal manual c respetiva aura - ¢ comparando tal reveréncia com o impasse em que a escrita se achara antes de Gutenberg, Duchamp distinguia-se ja de outros criadores de publicacdes de pranchas impressas de artistas. Com a Boite verte, “entcamos num espago gutenberguiano de visio ¢ representacio” um espaco de reprodugio técnica, Duchamp. foi 3 > a 2 0, da qual viria novamente a fazer uso na Boite en valise. A Boite verte é, em suma, na sua esséncia, simultaneamente um Album de fotografias fac-similado ¢ um livro em formato de caixa arquivadora. Temos, portanto, livro enguanto produto ¢ conhecimento, mas também, ¢ significativamente, livro enquanto objeto, ¢ reprodugig ¢: : o “anti-arte”). Para Duchamp, ha apenas um pequeno passo concetual entre um dlbum/livro como este ¢ a Beite en valise como objeto fisico. 26 Areferéncia a Gutenberg vem de um comentario de Duchamp a André Breton, publicado em “Phare de la Marige”, Minotaur, n° 6 (inserna 1935). pp- 4549. citado por Sarat Maharaj, “A Monster of Veracity, a Crystalline Transubstamtiation’: translating the Green Box”, The Duchamp Effect, (org. Martha Buskirk ¢ Mignon Nixon), Cambridge. MA: The MIT Press, 1996, p. 61. 29 A VIRAGEM ARQUIVISTICA: CASOS-ESPECIME DA COLEGAO BERARDO Em 1935, pouco tempo volvido sobre a publicagio da Boite verte, Duchamp escreve a Katherine Dreier, mecenas das artes, dizendo que estava agora 2 pensar fazer um album de aproximadamente todas as coisas que tinha produzido até entdo.” A ironia reside, claro, no facto de, ao incluir uma “cépia original” na edigdo de luxo da Boite en valise - um item “de carter altamente pessoal destinado ao proprictario daquela caixa” - Duchamp estar, muladamente, a preterir o album ¢ a reclamar o papel de artista qua criador, muito embora, 4 época, a Boite en valise tivesse sido “liminarmente rejeitada enquanto ‘objeto de arte’ e, em boa verdade, até mesmo encarada como prova de que [Duchamp] cessara de ser um artista”. A Boite en valise é, cletivamente, um arquivo da obra de Duchamp; arquivo enquanto elaboragio mimética ¢ arquivo enquanto ferramenta mneménica. Na qualidade de cépia miniatural de tudo 0 que tinha feito, Boite en valise é uma espécic de curriculum vitae material. Enwezor vé, porém, na Boite en vatise de Duchamp algo mais do que isto: uma materializagio da nogio de Michel Foucault segundo a qual o arquivo faz a mediagio entre tradigdo ¢ esquecimento. A explanagio de Foucault sobre © modo como 0 arquivo podera alcangar esta mediagio nao é, previsivelmente, aquela que podemos obter a partir de nogécs empiricas de arquivo enquanto lugar de armazenamento ¢ conservagao, Enwezor, lendo o arquivo duchampiano a luz de Foucault, vé a Boite en valise como algo que revela, ndo tanto os contetidos desse CV, mas as regras que presidem 4 produgia desses contetidos: “as regras de uma pratica que possibilita a enunciados néo s6 sobreviverem, como estarem sujeitos a alteragao periddica. E [o arquivo] o sistema geral de formagio e Cf Dawn Ades, Neil Coxe David Hopkins, Marcel Duchanip, Londres: Thames and Hudson, 1999, p. 175. So Ibid. pare. 30 A VIRAGEM ARQUIVISTICA! CASOS-ESPLCIME DA COLEGAO RERARDO transformagéo de enunciadas”.» a “formagio e wansformagio de enunciados” que desloca 0 arquivo da mimese para a construgio simbélica. As observagdes de Foucault sobre 0 arquivo sao significativamente possibilitadoras, fazendo deste algo mais dindmico do que o descrito nas definigées positivistas que véem 0 arquivo como um receticulo passivo de factos histéricos “meramente” documentados. Um ponto crucial ¢ a di e sistema, uma distingao de utilidade para a compreensio da viragem arquivistica na arte de Duchamp em diante, Quando se trata de classificar o conhecimento, diz-nos Foucault que “sé pode haver um método; mas ¢ possivel inventar ¢ aplicar um nimero consideravel de sistemas”, O método “transcreve a percegao sob a forma de discurso" ¢ é. no ponto de partida, “muito préxsimo da descricao; mas é sempre possivel aplicar ao cariter geral que definiu empiricamence quaisquer modificagdes que venham a ser necessarias”. Jd o sistema é “arbitririo ao longo do scu desenvolvimento, mas, uma vez definido o sistema de variaveis - o carter - no inicio, deixa de ser possivel alterd-lo”. + Isto é crucial: 0 sistema pode ser excéntrica ou idiossincraticamente definido, carecendo apenas de ter coeréncia intema, de ser autoconsistente. Nesta acegio, o arquivo nao é simplesmente recctivo; nao ¢ meramente um repositério, uma arrecadagio para consulta futura. , ao invés, uma forma sistemiatica de agrupar ativamente itens “de acordo com relagdes multiplas’ desempenhando um papel significative na prépria constituigao Gio de Foucault entre métado 29 Michel Foucault, The Archucalogy of Knowledge and the Discourse on Language, (trad. A. M. Sheridan Smith), Nova lorque: Pantheon Hooks, 1973, p. 129. Em itslico no original. 30 Michel Foucault, The Onder of Things: An Archacology ofthe Hunan Sciences, (urad. A.M. Sheridan Smith), Londres: Tavistock Publications, 1970. Reimpresso cm 1989, peli. 31 Michel Foucault, Tie -Urchacology of Knonledge, lec. cit. 3 A VIRAGEM ARQUIVISTICA: CASOS-ESPECIME DA COLEGAO BERAKDO do método, Reconhecendo o facto importante de todos os arquivos conterem um contra-arquivo fantasma de lixo, coisas que omitiram ou que deitaram fora, Sven Spicker di-lo de modo claro e conciso: (A] gretha eo seu lixo, 0 arquivo ¢ 0 que este armazena, emergem ao mesmo tempo, tal gue se torna dificil separar um do outro. Neste arquivo, os objetos guardados ¢ os princtpios segundo os quais se organizam ndo sdo imunes, nem ao tempo, nem a presenga do espetador. O arquivo, que nunca éexatamente o mesmo, oscila entre materializagdo ¢ desmaterializacao, camposigdo e decomposigdo, organizagdo ¢ cans. * A dctinigdo reciproca de objetos preservados ¢ objetos exeluidos com os principios que regem a sistematizagio desse armazenamento é ensaiada de outra mancira na obra do duo alem§o Bernd ¢ Hilla Becher. O arquivo de estruturas anénimas Ao longo de cinquenta anos, Bernd ¢ Hilla Becher fotografaram - assiduamente, sistematicamente, ¢ com realismo cru determinado em despojar as obras de qualquer trago de subjetividade - centenas de estruturas da era industrial. Algures entre arquitetura ¢ design industrial, estas estruturas incluem pogos de extragdo de minério, compressores, torres hiperboldides, reservatérios de gis, altos-fornos, fornos de cal, fabricas de gravilha, silos de armazenamento, elevadores de cereais, e muito mais. Watertowers [Torres de 4gua] (1988) [p. 65] funciona como uma subcategoria - porventura um pequeno fichciro — neste arquivo enciclopédico. 