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Editora Lumen Juris
Rio de Janeiro
2019
Copyright © 2019 by
Daniel Araújo Valença
Ronaldo Moreira Maia Júnior
Rayane Cristina de Andrade Gomes

Categoria: Direito Constitucional

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Rômulo Lentini

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.


não se responsabiliza pelas opiniões
emitidas nesta obra por seu Autor.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer


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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

V161m
Valença, Daniel Araújo
Marxismo e América Latina : lutas políticas e novos processos cons-
tituintes / Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane
Cristina de Andrade Gomes. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2019.
252 p. ; 23 cm.

Inclui bibliografia.

ISBN 978-85-519-1373-4

1. Marxismo. 2. Direito constitucional – América Latina. I. Maia Jú-


nior, Ronaldo Moreira. II. Gomes, Rayane Cristina de Andrade. III. Título.

CDD 340

Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927


Agradecemos o apoio da Universidade Federal Rural
do Semiárido-UFERSA para a publicação da presente
obra, de acordo com o edital PROPPG N°19/2018
de apoio a grupos de pesquisa.
Coleção Crítica do Direito:
Experiências Sociais e Jurídicas

Apresentamos à sociedade e à comunidade acadêmica o projeto editorial


“Coleção Crítica do Direito: experiências sociais e jurídicas”, que vem a públi-
co pela Editora Lumen Juris.
Trata-se de iniciativa oriunda de trabalho coletivo realizado há anos em
parcerias desenvolvidas no espaço da pós-graduação “stricto sensu” em Direi-
to, envolvendo docentes e discentes em formação, como incentivo à horizon-
talidade e à cooperação na construção do conhecimento.
Os textos publicados na Coleção Crítica do Direito: Experiências Sociais e
Jurídicas são ensaios ou adaptações para o formato de livro de pesquisas acadê-
micas realizadas em dissertações de mestrado e teses de doutorado produzidas,
em especial, no Programa de Pós-graduação em Direito (PPGDIR) da Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e no Programa de Pós-graduação em
Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). O
espaço também está aberto para contribuições advindas de outras áreas do co-
nhecimento, instituições ou mesmo pesquisadores e escritores independentes.
O perfil da Coleção e dos livros publicados nesse espaço tem como prin-
cipais características a interdisciplinaridade e o pensamento crítico e contra-
-hegemônico, com ênfase em pesquisas empíricas e no contexto da América
Latina e do Brasil, de modo a fazer aparecer as práticas da experiência social e
jurídica no âmbito da realidade, do concreto. A intenção é abordar o fenômeno
jurídico a partir do ponto de vista dos sujeitos políticos e sociais historicamen-
te oprimidos, silenciados e insivibilizados, como contraponto aos discursos e
práticas dominantes - no espaço da institucionalidade e da normatividade - e
como estratégia para se compreender o Direito em sua totalidade, de modo a se
construir possíveis alternativas emancipatórias e libertadoras.
Boas leituras e ótimos debates!

Rio de Janeiro, agosto de 2016.


Enzo Bello1
Ricardo Nery Falbo2

1 Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Estágio de Pós-Doutorado
em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Estágio de Pós-Doutorado
em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado 1 da
Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Membro do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos
(NEPHU) - UFF. Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br).
Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES).
2 Pós-doutor em direitos humanos pela Université Paris 2. Professor Adjunto da Faculdade de Direito
e do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Apresentação

