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“O homem é mau’ – assim me falaram como con- rida obra, apresentada em Ecce Homo,
solo, os homens mais sábios. Ah, se isso ainda
fosse verdadeiro hoje! Pois o mal é a melhor força em que garante: “a questão da origem
1
do homem” . dos valores morais é para mim, portanto
uma questão de primeira ordem, porque
A questão da origem do bem e condiciona o futuro da humanidade”3;
do mal talvez seja entre todas as ques- algo que antes fora exposto no prólogo
tões hauríveis das fendas do pensa- de Genealogia da Moral, no qual con-
mento de Nietzsche, a que ilustra o fessa que desde garoto “o problema da
compromisso mais explícito do filósofo origem do bem e do mal” já se achava
consigo mesmo e com a própria filoso- em seu encalço, tomando-o quase como
fia, seu leitmotiv. Algumas justificativas o seu “a priori”4 particular.
a esse respeito se acham espalhadas ao O que parece emergir dessas
longo de suas obras, conforme o expres- considerações é precisamente a ideia de
sado, por exemplo, no subtítulo de Au- acordo com a qual quaisquer tentativas
rora – ‘reflexões sobre os preconceitos de discussão em torno do mal nos es-
morais’2, e na parte condizente à refe-
3
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São
1
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 79,
Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, Aurora § 2. Grifo do autor. Doravante esta obra
2011. p. 273, VI – Do homem superior, § 5. será referendada com a sigla EH, seguida da
Doravante esta obra será referendada com a página, da parte da obra e do respectivo
sigla Z, seguida da página, da parte da obra e do parágrafo.
4
respectivo parágrafo. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da
2
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões moral. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
sobre os preconceitos morais [Morgenröte: 2001. p. 09, Prólogo, § 3. Doravante esta obra
Gedanken über die moralischen Vorurteile]. será referendada com a sigla GM, seguida da
São Paulo: Companhia das Letras, 2004. página, da parte da obra e do respectivo
Prólogo, § 3. parágrafo.
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critos de Nietzsche, pelo menos à pri- futuro: somente ele faz com que algo
meira vista, devem ser compreendidas seja bem e mal”7. Porém, na segunda
no âmbito de sua crítica à moralidade. dissertação de Genealogia da Moral, ao
Disso se segue que o horizonte de per- aduzir a má consciência como uma das
quirição apropriado ao conceito de mal três formas de niilismo próprias da ló-
no terreno nietzschiano parte do diag- gica de decadência da civilização oci-
nóstico acerca dos juízos morais instau- dental8, Nietzsche manuseia um signifi-
rado em obras do período intermediário cado de ‘mal’ atrelado a tal expressão, o
e desemboca na empreitada genealógica qual requer um exame mais acurado que
de aferição dos valores morais, caracte- permita identificá-lo e confrontá-lo com
rística dos textos da fase tardia. Em se- outros conteúdos de sua reflexão. Se o
gundo lugar, tal visão mostra a posição ‘mal’ só é possível na condição de in-
adotada pelo filósofo alemão de não terpretação, valor, sentido, e não existe
compartilhamento da maneira tradicio- enquanto entidade em si, supõe-se que o
nal de apreciação filosófico-teológica da ‘mal’ da má consciência também não
questão do mal ou da maldade e de seu passaria de interpretação, construto. No
quadro referencial, o que significa dizer entanto, o que faz Nietzsche optar por
que não há em Nietzsche uma tematiza- essa adjetivação? O que há de mal na
ção desse conceito nos moldes de uma má consciência? Guardaria alguma rela-
teodiceia5; no entanto, isso não lhe ção com a percepção da crueldade que o
impediu de receber a alcunha de “o filó- filósofo desenvolve em seu exame da
sofo do mal”6, como fez Georges Ba- moralidade? Que aspectos dimanan
taille. dessa adjetivação, que, mesmo como
Por essas vias, conforme Ni- compreensão interpretativa, precisam
etzsche, o ‘mal’ (assim como o ‘bem’) é ser sinalizados pelo filósofo? Dessa
declarado tão-somente juízo de valor, perspectiva, teria o mal da má consciên-
interpretação, não existindo como cia alguma função heurística no cerne
substância, coisa (res), algo dado ou da crítica genealógica dos valores?