32 Sven Spieker, The Big Arc ‘The MIT Press, 2008, p. si Art from Bureauctscy, Cambridge, MA: A VIRAGEM ARQUIVISTICA: CASOS-ESPECIME DA COLEGAQ BERARDO Um arquivo como este ajusta-se na perfeicao ao conccito de tipologia dos préprios Becher - uma grelha concetual aposta a uma colegio de itens semelhantes pertencentes a um mesmo dominio - com tudo o que um tal método tem também de anacrénico ¢ de obsolescéncia inerente: a inovagao de hoje ¢ aruina do amanha. Isto porque um arquivo deste tipo nio é apenas um espago de armazenamento racional, que oferece a possibilidade de recuperagaes fucuras; tal como nao é, simplesmente, a evidéncia probatéria de um impulso para oconhecimento (a organizagao concetual/taxondmica que assiste a, por exemplo, Systema Naturae de Car] Linnaeus, ou a Kosmos de Alexander von Humboldt); ¢ também, a um tempo, 0 panegirico a, ¢ 0 cemitério da, razdo burocratica. Na obra dos Becher, a promessa de progresso do Iluminismo é langada contra os acontecimentos catastréficos da histéria alema, sendo a questéo a de saber como falar de modernizagio na Alemanha sem que o debate seja suplantado pela idcologia do nazismo ¢ pelas “teenologias através das quais [o nazismo) fez o seu apelo utépico”» - uma catastrofe cuja meméria era simultancamente inextricdvel do, ¢ reprimida no, perioda em que o métade de trabalho dos Becher se desenvolveu, Facto bem conhecido, Alexander ¢ Margarete Mitscherlich publicam em 1967 0 ensaio revoluciondrio Die Unfithigheit zu trauern [A incapacidade para o luto), que se apresenta como meditagio sobre a evasio da histéria manifestada pela populagao da Republica Federal Alemi nas décadas de 1950 ¢ 1960, uma rasura do passado nazi, e um fracasso coletivo do Trauerarbeit, a expressio com que Freud designa o trabalho de luto, por meio do qual as feridas provocadas por trauma, perda ¢ culpa poderao 3. Eric Santner, Stranded Objects: Mourning, Memory, and Eilat in Postwar Germany, Ithaca ¢ Londres: Cornell University Press, 1990, p.133- 33 A VIRAGEM ARQUIVESTICA: CASOS-ESPECIME DA COLECAO BERARDO ser saradas. Como assinala o historiador da cultura Eric Santner, surge, a partir da publicagao do livro dos Mitscherlich, um corpus de discursos criticos nos quais se abordam questdes relacionadas com o luto ptiblico, Santner esta aqui a pensar, em concreto, “[n]Ja retérica do luto que veio a ocupar o campo semantico de muitissima teoria critica” na segunda metade dos anos de 1980 cem inicios de 1990. Esta retérica veio também a permear os trabalhos de artistas que exploravam as bases morais e historicas das suas préprias culturas. Apresenta-se com alguma ironia na obra do artista russo Ilya Kabakov, com profunda ressonancia metaférica na obra da escultora cotombiana Doris Salcedo ¢ - como veremos - constitui a espinha dorsal por exceléncia da obra do artista francés Christian Boltanski. As questées enfrentadas pelos alemies do pés-guerra, que procuravam fazer sentido da sua propria historia, também Uveram impacto nas metodologias utilizadas na disciplina da historia em termos mais gerais. Como observa Anson Rabinbach, uma das tarefas que os historiadores alemaes chamaram a si na década de 1960 foi a de “identificar de que modo certos passados metaféricos poderiam ser catexizados para acontecimentos contemporaneos”™. Ao usar o termo freudiano “catexe”, Rabinbach esta aqui a referir-se Aquela forma de conexéo libidinal ~ aquele desejo - que nos impele a querer saber o passado, a compreender como este continua a subsistir na contemporancidade. Somos, uma vez mais, lembrados de como a questao das temporalidades ¢ suas complexas projegdes reciprocas se desenvolvem no constructo do arquivistico. A questao de saber como pode o passado ser “catexizado” para acontecimentos contemporineos funda o perseverante projeto M oMbid, p.7. 35. Anson Rabinbach, “Response to Karcn Brecht, ‘In the Aftermath of Nazi Germany: Alexander Mitscherlich and Psychoanalysis - Legend and Legacy, American Imago, vol. 52, n. 3 (outono 1995), pp. 322-323. 4 A VERAGEM ARQUIVISTICAS CASOS-ESPRCIME DA COLEGAO BERARDO dos Bechers, pois subjaz a este projeto uma interrogagao quanto a relagao entre continuidade ¢ rutura, ¢ uma exploragio das promessas - ¢ do esvanecer dessas promessas 4 luz de outras, novas - que 0 progresso encerra para a indhistria ¢ a tecnologia. Trabalhando em conjunto até a morte de Bernd em 2007, os Becher iniciaram a sua colaboragio em 1958. comegando como fordgrafos freelancers documentais de cdificios industriais modernos ¢ de fabricas antigas. Embora também fotografassem cada edificio no contexto global do espago em que este estava implantado, os seus trabalhos mais conhecidos consistem cm centenas de disposigdes em gretha de fotografias a preto ¢ branco de estruturas individuais, cada qual centrada na sua moldura, tal como se apresentaria um retrato convencional de uma pessoa, ¢ captadas em plano frontal. Além disto, é-nos fornecida uma escala semelhante para cada fotografia, o que resulta na obliterag3o do ramanho relativo de cada edificia e, ipso facto, na obliteragio de um conjunto de coordenadas contextuais informativas. Trata-se, pois, de uma série em aberto de estruturas representadas com declarada Sachlichkeit [Objetividade] - estruturas diferentes, ¢ ainda assim semelhantes; nao idénticas, ¢ ainda assim uniformes. O arranjo “cientifico” global destas impressdes fotograficas estdé em linha com a produgao serial do minimalismo, mas também se alga aos protocolos procedimentais da arte concetual, da qual os Becher tém side proclamados como precursores. A obra destes artistas existe, assim, como sendo “tanto uma pré-histéria a muita da serialidade fotogrifica critica que dominou o concetualismo dos anos de 1960 ¢ 1970, como um posfacio infinito a esse periodo”.~ Em resultado disto, os 36 Sarah &, James. “Subject, Object. Mimesis: The Aesthetic World of the Bechers’ Photography”. Photography After Conceptual Art, (org, Diarmusid Costello e Margaret Iversen), Oxford: Hlackwull Publishing, 2010, p. $5. 35 A VIRAGEM ARQUIVISTICA? CASOS-ESTECIME DA COLEGAO DERARDO Becher tornaram-s¢ idolos ¢ icones para uma geragio de artistas mais jovens, entre eles os fotégrafos alemaes realistas, chamados “abjetivos”, por vezes coletivamente conhecidos como Strufsky: Thomas Struth, Thomas Rut? ¢ Andreas Gursky - e haveria ainda que incluir aqui o arquivo espantoso ¢ estetizado de grandiosos interiores arquiteténicos produzido por Candida Hofer. Oestilo impessoal, documental, dos Becher ressoou na psique nacional na Alemanha pela sua articulagao singular entre passado, presente ¢ futuro, numa altura em que os alemes, soporificamente incapazes de formar uma imagem positiva de si prprios, deram por si imobilizados entre a impossibilidade do subjetivismo ¢ a impossibilidade do estetismo (o tabu pés-Auschwitz, pos-Adorno, da beleza). Os Becher acolheram o fracasso ~ ou desmoronamento da possibilidade - da representagao simbolica através do seu distanciamento, posicionando-se, a um tempo, quer contra o universalismo humanista de Edward Steichen, quer contra o realismo-alienagio, mais esquilido, da série The Americans [Os americanos] (1955-1956) de Robert Frank. O fordgrafo alemao August Sander, que havia compilado um arquivo enciclopédico — um retrato de conjunto (mais de 600 fotografias) da sociedade alema - Menschen des 20. Jahrhunderts [Pessoas do século XX] (uma primeira scegio deste trabalho foi apresentada ao publico em 1927), poderd ser considcrado um precursor, pois os Becher partilham com Sander 0 fascinio pelo efeito de imperturbabilidade da taxonomia. No seu projeto, um atlas social da figura humana - um “atlas de exercicio” (Obungsatlas), como Ihe chamou Walter Benjamin - Sander estabelece uma série de tipologias, que se pode argumentar ser mais sensivel ao género da pintura retratista da Neue Sachlichkeit [Nova objetividade] que emergira durante a Republica de Weimar, do que as nuances da historia. A VIRAGEM ARQUIVISTICA: CASOS-ESPECEME DA COLEGAO BERARDO Na deserigdo sucinta de Sven Spicker: o arquivo de retratos fotograficos de Sander “de feigdo