A América Latina apresenta uma história particular. Seu território, ocu-


pado por incontáveis povos indígenas, com padrões de reprodução social
específicos, teve seu desenvolvimento autônomo interrompido pela chegada
dos conquistadores. Ao ser transformado em uma das fontes da acumulação
primitiva do capital, surgia uma das principais características da formação
social latino-americana – a sua inserção dependente no capitalismo interna-
cional. Se, na Europa, relações sociais de produção e formas políticas burgue-
sas amadureciam, em nosso continente assentavam-se a superexploração do
trabalho, a partir da escravidão negra, do patriarcado, da mita imposta aos
povos originários, bem como a ausência democrática. Assim, estavam dados
os elementos centrais do nosso padrão de sociabilidade e que seriam, em re-
gra, preservados até a contemporaneidade.
Ao longo dos séculos, levantamentos indígenas, quilombos, revoluções
nacionais e socialistas, buscaram alterar esta realidade. Se há algo que não se
pode acusar a América Latina é de passividade ante à exploração. Nos últimos
anos do século XX e princípios do século XXI, a depreciação das condições de
reprodução social no continente levaram a uma série de sublevações, com o re-
torno de movimentos de massas e a ascensão de uma série de governos advindos
das classes subalternas locais e processos constituintes que, de maneira inédita,
refletiam os projetos políticos dessas classes subalternas. A reação tampouco
tardaria: Lawfare, golpes de Estado, retorno da extrema direita e do fascismo.
Se cresceram no Brasil os estudos no Direito voltados para a América La-
tina, tal expansão se deu a partir de referenciais decoloniais, situados no campo
das “epistemologias do sul”. No Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxis-
mo e América Latina – Gedic, seguimos por outro caminho, mais árduo, de
“remar contra a maré” e insistir que o continente só pode ser compreendido – e
transformado – a partir de categorias caras ao marxismo, como “valor-traba-
lho”, “imperialismo”, “dependência”, “formação social”, “lutas de classes”. Para
nós, não é o processo de conhecimento que altera a nossa realidade, mas, como
diria Marx, as classes em luta em defesa de seus interesses que impulsionam a
história. O método materialista histórico-dialético e as categorias marxianas
e marxistas revelam-se como ferramentas para a interpretação desta realidade
particular. Portanto, neste livro, nos debruçamos sobre o real em conflito, em
contradição, e em movimento. Nele, condensamos e publicizamos as investi-
gações do projeto de pesquisa “Marxismo e América Latina: Lutas Políticas e
Novos Processos Constituintes”. Assim, seus capítulos perpassam pela teoria
da dependência, pela história do marxismo na América Latina, pela formação
social latino-americana, bem como por temas atuais e necessários para a com-
preensão da atual conjuntura no continente: Lawfare, novo constitucionalismo
latino-americano, o Estado Plurinacional da Bolívia, a constituinte exclusiva na
Venezuela, as transformações econômicas ocorridas em Cuba e sua nova ordem
constitucional. Enfim, nesta obra, nossos leitores e leitoras passearão pela análi-
se do continente latino-americano e de sua luta por sua liberación.

Daniel Araújo Valença


Ronaldo Maia
Rayane Andrade
Sumário

Marxismo e América Latina: aportes para


a compreensão de um continente em luta............................................................. 1
Daniel Araújo Valença
Giulia Maria Jenelle Cavalcante
Júlia Maria dos Santos de Freitas

Lutas políticas na América Latina: restauração conservadora


e países na corrente contra-hegemônica............................................................................19
Ronaldo Moreira Maia Júnior
Leonardo Gomes de Miranda

Notas introdutórias sobre a Economia Política da Dependência..................... 37


Gabriel Miranda Brito
Ilana Lemos de Paiva
Lázaro Fabrício de França Souza

Constituinte Exclusiva na Venezuela:


processo democrático entre lutas políticas..........................................................57
Adriele Jairla de Morais Luciano
Evillin Lissandra Cosme Santana
Raissa Alves da Silva
Thaís Frota Ferreira Cavalcante

60 anos da Revolução Cubana: nova Constituição


e transformações na ordem econômica socialista..............................................79
Ana Flávia Oliveira Barbosa de Lira
Carlos Eduardo Mota de Brito
Lawfare na América Latina e Machismo:
análise dos casos Kirchner e Rousseff..................................................................97
Adriana Dias Moreira Pires
Dacielle da Silva Ingá
Gabriel Braga dos Santos

Fábricas ocupadas: estudo comparado de realidades latino-americanas.....123


Maria Taynara Ferreira Bezerra
Amália Rosa de Moraes Silva

Feminismos, Bolívia e Política: impactos da representação


feminina parlamentar na vida das mulheres.................................................... 137
Rayane Cristina de Andrade Gomes
Thariny Teixeira Lira
Giovanna Helena Vieira Ferreira

A Função Eleitoral no Equador e na Bolívia: avanços e contradições........... 161


Vítor Carlos Nunes
Ana Letícia de Oliveira Bezerra Fernandes
Patrick Campos Araújo

Políticas de transferência de renda na América Latina:


uma análise comparativa entre a experiência brasileira e a boliviana.......... 179
Nayara Katryne Pinheiro Serafim
Gabriel Vinicius Jesus Maia Medeiros

Questão Agrária na Bolívia: a tessitura de


novos consensos hegemônicos............................................................................197
Luan Fonseca Araújo
Afonso Falcão de Almeida Filho
Douglas Diógenes Holanda de Souza

Uma análise sobre as Autonomias indígenas


no contexto do Estado Plurinacional da Bolívia............................................... 215
Dayane da Silva Mesquita
Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes

Coleção Crítica do Direito: experiências sociais e jurídicas...........................233

Coleção Crítica do Direito: experiências sociais e jurídicas...........................235

Coleção Crítica do Direito: experiências sociais e jurídicas...........................237


