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Documentos

para urna Escola

T@íbhoteta jf reullíana
APRESENTACÃO

Reunimos nesta publi cação - exclusivamente para


circulação interna, e destinada portanto à reflexão e à

produção no âmbito da Escola Letra Freudiana -


documentos essenciais sobre a instituição psicanalítica e
a Escola de psicanálise.

Além das Atas da Letra Freudiana, incluem-se aqui um


debate sobre os Cartéis e os documentos estatutários que,
saídos da pena de Lacan, dão testemunho da ética que os
ordena.

Textos "de trabalho", que não convocam a outra coisa


senão a. . . um trab alho, cujo resto terá sido nossa
produção.
ÍN DICE

PARTE I : ATAS DA LETRA FREUDIANA


• Ata de Fundação ........ 0 0 0 0 . 00 0000 . . . . . . 0 0 oooo 0 0... ......................... .. . . . . ...... .............. 0 0 . 9
• Ata de 1 987 .
. .. . . . o o . . . . . . . . . . . . o o oo ... . . . o o o o .. oooo . ................ oo . . . . . . . . 0 0 . . . . . .. . . ... o o . . . ....... . . 11

PARTE II: FUNDAÇÃO DA ESCOLA FREUDIANA DE PARIS


• Ata de Fundação .......... . . . .... o o . . . o o . . . .. . . . o o ................. . . . . . . . . . . . . . . . . . ..... oo ............. 17

• Nota Anexa ... . . , ........................................� .......... . . . . .. . . . . . . . . ............ . . . . . . . . . . . . . 21

• PreâJnbulo . . . . . . . . .............. . . . . . . . .. . . . . . ...................... .. . ...... . . . . . . . . ....................... 24

PARTE III: PROPOSIÇÃO DE 9 DE O UTUBRO DE 1967


• Proposição sobre o psicanalista da Escola . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. ............ 29

PARTE IV: DISSOLUÇÃO


• Carta de Dissolução .......... .. . . . . . . . ..... . . . ............................. . . ... . . . . . . . . . . ........ . . . . 45
• O Outro falta . . . . ....................... . . .. . . . . . . ............... ............... . . . . . . .. . .................. 47

• D'Écolage ....... . . . . . ................. .............. . ................. ........................... ............ 50


• Senhor A . ....... . . ...................... ................. . .................. ........... . . ...... . . ........ . .. 53
• Luz! ....... . . . . . . . ...................... . . . . . ......................................... . . . .................. . . . . . 57
• O mal-entendido ............ . . . . . .......................... . . . . . . . . ........ . . . . . . . . . . . . . .. . . .. . . . . . . . . . 60

PARTE V: A FUNÇÃO DOS CARTÉIS


• Do "mais uma" . ........... . ................ . . . .............. . . .. 0 0 . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . 0 0 . . 65
• Do "mais uma" (continuação) ........ oooo .................. . .. . ..... . . o o . . . . . . . . . . o o ... oo ....... 77

• Do "mais uma" e da matemática ................... .......... . . ........ . . ....... . . . .......... . . 97


• Jornadas de estudo dos cartéis da Escola rreudiana ............ . ................. 110
PARTE I

ATAS DA LETRA FREUDIANA


9

F1JNDAÇÃO DA LETRA FREUDIANA

I - Letra Freudiana se constitui em lugar que privilegia o pensamento de


Freud e de Lacan na transmissão da psicanálise.
li- A transmissão em psicanálise é portadora dessa condição do discurso
freudiano: não se sustenta em nenhum saber que se suponha acabado nem
encontra seguras garantias.
III - O legado de Freud fala do inconsciente come heterogeneidade
radical. O ser falante, interpelado desde essa Outra Cena, é efeito da articulação
significante inconsciente.
IV- A situação analítica se define em relação ao lugar do Outro. Analista e
analisante estão determinados a sustentar, no discurso da associação livre, a
sujeição às leis do i nconsciente.
V - Falamos de transmissão em psicanálise e não de formação . As únicas
formações reconhecidas são as do inconsciente. O analista é sintoma da relação
analítica.
VI - Formar pode pressupor as " formas" às quais os sujeitos estariam
obrigados a se modelar. Podem ouvir-se aí todas as formas imaginárias da
i dentificação. Portanto ninguém garante, como também não haverá diplomas
nem promoções.
VII - Toda transmissão se realiza na trans ferência. O desejo inconsciente
usurpa restos que retroagem como objetos de transferência. O desejo
inconsciente na sua realização tende à verdade que só se pode d izer censurada,
num meio-dizer. A psicanálise encontra aí sua dimensão ética.
VIII- A transmissão é sempre de uma falta. O estatuto ético da psicanálise
é da ordem do objeto perdido e do Pai Morto na conjunção com a verdade.
IX - O grupo que é instituída por -este ato de fundação situa na estrutura
de Cartel proposta por Lacan os princípios básicos de seu funcionamento. Os
seminários e as aulas, alertas da sedução que exerce todo discurso universitári o ,
abrirão também u m a permanente interrogação: o s limites da transmi.>são.
X - A estrutura de Cartel funciona como um lugar onde os membros, em
número e condições determinados pela estrutura, se reconhecem atentos à cap­
tação imaginária do grupo. O Mais-Um insiste como função. Os grupos se
dissolverão a cada um ou dois anos no máximo, possibilitanto a permutação. A
constituição obedece a sorteio de quem deseje participar.
XI- Os participantes de Cartel se comprometem a informar do produzido
e d os impasses para quem deseje sabê-lo. Só na transferência se possibilita a
produção psicanalítica. O escrito é a forma que adotará o produto de cada um, e
a p ublicação, seu meio de circulação.
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XII - A entrada de novos membros para a Instituição dependerá da


apresentação de um escrito sobre as questões abertas da psicanálise.

XIII - Os que assumem este ato desejam instituir um projeto de produção e


propagação no discurso da psicanálise e no campo da cultura.

Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1981.


11

ATADE1987

Ratificamos, por meio desta, a Ata de Fundação da Letra Freudiana,


consolidada na tra.-'1.sferência de trabalho e nos princípios de funcionamento de
Cartéis definidos por Lacan, que tornam possível a circulação de um produto no
âmbito da instituição psicanalítica.
Como efeito da transmissão , do ensino e da experiência acumulada; como
efeito da passagem pelas questões cruciais da Psicanálise e da prática clínica,
esta Instituição passa à nominação de Escola.
Tendo os cartéis como estrutura de base, a Escola se define por função de
formação permanente de analista através de:
1. Uma transmissão e um ensino textuais;
2. U m compromisso com a produção escrita;
3. O exercício de uma clínica sustentada no questionamento rigoroso da
direção da cura e do final de análise.
Assim, a Escola estabelece u m l aço social que, marcado pela ética do
discurso do analista, difere do grupo concebido pela via imaginária da hieraquia,
do ideal e da chefia. Haverá nominações de membros, e sua única garantia será o
ato de o analista autorizar-se a si mesmo, o que, longe de suprimir responsa­
bilidades, impõe-lhe o dever ético de dar provas desse ato. Essas nominações
respondem, pois, à relação de cada analista com a causa real.

I - DAS NOMINAÇÕES DOS MEMBROS


1) A.M.E. - Analista Membro da Escola: analista que , nomeado pelo Cartel
de Adesão e Garantia, terá dado provas de transferência com a causa da Letra
Freudiana, através da presença e s ustentação do discurso da Escola (interna e
externamente) e d o ensino, interpretando a teoria e a clínica na transmissão da
psicanálise dentro da formação permanente que a Escola proporciona.
2) M.A.- Membro Analista: aquele que, tendo declarado exercer a função
de analista será admitido como tal, sob a responsabilidade do Cartel de Adesão e
Garantia. Comprometer-se-á a dar testemunho contínuo de u m discurso teórico­
clínico através da transferência de trabalho.
3) M.E. - Membro da Escola: aquele que, admitido pelo Cartel de Adesão e
Garantia, deverá d ar provas de seu desejo de compromisso teórico com a letra de
Freud e Lacan.
Serão admitidas como Associados as pessoas que expressarem por escrito
seu desejo de manter um vínculo com a Escola, participar de seus eventos e
receber correspondência.
Para diferenciar as nominações A.M.E., M.A. e M.E. dentre os membros
atuais, cada u m destes enviará uma carta à Escola declarando sua nominação.
A autorização desse ato se s ustenta no trabalho realizado pelos Cartéis
sobre a questão da Escola, que culmina na presente Ata. Aquele que, nesse
trabalho, não tiver chegado à certeza de sua nominação, terá desde já, no Cartel
de Adesão e Garantia, a opção de estabelecê-lo.
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li- DO PASSE
A Escola antecipa a nominação de Analista da Escola e a fará vigorar no
momento em que o dispositivo do passe for estabelecido.
A.E. - Analista da Escola: aquele que, tendo realizado sua formação nesta
Escola, decidiu dar testemunho de sua experiênci a de análise através do
dispositivo do passe, e foi aceito.

III- DO DISCURSO TEÓRICO-CLÍNICO E DA POLÍTICA


Instâncias de sustentação :

1. Do Cortei de Adesão e Garantia


A demanda de situar-se em qualquer da� nominações como Membro desta
Escola deverá ser feita ao Cartel de Adesão e G arantia. O proponente, através da
apresentação de um trabalho escrito, deverá dar provas de sua relação com a
Causa Freudiana. Esse Cartel tem a função de admitir e administrar as diferentes
nominações.
Será constituído por 4 membros+ 1, assim discriminados: 2 A.M.E. , 2 M.A.
e+ 1, membro do colegiado a ser escolhido pelos quatro membros integrantes do
Cartel.
O Cartel será integrado pelos A.M.E. e os M.A. que manifestarem o desejo
de cumprir essa função , cientes da responsabilidade de ocupar esse lugar. Em
reunião específi ca dos A.M.E. e M.A. , será real izado um sorteio, após
interpelação dos que se cand idatarem.
O Cartel terá a duração de 2 anos e apresentará, quando de sua dissolução,
a produção de um trabalho que terá dado conta desse percurso.

2. Do Colegiado
A direção funcionará como um colegiado de cinco membros, tendo cada
um deles a seu cargo um setor, a saber:
a) Organização e p lanejamento, responsável por:
- Administração Geral da Secretaria e Tesouraria;
- Convocação da Comissão def:ntrevistas ;
- Coordenação das entrevistas dos proponentes às atividades de
transmissão da Psicanálise.
b) Ensino e Sessão Clín ica, responsável por:
- Programação anual do Ensino;
- Coordenação dos professores;
- Coordenação da SessãQ Clínica.
c) Divulgação e Biblioteca, responsável por:
- Divulgação das atividades da Escola;
- Organização da Biblioteca e das referências bibliográficas de Freud e
Lacan;
- Divulgação e contato com outras instituições do Campo Freudiano.
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d) Coordenação de Cartéis. responsável por:


-Inserção dos Cartéis na Escola;
- Reuniões Inter-Cartéis;
- Jornadas de Cartéis.
e) Pu blicações e Relações do Campo Freu diano, responsável por:
- Publicações internas e externas;
- Coordenação de eventos internos e externos do Campo Freudiano.

O colegiado terá um mandato de dois anos, a partir de 12 de março de 1987,


e cada setor contará com um Adjunto colaborador, A.M.E. ou M.A., que passará
a Titular e, p ortanto, a membro do Colegiado após dois anos ininterruptos nessa
função. Para exercer a função de Adj unto, é necessária a permanência de três
anos como membro, e será respeitado o critério de tempo de sua nominação.
Quatro meses antes da data em que, por ordem de nominação, corresponda a um
membro ocupar o lugar de Adjunto, este será interpelado pelos A.M.E. e M.A.
quanto a seu desejo de exercer essa função.
No caso de que um membro não aceite, ou não possa exercer a função, o
imediatamente seguinte será então interpelado.

3. Do Conselh o
Institui-se, a partir d a presente data, e por u m período d e 5 anos, um
Conselho da Escola formada por três membros i n dicados por aqueles que
assinam esta Ata. Sua função consistirá em assegurar a continuidade do discurso
teórico-clínico da Escola, podendo tanto ser consultado como ser levado a
pronunciar-se , sempre que necessário, junto ao Colegiado, ao Cartel de Garantia
ou à Assembléia de Membros.

4. Da A ssem bléia de Mem bros


A Assembléia de Membros, composta pelos A.M. E . , M.A. e M.E., deverá
reunir-se ordinariamente , no mínimo , uma vez por ano. Nessa ocasião, o
Colegiado prestará· contas de sua administração. Cabe ainda à Assemb léia,
conjuntamente com o Cartel de Adesão e Garantia, o Colegiado e o Conselho da
Escola, tanto validar a política institucional da Escola como aval iar a atuação de
seus diferentes setores e instâncias.

IV - DA TRANSMISS ÃO E DA FORMA ÇÃO PERMANENTE EM PSICANÁLISE


Inscrevem-se cartéis, seminários, aulas, grupos de trabalho, sessão clínica,
jornadas; lugares onde, a partir da sustentação da transferência textual a Freud e
Lacan, se interroga a clínica.

Dos Cartéis
A Escola segue constituindo-se sobre a estrutura de cartel , lugar de trabalho
privilegiado na transmissão da psicanálise, onde se impõe situar a ética que
sustenta a posição do analista.
14

O l ugar d o Mais-Um, s e é qualquer um, deve ser alguém que, estimulando o


trabalho e sua elaboração, se abstenha da mestria.
Fica estabeleci d o que é na transferência à Escola que se constitui a
experiência do cartel, sendo que o Mais-Um deve ser escolhido dentre os mem­
bros. Abre-se, no entanto, um lugar de escuta na coordenação de Cartéis para
aqueles que, embora não sigam essa norma, s ustentam sua proposta de trabalho
no i ntecior da Escola.

V - DA A TA
Os dispositivos i nstituídos pela presente Ata serão submetidos, após quatro
anos de funcionamento , à reflexão e à crítica decorrentes da experiência, tarefa
de que se incumbirão os membros, em cartéis especialmente constituídos para
tal fim. Essa avaliação determinará a manutenção dos dispositivos, sua alteração
parcial ou mesmo a elaboração de uma Ata que possa vir a reger o funciona­
mento posterior da 'Escola.

Rio de Janeiro. 26 de Janeiro de 1987

Assinaran1 a presente ata:

. Ana Lucia Zacharias de Paiva (A.M.E.)


. Andréa B ueno do Prado Bastos Tigre (M.A.)
. Ari Roitman (M.A.J
. B e nita Losada Albuquerque Lopes (M.A.)
. · Di ana Lidia Mariscal (A.M.E.)
. Eduardo Alfonso Vida] (A.M.E.)
. EsteJa Becker Bezerra Cavalcanti (M.A.)
. Elizabeth Tolipan (A.M.E. )
. Leny Almeida Andrade (M.A.)
. Maria Cristina Vecino de Vidal (A.M.E.)
. Myriam Rodrigues Fernandez (M.A.)
. Nilza Ericson Fernandes (A.M.E.)
. Paulo Becker (A.M.E.)
. S ara P érola Fux (M.A.)
. Tânia Lúcia Marinho de Vasconcelos (M.A.)
PARTE 11

FUNDAÇAO DA
-

ESCOLA FREUDIANA DE PARIS


18

Pela razão de que todo empreendimento pessoal levará seu áutor às


condições de crítica e de controle onde todo trabalho a ser desenvolvido será
submetido à Escola.
Isso não implica de forma alguma uma hierarquia de cabeça para baixo,
mas uma organização circular cujo funcionamento, fáci l de programar, se
afi rmará na experiência.
Constituímos três seções, e assegurarei seu funcionamento com dois
colab oradores auxiliando-me em cada uma delas.

1) SEÇÃO DE PSICANÁLISE PURA, ou seja, praxis e doutrina da


psicanálise propriamente dita, que não é outra coisa - o que será estabelecido
em seu lugar - senão a psicanálise didática.

Os problemas urgentes a serem levantados sobre todas as saídas da didática


estarão aqui trilhando a via para uma confrontação mantida entre pessoas que
tenham experiência da didática e candidatos em formação. Sua razão de ser está
fundada sobre o que não deve. ser velado: a necessi dade que resulta das
exigências profissionais cada vez que levam o analisado em formação a assumir
uma responsabilidade, por menos analítica que seja ela.
E no interior desse problema, e como caso particular, que deve situar-se a
e ntrada em controle.' Prelúdio para definir esse caso segundo critérios diferentes
da impressão de todos e do preconceito de cada um. Pois sabe-se que é
atualmente sua única lei, quando a violação da regra implicada na observância
de snas formas é permanente.
Desde o começo, e em todos os casos, será neste quadro assegurado um
controle qualificado ao praticante em formação ::!a nossa Escola.
Serão propostos ao estudo assim instaurado os traços pelos quais eu mesmo
rompo com standards afirmados na prática didática, assim como os efeitos
imputados a meu ensino no curso das minhas análises, quando ocorre que meus
analisados assistam a ele a título de alunos. Serão aí incluídos, se necessário, os
úni cos impasses a conservar de minha posição em tal Escola, ou seja, aqueles
que a indução mesma a que meu ensino visa engendraria em seu trabalho.
Esses estudos, cujo avanço é o questionamento da rotina estabelecida, serão
recolhidos pelo diretório da seção que cuidará das vias mais propícias para
sustentar os efeitos de sua solicitação.
Três sub-seções:
• doutrina da psicanálise pura;
• crítica interna de sua praxis como formação ;
• controle dos psicanalistas em formação .

(1) 1\quilo que, no Brasil, é mais comumente chamado de supervisão. Mantemos o termo
"controle", tão próximo do-controle francês, no intuito de evitar a carga semântica
imaginária contida em "super-visão"(N.T.)
19

Proponho, enfim, como princípio d e doutrina, que esta seção, a primeira,


como também aquela da qual direi no título 3) o destino, não se limite em seu
recrutamento à qualificação médica, pois a psicanálise pura, em si mesma, não é
uma técnica terapêutica.

2) SEÇÃO DE PSICANÁLISE APLICADA, o que quer dizer: de terapêutica e


de clínica médica.
Nela serão admitidos grupos médicos, sejam ou não compostos por sujeitos
psicanalisados , ainda que contribuam em pequena medida à experiência
psicanalítica; pela crí{ica de suas i ndicações nos seus resultados - pela expe­
rimentação dos termos categóricos e das estruturas que aí introduzi como
s ustentáculos da urdidura da praxis freudiana - isto no exame clínico, nas
definições nosográficas, na própria posição dos projetos terapêuticos.
Aqui, mais três sub-seções:
• doutrina da cura e de seus variações;
• casuística;
•informação psiquiátrica e prospecção médica.
Um diretório para autentificar cada trabalho como sendo da Escola, tal que
sua composição exclua todo conformismo preconcebido.

3) SEÇÃO DE INVENTÁRIO DO CAMPO FREUDIANO. Assegurará em


pri meiro plano a exposi ção c a censura crítica de tudo o que oferecem neste
campo as publicações que nele se pretendem autorizadas.
Tratará da atuali zação dos princípios dos quais a praxis analítica deve
receber seu estatuto na ciência. Estatuto que, tão particular quanto se deva enfim
reconhecê-lo, não poderia ser o de uma experiência inefável.
Ela convocará, enfim, tanto a instruir nossa experiência como a informá-la
daquilo que, instaurado pelo estruturalismo em certas ciências, possa esclarecer
a função do que demonstrei na nossa - e, em sentido inverso, o quê , de nossa
subjetivação, essas mesmas ci ências puderem receber como inspiração comple­
mentar.
No li mite , uma praxis da teoria é solicitada, sem a qual a . ordem das
afinidades que desenham as ci ências que chamamos conjeturais ficará à mercê
dessa deriva política que cresce com a ilusão de um condicionamento universal.
Então, mais três sub-seções:
• comentário contínuo do movimento psicanalítico;
• articu lação com as Giências afins; ·

• ética da psicanálise, que é a praxis de sua teoria.


O fundo financeiro constituído primeiro pela contribuição dos membros
da escola, pelas subvenções que obtiver eventualmente, além dos serviços que
garantirá enquanto Esco l a, será inteiramente reservado ao seu esforço de
publicação.
20

Em primeiro lugar, u m anuário reunirá os títulos e o resumo dos trabalhos


da Escola, sem importar onde tenham sido publicados, no qual figurarão, por
simples solicitação, todos os que nela terão estado em função.
A adesão à Escola se dará mediante a apresentação em um grupo de
trabalho constituído como já dissemos.
A admissão será decidida a princípio por mim mesmo, sem que eu leve em
conta as posições tomadas por qualquer pessoa no passado em relação a mim,
certo como estou de que os que me deixaram terão sempre rancor de mim [m'en
voudront] por não poder retornar, pois não sou eu quem os odeia [Jeur en veux].
Minha resposta ao restante só concernerá ao que eu poderia p resum ir ou
constatar sobre o valor do grupo e do lugar que pretenda ocupar primeiramente.
A organização da Escola segundo o princípio de circul ação que indiquei
será fixada pelos cuidados de uma comisssão, aprovada por uma pri mei ra
assembléia plenária, que terá lugar em um ano. Essa comissão a elaborará, a
partir da experiência percorrida, no final do segundo ano, quando uma segunda
assembléia haverá de aprová-la.
Não é necessário que as adesões cubram o conj unto deste plano para que
funcione. Não preciso de uma lista numerosa, mas de trabalhadores decididos,
como sei desde agora.
21

NOTA ANEXA

Esta Ata de Fundação considera nulos os simples hábitos. Parecem , no


entanto, abertas certas questões àqueles que ainda se regem por esses hábitos.
Um guia do usuário, com sete títulos, dá aqui as respostas mais solicitadas,
- de onde se presumirá as questões que elas dissipam.

1) DO DIDA TA
Um psicanalista é di data a partir da realização de uma ou mais psicanálises
que se revelaram didáticas.
E um reconhecimento de fato, que se passou sempre assim nos fatos, não
dependendo de nada além de um anuário que confirme os fatos, sem que se
possa pretendê-lo exaustivo.
A utilização do consenso dos pares tornou-se caduca por haver permitido a
introdução recente do que se chama "a lista" , já que uma sociedade pôde utilizá­
la com fins que desconheciam, da maneira mais clara, as próprias condições da
análise a ser empreendida como análise em andamento.
Condições onde o essencial é que o analisado seja livre para escolher seu
analista.

2) DA CANDIDA TURA À ES COLA


Uma coisa é a candidatura a uma Escola; outra coisa, a qualificação de uma
psicanálise didática.
A candidatura à Escola exige uma seleção estabelecida segundo seus
objetivos de trabalho.
O cargo será preenchid o, a princípio, por um sim ples comitê de recepção,
chamado Cardo , ou seja, dobradiça em lati m , o que indica seu espírito.
Lembremo-nos de que a psicanálise didática só é exigida para a primeira
seção da Escola. embora s.eja desejável para todas.

3) DA PSICANÁLISE DIDÁ TICA


A qualificação de uma psicanálise como didática foi feita, até o momento,
por meio de uma seleção, da qual , para julgá-la, é suficiente constatar que, desde
que existe, não permitiu articular nenhum de seus princípios.
Ninguém tem mais chance de se afastar no futuro, salvo rompendo
primeiro com um hábito que se presta ao desdém.
O único princípio certo a ser proposto, principalmente por ser desconhe­
cido, é o de qu e a psicanálise se constit ui como didática pelo querer do sujeito , e
este deve ser advertido de que a análise questionará esse querer na medida em
que se aproxi me do desejo que guarda em segredo.
22

4) DA PSICANÁLISE DIDÁ TICA NA PA RTICIPA ÇÃO NA ESCO LA


Aqueles que empreendem uma psicanálise didática o fazem por iniciativa e
escolha próprias. O título 1) d esta nota implica inclusive que eles podem estar
em posição de autorizar seu psicanal ista como didata.
Mas a admissão na Escola l hes impõoe a condição de que se saiba que eles
se engajaram no empreendimento , ond e e quando.
Pois a Escola, no momento em que o sujeito entra em análise, deve pesar
esse fato com a responsabilidade que não pode declinar de suas conseqüências.
É uma constante que a psicanálise tenha efeitos sobre toda prática do
sujeito que nela se engaja. Quando essa prática procede, por poucos que sejam os
efeitos psicanalíticos, acaba engendrando-os no l ugar ond e os deve reconhecer.
Como não perceber que o controle se impõe desde o momento em que
aparecem esses efeitos, e em primeiro lugar para proteger deles aquele que vem
em posição de paciente?
Alguma coisa aqui está em jogo com relação a uma responsabilidade que a
realidade impõe ao sujeito quando ele é um pratic;mte; é a de assumir seus
riscos.
Fingir ignorar esse fato é a incrível função que se conserva na prática da
análise didática: supõe-se que o sujeito não pratica, ou se considera que viola
uma regra de p rudência e até de honestidade. Que observando essa regra o
sujeito chegue a faltar à sua função , não está fora dos limites do que se passa, já
o sabemos, por outra parte.
A Escola não poderia abstrair-se desse desastroso estado de coisas em razão
do próprio trabalho para cuja garantia ela é feita.
É p or isso que ela assegurará os controles que convenham à situação de
cada um, encarando uma realidade da qual faz parte a concordância do analista.
Inversamente, uma solução insatisfatória poderá motivar para ela uma
ruptura de contrato.

5) DO ENGA JAMENTO NA ESCOLA


O engajamento na Escola se d á agora por dois acessos.
1- O grupo constituído por escolha mútua segundo a Ata de Fundação, e
que se chamará cartel, se apresenta à minha aprovação com o título do trabalho
que cada um pretenda realizar.
2- Os i ndivíduos que quei ram fazer-se conhecer por qualquer projeto
encontrarão o caminho útil junto a um membro do Cardo: os nomes dos
primeiros a aceitarem o cargo segundo minha demanda serão publicados antes
de 20 de julho. Eu mesmo encaminharei a um deles, que me fará a demanda.

6) DO ESTA TUTO DA ESCOLA


Minha direção pessoal é provisória, embora prometida por quatro anos, os
quais nos parecem necessários para colocar a Escola em ação.
23

Se o seu estatuto é desde agora o da associação declarada na lei de 1901,


acreditamos que deveríamos, primeiro , fazer passar no seu movimento o estatuto
interno que será, num prazo fixado, proposto ao consenso de todos.
Lembremo-nos de que a pior objeção que se pode fazer às Sociedades da
forma existente é o esgotamento do trabalho, manifesto até na qualidade, que
elas causam em seus melhores participantes.
O sucesso da Escola se medirá pelo surgimento de trabalhos recebíveis em
seu lugar.

7) DA ESCOLA COMO EXPERIÊNCIA INA UGURAL


Este aspecto se impõe bastante, pensamos, na Ata de Fundação, e deixamos
a cada um descobrir suas promessas e seus obstáculos.
Aqueles que possam perguntar-se sobre o que nos guia, desvendaremos sua
razão.
O ensino da psicanálise só pode ser transmitido de um sujeito a outro
através de uma transferência de trabalho.
Os "seminários " , inclusive o nosso curso na Hau tes Etudes, nada fundarão
caso não reenviem a essa transferência.
Nenhum aparato doutrinário, e especialmente o nosso, tão propício quanto
possa ser à direção do trabalho, pode prejulgar as conclusões que serão seu resto.
PREÂMBU LO
Pode-se levantar a questão, em primeiro lugar, da relação desta fundação
com o ensino, que não deixa sem garantia a decisão de seu ato .
Ficará estabelecido que, por mais qualificados que sejam os que estiverem
capacitados para discutir esse ensino , a Escola não depende dele e nem mesmo o
ministra. já que prossegue lá fora.
Se, para esse ensino , com efeito, a existência de uma aud i ência que ainda
não tomou sua dimensão foi revelada no mesmo movimento que impôs a Escola,
é ainda mais importante m arcar o que os separa.
Escola Fre u diana de Pari s - este título. reservado na Ata de Fundação,
anuncia as i ntenções de onde procede c com quem se relacionam seus termos.
Passemos pelo lugar do qual retomamos - não sem títulos para fazê-lo­
com a i nsígnia de origem o desafio que implica, já saudado por Frcud: a Escola
se afirma, antes de mais nada, como freudiana, pelo fato - se é uma verdade,
que sem d úvida se sustenta numa presença paciente a reiterá-la, mas que por
esse efeito s e tornou consciência da área francesa - de que a mensagem
freudiana u ltrapassa em muito, na sua radicalidade, o uso que fazem os prati­
cantes de obediência anglófona [anglophone].
Mesmo se se dá uma mão, na França e em outros lugares, a uma p rática
mitigada pela irrupção de uma psi coterapia associada às necessidades de higiene
social , este é um fato ao qual nenhum praticante deixa de most rar seu mal -estar
ou sua aversão , e até mesmo d esdém ou horror, na medida em que surgem
ocasiões em que se deve i mergir no lugar aberto onde a prática aqui denunciada
toma forma imperialista: conformi smo do alvo, barbarismo da d outrina,
regressão culminada num p uro e simples psicologismo - tudo isso mal com­
pensado pelo promoção de um clericato fácil de caricaturar, mas que na sua
constrição é claramente o resto que testemunha a formação pela qual a psica­
nálise não se dissolve naquilo que ela propaga.
Discordância, cuja i m agem se tem na evidência que surge ao interrogar se
não é verdade que, em nossa êpoca, a psicanálise está em toda parte - e os
psicanalistas em outro lugar.
Pois não é em vão que possamos surpreender-nos de que o simples nome
de Freud, pela esperança de verdade que ele conduz, tenha dimensão para
enfrentar-se com o nome de M arx , suspeita não dissipada, embora seja patente
que o abismo é impossível de colmar; que na via entreaberta por Freud poderia
perceber-se a razão pela qual o marxismo fracassa ao explicar um poder cada vez
mais desmesurado e mais louco quanto ao político, se é que não tem um efeito
de relançamento de sua contradição.
Que os psicanalistas sejam incapazes de julgar os males onde se banham­
mas se sintam aí em falta - é o su ficiente para explicar que respondam com um
enquistamento do pensamento. Demissão que abre o caminho para uma falsa
complacência, p ortadora para o beneficiário dos mesmos efeitos que teria uma
25

verdadeira; nesse caso, a etiqueta que eles degradam com termos que têm sob
sua guarda para o empreendimento que não é, de forma alguma, a mola-mestra
da economia reinante, mas é cômodo o acondicionamento daqueles que em­
prega, mesmo nos altos escalões: a orientação psicol ógica e seus diversos ofícios.
Assim, a psicanálise está demasiadamente à espera e os psicanalistas
demasiadamente fora de prumo para que possam desatar o suspense em outro
l ugar que não seja o próprio ponto do qual se afastaram: a saber, na formação de
psicanalista.
Não é que a Escola não diSponha daquilo que lhe assegura não romper
nenhuma continuidade: a saber, psicanalistas irrcpreensívcis sob qualquer ponto
de vista, já que lhes teria b astado, assim como para o resto dos sujeitos formados
por Lacan, renegar seu ensino para serem reconhecidos por uma certa "Inter­
nacional " , e é notório que só deve à sua escolha c ao seu discernimento o fato de
terem renunciado a esse reconhecimento.
E a Escola que volta a questionar os princípios de uma habilitação patente e
do consentimento daqueles que notoriamente a rcceb1�ram.
No que se afirma ainda freudiana, o termo Escola vrm agora a nosso exame.
Deve ser tomado no sentido que nos tempos antigos queria dizer certos
l ugares de refúgio, c até b ases de operação contra o que já podia chamar-se de
mal-estar na civilização.
Se nos limitarmos ao mal-estar da psi canális e, a Escola pretende dar seu
campo não somente a um trabalho de crítica: à abertura do fundamento da
experiência, ao questionamento do estilo de vida no qual ela desemboca.
Os que se engajam aqui sentem-se o bustautc sólidos para enunciar o estado
de coisas manifesto: que a psicanálise atualmente não tem nada mais seguro para
valorizar seu ativo do que a p rodução de psicanalistas - deixando esse balanço
bastante a desejar.
Não se trata de nos estarmos dei xando levar por alguma auto-acusação.
Estamos conscientes de que os resultados da psicanálise, m esmo em seu estado
de duvidosa verd ade, têm aspecto mais digno do que as flutuações da moda ou
as premissas cegas nas quais se fiam tantas terapêuticas no domínio em que a
medicina não terminou de se del imitar quanto aos critérios (os da recuperação
social são isomorfos aos da cura?). c parece até atrasada quanto à nosografia:
dizemos a psiquiatria, transformada numa questão para todos.
É até muito curioso ver como a ps icanálise serve aqui de pára-raios. Como ,
sem ela, se levaria a sério aquilo que se orgu lha de opor-se- lhe? Daí um statu
quo no qual o psicanalista fica à vontade mesmo que se saiba de sua ins ufi­
ciência.
A psicanálise se distingu e, no entanto. por permitir um acesso à noção de
cura em seu domínio , ou seja: devolver seus sentidos aos sintomas, dar lugar ao
desejo que eles mascaram, retificar de modo exem plar a apreensão de uma
relação privilegiada - ai nda poderíamos il ustrar distinções de estrutura que
exigem as formas de enfermidad e , reconhecê-las nas relações do ser que
demanda e que se identifica com essa demanda e com essa identificação.
26

Ainda seria necessano que o desejo e a trans ferência que as animam


tivessem motivado aqueles que têm a experiência disso, até tornar i ntoleráveis
os conceitos que p e rpetuam u m a construção do homem e de Deus onde
entendimento e vontade se distinguem de uma pretensa passividade do primeiro
modo, à arbitrária atividade que se atribu i ao segundo.
A revisão que do pensamento chama as conexões ao desejo, que Freud
i mpõe ao psicanalista, parece estar além de seus meios. Sem dúvida, estes se
eclipsam pelos cuidados que os reduzem à debilidade daqueles que s ão socor­
ridos por ele.
Há u m ponto, todavia, em que o problema do desejo n ão pode s er esca­
moteado: é quando se trata do próprio psicanalista.
E nada é mais típico da tagarelice do que aquilo que dá valid ade a esta
proposta: é isso que condiciona a segurança de sua intervenção.
Perseguir nos álibis o desconhecimento que se abriga em papéis falsos
exige o encontro do que há de mais valioso numa experiência p essoal com
aqueles que o intimarão a confessar-se, considerando-a um bem comum .
A s próprias autoridades científicas são aqui reféns de um pacto de carência
que faz com que não s ej a de fora que se deva esperar uma exigência de controle,
que estaria na ordem do dia em todos os lugares, alhures.
Este é um assu nto u nicamente daqueles que - psicanalistas ou não - se
interessam pela psicanálise em ato.
E a eles que se abre a Escola, para que ponham à prova s eu interesse - não
lhes estando interdito elaborar a sua lógica.

Jacques Lacan
PARTE 111

PROPOSIÇAO DE
9 DE OUTUBRO DE 1967

Publicada em Scilicet nº 1, Paris, du Seui l , 1968.


29

PROPOSI CÃO SOBRE O PSICANALISTA DA ESCOLA

Antes de lê-la, ressalto que deve ser ouvida tendo


como fundo a leitura, a fazer ou refazer, do meu artigo:
" Situação da psicanálise e formação do psicanalista
em 1956" (páginas 419--:-486 de meus Écríts).