afim a da pintura de retrato, resolve a tensio entre especificidade histérica ¢ universalidade tipoldgica”. O objetivo dos Becher era semelhante, embora desprovido de presenga humana: criar aquilo a que chamaram “familias de motivos” ou “familias de objetos”, com o humanismo da “familia do Homem” de Steichen* removido da formulagio. A ideia era propor um sistema de classificagao, uma taxonomia, de formas industriais. “Os Becher estao interessados no carater implicito de uma fachada tal como Sander estava interessado no carater implicito de um rosto”, escreve Donald Kuspit. embora acrescente, em nota critica: “Nao consigo deixar de ver estas fotografias como monumentos macabros 4 autodistorgio humana, em nome da razao social - estruturas demasiado humanas que sao ridiculamente sociais”.” Em lugar de uma critica do dano colateral infligido pela promessa Iuminista da razdo -— a incineragao dessa promessa, digamos assim, em Auschwitz - Kuspit sugere que o proprio trabalho dos Becher acaba por ser vitima da htibris de uma cultura de controlo, hiperbolizada pelo projeto do Huminismo - o otimismo acabado ante a crenga na verdade, na racionalidade ¢ no dominio da natureza. Kuspit aponta aqui também para um dos problemas colocados pelos usos da fotografia na arte: entre a ideia do valor auténomo 37. Sven Spicker, op. cit. p.135 38 O fordgrato Edward Steichen viu come o culminar da sua carreira a curadoria da exposigao The Family of Man (A familia do homem| no Museu de Arte Moderna de Nova lorque em 19 ligindo ¢ agrupando tematicamente 503 totogratias segundo topicos universais que ligam as pessoas umas as outras a despeito das diferengas culturais; temas como as criangas,o amor, ¢ a morte. Concluida a sua exibigdo inaugural, a exposigae prosseguiu a sua miso idcoldgica, correndo mundo. durante oite anos. 39 Donald Kuspit, cm Artforum, vol. 28 (abril 1990), p. 170. 37 A VIRAGEM ARQUIVISTICA? CASOS-ESPECIME DA COLEGAD BERARDO da arte ¢ a capacidade da forogratia para registar valor social ¢ histérico, o recurso a fotogratia por artistas concctuais implica uma posig4o periclitante ¢ amide ambivalente. Poder-se-ia argumentar que a fungio “arqueoldgica” ou “historica” das fotografias dos Becher resulta mais de uma acio de marketing do que das intengdes dos artistas: nos retratos de cdificios enquanto “esculturas anénimas” (a expressio ¢ dos proprios Becher), ndo hi qualquer andlise de contexto sociopolitico ou geografico; nao se retratam trabalhadores, ou condigées laborais; tampouco s¢ retrata qualquer produto. Sc existe alguma atengao autoconsciente 4 histéria - 0 facto de os Becher se centrarem em paises que davam entao os primei passos na industrializagio nao pode ser, nem impremeditado, nem fruto do acaso - a missio dominante, assumida, do trabalho que cfetuam é, como eles préprios declaram, a de uma dedicagio a tipologia. Esta tipologia é, sem diivida, tanto funcional como formal, ¢ é uma tipologia que sublinha a modernizagio per se, conquanto o faga em termos deveras abstratos - dir-se-ia mesmo, ousando, em termos estéticas. (Neste aspeto, difere fundamentalmente do anti-estetismo da arte concetual.) Assim, quando questionados sobre o porqué de a sua obra ser exibida em contesto artistico, ao invés de disponibilizada em arquivos publicos para efeitos de investigagio, responderam: “[nJa verdade, oferecemo-la ao governo, mas cles nao estavam interessados. O trabalho é sobre apreciagées visuais, logo, é natural que seja mostrado em galerias de arte”.« A historia 40 Citado em Angela Graucrholz ¢ Anne Ramsden, “Photographing Industrial Architecture: An Interview with Hilla and Bernd Becher”, Parachute, 32, 198t, p18, Ver tambein Blake Stimson, “The Photographic Camportment of Berd. and Hilla Becher”, Tate Papers, hutp://Awww tate orguk/research/tateresearch/ tatepaperv/ogspring/stimson_paperhtmeedny (consultado 217 de outubro de 2011.) AVIRAGEM ARQUIVISTI Ao BERARDO industrial no trabalho destes artistas vai gradualmente cedendo terreno 4 afinidade formal: a coberto do modelo de arquivo, a obra fotogratica dos Becher relega a informagao taxonémica (independentemente de quio obsoleta possa vir um dia a provar- -se ser) oferecida por abordagens de jaez semelhante nas ciéncias naturais, representando visualmente, nao conhecimento, mas 0 poder cumulative de um anonimato desolador. Uma reliquia metonimica e objetos de atengao intimamente profusa Pretendo cotejar a obra dos Becher com a de outros dois artistas representados na Colegio Berardo: em primeiro lugar, ¢ enquanto forma distinta de exploragdo da relagio de uma gerago mais nova de alemes com o contexto manchado da historicidade alema, Elisabeth von Osterreich (1991), de Anselm Kiefer; em segundo lugar, com um uso muito diferente da serialidade, o grupo de quatro fotografias de cinemas de drive-in americanos (1993-1994). parte de uma série mais alargada do artista japonés Hiroshi Sugimoto. Elisabeth von Osterreich (Isabel da Austria} [pp. 68-69]. de Kiefer, configura a excegio 4 linha expositiva que escolhi apresentar neste ensaio, pois nio constitui um caso de adesio 20s preceitos do arquivo, nao pe em causa esses preceitos, mas partilha com a viragem arquivistica a obsessio pela protegio dos vestigios fisicos, numa tentativa de esconjurar 0 esquecimento. Todavia, o vestigio de Kiefer nao ¢ propriamente uma marca, antes uma reliquia metonimica, convidando a uma contemplacao, se ndo mesmo a uma devogio, desconfortavel. A imperatriz Isabel da Austria era celebremente conhecida no seu tempo pela sua inacreditavel magreza, pelos excessivos regimes de dicta e de exercicio fisico, ¢ pelo habito de usar corpetes muito 39 A VIRAGEM ARQUIVISTICA! CASOS-ESPECIME DA COLEGAD BERARDO apertados com o intuito de acentuar ainda mais a sua esguia figura. Era ainda conhecida pelo cabelo suntuoso, comprido ¢ entrangado, cujo pentear ¢ adornar era o ritual mais 4rduo c claborado da sua toilette. Aqui, 0 narcisismo da imperatriz, 0 culto quase religioso do corpo ao qual se devotava, ¢ representado, ¢m jeito de analogia com o relicario de um santo, por um tufo emaranhado de cabelo preto, Este ufo de cabelo esta preso a placas de chumbo toscamente afixadas a uma prancha de madcira. O efcito geral, comum a toda a obra de Kicter, 60 de uma superticie sofrida, com materiais ragosos ¢ sovados que figuram a corrosao e a desintegragao resultante da exposigio prolongada aos elementos, A ideia de uma “historia natural da destruigdo” éum elemento tio constitutivo da obra de Kiefer como da de W. G. Sebald, manifestando-se no s6 na imagem, como também na matcrialidade da obra, no uso que faz de materiais carregados de conotagio alegérica: palha, cinza, chumbo, estopa, areia. Onde a obra dos Becher é contida ¢ seca, a de Kiefer é ostensiva ¢ bombistica, agredindo o observador com a sua escala brutal ¢ feigao agressiva. Acresce a isto que Kiefer nunca abjura uma celebragao romantica (¢, poder-se-4 argumentar, germanica) da figura do artista enquanto herdi. Nao é partidario da ironia incidental, nem do discretamente intima: o gesto delicado, © pormenor tocante, sao coisas que lhe sio alheias. Em vez disto, a obra de Kiefer verte a pintura histérica oitocentista num épico p6s-Holocausto. Os seus primeiros trabalhos (em especial a série Besetzungen [Ocupagoes], de 1969, em que Kiefer se coloca em vastas paisagens ou em espacos de arquitetura monumental, fazendo, a dada altura, a saudagao Heil Hitler) incorporam a fovografia. Com efeito, e como sucedeu com Gerhard Richter, acarreira de Kiefer comegou com um didlogo com as praticas fotoconcetualistas dos anos de 1960. No entanto, a utilizagdo que faz da fotogratia ¢ a antitese do estilo documental acarinhado 40 A ViRAGEM ARQUIVESTH CASOS-ESPECIME DA COLEGAO UERARDO pelos artistas concetuais; ¢, como sustentam alguns. Lio “antifovografica” quanto a utilizagao que faz de materiais nao pict6ricos (palha, terra, cabelo, cinza) é antipintura, pois “Kiefer trata consistentemente a fotografia como um hibrido”, o Gnico instrumento de representagio que, na Alemanha pds-Holocausto, “estd tio desacreditada quanto a pintura”.