Marxismo e América Latina: aportes para
a compreensão de um continente em luta

daniel Araújo Valença1


Giulia Maria Jenelle Cavalcante 2
Júlia Maria dos Santos de Freitas3

1. Introdução
Era meados da primeira metade do século XX quando Haya de LaTorre
acusava a incompatibilidade entre o marxismo e a América Latina. O impor-
tante líder político da Aliança Popular Revolucionária Americana - APRA
rivalizava diretamente com as posições teóricas e políticas de outro perua-
no, José Carlos Mariátegui. Este, considerado o mais original dos marxistas
latino-americanos, colocaria o marxismo no seu devido lugar: não seria ele
uma teoria válida somente para a específica realidade europeia do século XIX,
menos ainda uma “doutrina” a ser importada e usada mecanicamente no sul
do globo. Mariátegui teria o papel de demonstrar a possibilidade de, ampa-
rando-se nas categorias marxianas, compreender a especificidade da realida-
de latino-americana para, dessa maneira, transformá-la radicalmente.
Aquele momento histórico, de recém-chegada do marxismo, contudo,
não seria o único momento de seu questionamento em terras americanas. Na
segunda quadra do século XX, os regimes ditatoriais implementariam uma
realidade de censura, perseguição e assassinato daqueles que reivindicassem
a teoria revolucionária. Após, com o sopro dos ventos neoliberais e a crise do
socialismo soviético, a estratégia socialista entrou em um período de defensi-

1 Professor da Graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade


Federal Rural do Semiárido-UFERSA, doutor em Ciências Jurídicas pela UFPB, coordenador do Grupo
de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina-GEDIC, E-mail: valencadaniel@gmail.com.
2 Mestranda em Serviço Social e Direitos Sociais pela Faculdade de Serviço Social- FASSO da
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte-UERN. Componente do GEDIC e advogada
popular, E-mail: giuliamjco@gmail.com.
3 Graduanda em Administração pela UFERSA, componente do GEDIC, E-mail: juliamariasf11@gmail.com.
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

va estratégica e as categorias “trabalho” e “luta de classes” foram secundariza-


das em termos de análise teórica e práxis política, especialmente no Brasil. As
grandes narrativas da modernidade, a totalidade, a história, a possibilidade de
revolução, saem de cena. Do ponto de vista teórico, tomam corpo correntes
voltadas às subjetividades, culturas ou ao próprio “conhecer”, a epistemolo-
gia. Já em termos de luta política, a reconfiguração do mundo do trabalho
parecia apontar a obsolescência de termos como “classe trabalhadora”, “parti-
do”, “sindicato”. Tomaram corpo, portanto, lutas identitárias, locais, setoriais,
fragmentadas. Por mais que países vizinhos debatessem “o socialismo do sé-
culo XXI” ou o “socialismo comunitário”, tínhamos a impressão de falência e
anacronismo do que se denominou “práxis revolucionária”.
Perante esse cenário, no presente capítulo, pretendemos nos debruçar
sobre a validade da teoria marxiana e marxista para a compreensão da reali-
dade latino-americana e sua transformação radical na atualidade. É possível
compreender os golpes de Estado em Honduras, no Paraguai, no Brasil, sem
as categorias marxianas? É possível analisar o conflito venezuelano sem ca-
tegorias como “imperialismo”? É o Lawfare uma categoria situada apenas no
campo político, sem a mediação da luta de classes e sua condição material de
existência? Ainda é possível falar em classes trabalhadoras como sujeitas da
história e aptas a transformar radicalmente o continente latino-americano?
Partindo do materialismo histórico-dialético e fazendo uso de revisão
bibliográfica, nos debruçaremos, primeiramente, sobre determinadas catego-
rias marxianas e marxistas, para nos afastarmos de perspectivas dogmáticas
ou revisionistas. Após, resgataremos a importância do marxismo para a luta
política no continente latino-americano. Por fim, apontaremos a atualidade
da filosofia da práxis4 para a luta política em curso no continente.

2. A teoria marxiana e categorias centrais


O século XIX foi palco de transformações profundas no mundo, espe-
cialmente em solo europeu. Ali, um processo de acumulação primitiva do
capital, iniciado ainda no século XIV e pavimentado na separação dos pro-

4 Gramsci (2002) denominava a teoria marxiana de “filosofia da práxis”, pois, assim, apontava que ela é uma
concepção de mundo, uma ciência das classes trabalhadoras, bem como um aporte para a sua luta política.

