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João Luiz da Silva Almeida
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Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
V161m
Valença, Daniel Araújo
Marxismo e América Latina : lutas políticas e novos processos cons-
tituintes / Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane
Cristina de Andrade Gomes. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2019.
252 p. ; 23 cm.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-519-1373-4
CDD 340
1 Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Estágio de Pós-Doutorado
em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Estágio de Pós-Doutorado
em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado 1 da
Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Membro do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos
(NEPHU) - UFF. Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br).
Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES).
2 Pós-doutor em direitos humanos pela Université Paris 2. Professor Adjunto da Faculdade de Direito
e do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Apresentação
1. Introdução
Era meados da primeira metade do século XX quando Haya de LaTorre
acusava a incompatibilidade entre o marxismo e a América Latina. O impor-
tante líder político da Aliança Popular Revolucionária Americana - APRA
rivalizava diretamente com as posições teóricas e políticas de outro perua-
no, José Carlos Mariátegui. Este, considerado o mais original dos marxistas
latino-americanos, colocaria o marxismo no seu devido lugar: não seria ele
uma teoria válida somente para a específica realidade europeia do século XIX,
menos ainda uma “doutrina” a ser importada e usada mecanicamente no sul
do globo. Mariátegui teria o papel de demonstrar a possibilidade de, ampa-
rando-se nas categorias marxianas, compreender a especificidade da realida-
de latino-americana para, dessa maneira, transformá-la radicalmente.
Aquele momento histórico, de recém-chegada do marxismo, contudo,
não seria o único momento de seu questionamento em terras americanas. Na
segunda quadra do século XX, os regimes ditatoriais implementariam uma
realidade de censura, perseguição e assassinato daqueles que reivindicassem
a teoria revolucionária. Após, com o sopro dos ventos neoliberais e a crise do
socialismo soviético, a estratégia socialista entrou em um período de defensi-
4 Gramsci (2002) denominava a teoria marxiana de “filosofia da práxis”, pois, assim, apontava que ela é uma
concepção de mundo, uma ciência das classes trabalhadoras, bem como um aporte para a sua luta política.
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5 Marx assim delimita essa categoria: “Se consideramos um dado país de um ponto de vista
político-econômico, começamos com sua população, sua divisão em classes, a cidade, o campo,
o mar, os diferentes ramos de produção, a importação e a exportação, a produção e o consumo
anuais, os preços das mercadorias etc. Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto,
pelo pressuposto efetivo e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela
população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. A população
é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas
classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P.
ex., trabalho assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital,
p.ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. Por
isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio
de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples;
do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que
tivesse chegado às determinações mais simples. Daí teria que dar início à viagem de retorno até que
finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de um
todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações” (MARX, 2011a, p. 54).
6 Marx apreendeu a dialética hegeliana, mas a virou de ponta cabeça: “Para Hegel, o processo de
pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o
demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim,
ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem [...].
A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o
primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra
de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro
místico. Em sua forma mistificada, a dialética esteve em moda na Alemanha porque parecia glorificar
o existente. Em sua configuração racional, ela constitui um escândalo e um horror para a burguesia
e seus porta-vozes doutrinários, uma vez que, na intelecção positiva do existente, inclui, ao mesmo
tempo, a intelecção de sua negação, de seu necessário perecimento. Além disso, apreende toda forma
desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu lado transitório; porque não se deixa
intimidar por nada e é, por essência, crítica e revolucionária” (MARX, 2013, p. 91).
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7 Marx e Engels denominavam de leis gerais do capital a suas qualidades imanentes, insuperáveis,
no interior do modo de produção capitalista. Dentre elas, podemos citar a expansividade ilimitada,
que o leva ser um modo de produção altamente revolucionário, mas também destrutivo; a tendência
a queda da taxa de lucro, o que leva a uma maior exploração da força de trabalho e substituição do
trabalho vivo pelo trabalho morto; a tendência a oligopolização, em que seriam, no “capitalismo
maduro”, os próprios empresários os expropriados de seus meios de produção; e as recorrentes
crises de sobreacumulação, ou seja, as crises são da natureza do capital, e levam a processos de
concentração de capital cada vez mais intensos.
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Por outro lado, dentre erros e acertos, o marxismo ocupou papel central
na história do continente, influenciando revoluções e lutas políticas em diversos
países. Lowy divide a história do marxismo latino-americano em três períodos:
um revolucionário, ocorrido dos anos 20 a 30, onde a insurreição salvadorenha
foi a mais importante; o segundo, o período stalinista dos anos 20 até 1959, no
qual prevaleceu a hegemonia da interpretação soviética do marxismo; o tercei-
ro, um novo período revolucionário, que se deu após a Revolução cubana, em
que ascenderam correntes que unem a natureza socialista da revolução com a
luta armada (LOWY, 2006). É com a queda do socialismo soviético e a expansão
neoliberal que, então, o marxismo entraria em crise no continente.
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9 A preocupação com a superação dos valores e comportamentos burgueses é uma preocupação que
aparece já nas obras marxianas. Em O 18 de Brumário, Marx assinalava: “Os homens fazem a sua
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própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem
as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram.
A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E
justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas , em criar algo
nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a
ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu
figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional essa linguagem tomada de
empréstimo, as novas cenas da história mundial” (MARX, 2011b, p. 25-26).
10 A UNESCO, em seu relatório sobre educação, atestou que a Bolívia também erradicou o
analfabetismo, ao lado de Venezuela e Cuba. Ver mais em: <https://www.cartamaior.com.br/?/
Editoria/Internacional/Bolivia-e-o-3%25B0-pais-da-America-Latina-livre-de-analfabetismo%250
d%250a/6/14577>.
11 Todos os relatórios da CEPAL, ONU, FAO do período apontam dados neste sentido, bem como os
mais recentes demonstram um recuo na redução da pobreza, miséria e desigualdade. O Globo, por
exemplo, relata essa mudança, mas a atribui apenas à queda nas commodities, e não à mudança
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política que ocorreu na região nesta última década. Ver em: <https://oglobo.globo.com/mundo/na-
america-latina-mais-de-120-milhoes-de-pessoas-correm-risco-de-voltar-pobreza-23741716>.
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6. Considerações finais
O continente latino-americano possui uma formação social alicerçada
na inserção dependente no capitalismo internacional e na superexploração
do trabalho, negro e indígena, entrecortado pelo patriarcado. Para tanto, a
ausência democrática sempre foi requisito para classes proprietárias locais
e o imperialismo perpetuarem a exploração. Se o continente vivenciou, pela
primeira vez na história, uma década de governos progressistas – que conse-
guiram alterar qualitativamente as condições de reprodução social de suas
classes trabalhadoras - , como consequência, nesta década, ocorreram golpes
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Referências
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VALENÇA, Daniel Araújo; PAIVA, Ilana Lemos de. Álvaro García Linera: um
relato do proceso de cambio e desafios da esquerda marxista latinoamerica-
na. Entrevista com Álvaro García Linera, Vice Presidente da Bolívia. Revista
Culturas Jurídicas, vol. 4, n. 8, mai./ago., 2017.
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Lutas políticas na América Latina:
restauração conservadora e países
na corrente contra-hegemônica
1. Introdução
O presente capítulo tem por objetivo analisar o contexto de lutas políti-
cas na América Latina, a partir dos processos de ascensão de governos pro-
gressistas nos últimos anos. Quando tratamos do momento que passam os
países latino-americanos, centralmente Bolívia, Venezuela, Equador, Brasil,
Argentina, Paraguai, é preciso ter em mente que tais países carregam marcas
de dominação, seja pelo processo de Colonização, ou mesmo pelo modo que
se desenvolveram as economias e os Estados frente às grandes potências.
A última década foi marcada pelo ascenso de lutas políticas e vitórias
sociais e institucionais em diversos países, demonstrando a força de setores
populares e revolucionários, que chegam aos governos com pautas voltadas
ao anti-imperialismo, ao desenvolvimento nacional popular, à garantia dos
direitos sociais e à negação do modelo de economia dependente. Além disso,
a afirmação de populações e povos historicamente invisibilizados e cerceados
de seus direitos de identidade e participação democrática.
A despeito de análises de natureza mais culturais, o momento pelo qual
passa a América Latina está relacionada à mudança das correlações de for-
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qual passou o Continente. Assim como ocorreu em outros locais, a América La-
tina traz em sua história e formação social as marcas da expansão da civilização
ocidental proveniente de um tipo de colonialismo mais organizado e sistemáti-
co, cujas origens remontam às conquistas e dominação espanhola e portuguesa.
A colonização desenvolvida nos países latino-americanos, calcada na ex-
ploração dos recursos naturais, dos povos originários, e mais adiante, na pro-
dução agrícola em grande escala, com utilização de mão de obra negra escra-
vizada, se insere no momento de expansão do capitalismo mercantil. Segundo
Valença (2018, p. 34), a Colonização inseriu o território, nações e povos conquis-
tados em um longo processo de exploração em favor das metrópoles e em pleno
contexto de expansão do capital. Assim, o debate sobre reprodução social e a
possibilidade do desenvolvimento de uma dinâmica própria na América Latina
foi alterado não por fatores internos aos povos presentes à época no território,
mas por influência do capitalismo e do contexto geopolítico global.
Tal colonialismo persistiu devido à evolução do capitalismo e à incapa-
cidade (em função do desenvolvimento de uma relação extremamente depen-
dente) dos países latino-americanos em superar tal modelo de dominação –
seja por fatores políticos, econômicos ou socioculturais (FERNANDES, 1975,
p. 11). Assim, o processo de construção de relações dependentes com os países
centrais do capitalismo datam desde a época da conquista e seus desdobra-
mentos, passando por quatro modelos de dominação externa: o antigo mode-
lo colonial, o neocolonialismo, o imperialismo e o capitalismo monopolista.
Inicialmente, temos o antigo colonialismo, marcado pelas relações entre a
Coroa e a Colônia e pela existência de uma sociedade estratificada e com cer-
ta flexibilidade que possibilitava, concomitantemente, a permanência do poder
nas mãos dos colonizadores bem como a capacidade de absorção e controle das
massas – desde a exploração total da força de trabalho e da existência humana
dos mestiços, negros e indígenas até o aparecimento de segmentos sociais me-
nos explorados, mas ainda sim dependentes (FERNANDES, 1975, p. 13).
Nesse contexto, percebemos que a acumulação primitiva no contexto
brasileiro e latino-americano se dá, inicialmente, por meios extraeconômi-
cos, como pilhagens, colonizações, escravizações, trocas comerciais desiguais
e povoamento de novas terras, distinguindo-se da acumulação primitiva es-
sencialmente capitalista, que baseia-se nas relações entre proprietários livres
(POMAR, 2013, p. 23).
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ampliada a qualquer custo, que pode ser assegurada, pelo menos por
algum tempo, por várias modalidades de destruição. Pois, do perverso
ponto de vista do ‘processo de realização’ do capital, consumo e des-
truição são equivalentes funcionais (MÉZÁROS, 2012, p. 21-22).
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3. Experiências progressistas e
constitucionalismo latino-americano
Como já mencionado, nas última década ocorreu um momento de ascen-
so de lutas na América Latina, que modificou as correlações de força histori-
camente estabelecidas. As mobilizações e lutas despontaram em processos de
disputa eleitoral, com diversas experiências de vitórias. Entre as mais conhe-
cidas, pode-se mencionar a Bolívia, Venezuela e Equador. Além destas, Brasil,
Argentina, Paraguai também vivenciaram um momento em que as esquerdas
chegaram ao governo, implementando diversas medidas de natureza social.
Tais experiências, em maior ou menor nível de radicalidade, incorpo-
ram às suas agendas pautas que se contrapõem diretamente aos padrões de
dominação anteriormente expostos. A questão do nacionalismo, o caráter an-
ticolonial e anti-imperialista se entrelaçam e se afirmam (VALENÇA, 2018,
p. 34). No caso dos países andinos, a questão indígena e a plurinacionalidade
se incorporam ao discurso político de lutas e contribuem para reestruturar
os estados. O maior exemplo desse caso, a Bolívia. As questões identitárias e
culturais também acabam por compor o complexo de mudanças que visam
construir um modelo que se contraponha a todo o histórico de dominação.
Segundo Linera (2017, p. 14), a América Latina viveu uma década virtu-
osa de soberania continental, construída a partir de uma pluralidade de pro-
cessos, sujeitos, autonomias e linguagens. Em sua interpretação, são quatro as
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vernos sub-nacionais, para a população exercer sua voz e voto; na Bolívia, por
meio da figura da “participação e controle social”, a Constituição estabelece a
população como uma espécie de contra-poder que pode
[...] participar no desenho das políticas públicas, exercer o controle so-
cial de todos os órgãos de governo e empresas públicas ou privadas
que recebam verbas públicas, auxiliar o legislativo na elaboração de
leis, denunciar atos de corrupção e pronunciar-se sobre os informes de
gestão emitidas pelos órgãos do Estado (FLORES, CUNHA FILHO e
COELHO, 2009, p. 10).
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classe média alta que possibilitou o golpe de Estado no Brasil de 2016 e a posterior
ascensão da extrema direita reacionária ao poder (CHAUI, 2016, p. 19-20).
Assim como dispõe Boito Jr. (2016, p. 24-25), o conflito que ocorreu no
Brasil em 2016 que culminou no golpe trata-se de um conflito distributivo,
relativo à distribuição de riqueza. Assim como nos demais conflitos de classe
ao longo da história, estes não aparecem desta forma; ao contrário, são dissi-
mulados em algo mais palpável como, por exemplo, o atual caso do discurso
do combate a corrupção. Ora, claramente, esse não era o interesse das elites no
cenário que se punha à época haja vista que os próprios políticos defensores
do golpe de Estado ou eram condenados ou eram investigados por corrupção.
Como a maioria enquadrava-se nesse segundo caso, um dos interesses por
trás do impeachment foi justamente (como afirmou o então senador Romero
Jucá) para parar as investigações de corrupção. Contudo, o principal interesse
motivador foi o conflito distributivo de riqueza.
Do ponto de vista objetivo, durante os governos do Partido dos Traba-
lhadores (com ênfase no primeiro governo Lula), a política econômica era
amplamente baseada na exportação de commodities e bens de consumo não
duráveis. Com a eclosão da crise do capital de 2008, o principal mercado im-
portador dos produtos brasileiros, a China, diminuiu as importações, afetan-
do diretamente a economia. Esse quadro piorou durante os governos da pre-
sidenta Dilma Rousseff, que passou a ser atacada pela elite interna (amparada
pelos interesses externos do capital imperialista), por setores da burguesia in-
terna anteriormente apoiadores do governo e pela classe média alta.
Assim, em 2016, o Brasil vivenciou um golpe de Estado perpetrado por
setores conservadores da população e instrumentalizados pelo Legislativo e
Judiciário nacionais, a serviço dos interesses da burguesia, que possibilitou a
assunção ao poder do vice-presidente Michel Temer.
De agenda claramente conservadora e neoliberal, durante o governo Temer
tivemos o retrocesso nos direitos trabalhistas e sociais com a aprovação da Lei da
Terceirização, que passa a permitir a terceirização irrestrita tanto das atividades-
-meio como das atividades-fim, bem como da Reforma Trabalhista, que represen-
ta um ataque ao arcabouço jurídico protetivo do trabalhador que precariza ainda
mais as relações de trabalho quando não as extingue ou inviabiliza.
Ainda no âmbito do cenário político brasileiro, podemos destacar a pri-
são do ex-presidente Lula como forma de impedir o retorno ao poder da es-
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5. Considerações finais
A América Latina historicamente carrega consigo em sua formação so-
cial e econômica, as marcas de séculos de exploração e dominação colonial,
escravismo, bem como de dependência dos países centrais do Capitalismo.
Nesse sentido, a história de diversos povos latino-americanos foi de negação
de direitos, invisibilização de sua identidade sócio-cultural, exploração ilimi-
tada da força de trabalho e baixo desenvolvimento de forças produtivas.