« Em linha com o seu romantismo, Kiefer manteve-se fiel 4 sua atragdo por determinadas figuras femininas ~ personagens biblicas, miticas ¢ historicas: Lilich, Sulamith, Brunilde, isis, Osiris, Berenice, entre outras, Isabel da Austria, a mulher do Imperador Francisco José, é lagada na trama da iconografia de uma Deutschland tragica e arrependida, da qual constituem exemplos anteriores as pinturas calcinadas ¢ sufacantes de Kiefer de inicios da década de 1980, que aludem ao poema do campo de concentragio do poeta romeno Paul Celan, Todesfuge [Fuga da morte] (1945). Neste poema célebre, louras madeixas arianas sio contrastadas com os cabelos de cinza - os cabelos carbonizadas - da judia Sulamith: “a morte é um mestre que veio da Alemanha azuis sio os teus olhs [...] os teus cabelos de oiro Margarete / os teus cabclos de cinza Sulamith’.« A wilizagao da cinza como material na obra de Kiefer comunga de uma poética de retratagio que atravessa uma geragao de alemaes: Kiefer nasceu em 1945, ¢ ambos os Becher nasceram antes de a Guerra ter inicio, Bernd em 1931, ¢ Hilla em 1934. ‘Femos aqui, portanta, num movimento de contrigio lancinante, uma ofensiva violenta contra a amnésia € contra 0 bom gosto; temos aqui um movimento de anamnese, o dragar dos escombros de um passado censurado ¢ obliterado, 0 desejo gi Hat Foster, Rosalind Krauss, Yve-Alain Bois ¢ Benjamin Buchloh, -Ar Since tguo, Londres: Thames & Hudson, 2003, p. 615. 42 Paul Cetan, Sete rosas mais tante. Antologia portica, edigdo bilingue, (sel. trad. Joao Barrento ¢ VK. Centeno), Lisboa: Edigdes Cotavia, 1993. 1996, pp. 17- hotas 8, yi A VIRAGEM ARQUIVISTICA: CASOS-ESPECIME DA COLEGAO BERARDO. de relembrar ¢ de se arrepender por o que uma geragao anterior havia esquecido ou recalcado. Falar pois de retratacao ou de anamnese é também, todavia, tomar partido por uma das fagdes da dolorosa cisao que a obra de Kiefer causara. Muito embora tenham sido, desde cedo, adquiridas por colecionadores judeus ¢ israclitas, as obras de Kiefer foram inicialmente recebidas com siléncio na atmosfera embaragosa da sua Alemanha natal, onde a sua reticéncia quanto as atividades de seu pai durante a Il Guerra Mundial ¢ o seu uso de imagética nazi foram vistos por alguns como apologias, como expressées de nostalgia pelo passado nazi. Outros, porém, viram na obra de Kiefer um regresso expiatorio, por assim dizer, a cena do crime. Como no filme Hitler, ein Film aus Deutschland (Hitler, um filme da Alemanha] (1977), de Hans Jiirgen Syberberg, a retorica dramatica de Kiefer patenteia contra o siléncio que amortalha o Holocausto junto daquela geragao anterior de alemaes discutida por Alexander ¢ Margarete Mitscherlich. Pode pois argumentar-se que a obra de Kiefer estragalha tabus ao invocar retérica ¢ histrionicamente os fantasmas do passado histérico alemao, no com o intuito de os transtormar em herdis, mas dando corpo a uma tentativa necessdria de “franquear o sistema repressive que a cultura alema tinha interiorizado c imposto a si mesma no periodo do pés- -guerra™.« Em Margarethe (1981), o nome da heroina de Goethe é escrevinhado a preto sobre a superficie. A palha invoca metonimicamente os podcrosos sentimentos despertados pela imagem de “a terra” na historia alema. Dito isto, representa também metaforicamente os cabelos de oiro da rapariga ariana. Mechas de palha enrolam-se em espiral ascendente como fumo evolando-se das chamas individuai velas votivas ¢ as chaminés industriais dos fornos dos campos simultaneamente 43. Foster, Krauss, Bois ¢ Buchloh, foc ct 42 A VERAGEM ARQUIVISTICAS CASOS-ESPECEME DA COLECAO HERARDO de exterminio. No contexto do desejo de Kiefer de exumar as ligagdes entre mitos ¢ histéria - em bom rigor, de denunciar o mito da histéria -, uma mecha de cabelo emaranhado (de Margarethe ou da Imperatriz Isabel) também nao esta muito longe dos amontoados de cabelo tosquiado descobertos em Auschwitz. Asemelhanga da obra dos Becher, embora de forma sobremaneira mais ébvia do que nos trabalhos destes, a de Kiefer tem de ser vista a luz do seu carter histérico especificamente alemo. Se a minha inclusao deste artista na presente exploragao do arquivo na arte contemporanea se afigura exagerada ou deslocada, a justificacao que Ihe assiste prende-se com o facto de o papel do testemunho no trabalho de Kiefer lidar com os temas de meméria ¢ perda que subjazem as obras de inspirago arquivistica. Neste contexto, olharemos dentro em breve para os trabalhos de Daniel Blaufuks ¢ de Christian Boltanski. Mas antes, e tendo ainda os Becher presentes: a séri¢ de quatro fotografias a preto ¢ branco de ecras de cinema de drive-in amcricanos, elaboradas pelo artista japonés Hiroshi Sugimoto (Southbay Drive In, San Diego: Stadium Drive In, Orange; e Studio Drive In, Culder City, 1993; ¢ Compton Drive In, 1994) {pp. 70-71) é, 4 primeira vista, um ensaio que se inscreve num dominio de tipologia semelhante ao explorado pelos Becher. Contudo, enquanto o ambito enciclopédico de estruturas dispostas em grelha dos ultimos, com imagens de dimensao consideravelmente reduzida, permite ao observador experimentar similitude € diferenga, a opgao de Sugimoto pelo maior formato possivel em que a claridade nao perde para 0 gréo encerra uma tentativa de recrutar, no observador, um desejo de detalhe. Mais do que isto, os formatos de grande dimensio sio pensados de modo a imergir 0 observador numa ambiéncia magicamente iluminada e indelevelmente irreal. A decisio de produzir cada imagem 4B A VIRAGEM ARQUIVESTICA: CASOS-ESPECEME DA COLEGAO BERARDO como um artefacto isolado ¢ requintadamente impresso, em escala maior do que a usada nas imagens de tipo documental que vemos nas grelhas dos Becher, verte estas fotografias num outro tipo de molde arquivistico: vazias de presenga humana visivel, sao saturadas por uma estranheza e melancolia sensivcis. O pormenor, conquanto suavizado ¢ quase pictérico, ¢ essencial por outra razio ainda: ao partilhar com a escultura ¢ a pintura minimal uma obsess4o pela reiteragdo (motives quase idénticos, fotografados vezes sem conta), Sugimoto compreende que é através da repetigao do aparentemente semelhante que a atengio do observador se aguga para a nuance da diferenga. A necessidade de abrandar o ritmo de observagao, pondo a descoberto o funcionamento da nossa visio, ¢ posta ao servico de uma das principais preocupagdes subjacentes 4 obra de Sugimoto: um compromisso com o tempo, a passagem deste ¢ os meios subjetivos de o expericnciar ¢ registar. Em si mesma (ainda que, atualmente, ja s6 no plano tedrico) vestigio de um momento perdido. a fotografia tem sido sempre um veiculo potente para a meditagio sobre o temporal. Os Dioramas de Sugimoto sio imagens de “natureza”representadas através do artificio de cenas montadas em museus de historia natural. Cada cena, desde logo, ¢ inerentemente, material de arquivo, é um constructo sintético ¢ compactado que representa mudangas que Ocorrem, porventura no decurso de milénios, 4 vida selvagem de uma determinada area geogrifica. Ocorre uma compressio semelhante nos Wax Museums (Museus de cera] deste mesmo artista, que representam relagdes de hierarquia social (seculares, religiosas, politicas, criminais) através de dramatizagées encenadas de simulacros. Enquanto tableaux, tanto os Dioramas como os Wax Museums mimetizam a fungio da fotografia, pois, na verosimilitude das cenas construidas, dio a ilusio de capturar um momento, tio ficcional na sua destilagdo, como convincente na sua imobilidade. 