2
Marxismo e América Latina

dutores diretos de seus meios de produção, bem como no saqueio colonial


inaugurado no século XV, amadureceria ao ponto de gerar um novo modo de
produção (MARX, 2013). Naquele período, Marx e Engels viram-se provoca-
dos pelas radicais transformações pelas quais passava a Europa. Inicialmente,
como jovens que frequentavam os círculos acadêmicos de uma Prússia em
transição, se voltaram à revolução que se processava no campo das ideias, do
processo de pensamento, especialmente influenciados pela dialética hegelia-
na. Mas, as mudanças iam muito além das ideias: perante seus olhos, surgia a
indústria moderna e uma nova classe social, o proletariado. A partir daí, para
eles, de um lado, tão importante quanto compreender o mundo passou a ser
transformá-lo radicalmente. Por outro, esta transformação não seria obra do
processo de conhecimento, da Ideia (ou Espírito), como imaginava os jovens
seguidores de Hegel, mas da luta política e ação humana concreta. Dessa ma-
neira, ao fazer o percurso da filosofia para a economia política, encontraram o
elo entre teoria e prática revolucionária, entre matéria e ideia.
Desde aí, por décadas, desataram uma parceria intelectual e política,
provavelmente a mais fecunda da história, capaz de criar uma teoria, uma
ciência das classes trabalhadoras, em resposta ao domínio absoluto da ciência
moderna, identificada com o padrão de sociabilidade burguês. Por ela, seria
possível compreender a história, a economia política, o direito, a cultura, o Es-
tado, enfim, a ontologia do ser social, cuja essência os fundadores da filosofia
da práxis encontraram no trabalho.
Dessa maneira, partindo das influências da filosofia alemã, da economia
política inglesa e do socialismo francês – aquilo que Lênin (2006) denomi-
nara “As três Fontes” – construíram um método amparado, especialmente,

3
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

nas categorias totalidade5, historicidade e dialética6. Partindo da totalidade,


enxergavam o seu objeto – a sociabilidade burguesa – a partir de suas inúme-
ras determinações, sem cair em equívocos como a neutralidade sujeito-objeto
ou a apartação do momento político ante ao econômico. Se nos debruçamos
sob a análise de Marx em O 18 de Brumário, ali ele demonstra que as formas
políticas francesas, em um intervalo de poucas décadas, se materializaram de
diversas maneiras – Monarquia absolutista, Monarquia parlamentar, Repúbli-
ca, Império –, mas que não redundavam de uma evolução, linear, da Ideia, de
um progresso moral ou jurídico da sociedade. Ao contrário, vendo o processo
na história, ele apontava como as formas políticas são históricas, condizentes
com os interesses materiais e concretos de determinado padrão de exploração.
Portanto, eram os movimentos de classes em luta no interior da sociedade
francesa, em conexão com os eventos europeus, que produziam novas rea-

5 Marx assim delimita essa categoria: “Se consideramos um dado país de um ponto de vista
político-econômico, começamos com sua população, sua divisão em classes, a cidade, o campo,
o mar, os diferentes ramos de produção, a importação e a exportação, a produção e o consumo
anuais, os preços das mercadorias etc. Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto,
pelo pressuposto efetivo e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela
população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. A população
é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas
classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P.
ex., trabalho assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital,
p.ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. Por
isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio
de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples;
do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que
tivesse chegado às determinações mais simples. Daí teria que dar início à viagem de retorno até que
finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de um
todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações” (MARX, 2011a, p. 54).
6 Marx apreendeu a dialética hegeliana, mas a virou de ponta cabeça: “Para Hegel, o processo de
pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o
demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim,
ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem [...].
A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o
primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra
de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro
místico. Em sua forma mistificada, a dialética esteve em moda na Alemanha porque parecia glorificar
o existente. Em sua configuração racional, ela constitui um escândalo e um horror para a burguesia
e seus porta-vozes doutrinários, uma vez que, na intelecção positiva do existente, inclui, ao mesmo
tempo, a intelecção de sua negação, de seu necessário perecimento. Além disso, apreende toda forma
desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu lado transitório; porque não se deixa
intimidar por nada e é, por essência, crítica e revolucionária” (MARX, 2013, p. 91).

4
Marxismo e América Latina

lidades, contradições que levaram a um momento seguinte que preservava


elementos do período anterior, mas inaugurava um novo período (dialética).
Assim, enquanto para intelectuais como Victor Hugo o golpe de Estado e
a fundação do Império tinham como que caído do céu, e Proudhon o enxergara
como evolução histórica, Marx demonstrava, em contrapartida, “como a luta de
classes na França criou circunstâncias e condições que permitiram a um persona-
gem medíocre e grotesco desempenhar o papel de herói” (MARX, 2011b, p. 18).
Se as formas políticas e o próprio padrão de sociabilidade são históricos, a
consequência natural é que, a partir da filosofia da práxis, caía por terra a visão de
que o capitalismo seria o último e mais avançado momento da humanidade. Ao
contrário, assim como os modos de produção que o antecederam, de suas con-
tradições internas é que poderia nascer a sociedade realmente livre da explora-
ção do ser humano pelo seu semelhante. Por outro lado, se suas contradições são
imanentes a ele7, e não apenas “defeitos”, “desvios”, não haveria como superá-las
exceto mediante um processo revolucionário que o alterasse da “cabeça aos pés”.
O certo é que, a partir daí, a classe trabalhadora europeia, que tinha pas-
sado pelo estágio da revolta contra as máquinas – movimento conhecido por
ludismo –, por tentativas vinculadas ao socialismo utópico, detinha, pela pri-
meira vez, um arcabouço apto a compreender o funcionamento do sistema
capitalista e, a partir da luta política, a destruí-lo. Poucas décadas após, seria a
vez da América Latina sofrer essas influências, como veremos a seguir.