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Referências
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FLORES, Fidel Pérez; CUNHA FILHO, Clayton M.; COELHO, André Luiz. A
construção de um novo modelo de Estado democrático na Venezuela, Equa-
dor e Bolívia: características, entraves e contradições. In: XIV CISO – EN-
CONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE – GT 12: De-
mocracia e teoria democrática na América Latina contemporânea, Recife, 2009.
LINERA, Álvaro García. ¿Fin de ciclo progresista o proceso por oleadas revo-
lucionarias?. In.: SADER, Emir (org.). Las vías abiertas de América Latina:
siete ensayos en busca de una respuesta: ¿fin de ciclo o repliegue temporal? -
Caracas : CELAG : BANDES, 2017. - (Colección Política y Hegemonía).
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Notas introdutórias sobre a Economia
Política da Dependência
1. Introdução
Por sua própria constituição, o modo de produção capitalista implica uma
relação desigual entre as duas classes que emergem com a consolidação da so-
ciedade moderna, ou seja, aquela composta pelos que possuem a propriedade
privada dos meios de produção – a burguesia, em suas diversas configurações:
comercial, industrial, financeira, etc. – e aqueles que têm a sua força de tra-
balho explorada pelos primeiros e se constituem como a classe-que-vive-do-
-trabalho, utilizando o termo proposto por Ricardo Antunes (2009). Sendo as-
sim, no modo de produção capitalista, a desigualdade social não é um defeito,
mas um elemento constitutivo para a reprodução do capital. Há, contudo, países
onde a desigualdade afeta de modo mais incisivo as condições de vida da classe-
-que-vive-do-trabalho. Um dos argumentos possíveis para compreender este
movimento parte do pressuposto de que há, em alguns países, localizados na
periferia do capitalismo, um processo de superexploração da força de trabalho
e maior precarização das relações de trabalho, ocasionado, sobretudo, pela lo-
calização destes países na divisão internacional do trabalho (MARINI, 2000).
14 Cientista Social. Possui graduação em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Mestre e, Psicologia e doutorando do Programa de Pós Graduação em Psicologia.
Membro do Grupo de Pesquisa Marxismo & Educação (GPM&E).
15 Doutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, coordenadora do Grupo de Pesquisa Marxismo & Educação (GPM&E)
16 Professor da Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA. Sociólogo e Mestre em Ciências
Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Coordenador
do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Humanidades e Saúde do Semiárido e membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (Gedic).
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17 A extração de mais-valor sob a forma relativa nos países do centro é possibilitada pela redução do
valor da força de trabalho, ocorrida pela desvalorização dos bens-salários. E esta desvalorização,
por sua vez, é proporcionada pela oferta desses bens pelos países latino americanos.
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doria por um preço acima do seu valor. Tal fato demonstra outra possibilidade
de se realizarem trocas desiguais no comércio internacional de mercadorias. O
que resta demarcar é que estes processos implicam uma transferência de valor
da periferia para o centro. Conforme Ruy Mauro Marini adverte:
A apropriação de valor realizado encobre a apropriação de uma mais-
-valia que é gerada mediante a exploração do trabalho no interior de
cada nação. Sob esse ângulo, a transferência de valor é uma transferên-
cia de mais-valia, que se apresenta, desde o ponto de vista do capitalista
que opera na nação desfavorecida, como uma queda da taxa de mais-
-valia e por isso da taxa de lucro (2000a, p. 118).
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19 Cf. https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html
20 Ou, simplificando, que recebesse um salário inferior a 3.518 reais.
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21 Cf. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2013-agencia-de-noticias/releases/18376-pnad-
continua-2016-10-da-populacao-com-maiores-rendimentos-concentra-quase-metade-da-renda.html
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5. Considerações finais
A discussão expressa ao longo deste artigo buscou delinear fundamen-
tos gerais da economia política da dependência na América Latina. Isto por-
que se admite que características da economia destes países, como trajetórias
de desenvolvimento instáveis, elevados índices de concentração de renda e
endividamento público, estão relacionados com o movimento global de re-
produção do capital. Admite-se, ainda, que a condição de dependência e as
implicações econômicas que dela advém estão relacionadas com o cotidiano
da classe trabalhadora dessas regiões. Conforme exposto, a condição de eco-
nomia dependente apresenta como uma de suas características a alta concen-
tração de renda, o que conduz ao aumento da desigualdade. De acordo com o
índice Gini, o Brasil ocupava, em 2017, a posição de décimo país mais desigual
do mundo. E de acordo com Georges e Maia (2017), seis famílias brasileiras
detém a mesma riqueza que os 50% mais pobres. Este cenário, marcado por
abissal desigualdade econômica, é terreno fértil para a produção de cidadãos
de segunda, terceira, quarta e quinta categorias: os subcidadãos ou classe tra-
balhadora precarizada, a “ralé brasileira”, sem os privilégios de nascimento da
classe média, para fazer referência ao sociólogo Jessé Souza (2009).
Ora, tomando como referência José Murilo de Carvalho (2002) e Thomas
Marshall (1967), o sujeito se constituirá cidadão por estar imerso em uma re-
lação que pressupõe a garantia de direitos (civis, políticos e sociais) por parte
de uma comunidade política – o Estado, no caso das sociedades modernas – e
o cumprimento de determinados deveres por parte do cidadão. Fala-se em
subcidadania, pois embora o sujeito possua nacionalidade brasileira (a con-
dição necessária para, no Brasil, tornar-se cidadão do ponto de vista formal),
este não tem seus direitos garantidos por parte do Estado. A cidadania, fruto
das Revoluções burguesas europeias e estadunidenses nunca existiu no Brasil,
nem na República democrática, tampouco em qualquer outra forma de gover-
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no22. O que ocorre no concreto das relações sociais é que, com a ausência da
função do Estado como ente garantidor de direitos e liberdades individuais,
o grupo de sujeitos mais pauperizados da estrutura social é colocado em uma
condição de desvantagem e “abandono” social. Talvez o verso “trabalhador
brasileiro é tratado que nem lixo”23, do rapper Criolo, sintetize com precisão
aquilo que este parágrafo pretende tratar.
Em várias pesquisas no campo das Ciências Sociais e Humanas, a questão
da pobreza e da desigualdade social é abordada sem que haja, contudo, uma
reflexão aprofundada acerca das suas causas. Esse artigo pretendeu, a partir
da teoria marxista da dependência, que conforme aponta Ouriques (2013),
representa a crítica mais radical e, ao mesmo tempo, fecunda das teses cepa-
linas, fornecer um arcabouço teórico-conceitual que permita compreender a
produção, reprodução e superação da desigualdade e do pauperismo social.
Como empreendimento intelectual e político, a teoria marxista da depen-
dência encontra-se em aberto, disposta a incorporar os desafios teóricos que as
novas configurações do capitalismo contemporâneo impõem, o que inclui o avan-
ço do ultraliberalismo econômico e a financeirização do capital. Nunca é dema-
siado recordar que o empreendimento intelectual crítico se constitui tendo como
base a materialidade das relações sociais. Portanto, cabe ao intelectual marxista
acompanhar os movimentos do capital a fim de compreender sua dinâmica e o
modo como se expressa em distintos tempos históricos e em distintas partes do
globo. Compreender o movimento do capital em escala global continua a ser uma
tarefa necessária para os investigadores que pretendem compreender a realidade
social dos países da periferia do capitalismo, como o Brasil.
O que fazer, contudo, para romper com a condição de dependência, não é
uma resposta que será encontrada neste texto, tampouco se afirma que a supe-
ração desta condição reside na imediata possibilidade para que se possa “alcan-
çar o céu na Terra”. Entretanto, o rompimento com a condição de dependência
configura-se como uma mola propulsora para que se consolidem as condições
necessárias para avançar em direção à garantia de direitos da classe trabalhado-
ra. E superar a condição de dependência significa superar o próprio capitalismo.
22 A ideia exposta não reside em apresentar os ideais burgueses de sociedade como um horizonte
civilizatório, mas apontá-los como parâmetros de um estágio não alcançado no Brasil.
23 Presente na música “Demorô”, lançada em 2013, pelo rapper brasileiro Criolo.
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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
Referências
GEORGES, R. & MAIA, K. (2017). A distância que nos une: um retrato das
desigualdades brasileiras. São Paulo, Brasil: Brief Comunicação.
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Marxismo e América Latina
55
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2009.
56
Constituinte exclusiva na Venezuela:
processo democrático entre lutas políticas
1. Introdução
Em 2017, o atual presidente venezuelano, Nicolás Maduro, convocou a
eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte na marcha chavista por
ocasião do Dia do Trabalhador. O órgão tem como objetivo elaborar uma
nova Constituição que substitua a de 1999 com finalidade, segundo o então
presidente, de acabar com a crise vivenciada no país desde 2012 e trazer a “paz
da República” em meio a um cenário de intensas lutas políticas.
Assim como o processo constituinte venezuelano de 1999, o de 2017 foi
fruto de uma grande instabilidade econômica, social e política. Em 1998, com
um discurso de transição democrática para o socialismo a Venezuela pelas
forças bolivarianas, foi instalado um governo socialista, processo liderado por
Hugo Chávez. Durante seu governo, além de conquistas no âmbito social, am-
pliou também direitos políticos da população e revigorou uma política exter-
na autônoma frente aos Estados Unidos (BENATUIL; PLESSMANN; PINE-
DA, 2017, p. 3146). No entanto, apesar de grandes avanços, a vulnerabilidade
57
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
28 O capitalismo rentista na Venezuela “é, antes de tudo, uma economia de contrastes, de extremos que
se opõem permanentemente. Por um lado, um polo dinâmico, assentado sobre a indústria petroleira
configurada como uma articulação do Estado rentista, transnacionais do petróleo e empresas de
comércio de importação. Esse polo dinâmico tem seu núcleo constitutivo na empresa petroleira de capital
intensivo que exerce grande atração sobre o capital circulante disponível, dado sua muitíssima mais alta
lucratividade. Assim, apesar dos esforços estatais de boa ou má fé empenhados historicamente com os
objetivos de diversificar a indústria ou produzir bens salário, estimulando, por exemplo, a produção
agrícola, a própria lógica da acumulação do capital faz migrar o capital sempre para os setores mais
lucrativos da economia, mediante uma atração irresistível e irracional, impossível de ser contrarrestada
por políticas governamentais convencionais” (FERREIRA, 2011, p. 1)
29 De acordo com o artigo 233 da Constituição da Venezuela, “cuando se produzca la falta absoluta del
Presidente o Presidenta de la República durante los primeros cuatro años del período constitucional,
se procederá a una nueva elección universal y directa dentro de los treinta días consecutivos siguientes.
Mientras se elige y toma posesión el nuevo Presidente o Presidenta, se encargará de la Presidencia de
la República el Vicepresidente.”
30 A derrota do levante militar ocorrido na Venezuela em 1994 gerou “heróis claramente visíveis pela
opinião pública”, em especial para o tenente-coronel Hugo Chávez (MARINGONI, 2004, p. 144-
146). Após sua rendição, profere um discurso em rede nacional para convocar seus companheiros de
levante a baixar as armas, na qual deixou o país dividido em dois lados. De um, este representou um
caráter autoritário, do outro, conferiu visibilidade às insatisfações sociais das “classes populares”,
tendo como esperança a mudança do sistema vigente. “O chavismo surge logo após o levante militar,
de maneira a destacar a figura e a atribuir a responsabilidade ao ex-tenente-coronel, [...] encontra
sua gênese na crescente centralidade de Chávez como figura de unidade.” Surge mediante disputas
internas do Movimento Quinta República (MVR) como partido eleitoral (SEABRA, 2010, p. 215).
31 “O bolivarianismo pode ser definido pelos pontos essenciais do programa e da atuação histórica de
Bolívar, que ainda têm grande validade contemporânea. É o caso de sua constância e perseverança
revolucionárias, de sua compreensão da necessidade de união de todos os revolucionários para
alcançar o triunfo da revolução, de sua orientação para uma independência plena e soberana,
58
Marxismo e América Latina
de suas advertências constantes contra o perigo por parte do expansionismo dos EUA. Torna-
se precursor do anti-imperialismo, e seu programa de solidariedade latino-americana, com
conteúdo revolucionário e progressista [...] se fundamenta no resgate e na continuidade do projeto
de emancipação venezuelano das oligarquias político-econômicas que reproduzem a estrutura
dependente, contra a subordinação do país à influência de agentes do imperialismo e a distribuição
radical do poder político” (SEABRA, 2010, 212).
32 BENATUIL, Ana Graciela Barrios; PLESSMANN, Antonio González; PINEDA, Martha Lía
Grajales. Constituyentes Venezolanas de 1999 y 2017: Contextos y Participación. Rev. Direito e
Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, n. 4, p. 3144-3168, 2017.
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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
33 Tal fato deu vida ao documentário “A Revolução não será Televisionada”, lançado em 2003. Os
irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain, estavam na Venezuela para fazer um documentário
60
Marxismo e América Latina
É inegável que ser o sucessor de Chávez não é uma tarefa fácil, pois além
de ter sido uma pessoa carismática, ele deu nome à Revolução Bolivariana,
deixando o processo vulnerável depois que partiu. A simpatia e a centralidade
sobre Chávez e sua administração. Entretanto se depararam com um golpe de estado, com uma
mídia manipuladora que estava sob o controle das classes insatisfeitas com o atual governo.
34 VENEZUELA: Democracia ou Ditadura. Disponível em: < https://revistaopera.com.br/2019/02/10/
venezuela-democracia-ou-ditadura/>. Acesso em: 15 jul. 2019.
61
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
35 Bobbio, Norberto, 1909- Dicionário de política I Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco
Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis
Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1 la ed.,1998, p. 61.
36 MADURO, Nicolás. Constituinte na Venezuela: como chegamos até aqui? Disponível em: <https://
operamundi.uol.com.br/politica-e- economia/47680/constituinte-na-venezuela-como-chegamos-
ate-aqui> Acesso em 16 mai. 2019.
37 “Artículo 72. Todos los cargos y magistraturas de elección popular son revocables. Transcurrida la
mitad del período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria, un número no menor del veinte
62
Marxismo e América Latina
nham fraudes, de acordo com o Conselho Nacional Eleitoral, por isso foram
rejeitadas, mantendo Maduro no poder. Em maio de 2017, Maduro diz:
Anuncio que, no uso de minhas atribuições presidenciais como chefe de Es-
tado constitucional, de acordo com o artigo de 347, convoco o poder cons-
tituinte originário para que a classe operária e o povo, em um processo na-
cional constituinte, convoquem uma Assembleia Nacional Constituinte.38
Até hoje, boa parte dos países dependentes de importação sofrem com os
resquícios da crise, isto, somado à economia inflacionária da Venezuela, vem
por ciento de los electores o electoras inscritos en la correspondiente circunscripción podrá solicitar la
convocatoria de un referendo para revocar su mandato. Cuando igual o mayor número de electores y
electoras que eligieron al funcionario o funcionaria hubieren votado a favor de la revocatoria, siempre
que haya concurrido al referendo un número de electores y electoras igual o superior al veinticinco
por ciento de los electores y electoras inscritos, se considerará revocado su mandato y se procederá de
inmediato a cubrir la falta absoluta conforme a lo dispuesto en esta Constitución y la ley. La revocación
del mandato para los cuerpos colegiados se realizará de acuerdo con lo que establezca la ley. Durante
el período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria no podrá hacerse más de una solicitud
de revocación de su mandato” (VENEZUELA. Constitución (1999). Disponível em: <http://pdba.
georgetown.edu/Parties/Venezuela/Leyes/constitucion.pdf> Acesso em: 13 de maio de 2019).
38 MADURO, Nicolás. Constituinte na Venezuela: como chegamos até aqui? Disponível em: <https://
operamundi.uol.com.br/politica-e- economia/47680/constituinte-na-venezuela-como-chegamos-
ate-aqui> Acesso em 16 mai. de 2019.