Tratar-se-á de estruturas estabelecidas na psicanálise e de, garantir sua


efctuação no psicanalista.
Isto se oferece à nossa Escola após duração suficiente de órgãos esboçados
sobre princípios limitativos. Instituímos algo novo só no funcionamento . Na
verdade, é dali que aparece a solução do problema da Sociedade psicanalítica.
Que se encontra na distinção entre hierarqu ia c gradus.
Produzirei no começo deste ano este passo construtivo:
1) produzi-lo - mostrá-lo a vocês;
2) colocá-los em situação de produzir seu aparato, que deve reproduzir
este passo nestes dois sentidos.
Recordemos o que existe entre nós.
Primeiro, um princípio: o psicanalista só se autoriza por si mesmo. Este
princípio está inscrito nos textos originais da Escola, e decide sua posição.
Isto não exclui que a Escola garanta que um analista depende de sua
formação.
Ela pode fazê-lo por si mesma.
E o analista pode querer essa garantia, coisa que, a partir de então, deve
necessariamente ir além: tornar-se responsável pelo progresso da Escola, tornar­
se psicanalista da sua própria experiência.
Nessa perspectiva, se reconhece que a partir de agora é a estas duas formas
que respondem:
I - o A.M . E . , ou analista membro da Escola, co�stituído simplesmente
pelo fato de que a Escola o reconhece como psicanalista que deu suas provas.
Isto é o que constitui a garantia vinda da Escola, distinguida em primeiro
lugar. A iniciativa também retoma à Escola, em cuja base se é admitido
unicamente por u m projeto de trabalho, sem distinções de proveniência ou
qualificações. Um analista-praticante só é registrad o , a princípio , a mesmo título
com que nela se inscreve um médico , um etnologista e tuttí-quantí.
II - O A.E . , ou analista da Escola, ao qual se atribui ser daqueles que
podem dar testemunho dos problemas cruciais nos p ontos críticos em que se
encontram para a análise, especialmente na medida em que eles mesmos estão
na tarefa, o u pelo menos na via de resolvê-los.
Esse lugar implica que se queira ocupá-lo: só se p ode estar aí havendo-se
demandado de fato, se é que não se o fez formalmente.
30

Que a Escola p ossa garantir a relação do analista com a formação que ela
ministra, está então estabelecido.
Ela pod e , e portanto deve fazê-lo.
É aqui que aparece o defeito [ défaut]', a falta [ m anque] de inventividade
para exercer um ofício (por exemplo, aquele do qual se vangloriam as sociedades
existent es ) , encontrando assim caminhos diferentes que evitem os inconve­
nientes (e os prejuízos) do regime dessas sociedades.
A i déia de que é necessária a manutenção de um regime semelhante para
regulamentar o gradus deve ser destacada em seus efeitos de mal-estar. Esse mal­
estar não basta para j ustificar a manutenção da idéia. E menos.;ainda seu retorno
prático.
A existência de uma regra. do gradus está ainda mais implicada numa
Escola, certamente, do que numa sociedade. Pois , afinal , numa sociedade não há
necessidade disso , quando a sociedade não tem outros i::.üeresses além dos
científicos.
Mas há u m real em jogo na própria formação do psicanalista. S ustentamos
que as sociedades existentes se fundam sobre esse real.
Partimos também do fato, que parece verossímil, de que Freud as quis
ass i m como elas são.
O fato não é menos patente - e para nós concebível - que esse real
provoque o seu próprio desconhecimento, e inclusive produza saa negação
s istemática.
E claro, então, que Freud assumiu o risco de uma certa detenção. Talvez
m ai s : que ele a tenha consid erado a única proteção possível para evitar a
extinção da experiência.
Que nos defrontemos com a questão assim col ocad a, não é privilégio meu.
É a conseqüência, digamo-lo pelo menos para os analistas da Escola, da opção
que fizeram pela Escola.
Estão nela agrupados por não haverem querido, mediante um voto , aceitar
o que este implicava: a pura e simples sobrevivência de _um ensino, o de Lacan.
Todo aquele que siga dizendo alhures que se tratava da formação de
analistas , mentiu. Pois bastou que.se votasse no sentido querido pela I.P.A. para
que obtivessem seu ingresso nela a todo vapor, com a ablução recebida por u m
curto tempo d e uma sigla made in English (não s e esquecerá o french -group).
Meus analisados, como se diz, foram até especialmente b em-vindos, e o
seriam ainda se o resultado pudesse ser o de fazer-me ficar calado.
Isto é recordado todos os dias a quem quiser escutar.
É então a um grupo para o qual meu ensino era s u ficientemente precioso,
inclu sive essencial, a ponto de que cada um, del iberando, tenha marcado
preferir sua manutenção à vantagem oferecida - isto sem ver mais longe, da
mesma forma que, sem ver mais longe, eu interrompia meu seminário depois do

(1) Note-se que défaut admite as traduções: "defeito" e " falta", o que matiza not<JvP.l mente
as frases seguintes (N.T.)
31

mencionado voto -, é a esse grupo com dificuldades para encontrar uma saída
que ofereci a fundação da Escola.
Nessa escolha, decisiva para os que estão aqui , marca-se o valor da aposta.
Pode haver aí uma aposta que tenha para alguns suficiente valor a ponto de ser­
l hes essencial , e é o meu ensino.
Se dito ensino é sem rival para eles, o é para todos, como demonstram
aqueles que se l ançam aí sem ter pago seu preço , ficando-lhes suspensa a
questão do lucro que lhes é permitido.
Sem rival aqui não quer dizer uma estimativa, mas um fató: nenhum ensino
fala do que é a psicanálise. Em outros lugares, e de forma explícita, só existe a
preocupação de que esta seja conforme as normas [elle soit conforme] . <,;
Existe solidariedade entre a pane, inclusive os desvios que a psicanálise
mostra, e a hierarquia que nela reina, - e que nós designamos, benevolente­
mente, nos permitirão dizer, como a de uma cooptação de sábios.
A razão disso reside em que essa cooptação promove um retorno a um
estatuto da prestância, conjugando a pregnância narcisista com a astúcia
competitiva. Retorno que restaura, pelos reforçamentos do relapso, aquilo que a
psicanálise didática tem por fim liquidar.
É o efeito que p õe sua sombra sobre a prática da psicanálise - cuja
terminação, objeto, e indusive meta se revelam inarticuláveis após meio século
pelo menos de experiência continuada.
Remediá-lo entre nós deve fazer-se a p artir da constatação do defeito
[ défa u t] que assinalei, longe de pensar em ocultá-lo.
Mas é para tomar nesse defeito [ défaut] a articul ação que falta [manque].
Ela não faz outra coisa senão recortar o que se encontrará em qualquer
lugar, e que é sabido desde sempre - não é suficiente a evidência de um dever
para cumpri-lo. É pelo viés de sua hiância [béance] que ele pode ser posto em
ação , e o é todas as vezes que se encontra o meio para usá-lo.
Para introduzi-los nisso, me apoiarei nos dois momentos da junção do que
chamarei respectivamente, nesta dedução, de psicanálise em extensão - quer
dizer, tudo o que resume a função de nossa Escola na medida em que ela
presentifica a psicanálise no mundo, - e a psicanálise em intensão, ou seja, a
didática, - na medida em que não faz outra coisa senão preparar aí operadores.
Esquece-se, com efeito, sua razão de ser pregnante, que é a de constituir a
psicanálise como experiência original, levá-la até o p onto que representa a sua
finitude para permitir-lhe o aprés-coup2, efeito de tempo que, sabemos, lhe é
radical.
Essa experiência é essencial ao isolá-la da terapêutica, que não distorce a
psicanálise apenas por relaxar seu rigor.

(2) Aprés-coup: a expressão, considerada geralmente como o equivalente lacaniano do


Nachtraglich de Freud , é em geral traduzida por a posteriori. Dada a especificidade da
noção de tempo lógico em Lacan, no entanto, optamos por mantê-la em francês, inclusive
por ser comum a utilização de termos franceses no Brasil. Betty Milan propõe a expressão
"só depois" p ara traduzi-la (cf. O Seminório, livro 1 - Ed. Zahar, Rio) (N.T.).

·-----· ------- -------


32

Farei a observação, com efeito, de que não há definição possível da


terapêutica que não seja a de restituição de u m estado inicial. Definição
justamente impossível de ser posta na psicanálise.
No que se refere ao primu m non nocere3 não falemos disso, pois é
movediço ao não poder ser determinado primum de início: a quê escolher não
causar dano! Tentem. E muito fácil nessa condição colocar no ativo de uma cura
qualquer o fato de não ter causado dano a alguma coisa. Este traço forçado só
tem o interesse de possuir, sem dúvida, uma lógica indecidível [ indécidable].
Acha-se concluído o tempo no qual ao que se tratava de não causar dano
era à entidade mórbida. Mas o tempo do médico está mais interessado nessa
revolução do que costumamos crer - em todo caso, tornou-se mais precária a
exigência daquilo que determina um ensino como médico ou não. Digressão.
Nossos pontos de junção, nos quais devem funcionar nossos órgãos de
garantia, são conhecidos: trata-se do começo e do fim da psicanálise, assim como
dos fracassos. Por sorte estes são os mais exemplares para a su a estrutura. Tal
sorte deve depender daquilo que chamamos o encont ro .
No começo da psicanálise, está a transferênci a. Está lá graças ao que
chamaremos na orla destas palavras: o psicanalisante4• Não temos que prestar
contas do que o condiciona. Pelo menos aqui. Está no começo. Mas, o que é?
Estou espantado por ninguém haver pensado nunca, tendo em vista certos
termos da minha doutrina, em constestar-me dizendo que a transferência é, em
si mesma, uma objeção à intersubj ctividade. Eu o lamento, já que nada é mais
verdadeiro: ela a refuta, é uma pedra no seu caminho. De maneira que para
estabelecer o fundo sobre o qual se pudesse perceber o contraste, promovi
primeiro aquilo que o u so da palavra implica de intersubjetividade. Este termo
foi assim um modo, um modo como outro qualquer, eu diria, se não me tivesse
sido imposto para circunscrever o alcance da transferência.
Daí que, no lugar onde se requer justificar sua sina universitária, é comum
apoderar-se do tal termo, do qual se supõe - sem dúvida por ter sido utilizado
por mim - que é levitatório. Mas quem me lê pode observar o "em reserva" com
que faço participar essa referência da concepção da psicanálise. Isso faz parte
das concessões educativas que tive que fazer ao contexto de ignorantismo
fabuloso em que tive que proferir meus primeiros seminários.
Pode-se duvidar agora de que, ao referir ao sujeito do cogito aquilo que o
inconsciente nos descobre, ao haver definido a distinção entre o outro
imaginário, chamado familiarmente de pequeno outro, e o l ugar de operação da

(3) Prím um n on nocere (latim): o primeiro é não causar dano (N.T.).


(4) Isso que se chama comumente: o psicanalisado, por antecipação (Nota de facques
Lacan).
Em francês: Je psychanalysant. O termo "psicanalisante", além de ser mais fiel ao
original, sugere uma intervenção mais ativa que o gerúndio "psicanalisando", tão comum
em português. Cf. analogias com termos presentes no vocabulário lacaniano como
"amante", "passante", etc. (N.T. ).
33

l i nguagem colocado como grande Outro, eu indico suficientemente que nenhum


sujeito pode ser suposto [supposable] por outro sujeito, - se este termo deve
realmente ser tomado de Descartes. Que lhe faça falta Deus, ou melhor, a
verdade que ele l he credita, para que o sujeito se aloje sob a mesma capa que
veste com enganadoras sombras humanas - que Hegel , ao retomá-lo, coloca a
i mpossibilidade d a coexistência das consciências na medida em que se trata do
sujeito prometido ao saber - não é isto suficiente para p ontuar a dificuldade, da
qual precisamente nosso impasse, o do sujeito do inconsciente , oferece a solução
- a quem sabe formá-la ?
É verdade que aqui Jean-Paul Sartre, bem capaz de perceber que a luta à
morte não é essa solução, já que não se poderia destruir uin sujeito, e que ela
está também em Hegel em seu nascimento preposto, pronuncia, portas fechadas
[à h uis-clos] . a sentença fenomenológica: é o inferno. Mas como isso é falso, e de
maneira legislável [justiciable] na estrutura, mostrando bem o fenômeno que o
covarde, se não está louco, pode arranjar-se perfeitamente com o olhar que o
fixa, essa sentença prova também que não é só nos ágapes de direita que o
obscurantismo tem sempre a mesa posta.
O sujeito suposto saber é para nós o pivô no qual se articula tudo o que se
relaciona com a transferência. Cujos efeitos escapam ao recorrer-se, para pinçá­
los, ao p u n5 bem sem jeito de estabelecer-se, da necessidade de repetição à
repetição da necessidade.
Aqui. o levitante da intersubjetividade mostrará sua fineza para interrogar:
sujeito suposto por quem? senão por outro sujeito.
Uma lembrança de Aristóteles, uma gota das categorias, imploremos, para
limpar do subjetivo esse sujeito. Um sujeito não supõe nada, é suposto.
Suposto, nós o ensinamos, pelo significante que o representa para outro
significante.
Escrevamos como corresponde o suposto desse sujeito, colocando o saber
em seu lugar de adjacência da suposição.

s .
sq
l 2 n
s (S , S , . . . , S )

Reconhecemos na primeira linha o significante S da transferência, ou seja,


de um sujeito, com sua implicação de um significante que chamaremos
" qualquer", isto é , que só supõe a particularidade no sentido de Aristóteles
(sempre bem-vind o), que por este fato supõe ainda outras coisas. Se é nomeável
mediante um nome próprio, não o é porque se distinga pelo saber, como
veremos.

( 5) Pun (inglês): jogo de palavras, articulado por homonfmias e/ou homofonias, do qual a
própria frase em francês é um exemplo: . . à faire pince pour Jes saisir du pun ... (N.T.)
.
34

Sob a barra, mas reduzida esta ao palmo supondo [supposant]6 do primeiro


significante: o s representa o sujeito que disso resulta, implicando no parêntese o
saber, suposto presente, dos signi ficantes no inconsciente, significação que
ocupa o lugar do referente ainda l atente nessa relação terceira que o junta
[ a djoin t] ao par signi ficante-significado.
Vê-se que , se a psicanálise consiste· na manutenção · de uma situação
pactada entre dois participantes [partenaires] que nela se col ocam como o
psicanalisante e o psicanalista, só pode desenvolver-se às custas do constituinte
ternário que é o significante introduzido no discurso que nela se instaura, o qual
tem um nome: o sujeito suposto saber, formação não de artifício mas de veia [ de
veine] . como destacada do psicanalisante. 0.
Temos que ver o que qualifica o anal i sta p ara responder a essa situação, da
qual vemos que não envolve a se.a pessoa. Não só o sujeito suposto saber não é
real, com efeito, mas não é absolutamente necessário que o sujeito em atividade
na conjuntura, o psicanal isante (ú nico a falar de i níci o), l he faça imposição
deste.
E inclusive tão pouco necessário que, em geral . não é verdade: o que
demonstra, nos primeiros tempos do discurso, uma forma de se assegurar de que
o terno não cabe no psicanalista - garantia contra o temor de que ele, se posso
dizê-lo, faça aí s uas pregas cedo demais.
O que nos i mporta aqui é o psicanalista em sua relação com o saber do
sujeito suposto, não segunda, e sim direta.
E claro que, do saber suposto, não sabe nada. O Sq da primeira linha nada
tem a ver com os S em cadeia da segunda, c só pode achar-se aí por acaso [par
rencontre]. Apontemos este fato para red u zir· assim a estranheza ante a
insistência de Freud em recomendar-nos abordar cada caso novo como se nada
houvéssemos adquirido de seus pri meiros deciframentos.
Isso não autoriza em absoluto o psi canalista a contentar-se com saber que
não sabe nada, pois do que se trata é do que tem que saber.
O que ele tem que saber pode ser m arcado com o m esmo aspecto "em
reserva" segundo o qual opera toda lógica digna desse .nome. Isso não quer dizer
nada de "particular" , mas se articula em cadeia de l etras tão rigorosa que, sob a
condição de que não falte nenhuma [ n 'en pas rater une]. o não-sabido se ordena
como moldura do saber.
O surpreendente é que com isso se encontre algo, os números transfinitos
por exemplo. Que era del es , antes? Indico aqui sua relação com o desejo que
l hes cl eu consistência. E útil pensar na aventura de um Cantor, aventura que não
foi precisamente gratu ita, para sugeri r a ordem - aind a que não seja, por sua
parte, transfinita - em que se situa o desejo do analista.

(6) Supposant - aquele que supõe; n5o havendo equivalente em português, u t i l izamos o
gerúndio "supondo", que em fr a ncês tem a mesma forma. Observe-se a eti mologia do
verbo supor (idêntica em ambos i d ioma�): pôr sob - que certamente Lacan teve em conta
ao construir as noções que o i ncluem (N.T).
35

Essa situação mostra pelo inverso a comodidade aparente com que se


instalam nos p ostos de direção das sociedades existentes o que deve ser
chamado de nadas [ des néants] . Entendam-me: o importante não é a forma com
que esses nadas se ornamentam (discurso sobre a bondade?) para o exterior, nem
a disciplina que supõe o vazio conservado no interior (não se trata de bobagem);
é que esse nada (do saber) é reconhecido por todos, objeto usual, se podemos
dizer assim, para os subordinados, e moeda corrente de sua apreciação dos
Superiores.
A razão disso se encontra na confusão sobre o zero, onde sé permanece
num campo no qual ela não é conveniente. Ninguém que se preocupe, no
gradus, em ensinar o que distingue o vazio do nad a - que entretanto não são
parecidos -, ou o traço de referência para a medida do elemento neutro
i mpl icado no gru po lógico, nem tampouco a nulidade da incompetência, do não­
marcado da ingenuidade, de onde tantas coisas tomariam seu lugar.
E para enfrentar essa carência que produzi o oito interior, e, em geral , a
topologia na qual se sustenta o sujeito.
O que deve d ispor um membro da Escola a semel hantes estudos é a pre­
valência que vocês podem apreender no algoritmo produzido mais acima, que
não persiste menos pelo fato de ser ignorado, prevalência manifesta onde quer
que esteja: tanto na psicanálise em extensão como naquela em intensão , daquilo
que chamarei saber textual para contrapor à noção referencial que a mascara.
De todos os objetos que a l inguagem não propõe somente ao saber, mas que
colocou primeiro no mundo da realidade, da realidade da exploração inter­
hu mana, não podemos dizer que o psicanal ista. seja especialista. Seria melhor,
mas de fato ocorre muito pouco.
O saber textual não era parasita por ter animado uma lógica na qual a nossa
encontra lições, para sua surpresa (falo daquela da Idade Média), e não é às suas
custas que ela soube enfrentar a relação do sujeito com a Revelação. ,
Não é porque o valor religioso desta tornou-se indiferente para nós que seu
efeito na estrutura deve ser negligenciado, A psicanálise tem a consistência dos
textos de freud - isso é um fato irrefutável . Sabemos o quê, de Shakespeare a
Lewis Carrol l, os textos trazem a seu gênio e a seus praticantes.
Eis o campo onde se discerne quem admitir em seu estudo. E aquele do
qual o sofista e o talmudista, o transmissor de histórias e o aedo extraíram sua
força, que a cada i nstante recuperamos meio desajeitadamente para nosso uso.
Que um Lévi-Strauss, em suas mitológicas, dê a ele seu estatuto científico ,
é para facilitar-nos efetivamente a que o convertamos em umbral para nossa
sel eção.
Lembremos o gu i a que meu grafo proporciona à análise e à articulação que
daí se isola do desejo nas instâncias do sujeito.
É para apontar a identidade do algoritmo aqui precisado com o que é
conotado no Banquete como ayaÀJ.la7 •
(7) Agálmatas, objetos inestimáveis que Alcebfades deseja em Sócrates, como descreve
Pkt tão em O Banquete. Cf. os extensos comentários de Lacan sobre o tema no Seminário
VIII (NT).
36

Em que lugar se disse melhor do que o faz ali Alcebíades que as armadilhas
do amor de transferência não têm outro fim senão o de obter aquilo sobre o qual
pensa que Sócrates é o continente ingrato?
Mas quem sabe melhor do que Sócrates que ele só possui a significação que
ele engendra ao reter esse nada. o que lhe permite remeter Alcebíades ao
destinatário presente de seu discurso, Agatão (como por acaso): isso para
ensinar-lhes que, ao obsecar-se pelo qu e lhes concerne do discurso do
psicanalisante, vocês ainda não estão aí.
Mas isso é tudo? quando aqui o psicanalisante é idêntico ao ayaÀJ.Hl, a ma­
raví lha que nos ofusca, a nós, terceiros, em Alcebíades . Não é para nós a ocasião
de ver ali isolar-se o puro viés do sujeito como relação livre ao significante,
aquele do qual se isola o desejo do saber como desejo do Outro?
Como todos esses casos particulares que constituem o milagre grego. este só
nos apresenta a caixa de Pandora fechada. Aberta, é a psicanálise, da qual
Alcebíades não tinha necessidade.

Com o que chamei o fim de pa1tida, nos encontramos - enfim - no cora­


ção de nosso discurso [propos] desta noite. A terminação da análise, chamada
redundantemente de didática, é a passagem, com efeito, do psicanalisante a
psicanalista.
Nosso propósito [propos] acerca dela é produzir u m a equação cuja
constante é o ayaÀJ.la.
O desejo do analista é a sua enunciação, que só poderia operar-se se ele
vem aí em posição do x :
Este x mesmo, a cuja solução o psicanalisante entrega seu ser, e cujo valor
se anota (-cp) , a hiância [béance] que se designa como função do falo ao isolá-la
no compl exo de castração, ou (a) para aqui lo que a obtura com o objeto que se
reconhece sob a função aproximada da relação pré-genital. (É ela que o caso
Alcebíades anula: o que conota a mutilação dos Hermes)
A estrutura assim abreviada lhes permite fazer uma idéia do que ocorre ao
termo da relação de transferência, ou seja: quando o desej o , estando resolvido
quem sustentou o psicanal isante em sua operação, já não tem finalmente
vontade de levantar sua opção , quer dizer, o resto que, determ inando sua
divisão, o faz cair de seu fanta�ma e o destitui como sujeito.
Não é esse o grande motus 8 que devemos guardar conosco, do qual nós ,
analistas , extraímos nossa suficiência, enquanto que a beatitudc se oferece para
além de esquecê-lo nós mesmos?
Não iríamos nós, ao enunciar isto, desencorajar os amadores? A destituição
subjetiva inscrita no ticket de entrada. . . . não será provocar o horror, a ind ig­
nação, o pânico e até o atentado, em todo caso dar o pretexto para a objeção de
princípio?

(8) Motus (latim) movimento, agitação. abalo, revolta, paixão, entusiasmo, revol ução
política, etc. (N.T.)
37

Só que interditar o que se impõe de nosso ser é oferecermo-nos a um


retorno de destino que é maldição. O que é rechaçado [refusé]9 no simbólico,
recordemos o veredicto lacaniano , reaparece no real.
No real da ciência que destitui o sujeito de modo bem diferente em nossa
época, quando só seus integrantes mais eminentes , um Oppenheimer, enlou­
quecem por isso.
Eis onde nos demitimos daquilo que nos torna responsáveis, a saber: a
posição na qual fixei a psicanálise em sua relação com a ciência, a de extrair a
verdade que lhe responde em termos cujo resto de voz nos é atribuído.
Com que pretexto abrigamos esse rechaço , quando bem sabemos da
despreocupação que protege juntos verdade e sujeitos, e que, ao prometer aos
segundos a primeira, isto só mexe com os que já estão próximos. Falar de
destituição subjetiva nunca deterá o inocente, que não tem outra lei senão o seu
desejo.
Não temos outra escolha a não ser enfrentar a verdade ou ridicularizar
nosso saber.

Essa sombra espessa que recobre a junção [raccord] que me ocupa aqui -
aquela em que o psicanalisante passa a psicanalista - eis o que nossa Escola
pode dedicar-se a dissipar.
Não estou mais longe do que vocês nessa obra, que não pode ser conduzida
a sós, posto que a psicanálise constitui o seu acesso.
Devo contentar-me aqui com precedê-la com um ou dois flashes.
Na origem da psicanálise, como não recordar aquilo que Mannoni
finalmente produziu entre nós: que o psicanalista é Fliess , quer dizer, o medi­
castro, o caçador de narizes, o homem a quem se revelam o princípio macho e o
princípio fêmea nos números 2 1 , 28; não lhes desagrada, em suma, esse saber
que o psicanalisante - Freud, o cientificista, como se exprime a boquinha das
almas abertas ao ecumenismo - rejeita [rejette] com toda a força do juramento
que o liga ao programa de Helmholtz e de seus cúmplices:·
Que esse artigo haja sido entregue a uma revistá que não permitia de modo
algum que o termo "sujeito suposto saber" aparecesse, a não ser perdido no meio
de uma página, não o despoja do valor que pode ter para nós.
Em nos recordando "a análise original" , ele nos remete à base da dimensão
de miragem em que se assenta a posição do psicanalista, e nos sugere que não é

(9] Refusé - termo que parece estar aqui descrevendo o mecanismo da forclusion
( Verwerfung em Freud], segundo o veredicto lacaniano: o forclu!do no simbólico,
reaparece no real. Neste caso, seria esperável encon trar a! a forma farelos em lugar de
refusé, já que se trataria da psicose.

Util izamos o verbo rechaçar, entretanto, não impregnado por usos anteriores, levados pela
mesma oscilação que se observa em Lacan quanto ao mecanismo e ao fenômeno descritos.
Cf. nota (10) (N.T.).
38

seguro que esta seja reduzida enquanto uma crítica científica não houver sido
estabelecida em nossa disciplina.
O título se presta à observação de que a verdadeira original só pode ser a
segunda, ao constituir a repetição que da primeira faz um ato , já que é ela que
introduz aí o aprés-coup característico do tempo lógico , que se marca pel o fato
de que o psicanalisante passou a psicanalista. (Quero dizer o próprio Freud, que
sanciona aí não haver feito uma auto-análise).
Permito-me, por outro lado, lembrar a Mannoni que a escansão do tempo
lógico inclui o que chamei momento de compreender, justamente do efeito
produzido (que ele retome o meu so fisma) pela não-compreensão , e que
eludindo em suma o que constitui a alma do seu artigo, ajuda a que se o com­
preenda desviadamente.
Lembro aqui que qualquer um por nós recrutado na base de "compreender
seus doentes" se engaj a em um mal-entendido que não é sadio como t al .

Flash agora em nossa situação atual. Com o fim da análise hipomaníaca,


descrita pelo nosso B alint como o último grito, é o caso de dizê-lo , da iden­
tificação do psicanalisante com o seu guia, - atingimos a conseqüência do
rechaço denunciado anteriormente (tortuoso rechaço [refus] : Verleugnung? 10)que
só deixa o refúgio da palavra de ordem, adotada atualmente nas sociedades
existentes, de aliança com a parte sadia do ego, que resolve a passagem a analista
atribuindo-lhe desde o início essa parte sadia. Para quê, então, sua pass agem
pela experiência?
Essa é a posição das sociedades existentes. Ela rel ança o nosso discurso
[propos] em um além da psicanálise.
A passagem do psicanalisante a psicanalista tem uma porta da qual esse
resto que faz a sua divisão é a dobradiça, pois ial divisão não é outra senão a do
sujeito, do qual esse resto é a causa.
Nessa virada em que o sujeito vê soçobrar a segurança que tomava desse
fantasma, onde se constitui para cada um sua janela para o real , o que se percebe
é que a tomada do desejo não é mais que a de um des-ser [désêtre].
Nesse des-ser se desvela o inessencial do sujeito suposto saber, de onde o
psicanalista a vir se consagra ao O.)UÂ.J.HX da essência do desejo, disposto a pagá­
lo reduzindo-se, ele e seu nome, ao significante qualquer.
Pois ele rejeitou o ser que não sabia a causa de seu fantasma no mesmo
momento em que, afinal , tornou-se esse saber suposto.
" Que ele saiba do que eu não sabia do ser do desejo, o que é del e, chegado
ao ser do saber, e que ele se apague". Sicut palea11 , como Thomas diz de sua
obra no final de sua vida - como esterco.

(10) Refus - Já aqui esse rechaço, ou repúdio, ou recusa, como poderia traduzir-se, está
referido explicitamente à Verleugnung, mecanismo descrito por Freud das perversões - o
qual é geralmente mencionado em francês como dênie. Cf. nota (9) (N.T.).
(11) Sicut palea (latim) : como a pragana (N.T.)
39

Assim o ser do desejo reencontra o ser do saber, para dele renascer


enlaçando-se ambos numa fita feita da única borda, na qual se inscreve uma
única falta, aquela que o sustenta.
A paz não vem selar imediatamente essa metamorfose em que o parceiro se
esvaece por não ser mais do que um vão saber de um ser que se esquiva.
Sentimos aí a futilidade do termo liquidação para designar esse buraco
onde a transferência se resolve exclusivamente. Só vejo nisso, contra toda a
aparência, denegação [ dénégation] do desejo do analista.
Pois quem, divisando os dois p arceiros girarem nas minhas últimas linhas
como as asas de um cata-vento, pode não captar que a transferência nunca foi
outra coisa senão o pivô dessa mesma alternância?
Assim, de quem recebeu a chave do mundo na fenda da impúbere, o
psicanalista já não tem que esperar um olhar, mas se vê tornar-se uma voz.
E esse outro que , criança, encontrou seu representante representativo em
sua irrupção através do jornal aberto, do qual se protegi a o despejo dos esgotos
dos pensamentos de seu genitor, remete ao psicanalista o efeito de angústia onde
ele oscila em sua própria dejeção.
Assim, o fim da psica..'1álise guarda em si uma ingenuidade acerca da qual
se coloca a questão de se este deve ser tomado como uma garantia na passagem
ao desejo de ser psicanalista.
De que lugar poderia então ser esperado um testemunho justo sobre aquele
que franqueia esse passe, senão de um outro que, como ele, o é, ainda, esse
passe, quer dizer - em quem está presente nesse momento o des-ser onde seu
psicanalista guarda a essência do que lhe passou como um luto, sabendo assim,
como qualquer outro em função de didata, que também a eles isso já vai passar.
Quem poderia melhor do que esse psicanalisante no passe autentificar o
que ele tem da posição depressiva? Não expomos ao vento nada de que se possa
dar ares, se não se está aí.
E isso que lhes proporei de imediato como o ofício a confiar para a
demanda de tornar-se analista da Escola a alguns que nela denominaremos :
passadores [passeurs] .
Cada um deles terá sido escolhido por um analista da Escola, que pode
responder pelo fato de que eles estejam nesse p asse, ou tenham voltado a ele -
em suma, ainda ligados ao desatar de sua experiência pessoal.
E a eles que um psicanalisante, para fazer-se autorizar como analista da
Escola, falará de sua análise - e o testemunho que saberão colher do cerne
mesmo do próprio passado será daqueles que nenhum júri de aprovação [jwy
d 'agrément] jamais recolhe. A decisão de tal júri se veria assim esclarecida,
fi cando entendido, no entanto, que tais testemunhas não são juízes.
Inútil indicar que esta proposição implica uma acumulação da experiência,
sua compilação e elaboração, uma seriação de sua variedade e uma anotação de
seus graus.
Que possam surgir liberdades da clausura de uma experiência, eis o que
tem a ver com a natureza do aprés-coup na significãncia.
40

De qualquer j eito , essa experiência não pode ser evitada. Seus resultados
devem ser comunicados: primeiro à Escola, para críticas , e correlativamente
p ostos ao alcance dessas sociedades que, por haver-nos excluído, não deixam de
nos concernir.
O júri em funcionamento não pode então abster-se de fazer um trabalho de
doutrina, para além de seu funcionamento como seletor.

Antes de propor-lhes uma forma, quero indicar-lhes que , conforme a


topologia do plano projetivo, é no horizonte mesmo da psicanálise em extensão
que se enlaça o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em
intensão.
Esse horizonte, gostaria de centrá-lo em três p ontos de fuga perspectivas,
notáveis por pertencer, cada um deles, a um dos registro cuja colusão na
heterotopia constitui a nossa experiência.

No simbólico, temos o mito edípico.


Observemos , com relação ao núcleo da experiência sobre a qual acabamos
de insistir, o que tecnicamente chamarei de facticidade desse ponto.
Corresponde, com efeito, a uma mitogenia, da qual se sabe que um dos
constituintes é sua redistribuição. Ora, o Édipo, ao ser aí ectópico (caráter
sublinhado por um Kroeber), levanta um problema.
Abri-lo permitiria restaurar, relativizar mesmo, seu caráter radical na
experiência.
Queria simplesmente enfocar minha lanterna sobre o fato de que - retirem
o Edipo, e a psicanálise em extensão , direi, cai totalmente na j urisdição
[justiciable] do delírio do presidente Schreber.
Controlem sua correspondência ponto por ponto, certamente não atenuada
dep ois que Freud a assinalou, não declinando sua imputação. Mas deixemos o
que meu seminário sobre Schreber ofereceu àqueles que podiam entendê-lo.
Existem outros aspectos desse ponto relativos a nossas relações com o
exterior, ou, mais exatamente, com nossa extra-territorialidade - termo essen­
cial no Ecrit que considero como prefácio a esta proposição.
Observemos o lugar que toma a ideologia edípica para de algum modo
dispensar a sociologia de tomar p artido - após um século, como devia ter feito
antes - acerca do valor da família, da família existente, da família pequeno­
burguesa na civilização - ou seja, na sociedade veiculada pela ciência. Nós nos
beneficiamos ou não com o que aí nos cobrimos sem sabê-lo?

O segundo ponto está constituído pelo tipo existente, cuja facticidade desta
vez é evidente, da unidade: sociedade de psicanálise enquanto coroada por um
executivo em escala internacional.
Já dissemos, Freud assim o quis, e o sorriso embaraçado com que retrata o
romantismo da espécie de Komintern clandestino ao qual deu, de início, carta
branca (cf. Jones, citado em meu Écrit), só faz sublinhá-lo mais.
41

A natureza dessas sociedades e a forma a que elas obedecem se esclarecem


através da promoção, por Freud, da Igreja e do Exécito como modelos do que ele
concebe como estrutura do grupo. (É com este termo, com efeito. que se deveria
traduzir hoje Masse de sua Massenpsychologie)12•
O efeito induzido da estrutura assim privilegiada se esclarece ainda mais se
acrescentarmos a função, na Igreja e no Exército, do sujeito suposto saber.
Estudo para quem quiser empreendê-lo: iria longe.
Mantendo-nos no modelo freudiano, aparece de forma evidente o favor que
nele merecem as identificações imaginárias e ao mesmo tempo a razão que
encadeia a psicanálise em intensão, a limitar a sua consideração e até o seu
alcance.
Um dos meus melhores alunos referiu muito bem seu traçado sobre o
próprio É dipo, ao definir a função do Pai ideal.
Tal tendência, como se diz, é responsável pela relegação ao ponto de
horizonte anteriormente definido daquilo que na experiência é qualificável de
edípico.
A terceira facticidade, real, demasiadamente real , bastante real para que o
real seja mais patamaz [béguele] para promovê-lo que a lingua, é o que torna
falável o termo: campo de concentração, sobre o qual parece-nos que nossos
pensadvres, ao vagar do humanismo ao terror, não se concentraram o suficiente.
Abreviemos dizendo que o que vimos emergir daí, para nosso horror,
representa a reação dos precursores com relação ao que se irá desenvolvendo
como conseqüência da recomposição dos agrupamentos sociais pela ciência, e
especialmente pela universalização que ela introduz.
Nosso futuro de mercados comuns encontrará sua balança numa extensão
cada vez mais dura dos processos de segregação.
Deve-se atribuir a Freud o fato de ter querido, tendo em vista sua intro­
dução de nascença no modelo secular desse processo, assegurar em seu grupo o
privilégio da flutuabilidade universal, do qual se beneficiam as duas instituições
acima mencionadas? Não é impensável.
Seja como for, esse recurso não torna mais fácil situar-se nessa conjuntura o
desejo do analista.
Recordamos que, se a I.P.A. da Mitteleuropa13 demonstrou sua pré-adap­
tação a essa prova, não perdendo nesses campos um único de seus membros, ela
deve essa proeza ao fato de ver produzir-se depois da guerra uma correria, que
não deixava de ter seu lado de desconto (cem psicanalistas medíocres, lembre­
mos-nos), de candidatos em cujo espírito não estava ausente o motivo de en­
contrar proteção contra a maré vermelha, fantasma de então.
Que a "coexistência", que poderia perfeitamente, também ela, esclarecer-se
com uma transferência, não nos faça esquecer um fenômeno que é uma de nos-

(12) Massenpsychologie und Ichanalyse - Psicologia das massas e análise de eu; Masse:
massa (N.T.).
42

sas coordenadas geográficas, é o caso de dizê-lo (e cuja magnitude é mascarada


pelos resmungos sobre o racismo).