3. Marxismo e américa latina: o debate de


sua validade espaço-temporal
A partir da exposição da última seção é possível que, em análise apres-
sada ou desavisada do leitor, este creia que as investigações marxianas se vol-

7 Marx e Engels denominavam de leis gerais do capital a suas qualidades imanentes, insuperáveis,
no interior do modo de produção capitalista. Dentre elas, podemos citar a expansividade ilimitada,
que o leva ser um modo de produção altamente revolucionário, mas também destrutivo; a tendência
a queda da taxa de lucro, o que leva a uma maior exploração da força de trabalho e substituição do
trabalho vivo pelo trabalho morto; a tendência a oligopolização, em que seriam, no “capitalismo
maduro”, os próprios empresários os expropriados de seus meios de produção; e as recorrentes
crises de sobreacumulação, ou seja, as crises são da natureza do capital, e levam a processos de
concentração de capital cada vez mais intensos.

5
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

tavam apenas para a realidade europeia do século XIX e, em última instância,


tivessem validade limitada a esse período. Em verdade, no primeiro livro de O
Capital, no capítulo sobre a acumulação primitiva, Marx delimita aquela sua
análise à Inglaterra. Ressaltamos, desde já, que este voltar-se ao europeu desde
sempre fez com que se houvesse a argumentação de que sua teoria não teria
validade fora dos quadrantes do velho mundo.
Mas, indagado por Vera Ivanovna Zasulitch sobre se Rússia seguiria os
mesmos rumos que a Inglaterra, Marx esclarecia, então, que o capítulo sobre
a acumulação primitiva, em O Capital,
[...] visa exclusivamente traçar a rota pela qual, na Europa ocidental, a
ordem econômica capitalista saiu das entranhas da ordem econômica
feudal. Portanto, ele expõe o movimento histórico que, divorciando os
produtores de seus meios de produção, converteu os primeiros em as-
salariados (proletários, no sentido moderno da palavra) e os detentores
dos últimos em capitalistas (MARX; ENGELS, 2013, p. 66).

O pressuposto da evolução capitalista, portanto, foi a expropriação dos


agricultores de seus meios de produção. Contudo, “apenas na Inglaterra [...] tal
expropriação se apresenta em sua forma clássica” (MARX, 2013, p. 788). Marx
pontua, dessa maneira, que se voltou à Inglaterra por esta abrigar a gênese do
capitalismo e sua investigação possibilitar descobrir as leis gerais desse modo
de produção. Portanto, transladar essa análise, de maneira mecânica, para
outra realidade espaço-temporal seria um erro grosseiro, pois transformaria
o marxismo em “teoria histórico-filosófica geral” (MARX; ENGELS, 2013, p.
67), com leis gerais independentes de condicionantes espaço-temporais. Ao
expor tais pontos para Vera Zasulitch, Marx ressaltava também que o capita-
lismo, por sua expansividade ilimitada, tendia a tragar todos os países – inclu-
sive a Rússia – para o seu processo histórico. Porém, não seria este caminho
um percurso historicamente dado.
Tal debate, exposto em Lutas de classes na Rússia, desautoriza qualquer
reprodução mecânica das categorias marxianas. Ocorre que, em continente
latino-americano, duas importantes interpretações partiam desse transla-
dar automático da teoria. Sob orientação da III Internacional e liderança dos
partidos comunistas locais, destacou-se a defesa da revolução democrático-
-popular: não tendo o continente passado por suas revoluções burguesas,