44 A VIRAGEM ARQUIVESTICA: CASOS-ESPECIME DA COLEGAD BERARNO Na sua fixidade, os objetos perfilados nestes escaparates de museus sugerem, nao vida, mas morte: para sempre estaticas, para sempre embalsamadas num estado de potencial perpétuo, mas jamais realizavel. E, a0 captar estas imagens, as fotografias de Sugimoto aludem 4 fragil distingdo entre o transitério ¢ 0 permanente, conservando ambos em gelatina mneménica. Pode portanto dizer-se das fotografias de Sugimoto que hiperbolizam, no seu conterfdo, o carater indexativo da fotografia como medi: “Nao quero nenhuma imagem humana nas minhas forogratias”, disse; “as pessoas estao presentcs através das marcas que deixam ficar para tras”.« Os ecris em branco dos drive-ins, tal como os da sua série anterior de salas de cinema antigas, apresentam-se banhados em pura luz, resplandecendo, quase como miragens, sobre o manto de escuridio que os envolve. Este claro é, contudo, o resultado de uma acumulagio, ¢ nio de uma extragio ou apagamento, Isto porque Sugimoto ajustou o tempo de exposigao da sua maquina a duragio total de cada filme, chegando ao ecra branco final através da agregagao da luz entrada na maquina. Como o tempo comprimido dos Dioramas. a exposicio longa contrai e condensa o tempo, sendo que o que nos é dado na superficie aparentemente vazia € a projegio ficticia do filme no seu todo. Captando toda esta duragao, o artista deixa- -nos, nio obstante, com uma impressdo de auséncia. Otrabalho de Sugimoto, como o dos Becher, combina aestética de despojamento do minimalismo com o rigor de procedimento da arte concetual. No entanto, ha para Sugimoto uma sensagao mais intensa de emogio catexizada para os objetos, sobre a qual o fotégrafo escotheu prodigalizar a sua atengao. O enfoque no contetida, nas obras, bem assim como 44 Hiroshi Sugimoto in Helena Tatay Huici, “A Conversation with Hiroshi Sugimeto”, Hiroshi Sugimoto, Lisboa; Centro Cultural de Helém, 1998, p. 16. 45 A VERAGEM ARQUIVISTICA: CASOS-ESPECIME DA COLECAO HERARDO nas carateristicas de produgao ¢ de exposigio das mesmas, revela que o artista explora uma scnsagao indelével ¢ intensa de perda, captada com a dignidade ¢ a quietude do classicismo puro. Com os Drive Ins, Sugimoto discretamente colige ¢ langa luz sobre objetos no momento em que estes se tornam obsolescentes: em 1958, existiam mais de 4000 ecris de drive-in nos Estados Unidos da América; 4 data em que Sugimoto tirou estas fotografias, havia apenas 837 ecras de drive-in ainda em funcionamento,« ¢, se pudermos fazer fé na informacio prestada pela Wikipedia, subsistem hoje, em 2011, apenas 4oo. Sugimoto imobiliza ¢ preserva tanto o devir da vida como o das representagées desta (telas de projegdo de cinema; os arranjos miméticos, paralisados, de histéria natural; museus de cera) num mundo de aparéncias, teatral, e ainda assim imével. Fazendo-o, Sugimoto capta, por assim dizer, os ready-mades da historia; ou, Por outras palavras, um espago onde natureza, cultura c histéria colidem em tableaux de desconcertante imobilidade - uma indubitabilidade aparentemente inalteravel. O arquivo de conhecimente intimo e histérico Centrando-me num conjunto restrito de obras escolhidas, procurei mostrar como a viragem arquivistica na arte contemporanea ilumina determinadas carateristicas da promessa arquivista ~ a didiva que o conccito de arquivo parece encerrar. Destas, sublinhei duas em particular. A primeira é um impulso mneménico bascado na mimese e numa crenga positiva na plenitude e transparéncia do testemunho empirico; dito de outra cs, “Still Showing life in the heart of America. Drive-In Theatres", The New York Times (19 de julho de 1994}, citado por Peter Hay Halper, “The Blank Screens of Hiroshi Sugimoto”, Hiroshi Sugimoto, ibid., p. 22. 46 A VIRAGEM ARQUINISTI CASOS-ESPECIME DA COLECAD RERARDO mancira, um impulso para recolher ¢ proteger fragmentos de testemunho histérico contra uma maré de esquecimento. A segunda éa (é num sistema taxonémico, num instrumento de sistematizagio, sujeitando o potencialmente nostalgico, ouo aleatoriamente recolhido/recordado, 4 razio burocratica. A inclusio conjunta de Marcel Duchamp ¢ de Anselm Kiefer - diferentes como agua c vinho, como soi dizer-se - langa luz sobre o modo como, em obras de arte de pulsio arquivistica, Os materiais sio dispostos “numa matriz de citagio ¢ justaposicio”.“ A prépria indiferenga do arquivo face a itens respigados da esfera publica ou privada fez dele um terreno particularmente fértil para exploragdes metalGricas - na arte (Ilya Kabakov, Georges Adeagbo, Susan Hiller, Hanne Darboven), como na literatura (Georges Perec, W. G. Sebald, Dubravka Ugresic, Orhan Pamuk). Nos objetos efémeras ¢ negligenciados, estas duas ‘as entrelagam-se; objetos triviais que se guardam como recordagio, por exemplo um bilhete de comboio, fazem a ponte entre sistemas publics (os caminhos-de-ferro), estilos de design grifico que se tornam mais tarde obsoletos, ¢ a experiéncia pessoal de passagem ou exilio. Formularios, documentos ¢ demais papelada oficial pairam entre o armario de arquivo ¢ a cesto dos papdis, um monumento é memoriam ao inconfessado mecanismo de exclusio/inclusio sobre o qual se ergue a recolha de factos histéricos. Implicitas nas minhas observagées 4 pritica de auto- -arquivo de Duchamp, a0 compromisso com a tipologia de Bernd ¢ Hilla Becher, ou 205 icones melancdlicos de Hiroshi Sugimoto, estio questées sobre a relacio da subjetividade com a histéria, ce sobre a ligagdo ténuc ¢ nem sempre direta entre testemunhar ¢ arquivace A questao que o arquivo coloca é particularmente 46 Hal Foster, “An Archival Impulse” op. cit. p. 47 Of Giangio Agamben, Remnants of Ause The Witness and the Archive, op. cit. 47 A VIRAGEM ARQUIVESTICA: CASOS-ESPECIME DA COLECAO BERARDO. percetiva, ¢ a preméncia da mesma ¢ veiculada por Jessica Dubow ¢ Richard Steadman-Jones: “limitar-se-d este a incluir a iterago vacua de elocugGes pretéritas ~ as charlas miméticas do papagaio - ou poderd fazer-se com que fale de maneira comensurivel com a experiéncia da histéria?”