O fim deste documento precisa o modo pelo qual poderia ser introduzido
aquilo que, abrindo uma experiência, só tende a tornar finalmente verdadeiras as
garantias buscadas.
Deixamo-las inteiramente nas mãos daqueles que tenham aquisição.
Não esqueçamos, entretanto, que eles são os que mais padeceram nas
provas impostas pelo debate com a organização existente.
Aquilo que o estilo e os fins dessa organização devem ao blecaute realizado
11 a função da psicanálise didática é evirler.te a partir do momento em que é

possível dar uma olhada nisso: daí o isolamento com que ela se protege.
As objeções que a nossa proposta encontrou não dependem, em nessa
Escola, de um temor tão orgânico.
O fato de que tenham sido exprimidas sobre um tema motivado já mobiliza
a auto-crítica. O controle das capacidade não é mais inefável por requerer mais
justos títulos.
E numa prova como essa que a autoridade se faz reconhecer.
Que o público dos técnicos saiba que não se trata de contestá-la, mas de
extraí-la da ficção.
A Escola freudiana não deveria cair no tough14 sem humor de um
psicanalista que encontrei em minha última viagem aos E .U.A.: " Eu não atacarei
jamais as formas instituídas, disse-me ele, porque elas me asseguram sem
problemas uma rotina que constitui o meu conforto".

Jacques Lacan

(13) Mitteleuropa (alemão) : Europa Central (N.T.).


(14) Tough (inglês); rebeldia, insubmissão, indisciplina (N.T.).
PARTE I V

DISSOLUÇAO
-

. CARTA DE DISSOLUÇÃO

. O OUTRO FALTA

. D' ÉCOLAGE

. SENHOR A.

. LUZ !

. O MAL-ENTENDiDO

Publicados em Ornicar? (20-21). Edilions du Seu i l , 1 980, salvo os dois ú l timos


sem inários, que o foram no n úmero seguinte de Ornica r? (22-23), de 1 981.
45

CARTA DE DISSO L UCÁO


Falo sem a menor esperança - de me fazer ouvir de forma especial.
Sei que o faço - acrescentando o que isso comporta de inconsciente.
Esta é a minha vantagem sobre o homem que pensa sem perceber que ,
primeiro, fala. Vantagem esta que só devo à minha experiência.
Porque no intervalo entre a palavra que ele desconhece e o que ele crê fazer
pensamento, o homem se atrapalha, o que não é nada encorajado r.
De maneira que o homem pensa sem firmeza, e com menos firmeza quanto
mais se zanga . . . Justamente por atrapalhar-se.
Há um problema da Escola. Não é um enigma. Também, eu aí me oriento,
não ráp ido demais.
Esse problema se demonstra como tendo uma sol ução : é a dis 1 , a
dissolução.
A ser entendida como a da Associação que dá estatuto jurídico a esta
Escola.
Basta que um vá embora p ara que todos fique m livres , é no meu nó
borromeano, verdade de cada um, e em minha Escola é necessário que seja eu.
Decido-me porque se não me intrometesse ela funcionaria na contramão [à
rebours] daquilo para o qual a fundei.
Ou seja, por um trabalho - já o disse - que, no campo aberto por Freud ,
restaura a lâmina cortante dé sua verdade - que traz a praxis original que ele
institui u sob o nome de psicanálise para o dever que retoma a ele em nosso
mundo - que, por meio de uma crítica assídua, denuncie os desvios e os
compromissos que amortecem seu progres so, degradando sua utilização.
Objetivo que mantenho.
E por isso que dissolvo. E não me queixo dos chamados "membros da
Escola Freudiana" - antes lhes agradeço, por haver ensinado onde fracassei -
quer dizer, me atrapalhei .
Esse ensinamento é pr.;cioso para mim. E u o aproveito.

Dizendo de outra maneira, eu persevero [je p ersévere].


E chamo a associar-se uma vez mai s , neste j aneiro de 1980, aqueles que
queiram prosseguir com Lacan.
Que o escrito de uma candidatura me faça conhecê-los o quanto antes.
Dentro de d ez dias , para pôr fim à fraqueza circundante, publicarei as primeiras
adesões que tiver aceito como compromissos de "crítica assídua" daquilo que,
em matéria de " desvios e compromissos", a E.F.P. nutriu .
Demonstrando e m ato que não dependerá deles que minha Escola seja
Intituição, efeito de grupo consolidado, em detrimento do efeito de discurso

(1) Jogo fonético entre dis, de je dis (eu digo), e a primeira sílaba da palavra dissolution
(N.T.).
46

esperado da experiência, quando esta é freud iana. Sabemos o preço que teve o
fato de Freud ter permitido que o grupo psicanalítico, apropriando-se de seu
discurso, se transformasse em Igreja.
A Internacional, posto que este é seu nome , é apenas o sintoma do que
Freud esperava déla. Mas não é ela que pesa. E a Igreja, a verdadeira, que
sustenta o marxismo e nquanto ele lhe dá sangue novo . . . com um sentido
renovado. Por que não a psicanálise, quando esta dá uma virada no sentido?
Não digo i sto com um vão i ntuito de ridicul arizar. A estabilidade da
religião p rovém do fato de o sentido ser sempre reli gioso.
Daí mi nha obstinação no meu caminho de maternas - que não impede
nada, mas testemunha o que seria preciso para colocar o analista no passo de sua
função .
Se eu persevero [je pere-sévereF é porque a experiência feita convoca uma
contra-experiência que a compense.
Não preciso de m u ita gente. E há gente da qual eu não preciso.
Deixo-os no ar para que me mostrem o que sabem fazer além de obstruir-me
e liquefazer um ensino no qual tudo foi examinado .
Agirão melhor os que admitirei comigo? Pelo menos poderão aproveitar a
chance que l hes deixo.
A diretoria da E . F.P . , como foi com posta por mim, despachará os assuntos
de rotina até que uma Assembléia extraordinária, que será a última, convocada
no tempo que estipula a lei, proceda à devolu ção dos seus bens, que terão sido
aval i ados pelos tesoureiros, Rene Bailly e Sol ange Faladé.

Jacques Lacan
Guitrancourt, 05 de janeiro de 1980

(2) A homofonia com a frase anterior (persévere) aqui também pode ser lida assim "Se eu
é porque a experiência feita .. " (N.T.).
sou um p ai severo, .
47

O OUTRO FALTA
Eu estou no trabalho do inconsciente.
O que ele me demonstra é que não há verdade p ara responder ao mal-estar
que é particular a cada um daqueles que eu chamo seres-falantes [parlêtres].
Não há aí u m i mpasse comum, pois nada permite supor que todos
confluam.
O uso do u m , que só encontramos no significante, não fu nda em absoluto a
u nidade do real. S alvo para fornecer-nos a i magem do grão de areia. Não
podemos dizer que, mesmo fazendo um montão, ele faça tudo. É preciso u m
axi oma, o u seja, uma posição para d izê-lo tal .
Que possa ser contado, como diz Arquimedes , não é ma1s do que um si gno
do real , não de um u niverso qualquer.

Já não tenho mais Escola. Eu a desprovi do ponto de ap oio (sempre Arqui­


medes) que tomei do grão de areia da minha enunciação.
Agora tenho um montão - um montão de gente que quer que eu os receba.
Não vou fazer com eles um todo.
De jeito nenhum, não há todo [pas de tout].
Já disse que não preciso de muita gente, e é verdade - mas de que serve
dizê-lo, se há muita gente que precisa de mim?
Qu e, pelo menos, crêem (precisar de mim). Que o crêem a ponto de me
dizerem isso p or escrito.
E por que eu também não o creria? Já que me i ncluo na conta dos otários
[ dupes] . como todos sabem.
Não espero nada das pessoas, apenas alguma coisa do funcionamento.
Portanto é preciso que eu inove, pois falhei nesta Escola, fracassando ao não
produzir seus Analistas (A.E.) à altura .
Qual , dentre os el eitos por meu júri de aprovação, eu teria aconselhado a
votar em si mesmo se porventura se apresentasse hoj e como passante?
Além disso, nada me apressa a refazer escola.
Mas "sem levar em conta as posições tomadas no passado com relação à
mi nha pessoa" - citação de 1 964 -, admito que se associe aquele que faça o
mesmo, havendo declarado prossegu ir comigo em termos que em minha opinião
não o desmintam de antemão.
Nada p ermite prejulgar quem é quem, mas me remeto à experiência a ser
feita, freudiana se for possível .
Assim com o o célebre encontro dos apaixonados num baile n a Óp era.
Horror quando d eixaram cair a máscara: não era ele, e tampouco ela.
Ilustração do meu fracasso nessa Heterança [ Hétérité]' - perdoem-me a
(3) Neologismo , criado possivelmente pela condensação de hétérie (heteria, sociedade
secreta da antiga Grécia com fins polfticos) e hérédité (herança, no sentido biológico, ou
- em direito - a q u a l i dade de herdeiro, direito que este tem à sucessão ) . Optamos, por
isto, pela tradução de hétérité como heterança (N.T. ) .
48

Hibris4 - que me decepcionou o bastante para que eu lance o enunciado de que


não há relação sexual5•
Freud parte de sua causa6 fálica para daí deduzir a castração. O que
necessariamente deixa arestas, que eu me ocupo de aparar.
Ao contário do que se diz, "a" mulher - me atrevo a dizê-lo porque ela não
existe - não está privada do gozo fálico.
Ela não o tem menos que o homem ao qual se prende seu instrumento
(organon). Por p ouco dotada que ela seja (poi s reconheçamos qu e é escasso), não
obtém menos efeito daquilo que limita a outra borda desse gozo, a saber, o
i nconsciente irredutível).
E por isso que "as" mulheres - elas sim existem - são as melhores
analistas. As vezes as piores.
Sob a condição de não aturdir-se em absoluto por uma natureza anti-fálica,
da qual não existem rastros no inconsciente, elas podem escutar o que desse
inconsciente não se consegue dizer, mas adjaz [ attient) a isso que se elabora,
proporcionando-lhes o gozo propriamente fálico.

O Outro falta. Isso me parece engraçado. Resisto ao golpe, no entanto, o que


os espanta: mas não o faço para isso.
Por outro lado, aspiro pelo dia em que o mal-entendido, vindo de você s , me
espantará a tal ponto que ficarei comovido a ponto de não poder resistir mais.
Se ocorre que eu me vá, digam que é a fim - de ser, enfim, Outro.
Podemos contentar-nos com ser Outro, como todo mundo, após uma vida
passada a querer sê-lo, apesar da Lei .

15 de janeiro de 1980

O texto deste seminário foi publicado no número do Le Monde de 26 de


ja neiro de 1 980, precedido da seguinte carta:

CARTA AO JORNAL "LE M ONDE"


Remeto ao Mon de o texto desta carta, junto com o meu s eminário do dia 15,
esperando que o publiquem na íntegra.
Para que se saiba que ninguém aprendeu junto a mim nada d e que possa
vangloriar-se.
Sim, o psicanalista sente horror do seu ato. A tal ponto que o nega, e
denega, e renega - e amaldiçoa aquele que o faz lembrar, Lacan Jacques, para

(4) Hibris (gr. ): Desmesura, insolência, abuso, violência, person i ficação da viol ência
(N.T. ).
(5) Rapport sexuel: além de relação, rapport pode ser usado também como: relato, ou
correlação, proporção, etc . (N.T.).
..

(6) Cause: termo que adquire relevância pela convocação à Cause Freudienne, logo após a
dissolução da E.F.P .. Pode remeter, como "causa" em português, às significações: origem,
motivo, ação j udicial, partido ou interesse (como em "causa polftica"), além de vincular­
se com o verbo causer (fr.): tagarelar (N.T.).
49

não nomeá-lo, e até denunciar Jacques-Alain Miller, odioso por se demonstrar


como ao-menos-um que o lê. Sem mais considerações que as devidas aos
"analistas" estabelecidos.
Meu passe os pegou tão tarde que eu já não tenho nada que valha? Ou é por
haver confiado o cuidado a quem dá testemunho d e não haver percebido nada
da estrutura que o motiva?
Que os psicanalistas não chorem por aquilo d e que eu os alivio. A
experiência, não a abandono. O ato , dou-lhes a chance de fazer-lhe frente.

24 de janeiro de 1980
Jacques Lacan
50

D'ÉCOLAC F
Eis-me aqui: um homem coberto de cartas.
Meu companheiro Drieu era, ou achava que era, o homem coberto- de
mulheres - a ponto de intitular assim um de seus romances.
Título com o qual me denominaram meus colegas de plantão - eu tinha só
duas (mulheres) cuidando de mim, como todo mundo, e discretamente eu lhes
peço que o creiam.
Levei a sério essas cartas. Quero dizer: peguei uma por uma, como se Jaz
com as mulheres, e fiz minha lista.
Cheguei ao final desse montão.
Há pessoas que se queixam de que as esqueci. É possível. Que se dirijam a
Glória.

Acertei no milhar [j'ai tapé dons le mille]8, e mais ainda.


Mas é preciso estabelecer uma diferença entre essas mil. Posto que uns
ficam de luto por uma Escola e outros não.
O luto é um trabalho, é o que se lê em Freud. É este que eu peço àqueles
que, da Escola, queiram ficar comigo para a Causa Freudiana.
A esses escrevi uma carta ontem à noite. Já vão recebê-la.
Eis o que lhes digo:
" Delenda est:9 • Dei o passo, daqui para a frente irreversível, de dizê-lo.
Como o demonstra o fato de que, retornando aí, só encontramos o
grudar-se - onde eu fiz menos Escola. . . que cola [École . . . que colle].
Ela está dissolvida a partir do fato do meu dito. Resta que o seja a partir
do seu também.
Faltando isso, a sigla que têm de mim - E.F.P. - cai em mãos de
verdadeiros falsários .
Desfazer a manobra recai sobre aqueles da Escola que eu reuni neste
sábado.
Creiam-me: não admitirei que ninguém se divirta com a Causa
Freudiana, salvo que esteja seriamente descolarizado [d'écolé)1°."
Assinei isto ontem, 10 de março.

(7) A partir do tftulo, e em todo o texto do seminário, Lacan joga com a homofonia entre
d'écolage (neologismo derivado de école, que optamos por traduzir como descolarização),
e decollage (descolagem, ou ainda: decolagem). Não escapará ao leitor que o jogo gira em
torno da dissolução da École, da qual Lacan se "desgruda" e "sai voando" (N.T.).
(8) A expressão francesa, usada geralmente como o nosso "adivinhei certinho", alude aqui
também à quantidade de cartas recebidas (N.T.).
(9) Latim: de Delenda est Cartago (Catargo deve ser destruída). Frase com que Catão
terminava seus discursos durante o confronto entre Catargo e Roma (N.T.).
(10) No sentido de despojado dos vícios da École. Em leitura oral também pode ser
entendido como: "salvo que tenha se desgrudado, seriamente", ou ainda: "que haja
decolado seriamente"(N.T.).
51

Também assim é a falha de Freud, a d e haver deixado os analistas sem


recursos, e, por outro lado sem outra necessidade senão a de sindicali zar-se.
Eu tentei inspirar-lhes outro anseio, o de ex-sistir. E aí triunfei. Isto é
marcado pelas precauções com que se contorce o retorno à trilha.
O que não é verdade para todos, posto que há gente suficiente para seguir
meu rastro, e subsistir através de um laço social j amais surgido até o presente.
Que outro fato pode ser prova de minha formação senão o de acompanhar­
me no trabalho, pois trata-se de um, da dissolução?
Eles devem agora contar-se.

Dirijo-me aos outros, que não têm que fazer esse trabalho por não haverem
participado da minha Escola - sem que p or isso não se possa dizer que não
tenham sido também intoxicados.
Com eles , sem demora, dou partida à Causa Freudiana - e restauro em seu
favor o órgão de base retomado da fundação da Escola - ou seja, o cartel - d o
qual , feita a experiência, aprimoro a formali zação.
Primeiro - Quatro se escolhem para l evar a cabo um trabalho que deve ter
seu produto. Preciso: u m produto próprio de cada um, e não coletivo.
Segundo - A conjunção dos quatro se faz ao redor de um M ais-Um [Plus­
Un] que, se é qualquer um, deve ser alguém. Será encarregado de velar pelos
efeitos internos do empreendimento e de provocar sua elaboração.
Terceiro - Para prevenir o efeito de cola [de colle]'l , deve-se realizar a
permutação no prazo estabelecido de um ano, no máximo dois.
Quarto - Não se espera outro progresso senão o de uma periódica
exposição dos resultados, assim como das crises do trabalho.
Quinto - O sorteio assegurará a renovação regular dos limites demarcados
com o fim de vetorizar o conjunto.
A Causa Freudiana não é Escola, e sim Campo - onde cada um terá
liberdade para demonstrar o que faz com o saber que a experiência decanta.
Campo que os da E.F.P . reencontrarão desde que tenham se desembaraçado
daquilo que atualmente os incomoda mais do que eu.

Abrevio aqui a regulagem necessária para a partida.


Porque é preciso que eu termine com o mal-entendido, as mulheres de que
disse, no meu último seminário, não estarem privadas do gozo fálico.
Imputaram-me pensar que são homens. Eu os interrogo um pouquinho.
O gozo fálico não as aproxima dos homens, antes as afasta, posto que esse
gozo é obstácul o para acasalá-las com o sexuado da outra espécie.
Desta vez, previno o mal-entendido subl inhando que isso não quer dizer
que elas não possam ter, com um só - escolhido por elas - a satisfação
verdadeira: fálica.

(11) Oralmente , também pode ser entendido como: efeito da escola [d'écolc] (N.T.).
52

Satisfação que se situa em seu ventre. Mas p arecendo responder à palavra


do homem.
Por isso é preciso que ela caia bem. Que ela caia sobre o homem que lhe
fale segundo o seu fantasma fundamental, o dela.
Ela consegue efeito de amor algumas vezes, e de desejo, sempre.
Isso não ocorre tão freqüentemente. E quando ocorre não faz relação
[rapport] na medida em que, escrito, seja ratificado no real.
Disso que chamei a não-relação [non rapport] . Freud tinha a idéia, apesar
de sua redução do genital ao fato da reprodução.
Não será, com efeito, o que ele articula sobre a diferença entre a pulsão que
chama fálica e aquela que ele pretende que subsiste do genital?
Teria ele percebido o duahsmo sem a experiência, em que estava, da psi­
canálise?
O gozo fálico é justamente aquele que consome o analisante.

Pois bem. Deixo-os.


Gostaria de que me fizessem perguntas. Façam-nas por escrito. Enviem-nas
a mim. Eu as responderei na semana que vem, se elas valerem a pena.
Na semana que vem também lhes direi como trabalha isso - a dissolução.

1 1 de março de 1 980.
Jacques Lacan
53

Senhor A.
O senhor A . , filósofo, que apareceu não sei de onde sábado passado p ara
apertar-me a mão, fez ressurgir para mim um título de Tristan Tzara.
E da época Dada, ou seja, nada da futili d ade que começou com Littérature
- revista à qual não forneci nem uma linha.
E imputado a mim de boa vontade um surrealismo que está longe de ser de
meu agrado. Provei isto só contribuindo a ele de forma l ateral , e muito tardia­
mente, para deixar zangado André Breton. Devo dizer que Eluard me enternecia.
O Senhor A. não me enternece , p ois me fez recordar o título: Senhor A o . , o
anti-filósofo.
Isso me deixou estupefacto.
Então , quando dei a Tzara, que se alojava na mesma casa que eu, na rua de
Lille No. 5 , A Tnstância da Letra, ele não l he prestou grande atenção. Eu achava,
no entanto, estar dizendo algo que devia i nteressar-lhe.
Pois bem: nem um pouco. Vejam só como a gente se engana.
Tzara só delirava com Villon. E assim mesmo desconfiava desse delírio.
Eu não tinha a menor necessidade de que ele delirasse sobre mim. Já havia
bastante gente que fazia isso. O que ainda continua.
Como não estiveram todos vocês comigo no sábado e no domingo, porque
graças a Deus não são todos da minha pobre Escola, não têm idéia de até onde
pode chegar o delírio sobre mim.
O que me dá esperança é o fato de Tzara ter deixado François Villon cair,
assim como, por outro lado, a mim também.

Esse Senhor A. é anti-filósofo. É o meu caso.


Eu m e insurjo, se posso dizer assim, contra a filosofia. Estou seguro que é
uma coisa acabada. Mesmo esperando que ressurja um broto dali.
Esses ressurgimentos sucedem freqüentemente nas coisas acabadas. Olhem
esta Escola arqui-acabada: até este momento, havia juristas que se tornaram
analistas ; agora, vira-se jurista por não haver-se tornado analista.
Inclus ive juristas de meia-tijela, como não lhes mandou dizer Pie rre -­

Legendre.

E necessário que eu precise? Não sonho em absoluto em dissolver a Escola


Normal Superior, onde numa época encontrei a melhor acolhida.
Meu raio12 caiu bem ao lado , na rua Clude Bemard, onde instalei, sobre
seus móveis, a minha Escola.

(12) Ma foudre: alusão ao raio de Júpiter, atributo do Deus e sua arma, lançada nos
momentos de cólera contra quem provocava a sua fúria (N.T.).
54

A Causa Freudiana não tem outro móvel a não ser minha caixa de correio.
Indigência que tem muitas vantagens: ninguém pede para fazer um seminário na
minha caixa de correio.
E preciso que inove, disse - salvo que acrescentando: não sozinh o.
Vejo isto assim : que cada um ponha aí algo de seu.
Vamos. Reúnam-se vários, grudem-se o tempo necessário para fazer alguma
coisa, e depois dissolvam-se para fazer outra coisa.
Trata-se de que a Causa Freudiana escape do efeito de grupo que eu lhes
denuncio. De onde se deduz que ela só durará pelo aspecto temporário - quero
dizer: se se desligam antes de ficarem grudados irremediavelmente.
Isso não requer grande coisa:
- uma caixa de correio. ver acima;
- um correio que faça saber o que, nessa caixa, se propõe como trabalho;
- um congresso, ou melhor, um fórum onde isso se intercambie;
- enfim, a p ublicação inevitável , para o arquivo.
Também é necessario que, com isso, eu instaure um turbilhão , um
movimento em hélice que l hes seja propício.
Isto, ou o grude assegurado.

Vejam como coloco isto através de pequenos toques. Dou-lhes seu tempo
para compreender.
Compreender o quê? Eu não me gabo de fazer sentido. Tampouco do
contrário. Pois o real é o que se opõe a isso.
Prestei homenagem a Marx como inventor do sintoma. Marx é , no entanto,
o restaurador da ordem pelo simples fato de ter reinsuflado no proletariado a
dimensão [dit-mension)13 do sentido. Para isso, foi suficiente que ele deno­
minasse como tal o proletariado.
A Igreja tirou daí o exemplo, foi o que lhes disse no dia 5 de janeiro.
Saibam que o sentido religioso vai ter um boom do qual vocês não têm a menor
idéia. Porque a religião é a moradia original do sentido. Isto é uma evidência que
se i mpõe. Aos que são responsáveis na hieraquia mais que aos outros.
Tento opor-me a isso para que a psicanálise não seja uma religião, como é
sua tendência irresistível desde o momento em que se imagina que a inter­
pretação não opera a não ser pelo sentido. Eu ensino que a sua mol a-mestra está
alhures, especificamente no significante como tal .
A isso resistem aqueles aos quais a dissolução provoca pânico.
A hierarquia só se sustenta por gerir o sentido. E por isso que eu não dou
um empurrãozinho a qual quer responsável, na Causa Freudi ana. É com o
turbi lhão, com a hélice que eu conto. E, devo dizê-lo, com os recursos de
doutrina acumulados em meu ensino.

(1 3) Jogo de palavras em torno da homofonia entre dimension (dimensão); dit mansion


(mansão do dito); e dit-mention, (dita menção) (N. T.).
55

Volto às perguntas que, a meu pedido, m e foram feitas.


Não vejo p o rque eu teria objeções a que se formem cartéis da Causa
Freudiana em Quebec. Preciso: com a única condição de que se notifique por
correio à dita Causa.
O Mais-Um [Plus-Un] se sorteia? - me pergunta P ierre Soury, a quem
respondo que não, os quatro que se associam o escolhem.
Ele me escreve também o seguinte:
"Para os mil da Causa Fre u diana, os cartéis se formarão a prínc1p10
por escolha m ú tu a e, depois, por u m a redistribuição geral, voltarão a
formar-se por sorteio no interior do grande conjun to. O que implica
que, entre mil, q ualquer um pode ser levado a colaborar, num pequeno
grupo, com qualquer outra pessoa ".
Eu lhe assinalo que não foi isso que disse, já que, desses mil, que por outro
lado são mais, eu só convido por enquanto a formar cartéis os não-membros da
Escola. Então, nada de "grande conjunto". E não im plica um sorteio geral - mas
somente em compor as iustâncias provisóri as qur. serão as referências do
trabalho.
Dito isto, felicito Soury por formular a colaboração na Causa Freudiana de
qualquer um com qualquer um. E exatamente o que se trata de obter, mas com
uma cond ição : que isso também se agite em turbilhão.
Outra pessoa se inquieta por saber o que quer dizer precisamente ser um
A.E. à altura. É um A.E. quem me pergunta. Pois bem , que releia a minha
Proposição de outubro de 1 967. Verá que isso implica pelo menos qu e ela seja
aberta.
Outra pessoa ainda me pede para articular a relação do que denomi nei
grude [la colle] com o que Freud chama de fixação a propósito do recal q ue. Por
outro lado, é uma pessoa que não se contenta em enviar-me essa pergunta -
também anexou textos. Na verdade, não os enviou: deixou-os ontem na minha
casa.
Trata-se de Christiane Rabant, que ficou comovida, disse, pelo q ue me
ocorreu articular a propósito da carta de amor.
O que é fixado ? E o desejo, que por estar preso no processo do recalque, se
conserva em uma permanência que equivale à indestrutibilidade.
Este é um ponto sobre o qual chegamos até o fim, sem dar o braço a torcer.
Nisso, o desejo se diferencia totalmente d a mobilidade do afeto.
A perversão é aí bastante indicativa, pois a mais simples fenomenologia
põe em total evidência a constância dos fantasmas privilegiados.
No entanto, se bem que ela nos mostre o caminho desde os primórdios dos
tempos , não nos abre a entrada, pois foi preciso Freud.
Foi preciso que Freud descobrisse primeiro o inconsciente para que viesse
ordenar sobre essa via o catálogo descritivo desses desejos, em outras p alavras : a
sorte das pulsões - como traduzo Triebschicksale14•
Trata-se de formalizar [mettre en forme] o vínculo dessa fixação do desejo
com os mecanismos do inconsciente.
56

É precisamente a isso que me dediquei, posto que jamais pretendi superar


Freud, como me acusa um de meus correspondentes, mas sim prolongá-lo.

Responderei aos outros na terceira 3" feira de abril. Vocês ainda podem
enviar-me perguntas. Isto não me cansa.
Há pessoas da Escola que querem fazer jornadas sobre o trabalho da
dissolução. Sou a favor. Para isso. falem com Colette Soler, Michel Silvestre ou
Éric Laurent. Digo isto aos membros da Escola.

18 de março de 1 980
Jacques Lacan

(14) Em português, o texto de Freud aludido é traduzido por: As pulsões e seus destinos
ou ainda : . e suas vicissitudes (N.T.).
. .
57

LU Z !
"Faça-se a luz ! "
E o que vocês crêem que aconteceu ? A luz se fez !
E certamente i ncrível que isto faça a entrada na escritura. E o que eu
chamaria um sintoma-tipo do real.
Pois é justamente da luz em seu real que se fez a trilha da ciência. Não
unicamente, é certo, mas entre outras coisas.
Vocês sabem também que a luz - a noção de sua velocidad e, mais
precisamente, é única em nos dar um absoluto mensurável do real. E no mesmo
golpe se demonstra sua relatividade.
Que golpe de sorte para os crentes , o tal incrível ! Mas isso não lhes su scita
necessariamente , sabe-se, um gosto parti cular pelas Lu zes, no senti do de
A ufkliirung. 15
Não se deixem impressionar demais por esse golpe de sorte . .Para que vocês
se recomponham, constatem só o que se esclarece apres-coup: um desconheci­
mento total da d iferença radical das "luminárias", Lua e Sol, em relação à luz
aludida.

O que mais me chateia é que a ênfase dada à palavra [parole) criativa vai no
sentido do que eu penso.
Só que é uma aposta perdida atribuir à palavra o insuportável da luz. E isto
não vai de modo algum na sentido do que eu penso.
O que o i nconsciente demonstra é algo totalmente diferente, ou seja, que a
palavra é obscurantista.
Atribuo defeitos demais à palavra para dispensá-la desse obscurantismo. E
seu benefício mais evidente.
Já indiquei nos primeiros tempos do meu ensino a função, no trilhamento
do simbólico, dessas luzinhas chamadas estrelas. As estrelas não dão muita luz.
No entanto, é através delas que os homens se i luminam, o que lhes permitiu
manifestarem a felicidade que experimentam pela noite transparente.

O obscurantismo próprio da palavra se duplica pela crença na Revelação


que atribui a Deus o " faça-se a luz". Quando isso se triplica de filant ropia, c se
quadruplica de progressismo, é a noite negra.
Quando as estrelas se apagam, dá nisso: "O d esejo d os homens é socorrer-se
uns aos outros para estarem melhor [mieux-être]".
Recebi-o p or correio. Eu pedira que me escrevessem : pois bem - bem feito
para mim.

(15) Aufkltirung (alemão): esclarecimento, ilustração, civilização. Referência à primazia


da razão, explicitada na frase pela alusão ao Século das Luzes (N. T.).
58

Devo dizer que nada havia pedido à pessoa que me escreveu isso, pela
simples razão de que ela não vem há l ongo tempo ao meu seminário.
Françoise Dolto, pois trata-se dela, enviou-me uma cartinha que me distraiu
durante estas férias, as quais , aliás, eu não tirei.
E uma cartinha "para dissipar o mal-entendido".
Ela me ama tanto, diz-me em resumo, que não pode suportar que a Escola
seja dissolvida.
E por que, não adivinham? Porque a Escola sou eu.
E seu axioma. De modo que, forçosamente, dissolver a Escola seria anular a
mim mesmo. E isso é o que ela não quer.
Há um detalhe, é que sou cu quem d issolve a Escola. Isso não a detém, não
há nada que a detenha.
Ela i magina qu e eu me a u to-destruo. E por isso que, de acordo com seu
princípio filantrópico, vem em meu socorro.
Estão vendo como tudo isso se sustenta. É lógico. Vê-se que não sacrifica
nada à verossin;tilhança.
Se fosse exato, isso faria de mim um sujeito do tipo de Sócrates. Sócrates a
desejou , a sua morte, e a obteve da mão daqueles mesmos sobre quem espalhou
seus benefícios.
Isso não lhe foi , al i ás , tão mal-sucedi do, já que sua mort e tornou-se
exemplar.
Mas, felizmente p ara mim, eu não disse jamais que a Escola freudiana sou
eu. Também poderia ter dito que . . . Madame Dolto sou eu.
'Há gente, ao que p arece, que acredita nisso. Bem, é um erro. Eu não me
identifico em absoluto com Françoise Dolto, e muito menos com a Escola
freudiana. E isso o que me justifica precipitar-me ao trabalho para construir a
Causa freudiana.

O que existe já é suficiente para me desidenti(icar da Escola.


Não tive jamais outro objetivo quanto ao meu ensino senão o de mantê-lo
em seu nível. Agora, faço o necessário para preservar o que ele é capaz de dar
àqueles que entram em seu sulco.
Mas meu ato já demonstra que o real que está em jogo na experiência não se
limita, em princípio, só à subsistência da Sociedade psicanalítica.
A sagacidade de meu procedimento consiste nisso, não somente não excluo
ninguém como, além disso , acolho os que chegam.
Devo deplorar que meu significante se mostre apto para veicular qualquer
gracejo? Estou muito satisfeito , pelo contrário, pois não disse outra coisa.
Mas enfim, a brincadeira é muito melhor quando é curta. Isso é o que me
inspirou para abreviar o que , ao se acrescentar de mal-entendidos, estagnava em
i mpasse - e até mesmo se p etrificava como fraude.
Além de não me agradar, não tenho necessidade de anatemizar os que, com
a injúria na boca, gritam que me amam, pela simples razão de que a fraude como
tal é fonte de angústia.
59

Se nao sempre para seus age ntes . ou suas víti mas , o é p ara s eus
descendentes.
É por isso que tenho mau augúrio sobre o que farão aqueles em quem
espetm 0 termo falsarws , e nao me preocup o m u it o com isso
A experiência psicanalítica dá u m l ugar c mínente à função do engano , ao
sustentar-se no SUJelto supo sto saber. Isto é o que expli ca o fato de não haver
retorno, caso o engano vue frau de.

No decor rer do que lh es d i s se, te ci minhas respost as a vanos dos q u e me


escreveram, que s e reconhecerão.
Há ainda alguém que me pcrgu nta sr� r � ' ' por ac;J.�o não Imaginaria ser
i nfalível .
Não sou daq ueles que recuam d iante do m o t i vo de su a certeza. Isso é o que
me permltm romper com o que se havia congelado da p ráti ca de Freud numa
tradição que cl aramente ob strUJa to d a transmissão. Aí i n ve nt ei o que tornou a
abnr-l hes um acesso a t reud , o qual não q u e ro ver fechar-se
Não terei a pretensão de reconhecer-me como i n fal ível, mas, como todo

mundo , que o seJ a no mvel da verdade que fala - c não do saber


Eu não me consid ero o sujeito d o sab er. A p rova - é p r e ci so recordá-lo - é
ue 0 suj elto suposto saber , fm cu qu e i n v entei isso, c p ro cisamc nt e para que o
q
psi c an ah sta, o que e o mru s co m u m , pare de se crer quero di zer, idêntico a ele.
,

0 suj elto suposto saber não é to d o mundo, nem n inguém. Não é todo
suje1to, mas tampouco e um SU Je ito n omeó vel. É alg u m sujeito É o visitante da
noite, ou melho r , é da natureza do si gno t raçado sobre a porta por u m a mão d e
anJO. M ru s segur o de existir por não ser o n t o ló gi co , c por vir não se sabe d e
b onde16
Aguardo vocês aqui na segunda ter ça - fe i ra el e maio.

1 5 de abril de 1980.
Jacques Lacan

( 1 6) . . . não se sabe de bonde" [ on ne saí! zou]- prov{Jvcd jcwn ,1,. r avras com on ne s01t
"

d'ou (não se sabe de onde), sendo zou expressão onomatopaiea francesa, region a l . que
significa: ráp ido; vamos (N.T.) .
60

O MAL-ENTENDIDO
Não quis deixá-los sem retomar isto - uma vez mais.
Não somente me disse que lhes devia um adeus por me haverem assistido
este ano, por assistirem este seminári'o no qual não os cuidei.
Há ainda outra razão para este adeus: é que me vou, vejam só, à Venezuela.

Esses latino-americanos , como se diz, que jamais me viram, ao contrário


dos que estão aqui, e nem me escutaram ao vivo , bem, isso não os impede de ser
lacanos (lacano].
Parece que i sso antes os ajuda. Eu me transmiti lá através do escrito, e
parece que dei frutos. Em todo caso, eles o crêem.
Certamente é o futuro. E é o que, ir lá ver, me interessa.
Interessa-me ver o que acont2ce quando minha pessoa não opacifica o que
ensino. É bem possível que meu materna ganhe por lá.
Nada impede, se isso me agrada, que eu fique por lá, na Venezuela. Vêem
porque queria d izer-lhes adeus.
Vocês não têm i déia do número de pessoas às quais isso chatei a, que eu
chegue lá, e que tenha convocado meus lacano-americanos. Isso chateia aqueles
que se ocuparam tão bem de me representar, que basta com que eu me apresente
para que eles percam o pé nos pedais.
Vou então instruir-me por lá, mas evidentemente vou regressar.
Vou regressar porque minha prática é aqui - e este seminário, que não é da
minha prática, mas a complementa.
Este seminário, eu o tenho menos do aue ele me tem.
É por hábito que ele me tem? Certam�nte não, pois é pelo mal-entendido. E
não está pronto para acabar, precisamente porque não me habituo com esse mal­
entendido.
Sou um traumatizado pelo mal-entendido. Como não me acostumo a ele, eu
me esforço para dissolvê-lo. E, de súbito, eu o alimento. Isso é o que se chama o
seminário perpétuo.