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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
39 “Más allá de la retórica polarizada, el cuchicheo heroico y las voluntades de poder, el curso de la
definición histórica en la que nos encontramos, está también determinada por la racionalidad
del capital, por el mantenimiento o incremento de la tasa media de ganancia; por la búsqueda de
facilidades para el acceso a los llamados ‘recursos naturales’ del país; por la imperiosa necesidad de
aumento de la captación de las rentas y excedentes económicos por parte de las élites económicas y
estatales; por las demandas de mayor seguridad jurídica para los emprendimientos económicos; o por
las garantías de viabilidad de los negocios a corto, mediano y largo plazo” (TERÁN, 2017).
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Marxismo e América Latina
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41 “En uso de la facultad que me confiere el artículo 348 de la Constitución de la República Bolivariana
de Venezuela, en concordancia con los artículos 70, 236 numeral 1 y 347 ejusdem; con la bendición
de Dios Todopoderoso, e inspirado en la grandiosa herencia histórica de nuestros antepasados
aborígenes, héroes y heroínas independentistas, en cuya cúspide está el Padre de la Patria, El
Libertador Simón Bolívar, y con la finalidad primordial de garantizar la preservación de la paz del
país ante las circunstancias sociales, políticas y económicas actuales, en las que severas amenazas
internas y externas de factores antidemocráticos y de marcada postura antipatria se ciernen sobre su
orden constitucional, considero un deber histórico ineludible convocar una ASAMBLEA NACIONAL
CONSTITUYENTE[...].” (Presidencia de la República, Gaceta oficial n° 2.830).
42 “Artículo 347. El Pueblo de Venezuela es el depositario del poder contituyente originario. En ejercicio
de dicho poder, puede convocar una Asamblea Nacional Constituyente con el objeto de transformar
al Estado, crear un nuevo ordenamiento jurídico y redactar una nueva Constitución.
Artículo 348. La iniciativa de convocatoria a la Asamblea Nacional Constituyente podrá hacerla el
Presidente o Presidenta de la República en Consejo de Ministros; la Asamblea Nacional, mediante
acuerdo de la dos terceras partes de sus integrantes; los Consejos Municipales en electores inscritos y
electoras en el Registro Civil y Electoral.” (VENEZUELA. Constitución (1999). Disponível em: <http://
pdba.georgetown.edu/Parties/Venezuela/Leyes/constitucion.pdf> Acesso em: 13 mai. 2019).
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Marxismo e América Latina
nº 378 afirmou que não se faz necessário um referendo consultivo para a con-
vocação de uma Assembleia Nacional Constituinte43.
Maduro, perante a Assembleia Nacional Constituinte, definiu seis bases
de trabalho com o objetivo de superação da crise que o país passa. Enfatizou
que deve continuar com a luta contra a corrupção e, simultaneamente, buscar
políticas sociais e outros benefícios para a população subalterna. O diálogo e a
pacificação se encontram no topo da pirâmide, entendendo as lesões deixadas
pelas conspirações no país. O presidente coloca como importante o trabalho
em conjunto de todos os setores políticos a favor do bem-estar do povo vene-
zuelano. Reafirmar valores para garantir a paz, potenciar o sistema de justiça,
além da garantia de direitos sociais a juventude são suas principais metas.44
A segunda base se insere no tema econômico, em que se faz necessário um
acordo produtivo para a estabilização do país e “recuperar o crescimento susten-
tável baseado na produção de riquezas e na satisfação das necessidades”45. Esse
acordo deverá ser feito com os setores produtivos públicos, mistos e privados, para
um processo de crescimento e recuperação do sistema econômico venezuelano.
A terceira linha de ação é a luta frontal contra todas as formas de corrup-
ção e o surgimento de uma nova ética patriota e cidadã, de forma a reconhecer a
identidade do povo venezuelano, destacando a sua diversidade cultural. A quar-
67
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
46 O Carnê da Pátria é uma espécie de identidade eletrônica, em que estão inseridas informações
pessoais sobre os detentores do cartão, no qual permite saber as necessidades sociais do cidadão. “Com
esse carnê já podemos ver o lar que de verdade necessita, a mulher que de verdade necessita. Não há
intermediários, gestores nem ninguém que lhe faça o favor”, explica o então presidente Nicolás Maduro.
Tendo conhecimento das condições de existência socioeconômicas das mais variadas famílias, este
carnê ajuda na promoção da Missão Lares da Pátria. Esse programa social oferece uma contribuição
econômica às mães ou chefes de famílias que estejam com baixos recursos materiais. Disponível em:
<https://gz.diarioliberdade.org/america-latina/item/156828-700-mil-familias-venezuelanas-estao-
protegidas-pela-missao-lares-da-patria.html> Acesso em: 12 jul. 2019.
47 MADURO, Nicolás. Acto completo: Nicolás Maduro es juramentado como presidente ante la ANC, 24
mayo 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=irm7qJDY55s> Acesso em: 15 mai. 2019.
48 MADURO, Nicolás. Acto completo: Nicolás Maduro es juramentado como presidente ante la ANC, 24
mayo 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=irm7qJDY55s> Acesso em: 15 mai. 2019.
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Marxismo e América Latina
zadas apenas tratavam acerca dos limites e organização do poder. Tudo o que
se referia as urgências das classes trabalhadoras não era contemplado pelas
cláusulas das mesmas, não havia nem sequer uma brecha para que os margi-
nalizados socialmente fossem incluídos na esfera política.
O novo constitucionalismo latino-americano busca, portanto, danificar essa
estrutura liberal que sustenta as constituições do século XIX, de modo a desenvol-
ver instrumentos jurídicos que consigam abarcar a quem muito já foi esquecido.
[...] os movimentos do constitucionalismo ocorrido recentemente em
países sul-americanos (Bolívia, Equador e Venezuela) tentam romper
com a lógica liberal-individualista das constituições políticas tradicio-
nalmente operadas, reinventando o espaço público a partir dos interes-
ses e necessidades das maiorias alijadas historicamente dos processos
decisórios (WOLKMER; FAGUNDES, 2011).
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de forças entre as classes sociais que resultou justamente nos processos cons-
tituintes que as originaram (LINERA, 2015).
Para exemplificar tudo o que foi dito anteriormente, voltamos a nossa
atenção para a Constituição da Venezuela de 1999. Assim como a da Bolívia e do
Equador, ela é considerada uma carta magna rígida e analítica decorrente de um
longo processo de lutas sociais que reivindicaram uma maior participação do
povo nas decisões governamentais. Esse novo texto constitucional venezuelano
se destaca por ter rompido com a tripartição dos poderes objetivando distribuir
o poder entre cinco esferas distintas, o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, o
Eleitoral e o Cidadão. Particularmente o poder Cidadão, por meio de referendos
e plebiscitos, é o que garantirá a soberania popular, bem como
[...] o fomento da consciência social, identificando o indivíduo como
agente das necessidades coletivas, tanto regionais, como municipais e
comunitárias. A participação (popular) serve como mecanismo de em-
poderamento por parte do indivíduo dos recursos coletivos, cor-res-
ponsabilizando-o a investir de maneira eficiente e eficaz e estimulando
as potencialidades do indivíduo. Porquanto, destacam-se no mínimo
três níveis de participação: (i) a participação política – que diz respeito
ao processo social de democratização do poder e dos processos de to-
mada de decisão; (ii) a participação social – que envolve o processo de
integração do indivíduo à sociedade; e a (iii) participação econômica
– que integra o indivíduo ao processo de geração e controle (uso racio-
nal) das riquezas (BRAYNER, 2018).
72
Marxismo e América Latina
5. Considerações finais
O processo constituinte de 2017 ocorreu no contexto de uma grave cri-
se econômica, social e política. Sendo assim, um dos elementos chave para
explicitar as razões dessa conjuntura é o reconhecimento de que a República
Bolivariana da Venezuela sofre tratamento desigual por ser um país que apre-
senta forte dependência exportadora petrolífera. Por conta disso, a Venezuela
vive uma expressão de uma crise do modelo rentista, altamente dependente
dos preços de petróleo no mercado internacional, o que afeta diretamente as
contas públicas do país, visto que “La caída de los precios del petróleo marca
de modo considerable una restricción muy inquietante para las arcas públicas
del país. Lo mismo le ocurre a todos aquellos Estados que dependen de este
recurso” (MANCILLA, 2016).
O governo de Nicolás Maduro perdeu uma fonte de financiamento que
poderia pagar suas dívidas internacionais e importar alimentos e medicamen-
tos, após as novas sanções econômicas impostas pelo presidente estadunidense
Donald Trump, que deixaram a Venezuela sem possibilidade de obter créditos
para emissão de bônus do Banco Central e da empresa estatal de Petróleos de
Venezuela (PDVSA). Segundo comunicado da Casa Branca, a escolha dessa
atitude tem um objetivo específico: “Estas medidas están cuidadosamente ca-
libradas para negar a la dictadura de (Nicolás) Maduro una fuente crítica de
financiación para mantener su gobierno ilegítimo” (LEON, 2017).
Os Estados Unidos, com essa afirmação, explicitam o caráter ideológico
de suas decisões econômicas, além de reverberarem o fato de que utilizam do
imperialismo para controlar as outras nações e a geopolítica internacional,
privando países dependentes do capitalismo, como a Venezuela, de atuarem
com autonomia e de planejarem a recuperação econômica frente à crise.
Portanto, a superação do modelo rentista é um dos principais e mais
árduos desafios apoderados pelo governo bolivariano da Venezuela. Na con-
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Referências
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver. 2. ed. São Paulo: Editora Elefante, 2016. 264
p. Disponível em: <https://rosaluxspba.org/wp-content/uploads/2017/06/Be-
mviver.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2019.
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60 anos da Revolução Cubana:
Nova Constituição e transformações
na ordem econômica socialista
1. Introdução
Neste ensaio, pretendemos debater acerca das mudanças constitucionais
nas ordens econômica e socialista cubanas com a Constituição de 2019, fazendo
breves apontamentos sobre as suas implicações e contradições diante do proces-
so revolucionário, bem como analisando as necessidades concretas desse pró-
prio processo a partir da reestruturação do capital internacional pós-crise de
2008. Para tanto, adotaremos três aspectos centrais nesta análise constitucional,
quais sejam, as relações de trabalho, a propriedade dos meios de produção e o
controle estatal da economia. Contudo, não será objeto de nossa investigação a
constituição em si, isto é, o código normativo como um dever ser, mas, sim, os
processos de continuidade e ruptura oriundos da totalidade das relações sociais
e econômicas na ilha caribenha que, a partir de uma determinada correlação
de forças, desembocou em um processo constituinte, ora chamado de continui-
dad53, ora colocado como atualização das ideias socialistas, herdeiras diretas do
reformismo que Marx, Engels e Lenin combateram54.
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Nos filiamos, dessa forma, a uma perspectiva que se propõe a dar conta
do movimento real deste objeto de estudo, qual seja, a materialista, histórico-
-dialética, calcada na análise do desenvolvimento histórico e da totalidade
das relações sociais e de produção. É neste aspecto que partiremos, na pri-
meira seção, de uma breve discussão sobre o quadro das forças produtivas
cubanas antes da Revolução de 1959, demarcando o seu caráter de desenvolvi-
mento predominantemente agrícola, o qual assumia formas pré-capitalistas,
e de subserviência aos Estados Unidos da América. Assim, construiremos os
subsídios para compreender o socialismo como uma necessidade do próprio
processo histórico revolucionário cubano que era, em sua gênese, anti-impe-
rialista e democrática e que, a partir de novas necessidades, adota a opção
socialista como essencial ao desenvolvimento das forças produtivas e da mu-
dança qualitativa na qualidade de vida da classe trabalhadora. Pretende-se,
na sequência, lançar aportes para o debate acerca das contradições existentes
entre a revolução socialista e o desenvolvimento das forças produtivas.
Na segunda seção, analisaremos a ordem econômica socialista cubana
no debate constitucional pós-Revolução de 1959, no qual três textos são fun-
damentais: a Ley Fundamental del Estado Cubanode 1959, a Constituição de
1976 e a reforma constitucional de 1992.
Por fim, analisaremos o processo que desembocou na Constituição de
2019, bem como as transformações ocorridas em âmbito de ordem econômi-
ca, a partir do novo texto magno.
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55 De acordo com Pérez (1973), antes da Lei de Reforma Agrária, datada de 1959, 68 empresas
agropecuárias controlavam 27,5% do território nacional (apud BELMARIC; BRIGOS; FERRER;
PINEDA, 2012, p. 283)
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56 Aqui, referimo-nos ao processo de independência consolidado em 1895 e liderado por José Martí,
Máximo Gomes e Antonio Maceo. A independência de Cuba se dá a partir de uma correlação de
forças composta por setores da pequena burguesia, pelas forças remanescentes da Guerra dos Dez
anos, pelos escravos libertos em 1886 que, segundo Paulo Barsotti e Terezinha Ferrari, expressará
pela primeira vez na América a sua natureza antiimperialista-internacionalista. Entretanto, esse
movimento de massas será utilizado pelos Estados Unidos da América para o seu projeto de
expansão do capital industrial-financeiro. Assim, os EUA colocam suas tropas militares em Cuba
em adesão ao movimento de independência ao passo em que alia a repressão aos setores populares
e nacionais. Dá-se, com isso, a aliança entre o capital internacional estadunidense e as elites
cubanas nacionais para que se pudesse prosseguir o regime de latifúndio e neocolonial a partir da
modernização conservadora. Interrompe-se, portanto, um processo de ruptura político e social em
Cuba (BARSOTTI; FERRARI, 1998).
57 Grifos dos autores.
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Esse aspecto é, pois, revelador de uma questão muito cara aos debates
acerca do desenvolvimento das forças produtivas nos chamados países de ca-
pitalismo periférico, uma vez que o centro da estratégia para tal se coloca sub-
dividida entre a tradição que defende ser possível o desenvolvimento das for-
ças produtivas a partir de uma revolução burguesa, na qual é imprescindível
a aliança entre os trabalhadores e a burguesia nacional, e aquela que assume a
revolução socialista como a única alternativa a esse desenvolvimento.
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58 Para maiores detalhes sobre a forma jurídica, consultar Mascaro (2013) em “Estado e forma
política”, editora Boitempo.
59 Segundo Álvarez (2000) e Rodríguez (1999), os países socialistas forneciam 85% das importações
cubanas, 80% dos investimentos e recebiam ao redor de 80% das exportações do país (apud
GARCÍA, 2011, p.29).
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5. Considerações finais
Diante do exposto nessas breves páginas, se pôde observar que, de forma
correspondente ao que deve ser um país de capitalismo dependente, Cuba teve
no seio do desenvolvimento das suas forças produtivas as marcas da explora-
ção e da subserviência aos países de capitalismo central, nos quais se destaca
os Estados Unidos da América. Tais marcas revelam não só uma condição
histórica alicerçada em determinado padrão de desenvolvimento econômico,
sustentado em formas pré-capitalistas, mas na necessidade desse projeto estar
articulado à repressão às classes trabalhadoras quando em momento de sub-
versão à ordem sustentada pelas burguesias nacional e internacional.
Para superar essa relação de dependência, se forjaram no seio da correla-
ção de forças sociais da sociedade cubana as possibilidades de uma revolução
democrática e anti-imperialista que, exitosa em 1959, encontrou na afirmação
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Referências
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Lawfare na América Latina e machismo:
análise dos casos Kirchner e Rousseff
1. Introdução
Países da América Latina como Brasil, Argentina, Chile e Equador, têm
experimentado um fenômeno denominado como Lawfare que corresponde a
uma forma de utilização de aparatos judiciais, com suporte de meios de co-
municação, com a finalidade de atingir objetivos eminentemente políticos. No
Brasil, isto pode ser identificado através do impeachment da presidenta Dilma
Rousseff em 2016 e do processo que culminou na prisão do presidente Luís
Inácio Lula da Silva em 2018. Já na Argentina, a presidenta Cristina Kirchner
vem enfrentando um verdadeiro combate em oito processos judicias, que de
certo modo, guardam semelhanças com os que o presidente Luís Inácio Lula
da Silva vem enfrentando. No Equador, em julho de 2018, a ordem de captura
internacional e de prisão do Presidente Rafael Correa também evidencia que
este foi alvo desta estratégia jurídico-política.
