Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
É certo que não conheci meu pai, mas todas as pessoas, com as quais
tive a oportunidade de conversar, conheceram as histórias do grande
pesquisador que morreu em uma expedição na floresta amazônica, ou do
capitão da aeronáutica que perdeu a vida em um teste de um caça ultra-
secreto ou tantas outras aventuras que a minha imaginação podia me dar.
Certo dia, um colega me disse: “seu pai era o Super-homem”. O pobrezinho
não sabia que nenhum herói era capaz de chegar perto de meu pai. Afinal, ele
era tudo de melhor que existia em todos eles.
Na primeira vez em que vesti essa roupa, tão masculina e adulta, fiquei muito
tempo observando-me pelo espelho. Aquela imagem de homem, de um certo
modo, me intrigava, a não ser pela marca de nascença em forma de lua
minguante no pescoço, era quase um desconhecido que estava à minha frente.
Nesse instante, minha mãe passou pela porta de meu quarto e de relance se
assustou com o que vira e, inconscientemente, disse o nome de meu pai.
Lancei meu olhar para aquela mulher, que em prantos e em desespero tentava
abafar a palavra pronunciada. Era tarde demais. Caminhei em sua direção,
agarrei-a pelos braços e balançando em desespero, pedi que, de uma vez por
todas, falasse sobre meu pai.
Ela tentou escapar, mas não teve força e sem saída disse que, ao me ver com
estas roupas, viu em mim a imagem de meu pai. Essas as últimas palavras que
ouvi minha mãe pronunciar.
Fui a uma loja especializada em fotografia. Pedi que tirassem uma foto
minha com as roupas que havia ganhado e que fosse produzido um efeito de
envelhecimento. O produto final me surpreendeu e emocionou; tinha enfim uma
foto de meu pai.
Ela fingiu não entender o que eu dizia. Energicamente falei para deixar de ser
dissimulada e que a reação que ela teve, quando me viu, não deixava dúvida
de que ela sabia muito bem quem eu era e do que eu estava falando. Vendo
que não conseguiria dissuadir-me, abriu a porta e pediu que eu entrasse.
Ela perguntou-me o que eu sabia sobre meu pai. Respondi que crescera
ouvindo minha mãe dizer que havia morrido, mas que recebera uma carta que
me levara até essa casa. Perguntei se fora por causa dela que meu pai
abandonara a família. Ela respondeu que sim. Comecei a chorar.
A imagem de meu herói foi quebrada e, naquele instante, dividi a culpa de todo
o meu sofrimento entre duas mulheres que me deixaram tanto tempo sem pai:
uma por volúpia e a outra, minha mãe, por mentira.
Ao me despedir, a mulher pediu perdão por tudo que ela pudesse ter causado.
Nada respondi. O vento soprou e fez dançar os longos cabelos da mulher. Uma
pequena marca em forma de lua minguante em seu pescoço ficou exposta.
Ganhei a rua e fui embora. Em meu luto paterno nunca mais pronunciei o nome
de meu pai.