6
Marxismo e América Latina

seria necessário acumular forças para uma revolução nacional-democrática,


possibilitando, então, o desenvolvimento das forças produtivas, com a as-
censão das classes contrapostas, burguesia e proletariado, para, a posteriori,
a eclosão da revolução socialista. Buscavam-se, pois, reformas que impli-
cassem em superação das relações sociais e forças produtivas de cunho pré-
-capitalistas, com vistas à emancipação política outrora alcançada em solo
europeu e norte-americano.
Tal vertente, também denominada de “etapismo”, trasladava mecanica-
mente o desenvolvimento histórico do capitalismo na Europa Ocidental como
“fatalidade histórica” para os países latino-americanos. Desde essa perspectiva,
a América Latina constituía-se por uma estrutura agrária de tipo feudal; uma
burguesia nacional apta a enfrentar o imperialismo e um campesinato hostil ao
socialismo ou coletivismo. A América Latina se revelava em uma realidade úni-
ca, em que a conformação de suas classes sociais, o desenvolvimento particular
de suas forças produtivas, sua inserção no movimento do capital, bem como as
especificidades de cunho étnico e cultural, restavam interpretadas não confor-
me sua particular formação social, mas de acordo com a do velho continente.
Em conflito aberto com o etapismo, o trotskismo defendia8:
[...] a perspectiva de uma revolução ‘permanente’ que combina tarefas
democráticas, agrárias, nacionais e anticapitalistas, e a rejeição de uma
aliança estratégica com a burguesia local, considerada incapaz de de-
sempenhar um papel revolucionário significativo (LÖWY, 2012, p.35).

Mas, se a vertente etapista partia de análises indiferentes às realidades


nacionais e continental, o trotskismo, ao propugnar pela revolução ininter-
rupta, imediatamente socialista e sob liderança de operários, também mini-
mizava a categoria marxiana mediação com a realidade e a análise concreta da
situação concreta das forças produtivas e relações de produção em cada país.
Ambas vertentes, portanto, menosprezavam as condições temporais, geográ-
ficas, étnicas, a conformação das classes, enfim, as formações sociais especí-
ficas, as distinções entre táticas e estratégia, para a análise política. Termina-
ram, assim, por contribuir, de alguma maneira, com a aversão ao marxismo.

8 No continente, o trotskismo adquiriu contornos de movimentos de massas somente na Argentina e na


Bolívia, onde influenciou sobremaneira as Tesis de Pulacayo, aprovadas em 1946 pelo movimento mineiro.

7
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Por outro lado, dentre erros e acertos, o marxismo ocupou papel central
na história do continente, influenciando revoluções e lutas políticas em diversos
países. Lowy divide a história do marxismo latino-americano em três períodos:
um revolucionário, ocorrido dos anos 20 a 30, onde a insurreição salvadorenha
foi a mais importante; o segundo, o período stalinista dos anos 20 até 1959, no
qual prevaleceu a hegemonia da interpretação soviética do marxismo; o tercei-
ro, um novo período revolucionário, que se deu após a Revolução cubana, em
que ascenderam correntes que unem a natureza socialista da revolução com a
luta armada (LOWY, 2006). É com a queda do socialismo soviético e a expansão
neoliberal que, então, o marxismo entraria em crise no continente.

2.1 O desencontro entre marxismo


e o debate étnico-racial
Para além das discussões quanto a validade espaço-temporal da teoria
marxiana, outra dificuldade de aceitação do marxismo adveio da particular
formação social do continente. Em decorrência da Conquista, a inserção destas
terras no movimento mundial do capital se deu com um componente a mais: o
elemento étnico-racial. Na América Latina, a produção e reprodução do capi-
tal derivam da superexploração do trabalho indígena e negro. Se, por um lado,
houve setores do marxismo que desconsideraram essa especificidade e, dessa
maneira, não compreenderam as condições concretas da luta política local, por
outro, houve os que travaram lutas étnico-raciais descartando as contribuições
do marxismo. Para Álvaro García Linera, aí se situa, por exemplo, o desencon-
tro entre duas razões revolucionárias, o marxismo e o indianismo, nas lutas das
classes subalternas bolivianas ao longo do século XX (LINERA, 2008).
Para Linera, em entrevista a Valença; Paiva (2017, p. 360), a formação
social do continente traz uma realidade em que “a divisão não é entre proprie-
tários e não proprietários, é entre índios e não índios, porque ainda que tenha
propriedade, segue sendo um índio, lhe tratam como índio, lhe pagam como
índio, lhe marginalizam como índio”. A etnicidade passa a ser compreendida
como uma forma de “enclassamento social”:

8
Marxismo e América Latina

A etnicidade é um capital a mais, é um bem acumulável, monopoli-


zável, que permite que você descenda ou ascenda socialmente, como
pode ser o salário, como podem ser os vínculos sociais, como pode ser
a propriedade. A etnicidade desempenha o papel de um bem, é um bem
social, é um capital a mais. Então, com isso, na abordagem marxista,
temos que as classes sociais se constituem, e de fato a etnicidade é uma
forma de enclassamento social, é uma forma de construção histórica
das classes sociais, que convém trabalhar em sua particularidade, seu
significado (VALENÇA; PAIVA, 2017, p. 361).