Não digo que o -v erbo seja criador. Digo uma coisa bem diferente, porque
minha prática a implica: digo �que o verbo é i nconsciente , ou seja, mal­
entend ido.
Se crêem que tudo pode ser revelado, bem, vocês se dão mal: não pode. Isso
quer dizer que uma parte não se revelará jamais .
É precisamente disso que a religião se gaba. E é o que dá sua muralha à
Revelação, da qual se vale para explorá-la
Quanto à psicanálise, sua exploração consiste em explorar o mal-enten­
dido. Com uma revelação, ao final. que é de fantasma.
Isso é o que lhes passou [refilé] Freud. E que filão [filon ] ! , tenho que dizer.
Tantos quantos vocês são, que são vocês senão mal-entendidos?
61

O chamada Otto Rank chegou perto ao falar do trauma do nascimento. De


trauma, não há outro: o homem nasce mal-entendido.
Posto que m e i nterrogam sobre o estatuto do corpo, já chego para sublinhar
que este só se apreende por aí.
O corpo só aparece no real como mal-entendido.
Sejamos aqui radicais: seu corpo é fruto de uma linhagem da qual boa p arte
de suas [vos] desgraças provém de que ela já nadava no mal-entendido o máximo
que podia.
Ela nadava pela s i mples razão de que ser-falaria17 a quem fizesse melhor.
E o que lhes transmitiu "dando-lhes a vida", como se diz. E disso que vocês
herdam. E é o que explica o mal-estar de vocês dentro de sua pel e, quando é o
caso.
O mal-entendido já está desde antes. Na medida em que desde antes deste
belo legado vocês fazem parte [ vaus faites partie] . ou melhor, participam [ vaus
faites part] do balbucio dos seus ascendentes.
Não é precis o que vocês mesmos balbuciem. Desde antes, o que os sustenta
a título de o inconsciente, ou seja, do mal-entend ido, tem aí suas raízes.

Não há outro trauma do nascimento senão o de nascer como desejado.


Desej ado ou não - é a mesma coisa, já que é pelo ser-falante18•
O ser-falante em questão reparte-se. geralmente, em dois falantes. Dois
falantes que não falam a mesma lingua. Dois que não se escutam falar. Dois que
não se escutam , simplesmente. Dois que se conjuram para a reprodução, mas por
um mal-entendido consumado que seu corpo veicul ará com tal reprodução.
Admito que a l inguagem possa servir para uma comunicação sensata. Não
digo que seja o caso deste seminário. Pela simples razão de que a comunicação
sensata é o diálogo e, no que se refere ao diálogo, não sou bem dotado.
Acrescento que não considero a comunicação científica um diálogo , posto
que não-sensata, o que é sua vantagem.
O diálogo é raro. No que tange à produção de um novo corpo falante, é tão
raro que de fato está ausente. Não o está a princípio, mas o princípio se inscreve
unicamente na simbólica [Ja symbolique].
É o caso, por exemplo, do chamado princípio da família.
Sem dúvida, isso sempre foi pressentido . O bastante para que o i ncons­
ciente fosse tomado como saber de Deus.
O que distingue, no entanto, o saber chamado inconsciente do saber de
Deus é que este último era considerado o de nosso bem.
O que não é sustentável. Daí a pergunta que coloquei: Deus crê em Deus?
Como de costume, quando faço uma pergunta, trata-se de uma pergunta­
resposta.

(17) parlétrait - condensação lacaniana de parlant (falante) e étre (ser), com que produz
o seu parlêtre (ser-falante). aqui conjugado como "ser-falaria" (N.T. ).
(18) parlétre - ve r nota anterior (N.T.).
62

Pois bem.
Alguém me chamou a atenção para o fato de que o seminário deste ano não
tinha título. E verdade. Vocês já v erão porquê. O título é: Dissolução !
Evidentemente, não poderia tê-lo dito a vocês em novembro, pois meu
efeito teria falhado . Pode-se dizer que é um significante que os prendeu.
Consegui interessá-los d e t al forma que não há nada mais além disso.
Alguém me recrimina porque não o faço muito a seu gosto. Está em seu
direito, porque ele não vem a mim. E o contrário: tem a bondade de acolher-me
quando não estou longe.
Então, forçosamente, o escuto. Ele quer um ritmo mais continuado, c eu
estou de acordo. E do que cuidarei - depois do verão.
A Causa freudiana começa a existir por si só, pelo fato de ser invocada
[qu 'on s 'en réclame), o que quer dizer que já se fez propaganda [ une reclame]
dela.
O que bastaria agora? - um correio, um pequeno boletim que faça o enlace.
É ric Laurent haverá de querer lançar-se ao trabalho para que isso exista, e para
que os novos cartéis, que abundam, se façam conhecer.

10 de junho de 1 980.
Jacques Lacan
PARTE V

A FUNÇAO DOS CARTÉIS

Transcrição d a s discussões d a s Jornadas sobre Cartéis (abril/1975), publicada em Lettres


de J'École Freudienne de Paris, n° 1 8 - 1976.
65

I - S ESSÃO PLENÁRIA D E SÁBADO À TAR D E


DO "MAIS U MA"

(A SESS Ã O SE ABRE ÀS 1 7 HORAS SOB A PRESIDÊNCIA DE P .MARTIN)

PIERRE MAR TIN - Estas jornadas de estudo dos cartéis da Escola


Freudiana não tinham apenas por objetivo a reunião e a assembléia numerosa
que suscitaram; tinham também, no seu projeto, permitir e i nclusive s uscitar um
debate sobre a função dos cartéis na Escola, como tais.
E, na verdade, interessante, às vezes até o limite , um pouco inquietante -
constatar como estes cartéis, em geral , se constituíram.
O Cartel , na perspectiva da Escola Freudiana, não é uma reunião de gente
que se propõe simplesmente a um intercâmbio de idéias , e menos ainda u m
lugar d e ensino direto o u magistral , num grupo pequeno ou num grupo mais o u
menos extenso.
O que concerne ao cartel está definido expressamente, e de uma maneira
muito clara, na Ata de Fundação da Escola, Ata de Fundação que data de 1964,
há onze anos p ortanto.
O que tentamos suscitar em vocês é, de alguma maneira, ressuscitar u m
texto e suas implicações que permanecem , temos que reconhecê-lo, completa­
mente velados.
Um cartel, d i z o texto , é, e m primeiro lugar, a condição de a dmissão na
Escola, dito nos seguintes termos:
Aqueles que venham a esta Escola se comprometerão a realizar uma tarefa
submetida a u m controle interno e externo; se lhes assegurará, nesse inter­
câmbio, que n a da será poupado para que tudo o que eles façam de valioso
tenha a repercussão que merecer, no lugar que lhe convenha.
Para a execução deste trabalh o, a dotaremos o princípio de uma elaboração
baseada num pequeno grupo; cada um deles (e temos um nome para designar
estes grupos) será composto por três pessoas, no mínimo, e por cinco no m áximo
- quatro é a m e dida certa. MAIS UMA, encarregada da seleção, da discussão e
do destino reserva do ao trabalho de cada um.
Eu lhes releio aqui uma passagem , que completarei com outras duas ou
três; mas por que, diabo, é que releio?
Todo mundo tem, ou deveria ter à mão, o anuário da Escola; mesmo s endo
ele (e até os próximos dias) de 197 1 , contém a Ata de Fundação.
Ora, na verdade não é nesse espírito, creio, ou melhor, dessa forma, que a
maioria dos cartéis que conheço se constituem e agem.
A Escola Freu diana de Paris - diz Lacan - em su a intenção, representa o
organismo onde deve se realizar um trabalho que, no campo que Freu d abriu,
restaura a lâmina cortante da sua verdade:
66

1 - Que restabelece a praxis original que ele instituiu , sob o nome de


psicanálise, no d ever que retoma a ele no nosso mundo;
2 - Que , p or uma crítica contínua, denuncie os desvios e os compromissos
oue atenuam seu p rogresso, degradando seu uso;

3 - A estas três perspectivas corresponde, na Ata de Fundação, a criação


de três seções ; uma de Psicanálise pura, outra de Psic;;análise aplicada, e a
terceira de Inventário do Campo freudiano. Cada uma assistida por um di retor
de seção encarregado de reunir os trabalhos feitos, de cuidar das vias mais
propícias para sustentar os efeitos de sua solicitação, e assim assegurar também
os intercâmbios entre os cartéis. coisa que, todo mundo concordará, não é das
mais comuns.
Certamente nossa reunião de hoje tinha isto como intenção inicial , mas
teríamos que discutir ainda como a coisa pode ser feita.
E, para terminar, antes de abrir o debate e de que cada um possa se
exprimir, quero d i zer�lhes d uas coisas.
A primeira é que teremos outra sala aberta a o lado desta, amanhã de
m anhã, onde poderão se encontrar justamente aquelt:s que quiserem discutir
sobre o tema "o que é um cartel " , e como este poderia funcionar nas perspctivas
abertas pela Ata de Fundação.
A segunda é que, depois de ter discutido com muitos colegas que fazem
parte dos cartéis , eu me atrevi a fazer�lhes a seguinte pergunta: qual é o lugar que
vocês deram, na criação e na organização do seu grupo de trabalho, a esta
pequena palavra: " mai s uma" [plus u ne] ?
Não se trata de "um a mais" [ u n en plus] , de três mais um que fazem
quatro, de quatro mais um que fariam cinco, e sim: " mais uma"; há aí alguma
coisa que, estou convencido, foi assim colocada p ara despertar toda uma
problemática; sendo entendido, como é dito no texto (não quero aborrecê�los
com a leitura desse texto, vocês todos o têm , é só ler) mas sendo entendido que
toda chefia, no sentido de atitude professora! de um dos elementos de um cartel,
é abandonada de saída.
Tendo dito isto, seria desejável que, desde agora, alguns de vocês, no maior
número possível, façam-nos conhecer o que entendem por cartel, tomando como
ponto de partida o que eles mesmos constituíram , se é que constituíram alguma
coisa, e, por outro lado, não esqueçam de responder a essa questão do "mais
uma".
Mas não esperem de mim que ,eu faça, de uma maneira abrupta, uma
definição do " m ais uma"
E justamente isto que seria necessário levantar como base da d iscussão de
suas i ntervenções.
JA CQUES LA CAN - É seguramente com razão que Martin se manifesta
sobre este ponto.
Quero dizer que esse "mais uma" - mereceria uma melhor sorte. já que ,
pelo que sei , não parece que esta coisa que, na verdade, não quero me vangloriar
de tê-la antecipado sobre algo que tento articular sob a forma do nó borromeano.
67

Não se pode deixar de reconhecer, nesse "mais uma", aquilo que eu não lhes
d isse. evidentemente, da última vez, porque não posso chegar sempre num
seminário a dizer tudo o que trazia. mas, enfim, que se refere estritamente a i sso
que escrevi : x + 1 é ,precisamente o que d efine o nó borromeano, e é a partir de
reiterar esse 1 - que no nó borromeano é qualquer um - que se obtém a
individualização completa, ou seja. que do que sobra - a saber, do x em questão
- não há mais que um por um.
A questão que M artin lhes propôs, em suma, é opinar sobre esse um - não
digo que vocês tenham se interessado até agora, mas não é razão para que não
lh es peça algu m a resposta - esse u m , que parece sempre p ossível como
enlaçando toda a cadeia i ndividual , como concebê-lo? Certamente eu d isse
coi sas sobre o que Martin acaba de evocar, quer d izer, o " u m a mais". Na época
cu o ti nha tratado sob a forma do que constitui o sujeito, que é sempre um "um a
mais".
Eu pediria que declare quem quiser, já que não posso interrogar cada
pessoa e transformar isso em resposta obrigatória. Pelo menos, que declarem
sobre este tema as pessoas que quiserem: em suma, o lJ ue lhe evoca, o que lhe
sugere essa "pessoa" que trato de isolar do grupo. o que não quer d i zer que não
possa ser qualquer uma delas.
Certamente o cartcl fez, pouco a pouco, seu percurso dentro da Escola;
fizemos grupos, seminários. O que constitui a vida própria de um cartel tem, na
verd ade, uma relação estreita com o que tento articular neste instant e , no
seminário.
Eu sei o que gostaria de obter como funcionamento dos cartéis ; se o l imitei ,
dizendo que de três a cinco, obtém-se no máximo seis, deve ter uma razão. Não
é , contuào, um enigma.
Deveria normalm ente sugerir, pelo menos a alguns, àqueles que têm mais
prática, uma resposta, não estou completament e seguro, mas enfim, essa palavra
tem algum conteúdo: cartel, que por si só já evoca quatro1 quer dizer, três mais
um, é , de qualquer maneira, o que considerei que permitiria e-l ucidar o seu
funcionamento , e para chegar até seis, a coisa teria que ser posta à prova; usei a
palavra cartel , mas, na verdade, é a palavra cardo2 que está atrás , quer d i zer, a
palavra "dobradiça". Eu já tinha me referido a essa palavra cardo, evidentemente
esperando que cada um procurasse o que quer di zer. Preferi fi nalmente a pal avra
cartel. porque, ao mesmo tempo. era uma precisão, e a descrição que eu dava em
seguida, falando de no mínimo "três mais um", permiti ria esperar um jogo
eficaz. fazer não só que sejam mai s , mas que haja quem desempenhe seu papel,
não só numa das seções que tinha previsto para serem três também, e vale a pena
que se note que fazendo três seções , implica também " mais uma", ou seja. uma
quarta. Isso quer d i zer que a Escola, talvez, não tenha começado ainda a

(1) Em francês, há certa homofonia entre cortei e quatre (N.T.).


(2) Latim : cardo inis: dobradiça, eixo, porta; extremidade, terminação, limite, pó lo; região
do céu, céu; caminho, fosso. (N.T.)
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funcionar. Isso pode-se dizer, por que não?


De maneira que, agora, eu esperaria que alguém se manifestasse, e lhe
ficaria reconhecido muito pessoalmente; que alguém declare, por pouco que haja
pensado - afinal deve haver algumas pessoas que leram a Ata de Fundação ­
como esse " mais u ma" é para ele, digamos, interpretável. Interpretável , certa­
mente, em função do meu ensino.
Colette S oler, você, a quem escutei há pouco - o que me deu um grande
prazer - , por que nunca pensou nisso?
·,·
COLETTE SOLER - Eu pensei nisso.
fA CQUES LACA N - Você pensou nisso, então diga o que pensou.
COLETTE SOLER -- Eu digo que pensei , mas não tenho, só por isso, grande
coisa a dizer. No cartel onde trabalhei, começamos sendo quatro. A princípio, cu
diria que era o que o senhor chamaria um grupo; somos agora cinco, mas a
pergunta que me faço é se, no fu ndo, o "mais uma" talvez não seja necessaria­
mente uma pessoa, por um lad o , e, além disso , não necessariamente esteja lá.
A meu ver, no nosso cartel, o elemento que talvez fizesse a articulação era a
idéia de que estávamos unidos à Escola pelo viés do cartel, ou talvez ao seu
nome, não sei. Mas não vejo que seja por uma pessoa que tenha tido u m papel,
no grupo, de " mais u m " [plus un].
MA URICE ALFANDARJ - O que me evoca o " mais u m " , a propósito dos
cartéis, é um cartel clínico (não sabíamos muito bem como chamá-lo, era assim
como o fazíamos). O " mais um", me unirei ao que foi dito, não representava uma
pessoa. Mas agora que volto a pensar, tenho a impressão de que representava
uma espécie de lugar vazio, uma função que era intercambiável , que permitiu
que alguma coisa se produzisse; em todo cas o , por meu lado, eu não podia fazer
sozinho, me era impossível... o que eu tentava fazer, não podia fazê-lo só.
Eu não sei m uito bem como, mas é por causa desse grupo (somos cinco ,
creio) que entendo isso assim, o " mais alguma coisa" é um l ugar que está vazio,
e que faz possível o funcionamento do grupo e do que ali se elabora, mas sem

que necessariamente se assinale quando isso se produz, porque há alternâncias ,


comutações, e essas coisas todas.
JA CQUES LACAN - O quê exerce essa função, segundo você, no seu
grup o?
MA URICE ALFANDARI - Não sei. Acho que porque eu não sei é que isso
funciona.
JACQUES LACA N - Sim . . . (risos).
Por que você etiquetou esse grupo com o termo cartel clínico? E a clínica,
por exemplo, sua experiência comum, que tem aí uma função de nó?
MA URICE ALFA NDAR/ - Sim, provavelmente, mas o que penso - é assim
que entendo o " mais um" de que o senhor fala - é o fato de que eu e, acho, os
outros também, na elaboração do que fazemos, do que tentamos fazer, acho que
seria impossível se não houvesse alguém (mas isso designa uma pessoa) que
alternativamente cumpra a função do "mais um". Eu diria: a função do ausente,
função d esempenhada alternativamente, eu acho, por uns e o u tros.
69

/ACQUES LACAN - Será que essa função do ausente pode ser exercida
por alguém que está ausente esse dia, por exemplo?
MA URICE ALFANDARI - Sim, acho que sim.
JA CQUES LACA N - Então, qual é a relação entre aquele que esse dia está
ausente, e o que eu lembrava neste instante como sugestão, sugestão passageira;
qual é a relação desse ausente com o que poderíamos chamar " objeto" como a
clínica o define?
MA URICE ALFANDARI - É justamente porque está ausente que alguma
coisa é possível.
JA CQUES LACAN - A sugestão da função do ausente, foi no seu enun­
ciado que surgiu. A função do ausente, pode-se dizer, de estar ausente no
momento, ausente a uma reunião do cartel , nunca é à toa que alguém esteja
ausente, tentamos sempre dar um alcance à ausência na análise, estamos
acostumados a isso. Pensem, será um suporte p ossível dessa " mais uma pessoa",
da qual indiquei não a ausência, mas justamente a presença, pois não há traço de
sinal por ausência no meu "mais uma" no texto; mas por que não se perguntar
sobre isso? Há, talvez, um certo viés por onde essa pessoa pode se focalizar na
pessoa ausente, e sua experiência de um cartel pode lhe sugerir uma resposta
s obre isso. Deixemos tempo para que você pense nisso.
PIERRE KAHN - A experiência que eu posso citar é esta: a experiência de
um cartel não clínico, mas chamado de formação teórica, ou seja, de leitura de
textos. Esse cartel funcionava do ponto de vista do número, nisso que foi
lembrado por Martin, e do ponto de vista de sua ffianeira de trabalhar. Eu a.cho
que uma das coisas que nos guiava era a consideração de algo que você disse no
seminário sobre os escritos técnicos, ou seja, comentar um texto analítico é como
fazer uma análise, e mesmo que os participantes do cartel não estivessem de
acordo sobre o sentido dessa formulação, ela estava presente no seu espírito,
cada um a seu modo, certamente. Então, o que quer ela dizer em relação à
pergunta feita s obre o "mais uma"?
Eu assinalo imediatamente que "mais uma", uma pessoa a mais, não havia.
Não havia njnguém presente; mas, imaginariamente presente, havia. Não
posso falar por meus colegas , mas, no que me concerne, essa pessoa presente a
mais estava l á, c de diferentes maneiras, segundo o caso; podia ser - a cada um
segundo seu lugar - você mesmo, por momentos, podia ser o analista com quem
eu estou em controle, podia ser o meu analista, podia ser um dos meus
pacientes, creio poder dizer que sempre houve, imaginariamente falando , uma
" mais uma".
JACQ UES LA CA N - Era uma "mais uma" que mudava, ou seja, era por
exemplo uma " mais uma" diferente nas declarações de cada um? Uma vez que
se tratava de u m seminário que você caracterizou como de formação teórica,
seria possível que o discurso de cada um, cada qual por sua vez, trazia uma
" mais uma" diferente?
Uma pessoa qualificável como "mais uma pessoa", cada vez uma d i ferente,
como você exemplificou na sua experiência, da qual você estava apto a
70

testemunhar, já que sabia que pessoa tinha em mente , tendo por isso enumerado
um certo número delas. Penso que de vez em quando Freud estava presente, já
que se tratava de formação teórica, mas você não o citou. Eu compreendo,
certamente, seu controle [contrôleur] ou qualquer outra pessoa, mas você tinha a
sensação de que no discurso dos outros se dava o mesmo? Eu diria que o
discurso dos outros girava em tomo de um eixo não u rgente ; seria sob esta forma
que o "mais uma" se apresentava?
PIERRE KAHN - Sim, posso dizer que sim, talvez apressadamente, já que
falo em lugar deles, me parece evidente, dentro da estrutura, que já ocupava um
lugar. Mas o que gostaria de acrescentar é o seguinte, e é por isto que digo que
me parece evidente; as pessoas que estavam lá, em presença, se esforçavam para
isso: nesse trabalho de leitura e comentário, no sentido que contei há pouco, eles
se esforçavam p ara conseguir o que poderíamos chamar, retomando a sua
expressão, uma palavra plena, e , em conseqüência, é evidente que, além dos
interlocutores fisicamente presentes com quem discutiam, eles se dirigiam a
alguém. Esse trabalho, então, se fazia com alguma coisa que, me parece, pagava
um preço; é que as pessoas presentes não ocultavam muito o que podia estar
implicado de sua posição subjetiva em relação ao texto que estudavam. Que seja
um texto seu, um texto de Freud, já que você o mencionou há pouco, etc . . .
A pergunta que faço, a partir do que Martin nos lançou há pouco, é a
seguinte: nesse trabalho, que foi p ara mim satisfatório, que diferença teria sido
introduzida se a "mais uma", que estava lá imaginariamente, tivesse sido não
uma pessoa imaginária, mas uma pessoa real?
·sem poder acrescentar muito mais sobre isso, quero simplesmente falar da
minha convicção de que teria havido certamente uma mudança no trabalho, se a
pessoa "mais uma" fosse outra coisa que a pessoa imaginária que cada um trazia.
Diferente do ponto de vista de uma maior aproximação ao objetivo
proposto nesse trabal ho, que era chegar, com todos os balbucios que isto
implica, a uma p alavra plena.
JA CQUES LACAN - Sr. Alfandari , diga-me o que pensa sobre o que acaba
de .dizer Pierre Kahn.
· Talvez você tenha pensado no funcionamento efetivo do cartel, o que me
parece ser um ponto capital , para dar um estilo analítico às suas reuni ões,
porque esse "mais uma" sempre se realiza, sempre há a l guém num grupo,
mesmo que seja por um momento, já é bom quando algo acontece e , ao menos
por um momento, alguém detém as coisas e, sobretudo num grupo pequeno
como este, habitualmente - é o caso de dizê-lo - isto é um hábito [habitus] .
habitualmente é sempre o mesmo, e acaba nisso sem medir as conseqüências. Eu
diria que todo mundo está muito contente por haver alguém que atue como
aquilo que nós chamamos comumente de líder, aquele que conduz, o Führer.
MA URICE ALFA NDAR/- O que disse Kahn me lembra um pouco o que eu
senti nesse grupo; me parece que, num cartel, existem dois obstáculos: um , não
há coisas sufici entes em comum para que ele se mantenha, e o outro é uma espé­
cie de efeito imaginário de grupos que bloqueia tudo. Mas é só agora que digo
71

isso, eu nunca tinha pensado assim antes, acontece que esse grupo é clínico, mas
as mesmas pessoas desse grupo clínico se encontravam num grupo que não era
clínico, que estava centrado sobre o estudo de outra coisa, da matemática...
JA CQUES LA CAN - Vocês eram o quê? Vocês eram um grupo já um pouco
esclarecido [decrassé] matematicamente, se se pode d izer? Porque é verdade, é
preciso passar por isso para saber como é que é, quero dizer, ter tido pelo menos
_ um esboço de formação matemática. E muito especial . específica, a formação
matemática.
MA UniCE ALFANDAR! - É difícil resp onder sobre o grau de sujeira
[ crosse] que tínhamos; eu acho que alguém entre nós estava bastante avançado,
mais que nós, e dep ois havia o nosso professor, que estava longe de t al sujeira, o
nosso professor era alguém apto para nos levar por essa via; o grupo já dura dois
anos. Então, eram quase as mesmas pessoas nesse gru po teórico, matemático, e
no gru po cl ínico. Penso no grupo clínico , onde acho que os efeitos não são
visíveis , não se pode delimitá-los muito facilmente. mas simplesmente se pode
delimitá-lo pelo fato de que, para mim, por exemplo, n ão era possível levar nada
a um certo nível de elaboração fora desse grupo. Isso em possível para mim, mas
eu não saberia dizer em que momento : é a função, na verdade, do grupo.
JA CQUES LACAN - Quando os matemáticos se juntam, há esse "mais
uma" i ncontestável. Quero dizer que é verdadei ramente incrível, mas os
matemáticos, poder-se-ia dizer, não sabem do que falam, mas sabem de quem
eles fal am : falam da matemática como se fosse uma pessoa.
Poder-se-ia d izer que, até certo ponto, o que cu chamava de "meus votos"
era o funcionamento de grupos, que funci onassem com o um gru po de
matemáticos qualquer.
MICHEL FENNETA UX - Gostaria de dar mi nha opinião porque trabalho
no gru po de que falou Al fandari. Na verdade, eu nunca me tinha perguntado
sobre o "mais uma", mas posso dizer o que ele me faz pensar, já que se trata
disso.
JA CQUES LA CA N - Isso lhe faz pensar o quê?
MICHEL FENNETA UX - O "mais uma" é , por um lado, efeito do grupo, ou
seja, como disse Alfandari há pouco, o fato de poder reencontrar periodicamente
u m certo número de pessoas permite, me permiti u , aprofundar ou poder
formular um certo número de coisas sobre a minha experiência, que eu não
conseguiria fazer só. O segundo sentido que vejo atualmente nesse "mais uma" é
que efetivamente acho que, num grupo , um de nós assume, muitas vezes,
provavelmente por sua experiência mais extensa, essa posição de líder de que se
falou há pouco.
Enfim, há um terceiro sentido: teríamos que fal ar antes de "menos uma"
que de "mais uma", da seguinte maneira: nos encontramos entre pessoas que
têm entre si uma relação de confiança e que podem falar desse fato , como disse
Kahn há pouco, indo bem longe em seu relacionamento na prática; esse "menos
uma" é, no fundo, a ausência de supervisor, quer d i zer, a ausência desse efeito
de atordoamento que há nos grupos mais importantes, formados por pessoas
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cujo nome é conhecido na Escola, e onde tem muito mais importância do que
num grupo pequeno o problema do reconhecimento. Num grupo pequeno, como
o cartel , a demanda de reconhecimento pelos outros é, em grande medida,
anulada.
É por isso que o terceiro sentido de "mais uma", eu definiria m elhor como
"menos uma".
LA URENCE BA TAILLE - Eu já participei de um bom ntímero de grupos
que não eram justamente cartéis, e acho que essa pessoa que tem, digamos , um
status d i ferente, que não chega a ser um semelhante, se encarna sempre numa
das pessoas do grupo. Mas não tenho a impressão de que seja um líder, e sim de
que há uma pessoa no grupo a quem a gente se dirige, a quem se faz testemunha
de alguma coisa, e de quem se espera efetivamente uma espécie de aprovação ;
mas, na realidade, isto não cumpre o papel que deveria cumprir, quer dizer, que
esses grupos acabem sempre - enfim eu digo sempre ... - então o "a mais"
muda, porque se espera essa mudança de um outro. Eu também experimentei
isso, realmente, de maneira completamente evidente, c quando falei disso num
dos grupos , porque tinha a impressão de que eles taJII lJém se dirigiam a uma
pessoa em particular, que não era a mesma para tod os, parecia que sonhei ou
imaginei que eles olhavam sempre para a mesma pessoa quando falavam.
De repente vamos fazer um gru po. e a gente d i z que esse "a mais "
poderíamos fazê-lo funcionar impondo, no fim de cada reunião, a escrita do que
foi o essencial, mesmo que seja só uma frase , e que isso fi caria como
testemunho, se se pode d i zer, e faria que o trabalho avance e não se dilua em
pequenas idéias que não podem se desenvolver.
Não sei se isto pode cumprir esse papel. porque a gente deve se reunir
segunda-feira próxima pela primeira vez.
JA CQUES LACAN - Eu lhe agradeço.
SOL RABINOVITCH - O que gostaria de dizer sobre o cartel em que
trabalhei é que éramos cinco , cinco membros que nunca faltaram; houve um
sexto que faltou muito e que, além disso, foi substituído por outra pessoa, que
faltou muito também.
O que gostaria de d i zer, sobretudo, é que isso não me parecia ser a função
do "um a mais" mas , pelo contrário , a função do "mais um", que era s ustentada
j ustamente pelos membros presentes e que não faltavam nunca naquele grupo,
quer d i zer, como uma fu nção que seria a do p onto cego , uma função de
desconhecimento; há sempre, num determinado momento, alguém; nunca o
mesmo, é claro; sempre é alguém que está lá, que diz: eu não entendo nada, isto
não serve para nada, não estamos produzindo ...
JA CQUES LA CAN - E isso o "mais uma"? Aquele que não entende nada?
Por que não? (risos).
SOL RABINOVICH - É alguma coisa assim, mas preciso que é u ma função
perfeitamente intercambiável; é um papel que se desloca. Teríamos que articular
isso com o fato de que o trabalho de um cartel é um trabalho analítico, portanto
há transferência; é tudo o que queria dizer.
73

ALAIN DIDIER WEILL - Tenho uma idéia sobre esse " mais uma", em rela­
ção a esta pergunta: por que d iferentes cartéis de que participei não alcançaram
o objetivo que achávamos justo alcançar no começo?
Tomemos como exemplo de um cartel onde se faz um comentário de texto:
pode-se dizer que o que nos reúne, nesse caso, é que estamos situados num
contexto metonímico e que, nesse contexto, devemos suportar a palavra de um
Outro, Freud, Lacan. Nesse contexto metonímico, o quê se tornará o ser falante?
Pela primeira vez me ocorre que talvez o " mais uma" seja alguém que tem
relação com o passador [passeur) : o "mais um" poderia ser o lugar onde está, no
esquema L, o $, quer dizer, o testemunho de um atravessar possível do eixo a-a ',
de um atravessar possível que vai de A a $.
Em outras palavras, o "mais um", se ele ocupa esse lugar de $, não seria
seguramente um sujeito suposto saber, mas um sujeito que testemunharia que
isso passou, que a mensagem passou , que houve m etaforização, que foi
reenco ntrado, além d aqui l o que se recebe como adquirido (dessas " idéias
recebidas" que flaubert acumulava no seu dicionár i o de "idéias chiques"), o
p onto nevrálgi co d e onde esse contexto metonímico surgiu de um texto
inaugural metafórico.
JUAN DA VID NASIO - Partirei da experi ência d e dois cartéis dos quais
parti cipo, experiências d i ferentes, mas que, em relação às questões do "mais
u m " , esse "mais u m " está presente nos dois casos.
]A CQUES LA CA N - Está sempre presente, mas sempre desconhecido.
E é o que eu queria sugerir nesse pequeno texto; é o que os analistas po­
deriam se aperceber; ele é sempre desconhecido porque isso é o Outro do Outro,
esse "mais um" está sempre presente, sob formas diferentes onde ele se encarna;
o caso do líder é manifesto , mas os analistas poderiam se aperceber de que, num
grupo, há sempre um " mais um", e dirigir sua atenção para isso.
]UAN DA VID NASIO - Não sei se vocês estarão de acordo em se apoiar
numa d as fórmulas lacanianas mais conhecidas , ou s eja, que o desejo do homem
é o desejo do Outro. O "mais um" é aquele que sustenta, no grupo, o desejo do
Outro. Sustentação do desejo que pode ser feita de mil maneiras, falando,
calandó-se, emprestando a sua casa para a reunião, etc. Há mil maneiras de ser
" mais u m ". Mas há uma outra maneira de d ar conta disso. Pensando no
conteúdo do cartel, eu penso no saber do analista. O saber do analista, se é
válida a hipótese d e que é isso que está em jogo no cartel - falo dos cartéis de
analistas , pois não se deve esquecer que há cartéis onde não há analistas. O saber
do analista é um saber compartilhado, mas não um saber para intercambiar, acho
que é uma das nossas fórmulas, esta idéia de compartilhar faz referência ao fato
de que só há analistas, seria aí que eu m e uniria - não sei se Alain Didier estaria
de acordo - à sua i déia de metonímia. Eu falaria, mais precisamente, sobre a
s ucessão das séries; e m relação a um analista haverá sempre um outro, um "mais
um". Se há dois, haverá um terceiro. Nesse momento, haverá quatro. Em suma,
sempre haverá um que estará presente a mais, e essa presença eu a colocaria
como presença daquele que sustenta, no trabalho do grupo. o desejo do outro.
74

fA CQUES DONNEFOR T - Eu gostaria de tomar como exemplo o que


aconteceu num grupo que funciona há dois anos. No reinício, este ano, uma
pessoa "a mais" entrou no grupo, e nos p ropusemos a contar-lhe, de alguma
maneira, o que se t i nha el aborado no grupo nos dois anos anteriores; nos
sentimos aborrecidos por ter que prestar contas. Chegamos, nesse momento, a
pensar: p arece tão difícil como se se tratasse de falar da própria análise.
Digo isto porque efetivamente nos fez pensar no p asse, curiosamente teve
um efeito - essa pessoa que veio a mais, não que seja ela a " mai s uma", mas
assumiu essa função pelo que acontecia nesse momento naquele grupo - isso
teve um efeito notável; pouco a pouco, no que se tornava um cartel , me parece,
as pessoas começaram a falar sobre sua análise, s obre su� própria análise, e a
tomar como exemplo eventu·aJmente alguma coisa que se dizia num pl ano mais
ou menos teórico - é um gru po que t rabal ha em torno da pul são - a
exemplificar , de certa maneira, a partir do que sucedia no nível de sua própria
análise.
E nesse sentido que chegamos ao que foi dito sohre a função do passador e
sobre a presença do analista, e nesse grupo nos enco ntramos de repente na
posição do analisante.
COLETTE SOLER - Queria dizer ainda outra coisa: no fundo, eu faria a
hipótese de que, se há sempre "mais um", existe talvez i nteresse em que este não
esteja encarnado no grupo. Porque quando está encarnado no grupo, realmente
isso funciona sob a forma de que há um líder com todas as . . .
JA CQUES LACA N - Não é seg uro que seja sempre tão simples . . .
COLETTE SOLER - Pensei isso a partir d o cartel e m que estava, e u me
perguntei muitas vezes quem era o l íder, no grupo, e nunca consegui responder.
Quer dizer, não creio que, na verdade. houvesse uma pessoa nessa posição , mas,
pelo contrário, havia aí uma referência, e já disse que se situava pelo lado do seu
i votre] nome; eu disse nome justamente para indicar que é por isso que a coisa
funciono u , porque um nome no fundo não responde, e é isso que permite que
funcione.
GEORGES BOTVINIK - São justas tais reflexões. Na verdade, contrapõe-se
o "mai s u m " , que estaria encarnado, ao problema do líder; me parece que isso
insiste como uma d ificuldade para as pessoas, e para mim também. Por outro
lado, o " mais um", que seria um nome ou - eu diria - uma palavra, quer dizer,
um elemento comum do discurso, ao redor do qual o grupo se reúne para
trabalhar: no fundo, um grupo se forma ao redor de uma palavra, um tema, e,
final mente é uma palavra que não responde: não responderá jamais: para mim, o
"mais um" evoca, assim, o "mais de gozar" [plus de jouir] .
Existe uma questão que me parece importante, e que não foi tratada: é a
questão do trabalho. Não quero aprofundar demais esse problema. Escutei a
expressão "temos que produzir". Não me parece que se p ossa resolver essa
questão do "um a mais", seja o que for, por outro lado, seja encarnado ou não,
sem se perguntar pelo problema do trabalho, de por que se trabalha, e a relação
que isso tem com o desejo e o gozo. Estes são comentários.
75

GUY LA VAL - Eu gostaria de falar de um cartel que existe há pouco


temp o , . que surgiu de um seminário de Clavreul ; digo bem: que surgiu , o que
mostra que houve uma necessidade a partir de um certo momento. O seminário
terminava, se desfazia. Não se mantinha mais , pode-se dizer. Finalmente, num
momento dado, apareceu a necessidade de constituir uma coisa diferente, isso
recebeu o nome de cartel, e a primeira necessidade que se impôs a mim, eu não a
chamaria de "mais uma", mas me parece dessa ordem, a primeira necessidade
era a de ter uma pessoa sobre quem eu pudesse me apoiar para falar.
Era para mim, talvez, a primeira função "mais uma"; mas Clavreul me
frustrou , designando-me como responsável pelo cartel , responsável e não líder ,
ele o p recisou bem, já que se trata de um cartel sobre as entrevistas preliminares ,
e eu tinha feito um trabalho sobre isso. Tendo s i d o designado, d e repente e u não
tinha mais esse apoio que precisava dentro do cartel.
Mas isso não quer dizer que não ficara uma certa necessidade, e me parece
que essa necessidade provinha mesmo do mal-estar que sentíamos todos diante
do desfiar, pode-se dizer, do discurso nos últimos tempos desse seminário.
Nas primeiras reuniões do cartel sobre as entrevistas preliminares ,
continuou havendo esse desvanecimento; por outro lado, era como se houvesse
uma certa necessidade , e o primeiro nome que se pode dar a essa necessidade é
necessidade de formulação, creio.
Acontece que num cartel muito faci lmente se conversa em grupo, já que é
mais fácil, somos em menor número, começa-se a falar mais facilmente, mas
pode acontecer de que não se chegue a nada, pede se tornar uma reunião entre
amigos, que se gostam , que podem se falar, mas me p arece que a primeira
necessidade (e isto seria talvez também da ordem do "mais uma") é a ne­
cessidade de formulação que pode ser escrita, que pode ser. transmitida ao
grande grupo e que talvez por isso possa se reconstituir de vez em quando, e
acho que isso chega um pouco mais longe, até alguma coisa que não sei articular
muito bem, que o senhor chamou materna. Quer dizer, me parece que, muito
facilmente, um cartel pode muito bem constituir uma espécie de pequeno grupo
esotérico que, afinal, não dá respostas a nada, não tem que prestar contas de
" nada.
Acho que o que o senhor articulou como materna também pode remeter a
essa necessidade do "mais uma" no cartel .
ROUDI GERBER - Gostari a de contribuir com uma analogia que eu tiraria
do al pini smo: quando se tem três pontos de apoio, pode-se, na verdade ,
permanecer nesses três pontos até que , finalmente, fica-se esgotado e morre-se.
O quarto ponto permite passar e obriga à passagem, o que quer dizer que,
desde que se tem o quarto ponto , você é obrigado a ir além, e me pergunto se o
" mais um" não é aquele a quem o cartel demanda poder testemunhar essa
passagem.
fA CQUES LA CA N - Eu estou aqui para uma função bem precisa; ela seria
esta coisa que escrevi , e que ninguém certamente se apercebeu, porque não é
mais que um esboço: colocá-la de alguma maneira no que vocês representam
76

como lugar público, e interessá-los pelo assunto. Quero dizer isto que, depois de
tudo, vocês chegam à idéia de que é uma pergunta. É uma pergunta, certamente,
que eu só faço porque tenho a resposta, e tratarei de dizê-la em seguida; quero
dizer o mais rápido possível, claro; não tenho tantos seminários pela frente este
ano, portanto vou tentar fazê-lo.
Mas acho interessante que a pergunta esteja presente na Escola, porque
pode ser considerada, talvez, como o · que eu pretendia fazer com esse texto ,
como o ponto nodal para a formação de um pequeno grupo, e o fato de ser
pequeno é essencial para seu funcionamento. Se eu disse que não podia passar
de seis, foi pelas melhores razões, por razões teóricas , mais profundas. A tarefa
de um grupo muito amplo comporta limitações tais, é o que eu penso pelo
menos, que não há grande coisa a se esperar para um progresso real sob os
efeitos da anál ise.
E isto que me inspirou quando fiz essa Ata de Fundação, à qual não tenho
nenhuma razão para pensar que vocês deviam ser por princípio resistentes; não
vejo em absoluto o que poderia motivar essa resistência, sobretudo se o que
tratei de obter de um certo número, agradeço a todos igu almente, o que tratei de
obter de um certo número: pô-la na ordem do dia.
Haverá uma reunião amanhã de manhã que dará continuidade à de hoje.