ontologicamente preestabelecido, o que Com base em tais premissas, o
coloca em xeque a possibilidade de edi- presente artigo tem por objetivo cons-
ficar qualquer discurso moral sob uma truir uma breve tentativa de interpreta-
base transcendente e de caráter univer- ção do sentido entregue por Nietzsche à
sal: “[...] o que é bem e mal, isso nin- noção de ‘mal’ vinculada à expressão
guém ainda sabe – a não ser o criador! má consciência, aduzida em sua Gene-
Mas é tal quem cria um fito para o ho- alogia da Moral. Em vista disso, fare-
mem e dá à terra o seu sentido e o seu mos de início algumas considerações
sobre a problematização nietzschiana
5
Termo criado por Gottfried W. Leibniz em seus acerca dos valores morais concebidos
Ensaios de Teodiceia: sobre a Bondade de
7
Deus, a Liberdade do Homem e a Origem do Z, p. 234, III – Das velhas e novas tábuas.
8
Mal, de 1970, obra na qual lança uma Em relevante estudo, Clademir Araldi refere-se
especulação ponderando motivos sobre a à investigação empreendida em Genealogia da
posição de Deus em relação à substancialidade Moral como “tentativa de caracterizar o
do mal, com grande proximidade com niilismo em suas formas e em sua lógica
pensamento medieval a partir de Agostinho. intrínseca”, afirmando que nela o movimento
Conforme aponta Nicola Abbagnano, Leibniz próprio do niilismo ocidental é concebido
entende que “o mal não é uma realidade; “através de suas três formas fundamentais de
portanto, a responsabilidade por ele não remonta manifestação: o ressentimento, a má-
a Deus” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário consciência e o ideal ascético” (ARALDI,
de filosofia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, Clademir. Para uma caracterização do niilismo
1998. p. 949). na obra tardia de Nietzsche. Cadernos
6
BATAILLE, Georges. Sobre Nietzsche. Nietzsche. São Paulo: GEN-USP, n. 5, 1998. p.
Voluntad de suerte. Madri: Taurus, 1986. p. 17. 80).
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tratos ou faces de uma maldade inerente como moral dos senhores e moral de
à condição humana, como todo raciocí- escravos”35.
nio naturalizador do mal preconiza32. A hipótese genealógica deslinda
Embora se refira a uma ‘maldade da dos escombros da linguagem as condi-
força’, Nietzsche o faz inscrevendo-se ções de criação e recriação dos valores
no âmbito fisiológico, lendo-a em ter- morais dominantes na tradição ociden-
mos de desafogo de impulsos e diferen- tal, encontrando na dicotomia moral
çando-a de uma ‘maldade da fraqueza’ à entre tipologias senhoris e escravas uma
qual atribui o desejo de fazer e ver so- chave hermenêutica. Por meio dos sig-
frer: “a maldade da força fere o outro nos morais Nietzsche ausculta profun-
sem pensar nisso – ela tem que se desa- dos arranjos vitais – “estados morais são
fogar; a maldade da fraqueza quer ferir estados fisiológicos”36 – os quais
e ver os sinais do sofrimento”33. Longe reverberam modos de doar sentido e
de sustentar que tais forças são substan- avaliar, pensados já sob a perspectiva da
cialmente más, posto que só há maldade vontade de poder. Tal como aponta,
como interpretação, Nietzsche revela a nosso intelecto, nossa vontade, e
percepção de si e a percepção de ou- também nossas sensações dependem
trem como decisivos a essa distinção, de nossas estimativas de valor: estas
pois “quando o homem está com o sen- correspondem a nossos impulsos e a
timento de poder ele se percebe como suas condições de existência. Nossos
bom e assim se denomina: e precisa- impulsos são redutíveis à vontade de
mente então os outros, nos quais ele poder. A vontade de poder é o derra-
deve descarregar seu poder, percebem- deiro fato a que chegamos37.