Nestas situações, percebe-se que não se tratam de simples escândalos de
corrupção. Isto pelo fato de que, analisando-se cada caso, fica perceptível o
uso de falácias hermenêuticas do direito burguês, do uso de ferramentas po-
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66 Luís Felipe Miguel observa que “tanto de uma utilização competente das novas ferramentas
tecnológicas quanto pelo espaço concedido nos meios de comunicação tradicionais, a direita
extremada, em suas diferentes vertentes, contribuiu para redefinir os termos do debate público no
Brasil, destruindo consensos que pareciam assentados desde o final da ditadura militar”.
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68 Sobre isso, comentou Dilma: “Acho que todo o processo que fizemos de redução de imposto
beneficiando o setor empresarial não resultou em ganhos para o conjunto da economia”.
69 Nome dado à prática do Tesouro Nacional de atrasar de forma proposital o repasse de dinheiro para
bancos (públicos e privados) ou autarquias, financiadores de despesas do governo com benefícios
sociais e previdenciários como o Bolsa Família, abono salariais e o seguro-desemprego, com o
objetivo de maquiar déficits nas contas públicas, por a conta ir para o período seguinte, cumprindo,
portanto, as metas fiscais.
70 O discurso pode ser encontrado na íntegra em <https://mpabrasil.org.br/noticias/discurso-da-
presidenta-dilma-no-senado-federal/>.
71 O motivo da tensão foi a dificuldade que alguns países enfrentavam para conseguir empréstimos e
refinanciar suas dívidas públicas. Essa falha aconteceu porque existe um grande desequilíbrio fiscal,
com a arrecadação dos governos em queda e os gastos em alta, em torno, principalmente, de cinco
países: Portugal , Irlanda , Itália , Grécia e Espanha, o que causa crises, também, nos países que
comercializam com a Europa, como o Brasil.
105
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
Rousseff e sobre o Partido dos Trabalhadores. E a Rede Globo foi uma das
expoentes da arquitetura do golpe, junto com as outras mídias, como a Fo-
lha de São Paulo, o Estadão, o jornal A Tarde, aqui na Bahia, a revista Veja,
Isto É, Época, enfim, todas estas empresas midiáticas comandadas pelas
grandes famílias no Brasil e nos estados. Elas tiveram um papel impor-
tante de criar a dimensão de uma crise nacional sem resolução. [A mídia]
construiu a imagem de fraqueza diante da articulação política que pode-
ria dar sustentação ao governo. Fortaleceu – com certeza – uma imagem,
um discurso e uma prática misógina com relação à Dilma Rousseff. [...].
Basta ver como foram televisionadas todas as manifestações construídas
[contra o governo de Dilma Rousseff], porque não foram manifestações
espontâneas simplesmente, foram manifestações induzidas a partir de
ideias construídas de uma derrocada do País, de uma crise econômica e da
incompetência de Dilma de tomar as rédeas do processo.
106
Marxismo e América Latina
72 Recriação da CPMF, adoção de uma margem de flutuação do resultado fiscal, o aumento de impostos
que incidem sobre a renda e o patrimônio, dentre outros.
73 Ao contrário de Dilma, Cristina não sofreu impeachment. Com o fim do seu mandato, lançou a
coligação política “Unidade Cidadã” e entrou na corrida eleitoral de 2017 para o cargo de Senadora,
sendo oficialmente eleita com 37% dos votos, pela província de Buenos Aires.
107
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
74 O juiz Claudio Bonadio, autorizado por unanimidade pelo Senado, ordenou a busca em três residências
de Kirchner no caso que investiga propinas milionárias em troca de contratos de obras públicas.
108
Marxismo e América Latina
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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
Cristina, como visto, tem sido alvo também de outros processos que en-
volvem, segundo ela, alegações que se tratam de um novo capítulo da perse-
guição judicial ordenada pelo presidente Mauricio Macri. Um desses trata-se
76 O juiz Claudio Bonadio, atualmente, é o responsável pela maior parte dos processos por corrupção
(cinco) contra a ex-presidente. Segundo Cristina, ao falar à imprensa sobre o primeiro pedido de
prisão feito pelo juiz, no caso do suposto acobertamento por atentado do Irã, “Mauricio Macri é o
diretor da orquestra e Bonadio executa a partitura judicial”.
110
Marxismo e América Latina
77 A sociedade Hotesur pertence à família Kirchner e, de acordo com a deputada Margarita Stolbizer,
autora da denúncia, foi usada para receber propina do empresário e sócio Lázaro Báez, em troca de
benefícios obtidos em concessões de obras públicas. O pagamento teria sido feito através do aluguel
de quartos em hotéis administrados pela Hotesur.
78 Bonadio atribui a Cristina e a outros dos seus colaboradores processados crimes de “acobertamento
agravado pelo fato precedente e pela sua condição de funcionários públicos, estorvo de um ato
funcional e abuso de autoridade”. Segundo reportagem da Exame, “O juiz alega que esta “complexa
manobra” requereu “canais paralelos e privados de comunicação e negociação”, razão pela qual foi
necessária a intervenção de um grupo de cidadãos “estreitamente vinculado” com funcionários e
ex-funcionários dos governos que contribuíram, “na informalidade”, com as ações necessárias para
a concretização do plano”.
111
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
Outros exemplos:
79 Com as novas eleições presidenciais, após o fim do mandato de Cristina Kirchner, Macri foi eleito
presidente com 51,34% dos votos, encerrando os doze anos de governos kirchneristas no país.
112
Marxismo e América Latina
Além disso, Cristina foi considerada impopular por ser uma figura forte,
com um estilo de governar considerado “masculino”. Do mesmo modo, como
supracitado, Dilma foi também associada a estereótipos de histérica e fora de
si, bem como de “dura” e pouco carismática, que iam contra a ideia de uma
postura feminina “adequada”.
113
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
80 Sobre essa forma de manifestação, que torna invisível a verdadeira relação e mostra justamente o
contrário dela, repousam todas as concepções jurídicas tanto do trabalhador como do capitalista, todas
as mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as pequenas
mentiras apologéticas da Economia vulgar (MARX, 1985, p.130). “[...] o papel específico da ideologia
como instrumento da luta de classes é impedir que a dominação e a exploração sejam percebidas em
sua realidade concretas. Para tanto, é função da ideologia dissimular e ocultar a existência das divisões
sociais como divisões de classes, escondendo, assim, sua própria origem. Ou seja, a ideologia esconde
que nasceu da luta de classes para servir a uma classe na dominação.” (CHAUÍ, 1997, p.103)
81 “[...] uma classe é dominante em dois modos, isto é, ‘dirigente’ e ‘dominante’. É dirigente das classes
aliadas e dominante das classes adversarias. Por isso, já antes da chegada ao poder uma classe
pode ser ‘dirigente’ (e deve sê-lo); quando chega ao poder torna-se dominante, mas continua a ser
‘dirigente’” (GRAMSCI, 1977, p. 41).
114
Marxismo e América Latina
82 O que aparece claramente, pois, é que as nações desfavorecidas pela troca desigual não buscam tanto
corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria
um esforço redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas, antes, compensar a
perda de rendas gerada pelo comércio internacional, através do recurso a uma maior exploração do
trabalhador. (MARINI, 1973, p. 36-37). A maior exploração do trabalhador é a superexploração.
83 “Estudos marxistas mostraram que as políticas neoliberais implementadas através do reaganismo,
do thatcherismo e do (pós-)Consenso de Washington são, em grande medida, inspiradas pela
Escola de Chicago. Elas se apoiam em cinco plataformas ontológicas (Saad Filho & Johnston, 2005).
Em primeiro lugar, a dicotomia entre o Estado e os mercados, o que implica que estes são instituições rivais
e mutuamente exclusivas (é importante notar que essa dicotomia é rejeitada pelo ordoliberalismo).
Em segundo lugar, a suposição de que os mercados são eficientes, enquanto a intervenção estatal
necessariamente cria desperdícios porque ela distorce os preços e a alocação de recursos, induz
o comportamento rentista e promove o atraso tecnológico. Em terceiro lugar, a crença de que o
progresso técnico, a liberalização das finanças e dos movimentos de capital, a busca sistemática de
“valorização” para os acionistas e as sucessivas transições ao neoliberalismo criaram uma economia
mundial caracterizada pela rápida mobilidade do capital dentro de cada país e entre os países, e por
um processo mal definido de “globalização”. Onde eles são acolhidos, o crescimento econômico
necessariamente segue, e se acelera, através da prosperidade das empresas locais e da atração de
capital estrangeiro. Em contraste, a relutância ou a “excessiva” intervenção econômica estatal (como
quer que ela seja definida) afugenta o capital, os empregos e o crescimento econômico para outras
paragens (Kiely, 2005). Em quarto lugar, a presunção de que eficiência alocativa, a estabilidade
macroeconômica e o crescimento do produto estão condicionados à inflação baixa, o que é garantido
principalmente pela política monetária à custa das políticas fiscais, cambiais e industriais. Em
quinto lugar, a percepção de que a operação das principais políticas macroeconômicas neoliberais,
incluindo a “liberalização” do comércio, dos mercados financeiros e de trabalho, as metas de
inflação, a independência do Banco Central, o câmbio flutuante e as regras orçamentais restritivas,
está condicionada à oferta de garantias estatais potencialmente ilimitadas para o sistema financeiro,
uma vez que este é estruturalmente incapaz de se sustentar apesar de seu controle cada vez mais
extenso sobre os recursos da sociedade.”” (SAAD FILHO, 2015).
115
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
5. Considerações finais
Conclui-se, portanto, que de maneiras distintas, Dilma e Cristina en-
frentaram em seus processos um inimigo em comum: o capital, atrelado ao
patriarcado. A grande mídia, judiciário e partidos atuaram de maneira con-
junta para atribuir suas conquistas políticas institucionais constantemente a
homens, Lula no caso brasileiro e Néstor na experiência platina, ao passo que
84 No presente trabalho adota-se o termo “arma política” para representar aquilo que ordinariamente
não se presume como instrumento no campo da política.
116
Marxismo e América Latina
Referências
117
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
Cristina pide autorizo para que su hija termine tratamiento en Cuba. Dis-
ponível em: <http://www.la-epoca.com.bo/2019/04/01/cristina-pide-autorizo-
-para-que-su-hija-termine-tratamiento-en-cuba/>. Acesso em 10 maio. 2019.
118
Marxismo e América Latina
Macri, a los senadores: “No se dejen conducir por las locuras que impulsa
Cristina”. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/politica/macri-a-
-los-senadores-no-se-dejen-conducir-por-las-locuras-que-impulsa-cristina-
-nid2138625>. Acesso em 10 jun. 2019.
119
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
PEREIRA, Francisco. Karl Marx e o Direito: elementos para uma crítica marxis-
ta do direito. Salvador: LeMarx, 2015. Disponível em: <http://www.lemarx.faced.
ufba.br/arquivo/karl-marx-e-o-direito.pdf>. Acesso em 16 de mai. de 2019.
POMAR, Valter. Socialismo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2016. Co-
leção O que Saber.
120
Marxismo e América Latina
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Petrópolis, Ed. Vozes, 2000, p. 109.
121
Fábricas ocupadas: estudo comparado
de realidades latino-americanas
1. Introdução
Muitas foram as crises financeiras internacionais que ocorreram desde
1973, baseadas em questões de desenvolvimento urbano e propriedade (HAR-
VEY, 2011). A saída escolhida para lidar com essas crises foi o aprofundamen-
to do neoliberalismo87, principalmente na América Latina, tendo em vista a
sua incapacidade de continuar atendendo aos interesses dos Estados Unidos
no que diz respeito à dívida externa (BANDEIRA, 2002).
Paralelo a isto, o capital passou a se deslocar para onde havia trabalho
excedente, priorizando os locais onde a força de trabalho e as matérias-primas
fossem mais baratas. Esse fenômeno teve início na década de 60, foi se expan-
dindo e tornou-se irrefreável nos anos 90 (HARVEY, 2011).
A crise dos anos 90, marcada pela desindustrialização, reestruturação
produtiva e financeirização da América Latina (NOVAES, 2007), provocou o
abandono e fechamento de várias fábricas, surgindo inúmeros casos de fábri-
cas tomadas (ou recuperadas) por trabalhadores88. Embora este movimento
123
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
tenha sido muito forte na América Latina, (provavelmente pela força com a
qual foi atingida pela crise), outros locais também passaram por esse pro-
cesso, tendo em vista que, após a crise de 200889, a tomada de fábricas pelos
operários se espalhou pelo mundo, como consequência do fechamento das
empresas ou reação à realocação das mesmas em um país diferente.
Para Henriques et. al. (2013), esse fenômeno da tomada de fábricas pelos tra-
balhadores pode ser caracterizado como um processo social e econômico, cuja
materialização se dá pela existência de uma empresa capitalista enfrentando fa-
lência ou inviabilidade econômica, resultando na luta dos trabalhadores para geri-
-la, na grande maioria dos casos, a fim de proteger seus empregos em meio à crise.
As empresas recuperadas simbolizam, na perspectiva dos trabalhadores,
mais uma alternativa ao desemprego do que ao capital, apesar dos sonhos de
muitos ativistas. De fato, elas se configuram mais como um processo “inters-
ticial” de mudança sócio-produtiva - transformação no nível da unidade pro-
dutiva - do que uma estratégia de mudança social em nível sistêmico (REBÓN
E KASPARIAN, 2018).
Nesse sentido, a presente proposta tem por objetivo analisar quais os li-
mites e desafios da regulamentação das empresas ocupadas por trabalhado-
res, a partir de uma análise comparativa das experiências latino-americanas,
com ênfase no Brasil e Bolívia.
O método utilizado foi o materialista-histórico-dialético, pois buscamos
tecer análises a partir da realidade das ocupações de fábricas por trabalha-
dores, tentando perceber as suas contradições e limites dentro do processo
histórico e da totalidade social na qual se encontram inseridas. A pesquisa em
tela é exploratória, de natureza bibliográfica, ao utilizar referências teóricas já
publicadas e documental, através da análise de legislação pertinente ao tema,
documentos oficiais, matérias jornalísticas e outros materiais sem prévio tra-
tamento analítico (GERHARDT E SILVEIRA, 2009).
Trata-se de uma investigação qualitativa, pois procura compreender e
explicar a dinâmica das relações sociais que não podem ser quantificadas
(MINAYO, 2001). O presente trabalho é, também, produto do acúmulo sobre
marxismo e realidades latino-americanas, desenvolvido no âmbito do Grupo
89 Também conhecida como crise de subconsumo do capital, acontece quando há maior oferta de
produtos produzidos do que demanda para absorvê-los (HARVEY, 2011, p. 92).
124
Marxismo e América Latina
125
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
3. Experiências latino-americanas
No contexto latino-americano, pelos motivos já explicitados anterior-
mente, há inúmeras experiências. Na Argentina, país que se destaca na região
devido ao movimento de fábricas ocupadas, a Indústria de Metal e Plásticos
da Argentina (IMPA) parou de pagar os trabalhadores e os ameaçava constan-
temente de demissão. Após a ocupação da empresa, os operários nomearam
uma comissão diretiva e instalaram, em conjunto com a produção da fábrica,
um centro cultural (MACDONALD E SARDÁ DE FARIA, 2012).
Segundo Paulucci (2017), de acordo com levantamento realizado em maio
201790, a Argentina possuía, à época, 367 Empresas recuperadas por trabalhado-
res (ERTs), que empregavam cerca de 15.948 operários, sendo este um número
expressivo de empregos protegidos, de geração de renda e circulação de riqueza.