(A sessão é suspensa)
77

11 · SESSÃO D E G R U PO D O D OMI NGO D E MANHÃ


DO ;/MAIS UMA " (CONTINUACÃO)
/A CQ UES LA CA N - Estou muito interessado naquilo que foi iniciado
ontem em torno da função dos cartéis, e ficarei reconhecido a quem retomar o
que dissemos.
/UAN DA VID NASIO -Minha função se l i mita a coordenar este grupo
sobre a função dos cartéis. Lembrarei simplesmente que a definição de cartel , na
Ata de Fundação, comporta certas características:
1 ) O cartel é o lugar d e compromisso com a Escol a Freudiana.
2) O cartcl d eve S :Jstentar um trabalho de elaboração que, como trabalho
crítico, concernc, me parece, ao saber do analista, por um lado , e à
própria experiência analítica.
3) Enfim, o cartcl t em uma estrutura bem definida. E sobretudo este
último aspecto que foi discutido ontem.
Dessa estrutura se ccnclui que a " mais uma" pessoa que compõe o cartel é
uma pessoa presente e desconhecida.
JA CQ UES LA CAN - No entanto , sugerimos que essa pessoa - que é . de
alguma maneira, eco do grupo - existe em todo funcionamento de grupo, só que
ninguém pensa nisso, e seria conveniente que os analistas não a desconheçam ,
porque parece que existe desde o início. Tres facíunt eclesíam3 diz a sabedoria
das nações, e isso vai longe : por que há esse surgimento de três?
O que gostaria c de ter, com o ontem, algumas respostas , respostas que
testemunhem que , pelo menos, algumas pessoas já p ensaram nisso. Há o
chamado Picrre Kahn, por exemplo, que interveio ontem e que teve a gentileza
de me acompanhar à minha casa depois dessa pequena sessão e que, nesse curto
tempo, me provou que ele vê muito bem a relação que isso tem com a análise.
Isso implica já, pelo menos, uma pessoa.
JUAN DA VID NASIO - Prefiro p assar-lhes a palavra.
HUGUETTE MENARD - Estas são algumas reflexões a partir da reunião de
ontem à noite. Participar de um cartel é se comprometer com um trabalho, uma
produção, em suma, uma mais-valia, e por que não um gozo, gozo efêmero? Um
tempo, se toma como testemunha, como se falou ontem à noite, uma pessoa, o
analista, o controle, o amigo suposto saber mais sobre a psicanálise. Ele é
colocado na posição de l íder, mas o caminho é curto , e nos conduz a perceber a
ilusão da qual devemos nos desprender.
No entanto, comprometer-se num cartel é um momento, um pivô, uma
báscula. Há algum tempo uma paciente me repete: " E necessário que cu me
inscreva num cartel ", acrescentando: " Mas é mais doce continuar a sonhar
minha vida". Eu acrescentaria: é doce o duro desejo de dormir.

(3) Latim: " três fazem uma igreja". (N.T. )


78

O trabalho em cartel participa de uma maiêutica e continua, com efeito, a


posteriori, o trabalho da análise, primeiro, e da praxis depois. E o mesmo
processo dialético. Como tentar se tornar analista sem participar de um cartel? É
urna nece11sidade implacável. Por outro lado , é o que foi dito e escrito na Ata de
Fundação da Escola. Um trabalho que evoca aquele das danaides': tentar encher
o vazio, a falta.
Uma pergunta então sobre o "mais uma". E a presença ausente da morte
que nos joga no encantamento da linguagem? Mas atenção! Não se trata de ficar
nas palavras, de falar, como se diz, à toa. Um trabalho só p ode ser uma
produção, a do escrito que se expõe. onde a gente se expõe.
JOSÉ GUEY - Gostaria primeiro de dizer o que não consegui dizer ontem à
noite, e não é só uma ilusão no ar. Acrescentaria que, no que me concerne, no
congresso de Montpellier eu tinha preparado um trabalho sobre a questão.
Naquele momento, em relação à pessoa "mais uma". eu não podia dizer
nada , mas o que me assombrou na Ata de Fundação, e sobre o qual tratava de
articular alguma coisa. é o que se escreveu sobre a "verdadeira transferência de
trabalho". O senhor escreveu nesse texto que só pelas vias dessa "transferência
de trabalho" pode ser transmitido , de um sujeito a outro sujeito, o ensino da
psicanálise. Ontem, na discussão, me pareceu que se girava em torno do que
acaba de lembrar Huguette Ménard, ou seja, do sujeito suposto saber.
Farei referência ao nosso cartel de Marselha, qve é mais precisamente uma
reunião de cartéis , e que foi promovida por Zlatine; eu o cito porque foi ele
quem o organizou, e tenho que dizer que, desde o início , ele apareceu como o
sujeito suposto saber, que era suposto saber mais disso que os outros.
Há uma regra nesse cartel que é a de produzir um trabalho, quer dizer que
não se trata, como se fez referência. de uma discussão à toa, mas, assim corno as
pessoas da Escola se comprometeram com um trabalho, as pessoas dessa reunião
de cartéis, que não eram todos membros da Escola, aceitam essa regra de
produzir um trabalho, e isso conduz a um trabalho escrito, que não é segura­
mente acessório. Essa regra, que regiu nossas reuniões, teve como resultado um
certo número de textos.
E é uma experiência dialética de discurso, a partir de textos que se com­
binou antes, sejam textos de Freud ou de Lacan , e comentários que se produ­
ziram.
Poderíamos dizer qu e, a partir desse trabalho, houve um progresso.
Gostaria de assinalar que existe uma sucessão de enunciados diferentes referidos
aos sujeitos da enunciação, mas também em relação aos enunciados que se
acrescentam há cinco anos.
Isso implica também efeitos de resistência, e é por isso que eu citava meu
trabalho de Montpelier, trabalho que tinha redigido e comunicado aos membros
do cartel, mas que não tinha comunicado na Escola, com o falso pretexto de que

(4) Figuras da mitologia grega que - por haver assassinado seus maridos na noite de
núpcias - foram condenadas a encher de água um barril sem fundo. (N.T.)
79

isso não i nteressava a ninguém e, por outro lado, que minha formulação era
ainda insuficiente.
PIERRE MAR TIN - Com o único fim de retomar a discussão, eu queri a
l embrar o que me chocou p essoalmente na leitura da Ata de Fundação. É o
número três. Ontem eu sublinhei a " mais uma" pessoa. Hoje gostaria de destacar
o que, repito, prende minha atenção há bastante tempo , que é o numero três
dessa Ata de Fundação. Assinalaria, no segundo parágrafo, o que se poderia fixar
sobre o trabalho que a Escola deve cumprir, onde o autor faz três propostas. Eu
as citei ontem. Essas propostas são seguidas pela organização de três seções .
Cada uma das seções i nclui três sub-seções.
E direi , para terminar meu dizer atual, mas de maneira alguma para tirar
uma conclusão sobre o que provoca essa� preocupações, que no centro desse
número três, o que retém m inha atenção é o "mais uma" .
NICOLE LEVY - Alguma coisa m e incomoda e eu gostaria de comentá-la.
Trata-se de uma espécie de abuso, de uma distorção quando, a propósito do
" mais um", se fala agora de "mais uma". Claro, isso pode querer dizer "mais
uma" pessoa, mas eu me perguntava se é disso que se trata, se se trata de uma
pessoa, como se diria "mais um" membro do grupo, e eu me questionava se o
" mais um" não funcionaria p ara nós como um significante.
A esse respeito, pensava que, no seminário sobre os Quatro conceitos
fun damen tais da psicanálise, Lacan introduz desde a abertura um outro sob a
forma do "eu não busco, eu encontro " que preside, de alguma maneira, à
i nstauração dos quatro conceitos fundamentais. E isso que ele denomina o
achado, isso a que ele se refere, não poderíamos entendê-lo no mesmo registro
que esse "mais um", ou seja, como algo da ordem do significante? Poderíamos
d i zer um significante que funda o desejo, do mesmo modo que podemos lembrar
que esse "mais um" se escreve a partir e numa Ata de Fundação.
GENNIE LEMOINE - Eu gostaria de depor sobre o trabalho feito desde a
reunião de Montpellier no nosso seminário.
Reencontramos naturalmente o caminho que conduziria aos "três" de
M artin. Com o anúncio desse seminári o se formou uma multidão e nos
esforçamos por fazer nele um trab alho analítico. A primeira intervenção foi no
sentido de organizar um gru po m enor, deslocando-o p ara que só as pessoas
i nteressadas pudessem comparecer. Isso foi o grupo das terças-fei ras , onde
constituímos finalmente, depois de três anos de trabalho, o que poderia começar
a parecer um carteL Logo depois, num dos cartéis de quatro pessoas, foi dito que
cada um acabou falando de sua análise, e que então esse trabalho não podia ser
l evado à sessão plenária. Mas se falou também que o trabalho do cartel era
justamente chegar a que cada um deixasse de se expor, ou que não tivesse a
s ensação de arriscar a vida cada vez que se fala da própria análise, porque se
chega a um certo nível de teoria que se transforma, justamente, nesse terceiro
termo que faz com que o trabalho do cartel permita a cada um passar ao outro
lado, ou, pode-se dizer, enfrentar a castração sem risco de morte. E esse o
trabalho analítico de nossos cartéis: chegar a dar u m certo passo e fazer um
80

trabalho analítico. De tal maneira que esse terceiro termo me parece ser
simplesmente um analista.
Nosso trabalho foi transformar esses grupos em cartéis. Demoramos mais de
três anos. Agora ... em quarenta ou cinqüenta pessoas, há talvez dois pequenos
grupos que parecem cartéis, um de quatro pessoas e outro de cinco. E somente
um desses dois pequenos grupos perguntou sobre o fato de um sujeito se expor
quando fala.
Eu retomo o termo da Sra. Ménard. O problema é que a gente não se expõe
mais porque fala de um terceiro, ou tem o lugar de um terceiro, que é um outro
grau, o grau da teorização.
NICOLE PEPIN - Num trabalho de cartel, já que se trata de um trabalho
psicanalítico, o que importa é encontrar a mesma estruh.:.ra de um trabalho
psicanalítico, ou seja, que a estrutura do inconsciente seja mantida.
Em relação ao número de participantes, o número mínimo, obrigatoria­
mente, seriam três. O "mais um" me parece muito importante, mas que sejam
cinco ou seis, no meu ponto de vista, não tem importância, salvo que dentro dos
três haja a mais aq•1ele que p ossa cumprir o papel de "um a mais".
Esse papel de "o um a mais", o que é ? Para que vai servir essa pessoa
acrescentada aos três? Para mim, quando penso nesse número três, sempre é o
simbólico, o real e o imaginário, que funcionariam numa relação de triangulação
edípica. O importante, num cartel , se situa não só ao redor da escolha do tema
do trabalho, mas também , e talvez ainda mais, no nível da escolha dos
participantes.
Porque, para que haja trabalho psicanalítico, é necessário que as pessoas
escolhidas não sejam quaisquer pessoas. Não penso que quaisquer pessoas
possam obter esse lugar, que vai permitir elaborar o discurso psicanalítico -
pois se tratará, aí, de um discurso psicanalítico. Pode-se ver quando as pessoas
se impuserem, como foi colocado ontem por alguém que dizia que havia sido
nomeado como responsável de um sub-grupo. Ele havia precisado que, a seu ver,
nesse caso nada podia funcionar.
O que não fica ainda muito claro para mim é o papel exato que cumpriria a
pessoa a mais. De acordo com as experiências que tive até agora dos cartéis - e
foram tão fugazes! (na medida em que, até agora, eu não tive a impressão de que
as condições necessárias para o funcionamento de um cartel tenham sido
respeitadas) - eu acho que essa pessoa a mais é aquela que vai permitir a busca
da coisa, que vai permitir essa articulação, e vai fazer com que haja sempre o
desejo de achar de novo a coisa que será mantida no grupo.
Mme X . - Não entendi por que ontem se fez uma diferença entre os
. .

grandes grupos e um grupo mais restrito. Se os grupos de matemáticos tinham


uma idéia do modo de funcionamento possível dos cartéis , como pode ser que as
regras lógicas que funcionavam para os cartéis não sejam aplicáveis ou
extensíveis a grupos integrados por mais do que um número limitado de seis
pessoas?
GENNIE LEMOINE - Pela razão que creio já haver dito. Passa-se do
81

trabalho da análise própria, da qual se fala num grupo pequeno com a sensação
de se expor, a um nível em que não se arrisca mais e onde se pode passar ao
grupo grande, se se quer, e ainda assim não vejo nenhum interesse. Isso acontece
de u ma maneira ou de outra. Mas, a princípio, é essa passagem que se deve
assegurar, e isso só pode ser feito a partir do pequeno grupo de três ou quatro.
Não se pode de entrada falar da própria análise numa multidão.
Mme X. .. - Eu tinha a impressão de que, quando regras lógicas não se
impunham à estruturação de um grupo restrito , isso era válido para um grupo
pequeno e não para um grupo maior, e fazendo uma diferença entre esses dois
t ipos de grupos, diferença que mesmo no campo da psicologia social , que se
interessa por grupos, não se reconhece, nesse momento não se tinha meios
críticos ou de elaboração e construção do grupo grande.
GENNIE LEMOINE - Por que você quer construir o gru po grande?
STEPHANE DI VITTORIO - Essa é a questão: por que construir o grupo
grande? Se eu posso mencionar algumas reflexões que fiz desde ontem, o que
mais me deu certa luz sobre o cartel foi essa evocação do grupo de matemáticos .
Lacan nos disse ontem que, se os tomássemos como exemplo, eles tinham aquela
noção do "um a mais".
O controle não é, tampouco, uma situação onde se fala da própria análise.
Na situação de controle, isso de que se fala é de certa maneira l imitado a uma
relação especial, que é o que sucede entre o paciente e o analista. Será que o
cartel não é ta.rn bém uma coisa que implica um assunto bem delimitado, que é o
compartilhar de um saber ser?
Há toda uma série de perguntas que eu faço. A única que aão respondi é
aquela do limite superior que se d ebate neste m omento. Constato que a outra
questão que aparece é esta: não se pode fazer um cartel com qualquer um. Acho
que é porque não se pode compô-lo com pessoas que são muito próximas, nem
com pessoas que estão longe demais. Porque o que se trata de compartilhar é
essa produção de discurso necessária, e tenho a impressão de que, se num cartel
há alguém que lhe seja muito próximo, você não pode compartilhar esse saber
que não quer comunicar aos outros, por exemplo.
É por isso que a expressão de Lemoine: se expor, expor a própria análise . . .
será que num controle se expõe a própria análise? Não se expõe, isso s ó acontece
se se relaciona de maneira incid ental o que se passa entre tal paciente e tal
analista .. Mas um controle nunca foi identificado com uma análise, e penso que é
no mesmo sentid o que, por exemplo, se dizia em Roma: o controle adquiriu na
Escola Freudiana uma dimensão que não tinha antes, que não tinha em nenhum
outro lugar. Penso que é nessa l inha que o cartel se inscreve também. O cartel é
uma invenção específica da Escola Freudiana. É na linha desse desenvolvimento
do controle, mas apoiado sobre outra coisa, quer dizer, sobre o discurso
científico. Por que os matemáticos têm a impressão tão evidente de que há
alguém a mais? Porque eles estão certos de que o discurso matemático é
necessário, que está aí e que cada um extrai o que percebeu dele. Será que o
cartel não consiste também em fazer surgir um discurso necessário, a l ';uür do
82

qual as pessoas se encontram várias vezes, sucessivamente, e não de uma vez


por todas dizendo: "é isso o que sabemos da questão?" Elas vivem, e como elas
se escolheram de uma certa maneira, essa maneira não é muito esclarecedora
neste momento, já que Gennie Lemoine dizia que não se podia fazer um cartel
com qualquer pessoa. As pessoas se escolheram para fazer um cartel, o que quer
dizer que elas compartilham esse saber que aflora sobre um tema, e como existe
aí uma espécie de filiação, pelo menos no tempo, isso talvez não valha grande
coisa, mas a análise veio depois de alguma outra coisa, talvez do discurso da
histérica. Os controles vieram depois, historicamente. A pergunta que eu me
faço é: depois d os cartéis se pode conceber alguma outra coisa?
]UAN DA VID NAS/O - No texto do anuário o cartel não é nem o lugar do
controle, nem o discurso analítico, o que quer dizer que ele não é a prática
analítica. Também não é o que se poderia chamar de um lugar de base. O cartel
tem uma especificidade muito própria, e diria até que ele produ z as especifici­
dades da Escola Freudi ana, pois o primeiro que aparece é que ela é a primeira
sociedade psicanalítica que funciona com uma estrut ura que se chama estrutura
dos cartéis, apesar de que falta ainda verificar essa atividade.
Em todo caso, a Escola Freudiana com sua unidade de estrutura, os cartéis,
é uma experiência nova. Na Ata de Fundação a palavra que se deve sublinhar é a
palavra Ata. Eu diria que na Ata de Fundação o cartel se instituiu como um ato5
quer dizer, como algo novo e real das sociedades psicanalíticas. Sobre esse
ponto, penso que o cartel não está l onge do que vai , como real . sustentar uma
sociedade de psicanálise.
EDMOND SANQUER Há sete anos trabalhamos sobre psi cose-insti­
-

tuição; somos seis, que se escolheram entre si, se conhecem perfeitamente e têm
sensivelmente a mesma forma de trabalho. Pois penso que, nu m cartel, o que
funciona é um trabalho no nível da paixão, paixão apaixonada e passional , quer
di zer que o "mais um" é com freqüência aquele que é ou o sujeito do ódio do
resto do grupo, ou o sujeito do amor do grupo.
Mas muitas vezes isso só se percebe posteriormente. No momento do
funcionamento do cartel, isso não aparece nunca na primeira leitura.
HUGO FREDA A partir das observações de Martin sobre os "três" no
-

texto, pensei em seguida que três mais um é, afinal , a própria estrutura de todo o
discurso analítico. Penso até que ponto , pela maneira de trabalhar, pela maneira
em que acontece um trabalho de cartel , que o determina, penso que é, sobretu do,
essa estruturação de 3+ 1 toda a estruturação do discurso analítico feito por
Freud.
E que 3+ 1 é quase a estruturação, é o conceito, no número, da estruturação
edípica. Penso que, afinal, o possível funcionamento, se tem alguma coisa de
novo, é uma concordância muito precisa entre a maneira de escrever 3+1 na Ata
de Fundação da Escola, e a propria estrutu ração do discurso analítico. Isto é uma
parte.

(5) Em francês, "ata" e "ato" são acte. (N.T.)


83

Penso também, associando, numa palavra que Lacan usa no seminano


sobre as Formações do Inconsciente, onde fala dos "sem signos". Até que ponto
essa formulação, na Ata de Fundação da Escola, esse tipo de escrita (uma coisa
que foi escrita é, na verdade, muito importante), funciona como uma insígnia,
alguma coisa a que faz referência a formação do analista.
Isto quer dizer que fazer referência a uma coisa escrita é realmente muito,
muito importante, na própria teoria analítica.
Penso que tentar encontrar aquilo que se faz referência quando se fala de
três mais um é, na verdade, dirigir-se diretamente ao próprio discurso analítico
na sua problemática interior.
RENÉ EBTINGER - Na Ata de Fundação, se eu li bem, Jacques Lacan
propõe uma estrutura que deve ter uma função : o trabalho.
Vou retomar uma distinção que já fiz há alguns anos, aqui mesmo, na Casa
da Química, mas que me parece necessário relembrar: trabalho e produção,
muitas vezes estes termos vêm indiferenciados, ou estão numa relação de
subordinação: é necessário trabalhar para produzir.
Se tomarmos três termos : trabalho, produção, "mais um", p oderíamos
formular uma questão: o cartel é um lugar de trabalho? E, creio, uma evidência,
que nasce da definição do ato constitutivo desses cartéis; mas é necessário que
produzam, ou a produção pode ser considerada como uma coisa que se somaria
eventualmente?
Como outra coisa na análise; se soma no nível do trabalho escrito, de uma
publicação, mas um trabalho como eu o concebo, isto é, no sentido de Leistung,
que não tem tradução, mas que se pode tomar como desempenho, e que, por
minha parte, eu o entenderia no sentido de um funcionamento do aparelho
psíquico.
E para se atestar que alguma coisa funciona segundo o modo do aparelho
psíquico, a pessoa "mais um" pode ser necessária para testemunhar, para ser
testemunha, testis,6 sem o qual se corre o risco de desaparecer no imaginário, e
que o ou a "mais um" esteja de qualquer maneira presente, mas sob uma forma
completamente imaginária, dando lugar a todos os desvios que Lacan um dia ­
creio, espero não traí-lo - qualificou de obscenas em seu funcionamento.
fEAN-PIERRE DREYFUSS - Quero voltar à palavra trabalho, que é usada
na doutrina freudiana em dois lugares em especial: quando se trata do trabalho
do sonho, e quando se trata do trabalho do luto
Não é uma noção que nos pega de surpresa.
Há outro termo que guardei, a palavra expor-se, isto me leva de novo ao que
poderia chamar de clínica do cartel. Constituímo-nos, há três ou quatro anos,
num grupo de trabalho; até há pouco tempo, até ontem à noite, não estava muito
seguro de que, pese às modificações que afetaram esse grupo, ele se transformara
num cartel, porque eu pensava que a "mais uma" se encarnava numa pessoa
determinada, definitivamente, durante o transcurso do grupo.

(6)Em Latím, testis, in significa testemunha.(N.T.)


84

Deixei isso de lado escutando tudo que foi d ito desde ontem à noite.
O que gostaria de trazer, desse grup o , é o seguinte:
Esse grupo se reduziu, éramos uma d ezena, a princípio , e agora somos sei s ;
tenho a impressão de que a elimi nação , d iria quase a auto-eli m inação d e u m
certo número d e p articipant e s , foi acompanhada d e u m a certa eli m i nação
j ustamente dos efeitos de grup o , quer d i zer, do que ressaltava do ensino sob a
forma tradicional , dito de outra maneira, do "fazer valer". Justamente o que
tornou p ossível esse grupo q u e agora, creio, se transformou e m cartel, foi
j u stamente o expor-se - não necessariamente contar sua análi s e - mas se
expor, quer d i zer, arriscar-se; foi nesse momento que se arriscaram no sentido de
se expor, o que não é a mesma cois a que se exibir.
JEAN jA CQUES MOSCOVITZ - Gostaria de dizer um& palavra a propósito
da situação em que estamos, gostar i a de formular um preceito, um conceito.
Quer dizer, d o preceito de formar um cartel onde vamos tentar perceber como
funciona, como de algum a maneira se poderia transformá-lo em conceito.
R ealmente, esse " mais um" o u " mais uma" foi proposto de tal m aneira que,
a meu ver, esse "mais urna" seria aquela pequena coisa destacável d o todo,
aquilo que defi niria todo o resto; mas que também defi ni ria ou permiti ria
defi ni r , n u m m omento dado, a idéia de finitude d o cartel . Aquela coisa que faria,
por exemp l o , num certo momento, com que os parti cipantes do cartel
decidissem que aquilo não é m ais um cartel, que teria que parar, parar pelo
menos de chamar-se cartel .
Há aí um problema bem partic:ular, que só se pode tratar s uperfici almente,
n a medid a em que, quando o cartel se fo rma, se concreti za um código entre os
participantes com sua própria h i stória no interior do cartel . Em d eterminado
momento , provavelmente, alguma coisa acontecerá, o que fará com que aquilo se
termine. Teríamos, talvez, que d e fi ni r quais são as condições míni mas para fazer
nascer u m cartel , e, talvez, del i mitar as condições extremas que fariam com que
deixasse de ser um cartel.
Creio que o aspecto mais comp licado é o de definir qual é o consenso entre
os participantes do cartel. Isto remete àquela problemática extrema da hi pnose,
ou seja, d a submissão ao saber d o outro, e de aceitar deixar o outro agi r o tempo
necessário para poder, num momento dado, dar sinai s dessa recepção, dessa
aco l hida, desse saber.
Nesse sent i d o , penso que o " mais uma" poderia defini r-se d a seguinte
maneira: é aquele que, num momento dado, é um pouquinho mais psicana l i sta
que todos os outros. Nesse momento, ele se situou de tal maneira que pode se
assombrar com o que se passa, e fazer a pergunta sobre o que está fazendo aí; de
m aneira que pode, talvez, part i r ou estar ausente na p róxima vez; fazer com que
ele próprio seja u rn a pergunta, sem talvez sabê-lo. Há aí uma coisa que trabal ha
n a real idade, e é saber se o relativo ao cartcl se define verdadei ramente em
relação ao " m ais urna", e se podemos fazer d isso um conceito.
Gostaria de precisar, antes de passar a palavra, duas coisas: primeiro,
ontem se d i scutiu durante uma h o ra e meia que o "mais uma" estava sempre
85

presente, e que se tratava de uma pessoa, e não creio que sua função poderia ser
outra senão a de incitar, estimular, provocar o desejo do Outro, entendendo aí
que se trata do cartel .
Ora, vocês sabem, somos analistas; e este estímulo, fazer com que o desejo
seja o desejo do Outro, sustentá-lo , isto pode ser feito por qualquer um, essa é
justamente a capacidade do signi ficante.
É um ponto que me parece muito importante; ontem chegamos a dizer que
não se tratava de alguém que estava ausente, nem de alguém que seja mais
analista do que outro; tratava-se, mais exatamente, de um elemento que atua
num cartel portado por um sujeito , mas me parece também que existe outra coisa
importante para conduzir a discussão - uma lembrança também do texto: é que
o cartel não é uma criação ex-nihílo, o cartel faz parte das estruturas da Escola
Freudiana; quer dizer, o cartel se situa - dizia agora mesmo - como uma
unidade na estrutura da Escola Freudiana.
É um ponto importante também para discutir. Há no texto uma referência
que se repete, a de que a Escola pode ser considerada como uma experiência
inaugural; será que hoje. onze anos depois, podemos continuar usando o termo
experiência inaugural?
NICOLE PEPIN - Gostaria de continuar ainda com o que dizia há pouco;
na cifra 3 mais 1 pessoas , o importante para que funcione é a pessoa a mais, e é
aí que não se pode errar na escolha dessa pessoa. Se não, isso não funciona ( ! ) ,
caso e u tenha razão quando penso que essa pessoa a mais vai fazer com que seja
mantida, num trabalho teórico, a busca da coisa.
Penso que o trabalho de cartel é um avanço; um primeiro passo para a
elaboração teórica, além da análise pessoal.
Não é o caso, creio, de expor sua análise pessoal num trabalho de cartel , é
para além disso que a coisa se situa. P ara precisar o interesse que tem a escolha
da pessoa a mais: é só mais tarde, num segundo tempo, deixamos o trabalho de
cartcl para reencontrarmo-nos num trabalho a dois (mesmo que o grupo fique ·
sendo de 4, 5 ou 6).
Para a elaboração de um trabalho psicanalítico é necessário , obrigatoria­
mente, que um analista tenha o retorno de sua palavra p or outro analista; de
outra forma, penso que uma elaboração teórica psicanalítica não é possível.
Ainda o tema da escolha da pessoa - e nos reencontramos , talvez, numa
situação de controle - terá a maior importância, porque não é qualquer pessoa
que poderá sustentar esse papel ; é bem evidente que não é qualquer analista que
p oderá sustentar esse papel para qualquer outro analista; eu diria que essa
pessoa, a mais, deve ser o "tudo em uma", que essa pessoa sozinha deve poder
solicitar o desejo inconsciente, essa busca que permitirá, dentro de certo tempo,
uma elaboração teórica.
NICOLE G UILLET - Gostaria de resumir duas ou três coisas que creio ter
compreendido há muito tempo sobre os cartéis. A função do "um a mais" me
interessa particularmente hoje, parece-me que isso foi muito importante em 64,
quando houve essa fundação, e creio que isso não foi bastante discutido na
86

Escola. É uma coisa, essa espeCle de formação de cartel que evita todos os
fracassos, todos os obstáculos que os grupos políticos, entre outros, encontraram
e encontram ainda.
Acho que para um cartel é necessário, primeiro, um desejo de trabalho em
comum de um certo número de pessoas - veremos ainda o número; são
necessários, evidentemente, interesses comuns, uma pesquisa teórica; é uma
espécie de máquina de despertar as cabeças juntas, de querer encontrar juntos,
tem um efeito de estimulação, etc.
Em segundo lugar, é preciso, evidentemente, transferência. Quer dizer, não
se pode trabalhar com pessoas que não são pares, escolhidas como tais,
semelhantes; que possamos falar com elas sem ir à guerra, poder escrever
qu alquer coisa, aprender a escrever, elas estão aí porque isso lhes interessa como
a mim , decidiram suportar, me suportar, etc. A gente se escol heu.
Terceiro, há o analítico , quer dizer, existem regras: primeiro, há ritmos de
trabalho , regulares, nenhum cartel pode funcionar sem algum ritmo, é
importante se se falta, é importante se não se respeita esse ritmo. Há regras, entre
outras a regra do número de pessoas, esse garfo de três a seis pontas me parece
extremamente importante, é o que chamarei de boa consistência subjetiva. Quer
dizer, três, evidentemente, é a famíl ia, é dois contra um, etc. , e ainda por cima é
a massa, ou seja, qualquer um pode dormir, sonhar, se trans formar em um vaso
de flores, enfi m , todas as resistências são possíveis, enquanto seis - não sou
bastante experiente, mas me parece que nos pequenos grupos que fazíamos com
freqüência em La Borde, os UTB , etc . . . se respeitou sempre isso, sem sabê-lo
bem. Por experiência, sempre encontramos esse número, chegávamos até sete,
mas eram coisas diferentes
Quarto, me parece que é preciso o " u m a mais", quer dizer, é o que assegura
que o cartel não vai tornar-se um cartel de cosmonautas , ou não sei o que quer
dizer isso. vai dar uma abertura; uma abertura sobre o quê? Sobre o exterior do
cartel, dos cartéis da Escola Freudiana, hoje se pode dizer que o que fazemos é o
"um a mais " em relação a todos os cartéis, cujos participantes falam hoje. Por
exemplo, me parece que o trabalho que foi explicado ontem de manhã pela Sra.
Soler era interessante, porque o fato de relatar um trabalho funcionou, no cartel
deles, como "um a mais". Acho que se isto não ocorre , os cartéis fazem rom-rom;
mesmo sendo seis, há uma possibilidade de rom-rom, de funcionar de maneira
fechada. que não é austera - não gosto da palavra produção, produtivo, gosto
mais de " abertura" - e marcada, p ontuada por nosso pertencer à Escola
Freudiana.
Nos pequenos grupos que fi zemos em La Borde, me parece , evitava-se o
obstáculo do rom-rom porqve pod ia funcionar, ou o fato de estar lá para cuidar
dos loucos poderia fu ncionar, como disse Lacan ontem, para a matemática. Quer
dizer que isso fazia o "um a mais " , éramos obrigados a encontrar algo, porque
havia a exigência dos sintomas do l ouco que molestava. Mas fomos obrigados a
criar um grupo , que chamávamos "grupo dos grupos", que tinha a função
unicamente de controlar os cartéis, saber o que um cartel fazia; se o outro não se
87

transformava, na verdade, num cartel de cosmonautas que estava lá para fazer


outra coisa que não fosse trabalhar?
Mme G . - Queria simplesmente dizer que havíamos formado u m cartel,
..