no como mau e assim o chamam!”34. Por este ângulo, o vir a ser his-
Como registra Marco Brusotti, “o forte tórico das estimativas de valor ‘bom’ e
não pode ser de outro modo, ele precisa ‘ruim’, e ‘bom’ e ‘mau’, exposto na
desafogar sua força sobre os outros. Ele dissertação inaugural de Genealogia da
também não se sente como mal, apenas Moral, obedeceria a circunstâncias de
os outros – especialmente suas vítimas – produção de alguma maneira já alvitra-
o sentem como tal”; arrematando ao das em Aurora. O Nietzsche genealo-
afirmar que nessa asserção de Aurora já gista defende que o juízo de valor ‘bom’
está posta “a dupla óptica do enfoque de resultaria de indivíduos que se sentiam
Genealogia da Moral determinada como bons (o sentir-se como um inter-
32
pretar-se a partir de uma experiência de
A imagem-conceito da vontade de poder é o fruição de si), passando assim a se ava-
recurso que Nietzsche cria e utiliza para dar
conta dessa percepção. A título de ilustração,
liar como bons. Estes seriam os podero-
em Além do Bem e do Mal, escreve o filósofo: sos de castas nobres e senhoriais. Além
“em toda parte sonha-se atualmente, inclusive disso, como esclarece Vânia D. de Aze-
sob roupagem científica, com estados vindouros redo, “há uma estreita ligação entre o
da sociedade em que deverá desaparecer o sentir-se bom e a correspondente avali-
‘caráter explorador’ – a meus ouvidos isto soa
como se alguém prometesse inventar uma vida
ação daquilo que seria bom, enquanto
que se abstivesse de toda função orgânica. A
‘exploração’ não é própria de uma sociedade
corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte
35
da essência do que vive, como função orgânica BRUSOTTI, Marco. Die Leidenschaft der
básica, é uma consequência da própria vontade Erkenntnis: Philosophie und Ästhetische
de poder, que é precisamente vontade de vida” Lebensgestaltung bei Nietzsche vom
(NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do Morgenröthe bis Also sprache Zaratrhustra.
mal. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1997. p.
2001. p. 171, § 259). 71.
33 36
AU, p. 207, § 371. Grifo do autor. KSA IX, 6 [445], p. 313. Grifo do autor.
34 37
AU, p. 133, § 189. Grifo do autor. KSA XI, 40 [61], p. 661. Grifo do autor.
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42
GM, p. 28, I § 10.
38 43
AZEREDO, Vânia Dutra de. Nietzsche e a GM, p. 32, I § 11. Grifo do autor.
44
dissolução da moral. São Paulo: Discurso Conforme Antônio Edimilson Paschoal, “para
Editorial & Editora Unijuí, 2003. p. 59. o Nietzsche adulto, não existe um conceito de
39
GM, p. 19, I § 2. bem e mal anterior às contingências do mundo,
40
Veja-se Genealogia da Moral, I § 4, 5, 6, 10 e que poderia ser tomado como um pressuposto
11. para avaliar todas as coisas e todas as ações
41
GM, p. 26, I § 7. Essa conjetura fora lançada humanas” (PASCHOAL, Antônio Edmilson.
pela primeira vez em Além do Bem e do Mal § Nietzsche e Bataille: em torno da questão do
195. “mal”. Op. cit. p. 48).