Um caso emblemático para este país foi o da Zanón, considerada por
muitos anos uma das fábricas de azulejo e porcelanato mais modernas da
América Latina. Após a demissão de 600 funcionários em 2001, os operários
saíram às ruas bradando a palavra de ordem: “os trabalhadores podem produ-
zir sem os patrões, mas os patrões não podem produzir sem os trabalhadores”.
A partir de então, surgiu a FaSinPat91 Zanón, que lutava pelo enquadramento
na Lei de Expropriação e pela estatização sob controle operário (MACDO-
NALD E SARDÁ DE FARIA, 2012).
Já a Inveval, na Venezuela, surgiu a partir da ocupação da Construtora Na-
cional de Válvulas, após o seu proprietário resolver fechá-la e, posteriormente,
reabrir com menos empregados e pagando salários menores. No Uruguai, a Ce-
rámica Olmos faliu após 75 anos de atividades e aqui os trabalhadores ocuparam
a fábrica e resistiram, organizando-se numa cooperativa e conseguindo aval judi-
cial para uso das instalações (MACDONALD E SARDÁ DE FARIA, 2012).
De acordo com Dagnino, Sardá de Faria, Novaes (2008, p. 126), seguindo
esta dinâmica da América Latina, o Brasil também possui muitas empresas
recuperadas por trabalhadores. As experiências brasileiras deixaram de ser
fenômenos isolados a partir dos anos 1990, “numa conjuntura defensiva do
126
Marxismo e América Latina
127
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
92 Disponíveis em <https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/economicas/comercio/9016-
estatisticas-do-cadastro-central-de-empresas.html?=&t=resultados>
128
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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
130
Marxismo e América Latina
131
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
5. Considerações finais
Conclui-se acerca das dificuldades de encontrar previsões normativas que
deem suporte jurídico às fábricas ocupadas mesmo diante do argumento da pro-
teção do direito ao trabalho, especialmente porque a ordem jurídica e econômica
vigentes acabam por desestimular este tipo de organização dos trabalhadores por
meio da tutela de institutos jurídicos que não condizem com este fenômeno da
ocupação. Outra barreira é que este processo tende a ir na contramão da ordem
estabelecida na sociedade capitalista, no que diz respeito à produção.
Diante disso, mesmo sendo experiências contra-hegemônicas, as fábricas
ocupadas resistem a partir das lutas dos trabalhadores na busca pela garantia dos
postos de trabalhos e pela manutenção de direitos trabalhistas, sofrendo com au-
sência de suporte jurídico-legal e de políticas públicas que possibilitem um ampa-
ro maior pelo Estado para continuarem desenvolvendo suas atividades.
De outro lado, elas também sofrem com a pressão estatal, seja pela via admi-
nistrativa, legislativa ou judicial, para que se encaixem nos padrões institucionais
já existentes na ordem jurídicas, como por exemplo, o cooperativismo. Esse mo-
delo é rechaçado pela assembleia diretiva de algumas fábricas atualmente ocupa-
das e por movimentos sociais que encampam essa luta. A principal justificativa é
que aceitando transfigurar-se em cooperativa, estariam abandonando as trinchei-
ras da luta pelos direitos trabalhistas, cedendo a pressão da pura e simples manu-
tenção dos postos de trabalho. Há também quem defenda que aceitar a condição
de cooperativa seria ceder às pressões do capital.
Ademais, ainda que estas fábricas autogeridas por trabalhadores não te-
nham, a princípio, o ideal de ser uma alternativa ao modo de produção capitalista,
mas sim um meio para evitar o desemprego, este fenômeno representa, na prática,
uma mudança na perspectiva das relações de produção à medida que traz um
caráter social quando se fundamenta na reprodução dos trabalhadores e não na
exploração destes que visa o lucro para os proprietários dos meios de produção.
Por fim, observa-se que há um caminho cheio de obstáculos, mas também
cheio de possibilidades para as fábricas ocupadas, tendo em vista sua existência e
os processos impulsionados pelos trabalhadores podem forçar o Estado a não só
reconhecê-las, mas também a dar-lhes proteção legal e incentivar a continuidade
de sua atividades por meio de políticas públicas e outros mecanismos de incentivo.
132
Marxismo e América Latina
Referências
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar um projeto de pesquisa. 4 ed. São Pau-
lo: Atlas, 2002.
133
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
NOVAES, Henrique T. De tsunami a marola: uma breve história das fábricas re-
cuperadas na América Latina. Lutas e Resistências. n. 2, p. 84-97. Londrina: 2007.
134
Marxismo e América Latina
135
Feminismos, Bolívia e Política:
impactos da representação feminina
parlamentar na vida das mulheres
1. Introdução
A Bolívia figura no cenário internacional, de acordo com os levantamentos
realizados pela Inter Parliamentary Union em parceria com a ONU Mulheres,
como o terceiro país do ranking em igualdade de participação política entre ho-
mens e mulheres no Parlamento. O Estado plurinacional boliviano fica atrás ape-
nas de Ruanda e Cuba, segundo país da lista. Contudo, o mesmo estudo aponta
que nos cargos ministeriais e de representação do executivo essa equiparação des-
penca, levando o país para a 123ª (centésima vigésima terceira) posição.
Esse dado contradiz diretamente o texto constitucional da Constitución
Política del Estado (CPE) de 2009 que, em seu artigo 172, item 22, determina
que os ministros e ministras devem ser nomeados respeitando-se a igualdade
entre homens e mulheres. Apesar da norma avançada, esse contraste demons-
tra que as assimetrias políticas entre homens e mulheres persistem no terri-
tório boliviano e apontam para a necessidade de investigar os efeitos que essa
137
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
99 “Ora, raciocinar em termos de categorias sociais ou de classes de sexo exige uma verdadeira ruptura
com o naturalismo e com uma definição puramente biológica dos sexos. Dizer que as relações
entre os sexos constituem uma relação social significa afirmar, ao mesmo tempo, que ambos
formam um sistema. Presentes em todas as esferas da sociedade, as relações de sexo a estruturam
e organizam do mesmo modo que as relações de classe ou de raça. Essas relações sociais de sexo
possuem quatro características: 1. São antagônicas, relações de força que opõem os dois grupos em
questão, um procurando manter sua dominação e o outro tentando libertar-se; 2. São transversais,
não se limitando a uma esfera da sociedade e não se baseando, como se pretende com frequência,
principalmente na família; 3. São dinâmicas e historicamente construídas e o resultado de uma
correlação de forças em movimento contínuo. Afirmar que a dominação masculina pode ser
encontrada em todas as sociedades não significa que ela constitua um «invariante»: é uma
construção sócio-histórica, podendo, portanto, ser subvertida. Homens e mulheres nascem dentro
de uma sociedade definida por relações sociais de sexo, mas todos participam da produção e da
reprodução dessas relações. 4. Elas bicategorizam, definindo de forma hierárquica as categorias
sociais de sexo, ou seja, atribuem posições para os homens e as mulheres na sociedade” (RIAL;
LAGO; GROSSI, 2005, p. 677).
100 PNUD Bolívia. Objetivos de desarrollo sostenible, objetivo 5: igualdad de género. Disponível em <
http://www.bo.undp.org/content/bolivia/es/home/sustainable-development-goals/goal-5-gender-
equality.html> Acesso em 24 de abr. de 2019.
138
Marxismo e América Latina
101 “O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo normal com que se
constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia
social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural” (ALMEIDA, 2018, p.38).
102 Segundo Ferreira (2013, p. 255) “O colonialismo como fenômeno antecede o capitalismo enquanto
sistema mundial e o acompanha como “política” em suas diferentes fases de desenvolvimento. A
expansão europeia do século XVI tem o colonialismo como seu componente central e são as relações
de produção e acumulação primitiva e demais processos históricos engendrados nesse contexto que
tornaram o capitalismo possível como “modo de produção”. Por outro lado, o capitalismo estendeu
as relações coloniais sobre o espaço e as formas sociais, atualizando-o como componente estrutural
de seu próprio sistema e amplificando de forma nunca antes vista sua dimensão e significado,
tornando-o onipresente na história das diferentes sociedades”.
103 “El proceso de cambio creó una matriz explicativa y organizadora del mundo: Estado plurinacional,
igualdad de naciones y pueblos indígenas, economía plural con liderazgo estatal, autonomías. Hoy,
izquierdas y derechas se mueven en torno a esos parámetros interpretativos que regulan el campo de
lo posible y lo deseado socialmente aceptado” (LINERA, 2016, web).
139
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
104 “Nem todas as organizações do movimento de mulheres definem-se como parte do movimento
feminista. Sabemos que há mulheres em todos os movimentos sociais, mas nem todos os movimentos
sociais enfrentam os problemas da situação das mulheres. Também nem todas as mulheres refletem
sobre a situação de dominação e exploração que nós vivemos. Por isto, nem todas apoiam as causas
feministas. Assim, embora, sejamos todas mulheres lutando pelas mulheres, o que nos faz a todas,
em certo sentido, feministas, existe ainda muito desconhecimento, algumas desconfianças e posições
antifeministas dentro do próprio movimento de mulheres. Por isto, tende-se a considerar o feminismo
como parte do movimento de mulheres, mas não como sendo a mesma coisa. São feministas aquelas
mulheres e organizações que se definam assim” (SILVA; CAMURÇA, 2010, p. 11).
105 Segundo Saffioti (2004), o patriarcado é um sistema de opressão e exploração das mulheres, onde o
machismo é uma de suas expressões.
106 Em suas palavras “estas mujeres y sus lides no son generalmente incorporadas en la historia del
feminismo, salvo como figuras individuales: Bartolina Sisa, Gregoria Apaza, Juana Azurduy de
Padilla” (AILLÓN, 2015, p. 11).
107 Segundo Bobbio (1998, p.354), “os direitos políticos, (liberdade de associação nos partidos, direitos
eleitorais) estão ligados à formação do Estado democrático representativo e implicam uma liberdade
ativa, uma participação dos cidadãos na determinação dos objetivos políticos do Estado”.
140
Marxismo e América Latina
108 Nos ditos da autora: “mientras que las mujeres de clases alta y media que pertenecían a los Centros
Intelectuales y Artísticos pedían el derecho al voto para las mujeres que supiesen leer y escribir,
las sindicalistas que pertenecían a las clases bajas de la sociedad tenían reivindicaciones sociales
tales como el trabajo de 8 horas diario, leyes que protejan a las mujeres y niños en el trabajo, etc.”
(GÍMENEZ, 2011, p.7).
109 “Paraguai e Bolívia enfrentaram-se em torno da posse da região por motivos econômicos,
sobretudo no caso do Paraguai, e por motivos estratégicos, precipuamente no caso da Bolívia que
teria, com a tomada do Chaco, acesso à bacia platina e, assim, maior facilidade de escoamento para
a sua produção petrolífera. A deflagração do conflito envolveu mais diretamente os interesses da
Argentina e do Brasil, que tiveram importante papel no desenrolar e na conclusão da Guerra do
Chaco” (BANDEIRA, 1988, p.168).
110 “A partir de Weimar (e da Constituição do México, de 1917), a característica essencial das
constituições do século XX passa a ser o seu caráter diretivo ou programático, que incorpora
conteúdos de política econômica e social. Esta característica é fruto da democracia de massas. A
tentativa de incorporação da totalidade do povo no Estado passa a exigir a presença de uma série
de dispositivos constitucionais que visam a alterar ou transformar a realidade sócio-econômica”
(BERCOVICI, 2008, p. 31).
141
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
das”, como Gímenez (2011) chama atenção, agiam dentro dos ditames da ins-
titucionalidade, buscando alianças com os homens e organizações dirigentes
para alcançar seu objetivo.
A conquista do voto feminino na Bolívia explicita esse caráter, uma vez
que as mulheres que poderiam exercer os direitos políticos deveriam saber
ler e escrever. Assim, a participação política possuía um filtro determinante:
as mulheres poderiam até compor os espaços da democracia representativa
institucional, mas não eram quaisquer mulheres. Era necessário ter a cor e a
classe certa – a das elites dirigentes111.
A autora aponta ainda que no período entre o fim da Guerra del Chaco
até a década de 1980, as mulheres – camponesas, indígenas e urbanas – passa-
ram a se organizar em movimentos nacionalistas e marxistas, o que culminou
no surgimento do feminismo moderno boliviano. Esse período é marcado por
uma disputa no campo das organizações de esquerda sobre o papel da luta
das mulheres. Existiam, também, setores marxistas e nacionalistas que enten-
diam que as questões relacionadas as desigualdades entre homens e mulheres
deveriam ocupar o segundo plano na luta de classes, defendendo que esses
debates seriam distrações, ou ainda que o feminismo estaria vinculado ao co-
lonialismo e o capitalismo, devendo ser combatidos (AILLÓN, 2015).
Esse “feminismo boliviano moderno” é explicado por Zabala (2012)112
em três grandes períodos e aponta as principais características da organização
das mulheres bolivianas em cada um. O que marca os 1980 é o lema “o pessoal
é político”, refletindo uma posição preponderante do feminismo ocidental. As
111 Como assinala Aillón (2015): “con todo, [...] entre los hitos iniciales del feminismo en Bolivia,
ha establecido la imagen de dos versiones del feminismo boliviano: una, adscrita a la teoría y el
movimiento feminista pero abrazada por mujeres de clase media y media alta; y la otra, adscrita
a las reivindicaciones más bien obreras y étnicas y abrazada por mujeres indígenas urbanas. Este
hecho, que será calificado como la ausencia del análisis étnico en el feminismo o la ausencia del
análisis de género en las reivindicaciones [...] se convertirá em una tónica en las disputas al interior
del feminismo y el movimiento de mujeres en Bolivia hasta la actualidad” (AILLON, 2015, p.13).
112 “El primer período corresponde al decenio de 1980, que marca el momento de la salida de los
regímenes de corte militar autoritario y la transición hacia la democracia. El segundo, a inicios de los
años noventa con la consolidación de la democracia liberal representativa en un contexto de reformas
estatales y de consolidación de políticas de corte neoliberal y, finalmente, el tercero, acompañado
por el cambio de siglo, en el que la crisis de la democracia representativa da lugar a un proceso de
refundación estatal bajo la hegemonía de nuevos actores sociales que reivindican nuevos lazos de
convivencia social basados en el reconocimiento de las diferencias étnicas y culturales en un país
abigarrado como es el caso de Bolivia” (ZABALA, 2012, p. 278).
142
Marxismo e América Latina
113 Zabala (2012) explica que: “sin intentar reeditar una mirada maniquea ni pretender homogeneizar las
distintas posiciones o estrategias feministas, es evidente que algunas, como las “autónomas”, perfilan su
campo discursivo y político privilegiando de modo exclusivo a la sociedad civil, mientras que las feministas
“institucionalizadas” lo hacen desde las ONG y ponen el acento en su capacidad de incidir y negociar con
el espacio público estatal. Esto no solamente porque su interlocución compromete escenarios globales que
convierten las cumbres y conferencias mundiales en palestras para potenciar y legitimar las iniciativas
nacionales en pos de afirmar los derechos de las mujeres” (ZABALA, 2012, p. 281).
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114 Ainda conforme a autora, “con una institucionalidad desbordada por la acumulación de protestas y
rebeldía, Bolivia es testigo de la emergencia de nuevos actores sociales que se despliegan y se apropian
del espacio público, actualizando demandas de participación, de democratización de redistribución
del excedente, de derechos colectivos y autodeterminación de los pueblos indígenas. La Asamblea
Constituyente se convierte en el escenario privilegiado para canalizar estos impulsos y producir un
nuevo pacto social que permita refundar el país sobre la base de una nueva institucionalidad estatal
que responda a los cambios sociales, políticos, económicos y culturales y a los rezagos y tensiones que
expresan la emergencia de nuevas identidades étnicas y de género, con demandas de participación y
reconocimiento” (ZABALA, 2012, p.284).