Faz-se necessária, assim, uma leitura do marxismo na América latina,


considerando que precisamos partir de “uma leitura marxista em fluxo”, não
a partir de uma visão fechada, “mecânica, na qual a classe está definida e o que
falta é enquadrar as pessoas na classe”. Para Álvaro García Linera, precisamos
seguir o caminho oposto, deixando a busca pelo enquadramento dos indivíduos
em classes sociais da modernidade e seguir o caminho da análise de como se
constituem, em nossa realidade concreta, as classes sociais, para após, preenchê-
-las com os sujeitos. É necessário inverter a lógica de “identificar a classe e logo
ver como lutam”, para a lógica de, como lutam e a partir daí identificar a classe
(VALENÇA; PAIVA, 2017, p. 364). Para Linera, foi a partir desta perspectiva que
marxismo e indianismo se encontraram e construíram um bloco histórico apto
a alterar a correlação de forças no interior da sociedade boliviana, vencendo
as eleições, nacionalizando os hidrocarbonetos e outros setores estratégicos da
economia, e transformando a lógica estatal a partir de uma Constituição Políti-
ca de Estado, promulgada em 2010 (VALENÇA, 2018).
Após esta rápida reflexão sobre este tema, passamos a debater quais as
contribuições concretas do marxismo para a análise do continente.

4. Categorias marxistas para a


compreensão da américa latina
A América Latina é um continente complexo, marcado por uma diversi-
dade de etnias, classes sociais, pelo colonialismo e imperialismo. Indivíduos e
coletividades apropriados e expropriados em favor das potências europeias e
norte-americana. Exploração e expropriação, revoluções e contrarrevoluções,
golpes de estado, avanços e retrocessos. Essas são categorias que compõem o

9
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

repertório da formação social latino-americana. No dizer de Ianni, as nações


latino-americanas são:
Altamente determinadas pelas configurações e movimentos que se
manifestam com os desenvolvimentos e transformações do capitalis-
mo, visto como modo de produção e processo civilizatório; sempre
em nome da “evolução”, “progresso”, “desenvolvimento”, “crescimen-
to”, “emergência”, “racionalização”, “modernização”, “europeização”,
“americanização”, compreendendo castas e classes, elites e setores so-
ciais dominantes, este se apresentando como civilizadores e conquista-
dores; em face de castas e classes sociais, grupos e setores sociais subal-
ternos, administrados, conquistados (IANNI, 2009, p. 199).

De acordo com Florestan Fernandes, a América Latina enfrenta realida-


des ásperas:
1) estruturas econômicas, socioculturais e políticas internas que po-
dem absorver as transformações do capitalismo, mas que inibem a
integração nacional e o desenvolvimento autônomo; 2) dominação ex-
terna que estimula a modernização e o crescimento, nos estágios mais
avançados do capitalismo, mas que impede a revolução nacional e uma
autonomia real (FERNANDES, 2009, p. 34).

Partindo de Florestan Fernandes e Mauro Ianni, podemos afirmar que a


formação social latino-americana se conforma a partir da inserção dependen-
te no capitalismo internacional, na superexploração do trabalho e na ausência
democrática, com recortes étnico-raciais e patriarcais.
Desde a Conquista (Todorov, 2003), o continente sofreu transformações
econômicas de acordo com os ciclos internacionais do capital, proporcionan-
do sua acumulação e reprodução. Assim o foi com o papel que exerceu du-
rante o capitalismo comercial, contribuindo sobremaneira para a acumulação
primitiva do capital, bem como durante o período da revolução industrial e
sua gravitação ao redor da Inglaterra para, no último século, sua sujeição às
práticas imperialistas norte-americanas.
Partindo dessa perspectiva, é possível afirmarmos que o continente se
inseriu de maneira dependente no capitalismo internacional, o que o leva,
necessariamente, a enfrentar condições desiguais de troca e desenvolvimento
de suas forças produtivas ante as potências centrais. Termina-se, portanto, a