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rar e vir a ser. Portanto, uma tal moral credor e devedor. Sustenta haver na
seria resultante de uma composição humanidade antiga uma correspondên-
vital reativa, impotente, incapaz de por cia entre dano e dor que servia de su-
si mesma instaurar valores. Entretanto, porte às relações entre credor e devedor:
ao mesmo tempo em que se desenvol- uma dívida contraída e não honrada
veu negando a diferença e edificando colocava em jogo dispositivos reparató-
uma unilateralidade político-moral45, a rios sanguinários. “Nesta esfera, a das
reação escrava logrou persuadir por obrigações legais”, escreve o filósofo,
meio de uma manobra imaginária os “está o foco de origem desse mundo de
tipos fortes a se considerarem fracos conceitos morais: ‘culpa’, ‘consciência’,
através da noção de culpa: “todo esse ‘dever’, ‘sacralidade do dever’ – o seu
mecanismo construído tem por objetivo início, como o início de tudo grande na
incutir na força uma culpa pelas suas terra, foi largamente banhado de san-
manifestações espontâneas”46. Com gue”47. Isso posto, compensava-se qual-
base nesse paralogismo que ficticia- quer dívida infligindo dor mediante toda
mente separa a força daquilo que ela sorte de torturas, mutilações, privações,
pode, o forte é convencido de que é cul- o que revela uma apoderação do corpo
pado pelas suas ações espontâneas e do outro apenas para consolidar junto ao
livres, e ao mesmo tempo, a ficção de credor o direito de ser cruel, seja ele um
um agente (alma, sujeito) subjacente às indivíduo ou o poder institucionalizado
ações ganha terreno. da comunidade.
É exatamente nesse contexto da Mas tal dinâmica, como Nietzs-
reflexão nietzschiana que vem à tona a che faz ver, não quedou para trás na
problematização da má-consciência e história humana. Segundo entende, toda
uma densa retomada da perspectiva cultura reputada superior (civilizada,
outrora esculpida sobre a crueldade. Na emancipada, racional, numa expressão,
primeira vez que menciona a expressão moderna), e, sobretudo, todos os basti-
má-consciência em Genealogia, se- ões morais que lhe conferem essa con-
gunda dissertação § 4, Nietzsche a rela- dição, não podem ser compreendidos
ciona com o sentimento de culpa, pro- em sua lógica intrínseca sem “o pro-
pondo uma genealogia do conceito de cesso de internalização e espiritualiza-
culpa alicerçada na noção de dívida, ção da crueldade”48. Nietzsche também
baseando-se na relação material entre procura rechaçar a ideia segundo a qual
o castigo despertaria nos castigados o
sentimento de culpa, ao depreender que
45
Compartimos o exame do instinto judeu na pré-histórica49 trama humana de
(jüdischer Instinkt) realizado Jorge Luiz
constituição das armações da morali-
Viesenteiner, especialmente quando vincula a
negação absoluta do diferente ínsita ao dade, e das próprias relações de justiça,
ressentimento judaico à perspectiva de a vivência do castigo estaria longe de
edificação de uma unilateralidade fazer florescer no castigado uma culpa-
homogeneizadora e aniquiladora do outro, bilidade, pertencendo este unicamente à
discurso imposto na razão direta do abafamento
de qualquer alteridade moral: “o triunfo da
47
perspectiva judaica de valoração e a negação de GM, p. 55, II § 4.
48
todo o resto e de todo outro como consequência, GIACOIA JR., Oswaldo. Nietzsche. São
significam os primeiros passos também para o Paulo: Publifolha, 2000. p. 64.
49
triunfo da própria unilateralidade, que como Numa asserção, Nietzsche deixa clara a
bem se percebe possui como sua principal adoção de uma pré-história por ele concebida à
produtora a dinâmica do niilismo” guisa de postulado, enquanto experiência
(VIESENTEINER, Jorge Luiz. A grande humana aberta e insuperável: “sempre
política em Nietzsche. São Paulo: Annablume, utilizando a medida da pré-história (pré-história
2006. p. 38). aliás, que está sempre presente, ou sempre pode
46
AZEREDO, Vânia Dutra de. Op. cit. p. 106. retornar)” (GM, p. 60, II § 9).