115 La Confederación de Mujeres Campesinas Indígenas Originarias de Bolivia “Bartolina Sisa”. O nome
da organização celebra Bartolina Sisa, mulher indígena aimará, que foi esposa de Tupac Katari e
juntos organizaram a resistência indígena ao processo colonizador.
116 CPE 2009, Artigo 8, II; Artigo 14, II; Artigo 15, III; Artigo 79; Artigo 104; Artigo 172, 22; Artigo 270;
Artigo 278.
144
Marxismo e América Latina
Apesar das divergências apontadas pela autora com os demais grupos fe-
ministas117, notadamente por ser a maior organização de mulheres na Bolívia,
segundo Echevarría (2015), as Bartolinas tem um peso diferenciado na susten-
tação do Proceso de cambio. Seu perfil organizativo – mulheres indígenas da
classe trabalhadora – e seu impacto histórico no processo de transformação
da política boliviana produzem a aproximação necessária entre os feminis-
mos plurais daquele país com as necessidades das mulheres.
A união entre as pautas tradicionalmente tratadas por um movimento
feminista elitizado encontra nas Bartolinas a ressignificação da luta por re-
presentação. Esse momento inaugura o terceiro período, o de refundação do
Estado. Zabala (2012) assinala que esse momento histórico é singular por unir
a pluralidade do movimento de mulheres e feminista boliviano desde o mo-
mento da convocação da constituinte até seu desenrolar. Assim, o argumento
central das mulheres gira em torno na paridade na representação institucional
que tem, entre outras repercussões:
Con la fórmula de la paridad actuando en un sistema de instituciones
liberal representativas, la articulación amplia de mujeres se asegura va-
rias cosas. Primero, contrarrestar la apariencia de un mercado político
que se muestra como neutro, regulando los intercambios de los actores
políticos sin preferencias y sin favorecer a nadie en particular. Segundo,
hacer efectivo el derecho a la elegibilidad de las mujeres, es decir, garan-
tizar que los resultados electorales ya no sean fruto del azar o de los capi-
tales simbólicos o materiales que entran en juego, sino que se conviertan
em previsibles: mitad hombres y mitad mujeres. Ya no es el mercado
político o la voluntad de las organizaciones del sistema político las que
deben garantizar la presencia de esa otra diversidad que constituyen las
mujeres, sino un nuevo pacto social entre el Estado y el colectivo de las
mujeres (ZABALA, 2012, p.287).
117 Segundo Echevarrría (2015) “Los argumentos esgrimidos por las Mujeres Presentes en la Historia
(feministas, representantes de partidos políticos, mujeres provenientes de las ONG) se sustentaron
en teorías del feminismo europeo; los esgrimidos por las “Bartolinas” en la noción andina del
chacha-warmi. “Para muchas líderes indígenas la reivindicación de la paridad se afianzó buscando
similitudes con la noción andina de chacha-warmi, o de la complementariedad entre hombre y mujer”
(Zabala, 2014:98). Ya posteriormente, el tema de la paridad se consolidó en la Constitución Política del
Estado y en una serie de leyes articuladas que hicieron posible para las mujeres, finalmente, alcanzar
en las últimas elecciones el 51% en la cámara de diputados y el 44% en la cámara de senadores”
(ECHEVARRÍA, 2015, p.23).
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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
A própria autora aponta que, por mais que as mulheres agora tenham
espaços reservados, a lógica da reprodução patriarcal persiste. A defesa das
pautas vinculadas as mulheres é atravessada pela forte pressão dos costumes
e as lideranças femininas ainda tem tratamento diferenciado e acompanha-
mento próximo da tutela masculina. As diferenças entre as táticas adotadas
pelo movimento feminista e de mulheres na Bolívia foram fundamentais para
contornar o novo Estado que persiste em seu Proceso de cambio, e que como
todo processo dialético, encerra contradições e dilemas.
146
Marxismo e América Latina
isso, no ano de 2010, segundo González y Sample (2010, p. 17, apud Gigena,
2014, p. 114), em 2010 foi alcançada uma porcentagem de 25.4% de mulheres
parlamentares, acima da média da América Latina de 20.85%. Em 2010, quan-
do a Bolívia contava com um avanço considerável no que se refere às mulheres
presentes na política, a “lei de cuotas” passou por uma reforma. O seu artigo
11, que trata da equivalência, possui o seguinte texto:
A Democracia intercultural boliviana garante a equidade de gênero e a
igualdade de oportunidades entre mulheres e homens. As autoridades
eleitorais competentes estão obrigadas ao seu cumprimento, conforme
os seguintes critérios básicos: a) As listas de candidatas e candidatos a
Senadoras e Senadores, Deputadas e Deputados, membros das Assem-
bleias Departamentais e Regionais, Conselheiras e Conselheiros Mu-
nicipais e outras autoridades eletivas, titulares e suplentes, respeitarão
a paridade e alternância de gênero entre mulheres e homens, de tal ma-
neira que exista uma candidata titular mulher e, em continuidade, um
candidato titular homem; um candidato suplente homem e, em conti-
nuidade, uma candidata suplente mulher, de maneira sucessiva. b) Nos
casos de eleição de apenas uma candidatura em uma circunscrição, a
igualdade, paridade e alternância de gênero se expressará em titulares
e suplentes. No total das referidas circunscrições, ao menos cinquenta
por cento (50%) das candidaturas titulares pertencerão às mulheres. c)
As listas de candidatas e candidatos das nações e povos indígenas de
origem camponesa, elaboradas de acordo com as suas normas e proce-
dimentos próprios, respeitarão os princípios mencionados no parágra-
fo precedente (Tradução livre das autoras).
Além disso, como consta no artigo 107, sobre o artigo 11: “o descum-
primento desta disposição dará lugar à não admissão da lista completa de
candidaturas, caso em que se notificará a rejeição à organização política, que
deverá emendar em um prazo máximo de setenta e duas (72) horas contados
de sua notificação”. Ou seja, a reforma sofrida pela Lei de Cotas boliviana em
2010 proporcionou ainda mais avanços no que se refere a assegurar que as
mulheres ocupem esses espaços, fazendo com que as candidaturas masculinas
deixem de ser predominantes.
Adicionalmente a Lei de cotas, com relação às medidas que buscavam a
modernização do Regime Eleitoral, foi criada, em 1999, “La Ley de Partidos
Políticos” que, conforme Gonzáles (2001, p. 26), “regula la organización, fun-
cionamiento, reconocimiento, registro y extinción de los partidos políticos, así
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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
como las alianzas entre ellos em los procesos políticos de representación.” Essa
lei representou um considerável avanço em termos de igualdade de gênero,
repelindo discriminações referentes à idade, etnia e cultura. O que ela deter-
minou em seu texto foi a designação de 30% de participação feminina, tanto
nos níveis de direção partidária, como nas candidaturas eleitorais.
Também em 1999, foi aprovada a “Ley de Municipalidades”, que buscou
promover, nos municípios, a equidade e o desenvolvimento humano, sendo
uma de suas competências a promoção da participação feminina. Em 2004,
buscando aumentar a representatividade, foi aprovada a “Ley de Agrupaciones
Ciudadanas y Pueblos Indígenas”. Consoante Gonzáles (2001, p.27):
Esta disposición se propone romper con el monopolio de los partidos po-
líticos como representantes exclusivos de la sociedade civil en su relación
con el Estado, a partir de la emergencia de dos nuevos actores: las agru-
paciones ciudadanas y los pueblos indígenas (GONZÁLES, 2001, p.27).
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118 Havia um número considerável de mulheres representando as circunscrições por população (42%), mas um
baixo número de mulheres que representavam as circunscrições por território e indígenas (17%). (Dados do
Observatorio de Género com base em dados da CNE, elaborados pela Coordinadora de la Mujer).
150
Marxismo e América Latina
119 Podendo se destacar aqui a Lei 348, de 09 de março de 2013 que dispõe sobre a violência no sistema
educativo (art. 7.12), no trabalho (art. 11) e nos serviços de saúde (art. 7.9), violência contra os
direitos reprodutivos (art. 7.8) (INE, 2017, p. 19)
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120 La Ley 243, de 28 de mayo de 2012, denominada: Ley contra ela Acoso y la Violência Politica hacia las Mujeres.
121 Disponível em: <https://oig.cepal.org/pt/indicadores/poder-executivo-porcentagem-mulheres-
nos-gabinetes-ministeriais> Acesso em 15 de jul. de 2019.
122 Disponível em <https://oig.cepal.org/pt/indicadores/mulheres-prefeitas-eleitas> Acesso em 15 de
jul. de 2019.
152
Marxismo e América Latina
O INE (2017) aponta em pesquisa que mulheres nas áreas urbanas e ru-
rais são vítimas de violência doméstica e familiar, correspondendo um per-
centual de 71,3% de mulheres vítimas na área urbana e 82,5% na área rural.
Desse percentual, os tipos de violência com maior ocorrência são a psicológica
(92,7%), física (67,3%), sexual (45,5%) e econômica (41,8%) (INE, 2016, p. 33).
O INE aponta, ainda, que:
En Bolivia, el 81,2 por ciento de las mujeres separadas, divorciadas y
viudas de 15 años o más sufrieron violencia psicológica; el 68,2 por cien-
to violencia física; el 61,2 por ciento violencia económica y el 48,2 por
ciento violencia sexual todas estas agresiones fueron perpetradas por
parte de su ex pareja (INE, 2017, p. 36).
123 68,3% Hospital Público; 64,2% em Hospital de la seguridade social; 35,4% Clínica Privada (INE, 2017, p. 49)
124 Encuesta de Prevalencia y Características de la Violencia contra las Mujeres.
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promovam o acesso à terra para as mulheres. Para além do que afirma a Se-
nadora, é importante medidas educativas e políticas públicas que promovam
a transformação cultural patriarcal, de forma a dar maior efetividades às leis.
Além disso, a pouca representatividade de mulheres no âmbito do Poder Exe-
cutivo interfere no problema da efetivação das leis, pois é no executivo que se
implementam as políticas públicas.
5. Considerações finais
Identificamos que a Bolívia tem produzido legislações inovadoras, reco-
nhecendo a violência institucional contra a mulher e a necessidade de enfren-
tar o patriarcado de maneira estrutural. A presença feminina nas instâncias
parlamentares tem se provado um importante espaço para o desenvolvimento
de melhores condições de vida para as bolivianas.
Essas alterações são resultado de um acúmulo extenso de lutas feministas
desenvolvidas no país andino, que estão longe de se encerrarem. As múltiplas vi-
sões do papel das mulheres ao longo da sua história colocaram as mulheres como
protagonistas da refundação do Estado, reconhecendo o debate das relações de
sexo como elemento central, e não incidental, no processo de luta de classes.
Contudo, as limitações estão presentes. As necessidades de combater a
condição de fragilidade das mulheres que vivem na Bolívia variam de acordo
com a posição de pertencimento de classe, raça e território. A organização
política segue sendo o denominador comum entre essas sujeitas plurais. A luta
das Bartolinas Sisa se encontra com as Mujeres Creando, especialmente na
arena da institucionalidade que aquele país decidiu enfrentar como uma ins-
tância na construção do Proceso de cambio. Portanto, ainda com limitações e
desafios, a Bolívia segue um importante caminho na luta contra o machismo,
o sistema patriarcal, bem como ao Capitalismo.
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Marxismo e América Latina
Referências
CAMBIO. Evo promulga la ley de abreviación penal que acabará con la re-
tardación de justicia. Estado Plurinacional de Bolivia, 2019. Disponível em
<http://www.cambio.bo/?q=node/65395> Acesso em 08 mai. 2019
157
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes
________. Población sin ingresos propios por sexo. América Latina (17 paí-
ses): Población sin ingresos propios por sexo, alrededor de 2017 (En porcentajes).
Disponível em:< https://oig.cepal.org/es/indicadores/poblacion-sin-ingresos-
-propios-sexo>.Acesso em 05 mai. 2019.
158
Marxismo e América Latina
ONU MUJERES. Bolivia: violência política por razón de género. 2017, p. 127
a 135. In
RIAL, Carmen; LAGO, Mara Coelho de Souza; GROSSI, Miriam Pillar. Rela-
ções sociais de sexo e relações de gênero: entrevista com Michèle Ferrand. Re-
vista Estudos Feministas. v. 13, n. 3, p. 677-690, 2005.
159
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________. Los objetivos de la lucha: de las cuotas hacia una “política de la pre-
sencia” in MONTES, Patricia. Pensando los feminismos en Bolivia. Bolívia,
La Paz: Conexión Fondo de Emancipación, 2
160
A Função Eleitoral no Equador
e na Bolívia: avanços e contradições
1. Introdução
A Venezuela, a Bolívia e o Equador passaram, nas últimas décadas, por
radicais processos de transformação política, marcados pela presença de no-
vas constituições. Essas novas Cartas magnas decorreram da ação política de
partidos, movimentos, em cada uma dessas realidades.
Nessa perspectiva, o contexto de dominação imperialista132 nos países su-
pracitados foi crucial para a insurgência de movimentos que buscavam a prote-
ção de seus territórios e um modelo de sociedade mais igualitário. Nesse sentido,
as novas constituições desses países são consequências da correlação de forças
de classes sociais. Decorrem de movimentos que questionaram a hegemonia do
modo de produção e produziram avanços no continente, sem haver, contudo,
uma subversão completa da forma como os meios de produção se repartem.
129 Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC) e extensionista do Centro de Referência
em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH Semiárido). E-mail: vitorcarlosnunes@hotmail.com
130 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC) e extensionista do Centro de Referência
em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH Semiárido). E-mail: leticiafernandes1277@gmail.com
131 Mestrando em Educação pelo PPGFPPI – UPE, membro do Grupo de Estudos em Direito Crítico,
Marxismo e América Latina (GEDIC). E-mail: patrickaraujo@gmail.com
132 O imperialismo é uma relação de poder entre as burguesias externas e nacionais. Os países latino-
americanos são frutos de um processo de expansão ocidental, que teve início com a chegada dos
portugueses e espanhóis, e adquiriu novas formas a partir da independência das nações latinas.
Segundo Florestan Fernandes (2009), esse processo está relacionado à evolução do capitalismo e
à incapacidade dos países latino-americanos de impedir sua incorporação dependente ao espaço
econômico, cultural e político das sucessivas nações capitalistas hegemônicas.
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133 Conforme Pedro Bocca, Fátima Mello e Gonzalo Berrón (2016), o lado oposto, que defendia o “não”,
era liderado por partidos tradicionais de direita. As críticas ao novo texto constitucional eram no
sentido de que esse fortaleceria o papel do Estado e era norteado por ideologias qualificadas pela
oposição com marxistas e bolivarianas.
134 De acordo com Maldonado Bravo (2019), o Bem viver é uma perspectiva de vida que vai de encontro
ao atual sistema capitalista de exploração humana e da natureza, sendo pautado um resgate das
culturas andino-amazônicas e suas formas de sociabilidade.
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135 Faz-se importante mencionar que existe uma discussão acadêmica acerca do uso dos termos
“poder” e “função”. Esse embate teórico se dá pelo de que alguns autores relacionam “poder” com
suas origens advindas de governos e que tal carregaria o peso da temeridade e um ideário separatista
que este carregava na época citada. Assim, há neste texto também uma preferência pelo uso do
termo “função”, por adotar um entendimento de que este traria uma maior relação com as novas
qualidades que tal deve representar, caracterizadas pela distinção, coordenação e colaboração.