# Os ultimos dois artistas cuja obra cxaminarei aqui assumem posigées distintas face a esta questio, ambos explorando a relagao entre memoria, histéria, narrativa ¢ ficgdo. Em trabalhos cujo alcance extravasa a fotografia ¢ 0 video, estendendo-se ao cinema, aos livros ¢ 4 instalagao, Daniel Blaufuks escrutina a nogio de arquivo incompleto, ou falivel. Aqui, mercé da sua capacidade de ser, ora dramatica, ora prosaica, a fotografia é,a um tempo, o medium ea matéria. E mobilizada pela sua riqueza mncménica, mas também encarada com desconfianga porquanto testemunho impreciso, devolvendo, na melhor das hipéteses, um registo fragmentario do que “de facto” aconteceu. No seu album de textos - O arquivo ~ Blautuks cita a observagao de John Berger de que as fotografias existem para nos lembrar das coisas que esquecemos. Mas Blaufuks também utiliza a fotografia pelo espetro de implicagoes concetuais que a fotografia encerra no que toca a questées de identidade, exilio, e esquecimento: as forografias de Blaufuks lembram-nos, nao s6 do que podemos nunca mais vir a lembrar, mas também do que poderemos ser capazes de (re)inventar através da fotografia. Esta ideia ficard mais bem descrita se me apropriar aqui de uma citagao de Benjamin Buchloh que, discorrendo sobre o Atlas “anémico” de Gerhard Richter, explana as modos através dos quais a meméria se constitui como uma “arqucologia de registos pictéricos ¢ fotograficos”. 48 Jessica Dubow ¢ Richard Steadman-Jones, “Sebald’s Parcot: Speaking the Archive", nw prelo. 48 A VIRAGEM ARQUGVISTICAS CASOS-ESPECIME DA COLEGAO HERARDO Buchloh defende que estes registos atuam de mancira separada “nos sistemas percetivo ¢ mnemonico do sujeito”, mas que todas cles se intersetam, “constituindo, precisamente, o dominio complexo de desdizeres ¢ transferéncias, o dominio da repressao ¢ da dissimulagao, no seio do qual a memaria se constitui no registo da ordem fotografica”. « As fotografias que formam a Exile Series [Série exilio] (1999-2005) [p. 76-77] de Daniel Blaufuks estao dispostas numa grelha, mas, diferentes das dos Becher ou das de Sugimoto, estas imagens nao sao tipoldgicas, antes narrativas. Este tipo de obra faz de todos nés detetives, Imbuido de alusio literaria, e tomando de empréstimo 0 idioma de varios outros artefactos - o dlbum de recortes, o dlbum de fotografias, o film noir- Blaufuks cria um arquivo de fragmentos que combina livremente umas com outras meias-mem6rias pessoais ¢ estilhagos de memoria coletiva. Temos, pois, aqui, o passado, tal como visto em filmes, em dlbuns, em postais ¢ fichciros amarelecidos, em campas fustigadas pelas intempéries. O trabalho de Blaufuks sugere que o esquecimento que assoma a cada ato de recuperagio mneménica nao se restringe ao dominio do individual, antes que se aplica também aos tabus de representagio - as convengées ~ que existem na cultura em geral. Dito isto, embora o seu trabalho explore a ressurreigio da memdria ocasionada pela imagem fotografica na esfera ptiblica, Blaufuks ¢ particularmente habil a refletir sobre um certo labor intimo ¢ privado de rememoragio ocasionado pela propria fotografia: destas nove fotografias, trés representam outra fotografia, 49. Benjamin Buchloh, op. sit. p. ant. 49 A VIRAGEM ARQUIVISTICA? CASOS-ESPECIME DA COLEGAO BERARDO Ei-las: uma mio a segurar uma fotografia (percebe-se que ha texto escrito no verso, uma dedicatéria, ou uma descricio do sitio ¢ a data); um cemitério; um relégio numa estagio de caminhos-de-ferro; uma folha dobrada de um documento antigo em alemio —a referéncia a “Platz” ¢ as palavras “Hamburg- -Siidamerikanischer” sugerem viagem, talvez um navio...; 0 indice de um livro; um postal velho com uma ilustragio de um transatlantico, colado num Album de fotografias; uma tira de fotografias de passaporte; um close-up de um arquivo de fichciros ordenado alfabeticamente; ¢ uma fotografia a preto ¢ branco de duas pessoas em contraluz num espaco amplo, porventura um cais ferrovidrio, Na iluminagio chiaroscuro melancdlica da propria mem6ria, estas pegas constroem uma sensagdo de partida e de perda através das pistas mais ou menos explicitas 4 viagem, 4 passagem, c ao futuro universal que é a morte. O livro, no centro da obra, constitui também a chave desta, Muito embora Blaufuks o enquadre sem o nome do autor, a leitura das entradas do indice (“Arrival, The Present, The Past, The Future, Departure (Chegada, O Presente, O Passado, O Futuro, Partida]) revela que se trata do livro Arrival and Departure (1943), de Arthur Koestler. Este livro conta a historia de um rebelde comunista em fuga, que € primeiro torturado pelas autoridades partidarias do nazismo de um pais nao nomeado do leste europeu, ¢ que se refugia depois num pais chamado, compreensivelmente, “Neutralia”. A alusio de Blaufuks a esta histéria de evasdo é sugerida por imagens de fuga ¢ exilio que conjugam o burocratico e 0 intimo. “Todas as minhas exposigdes, os meu filmes € os meus livros”, escreve Blaufuks, “equacionam estas ligagdes, entre a literatura de exilio a fotografia de viagem, a meméria pessoal e a memédria coletiva, entre a memoria da viagem ¢ a viagem pela memoria”. Blaufuks, “Setembro”, in hup://daniclblautuks.com/webmac/text/ setembro.huml (consultado 219 de outubro de 2011). 50 A VIRAGEM ARQUIVISTICA: CASOS-ESPECIME DA COLEGAO DERARDO A obra de Blaufuks é, de todas as que selecionei, a mais declaradamente autobiogrifica e pessoal, pois existem nos scus fragmentos narrativos bocados da historia dos seus avés alemaes. judeus, que fugiram da Alemanha nazi para a Lisboa neutral. Sabemos que, nessa altura, passaram por Lisboa milhares de refugiados, mas que poucos foram os que ficaram nesta cidade; para estes, “o porto de passagem tornou-se no ponto de destino”. « A fotografia do documento alemao em Exile Series é o bilhete para a viagem de barco que trouxe os avés de Blaufuks da Alemanha para Portugal. A fotografia das campas foi tirada no cemitério judaico de Lisboa: “Quando passeio entre as campas do cemitério judaico em Lisboa, reconhe¢o os nomes gravados na pedra, como se estivesse num cemitério de aldeia. Uns pertenciam ao circulo mais proximo dos meus av6s, a0 grupo da canasta, outros iam, como nés, a sinagoga em dias de festa ou ao centro israelita aos sabados 2 tarde, Alguns nomes sao anteriores a estes, avds, tios, ou pais, que conseguiram também escapar.”+ Exile Series constivui uma pequena subsec¢ao de um projcto muito mais lato, ambicioso e multimédia sobre o exilio, que inclui um livro de fotografias e um DVD, que, visto no seu conjunto, tem um alcance arquivistico deveras abrangente: Sob ceus estranhos (2007).* O filme/livro entretece duas tramas narrativas distintas, uma pessoal, a outra, mais socioldgica, baseada no estatuto de Lisboa durante a I] Guerra Mundial - 0 estatuto de “ entre a Europa ocupada por Hitler ¢ a América. A dor da saudade, a perda da lingua materna, a sensagao de estar sempre no lugar cerrado, o conforto de estar, também, no lugar certo: ‘corredor” $1 Ihid., "Notas sobre Sub céus estranhos”, in hup://danielblaufuks.com/webnew/tilm/ strangeskies/portugues.huml (consultado a 19 de outubro de 2011). 52 Loc. cit. 53 Para uma ideia geral deste projeto, of htep://www.danielblaufuks.com/webmac/usw/ index.htm (consultado a 19 de outubro de 2011). 