no começo, com o fim de trabalhar, mas também para ir ao encontro do que


poderíamos chamar um "seminarite" aguda.
Em algumas regiões, cada um faz seu seminário, e se vangloria de seu
seminário, e é para ir contra essa tendência que formamos um cartel sentindo a
necessidade, no início, de referir-nos ao texto, à Ata de Fundação. Penso que
quando , mais ou menos um mês depoi s , se anunciou a reunião dos cartéis,
sentimos uma grande alegria.
PHILIPPE GIRARD - Será que o cartel não é uma tentativa de evitar dois
tipos de agrupamentos ou de reagrupam entos, digamos, uma figura totalitária,
com fenômenos de identificação, etc., e uma figura que tem difusão atualmente,
a do liberalismo? Dito de outro modo , o "um a mais" funciona como instrumento
para evitar o que se chama de psicologia de massas , com todos os efeitos que
conhecemos, e, por outro lado, para não mergulhar numa república dos "egos ",
igualdade fictícia, evidentemente.
Em que condições pode-se escapar desses dois modos de instituição do
social, do laço social?
Se tivesse que definir a função dos cartéis, seria em relação a isso ; tomando
em consideração tanto as fi guras dominantes do passado, como o Exército, a
Igreja, mais recentemente o Parti do, a nova ideologia. Por enquanto não tenho
experiência de cartel, ou muito pouca, mas o que se produz em torno disso, para
contornar essas duas dificuldades , não é convincente. Ainda não saímos dessas
dificuldades. Creio que é isso que a Escola Freudiana tenta resolver, não só em
relação ao registro político, mas também no que concerne à instituição analítica.
Os matemáticos - você disse ontem , se entendi bem - conseguem
resolver essas dificuldades, as do "e cu, e eu, e eu" dos grupos liberais, e a do
"O utro " ou do objeto em feixes, s obre o qu al , pelo qual e no qual há
i denti ficação c constituição do "nós outros".
Os cartéis podem engajar a Escola em vias que não são as da suficiência, da
comunhão tácita e do conformismo, e constituir um meio de formação e um
outro tipo de laço social?
A NNICK DREYFUSS - Tenho uma pequena experiência de cartéis, e
gostaria simplesmente de acrescentar algumas palavras ao que disse Jean-Pierre
Dreyfuss há pouco, porque partici po do mesmo cartel que ele e pude observar
essa auto-c) iminação.
Para começar, como ele disse, as pessoas estão lá (somos uma dezena). e há
uma espécie de fascinação recíproca, no sentido do fazer valer, e pela auto­
elim inação se constitui , então, um cartcl sem esse famoso "mais um". Quer
d i zer, nos encontramos na posição de analisante (é assim que isto me surge), e,
ao m esmo tempo, de analista. O "mais um" se situava na posição de analista do
cartel , mas sem sabê-lo, c sem ser "um" claramente.
Isso me parece essencial, e me p arece agora - depois de tudo o que foi
88

dito, depois da introdução de Nasio - que é urna experiência única. É urna coisa
única: não é nem a base, nem o controle, nem a situação analítica. Mas merece
de qualquer forma um esclarecimento, porque são então dois analisantes e um
analista; e não o analista com os analisantes: trocam-se os papéis, se é ao m esmo
tempo analisante e analista.
Os números 3 - 6, nesse sentido, me pareceram também essenciais; mais
do que sei s , constatamos que nM funciona, há sempre um sobrand o , ou dois
sobrando, etc. , então o ideal seria entre 3 e 6.
Ainda restam perguntas no que concerne à explicitação de corno isso
funciona, me parece misterioso. '"
JUAN DA VID NASJO - Gostaria de responder lendo uma citação da Ata de
Fundação: m ais uma - continuo a citação que M. Martin fez ontem -

encarregada da seleção, da discussão e do destino reservado ao trabalho de


cada um . . . após u m certo tempo de funcionamento, se proporá aos elementos
de um grupo sua perm utação p ara outro.
Quer dizer que há um trabalho, u m movime nto de permutação, não só
inter-cartéis, mas também no interior do cartel , e há ainda algo mais a acres­
centar: o cargo da direção n ão constitu irá um caciq u ismo {ch efferie], cujo
serviço prestado se capitalizaria pelo acesso a um grau superior, e ninguém se
considerará rebaixado por entrar no nível do trabalho de base.
PJERRE BASTIN - O que ouvi ontem à noite, a propósito da experiência
de um certo número de grupos, 6 que eles terminavam tornando-se qualquer
coisa, as pessoas ficavam amigas e conversavam sobre temas trivi ais; em suma,
isso não funcionava.
E depois se fez a alusão, sem ir alé m , ao esquema L, ao eixo a-a·. Isto me
leva a fazer uma pergunta: será que a função da "pessoa a mais" não é,
pri meiramente, criar um obstáculo à intersubjetividade, quer dizer, a um gru po
de amigos, onde tudo o que pode fu ncionar sem uma pessoa a mais pode
instaurar urna relação puramente i maginária, produzir um discurso pu ramente
linear, e que, na perspectiva do esquema L que foi evocad a, essa pessoa a mais se
encontraria sobre o outro eixo , o eixo da transferênci a: S-A, o que dá a esse
grupo a possibilidade de produzir, de metaforizar, para que uma coisa d i ferente
possa surgir?
Outras reflexões como: três mais um igual a quatro, c, no esquema L, há
quatro termos ; nos quatro discursos: universitário, do anal ista, da hi stérica c do
mestre, é também o jogo de quatro termos que, intcrcambiando-sc, produzem
discursos diferentes. Não posso di zer mais, mas constato que aí também há
quatro termos.
Para responder a uma coisa dita há pouco, a " pessoa a mais" não é um
chefe, não é igual , mas cumpre uma certa função na estru tura desse cartcl.
Agora, como é que a "pessoa a mais" vai cumprir essa função?
A propósito da escolha, penso que está bem claro , na Ata de Fundação, que
se trata d e pessoas que conversavam sobre um desejo de fazer alguma coisa
juntas; a partir daí, não penso que haja qualidades particulares para ser a pessoa
89

a mais, salvo ter sido escolhida por outras três, por consentimento mútuo, para
que, imediatamente, alguma coisa funcione.
MARIA VELISSAROPOULOS - Gostaria simplesmente de sublinhar que se
falou dos quatro discursos; penso que o c artel é o que permite articular alguma
coisa do funcionamento da Escola com os quatro discursos, mas não penso que o
"mais uma" seja o quarto termo dos quatro discursos. Penso que é o que permite
a passagem pela metáfora, a metaforização.
Agora mesmo estava muito admirada de que se fale de uma pessoa, da
escolha de uma pessoa, não sei se é disso que se trata, mas penso que o "mais
uma" pode ser entendido na definição do significante: "o' ':lignificante é o que
representa o sujeito para um outro significante", é no nível do "para" que se
encontra o "mais um " .
DOMINIQUE POISSONIER - Gostaria de continuar u m pouco o que dizia
Bastin agora mesmo, no sentido de que duas coisas me parecem importantes na
maneira em que percebemos esse "mais um". Trata-se, ao mesmo tempo, de um
"mais um" que está sempre presente, queiramos ou não, isto me faz pensar que,
numa análise, não há mais que duas pessoas, não se está sobre um eixo
imaginário, e se trata aí de situar esse "mais um".
Essa delimitação é talvez mais importante, e consiste em que o "mais um"
encontre o seu lugar e permita que algo sej a dito nesse nível.
Por outro lado, Nasio o lembrava há um i nstante, há uma pessoa que se diz
o "mais um", a quem se confia certas tarefas , certas servidões, e isto evoca em
mim a função do "passa-umbral" [passe-seuilF: será que a constituição do "mais
um", em relação ao grupo, não é análoga à situação organizada no passe, onde
um ou dois passadores [passeurs] estão em tal posição que o que diz ao passante
[passant] se perderia em outro lugar; chegamos aí à noção de abertura de
produção, de "para um outro significante", de alguma coisa que se faz para a
Escola, de maneira também a sair de um discurso fechado, que ficaria entre os
"eu-eu-eu " , em níveis imaginários.
JOSÉ G UE Y - Por outro lado, essa questão do "uma a mais " gira em torno
de um lugar ocupado por uma pessoa d i ferente. Creio que o que foi dito aqui é
que, num cartel , escolhido ou não, não é evidente que seja sempre a mesma
pessoa que, no interior do cartel, ocupa esse lugar.
Há uma pessoa que ocupa esse lugar, a quem se dirigem, mas só depois,
num prazo mais ou menos longo, a transmissão do trabalho deve fazer-se frente a
outras pessoas da Escola e, mais tarde, p or que não, fora da Escola; é assim que
isso funciona, me parece.
Foi importante também esse controle e essa crítica interna e externa.
Por outro lado - e me uno ao exemplo dos matemáticos, que fal am d a
matemática como de uma pessoa - me parece que s e deve marcar o que causa
esses cartéis e, afinal, a própria Escola: é a psicanálise.

(7) Seuil, além da acepção de um umbral , pode ser entendido, em sentido figurado, como
entrada, ingresso, etc. A referência aqui, como se verá, é ao passe (N.T.).
90

Quanto aos grandes grupos, me parece que passando de um certo número ,


se está numa estrutura de espetáculo - e não mais numa estrutura de discurso.
Por outro lado, se se exclui que um cartel comporta duas pessoas, é porque
temos aí dois discursos que se enfrentam, não confluem, e têm enormes
dificuldades para confluir num terceiro.
JUAN DA VID NASIO - G ostaria simplesmente de lembrar que ontem
estabelecemos a diferença entre o "mais um" e o "um a mais". O "um a mais" foi
considerado como o que j á se produziu, o sujeito, falando em termos próprios da
doutrina psicanalítica; e o " mais um " não é algo que fecha uma estrutura, mas
que, estando no limite da estrutura, torna-a consistente e a abre a outras
estruturas.
Esse "mais um" é o que permite a conexão do cartel com o resto das
estruturas da Escola, é importante marcar isso como diferente. Quanto ao
controle interno-externo, há esta frase : aqueles que vierem a esta Escola se
comprometerão a cumprir uma tarefa, uma tarefa submetida a um controle
externo e interno.
CHRISTIANE BARDET-GIRA UDON - Será excessivo colocar o problema
da ambivalência em relação ao cartel e o problema dos efeitos do cartel sobre
cada um dos p articipantes e sobre seu trabalho?
Quer dizer, será que esse efeito do cartel vai resultar automaticamente num
trabalho coletivo? Ou será que não há também momentos em que o efeito do
cartel pode ser forçar a escrever ou encontrar uma determinação para escrever,
mas que talvez não estej a orientada nesse momento para o cartel, mas para outro
lugar?
Será que não há uma indeterminação, se realmente se trata de produção e
de trabalho, talvez não nos fins , mas nas orientações do trabalho?
Nesse momento, talvez o caráter lento , o risco de monotoni a ou de
esclerosamento do cartel - se ele conta com pouca gente, apesar de tudo isso
não é só um fator positivo, na medida em que nos conhecemos, temos mais
liberdade de falar, o que pode ser também um limite na informação. Talvez não
se possa controlar tampouco o fato de se estar agrupado assim, e não de outra
maneira.
. Minha pergunta era: no final das contas, se se tratava de produção, por que
não se colocou o problema das determinações de escrever? Será que é
unicamente por simpatia pelo outro, no caso do cartel , ou não se pode ter um
sentimento de furor ou de outra coisa? Na determinação de escrever pode haver
ambigüidades nos motivos.
JUAN DA VID NASIO - Traduzirei isto assim - não sei se é p ossível
falarmos de produção no cartel ; não será o cartel uma forma de estrutura que
permite a reprodução? Penso simplesmente no crescimento da Escola como
instituição ; se ela é ou não uma instituição, é uma outra questão.
NICOLE G UILLET - Acho que é a questão mais importante, mas me parece
nesse caso que teria que haver um cartel que ajudasse a assegurar essa função do
"a mais"; quer di zer, é evidente que é preciso estabelecer todo tipo de regras,
91

inclusive as regras de rotação dos cartéis e de rotação dessa função do "um a


mais" no cartel. Tem que ser como um espécie de... Há um monte de palavras
que aparecem e que nos desagradam, não é por nada, eu ia dizer, controles, dar
satisfações à Escola, penso nas funções de secretário, de comissário, etc., isso
evoca toda uma série de coisas muito complexas; talvez seja por isso que Girard
é pessimista.
Quando dizia que , por exemplo, nos pequenos grupos chamados grupos de
palavra ou grupos de psicoterapia de grupo, em que havia um ou dois loucos,
com estruturas que funcionavam como cartéis, no La B orde, o fato de ter um
louco ou dois , ou três, podia evitar uma espécie d� rom-rom do grupo. Mas
pode-se dizer, também, que essa função do "um a mais", se se esperava que fosse
assumida pelo louco que podia representar, é evidente que facilmente o futuro,
ou o Führer, ou a destruição do grupo, este poderia também se tornar um grupo
de loucos, onde a loucura assegurava essa função simbólica. E por tratar-se de
uma função tão importante - como assegurá-la, como fazê-la viver?
PIERRE MAR TIN - Continuando com as propostas feitas por Nasio, e
talvez par<: articular certas propostas interessantes, gostaria de fazer participar a
penúltima frase da Ata de Fundação, antes de que o autor aborde a descrição das
três seções:
Isto - quer dizer, o que concerne precisamente à organização estrutural do
cartel- não implica uma hierarquia de cabeça para baixo, mas uma organi­
zação circular cujo funcionamento, fácil de programar, se afirmará na expe­
riência.
PHILIPPE GIRARD - Respondendo às disposições que preconiza Nicole
Guillet, diria que as " rotações" nunca impediram nada. Os comissários se
tornaram "do povo" e os secretários , "gerais". Não acho que seja através dessas
modalidades que se chega, digamos, a proteger-se dos dois tipos de coletivos que
eu designava. Quanto à negação da autoridade e da hierarquia, que acontece
atualmente, isso não as impediu de funcionar pela própria demanda dos que as
rejeitam.
Estas questões são bem mais complexas do que a chamada ideologia nova,
para diferenciá-la da ideologia chamada burguesa; se faz.. o esforço para que a
invisibilidade funcione no "entre nós " , na familiaridade, etc. E nada pode
assegurar que ela esteja livre do totalitarismo que tenta afastar.
NICOLE PEPIN - Gostaria de continuar o que já disse, e ligá-lo ao que ouvi
há um tempo , no nível da limitação do trabalho teórico no cartel e da
agressividade que se produzia. Parece-me que, obrigatoriamente, um trabalho
teórico num cartel só pode ser limitado, e não falarei da agressividade, mas da
dimensão do ódio.
Na medida em que há intervenções múltiplas, parasitárias, num grupo por
demais importante, faz-se uma limitação ainda maior, já que não se p ode, entre
colegas de trabalho, trabalhar de outra maneira senão percebendo uma dimensão
particular de funcionamento , que chamarei "semblante social". Quero dizer que,
estando ligados p or laços de camaradagem ou de amor, em qualquer grau, haverá
92

sempre algo a preservar que colocará obstáculos a que a "pessoa a mais " pos sa
cumprir totalmente seu papel.
O papel da "pessoa a mais" se situa, como já disse, no nível da busca da
coisa. Ela vai levar essa busca no sentido de uma provocação - peso minhas
palavras - porque me parece que a pessoa a mais teria que manter a dimensão
da morte para que o discurso teórico e a elaboração teórica possam ser feitos.
Se eu falava há pouco de algo além da situação de cartel , chegando à
situação de controle p ara dizer que há aí o risco de que a pessoa a mais seja 0
"tudo em uma", é que só nessa situação o analista, que trata de realizar uma
elaboração teórica, é mantido no;. "ser para a morte": só nessas condições uma
elaboração teórica é possível.
fA CQUES CRÉPIN - Gostaria de Íalar de algo que não chamarei de cartel,
mas de um grupo: o grupo de Amiens -St-.Quentin.
Creio que, a partir destas reuniões de estudo , serão feitas perguntas;
estamos descobrindo, por exemplo, que ainda que tenhamos refletido sobre o
número de pessoas que poderia constituir esse cartel. as reflexões nunca foram
muito longe. Somos atualmente, e desde o começc, nove; confesso que foi só
ontem à noite que começamos a colocar-nos o três e o seis. Direi também que
nunca tínhamos refletido sobre a questão do "mais um" ou do " mais u ma",
provavelmente porqu e , no momento de instituir-nos como cartel, não tínhamos,
na verdad e , lido as Atas de Fundação dos cartéis.
Queria simplesmente ind icar que não nos fazemos muitas perguntas, e -
me parece que isso surgiu uma ou duas vezes aqui - uma questão que não foi
colocada (uma questão muito subjacente, mas que está sempre presente) é que
no nosso grupo há dois casais, esta é a questão, que talvez não seja específica
desse gru po, gostaria de assinalar, a título de curiosidade, que a única vez que
houve uma ausência nesse grupo foi quando a nona pessoa partiu para casar-se.
Conto isso a título de episódio, sobre as perguntas que vamos seguramente
formular-nos quando voltemos a Amiens-St.-Quentin, logo mais.
fUAN DA VID NASIO - Posso lhe pergu ntar quais são as coisas que vocês
projetaram, pensaram, depois da discussão de ontem à noite?
jA CQUES CRÉPIN -,- Só nos encontramos de forma individual. não
estamos todos aqu i ; há uma coisa, no entanto, que gostari a de d izer também, que
me ocorre enqu anto fal o : na constituição do cartel , o que nos assombra
posteriormente (provavelmente por isso não somos um cartel), é que, afinal , o
tema escolhido para dar um nome, uma insígnia, ao nosso cartel , foi algo que se
deu muito rápido. como uma espécie de formalidade; falando isso, hoje, me dou
conta de que essa formalidade tem o seu porquê. Chegaria a dizer que o " u m a
mai s", para formulá-lo assim, se manifesta no nosso grupo sob a forma de dois
líderes . e não por acaso esses líderes são as duas pessoas que escolheram o tema,
logo acei to pelos s ete outros parti cipantes, sem que nunca tivesse sido
questionado. O tema era o primeiro Discurso de Roma.
COLETTE VAN DE POORTER - Você falou de matemática como se fala de
uma pessoa, e disse que é certo e curioso que, quando os matemáticos se
93

reúnem, sempre há uma pessoa subentendida presente.


E curioso, e merece ser sublinhado, que as ciências são representadas por
uma mulher, essa pessoa "uma a mais" talvez seja a mulher, enquanto não
existindo e situando-se entre presença e ausência. Agora, na matemática, a
verdade está visível ou subentendida antecipadamente, e o jogo é de ir ao seu
encontro ou negá-la.
Eu me pergunto: Qual é a relação dessa "pessoa a mais" com a verdade?
ANNICK DREYFUSS - Queria simplesmente acrescentar que a experiência
de cartel não tem nada a ver com o que poderíamos chamar de experiências de
dinâmica de grupo ; me parece essencial assinal'ar isto.
NICOLE G UILLET - Eu acho que os temas de trabalho e sua escolha não
têm tanta i m portância, mas , num caso extremo , de vez em quando, quando a
Escola precisar, pode-se distribuir os temas de trabalho; eu sempre gostei de
exercícios de p iano, quer dizer, de coisas obrigatórias, mas pode-se dizer: " Seria
interessante trabalhar naquele cartel " , i nclusive trabalhar num cartel s obre
ficção científica, e isso tem relação com a Escola Freudiana de Paris, quer d izer,
com a psicanálise.
O que me parece, talvez, mais interessante, é a escolha do lugar; pelo
menos se deveria falar isso, porque a função do "um a mais" é , às vezes ,
assegurada pelo fato de se reunir na sede da Escola, e também, pelo contrário , o
fato de se reunir na casa de alguém, sempre o mesmo, e não na casa dos outros,
pode ser i mportante no grupo; acho que isso deve ser considerado : o
apartamento de urna pessoa faz parte de seu corpo. etc.
Não vamos dizer que a função do "um a mais" será assegurada precisa­
mente porque seja na sede da Escola, mas , enfim, me parece que teríamos que
pontuar todas essas coisas.
NICOLE PÉPIN - Falava há pouco de semblante social , o qual poderia pôr
obstáculos à elaboração de um trabalho teórico no cartel , e gostaria de precisar o
que entendo por "semblante social". O "semblante social" é o que faz com que as
pessoas possam viver em sociedade, é seu modo de adaptação à sociedade, aos
outros, os pequenos outros que as rodeiam. Situo. o "semblante social" no nível
do imaginário, relação imaginária com umà incursão no simbólico, às vezes.
Outra coisa importante nos obstáculos que se pode encontrar no nível da
el aboração de um trabalho teórico nos cartéis é o que chamaria, para fazer um
paral elo , de "semblante psicanalítico " , que não só é um obstáculo para a
elaboração de um trabalho teórico no cartel, mas é muito mais perigoso do que o
semblante sociaL
Por que? P orque não se situa no mesmo nível: o "semblante psicanalítico"
só poderia ser utilizado por pessoas que conhecem a análise e o funcionamento
do inconsciente.
Elas colocarão em movimento não só o imaginário e o simbólico, mas
também correm o risco de mobilizar algo no nível do reaL
Aí, isso pode provocar reações completamente dramáticas, já constatamos
os efeitos em diferentes grupos de trabal ho. Eram importantes, temos que
94

assinalá-lo. Situo aí os obstáculos ao funcionamento dos cartéis : quando as


pessoas sofrem imposicões, por uma terceira pessoa ou por eles mesmos; quando
alguém se designa para ser a "pessoa a mais".
FRANÇOIS HANAFI - Pensava nos "três mais um", na relação triangular.
Essa pessoa, presente ou ausente, poderia ser eventualmente o funcionamento da
Escola, já que Lacan nos dizia ontem: será que a Escola funcionou até agora?
Pensava fazer pequenos desenhos no quadro: partindo do triangular, se
pode pôr o p ai , a mãe e a criança. e eis o que falta: as referências ao texto, seja o
de Freud, seja o de Lacan.
De maneira que fazendo os três anéis , uns dentro dos outros , para que esses
três existam , para que o cartel exista, ' tem que haver "mais um", quer dizer, a
reunião de tudo isto.
Que haja alguém capaz de, no centro, ocupar-se disso. Imaginava também
algo no nível do "três mais um", falando do seis; quer dizer , o famoso triângulo,
unindo-os assim.
Isso forma o triângulo, mas. quando associados, fazem seis p ontas; e se é
visto no nível da união, se forma o quatro.
O que pode significar: p ara o funcionamento de um cartel, há três pessoas;
há eventualmente o analista, e o que se produz, o objeto; para que isso possa
funcionar, deve haver o exterior, quer dizer a reunião desses três.
Havia outra coisa sobre o funcionamento da Escola, o fundador da Escola, a
Escola mesma, nós ou eu , e para que a Escola possa funcionar, para que existam
quatro, falta algo aqui, o cartel, quer dizer, cu pertenço ao cartel, e se pode
chegar a reunir e fazer um círculo em lugar de um quadrado.
Mas , nesse quarto [quatrieme]. vejo as referências no nível do texto, mas
também no nível d a própria pessoa que escreveu os textos, tais como Lacan e
Freud, que foram , a meu ver, postos de lado até agora.
JA CQUES LA CAN - Safouan, você estava aqui ontem às cinco horas, pelo
menos quando eu abri a sessão. Não teria algo a dizer sobre o que ontem mesmo
me deu a possibilidade - hoje me abstenho - de um diálogo com várias
pessoas que falaram? Ficaria contente se você dissesse o que pensa dessa " mais
uma pessoa", que todo cartel literalmente evoca, evocou em todo caso p ara mim,
e , lamento não tê-lo pontuado há pouco, Philippe Girard marcou muito bem qual
é o objetivo, qu e é sair da necessidade que se cristaliza no funcionamento de
todo grupo.
MUSTAFÁ SAFOUAN - Será que pode haver uma reunião esta tarde?
Prefiro esperar pela tarde.
JA CQUES LA CAN - De acordo. Há coisas que você escutou esta manhã,
havia outras de ontem que eram extremamente sugestivas.
MUSTAFÁ SAFOUA N - Em todo caso, do que ouvi esta m anhã, é
sobretudo o '' mais um", porque é uma função que não tem nenhum equivalente
soci al a que possa se referir. Como se disse, no plano social, não se p ode defini­
lo senão por inversão.
95

!A CQUES LA CA N - Há, evidentemente, dois pontos: por lad o , a organiza­


ção, a vida, se se pode d izer, do cartcl como tal, c , d epois, o que alguns,
inclusive Nasio, insistiram, ou seja, a produção.
MUSTAFÁ SAFOUAN - Mas não é fáci l situar, na topologia subjetiva, a
que responde essa função.
Ainda por cima a questão se ampliou - vejo a novidade, o caráter inédito
da própia idéia de organizar assim uma colaboração entre vários no trabalho.
JA CQ UES LA CA N - Acho que há algo específico na análise que coloca
essa qu estão que fica sempre mais ou menos apagada, no fim das contas. Acho
difícil que os analistas não se perguntem o que quer d izer, analiticamente, o seu
trabalho enquanto trabalho em comum; o anal ista deve ficar isolado, por que
não? E o que acontece na prática.
É natural, de qualquer maneira, fazer a pergunta: por que acontece? E o
mínimo. Se você quiser amadurecer algo para esta tarde . . .
CHAflLES MELMAN - O que pode manter o s analistas n u m grupo d e
trabalho? Creio q u e poderia ser a del imitação d o real que o s convoca: a mais. Isto
coinci diria com a necessidade de produzir, no grupo, um discurso a mais que
aqueles que um estudo em comum vai inevitavelmente suscitar: mestre, uni­
versitário , hi stérico . . .
jACQUES LA CAN - Aubry, voce tem, talvez, coisas a dizer que surgem da
sua experiência . . . que é grande.
Mme. A UBfl Y - M i nha experiênci a foi que, cada vez que tentei instalar
algo da ordem do cartel , fu i posta em posição de chefia, de tal maneira que não
era suportável. Diz-se q u e quando sucede alguma coisa, os dois dela participam ;
mas não tinha a impressão d e que fosse o caso. O que posso dizer é que, antes da
fundação d a Escola, quando estava em Paris, pude fazer algo que cada u m pôde
tomar seu caminho, o que me parecia responder ao objetivo do cartel; senão ao
seu funcionamento . . . Quer dizer que cada um fez o seu caminho, no sentid o do
que acontecia na sua análise, mas sua marcha pessoal é relativamente solitária,
fazendo parte de algo que tinha valor de significante; estou pensando no
Enfants-malades. Depois, tentei também voltar a participar de um cartel , em
Paris, mas d evo di zer que quando venho; o que é raro, é uma verdadeira
bagunça, e renunciei, embora aí houvesse, com efeito, algo possível.
Não pude funcionar num cartel, com exceção de algo que estaria próximo
do Enfants- malades, pelo menos quanto ao objetivo , que acho que é uma
produção , mas onde o que é coletivo é que cada um pode argumentar com o
outro numa via circular, sendo que cada um deve fazer um caminho original e
pessoal e, creio, a d iversidade de pessoas que trabalharam antes no Enfants­
m alades , e que são produtivas, e nada parecidas, são um testemunho. Não vejo
o que posso trazer de novo, mas tenho que di zer também que na região de Aix,
quando cheguei , havia uma demanda extraordinária, que se resolveu partindo
cada um para o seu l ado, para fazer alguma coisa.
Houve certamente, nesses grupos - que se pode chamar assim , p ois não
eram cartéis -, uma elaboração do que p odia ser um trabalho analítico, uma
96

retomada, para muitos, de uma análise; tantas questões se levantaram, sem que,
naturalmente, eu respondesse diretamente.
MUSTAFÁ SAFOUAN - O que acabo de escutar me faz indagar a quê
responde, de onde surge a necessidade do " mais um" ? A sua pergunta: " Será
que o analista pode trabalhar isolado?" , também mexeu em alguma coisa. Meu
sentimento é de que se trata de uma função que consiste num segundo olhar, um
segundo olhar lógico sobre o discurso, suas conseqüências lógicas, não s u a
significação, m a s se pode assinalar a u m sujeito, p o r exempl o, suas contrad i ções
ou as conseqüências secundárias às que ele mesmo não presta atenção.
Nesse sentido, diria que é uma função como a maiêutica socrática, mas
verdadeira, porque se sabe que no diálogo há muita simulação, é o exem plo
típico; pretende-se ignorá-lo para descobri-lo l ogo, mas pode haver lugar para
uma função verdadeiramente socrática, e é nesse sentido que me parece que
pode haver espaço para o "mais um ". Pessoalmente, nunca tive dificuldade c o m
coisa alguma, quero dizer que quando não se trabalhava, a gente ia embora, c
isso era tudo.
]A CQ UES LA CA N - O que prova, senão a sua intervenção, pelo menos o
seu consentimento. Quem quer ainda tomar a palavra?
RADMILA Z YG O URIS - Corno cheguei tarde, não sei se já fizeram a
pergunta: quando se faz o trabalho que se faz (se é que isso se pode chamar de
trabalho), essa cois a estranha que se faz quando se é analista, será que se pode
falar disso a mais de duas , três ou quatro pessoas de uma vez? E o que se passa
com o que se fala, que tipo cl.e discurso se sustenta? Tenh o a i mpressão de que
antes mesmo de que o cartel estivesse verdadeiramente constitu ído , quando se
queria falar do que se fazia como analista, falava-se por telefone, mas não se liga
nunca p ara mais d o que um punhado de pessoas. Depois , quando se pede para
fazer um trabalho, participar de um congresso , trata-se de um outro tipo de
discurso , que faz com que tanta gente se recrimine sempre nos congressos: "Não
é isso, não é isso, é universitário"; será que o analista pode escapar do discurso
universitário quando fala numa assembléia ou quando escreve? A questão que eu
queria colocar é a diferença entre o escrito e o não-escrito. Não é porque se fala
que não é escrito, cada vez que a gente se reúne, que trabalha, está presente um
ou outro aspecto: "com dois isso não funciona", se está num a relação de iden­
tificação: "como você faz e como eu faço", se está no sa voir-faire unicamente,
falta algo , uma referência comum, e essa referência comum, que status ela tem?
]A CQ UES LA CA N - A sessão está suspensa.
97

1 1 1 - S ESSÃO DE G R U PO DO DOMI NGO À TAR D E


DO "'MAIS UMA" E DA MATEMÁTICA

]UA N DA VID NASIO - Não é minha intenção fazer u m resumo do que foi
dito de manhã. Só vou tentar pontuar algumas referências que extraí da
discussão.
Nós consideramos, pois, no que se refere aos cartéis, dois registros que
Lacan resumiu ao separar, por um lado, a estrutura, a vida do cartel, e, por outro ,
o trabalho que se executa, a produção.
Quanto à sua organização, o problema do "mais um" fica por ser
desenvolvido. Nós sublinhamos a diferença entre "um a mais" ( un en plus] e o
"mais um" (plus u n] , sem dar-lhes ainda uma consistência definitiva.
Esse "mais u m " foi situado na articulação do cartel com o resto da estrutura
da Escola. Sobre este ponto, acrescento agora que esse " mais um", enquanto
ligado à Escola, faz eco com a fórmula "não existe Outro do Outro " . na medi da
em que ele detém qualquer relação infinita. Isto coloca o "mais um"como o corte
que promove a p assagem do cartel à Escola.
Por outro l ado , foi afirmado por Girard que tal organização poderia evitar
os riscos de u m certo totalitarismo ou da igualdade fictícia do liberalismo. Ele
deixou perceber s uas dúvidas sobre a eficiência dos cartéis para chegar, como
laço social , mais além de um agrupamento comandado pela figura do chefe o u
dirigido pelo reforçamento dos "egos" .
O segundo aspecto, o do conteúdo, d a produção, foi assunto de diferentes
intervenções. Em p articular, a noção analítica de "trabalho" tem servido de
referência.
O cartel apareceu como lugar de um trabalho em comum, mas pode-se
d izer que a com u ni dade analítica encontra nessas unidades seu ponto de
realização? Lembremos que nenhuma sociedade psicanalítica está organizada
sobre essa base.
Desse ponto de vista, temos um termo que mostra o caráter inovador dos
cartéis , que é "ato".
!ACQ UES LACA N - E u lhe agradeço muito pelo esforço de fazer este
resumo.
Não encontrei na sessão desta manhã o interesse que tinha a de ontem ,
presidida p or Martin, onde vocês não fizeram outra coisa senão colher seus
resultados.
Espero que Safouan contribua com alguma coisa, ficaria contente se você
falasse.
MUSTAFÁ SAFOUA N - Tive tempo de ler a Ata de Fundação e percebi
que tinha esquecido o texto.
JACQUES LACA N - Você não é o único!
MUSTAFÁ SAFOUA N - A impressão que fica, no que concerne à origem
dos cartéis, é de que se trata de uma ordem marcada pela preocupação de não
98

fundar a co1Q.borq.ção ,. ou o. .t.rupalho, cprnurn, ,sobre p., caciquismo [clwfferie]; não


existe ne nh� di.a b igailiz� Ç ào 'q u e 'po � sa_'éh mrnà:r ô \açíq'ú.ismp em' u m a colcti-
·

/\ � · � l'. l. :'2, !' r


.r" r.·.• l" ··� 1 ':1"• / � ·� t./' l' �· :� �
� : ..
vi dade.
.� ·' 7 •• •
. . .

E coisa qu e cu poderia sustentar; se me perguntassem , s u stentaria afi nal


q u e a s ociedade, . por seu p r i ncípio. a partir d e süa c€l u l a de' base. q u e se chama
família; e s t á · fu n d a d a s o b re o recalque. M as , se não s e p ode eli minar' ' o
caci q ui s m o , pel o m e n o s pode-se evitar fundar sobre e l e um reg i m e de trabalho
q u e possa ser chamado de honesto .
. Então é u m . o rdenamento ; como poderíamos ter concebido outros. O q u e
n o s faz colocar certas q u c stües sobre a eleição do n ú mero. p o r exf;mp l o , três, o u
q u at r o . o u c i n co. I s t o p a rece u m a s u gest ão p ru d e nt e . no s en t i d o d e q u e .
empiricarnente, d e ntr.c d esses· l i m i tes, o trabalho :;e m ostra . como tendo u m
caráter a o mesmo t e m p o mais confidenc i al , m ais franco e també m mai s séri o d o
q u e em outras cond i çõ es . N ó s mesmos, p o r ex emp l o , tentam os fazer um trabalho
em . torno d o léxico. Enqu anto a porta estava aberta a todos; . nada foi feito
seriamente. Fomos obrigados a lim itar o n ú mero , e a part i r desse momento . . o
trabalho se reali zou .. Isto tem um caráter empírico.
Falo i st o para chegar ao " mais uma". Não sei por que, construí uma idéia
tão exagerada, que cheguei a: fal ar de Sócrates. tal a .forma em ·q u e a coisa me
·
pareda importante na boca d os o u t ros.
M as com o ·el a é v i sta aqu i , vejo u m a função q u e scria -comparável ·à fu nção
de· um tutor n u m colégio inglês; quero apoiar tudo i sto não numa d i reção t eórica.
mas numa ordem q u e tem um caráter em pírico: repito, o est i l o me parece ser o
de um tutor de Cambridge ou de O x ford , encarregad o da seleção, da d iscussão e
do resultado do t rabalho d e cada u m . ·

Existem q u estões duvi dosas. Depois de um certo tempo de fu ncionamento,


será: que aos elementos de uiü -gru p o : se propôs· serem permutados p�l.os de u m
o utr<J? Isso • foi feito? Porque : isso m e parece totalmente coerente ·Com o resto, é
justamente sem essa permutação. o resto não tem valor. Na m e d ida em que se
t rata, j u s t amente, d e d i ssi par o máximo possível os efeitos d o caciquismo; · a
perm u t ação é l'lecessária. M as isso foi feito?
JA CQ UES LA CAN - Não, não foi fe ito nunca. ,· ; ·· · .
.