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Isso posto, Luís Felipe Miguel (2002) argumenta que há uma incompa-
tibilidade entre a ideia de democracia como governo do povo e a ligada ao
processo eleitoral, visto que, na Grécia Antiga, como todos os cidadãos eram
iguais, as eleições não ocorriam, havendo, na verdade, sorteios. Somado a isso,
“as decisões políticas são tomadas por uma minoria, via de regra mais rica
e mais instruída do que os cidadãos comuns, e com forte tendência à here-
ditariedade” (MIGUEL, 2002, p.484). Assim sendo, o autor demonstra que
o fato de uma minoria tomar as decisões há uma grande incoerência com o
quê a palavra democracia carrega: uma forma de organização política em que
a igualdade potencial de todos os cidadãos faz com que esses coletivamente
decidem seus destinos (MIGUEL, 2002, p.484).
A ideia de democracia pautada em eleições periódicas é, portanto, bastante
limitada, pois a população, que exerce o direito ao voto de tempos em tempos,
apenas escolhe uma dentre as poucas opções que já foram pré-estabelecidas por
grupos políticos, tendo uma participação bastante restrita. Ademais, conforme
Luís Felipe Miguel (2000), há o problema da crise de legitimidade da represen-
tação política, que tanto está relacionada a casos de corrupção, como à descon-
fiança aos partidos políticos e aos parlamentos. Quanto a isso, afirma o autor:
Há, na esmagadora maioria dos parlamentos do mundo, uma parti-
cipação desproporcional de homens, integrantes da etnia dominante,
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136 Projeto político que é representado por Rafael Correa, é a consigna adotada por seu governo.
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ou bom viver. Os dois governos erigiram grande parte de seus programas sobre
a noção de uma nova sociedade, na qual a natureza ocuparia lugar privilegiado.
A ideia do “Buen Vivir”, trazida ao horizonte da política equatoriana pelo
movimento indígena e por setores ambientalistas foi protagonista da
Constituição Cidadã e da estruturação do governo Correa. A noção da
natureza como sujeito de direitos, a crítica ao capitalismo, ao extrativismo
e à especulação neoliberal e uma proposta de desenvolvimento sustentável
ao país unificaram amplos setores da sociedade (da classe média às comu-
nidades indígenas) em um horizonte transformador (BOCCA, 2017).
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5. Considerações Finais
É perceptível, portanto, que o contexto de luta de classes na Bolívia e no
Equador propiciaram o surgimento de um projeto político que visava a proteção
de seus territórios e a defesa de necessidades vitais. Desse modo, as novas consti-
tuições são apenas uma das consequências da insurgência das classes subalternas.
A partir disso, as novas constituições da Bolívia (2009) e Equador (2008),
em certa medida, não seguem o modelo advindo das revoluções burguesas da
tripartição de poderes, esse tem como características os pesos e contrapesos
entre os poderes e materializa uma democracia de baixa intensidade, a liberal-
-representativa. Isso ocorre com o surgimento da Função eleitoral, que tira
do judiciário as questões referentes às eleições e à participação popular na
política. Tal fato ganha ainda mais importância ao levar em conta que, histo-
ricamente, quem ocupa espaços na Função Judicial são indivíduos das elites
ou pertencentes às classes dominantes.
Desse modo, as novas Cartas constitucionais, ao delimitarem a Função eleito-
ral, em certa medida rompem com a lógica de democracia restrita às eleições, con-
tendo mecanismos que favorecem a participação popular na política, bem como
contribuem para que haja uma maior participação política de mulheres e povos
originários. Nesse sentido, é imprescindível destacar que o sujeito que reconhece os
direitos indígenas é o sujeito indígena (GARCÍA-LÍNERA, 2017, p. 357), essa cons-
tatação é fundamental pois está relacionada ao fato de as Constituições terem uma
relação direta com o contexto das lutas populares na Bolívia e Equador.
Quanto aos avanços e contradições da Função eleitoral aqui em análise,
nota-se que há importantes avanços ao tirar as questões eleitorais do judici-
ário, favorecer uma maior participação da população na política, não sendo
essa restrita às eleições, bem como ao incentivar a participação feminina e
indígena na política. Contudo, é imprescindível ressaltar e compreender as
contradições nesse processo, que estão relacionadas a problemas do modo de
capitalista de produção e à luta em defesa do meio ambiente.
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Referências
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FLORES, Fidel Pérez; CUNHA FILHO, Clayton M.; COELHO, André Luiz. A
construção de um novo modelo de Estado democrático na Venezuela, Equa-
dor e Bolívia: características, entraves e contradições. In: XIV CISO – EN-
CONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE. Recife, 2009.
FUSER, Igor. Bolívia. – São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2016.
VALENÇA, Daniel Araújo; PAIVA, Ilana Lemos de. Álvaro García Linera: um
relato do proceso de cambio e desafios da esquerda marxista latinoamerica-
na. Entrevista com Álvaro García Linera, Vice Presidente da Bolívia. Revista
Culturas Jurídicas, Vol. 4, n. 8, mai./ago., 2017.
178
Políticas de transferência de renda na
América Latina: uma análise comparativa
entre a experiência brasileira e a boliviana
1. Introdução
O sistema capitalista impõe seus paradigmas de dominação das classes me-
nos favorecidas exercendo influência em diversos setores da sociedade, em espe-
cial o aparato das burocracias estatais, que representam espaços de disputa entre
os grupos de interesse pertencentes aos diversos segmentos sociais. Neste ínterim
a disputa entre os setores da sociedade para priorização de pautas referentes ao
atendimento de suas necessidades por parte do Estado, expõem os conflitos entre
as classes mais privilegiadas e menos favorecidas por espaço para a contemplação
de suas demandas por parte das políticas públicas formuladas pelo estado.
Na América latina o poder das classes dirigentes configurou-se de vá-
rias formas. Em especial, a partir das oligarquias familiares, que se caracteri-
zam pela ocupação de posições de destaque em setores econômicos e políticos
(AKOTIRENE, 2018; FERNANDES,1998). Tal característica está diretamente
vinculada ao processo de colonização do território, construído a partir da ex-
ploração massiva dos recursos naturais e da mão de obra dos trabalhadores
(ALMEIDA, 2018; FLEURY, 2007; PENA et al, 2015).
Assim, as desigualdades sociais não se restringem apenas ao caráter econô-
mico, também estão relacionadas aos elementos da trajetória histórica, cultural
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(Bolívia, 2007): “Se amplía los beneficiarios del Bono “Juancito Pinto” hasta el
sexto (6to) de primaria, incluidos los alumnos de Educación Especial y los niños
o niñas de Educación Juvenil Alternativa”. Redefine uma nova regra sobre o
pagamento do auxílio, que no momento passa a ser feito em apenas uma par-
cela, não mais em duas parcelas como previa o decreto anterior.
O Decreto N° 29321 dispõe em seu artigo 5° sobre as “Responsabilidades
de la Unidad Ejecutora”, ou seja, sobre as regras que deveriam ser seguidas
pela execução do programa. Um dos pontos desse artigo está relacionado à
necessidade de se criar mecanismos para efetuar o pagamento do Bono. Dis-
põe-se também sobre a elaboração e atualização de uma base de dados com os
usuários do programa. O texto cita a necessidade de se criar uma equipe téc-
nica interinstitucional, com membros do Ministério da Presidência, Ministé-
rio da Defesa Nacional, Ministério da Justiça, Ministério do Planejamento do
Desenvolvimento e do Ministério da Fazenda.
A remuneração do auxílio é feita a um responsável legal, já que (com
exceção dos estudantes de Centros de Educação Especial) os beneficiários do
programa são menores de 18 anos, no entanto, estes precisam estar presentes
no momento do pagamento. E, para se encaixar como beneficiário, o aluno
precisa obter uma frequência regular de pelo menos 80% de suas aulas du-
rante o ano letivo. Dessa forma, o programa exige um retorno por parte dos
usuários, que precisam manter regularidade em sua frequência escolar para
se tornarem aptos ao Bono.
No ano de 2018, segundo o Ministerio de Educación del Estado Plurina-
cional de Bolivia139 o orçamento utilizado para o pagamento do Bono Juancito
Pinto (461.000.000,00 bolivianos) advém da receita de estatais; não havendo
a necessidade de se recorrer aos recursos do Tesouro Nacional. E, desse or-
çamento, 47,72% (220.000.000 bolivianos) veio da Yacimientos Petrolíferos
Fiscales Bolivianos – YPFB, estatal responsável pela exploração do petróleo,
21.69% (100.000.000 bolivianos) da Empresa Nacional de Telecomunicaciones
– ENTEL e o restante dividido entre múltiplas empresas nacionalizadas.
139 Cf. Ministério da Educação, Governo do Estado Plurinacional da Bolívia. Disponível em: https://
www.minedu.gob.bo/index.php?option=com_content&view=article&id=3506&catid=246&Item
id=470. Acesso em: 16 de jul. de 2019.
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4. Considerações finais
As políticas públicas direcionadas a transferência de renda em contextos
de alta vulnerabilidade social como os existentes na América Latina. Em desta-
que, as experiências na execução do Programa Bolsa Família no Brasil e do con-
junto de Bonos que integram os programas sociais implementados pelo estado
boliviano. Em particular o objeto deste estudo o Bono Juancito Pinto, representa
um marco nas ações de combate a pobreza e as desigualdades sociais na região.
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Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Le-
tramento,2018.
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Questão Agrária na Bolívia: a tessitura
de novos consensos hegemônicos
1. Introdução
Os avanços e acirramentos da luta de classes na América Latina, em países
como a Bolívia por exemplo, refletiram em mudanças na organização política
dos Estados do continente no final do século XX. Nesse sentido, o conjunto da
classe trabalhadora avançou na sua organização. A consequência desse movi-
mento é a conquista de muitos mecanismos de representação das classes su-
perexploradas143, como os institucionais. Diante disso, o Estado boliviano vem
se destacando com seu novo modelo constitucional por trazer novas garantias
para os trabalhadores. Nesse cenário, o Novo Constitucionalismo Latino-Ame-
ricano apresenta-se como um processo advindo da luta de classes.
Nesse sentido, o presente trabalho visa o estudo sobre a questão agrária
na Bolívia, pois o processo que se deu de restruturação agrária e reformula-
ção do Estado se mostram importantes para o debate sobre as contradições
presentes dentro da América Latina. O estudo se dividirá em dois momentos:
140 Acadêmico de Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido, UFERSA, membro do Grupo de
Estudo em Direito Crítico, Marxismo e América Latina, GEDIC, <luanfonseca53@gmail.com>.
141 Acadêmico de Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido, UFERSA, membro do Grupo de
Estudo em Direito Crítico, Marxismo e América Latina, GEDIC, <afonsofalcao12@gmail.com>.
142 Acadêmico de Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido, UFERSA, membro do Grupo de
Estudo em Direito Crítico, Marxismo e América Latina, GEDIC, <douglasdiogenes144@gmail.com>.
143 “Pois bem, os três mecanismos identificados – a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada
de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de
trabalho - configuram um modo de produção fundado exclusivamente na maior exploração do
trabalhador, e não no desenvolvimento das suas forças produtivas na economia latino-americana,
mas também com os tipos de atividades que ali se realizam” (MARINI, 2005, P. 156).
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144 Para Costa Neto (2005), as haciendas eram propriedades de 8.137 latifundiários e ocupavam uma
área de 12.701.076 hectares com sistema de produção baseado na imposição da prestação de serviços
e trabalhos pessoais ao produtor.
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145 Segundo Cunha Filho (2014), a Guerra do Chaco (1932-1935) foi um conflito armado do país contra
o Paraguai que resultou na perda da região do Chaco Boreal.
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ção dos trabalhadores como atores políticos fundamentais teria seu ápice na
Revolução de 1952. Por isso, no ano de 1940 começam a ascender, dentro do
campo político do Estado, partidos de esquerda e de centro esquerda. Surgem
então, o Partido de Esquerda Revolucionário (PIR), Partido Operário Revolu-
cionário (POR) e o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). Poucos
dias depois da Revolução surge a Central Obrera Boliviana (COB).
O MNR, o partido com maior base social entre as classes médias urbanas,
se lança à presidência do país em 1951. Em seu plano de governo, a nacionali-
zação das minas, reforma agrária e voto universal eram pontuados. A situa-
ção política, entretanto, entra em uma forte crise quando se percebe a fraude
acompanhada de um golpe militar a fim de impedir a posse o MNR do poder.
Ou seja, os militares tentam controlar a situação, entretanto, a pressão popular
e a dissidência interna levaram à insurreição, que se transformou em uma re-
volução nacional-popular em abril de 1952 (COSTA NETO, 2005). O partido
tratava a questão da reforma agrária sobre o prisma da qualidade técnica de
agricultura, concentrando-se em mudanças tecnológicas, assim, de acordo com
os estudos de Mota (2012), havia uma correlação de forças dispostas a avançar
com a pauta da reforma agrária como um dos pilares da revolução boliviana.
A proposta de Reforma Agrária se mostrou, portanto, como consenso
entre as lideranças do partido, porém estavam sobre a ótica da modernização
da agricultura, não incidindo de forma radical sobre a concentração de terras.
O governo, por exemplo, divulgava medidas relativas às condições de trabalho
no campo e à produtividade a fim de conseguir ganhar tempo para convencer
os grandes proprietários de terras que havia a necessidade de modernização,
entretanto não deixava nítida sua pretensão de confiscar a propriedade lati-
fundiária da terra (COSTA NETO, 2005). Assim, as sublevações no campo au-
mentavam e a reforma agrária se tornava cada vez mais inevitável e os saques
às propriedades agrárias e às ocupações de terras eram lideradas por setores
da esquerda, como a COB e o POR. Diante disso, o grupo governista do MNR
toma a decisão de agir contra esses levantes a fim de acalmar os ânimos no
campo, porém, ao tentar reprimir os revoltosos, o governo acabou por aumen-
tar o descontentamento dos camponeses com a sua administração.
Nesse sentido, a ação repressora do governo não levou em consideração
dois aspectos: o seu distanciamento das bases camponesas, que almejavam a
revolução agrária expropriadora (nacionalização da terra sem indenização) e
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Por esse ângulo, a mesma reforma agrária que, na década de 1950, pro-
porcionou distribuição de terras no ocidente do país, impulsionou a agroin-
dústria latifundiária, voltada para a exportação, na região oriental do país.
Na década de 1980, a partir de créditos cedidos pelo Banco Mundial e pela
Cooperação Alemã, foram dados passos largos em direção ao início do polo
sojeiro do país, como a construção e ampliação de estradas, silos e rede elétri-
ca, na região oriente do departamento de Santa Cruz de la Sierra (GIMENEZ,
2014). Isso indica uma mudança radical na evolução da superfície cultivada
do país, que foi estruturada no agribusiness, a partir do capital internacional.
Tendo em vista o avanço neoliberal, iniciado na década de 1980, e os
ataques do governo boliviano aos pequenos camponeses, principalmente no
Chapare, em Cochabamba, região propícia a agricultura, que se evidencia pela
produção da folha de coca, se criam condições para o campesinato disputar
a liderança popular no seio das classes subalternas (VALENÇA, 2017). Es-
ses ataques e a declaração de guerra à coca, portanto, aos 70 mil camponeses
desse território, se apresenta como uma forma de atender aos interesses das
multinacionais do agronegócio, que desejavam produzir naquela terra, bem
como para ter acesso aos recursos disponibilizados pelas agências americanas.
Logo, com a criação da consciência e da organização de classe, aliados a
capacidade de liderança de Evo Morales e de Leonilda Zurita146, a luta dos cam-
poneses do Trópico rompeu as fronteiras e se expandiu, possibilitando um con-
fronto conjunto das classes subalternas contra o colonialismo e ao imperialis-
mo. Assim, se alia a luta corporativa à luta eleitoral e participam da disputa mu-
nicipal em 1989 e da nacional em 1993, com as siglas Izquierda Unida e Eje de
Convergencia Patriótica, respectivamente (MORALES-AYMA, 2014). E, com a
necessidade de se criar um instrumento para a luta, acontece o I Congresso do
Instrumento Político de Tierra y Territorio, o qual estabelece que aquele seria a
Asamblea por la Soberanía de los Pueblos (ASP) (VALENÇA, 2017).