5 A VIRAGEM ARQUIVISTICA! CASOS-ESPECIME D4 COLEGAO BERARDO com Blaufiks, somos amitide recordados da ctimologia da palavra “nostalgia”, dor causada pela saudade da terra natal. Tal sensagdo de deslocamento, sem duvida tingida por um misto de culpa ¢ de alivio, é captada em fragmentos evocativos, no que se afigura ser uma tentativa de uma certa reconciliagdo com o passado histérico embutido na propria histéria familiar do artista. Eis, aqui, a ago da pés-meméria, para invocar de novo a util expressao cunhada por Marianne Hirsch, Ou, por outras palavras: como sarar as feridas de meus avds, como contar a histéria deles, que é a minha hist6ria? O “pos” desta expresso nao designa algo que esta para |4 do alcance da meméria, nem tampouco sugere um objeto conciliatério ¢ reconciliado, consignado - na célebre formulagao de Jean Améry - ao “frigorifico da histéria”.4 “A meu ver,” escreve Hirsch, “a pés-meméria distingue-se da memoria pela distancia das geragées, ¢ distingue-se da historia pela ligagdo pessoal profunda”, acrescentando que a pés- -meméria caracteriza a experiéncia de pessoas que cresceram a sombra de narrativas da geragao anterior, “moldadas por acontecimentos traumiticos que nao podem ser, nem compreendidos, nem recriados”. + Hirsch desenvolveu o conceito de pés-meméria tendo em mente os filhos de vitimas ¢ de sobreviventes do Holocausto, mas constatou que este conccito também descrevia memérias da segunda geracao na cultura em geral. Se o sentimento decorrente destes eventos traumdticos experienciados coletivamente, ¢ que afeta geragdes sucessivas, é iterado com retérica apocaliptica na obra de Kiefer, é com lutuosa reserva que Christian Boltanski 0 invoca. Como Kiefer, Boltanski nasceu depois do Holocausto; $4 Jean Améry, At the Mind's Limits: Contemplations by a Survivor of Auschwitz and its Realities, (trad, Sidney ¢ Stella Rosenfeld), Bloomington: Indiana University Press, 19a, p. xi. $8 Marianne Hirsch, op. cit. p.22. A YERAGEM ARQUIVISTICA? CASOS-ESPECIME DA COLECAO HERARDO nasceu em Paris, pouco depois da libertagio da cidade em 1944. O seu pai, um judeu polaco convertido av catolicismo, vivera todo o periodo da ocupagio alemd escondido sob 0 soalho do seu apartamento em Paris, A mae de Boltanski era catélica; mas ¢ claramente a histéria de sev pai que a obra deste artista desenterra e pranteia. (O nome de Boltanski inclui uma histéria sobre o que os pais desejavam para o filho: Christian Liberté...) Tal como Blaufuks, Boltanski convoca “um mundo de origem paterna perdido”. Contudo, diferenciando-se da obra de Blaufuks, a obra de Boltanski ¢ impessoal na sua invocagio da historia recente: histéria enquanto “esse tempo cm que cu nao era ainda nascido”, modificando aqui uma feliz expresso de Roland Barthes. Isto porque, embora muitas das obras de Boltanski aludam 4 burocratizagio da morte levada a cabo pelos nazis, 30 mesmo tempo que atentam na estrutura repetitiva da propria memoria, a maior parte dos seus trabalhos nao ¢ diretamente autobiagrafica, e exerce uma espécie de magia homeapitica sobre a memoria pessoal. “Ienho muito poucas memorias de infancia’, afirma, observando que o aparentemente autobiogrifico na sua obra foi feito precisamente para “velar a minha memoria ¢ para me prateger. Inventei tantas memérias falsas, memGrias estas que cram memérias coletivas, que a minha verdadcira infancia desaparcceu™.- Ibid. p. 257. Roland flarthes, Camera Lucida: Reflections on Photography. (trad. Richard Howard), Nova lorque: Hill and Wang, 1981, p. 64. “Nao ¢ 4 Historia simplesmente esse tempo. em que niv éramos nascidas? bu lia a minha inexisténcia nas roupas que a minha mac usara antes de cu poder recordar-ine dela”. 38 Delphine Renard, “Enteeticn avec Christian Boltanski”, 1984, traduzido ¢ citado por Marjorie Perloff, “What has occurred only once’, in Liz Wells (onp,), The Photography Reader, Londres ¢ Nova torque: Routledge, 2003, p. 38 Ge 53 A VIRAGEM ARQUIVESTICA: CASOS-ESPECIME DA COLEGAO BERARDO A obra de Boltanski também langa luz sobre a instabilidade dos papéis da fotografia ¢ do arquivo na articulagdo de historia com meméria, Com a utilizagdo que faz de materiais encontrados ¢, sobretudo, de fotografias encontradas, Boltanski acrescenta a0 paradigma da “pés-memoria” de Hirsch a facticidade impassivel de um ready-made duchampiano, Ao fabricar obsessivamente iteragGes ¢ reiteragdes da questo da autenticagdo, pergunta que tipo de prova pode a fotografia fornecer, ¢ que tipo de historia pode um arquivo armazenar. O modo como Boltanski desperta, primeiro a curiosidade, e depois a participagio, dos observadores (distribuindo fotografias em espacos publicos, por exemplo) patenteia o seu desiderato de nao permitir que o ato de recordar (orginico, vivo) se anule, e se converta no peso inerte ¢ anestesiante do monumento memorial - o seu desiderato de analisar a diferenga entre eles. Jean Améry, vitima do Holocausto, acorre aqui de novo 4 mente: Clarificagao seria o mesmo que dispensa, dar a questdo por resolvida, 0 que the permitiria ser entdo depositada nos arquivos da histéria [...] nada estd decidido, nada estd acordado, nenhuma recordagdo passou a mera meméria. 364 Suisses morts [364 suigos mortos] (1990) (pp. 66-67] é uma das pegas de uma série que Boltanski comegou em 1990. Esta versio consiste em 364 fotografias a preto ¢ branco pensadas para serem montadas em grelha ¢ iluminadas com lampadas ligadas entre si por cabos visiveis, em jeito de relicério ou santuario. Como em muitos dos scus trabalhos anteriores (/.es Ombres [As sombras], 1984; Les Enfants de Dijon [As criangas de Dijon], 1985-1986; Le Lycée chases [O liceu Chases), 1986-1987), Boltanski simula o drama silencioso de um cenirio religioso vativo (mais catélico do que judeu, é certo), como se para forgar a um estado de crise a $9 Jean Améry, fou cit. A NIRAGEM ARQUIVISTICAS CASOS-ESPEGIME DA COLEGRO BERARDO natureza problematica do conccito de “memorializagao", os riscos que inerem em conceber o passado como placida memorizagio. A qualidade de memento mori da obra naa podia ser mais direta: também tu, diz-nos ela, estards um dia reduzido a uma fotografia memorativa a luz de uma lampada. Como ja sublinhado, poucos artistas trabalharam tao consistentemente como Boltanski para desafiar a nogio de fotografia enquanto testemunho fidedigno e oconceito de arquivo enquanto fonte de verdade incontestavel. A maior parte dos trabalhos de Boltanski consiste em fotogratias re-fotografadas - imagens cuja fonte raras vezes ¢ aquilo quc aparenta ser. Aproveitando a nossa propensao para encontrar significado numa ligagdo dada, Boltanski obriga-nos a ver como vitimas individuadas do Holocausto, ou de uma outra catastrofe inominada, as fotos de rosto (tipo cadastro) em plano frontal de cidadaos anénimos, na verdade selecionadas de paginas de necrologia de jornais suigos contemporancos. Havera alguma coisa capaz de evocar neutralidade de forma mais deslavada do que a nogio de “os suigos”? E, logo, que possa mais prontamente apresentar-se como uma metdfora de universalidade? Eis-nos perante manipulagio ¢ drama ao mais alto nivel, canalizados ao servigo de uma verdade que, se nao ancorada no aparente, é da esfera da moral. Com que se parece uma vitima, pergunta-nos 364 Suigos Mortos de Boltanski? As fotogratias respigadas de Boltanski nao nos dizem o que quer que seja sobre os perpetradores ou sobre as vitimas, pondo a prova convicgdes € preconceitos arreigados acerca da possivel correspondéncia entre expressio e cardter. Em assim procedendo, Boltanski deita por terra tanto a fisiognomonia como a frenologia ~ expressGes cientificas da crenga setecentista e oitocentista, segundo a qual a superficie do corpo manifestava os tragos da personalidade. 