MUS TAPÁ >SAFOUAN - Então é u ma -coisa q u e m ctccC; scr feita, p 0 rq u e se


percebe q u e é coerente com o resto.
· . Na verd ade, todo m undo está n um cartel? Será. que eu estou. num cart el?
Será que todo mundo trabalha num. car:t cl? E u não posso. dizcr que trabal·h� ilum
cart e l . -· 1 : . , , . . . · . "

/A C'QUES LACAN · Absol u t amente. Não exis.te tv.e.rdadeira: realiz.ação do


cartel de nenh u m a espécie. • · '· ·.:: ! · '

MUSTAFÁ Sl'\FO UAN ___, _ É isso. M as m e u s,enti mcnto ; ó· d e . que. isso


const i t u i u m a gran d e l acuna na apli cação c q u e se , pçdirjn o s , a. .to�o!l ' :pa,ra
t rabalhar em u m cart c l , ap l i cando o princípi o,da·�petmut açãôi <is:;o·pqrJd.l à -prova
narci sismo · de. ;todos . . É uma coisa •á:sen.;aph.cada. !'Istb
o· que :•m(!_I_(',Jçorreu.
Haver.á outras. coisas que d i rei pouco :a po u co: . . :.� : ; :,- 'ê> <; u - � 1.: '; . ;;. F; t·1 ,,;-, : : , ; ,
99
PIERRE MAR TIN - Chamei o nt e m . a , atenção sobre o " m ais u m "
e . c ta
m anhã spbrc os " t r e s " ., E me• pergunto se n este. p úblic o há. alguém
tam b em' c;o I ocar a q u cst<l,o
- d· ,a propna
'
q u e po sa
· paI avra cartc l . No texto, está re feri d a a
:
cardo. dobrad i ça , ab0.rtu ra c o utr as coisa�. A palavra, na l íngua france sa, t e m
ai n d a o:u t ras i m p l icações. M a s me p arece q u e mereceria tal vez dcter-se .ncst a
ROBERT MUND - J ustamente, cu me pergu nt e i sobre a paJavra " ca.rtel " .
Qu ando entr0.i na Esco l a Freu d iana, fa,z .se i s �'1os , . quis s aber ,qu.al era . a regra.
Ev i d e ntemente, li .os estat u t os . Era o i n íc: i o de u m a . p rá,ti cq que p.inda, naquele
m om en t o . não era analít i ca . Eu t rabalhavíJ, no Enfants-Malades. . De m aneira q u e
1�stávamos já agru pados para e st ud ar o D i scu rso d e �Qma. E u tinha fe ito .um
p o u c o d e l i ng ü ísti ca an tci s de trabalhar co m.o anal ista c.. . p o r tudo isso,
e v idente m e n t e , m e i nt eressava l e r o D i sÇursÓ d e R o m a . . A q u i l o care c i a d e
es t r u t u ra. F u i v e r . n o s estatut o s , o q u e era o cartcl . Vi : " n ó s t e m o s u m n o me
para . . . " . c pensei : e ntão esse nome já p rccxistc ao s e u u s o . P e nsei nos diferentes
s en t i d o s que p od i a t e r a palavra c arte L Não creio qu e se trate de .um cartel
p o l ít i co . E me s u rg i u a i d éi a de que a paiavra cartcl contém ,também o que se
faz i a qu ando se provocava al guma pessoa para . um d u e l o . Existe aqui u m a pro­
vocação , no senti d o d e que se deli mita u m campo c u m a rcgq, , s cgun d o a qual as
pessoas não vão se estrangu l ar. Porque, mesmo a ss i m , ai nda há u m a
poss i b i l i d ade de m o r t e . u m d u e l o pode exis t i r , a m o rt e está presente. E e s sa
p a l avra cartcl :soava pa r a m i m como aqu i l o que era comum no sécu l o passado,
q u an d o as pes s o as se bat i a m em d u el o : falava-se em ca rtc l . P.ois essa provocação
p a r a fal ar é p re c i s a m e n t e o que nos parece ser a gnindc d i fi c�ldade na� rçUJ1iõcs
d e q u atro pes so as , q u e i m agi na r i amen t e estão agru padas em quatro; mas qu e têm
rn u i til d i ficuldade . em aceitar esse traço, ou s,cja, essa separação e ntre s i grÚficapte
c .s i gnHicado . . O " m ai s u m " , sendo aq u e l e que garante q il e . as. coisas a n d e m .bem
por ci ma. da barra, qu e s ej a m s u ficientemente . Il?etaf9 6 zadas, ; . para ser
".c om un i cá)! c i ::; " , c o nl P reensíve i s por a l g uém q u e não ç,stá e(O rel ação d u ai Jna
aná l i se , por ex e m p l o ) . que não está em relação d e ideqt i ficação. . . ,
Eu acho que o "m a is um" d esempenha. n um cartc l , quase o mesmo pa pe l
qu e o_ do ana l i s t a n u m a c u ra. o u seja, o de esta r lá para p e r m i t i r q u e u m a pal avra .
seja d i ta com a castração, co m o s ignW cant.e . remetendo. a todos os o utros
sig n i fi cantes , separados do signífi cado pcla .baua. . . . . . '·' .
Essa disti nção me . p arece p ri mord i al em toda a el aboração teór ica, vi 5 to que
u m a teoria é algo q u e dcve. ser comu nicadQ, ·e que o p ri nci p i o da .com u n i cação é
q u e sej a co mp ree n s ível p o r al g u 6 m q u e não ·esteja part i cipando dela. .
Eu mes m o .achei , naquel e momento (há 4 . o u 5 anos). quç esta " mai s uma"
p o d eri a ser p ag a, o q u o present i.ficaria a dív i d a p e l o . acesso a o s i mb ó l i co.
Não digo que t e n h amos apl i cado isso ! . . . : . · ..

MUSTAFA SAFOUAN - É i n s u stentável o q u e você di z! Cada u m j á s e .


enmrrega ba�tante d e p:agar o mais u m ! Isto me p a r ece. ... .f
ROBERT MUND - Eu não d i sse q u e p assamos ao at o , d i sse que há s e i s
auos pensei nisso, c.om o :fa�1tasma. Acho q u o . d c quq l q u cr. manciza. nãc,>:,é .o fat o d e
pagar, no real . o q u e conta, mas . m e smo assim cx�stc algo q u c .tçll) rçlaç(io ç o m a
1 00

d ív i d a s imbó l i ca no " mais uma"; essa pessoa a m ais ou esse " al go" é que
possibilita uma retroação da palavra. Por isso ele é ator, ou seja, organizador de
uma possibil idade de trabalho em cartel, porque iss o faz ato, essa pessoa a rr.ai s
qu e é quem escuta.
E i s aí algum as i d éias. Poderia contar-lhes t od as as d i fi cu l dades qu e
encontrei nos d i ferentes cartéis nos quais trabalhamos. E isso era cada vez q u e se
tratava j u stamente da barra, ou seja, de abandonar o i m aginário, q u e é su bjacente
à possi b i l i d ad e de ser abandonado. E necessário que exista o imaginário para
que se possa abandoná-lo. A d i fi cu l dade de abandonar o i magi n ário é q u e
produzi u , na mai oria d as vezes, obstrução no trabalho do cartel .
GENNIE LEMOINE - É a palavra "e m p í r i co" que m e chamou a atenção em
Safouan. Não p e nso q u e se propo nha três ou q uatro porque não se pode
t rabal har com v i nte. s e não se acha u m a outra razão para esse núm ero . Acho q u e
se se trabalha com três, quatro ou seis, isto significa q u e é o desd ob:-amento da
situ ação anaJ ítica que se faz efetivamente entre duas pessoas, mas talvez entre
quatro p ó l os. É o d esdobramento, no nível social .
E cada vez mais se poderia, dessa forma, chegar não a uma instituição .
seguramente não, mas a u ma sociedade analítica, q u e dev ,: ser encontrada. Isto
era u m a p ri m eira questão, há dez anos : o que é uma sociedade analítica?
MUSTAFA SAFOUAN - Antes de que me esqueça, tenho u m a p ergu nta a
faz�� a Jacques Lacan : por que o termo " mais u ma" é subl i nhado? É o único
termo que está subl i n hado nesse texto.
Por que v ocê teve a preocupação de sublinhar este termo?
JA CQUES LA CA N - Para que percebam, desde o começo , o que de todo
m od o viria mais tard e . Em realidad e , só o fato de haver-me expressado assim
d everia ser suficiente para que, "mais uma" , se perceba, ao menos porque não se
pode ver, de outro modo, o porquê de que eu tenha d estacado de um grupo esse
" m ai s u m " que se t orna um enigma. Enfi m , pensei que d e v i a s ubl inhá-lo
simplesmente para que se detenham nele.
MUSTAFA SAFO UA N - A resposta que achei a esta pergunta é que, na
enumeração d essas funções , a função essencial é a que está i nd icada pelos
termos d a d i scussão, " encarregado d a seleção d a discussão " . É o termo
" d i scussão " , no sentido de que o sujeito, o anal ista, não está l i gad o à " m ais
uma" , e le está ligado a si próprio. Mas a relação q u e cu penso ter com o que
tenho ou possa ter a dizer, é uma relação que pode se soltar, e como! . . .
JACQUES LA CA N - Sim, certamente.
MUSTAFA SAFO UA N - Isto não implica a fu nção de amarrar, de alguma
forma, a relação entre ele e os outros membros do cartel , mas si m a de sustentar
a relação que cada um pode ter, no seu trabalh o , com o que t em a d i zer. E o que
me parece constituir o essencial da função.
JA CQUES LACAN - É exatamente o que eu d esejava que você, Sibony,
falasse.
DANIEL SIBONY - Escutei algumas palavras como recalque , morte. Isto
me i ncita a dar-lh e s como testemunho algumas reflexões que me surgiram a
101

partir d a reuruão d e ontem , independente d e qualquer experiência de cartel .


pois, mesmo tendo funcionado e m diversos grupos, e u n unca m e encontrei num
grupo que estivesse sob o título de cartel.
Isto me preocupou de tal forma, que concluí, afinal , que não existe outro
problema n u m grupo s enão este do " mais uma". Quero dizer que não existe nada
além da função d o " u m " , ou de " uma a m ai s " , a título de "a mai s " . Vou tentar
dar u ma explicação sobre i sso.
Se se p arte d e u m amálgama, d e um conjunto d e seres falantes, a pergunta
sobre o que o faz manter-se como tal , conjunto, pois o que faz viver e decompor
essa reunião de seres a priori separados, essa questão está seguramente presente.
Mas d i rei que o que d ecide é a maneira pela qual a repetição trabalha o conjunto.
A repetição pode ser puram ente numérica: 1 + 1 + 1 , etc ... , caso no qual os
e lementos contam e i ntervêm a título d e "um por u m " .
Não é verdade q u e tal conjunto possa ser sustentado por muito tempo, pois
p recisamente ele ignora o temp o , ignora o ritmo c a pont u ação. E esses
elementos só podem m anter-se j untos como mortos. E um nível narcísico
perfeito demais, ou m elhor, é o que se poderia chamar de um conjunto trivial.
E u lhes diria ainda que o que me sugere essa denominação é que um dos outros
nomes do nó borro meano , ou dos nós borromeanos de n elementos, é: nós quase­
triviais.
Isto quer d izer que eles têm o mínimo que é preciso p ara não ser comple­
tamente triviais. Mas este é um ponto de vista muito ingênuo, pois , em razão dos
efeitos da palavra, os conjuntos humanos , por p equenos que sej am , conhecem as
determinações sensíveis da sua finitude manifesta - n ão existe reunião infi nita
de i ndivíduos - e acrescentados a esta finitude manifesta, os paradoxos do que
se poderia chamar s u a infinitude latente, que v ê m como sobrecarga para
sobredeterminar de u m a maneira esmagadora e plural os indivíd uos presentes.
Assim , o efeito pelo qual tal conjunto foge, o fato de que haja fugas . .
.

fACQ UES LACAN - lnfinitude l atente, é isso j ustamente que é a "mai s


uma" .
DANIEL SIBONY - Justamente é isso que eu queria articu l ar.
Pois o efeito pelo qual tal conjunto se fecha, s e abre, apresenta i ntervalos, é
o efeito pelo q u al ficam esboçadas suas fronteiras e seus limites. Vocês não t ê m
q u e se surpreender d e que esse efeito seja contami nado p e l a i nvenção do traço
mínimo como i ntermed iário da denegação, como conseqüência do recalque, da
rejeição, em res u m o , esse traço está comprometido com as formas m ú ltiplas e
exuberantes da negação.
E visto que se chega repenti namente aos traços, e por eles à escritura, eu
diria que um conju nto de seres falantes só se s ustenta se está filiado a uma
escritura em curso, às i m possibilidades de uma escritura, ou ainda, se ela tem a
pretensão de estar acabada, à necessidade de p reservá-la, de transmiti-la, e , em
conseqüência, de mastigá-la, ruminá-la e consumi-l a.
Assi m , o conj unto fami l i ar é l i mitado àqu i l o que sobra, a criança,
testemunha e s u porte d e u ma i m possibilidade d e escreYer a relação sexual.
li
1 02

Quem o conso m e . q u e m o nega? " .

Outro exe m p l o ! o 'povo :do Livro (aquele quê se denomina assim) desfaz
n u m a l e itu ra a l e i t u ra precedente e a· d es co m p l eta. 'a cada v e z , de seus
comentários CGmplementares . Chego á algo que m e deixou muit o · sensibilizado;
é o que vocês evocaram ontem, quando falavam do grupo de matemáticos.
Esse gru p o - pois acontece que me é fam i l i ar - refere-se a um ser que sô
se su stenta numa p u ra escrita, a matemática. E um grupo no qual o coração bate
ao rit m o d e sse s e r . para quem testemu nhas são p r o p o stas sob forma d e
d c m o n st ruções , esse ser q u e s e estremece e s e nutre d e s u a aprovação escrita ­
cu di sse bem: escrita. Quando i sso se escreve é bom , eu não q uero di zer quando
s e denota e m l i nguagem rT'atemática; h á pessoas que confundem a escrita e o fato
de dei xar traços coerentes. É toda a qu estão da escritu ra q u e eles el u d em.
P o i s esse ser, desse complemento-teorema, chega, por ass i m d izer, a exaltar
s u a i ncompl etudc c tr a u s m i t i - l a aos s eres que estão reu n i d os sob seu signo.
Se existe u m " a m ai s " nesse grup o , é o "a m ai s " d o teorema iminente, quero
d i zer aquele que não está escrito ainda, ma� está a ponto de sê-l o .
E i m portante o teorema i m i nente q u e está aqui sobre o tear, no meio d o
trabal h o , ou seja: aqu i l o q u e v ai , d aqui h á pouco, se a sorte l h e sorri r , entrelaçar
u rn a p alavra errant e , pontu ar associçõcs 1ivres e curiosas , à espera.
Espera-se esse "a m ai s " , essa u ni dade suplementar que, se se acrescenta ao
escri t o , vai avivar a cicatriz desse grande corpo aberto [ béant]8. E quando essa
espera i m p aciente, at i va ou exasperada, chega a u m a espécie de grande prisc, cu
me perguntava ontem por que às vezes, num grupo , d i z-se sobre o teorema q u e
se acabou de escrever p e l a primeira vez: "o matam o s " . Porém el e não está morto,
e até v am o s poder servir-nos dele para fazer muitas coi sas.
Mós no mesmo instante, num instante fugaz, se o fez chegar, ao mesmo
tempo que o " a m ai s " , a um l ugar de morto.
Uma morte passou por ele, por esse " u m a m ai s " . Ou talvez esse escrito
tenha passad o , corno um relâmpago, pelo l u gar onde a falta d es l i za e chega ela
mesma a faltar.
É uma i d é i a m u i t o conhecida, a de que todo aqu e l e que aumenta um saber,
aumenta u rn a dor. E isso é bem verdadeiro neste caso: esse " m a i s u m " , essa
" m a i s uma u n i d ad e de saber", faz um buraco, um vazi o , e leva consigo um " a
m ai s " a títu l o d e menos , u m a ausência insistente q u e o s perfura.
Isto quer d i zer que esse "a m ai s " faz funcionar a morte de um modo m uito
ambíguo. Não é o l ugar do morto que ele p resen t i fi ca, pois . ao ser designado,
esse l u gar se comp l eta. Talvez seja u m traço de morte, e m plena d ecomposição,
viva. Talvez um pedaço d a mãe obstinada [rétive] . a res9, a coisa-mãe. Pois é
i m portante q u e esse m ai s apareça i risado de fem i n i l i dade.

(8) Béanl: grande abertura, derivado de beance, traduzido nos textos l acanianos pelo
neologismo hiân c i a ; béant, como adjetivo, pode ler tambóm a acepção de boquiaberto,
surpreso. O verbo de origem é beer. (N.T.)
(9) Res, latim: coisa (N.T.)
1 03

O que um grupo tem em comum -- evidentemente , acho esta expressão


muito ruim - é o fato de suportar conjuntamente o peso ·signifi cante. a. tarefa
literal desse ' " um a mai s" que é também · o excesso mínimô para que se
mantenha. Eu disse há pouco: o nó borromeano tem , não n o nível do numero de
seu s círculos, três o1l quatro, ou trinta e seis, mas em· sua estrutura, na efusão
desse "um a mais" sobre todos os elementos, ele tem o mínimo necessário pâta
não ser trivial. Isto quer dizer que todo sub-nó estrito é trivial. Um sub-nó, o nó
que se obtém ao fazer abstração de um elemento.
Um nó trivial signi fica que os círculos de barbante passeiam pelo ar e não
se ligam entre si.
E pois esse desconhecido, sem o qual isso não se sustenta. Mas eis que,
,pel o fato de que i s so se sustenta, esse desconhecido está, por assirh dizer,
dissolvido.
Ele está comprometido com todos os outros, unido a todos os outros. É uma
presença que passou a ser potencial por ter sido, pelo menos uma vez, efetiva.
Há aqui alguma coisa da ordem do quase, da proximidade do quase, do quase
nada, de sua proximidade com a função da morte.
JA CQUES LA CAN - Do quase nada ou do quase tudo?
DANIEL SIBONY - Na medida em que essa presença, tornada: potencial
por ter sido, pelo menos uma vez, efetiva, é que existe no mínimo um traço a
mais, e faz com qu e potencialmente qualquer um dos seus traços possa animar
essa função excessiva, essa função do excesso. Há aqui um deslizamento do "ele
existe" ao "qualquer que seja" . O mais importante é que, a partir do momento
em que essa "uma a mais" entra em função , ela já está perd ida como tal e é
transformada em efeito evanescente, inalcançável . Se num nó borromeano, por
alguma decisão verdadeiramente tirânica,' fora do rea:1 [ déréelle] . só üm dos
círculos pode estar cortado para manifestar o caráter quase-trivial . se então só
um círculo suporta o caráter borromeano, se, enfim, um elemento d eterminado
salva o grupo da trivialidad-e, esse element o se torna predicado, então nem o nó
nem sua escritura mínima seriam mais quase triviais. Ele se referiria a uma
forma de tagarel i ce da escritura.
Em suma, esta "uma a mais" se sustenta no objeto do desejo e, ao mesmo
tempo, no "Um" que existe, no sentido em que vocês dizem "existe um" [il y a
de l 'Un] .
Mas tudo depende de com que Um se defronta esse grupo. Pela hipótese
absurda que eu fazia, a respeito do nó no qual um único elemento teria o
privilégio, contra toda a necessidade real de salvar o grupo da trivialidade, vocês
podem ver sua signifi cação em que um elemento do grupo imaginaria que sua
ausência ou sua presença sustenta a decisão.
JA CQUES LA CA N - Contudo, é disso que se trata.
DANIEL SIBONY - É, e então é ainda mais paradoxal que alguém, talvez c
senhor no caso, tenha ligado isto a algo realmente quase trivial, e então un
el emento imagina (existe uma necessi d ade de que se imagi n em coisa:
semelhantes) qu e sua presença ol1 sua ausência toma o grupo decidiv t:l. Pois elt
1 04

se imaginaria o elemento que sustenta o amor ou o ódio absolutos.


Eu disse que tudo depende de com que Um o grupo se defronta. Direi ,
portanto, que esse "mais um" (teríamos que interrogar aqui o que quer dizer
"mai s " , mas isto seria muito demorado) é um fiapo de escritura.
Se entende que o lugar é muito arriscado, acabo de i nsistir nisso , que uns e
outros o imaginam predicável, mesmo sendo analistas. Haveria, portanto (é um
dos pontos que temos que aprofundar), nesse "mais um" , a função do resto. O
" Um " seria o resto, estaria abandonado, o mais próximo possível do ponto pelo
qual o real vai i nsinuar-se no grupo.
]A CQ UES LACAN É justamente disso que se trata. De que cada u m
-

imagine s e r responsável pelo grupo, ter que responder como tal.


DANIEL SIBONY - Pode-se acrescentar que o resto , fora desse um que se
imagina, pode também imaginar-se - já houve, na história, muitas orgias de
sacrifício por isso ...
]A CQ UES LACAN - Ele não imagina sem motivo, j á que, de fato, aquilo
que faz o nó borromeano está submetido à condição de que cada um seja
efetivamente, e não só imaginariamente, o que sustenta todo o grupo.
Então, o que se trata de mostrar não é até que ponto é verdadeiro, mas até
que ponto é real, ou seja, quais são as formas de nó capazes de sustentar
efetivamente esse real que faz com que, ao romper-se um aro , isso seja suficiente
para l iberar todos os outros. Isto tem limites que se deve explorar, porque há
coisas que podem tP.r toda a aparéncia de um nó borromeano, e, apesar disso,
não existimm como tal , quer dizer, onde a ruptura de um círculo não leva à
dissolução do resto, à separação do resto, um por um. E isto, há maneiras de
ilustrá-lo , e essa questão da ilustração coloca por si mesma uma pergunta: é
suficiente ilustrar um nó - e só se ilustra colocando num p lano -- para que isso
seja a demonstração? Mostração [mostration] seguramente é, mas demonstração,
onde está ? Será que ela é o verdadeiro sustentáculo da mostração?
DANIEL SIBONY - Sobre isso, adiantarei algumas observações. Primeiro
me referi à função da escritura, c também ao que você chama a impossibilidade
de escrever a relação sexuaJ 1°; eu diria, mesmo se a fórmula é um pouco abrupta,
que há sempre um "mais um", ou um "mais uma" , num grupo, é o mesmo que
dizer "há racismo " , sendo as duas preposições, de uma certa maneira, equi­
valentes a uma terceira, que é a sua: não há relação sexual. Este é um primeiro
ponto , não vale a pena dizer nada mai s.
Em compensação , sobre o efeito de nó, o que tentei p ontuar é que o nó
pode ser um bom nó, digamos, um nó quase trivial que tenha o mínimo
necessário para não se desfazer, se decompor. E todavia, um pouco pela lin­
guagem e pela língua que ele sustenta, um dos círculos se torna privilegiado pelo
imaginário que está à sua frente, e sua presença e sua ausência são decisivas ,
sustentam a decisão.

(10) Raport sexuel no texto francês: relação, mas também proporção sexual. (N.T.)
1 05

Isso me faz pensar em alguma coisa que é, talvez, da ordem da demons­


tração e não da mostração, do lado do nó mental.
JA CQ UES LACAN - Só existe nó mental.
DANIEL SIBONY- E que, de certa maneira, a importância de um nó é que
ele-se faz representar por uma língua, ou um fiapo de língua, ou uma linguagem,
de maneira aproximada. E o que há, o que um nó implica, no nível então da
demonstração, quer d i zer, necessidade dentro da escritura, da necessidade
literal , implica um i ndecidíve l , uma impossibilidade de decisão , não por
ignorância, mas de m aneira i ntrínseca. Para se aj ustar a uma metáfora
matemática, se você associa uma letra a cada círculo, e você segue o que se
chama de grupo ou apresentação de grupo associada a esse nó, aparece o que se
chama em inglês the word problems - o problema das palavras. Aparece, por
exemplo, a questão de saber, tendo sido dadas as i d e ntidades fundamentais,
quando uma palavra pode se juntar com uma de suas i dentidades, mediante um
algoritmo. Essa é a decisão perfeita, i d eal e decepcionante. Infelizmente, e de
certa maneira felizmente, demonstrou-se que é impossível, não porque não se
chegue , mas se chega a demonstrar que é impossível. Isso pode lhe i nteressar na
medida em que estaria aí o efeito da demonstração, é essa necessidade pela qual
uma certa linguagem quebra a cara di ante da i mpossibilidade desse algoritmo.
Isto é a demonstração.
fA CQUES LACAN - A impossibili dade de afirmar que qualquer coisa seja
demonstrável no que concerne a uma certa proposição.
DANIEL SIBONY - Não , a demonstração da i m poss ibilidade de u m
algoritmo. Mas foi demonstrado. Quer dizer, h á um algoritmo para demonstrar
que não há. Essa i mpossib i l idade, demonstrada, é o efeito máximo da
demonstração.
JACQUES NA SSIF - Por várias razões não posso situar-me no nível de
rigor e exatidão de S ibony. O que Sibony acaba de dizer me agradou e até
confortou-me, mas me situarei do lado de uma experiência, que foi o que foi ,
mas da qual acho que só é possível falar agora, muitos anos depois - talvez me
s itue num nível de i ntuição sobre o que era e o que nem sempre era acessível
para mim - creio ter chegado, nesse pequeno grupo que formávamos, a formular
alguma coisa que podia significar o seu fim, e que era o " que ninguém entre aqui
se qui ser fazer obra de autor". Quer dizer, não há necessariamente só a fi liação a
uma escritura ou um fiapo de escritura (talvez mai s uma vez compreenda as
coisas de maneira vulgar, dentro do que ouvi ), mas talvez haja também, num
momento dado, a vontade de contribuir com uma demonstração , justamente, a
vontade irreprimível de sit uar-se como autor, de fazer um livro ou um escrito,
um escrito que se mantenha, quer dizer. cujo tema se projete e submeta esse
escrito à circulação.
Talvez seja justamente o limite desse tipo de grupo, o ponto a part ir do qual
o "mais um" trata de se encarnar em outro lugar, longe do grupo.
fA CQUES LACA N - Que pensa você, Sibony, da fórmula que comentei
ontem, e que está evidentemente fundada sobre o tema de Bertrand Russell, de
1 06

q u e na matemát i ca não se sabe de q ue se fal a? Substituindo o " que " por u m


" q u e m " . ju stamente alguma co isa referente à : p·essoa; a o s u jeito ,' será qile se pode
·

d i zer q u e , para um matemático, é su portável?


Em outros termos-. pode-se d i zer que fazer da matemática algo transmis­
sível ; é da ordem de um " quem " ? Que a matemática é um sujeitei? É o ''u m a a
mai s " de todo matemático, Tanto é ass i m ; que toda a co m u nid ade m atemática se
rompe se não tem essa "urna a m a is " . a matemática, a matemátíca• cotnb sujeito.
Bertrand R u ssel l não viu i sso porque -estava - o que é c urioso para um
matemático contrario no objeto, um objeto q u e é puro sonho. Não h á qual quer
obj etiv i d ad e m atemática. E l e o afi rm o u , o q u e é bastante curioso para u m
m at e m át i co . Então. se não é u m objeto . o que é ?
DANIEL SIBONY - Go star ia de 1 esponder: isso já não é m ais u m sujeito,
v ocê d i z : não se sabe do que se fal a , mas se sabe àe quem ; é o que e u tentava
fazer senti r nessa pul sação pela q u al . desde que o "a m ai s " é ad q u i ri d o , já está
perd i d o , quer di zer. d esde q u e entra em fu nção, está cad uco.
JA CQUES LACAN - Está caduco e, no entanto, é adqu i r i d o .
DANIEL . SIBONY - É adqu i ri d o de t al m an e i r a q u e , for a algumas
s at i s fações narcísicas i m portantes - j á que falamos d o que é i m aginado e não se
fal a m ai s , quer d i zer, por u m lado n ão s e fal a m ais -, poré m , q uanto a saber de
q u e m se fal ava, tenho a impressão . . . fale i da mãe obstinada ou da coisa, mas de
certa maneira não se sabe mai s d e q u em se fala, sob o risco de repet i r a tentativa
ou a tentação. E evidente que há u m efeito de sujeito. A prova é que s e pode falar
de três ou q u atro, prod u z i r o "a m ai s " , e então supô-lo.
Se isso interessa. deveríamos chegar a u m enunciado com o este (só que não
vej o o q u e s e poderia fazer com ele): u m grupo de anali stas seria então um
conj unto de p essoas com " a mai s " a psi canálise o u o objeto da p s icanál i se . Quer
d i ze r , seria um grupo de analistas onde cada u m se chamaria p s i canalista ou
funcionaria como tal .
MUSTAFA SAFOUAN - Em rel ação essa fórmula, eu não estive aqui
onte m , mas d i rei que há uma perplex i dade q u e não é ú n i ca em seu tipo, ou seja,
que, num sent i d o . não há matemáticos sem matemática, mas não há m atemática
sem matemát i cos .
Mas quando se propõe a modificação d a fórmu l a q u e você acab o u de dizer
agora, ainda falta expl icar o " q u e m " . É a matemática. M as o p roble m a volta a
aparecer. A matemática, que seria a " mais u m a " , é um sujeito? O q u e nos dá a
s u a especificidade em rel ação ao matemático , sem o q u al não h á matemática
possível ?
JA CQ UES LACAN - Sobre i sso eu interrogava u m matemático. Um mate­
m át i co se d efronta, na matemática, com uma pessoa.
DANIEL SIBONY - Sobre isso podemos estar de acord o.
JA CQUES LA CAN - E por isso que toda essa gente - não é p o r nada que
no Ornicar? nos foi mostrada uma imagem simiesca d a gramática. porque se
i m agi n a q u e h á outras além da matemática. Quanto à gramáti ca, é tão
problemática quanto a anál ise. Para a matemática, é certo que é u m a pessoa. O
107

fato de q u e v o c ê s 'cb ncorde m em d i z ê -l o tem o val o r d e testemunho.


DANIEL SIBONY- •Símpl6mente eu o formularia assim (acho que é a:ssi m
como você o entend e ) : se fa l a como de uma p e ss oa .
!A CQUES LACAN- Um mat em át ico t e m o s e nt i m e nt o do que se passa ou

do que não se passa. Em re l ação a quê, e · em relação a· q u em? A com u n i d ad e


matemát i ca não é o juiz ú lt i m o : A prova· é' que q u an d o CantOT ex p ô s toda a sua
máqu·i na, h ou ve u m a parte d o s m atemáticos que lhe cu sp iu no rosto, e ele então
se sent i a maluco. Contudo, continuou. Tratava-se d a matemática. Não é a m e s m a
coisa com a análise. porque a anál i s e deve ser cri ada.
JUAN DA VID NASIO - Mas eu diria, sem ser matemático: s e rá q u e e s s a
p e s s o a n ão p er ceb e o fato de que não há mate mát i ca sem es c r itura'? Quer d i zer
q u e é n a próp ri a es crit u ra q u e o s u jeito . se i nst al a, se prod u z , e nt en de n d o
" escri t u ra" como traço escrito. A comunidade dos mate m át i c o s se faz no p a p e l .
Teríamos qu e achar an al og i as e di fere n ças com o an al i st a. O an al i st a
escreve também. Es c r eve c fal a , quer d i zer: ele está em rel ação com as d u as
s i n g u l aridades m at e r i ais : o t ra ç o e a voz.
!A CQUES LA CAN - Os mat e m áti cos crêem na matemática n o senti d o que
eu dou a e s s e termo. E não se p od e fazer nada. Eles crêem n e l a.
CHRIS TIANE BARDET DinARDON - S i m , e l e s crêem nela. Há u m
c o nsenso matemático. Não h á u m consenso analítico, e não deve haver u m a
c u m p l i c i d ad e analít i ca: penso que é. aí que se i n s crev e j u stam e nte o
f u n c i on ame nt o d o cartel, na m edida em que o ca rt e l pode s e r , co m efeito, algo
o ri g i n al q u e p o d e introduzir u m a d im e n s ão analítica n u m a pesquisa, para
i m p ed i -1 a de t o r n ar- se m atemática ou unive rsitária. Quer dizer. no cartel , ou
p e l o menos no que ent e nd em os o u lemos sobre e l e , pod e-se pensar que a
d i ficuldade é a mesma que no contrato an al ft i co , ou sej a, tem-se que sustentar
aquele p arad ox o que é o encontro de um d esej o , o desejo d e fazer co i sas j u nt os ,
de fazer algo como sujeitos , e, por auto lad o , u m certo número de regras que são
r e g ras r ígid as . E m e parece que o cartel, o q u e tem de propri amente anal íti co é
j u st a m e n t e essa r e p et i ção d o s mesmos dados básicos, ou seja, o enfrcntamento
de u m a busca, de uma b u sc a de sujeito, que, para conservar sua autenticidade,
não d e v e se transfo rm ar em cu m p l i ci d ad e .
O e s p e cífi co da matemática é q u e , no fundo, a pessoa m atemática (não sou
compl etamente uma matem át i c a ) se defronta com a verdad e , uma verdade que
não é d i s c ut ív e l desde o momento em que se é mat e m át i c o . Cantor não tinha
ch ance nenhuma d e ficar maluco, porque o u se po dia s e g u i r seu raciocínio (se
v o cê era matemático) , ou , pelo c on t r á ri o , não se podia refrutá-lo nem q ue s t i o n á­
l o . No que concerne à po s i ção do analista, s e gu nd o o meu ponto de vista, é bem
d i fe re nt e . Então acho q u e d everi a s o fr e r , também o c a rt e l , uma certa
m o d i fi cação. Tem gente que p e nsa - com ou sem razão, não se i , não tenho
muita ex pe ri ê n ci a d e cartel - que quem escolhe o tema do ca rt e l é o m e st re
[maitre] . Não pe ns o que seja assim. Acho q u e , no cartel , deveriam i ntrod u zir-s e ,
d a mesma m an e i r a que u sam o s o termo analisante, d o i s termos que seriam:
" c artel izado" e " c art elizant e " , e que um cartel só pode fu nci o nar se el e es tá
1 08

formado unicamente por cartelizantes. Talvez, com efeito , para sustentar esse
funcionamento, é necessário " urna a mais" em algum lugar, não sendo urna
pessca, nem urna máscara, que é a própria expressão da pessoa, talvez a morte ,
corno dizia alguém esta manhã, mas , de qualquer j eito, seria urna função , ou seja,
urna coisa l áb i l , que se produz numa certa circulação.
fACQUES LACAN (a Daniel Sibony) - Conte o que expressava o seu
sorriso quando eu disse que os matemáticos crêem na matemática. Diga o que
pensa, porque é a única coisa de que se pode dizer que se crê com razão , e que se
apóia nesta fórmula: crer nisto.
Todos os que conheço como matemáticos distinguem bem entre o que é a
matemática e o que não é, e a única coisa em que não crêem, mas na qual crêem,
é na matemática. E o q ue define u m matemático.
A fórmula " crer em" [ croire à] lhe parece ter seu peso?
DANIEL SIBONY - Se você a util iza, é que já advertiu seus outros usos,
principalmente crer em Deus [ croire en Dieu].
fA CQUES LA CAN - É isso que me chateia. Está o en. Não é o mesmo que o
à. Crê-se, com efeito, em Deus, quer dizer, no interior desse ser mítico, se é que a
palavra " ser" convém. Dizer "creio em Deus" é perfeitamente adequado, quer
dizer que se está imerso nessa crença. Mas cre à não é a mesma coisa. É por isso
que disse que, no sintoma, se crée à, de maneira que seria levado a pensar qu e a
matemática é um sintoma, como uma mulher. E por isso que estou contente d e
q u e seja na forma " mais u m " que isso se sustenta.
Diga, porque não me considero matemático; se creio em qualquer coisa, não
sou matemático. Mas conheço um certo número deles além de você , que crêem.
Poincaré cria.
DANIEL SIBONY - Talvez isso defina o matemático. É talvez por isso que,
de uma certa maneira. . .
JA CQUES LA CAN- O matemático tem a matemática como sintoma.
DANIEL SIBONY - Si m , é talvez por isso que produzir matemática não o
defi ne como matemático, ao contrário do que dizia Descartes. Tem que crer. Mas
então , o que seria esse ser, a matemática, que só se sustenta na escritura? O que
seria um sujeito que só se sustentasse na escritura?
fA CQUES LACAN - Será que só se sustenta na escritura? Pode-se apalpar
que se sustenta sempre na escritura. Mas lhe pergunto sobre a di ferença entre
rnostração e demonstração, é disso que se trata, afinal.
MUSTAFÁ SAFOUAN - Será que um matemático analisado se cura dessa
crença?
JA CQ UES LA CAN - E na verdade uma perglmta. O sintoma matemático é
curável?
DANIEL SIBONY - Queria fazer uma observação; não uma resposta à sua
pergunta. . .
JA CQ UES LA CA N - Você está curado da matemática ? (ri sos).
DANIEL SIBONY - Aí está toda a ambigüidade de crer nela; é que, na
medida em que ela tem também alguma coisa de jogo, pode-se brincar de crer
1 09

nela. Ou melhor, pode-se permitir que se nos suponha crentes pela escritura que
passa, e uma vez que esta (a escritura ) está terminada, ser o suposto de haver
cri do nela. Mas o matemático incurável, um pouco como m e u vizinho sugeria,
crê mas não seria li vre para não crer.
JA CQUES LACA N - Ele é i ncontestavelmente não livre p ara não crer.
DANIEL SIBONY - Mas é uma crença bastante esquisita, já que é afinal
toda a fu nção de sujeito dessa escrit u ra. já que ela pode �urpreendê-l o , mas não
o pod e enganar.
/A CQUES LACA N - É verdade.
DA NIEL SIBONY - Ela pode surpreendê-lo até o ponto de uma catástrofe,
mas não enganá-l o até a menor angústia. Dito de outra maneira, seria um
sintoma sem angústia.
JA CQUES LA CA N - Há m i l sintomas sem angústia. É nisso que distingo a
angústia do sintoma, como Prcud.
Enfim, creio que, de qualquer maneira, de acordo com o p edido de Faladé,
c u confessei o que há detrás desta espéci e de proposição duvidosa que
representa o cartel. Isto fará com que se conheça um pouco m ai s do que eu quero
dizer, pelo menos.
Então, suspendemos a sessão?