O ASP teve seu registro eleitoral impedido pelo Poder Judiciário, o que
fez com que este tomasse emprestada a sigla Movimiento Al Socialismo (MAS),
conformando o MAS-IPSP. Nesse sentido, o MAS-IPSP evidenciou a crise da
hegemonia neoliberal e se tornou instrumento de luta dos movimentos cam-
poneses e indígenas (CUNHA FILHO, 2015). A crise na hegemonia domi-
146 Dirigente Bartolina Sisa, líder cocaleira e, atualmente, é senadora pelo MAS.
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147 “De los 3,63 millones de hectáreas cultivadas en Bolivia entre 2014 y 2015, el 84% (3.03 mill de hectáreas)
son cultivos industriales y de éstos 1,35 son soya (com datos de INE y MDRyT)” (CEDIB, 2016, p.6).
148 A reversão caracteriza o retorno da terra ao domínio do Estado, afastada a concessão de indenizações.
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149 Encontra-se no departamento de Santa Cruz, província de Ñuflo de Chávez, com vinte e oito (28)
comunidades, distribuídas em quatro (4) regiões ou cantões: San Antônio com 9 comunidades,
Santa Rosa del Palmar com 6 comunidades, El Puquio com 6 comunidades e San Lorenzo com 7
comunidades (FUNDACIÓN TIERRA, 2010).
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Em tal contexto, houve uma tensão no pacto dos movimentos, que se re-
velava no que rege às distinções entre matrizes camponesas e indígenas. Mo-
vimentos como o CSUTCB151, FNMCB152 “BS” e CSCB153 se reivindicavam
como indígenas, contudo não aceitavam abdicar da identidade camponesa. A
CIDOB154, que tem base social dentre os indígenas de terras baixas orientais
e a CONAMAQ155, que é formada especialmente por Ayllus156 de terras altas
150 Perante a Assembleia Constituinte, o Pacto de Unidad revelou-se como o lócus do encontro de
organizações sindicais camponesas, indígenas originárias, de povos das terras altas e baixas,
colonizadores (SCHAVELZON, 2012). O Pacto, os constituintes eleitos pelo MAS-IPSP e o
governo Evo-Linera conformariam uma rica experiência de consensos e dissensos na busca pela
materialização de um texto constitucional (VALENÇA, 2017).
151 Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia.
152 Federación Nacional de Mujeres Campesinas de Bolivia-Bartolina Sisa.
153 Confederación Sindical de Colonizadores Bolívia.
154 Central Indígena de los Pueblos del Oriente de Bolivia.
155 Consejo Nacional de Ayllus y Marcas del Qullasuyu.
156 A organização Ofensiva Roja de Ayllus Tupakataristas que era o braço político da organização
político-militar Ejército Guerrillero Tupak Katari no final dos anos 1980 e inícios dos anos 1990,
vinha na esteira desse movimento maior de construção de uma cultura política indígena e teve
papel importante nesse processo de fortalecimento dos movimentos indígenas, uma vez que
esteve presente ao declínio da influência operária no movimento social, bem como procurou se
afastar das posições historicamente defendidas por esse grupo. A atuação da Ofensiva e a difusão
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5. Considerações finais
Ao longo do trabalho, analisou-se que a batalha por reforma agrária não
é recente e perdura até os dias atuais como expressão da luta dos povos origi-
nários, camponeses. A existência secular desses povos foi ressignificada pela
exploração colonial, que ao passo que os superexplorava, estreitava o vínculo
entre classe e etnia, chegando ao ponto que a etnicidade se tornou um capital
a mais, que possibilita o ascenso e descenso social. Assim, a classe, econo-
micamente existia, mas com isomorfismo com a etnia, ou seja, a divisão da
sociedade por meio da economia era similar a por identidade étnica.
Nesse sentido, a reforma agrária aparece como ponto a ser discutido,
já que nas sublevações populares, na Revolução de 1952, ela foi pautada de
maneira expressiva. Assim, em 1953, se teve a primeira expressão da refor-
ma agrária, entretanto repleta de limitações, como a participação do capital
internacional, a partir do Banco Mundial e da Cooperação Alemã. Esses
mesmos credores estiveram na linha de frente da criação do polo sojeiro do
País, na década de 1980.
Esse contexto, da reestruturação produtiva por meio de políticas de fi-
nanciamento internacional, aliado aos ataques do governo boliviano aos pe-
quenos camponeses, somado à insatisfação e à resistência desses, possibilita-
capitalista para, logo após, debruçar-me sobre suas consequências no processo político boliviano no
século XXI” (VALENÇA, 2017, p181).
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Referências
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Uma análise sobre as Autonomias
indígenas no contexto do Estado
Plurinacional da Bolívia
1. Introdução
O Estado Plurinacional, inaugurado após a promulgação da Constitui-
ção Política do Estado da Bolívia (CPE), representa uma conquista de décadas
de luta dos movimentos indígenas-camponeses e demais segmentos populares
pelo reconhecimento da existência de institucionalidades próprias e distintas
dos múltiplos núcleos organizativos das nações e povos originários. Agora,
territórios tradicionais de propriedade coletiva indígena, com sistemas legisla-
tivos e políticos podem ascender ao estado de Autonomias Indígenas, que são
um nível administrativo do Estado central que coexiste a ele.
O processo de consolidação das Autonomias no contexto do Estado Plu-
rinacional e em qual medida estas encontram-se atualmente, mais de oito
anos após a regulamentação de sua previsão Constitucional pela Ley Marco de
Autonomías y Descentralizacion (LMAD), será o objeto central de análise nes-
te capítulo. Para isso, será abordado inicialmente os aspectos gerais da conso-
lidação das classes sociais na Bolívia, sobretudo de como o fator étnico esteve
e se manteve ligado durante um longo período histórico a desvalorização so-
cial e às camadas ignoradas pelas políticas oficiais do Estado. A relação entre
158 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membra do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC) e Pesquisadora de
Campo da ONG Ação Educativa. E-mail: ddayanesm@gmail.com.
159 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membra do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC). E-mail: euanavit2@gmail.com
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160 A LMAD define esta categoria de sujeitos coletivos, criada pela Constituição de 2009, como povos e
nações que existem com anterioridade a invasão espanhola e que constituem uma unidade sociopolítica,
historicamente desenvolvida, com organização, cultura, instituições, direito, ritualidade, religião,
idioma e outras características comuns e integradas (Capítulo II, Artigo 5°, III da LMAD).
161 O Movimiento al Socialismo (MAS) consiste na organização política que foi responsável pela
coalizão eleitoral de movimentos sociais urbano-rurais que introduziu inúmeros deputados o
Parlamento boliviano, sendo a maior força eleitoral desde julho de 2002 (LINERA, 2010)
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Marxismo e América Latina
162 Na produção social que os homens realizam, eles entram em determinadas relações indispensáveis
e independentes de sua vontade; tais relações de produção correspondem a um estágio definido de
desenvolvimento das suas forças materiais de produção. A totalidade dessas relações constitui a
estrutura econômica da sociedade – fundamento real, sobre o qual se erguem as superestruturas política
e jurídica, e ao qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da
vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral (MARX, 1977).
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163 Plantation é um sistema agrícola, e foi bastante utilizado durante a exploração das Américas, visto
que aqui se possuía um solo fértil e propício para o cultivo das mais variadas espécies vegetais. Foram
cultivadas principalmente as plantas tropicais, já que se adaptavam bem ao clima e às condições do
solo, fazendo com que os gastos fossem muito menores. Dentro desse mega-sistema agrícola, um
país apoiava sua suposta economia no cultivo de apenas uma espécie vegetal, fazendo com que
essa fosse levada para fora do país. ARAÚJO, Ana Paula, Plantation. Disponível em: <https://www.
infoescola.com/historia/plantation/> Acesso em: 16 de jul. de 2019.
164 A indianitud é todo o capital étnico dos povos originários, ou seja, cor da pele, sobrenome, as roupas, o
idioma, que por muito tempo foi usado como um modo de ascenso social e desvalorização (LINERA, 2019).
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165 Nascido na Venezuela, filho de aristocratas espanhóis, Simón Bolívar (1783-1830) foi figura central
da independência das colônias espanholas na América, ao lado do argentino San Martín. Herói da
libertação da Venezuela, Colômbia, Peru, Equador e Bolívia, Bolívar colocou em prática na América
idéias de Rousseau, Hobbes e outros filósofos do Iluminismo. Foi fortemente influenciado pelos
ideais das Revoluções Americana e Francesa. Disponível em: http://www.memorial.org.br/simon-
bolivar/. Acesso em: 16/07/2019.
166 Participou, junto com os generais Mariño, Piar, Bermúdez e Valdez da campanha para libertar a
parte oriental da Venezuela. Foi nomeado “Jefe del Estado Mayor General Libertador”. Participou
da negociação do armistício e regularização da guerra com o General Morillo no ano de 1820.
Por seu desempenho foi nomeado General de Divisão e Intendente do Departamento de Quito.
Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/s/sucre_antonio.htm.
Acesso em: 16/07/2019.
167 Extinção do tributo indígena, proibição de serviços gratuitos, implementação do trabalho remunerado,
confisco de bens da Igreja pelo Estado e extinção da mita na mineração (VALENÇA, 2018).
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168 De acordo com Springerová e Valisková (2017), o Tributo Indígena é o imposto da coroa espanhola
que incidia sobre as comunidades indígenas livres e em seguida estendido para todos os indígenas da
colônia, servindo para pressionar a migração espontânea de indígenas para trabalhar nas fazendas.
169 Conforme Gonçalves (2012), em que ele esmiúça o marxismo de René Zavaleta, o Estado Aparente é
caracterizado quando o Estado oficial não representa e nem engloba todos os setores da sociedade,
nem sequer para organizar a exploração do proletariado. Desse modo, as comunidades indígenas
andinas não se reconhecem naquele Estado, e este por sua vez tem poucos mecanismos de fazer-se
reconhecer por elas.
170 Conflito armado entre a Bolívia e o Paraguai, que se originou na disputa pela região do Gran Chaco
ou Chaco Boreal após a descoberta de poços de petróleo. O conflito armado perdurou entre os anos
de 1932 e 1935, sendo responsável pela morte de mais de 90 mil pessoas e considerado o maior
conflito da América do Sul no século XX. NEVES, Daniel. Guerra do Chaco. Disponível em: https://
guerras.brasilescola.uol.com.br/seculo-xx/guerra-chaco.htm. Acesso em: 16 de jul. de 2019.
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171 Popularmente conhecida como Revolução Nacional e apontada como a primeira revolução
proletária da América Latina.
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172 O capital estatal é uma categoria presente em “A Potência Plebeia”, no qual Alvaro Garcia Linera
o conceitua como um poder sobre as demais espécies de Capital, como o econômico, cultural,
social e simbólico. Além disso, o capital estatal seria fruto do capital de força física e do capital de
reconhecimento enquanto monopólios da estatalidade.
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173 “As ideias força seriam crenças cuja a materialização os grupos sociais estão dispostos a destinar
tempo, esforço e trabalho. No caso da Bolívia, estas crenças mobilizadoras possuem relação direta
com a reivindicação nacional-étnica do mundo indígena” (LINERA, p. 288, 2010).
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Marxismo e América Latina
174 “La autodeterminación adquiere un sentido reivindicativo que parte de la experiencia colonial de los
pueblos indígenas en donde fueron despojados no sólo de sus territorios y medios de sobrevivencia
material, sino de su derecho a existir como comunidades con cultura, formas de convivencia e
historicidad propias. Por tanto se vuelve fundamental también la noción de continuidad histórica,
porque sólo a través de la recuperación de las historias particulares de estas comunidades pueden ellas
mismas plantear reivindicaciones respecto a su derecho a la autodeterminación con implicaciones
culturales, políticas y territoriales” (PONCE, 2017).
175 “El adjetivo “turbulento” no es gratuito. La actitud de bloqueo frontal, activo y a menudo violento de los
sectores opositores al desarrollo de la Asamblea Constituyente fue finalmente canalizada por el oficialismo
a través de la apertura de un proceso de negociación en el Congreso (octubre del 2008) sobre el texto
aprobado por la propia Asamblea Constituyente el 2007. El proceso de negociación con la oposición llevó a
modificar, por fuera del poder constituyente legal y legítimo, 144 artículos de la Carta Magna finalmente
referendada en enero del 2009, sin alterar la estructura y bases fundamentales del texto, pero sí incluyendo
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178 Em San Pedro de Totora Marka, por exemplo, a maioria dos habitantes é de origem Aymará (nação
Jach’a Karangas) e a sua forma de organização em ayllus implica em hierarquia geracional. Vários
jovens desse Município se opuseram a sua conversão, pois o Estatuto Autonomico definia que
somente após ter passado por cargos originários aconteceria o ingresso em cargos institucionais,
o que de certa forma limitava a participação política da juventude, sobretudo dos jovens indígenas
urbanizados. Ver Springerová & Vališková (2017).
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179 “Es el procedimiento técnico jurídico transitorio destinado a regularizar y perfeccionar el derecho
de propiedad agraria y se ejecuta de oficio o a pedido da parte (Ley 1715 art. 64). El saneamiento
tiene existencia legal desde 18 de octubre de 1996 y su reglamento fue aprobado mediante el Decreto
Supremo N° 23763 de 5 de mayo de 200. El 2 de agosto de 2007 este reglamento fue sustituido mediante
Decreto Surpemo N° 29215” (COLQUE, 2010, p.5)
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5. Considerações finais
O entrelaçamento entre classe e etnia é um fato histórico contínuo na
Bolívia, que fica evidente desde a invasão colonial, na qual a existência de
grande parte da sociedade, que é indígena, foi colocada à margem do Estado.
A conformação de um Estado que ignora a existência e as necessidades reais
da maioria da população, causou o enquadramento dos povos e nações indí-
genas originários como minorias políticas, desconsiderando a sua forma de
organização social e territorial própria. A inexistência de fato do Estado na
vida e na construção de sociabilidade da maior parte da sociedade boliviana
e processo colonizador de base capitalista foram pilares para que a divisão
social étnica se tornasse símile a divisão de terras.
Diante disso, o engajamento político-organizativo, saldo de inúmeras su-
blevações indígenas e agora da experiência pela via institucional do governo do
primeiro Presidente indígena do país, pavimentou o caminho para a reorga-
nização estatal que colocou no centro do projeto político a perspectiva da in-
dianitud. Nesse cenário de superação do passado colonial, é possível visualizar
dificuldades na materialização do Estado Plurinacional, que em sua maioria re-
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Referências
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Marxismo e América Latina
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VALENÇA, Daniel Araújo; PAIVA, Ilana Lemos de. Álvaro García Linera: um
relato do proceso de cambio e desafios da esquerda marxista latinoamerica-
na. Entrevista com Álvaro García Linera, Vice Presidente da Bolívia. Revista
Culturas Jurídicas, vol. 4, n. 8, mai./ago., 2017.
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Coleção Crítica do Direito:
Experiências Sociais e Jurídicas
Coordenação:
Prof. Dr. Enzo Bello e Prof. Dr. Ricardo Nery Falbo
Política Judicial: a disputa pela supremacia A cidadania na luta política dos movimentos
na Defensoria Pública, 2019. sociais urbanos, 2019 (2ª edição).
Vinícius Alves Barreto da Silva Enzo Bello
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A cidadania no constitucionalismo
latino-americano, 2018 (2ª edição).
Enzo Bello
Prefácio à 2ª edição de Fernanda Frizzo Bragato
Apresentação de Martonio Mont’Alverne B. Lima
234
Coleção Crítica do Direito:
Experiências Sociais e Jurídicas
Coordenação:
Prof. Dr. Enzo Bello e Prof. Dr. Ricardo Nery Falbo
235
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236
Coleção Crítica do Direito:
Experiências Sociais e Jurídicas
Coordenação:
Prof. Dr. Enzo Bello e Prof. Dr. Ricardo Nery Falbo
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