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lógica compensatória do dano a ser re- ganização social mais ou menos estável
parado. somente fora possível por atos de pro-
Após tecer essas interpretações, funda violência praticados por bandos
o filósofo se vale de uma primeira visão de indivíduos guerreiros conquistadores,
sobre a origem da má-consciência: fundadores de ‘Estado’ enquanto estru-
“vejo a má consciência como a pro- turas de dominação. A participação
funda doença que o homem teve de destes na produção da má consciência é
contrair sob a pressão da mais radical um componente lógico do discurso ni-
das mudanças que viveu – a mudança etzschiano, o que não significa dizer
que sobreveio quando ele se viu defini- que eles compartilhem dela: “neles não
tivamente encerrado no âmbito da soci- nasceu a má consciência [...] mas sem
edade e da paz”50. Nietzsche acredita ter eles ela não teria nascido”, achando-se
havido nessa origem a experiência mais apenas nos arrebanhados, nos quais
lastimável pela qual o ente humano até medrou e ganhou contornos mais am-
então passou, geratriz de um enorme plos: “esse instinto de liberdade repri-
mal-estar, quando instintos que antes se mido, recuado, encarcerado no íntimo,
descarregavam na exterioridade são por fim capaz de desafogar-se somente
inibidos, interditados, voltando-se para em si mesmo: isto, apenas isto, foi em
um dentro do humano até então ainda seus começos a má consciência”52.
não existente, que se constrói na medida Disto se pode deduzir que a má consci-
em que retém os impulsos que retornam ência foi um engendro concomitante da
por esse movimento reverso. O que se cessação do extravasamento instintual
encontra em jogo é a própria constitui- motivado pelo cruel represamento im-
ção da ‘alma’ ou ‘consciência’ humana posto desde fora pelos violentos organi-
segundo sua conjetura, obra de um pro- zadores sociais, e da forçada interioriza-
cesso violentíssimo em que instintos do ção de impulsos ocorrida consoante a
homem selvagem são freados e recon- mesma dinâmica violenta, em escala
duzidos para trás, para uma ‘interiori- menor, cujos desdobramentos geram o
dade’ simultânea e duramente engen- enraizamento de um ‘eu’.
drada por ele mesmo: “a hostilidade, a Os próximos passos conduzem
crueldade, o prazer na perseguição, no da fixação cada vez mais epidêmica do
assalto, na mudança, na destruição – humano domesticado até a condição na
tudo isso se voltando contra os possui- qual esse humano detentor-cultivador da
dores de tais instintos: esta é a origem má consciência reinterpreta o âmbito de
da má consciência”51. Com esta, inocu- seus impulsos vitais como âmbito da
lou-se na humanidade uma doença da culpabilidade, já no quadro referencial
qual ela ainda não conseguiu curar-se: o da deidade judaico-cristã. Para Nietzs-
terrível sofrimento do humano consigo che, “esse homem da má consciência se
mesmo. apoderou da suposição religiosa para
Ao desenvolver essa percepção, levar seu automartírio à mais horrenda
Nietzsche a complementa sustentando culminância”53. Em síntese, o derradeiro
que tal alteração no estágio semi-selva- degrau operativo da má consciência
gem da humanidade não ocorreu de leva às últimas consequências a relação
modo gradativo ou voluntariamente, entre credor (Deus) e devedor (homem)
mas à maneira de uma grande ruptura, e a própria execração dos instintos, que
de uma cisão irreprimível. Também de agora em diante (junto à natureza, à
assegura que a arregimentação de po- vida e à existência) são culpados, sua
pulações inteiras em uma forma de or- expiação é tida por irreparável (dívida
50 52
GM, p. 72, II § 16. Grifo nosso. GM, p. 75, II § 17. Grifo do autor.
51 53
GM, p. 73, II § 16. Grifo do autor. GM, p. 81, II § 22.
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NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou
Zaratustra. Tradução de Paulo César
Abstract: This article is an attempt to interpret the meaning of the adjective 'bad' expres-
sion linked to bad conscience, by Nietzsche in Genealogy of Morals, in the context of his
critique of moral values, as well as the argumentative elements that accompany it, many of
them coming from the problematization of morality deriving of its intermediate thought,
with clear resonances in his mature philosophy. Keywords: morality, evil, cruelty, bad
conscience, disease
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