(A sessão é suspensa às dezesseis h oras).

POST-SCR!PTUA.f - (sobre as provas ).

Acrescentari a a seguinte observação, que para m i m pode d issi par o


nevoeiro da questão: a "mais uma" é uma presença, a mais, d o Um. Há religiões
onde, quando se juntam três " fiéis", há uma presença do Um que i nvocam , que
se dispersa com eles. Esta "uma a mai s " não tem então qualquer necessidade de
encarnar-se para funcionar, e esse efeito não se mostra, mas se demonstra.
( D. Sihony)
11 0

I V - JORNADAS D E ESTU DOS DOS CARTÉ I S


DA ESCOLA F R EU D I A N A
SESS'Ã O D E E N CER RAM E NTO

SOLANGE FA LADE - Chegàu a hora de concl u i r . Se nossas jornadas


ti vessem fu nci onado como um cong res s o , teríamos que o u v i r agora as
exposi ções dos trabal hos dos d i ferentes gru pos. Nada d i sso Teremos as atas das
jornadas.
Estâ sessão, chamad a d e encerram ent o , não d ev e pôr um ponto fi nal nesse
i n tercâm b i o entre os d i ferentcs carté i s da Es c o l a . Trata-se de u m a sessão
in augu ral . Quer d i zer, outras reu n iões estão previstas, a part i r de agora.
Além d i sso, sc é verdade que até hoje foram p o u cos os cartéis (no sentido
em que o Dr. Lacan os entende') que fu ncion aram na Esco l a , a part i r do que foi
t ni.z i d ó d u rante estas jornad as se pode prever u m rel ançam ento d es s a forma de
trabalho.
Como foi s u b l i nhado esta m anhã, a estrutura que Lacan quis para esses
carté i s , na Escola, deve perm i t i r q u e se evitem dois obstácul os: o totalitarismo e
o I iberal i s m o .
N o t ranscurso destas d i scussões sobre o s 'Cart é i s , se m u itos pontos estão
agora m ai s c l aros - m u i tos pontos esqueci d os da Ata de Fundação - ainda
resta um ponto obscuro para m u itos de nós, que é a necessidade dessa " m ais
uma pessoa", sua função na vida d o cartel que tal vez o Dr. Lacan p u d esse
esclarecer-nos um pouco m e l hor·.
:JA CQ UES' LACAN -- Disse lamento que m i nha q u erida S o l ange não
tenha csfiid d , mas· cl a não podia· estar 'em toda parte ao m estno · tem p o , se bem
q u e ' esse' é 'o seu costti m ê - di sse certas coi'sas e pará ela 1vou repet i - las , disse
certas c o i s as cuja essência s e referi a à m atemát i ca , c para d i zê- lo part i a (já que a
l e i d a pal avra é de q u e a gente se refi ra às pal avras anteriores) partia d e Bert rand
Russe l l , q u e não é o ú lt i m o a chegar entre os matemáticos, l o nge d i s s o , já que foi
ele q u e m , nos Principia, que vocês conhecem , suspeito, q u e vocês p e l os menos
t ê m o t ít u l o na cabeça, foi ele que chego u a enunci ar q u e os m at e m át i co s não
sabiam do q u e fal avam. Propus u m a m od i fi cação d esta fórmu l a a a l g u é m que
tem algu m a fo rmação m atemática e obtive a aprovação de um o u tro q u e não
conhecia, u m a jovem que se apres entou a m i m , dep o i s . como mat e m át i ca , e a ela
(não sei se tam bém ao matemático que citei) pareceu satisfazer q u e eu tenha
s u bstitu ído esse " e l es n ão sabem do que fal am" por "eles sabem, pe l o contrário,
m u i t o bem d e q u em fal a m " .
P o r enqu anto m e l i m itarei a i st o . p o r q u e esse " d e quem" em q u estão, q ue
pode se s u stentar n u m nome, n u m a referência, cham á-lo de "a m at e m ática" é
dar à m atemát i ca, como me fizeram observar, o val or d e u m a pessoa. A pergunta
p o d e ser feita, com algumas objeções. Pod eria sustentar-se que u m a pessoa,
111

podendo ser conside�ada ess enci almente como aqu i l o q u e é subst â n ci a. para um
pensame nt o , quer d i zer, substância chamada pensante, o que nao exclui . qlle se
p o s s a ir tão l onge quanto identificar a matemática com uma pessoa.
Mas se eu estava presen t e neste lugar onde se d i scutia a funçao do cart e l , é
p o rq u e i s s o me interessava particu l armente. Interessava�me part i cul armente o
fato de que o q ue eu havia antecipado na minha proposição p,ara o fun ciona�
menta da Escola recebeu, depois destas j ornadas , um grande i m p u l s o . Gostaria
de q u e a p rática d esses cartéis que i m agi n e i se i nst a ur asse de m aneira mais
estável na Escola.
O p onto central para aquilo que j u s t i fica a indi cação do termo " cart e l " , não
posso d i zer, a parti r de agora, pois não vejo porq�lC cu fari a u m a ru p t u ra; até este
m o m e nt o , cada um fez ato de cand i d atura pará se r um m e mbro da Escola
s o m e nt e a tít u l o i n d i v iduai , deve s e r d i t o ; é as s i m que i s so acontec e : foi
exam i na d o , no nível de üm organismo q\le s e chama Diretóri o . se admitiríamos
ou n ã o , a t ít u l o de membro, algu é m na Esco l a . Entenda-se b e m : foi bem
colocad o , no princípio que regu la a ad m i s s ão à Esco l a , que não é d e nenhuma
manei ra obrigatório ser anal ist(l, e q u e , pelo cont rá;-i o . a Escola tem o qu e
apren d e 1 d e quem, fo rmado em qu alquer outra disci p l i na que não a análise,
possa c o ntrib ui r com o que se chama g eral m en t e de c o n he c i m e n to s para
aumentar o d ossiê qu e , segu rament e , a nos , analistas c j á foi d emasi ad(lmente
provado -, faz-nos fal ta, e_ para trazer-nos algum m aterial com que, possamos em
suma apoiar a nossa, prática. E sobre isso m esmo q u e repousa a i déia de. anu nciar
um ter m o , e acontece que este ano escolhi o termo consis tência para des ignar
j u s tamente o que resist e , o que tem ch an ç:c de faze r p arte de um real .
Então, aquilo q u e deve ser explicado no meu anunc i o , no m e u enunci ado ,
na minha piop osta d e que se entre na Escola nao a ,t ít u l o individual , mas. a t ítulo
de um cartcl,_,seria evidentemente e sp e rávcl v er realizar-se da q u i p or d i ante -, e
é o' q u e , rep i t o , pão p ode d orav ant e ser d e fi n i d o como sendo uma condição, mas
seria c s p c r éÍv e l que e n tr e nas cab e ç as"· é que se entre em vári as cabeças c a nome,
a tít u l o d e c arte!.
Há um segundo aspecto :ness'l noção. d e c art c l : , é p or q ue e como .o prop onho
(já, . ,que cst arn\)S a�n a :nisso,) q • co.m Q . çpnstituíd,o por u m núm ero nao muito
.

gra nde, um numero mínimoi . I?ürquc esse número mín i mo , enunciad o como
quatro.. já que disse t rês mais. u m a _pcssoa e não ousei ir além de cinco, o que,
adici onando u ma pes soa, torna-se seis ' pois m e p arece es pcrável que o cartcl
tenha de q u at w a s e i s , e é i sso que d ev e ser justi fícado c q u e espero art i cular,
tal v e z já no meu, próximo seminári o , teri d o · em conta que não .creio qüe tenha
m a i s d o _ que. d qis çmtes de fi nal iz ar b ano ; já que o anfiteatro que ocupo, C onde
vocês são nu merosos - num ero sos d e m m s par.a o meu gosto - será mobilizado
'
J
p ar q a un ção dos e x am es' a ,p art i r ,' d e · certo m o m en t o de m a i o , ainda não
d etermi nado. ·, -�-- ' .
Entao é ai, nesses dois últimos s e m i nários, que espero j u st i fi car; quero'
d,i�er jush{;c"ar llil
ra 'vócês , para o seu ent é n â i ni c n t o , pàrqúe esse n ú m ero niín i · ·
m o ' e. exig íy,eA 1 porque h a ne ccss i dáâ e d e f]..ue não s e 1,dtrápàsse esse número.
· • '
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112

Há aí razões, que espero fazer-lhes entender, que estão ligadas à própria


estrutura, a qual , de qualquer maneira, não situa esse número por baixo de u m
certo nível, e considera como muito pouco o dois, e m esmo o três. Isso deveria
ser j ustificado, porque evidentemente o três, eu insisti nisso o bastante para que
possa parecer desejável. Pois o quatro no começo é, repito , o que falta situar.
Há, no entanto, coisas que deveriam incitar-nos a ter menos prudência,
digamos, uma menor prudência que seria também menos rigor. E uma expe­
riência patente, de qualquer maneira, que existam comunidades que chamamos,
não por acas o , religiosas, as quais nunca viram por si mesmas , c inclusive jamais
viram sem reticências essa limitação do número.
P arece que não há limite para o que a comunidad e religiosa possa
representar. Não é certamente sem razão. E são razões que, repito-lhes, espero
fa zer vocês apreciarem. O anonimato que preside a comunidade religiosa é algo
que já deve lhes fazer pressentir que, nesse pequeno número , há uma ligação
com o fato de que cada um leve, nesse pequeno grupo, o seu nome.
É certo que não temos o mesmo objeto que domina o fato da comunidade
religiosa, pois o que nos interessa, na nossa prática, não é o que interessa a uma
com unidade religiosa. Quando digo "religiosa" , é uma m aneira de dizer; não
ponho todas as religiões num mesmo saco, já especi fi quei qual é a que domina
por estes lados, a cristã, que não saiu do nada, saiu da j udia, e a leva ainda de
uma maneira bem singular (as relações entre a comunidade judaica e a comu­
nidade cristã estão marcadas por algo para o qual espero que o termo sobre­
vivência, para designar a maneira pela qual a religião judia continua a ser levada
pel a cristã, não lhes pareça muito exagerado - é uma maneira de conotá-la,
poderia haver muitas outras maneiras de i ndicá-la, maneiras às quais talvez
volte em seguida). A comunidade religiosa tem por fundamento o que se pode
impropriamente designar como um mito , o mito que d esigna esse Deus que está
longe de ser simples , é bem complexo , tão complexo que foi necessário que a
comunidade cristã se deixasse forçar, e o articulasse como trinário; já disse , por
ocasião do meu seminário, o que pensava: só a comunidade cristã se deu conta
de que não havia Deus sustentável que não fosse tríplice.
O curioso é que se falou muito , evidentemente , escreveu-se muito sobre
essa trindade, mas nunca se deu nenhuma justificativa; e eu me sinto, com ou
sem razão, com o privil égio de ter, pelo meu nó de três [noeud à trais] , dado uma
forma do que se poderia denominar seu real .
Alguém m e conta ter visto - e cu o assinalo porque o recebo com muito
i nteresse - na Bibl ioteca Nacional , numa exposição de miniaturas, uma coisa
que se encontraria atualmente (a pessoa tomou nota) na Bibl ioteca Municipal de
Chartres ; alguém então (espero vê-lo , porque teria que verificar) teria visto um
nó borromeano com o enunciado, ao lado , "trinitas "; ele teria visto os três
pequenos traços com que, vocês sabem, eu simbolizo esse nó borromeano, os três
pequenos traços que se cruzam de certa maneira, da maneira com que se fazem
feixes com fu zis , põe-se três fuzis e aquilo fica em pé, eles se apóiam
circularmente um sobre o outro, e é o mesmo - não o disse no seminário porque
1 13

não me parecia uma coisa para ser dita, mas todo mundo sabe que, naquela coisa
que serve como símbolo de um certo gaelismo, e até de uma Bretanha que se
desperta, o triskel é uma coisa que reali z a essas três pequenas pontas da maneira
como, em geral, eu as desenho no quadro como ponto de partida, e a esse triskel
redu zido, que é tanto u m nó borromeano como a forma completa, a esse triskel
est<::.r ia agregada a indicação escrita "trinitas " .
O q u ê , de tudo isso, t e m relação conosco? A relação se limita a q u e , se eu
d efinisse algo a ser chamado de anál i se, eu a chamaria não de rel igião de
qualquer Ser Supremo, como muitos entre nós jamais deixaram de consi derar ; já
disse que nem sequer estou seguro de não ter sido pego em flagrante de delito de
deísmo. e vocês verão logo: se fal o de religião do desejo, e não parece nem
mesmo isso . sobretudo se o desejo me parece ligado não só a uma noção de
buraco, e de buraco onde muitas co isas se turbilhonam a ponto de serem
engoli das, mas só o fato de juntar aí essa noção de turbilhão é, evidentemente,
fazer múltiplo esse buraco, quero com isso dizer: fazê-lo conjunção, pelo menos;
para desenhar um turbilhão, urna hélice, lembrem-se do meu nó em questão ; é
necessário pelo menos três para que isso seja um buraco em turbilhão. Se n ão há
um buraco, não vejo muito bem o que temos que fazer como analistas , e se esse
buraco não é p elo menos triplo, não vejo como poderíamos sustentar nossa
técnica, que se refere essencialmente a algo que é tri pio, e que sugere um buraco
triplo.
Em todo caso, no que se refere ao simbólico, é certo que há alguma coisa
sensível que se esburaca. Não só c provável, mas manifesto, que tudo o que se
relaciona com o imaginári o, quer d i zer, com o corporal - é o que surgiu
pri meiro , aí não só se esburaca, m as a análise pensa nestes termos em tudo o
-

que se relaciona com o corpo, e toda a questão é saber em quê a incidência da


linguagem, a incidência do simból ico, é necessária para pensar aqu ilo que, ao
redor do corpo, na análise. foi pensado corno ligado, digamos, a d i ferentes
buracos. Não há necessidade aqui de remarcar corno o oral , o anal , sem contar os
outros que achei necessário acrescentar para articul ar o que é a pulsão, não há
necessidade de remarcar que a função dos orifícios do corpo está aí justamente
para designar que não é um simples equívoco trans portar o termo "b uraco " do
s imbólico ao i maginário.
Sobre o sujeito do real , é claro que tento fazer fu ncionar esse real a partir
desta s i mples observação: defini-lo como o universo é impô-l o como cíc l ico,
como ci rcular, é introduzir aí o Um, pois e essa a noção de universo, é torná-lo
englobante com relação ao corpo que o habita, c fazê-lo mundo. Não estou certo
de que ú real faça mundo, c é por isso que tento articular algo que d i z , que ousa
enu nciar pela primeira vez, que não é seguro que o real forme um todo. E
evidentemente difíci l ver que física p oderia instaurar-se , se não se ad mite que
pelo menos algumas porções desse universo são isol áveis, fecháveis [Jermobles].
É aí que se assenta, vocês sabem, a própria noção de energia; a idéia de q u e a
energia é constante é o princípio e a base sobre a qual , em física, pode-se d i zer
que repousa a própria noção de lei, c a idéia de q u e há um todo é algo sem o
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qual não se pode ver como a ciência se sustentaria.


Mas, afinal, é curioso que já não tenhamos qualquer idéia perceptível dos
confins desse universo, e o que, em suma, anunci o , me atrevo a anunciar, é que a
nó s , anal i stas, nada obriga a fazer do real uma coisa que seja u niverso, que seja
fechada. A idéia de que esse universo é simplesmente a consistência, a
cons istência de um fio que se mantém, não chega a torná-lo cíclico, mas já é
bastante como hipótese, e para nós pode ser s ufi ciente; quero dizer que com dois
ciclos e u m a reta até o infinito, o que já é avançar m uito para o real , fazemos um
nó , u m nó borromeano que se mantém total mente, que é verdadeiramente um
n ó . De maneira que o fato de podermos s ustentar a idéia de que o real não é
tu d o , é pelo menos um reasseguro [réassurance l que deve interessar aos físicos,
e os físi cos se acostumarão com a i déia de que se pode, talvez, pensH.r o real sem

pôr nele uma constância, a constância chamada energia, e é aí que já se anuncia


a idéia de que a constância não é consistência. Reduzir a co nstânci a à
consistência, isso poderia ser sustentado pelos físicos.
Enfi m , não é numa física vindoura que estou tentanto engajá-los; nós, nosso
tema, é o de perceber aquilo que é impactante na nossa experiência histórica, e
que é essencial para nós, ou sej a: que há nomes. E o fato de que haja nomes
parece ser completamente nodal; quero di zer que, até onde chega a memória
humana, deu-se nomes às coisas , isso subsi ste até em Freud, é um fato que deve
deter-nos. Não é por nada, lembro-me que quando escrevi A Coisa Freudiana
tive à minha volta um monte de pessoas que tomaram um ar d esdenhoso: "Por
que é que ele chama isso assim, é uma vergonha, tudo o que tentávamos era
j ustamente opor-nos à reificação" ; eu nunca fui dessa opi nião, nunca pensei que
quando se produziu uma ruptura, a de 5 3 , era porque d ivergíamos sobre o fato
de reificar ou de não reificar aquilo de que se tratava n a prática; era reificar de
uma boa maneira. Se chamei algo de Coisa, e pri ncipalmente Coisa Freudiana, é
evidentemente para i ndicar que há Freud na Coisa, na Coisa que ele nomeou e
que é o inconsci ente, e o termo "freud iana" não tem aí a fu nção de u m
pred i cado, não é u m a coi sa q u e a posteríori toma a propriedade de s e r freudiana,
o certo é que por Freud tê-la enunciado é que ela é u m a coisa, e, como eu sugeria
a alguém recentemente , falar do inconsciente como d aquilo que antes de Freud
não existi a não é u ma maneira tão má de se expressar, por uma boa razão: é que,
afinal de contas , uma coisa só cx-siste, só começa a funcionar a partir do mo­
mento em que é realmente nomeada por alguém.
Então tento, na nossa experiência, reduzir esse nomeável porque, de
qual quer forma, podemos permitir-nos mascarar assim todo tipo de coisas com
nomes, isso sempre se fez a torto e a direito, e tento l imitar-me a nomear só o
que chamo, junto com Freud, Urverdrangt, o que se resume, em suma, a nomear
o buraco. É partir da i déia do bu raco , é dizer ao i nvés de fiat lux1 1 : "fi at fu ro [fia t
"

(11) Latim; "faça-se a luz". Frase da Gcnese, na qual o Criador estabelece a diferença
entre as trevas e a luz. Usada na metafísica, em referência ao surgimento do ser a partir do
nada (N.T.).
1 15

trou] . e pensem q u e Freud, enunciando a i d éi a do inconsci ente, niio fez outra


coisa. Ele d i s s e l ogo que havia algo que se faz buraco, que é ao redor disso que se
extende o i nconsci ente, e que esse inconsciente tem a propri e d ad e d e só ser, por
esse buraco, asp irado12, tão bem aspirado que não estamos acostumados a reter
dele nem uma p o nt i nha, ele desaparece i nteiro nesse b u raco .
Falar d a Coisa Freudiana como constituída essenci almente por esse bu raco ,
esse buraco que tem um lugar, um lugar no simból i c o , é d izer algo q u e , pelo
menos - e posso provar isto -, pode se sustentar por um certo temp o ; e como
esse tempo começa a alongar-se [faíre une paye ] , c d urante esse tempo não
houve muitas contradições d e peso, quero dizer que o que cu enu nciava começa
a su stentar-se pelo fato de durar todo esse tempo.
Identi fico esse bu raco com a topologia; fi z al u são a i s s o no meu ú lt i m o
seminário. A topologia, acho que já o i n d i q u ei , p e l o m enos fi z sentir a alguns ,
não s e concebe s e m esse n ó que, como d i z i a a o utro gr u p o , não é simplesmente
algo; sej a qual for seu aspecto de nó, está no real , mas o i nteress ante é que está
no mental; é a p rimeira vez que se vê algo que conjuga o mental com o real nesse
ponto; é que no m e ntal isso faz n ó também , é verdadeiramente i m possível não
s ituar o nó no mental, e, ao mesmo tem p o , perceber q ue o mental está aí
inadaptad o , ou seja, que esse nó ele o pensa tão d i ficilmente, que não p odemos
deixar d e v e r uma coisa que nos daria o que chamei, no meu último semi nári o ,
algo como u m p ressentimento, se s e p o de d i z e r . do q u e p oderia ser, afi nal , o
b u raco em questão.
Tudo i s s o , claro, é uma preci pitação , por que não di z ê - l o ; depois de andar
sem meta, t o d o s sabem que me vanglori ei de ser d i alét i co , e que usei o termo
antes de chegar a esse turbilhão , é o caso de p e rceber q u e qualquer um q u e fale
d e d i alética evoca sempre u ma substância. A d i al ética é sem pre predi cat iva,
produz ant i no m i a, e não há predi cado q u e não se sustente por s i mesmo numa
substância; é m u i t o , muito d i fícil d i zer a substantivament e , sobretudo por nos
imaginarmo s , cada um d e nós, sendo u m a substânc i a . E muito d i fíci l ,
evidentemente, t i rar-lhes isso d a cabeça, pois t u d o demonstra q u e vocês são, no
máxim o , cada um, u m pequeno b uraco, um b u raco , claro . complexo e agitado.
mas é verdadeiramente muito, muito d i fícil pensar-se como substância, a não se r
c o m o substância que t e m a propriedade d e ser pensante, e a í s e torna verdadeira­
mente d esesp erante pensar até que ponto seu p ensamento é manifestamente
i m potente. Parece que é mai s s ó l i d o referir-se a outras categorias e perceber q u e ,
por exemp l o , p o de-se enunciar s e m d i z e r abs u rdos proposi ções c o m o esta,
anunciá-las com alguma chance de ch egar perto c que se existe o indeci dível
(evoquei i sto há pouco). é um indecidível que se s u stenta só nisso : q u e o
amarremos [ n o u ons] ; que existe o i nd e c i d ível , m as q u e a idéia vem d essa
segurança q u e a matemática d á , preci samente, a de que não há um não - n ó , se
posso d i zer, p o i s é a única defin ição possível d o real , c que apertar os nós s ó

(12) Aspiré: como em portugu ês, pode ser e n t e n d i d o t a n to como desejado, amb i c ionado,
quanto como inalado, absorvido (N.T.)
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serviria para não escorregar indefinidamente, e é p ara isso que nos esforçamos
na análise. Pois o que é anál i s e , no final das contas? É uma coisa que se
diferencia disso , é que nos p ermitimos uma espécie de irrupção do privado no
público. O privado evoca a muralha, os pequenos assuntos de cada um, que tem
um núcleo perfeitamente característico, o de tratar-se de assuntos sexuai s . É esse
o núcleo d o privado. E, d e qualquer modo, engraçado que esse "público " , no
qual fazemos emergir o privad o , tenha um laço compl etamente manifesto , p ara
os etimologistas, com p u blis13, ou seja, o público é o que emerge do que é vergo­
nho s o , pois como distinguir o privado daquilo de que se tem vergonha?
E claro que a indecência de tudo isso, indecência do que se p assa numa
análise, em virtude da castração - da qual a análise foi bem feita p ara evocar
s ua dimensão a p artir de Freud -, em virtude da castração, essa indecência
desaparece. Toda a questão é então esta: tirar d a castração um gozo, será isso o
m ais-de-gozar [plus-de-jouir] ? Em todo cas o , é tudo o que é permitido até agora,
a qualquer pessoa, se é que a p alavra " p essoa" designa pessoa14. D esigna uma
substância pensante, sem dúvida, mas o que tentamos , inclusive quando nossas
preocupações não são absolutamente substanciai s , nem su bstantóforas1 5 , o que
tentamos é fazer ingressar isso, essa noção de su bstância pensante, num real .
Então isso não é tão fácil, p orque há um monte de coi s as que nos fazem atolar.
Atolamos , por exempl o , na idéia de vida. E uma idéia as sim, e é bastante curioso
que, apesar d e tudo , Freud tenha promovido o Ero s , mas não chegou a identificá­
l o totalmente com a i déia de vida, e distinguiu a vida do corpo e a vida l evada
pelo corpo no germe.
A vida, se se pode dizer, apesar do uso que dela fez Freu d , tem relação com
aquilo com o que não há nada a fazer, com o que passa por sua antinomi a, com a
morte.
A morte, p ensemos o que p ensemos, é puramente imaginária. S e n ão
existisse o "corpo " [corps) 1 6 , se não houvesse cadáver, o que nos faria a ligação
entre a vida e a morte? Naturalmente essa idéia de cadáveres amarrados como s e
fossem legumes, n ó s nos prop omos enl açar [nouer] i s s o , é esta a nossa ocupação
principal . Se não houvesse isso e não existissem estátuas , o lado delirante desses
seres chamados humanos p ara fabricar suas própri as estát u as , o u s ej a , coisas que
nada têm a ver com o corpo , mas que se parecem a el e. Temos q u e agradecer às
religiões que proibiram essa obscenidade; além do mais é horrível de se ver! O
que há de mais horrível de se ver do qu e um ser humano , pergunto! Um ser
humano, uma forma humana. É curioso que . . . enfim, é necessária a exi stênci a da
religião chamad a - católica para achar suas delícias. É evidente que e l a tem

(13) Latim : púb lico. Não foi possível encantar a l igação eti mológica m encionada por
Lacan. Como hipótese, p odemos referir-nos a verbos como p u det : corar, envergonha-se;
ou p u deo: ter ou causar vergonha (N.T.)
(14) Em francês, personne significa: pessoa e ninguém (N.T . ) .
( 1 5 ) Neologismo no original francês: substantophores (N.T:)
(16) Corps: século XII: o corpo humano depois da mortr,. Entrn aspas no original (N.T . ) .
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alguma coisa a ganhar na transa; é patente, vê-se bem o mecanismo , ela aposta
no belo. Por outro lado, o que é toda essa história chata de Evangelho, é o caso
de dizê-lo, senão a exaltação do belo?; mostrarei isso urna outra vez.
Enfi m , p erin de ac cadaver17; isto quer dizer que a castração, que nós
mesmos chegamos a p erceber que é um gozo, por que será um gozo? Vê-se muito
bem; é porque nos libera da angústia. Então, o que é a angústia?
É curioso que não s e tenha pego o exemplo do p equeno Hans , de Freud. A
angústia está preci s amente locali zada num ponto d e evolução d esse verme
humano , é o momento em que um pequeno bom homem, ou urna futura boa mu­
lher percebe o quê? Percebe que está casado com o seu pau. Vocês me descul­
parão por chamar isto assim, é o que se chama geralmente pênis ou p i nto, e que
aumenta d e tamanho quando se percebe que não há nada melhor para fazer falo ,
o que é evidentemente urna complicação , urna complicação ligada ao nó, à
existência do n ó . Mas se h á alguma coisa nas Cinco psican álises feita p ara mos­
trar-nos a relação d a angústia com a descoberta do peruzinho , chamemos isso
assim também, de qualquer maneira é claro , é concebível que para a menina,
corno se diz, isso se extende mais e é por isto que é mais feli z ; isso se extende
porque é preci s o que ela leve um certo tempo p ara pl)rceber que não tem
p eruzinho ; i s s o lhe produz urna angústia também, mas uma angústia por
referência àquele que está aflito; digo " aflit o " , porque falei d e casamento e tudo
o que permite escapar desse casamento é evidentemente b em-vindo, daí o êxito
da droga, p or exemplo ; não há nenhuma outra definição da droga que não sej a
esta: o que permite romper o casamento com o p eruzinho.
E n fim, deixemos isso de l ad o e vamos às coisas sérias , quer d i zer, não seria
uma m aneira ruim de enfrentar o que se chama a vida, a de considerá-la corno
parasita? Dizer que ela é p arasita da morte s eria exagerado , s eria fazer um laço
m u ito apertado no que acabo de di zer , ou sej a, que não há a mínima relação, a
não ser esse assu nto do corpo que se joga no buraco. E justamente isso que nos
diz o que é a vida, o parasita de algo que só se concebe corno buraco, é inclusive
ao redor disso que o real se torna cíclico, e que se pode querer que s ej a nessa
" c ab ana" que a vida parasite. Daí tudo se desenrola. Não posso dizer que Freud
chegou até aí , mas ele disse bastante: que o germe é, ao fim das contas, um
parasita, é o que me parece surgir do A lém do princípio do prazer. Evidente­
ment e , n ão o disse claramente, mas teria feito menos escândalo do que o que eu
faço agora quando o digo. Mas isso teria também tornado as coisas mais leves ,
isso lhe teria p ermitido chamar de outra maneira o princípio de real i dade , que é
simplesmente um princípio de fantasma coletivo, dizia ontem à noite ao júri de
recepção [jury d 'accueil] : " Quais são os seus critérios? " Perguntam-me pelo j úri
d e recepção , p ara nomear alguém A . M . E . Vou lhes dizer: é o que se chama bom

(1 7) Pcri n de ac cada ver: em latim no original. Expressão com que Santo Inácio de Loiola,
em suas Conslil uições, p rescreve aos jesuítas a discip lina e a obediência a s eus
su periores. L i teralmente: "como um cadáver" (N.T).
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s enso, q u er dizer, a coisa mais d i fu n d i d a no m u n d o . O bom senso é i s s o : "Nesse


aí, p ode-se ter con fi ança " , nada m a i s . Não há nenhum outro critério. Há gente
q u e propomos para A . M . E . , e s e as p e s s o as que estão lá - e que foram
escolhidas incontestavelmente pelo voto, p o rqu e a gente confiou nelas sob o
aspecto do b o m senso - não .garantem qu alquer u m , é um princípio de puro
fant asma, d e fant asma coletivo , s em dúvida. E isso que quer d i zer o pri ncípio d e
real i d ad e ? É abs o l utamente cert o . A gente perceb e , no u s o , q u e t o d o s os
pequ enos fantasmas privados s e j u ntam, s e j u ntam em fei xes , como dizia há
pouco, o que não é s urprendente no que se refere à relação d a coisa com a morte,
porque é a propósito d el a que eu evoquei o bom senso sem entrar em detalhes,
os passos menos p e rigosos ; é isso que se chama princíp i o de real i d ad e , e que, na
medida em que s e opõe ao princípio d o prazer, opõe-se m u ito seriamente porque
o princípio do prazer não tem estri t amente mais do que uma d e fi nição possível:
aquel a d o menor gozo, é o que isso quer d i zer. Quanto menos s e goza, mais i s s o
val e .
De maneira que i s s o nos leva a instalar um certo nú mero de d u p l as p a r a o
que é do real , do i m aginário e do s i mbólico.
O real é , evi dentemente p ara nós, no uso , ant i nô m i co ao sent i d o , a.quilo
qu e s e opõe ao sent i d o como o Zero se opõe ao Um. O real é estritamente o que
não tem senti d o . Nossa interp retação é algo que não tem a ver com o real , s alvo
na medida em que a dosam o s . Nós a dosamos e a l i mitamos à redu ção d o
sintoma. H á s i ntomas q u e n ã o s e red uzem , é ab s o l u t amente cert o , e , entre
outros , a p si c anál ise. A ps icanál i s e é um sintoma, um s i nt o m a social , e é assim
que conve m conotar s u a ex istência. S e a psicanál ise não é u m sintoma, não vej o
p o rque da tenha aparecid o tão tarde. Aparece tarde na med i d a em que alguma
coisa tem que se conservar (se m d ú v i d a p o rque está em perigo) d e uma certa
relação com a s u b s t ância, a s u bstànci a do ser hum ano.
Então tente m o s formu l ar j u ntos a l gu ma coisa que situe o i m aginário em
relação a outra coisa.
O i m agi ná r i o não tem outro su port e senão o fato d e ter o corp o , e enquanto
esse corpo s c.. d esata d o gozo fál i co . o i m ag i n ário t o m a cons istênci a. E m u it o
precisamente enquanto o gozo fál i co passava por o u t r o l u gar , e é t e m a d a
históri a notar c o m o e l e era escamotead o , é nessa m e d i d a que a i d é i a d e mundo
nas ceu . Está aí a oposição não de um " zero" c d e um "um", mas a d e u m menos
c um mais. É na m e d i d a em que a castração opera onde há menos fal o , que o
i maginário subsiste, todo mundo o sab e , j á que é por i s s o que chamam pré­
genitais o s est ados que const i t uem o s u porte mais h ab i t u al de todos os
comportamentos chamados h u m anos.
l'lH •Ú E o simbólico, então? O s i mbólico é s i m p l es . Ao s i mbólico não há oposição,
. há o b uraco, o buraco origina l . O simból i co não tem acompanhante a não ser por
u m truque. É na m e d i d a em que não há O utro d o Outro , quer d i zer, que o ser e
s ua negação são exatamente a mesma coisa, como todo m u nd o s ab e , e os d i a­
léticos d i zem l ogo: o não-ser ex iste porque v o cê fal a d e l e , isso prova até que
p o nto o não-ser é exatamente o equi valent e , é a razão de que justan1e1lte a
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des coberta d a anál i s e seja a segu i nt e : s e bem que o ser c o não-ser sej a m a mesma
coi sa, é necessár i o um buraco que mantenha o todo e m conjunto, c em suma
tudo s e resu m e n i s t o : só existe criação , cada vez qu e avançamos u m a p al avra,
fazemos s u rg ir do nada, ex-nihi/o, uma coisa; é nossa maneira de ser humanos, e
é p o r i s s o qu e n ão trepamos, salvo algu m a exceção , com u m a m u l h e r , m us com a
Coisa.
E as m u l heres então , e l as c r i a m ? Escutei há p ouco, d e alguém q u e m u i t o
m e agradou ( n ã o 6 p ara d i zer que o q u e M i ch(qe Montrelay d i z i a antes não me
t e n h a agra d a d o tamb é m ) , m as há u m a , chamad a Anne C o l o t , q u e me fez
s u bl i nhar q u e a m ul h e r n ão estava c o m p l etamente fe i t a , c o q u e e l a disse era
bastante p e r t i n e n t e . E l a não u s o u , fel i zm ente, a palavra criat i v i d ad e . E l a fal ou da
cri ação como algo q u e faz com q u e , no fu n d o , uma m u l her saiba quem 6 o seu
bebê , o bebê é como a v i d a , é patente no ser h umano q u e ele é um parasita, é
se você l h e d á j u stamente um nome; enquanto não tem
algo que c o m e ç a a e x i s t i r
nome, o q u e é ? E ntão a c r i ati v i d a d e . . . Algu6m me fez u m a reportagem sobre a
c r i at i v i d a d e d a m u l h e r . Devo d i z e r q u e não sou ardente [ch a u d] , não é necessá­
rio que uma m u l her sej a c r i at i v a para ser i nteressan t e , é su fi ci ente que el a conte,
é i s s o q u e tem s e u p e s o .
Então , res u m amos-nos. U m s i n t o m a , o q u e 6? É al go q u e t e m uma grande
rel aç5.o (é o que s e vê n a p ráti ca) com o i nc o n sci ente. Então. d e q u e eu gostari a é
q u e a p sicanál i s e . como já d i sse há p o u c o . co n t i n u asse o tem po necessár i o , nem
u m m in uto a m a i s , é c l aro, como s i ntoma. p o r q u e é , de q u al q u er m an e i ra, um
s i nt o m a tran q ü i l i zante. (Apla usos) .

(A sessão foi susp e nsa às 1 Ei ' 4 5 h oras) .

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