55 A VIRAGEM ARQUIVISTICA: CASOS-ESPECIME DA COLEGAO BERARDO Ao silenciar ¢ neutralizar moralmente a aparéncia (comentou certa vez que Klaus Barbie tinha cara de quem podia ser laureado com um Prémio Nobel), Boltanski posicionava-se contra as abordagens do realismo instrumental que, como brilhantemente demonstrou Allan Sckula, operavam “segundo uma légica dissuasora ou repressora expressiva”. As fotografias de identificagao para efcitos de cadastro criminal constituem exemplo disso, porquanto “literalmente concebidas para facilitar a captura do seu referente”.“ Todavia, como Sckula também faz ver, o arquivo fotografico esta comprometido, o seu testemunho ¢, logo a partida, falivel: traido pela “contingéncia desalinhada” das fotografias, e rambém - aspeto importante - pelo facto de os elementos que constitucm o arquivo fotografico nao serem “unidades lexicais convencionais”, mas sim unidades sujeitas ao “cardter circunstancial de tudo 0 que é passivel de ser fotografado”. O arquivo fotogrifico ndo pode, em suma, ser sujcito ao mesmo rigor taxondmico, sistémico, que assiste ao arquivo documental, Qualquer pessoa que tenha pesquisado uma imagem no Google sabe que, sem ctiquetas verbais, é impossivel consultar um arquivo de imagens, ¢ que nao ha uma regra universal - nao ha uma ciéncia - que estabelega a correspondéncia entre imagem ¢ etiqueta. Aretorica do luto sobre a qual a teoria critica se tem debrugado lida, sem margem para diivida, com preocupagdes piiblicas mais abrangentes no que toca a recordagio ¢ ao esquecimento, bem como com a definigao da natureza da propria “histdria” como disciplina. “Perturba-me”, escreve Paul Ricoucr, 60 Vera lleitura foucaultiana matizada de Allan Sckula acerca da inscrigio do corpo no arquivo fotogrifico, em particular no que concerne a nogde de arquive criminal, “The Body and the Archive”, October, vol. 39 (inverno 1986), pp. 6-7. 61 Allan Sekula, ibid. p17. A VIRAGEM ARQUIVISTICAS CASOS-ESPECIME DA COLEGAN BERARDO “o inquictante espetaculo que apresentam o excesso de memoria nuns casos, ¢ o excesso de esquecimento noutros, para ji nada dizer da influéncia das comemoracoes ¢ dos erros de meméria — ede esquecimento.” Ricouer chama a atengio, nao sé para os problemas que decorrem de testemunhos contraditérios, mas também para o facto de 0 arquivo ser, apenas, um dos destinos possiveis do testemunho.» Conversamente, nenhum arquivo pode albergar todos os testemunhos; dai a cxortagao de Pierre Nora, citada praticamente no inicio deste ensaio, “arquiva, arquiva, ha-de faltar sempre qualquer coisa”. Os relatos histéricos sao parciais; a meméria pode ser traigacira, E ¢ assim que, no romance de idcias O sentido do fim, de Julian Barnes, um jovem personagem afirma com precocidade: “a historia ¢ essa certeza que se produz no ponto em que as imperfeigdes da memoria se cruzam com as insuficiéncias da documentagio". Ahistéria esta no centro do projeto arquivista, ¢ a intersegio de historia ¢ meméria é 0 locus em que se inicia a viragem arquivistica na arte, Procurci relevar exemplos de como as condigées do arquivo, em particular aquelas em que arquivo ¢ fotografia se tocam, constituiram matéria de exploragdes diversificadas na pratica artistica contemporanea. Os limites constitutivos dos pré-requisitos da arquivo ~ que nenhum item possa ser igual a qualquer outro item ~ séo questionados pelo dilema fotografico da reprodutibilidade, ¢ muito do trabalho desenvolvido a coberto do arco da “viragem arquivistica” aproveita-se das nogdes de singularidade ¢ diferenga, e dos parentes préximos destas, as nogdes de “reconhecibilidade” ede estranheza, Gz Paul Ricouer, op. cit.. pox. 63 Bid... 161. 14 Julian Bares, O sentido de fim, (tratl, Helena Cardoso), Lisboa: Quetzal, 2011, p. 24. 57 A VIBAGESM ARQUIVISTICA! CASOS-ESPECIME DA COLEGAO DERARDO Aquilo que todas as obras que analisci tém em comum com outros trabalhos de inspiragio arquivistica ¢ uma preocupagio com o passado ¢, decorrente deste, uma ideia do futuro. Defendi que, para 4 da énfase que poe na colegio, na taxonomia, ou na tipologia, a viragem arquivistica na arte se situa no cruzamento entre historia, memoria ¢ imaginagio. Como tal, encontra-se em posigdo ideal para desempenhar um papel importante, tanto em termos de pratica artistica, como na historia da arte como disciplina. Isto porque, ao questionar teleologias, a0 desacreditar explicagdes simplistas da relagao entre causas ¢ resultados finais, a viragem arquivistica na arte permite-nos explorar as manciras através das quais a mem6ria histérica pode ser revitalizada e apresentada junto de geragdes futuras. 58 OBRAS SELECIONADAS DA COLECAO BERARDO Marcel Duchamp Boite (Série C), 1958 Caixa forrada a linho e interior forrado a papel Ingres e objetos 40x38 x 9em 61 Vito Acconci Public Domain, LAttico, Roma, December 2-10,1972, 7pm-Spm, 1972 Fotografias e giz sobre cartao 10 elementos, 76,5 x 104 cm cada Helena Almeida Estudo para dois espagos, 1977 Provas gelatina sal de prata 8 elementos, 60 x 40 cm cada co= PR ec Bn Se a enen® a 64 Bernd e Hilla Becher Watertowers, 1988 Provas gelatina sal de prata 16 elementos, 40,5 x 30,5 cm cada Anselm Kiefer Elisabeth von Osterreich, 1991 Técnica mista e objetos de chumbo montados em madeira 195x301 cm 68 69 Hiroshi Sugimato Hiroshi Sugimoto South Bay Drive-In, San Diego, 1993 Stadium Drive-In, Orange, Prova gelatina sal de prata 1993 42,5x 54cm Prova gelatina sal de prata 42,5 x 54 cm 7 Hiroshi Sugimoto Hiroshi Sugimoto Studio Drive-In, Culver City. Compton Drive-In, 1994 1993 Prova gelatina sal de prata Prova gelatina sal de prata 42,5. 54 om 42,5x54em Tracy Motfat Up in the Sky, 1997 Impressao offset 25 elementos, 61x76 cmcada Danie! Blautuks Untitled, Exile Series, 1999-2005 Provas por revelag2o cromogénea 9 elementos, 123 x 153,5 cm cada nan HE yee crave, PAST sent Fundagiio de Arte Maderna e Contemporanea — Colegao Berardo Presidente Honordrio José Berardo ‘Conselho de Funiadores Estado Portugués Fundagio Centro Cultural de Belém José Berardo Associagio Coleco Rerardo Conselho de Administragio José Berardo, Presidente Ana Isabel Trigo Morais André Luiz Gomes Dalila Rodrigues Joao Miguel Barros Renato Rerardo 7B Museu Colegio Berardo Diretor Artistico Pedro Lapa Diretor-geral Pedro Bernardes Conservadora Rita Lougares Produgio de Expostgdes Ricardo Custédio David Rato Assistente de Produgio Frederico Albuquerque Mendes Coordenadora da Colegio Isabel Soares Alves Registo Anténio Pedro Mendes Francisea Sousa Designer de Exposigites Maria JoJo Mantua Restauro Rodrigo Rettencourt da Camara Publicagies Clara Tavora Vilar Nuno Ferreira de Carvalho Servigo Educativo Cristina Gamcico, coordenagio Catia Bonito Filipa Gordo Assessoria de Imprensa Namalimba Coclho Marketing Ana Casaca Tiago Bucso Coordenagio da Frente de Casa Cristina Sequeira Cantabilidade ¢ Finangas Maria José Mancio Bruno Mitelo Assistente de Diregdo Ana Sampaio Créditos fotograficos Paulo Raimundo (pp. 59 60-61, 62, 63.75) David Rato (pp. 64-65, 68-69) ra, Lisboa, 2012: Vita Acconci, Marcel Duchamp, Anselm Kiefer, Hiroshi Sugimoto ¢ Christian Boltanski Direitos reservados para todos os outros artistas Colegao Sem titulo N01 Arriscaro real, Larys Frogier, 2009 N° 2 Paisagens oblizuas, ric Corne, 2009 N23 Casa de honcoas, Ana Rito, 2009 N° 4 Soba ditado de Pierre Klossowshi, José Braganga de Miranda {org.), 2010 195 A tiltiina geragto, Bernardo Pinto de Almeida, 2010 ¥.°6 Entre memdria ¢ documento, Ruth Rasenganen, 2012

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