10
Marxismo e América Latina

estar condenado a papel de exportador de commodities e consumidor de pro-


dutos industrializados e de tecnologia dos países centrais.
Outra categoria central para olharmos a nós mesmos é o imperialismo. A
autonomia política advinda do fim dos regimes coloniais não levou à ausência
de ingerência econômica e política no continente. Ao contrário, a região foi alvo
de dezenas de golpes de Estado ao longo de quase dois séculos de autonomia,
com intervenções concretas do governo americano e empresas multinacionais,
voltadas a preservar seus interesses econômicos e de reprodução do capital.
Para a exploração econômica, tem de haver, em última instância, a explo-
ração do trabalho. E, no caso do continente, o mesmo se deu sempre a partir
de uma superexploração do trabalho. Ou seja, se Marx apontava que o capital
extraía a mais valia no limite máximo para a reprodução da mercadoria – as-
sim, o trabalhador e a trabalhadora, transformados em mercadoria, dariam o
máximo de si, mas conseguiriam se reproduzir socialmente – aqui a explora-
ção é ilimitada, ao ponto de levar à morte de trabalhadores e trabalhadoras,
bem como a sua substituição por novas mercadorias. Estas, em nossa realida-
de, eram os povos originários, bem como negros subjugados pelo tráfico eu-
ropeu. Tal contexto produziria uma realidade entrecortada pelo patriarcado
e racismo estrutural, conformando uma exploração de classe, étnica-racial e
sexual articulada; consubstancial.
Ante a essa formação social, por fim, a principal contribuição do mar-
xismo foi com a ideia de revolução social, transformação profunda das rela-
ções sociais de produção e de propriedade dos meios de produção, voltada à
superação da exploração do trabalho, em nosso continente, especialmente de
negros, índios e mulheres. Tem-se, portanto, que seria – e será – impossível
superar esta situação de dependência sem desatar processos revolucionários,
que ataquem a essência da formação social destas terras.
Mas, não se trata apenas de questões objetivas, que alterem as condições
econômicas e posições dos sujeitos. Trata-se, também de construir uma nova
subjetividade, e aí o marxismo também traz aportes. Destaca-se, neste ponto,
a práxis de Ernesto Che Guevara como pedagogia do exemplo para a constru-
ção do novo homem e da nova mulher9. Seja como guerrilheiro ou ministro da

9 A preocupação com a superação dos valores e comportamentos burgueses é uma preocupação que
aparece já nas obras marxianas. Em O 18 de Brumário, Marx assinalava: “Os homens fazem a sua

11
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

indústria, Che teorizou e atuou conforme uma ética de abnegação à revolução,


à coletividade, ao trabalho voluntário.
Após debatermos alguns dos aspectos que contribuem para a apreensão
de nossa realidade, passamos, pois, para o debate, de maneira breve, sobre o
que nos resguarda o século XXI.

5. A atualidade do marxismo para o continente


América Latina entrou no século XXI com as condições de reprodução
social de suas classes trabalhadoras deterioradas a partir das consequências
das políticas neoliberais. Reconfiguração e precarização do mundo do traba-
lho, desindustrialização, avanço das commoditties e da perspectiva agro-ex-
portadora, levaram a alterações na correlação de forças entre as classes sociais
com a consequente ascensão de governos advindos de suas classes subalternas.
Dentre estes, houve aqueles que implicaram em projetos políticos autônomos
dessas classes, como os casos de Venezuela, Equador e Bolívia, como também
alternativas progressistas, em que as classes trabalhadoras e setores das classes
proprietárias buscaram alternativas de concertação (VALENÇA, 2018).
De qualquer maneira, em quase uma década de maioria de governos
progressistas na região, viu-se, pela primeira vez na história, a redução da de-
sigualdade social, da miséria e da pobreza, a expansão da educação superior
e recuo do analfabetismo10, um aumento geral da renda dos trabalhadores11.

própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem
as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram.
A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E
justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas , em criar algo
nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a
ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu
figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional essa linguagem tomada de
empréstimo, as novas cenas da história mundial” (MARX, 2011b, p. 25-26).
10 A UNESCO, em seu relatório sobre educação, atestou que a Bolívia também erradicou o
analfabetismo, ao lado de Venezuela e Cuba. Ver mais em: <https://www.cartamaior.com.br/?/
Editoria/Internacional/Bolivia-e-o-3%25B0-pais-da-America-Latina-livre-de-analfabetismo%250
d%250a/6/14577>.
11 Todos os relatórios da CEPAL, ONU, FAO do período apontam dados neste sentido, bem como os
mais recentes demonstram um recuo na redução da pobreza, miséria e desigualdade. O Globo, por
exemplo, relata essa mudança, mas a atribui apenas à queda nas commodities, e não à mudança

12
Marxismo e América Latina

Se este era o cenário da primeira década do século, uma série de golpes


de Estado, novas formas de luta política e a própria crise cíclica do capital de
2008 levaram o continente a nova conjuntura nestes últimos anos.
Honduras, Paraguai e Brasil, sob governos progressistas, foram vítimas
de golpes de Estado, que se materializaram de acordo com as condições ma-
teriais e de lutas de classes específicas em cada país. No caso brasileiro, por
exemplo, uma leitura histórica do período entre 2016 e 2019 demonstra que o
golpe de Estado teve por fim aumentar a superexploração do trabalho (como
se viu com a aprovação da Emenda Constitucional 95, a reforma trabalhista,
a proposta de reforma da previdência, dentre outras medidas), a dependência
ante o capitalismo internacional (com privatizações, desmonte do fundo so-
berano do pré sal e do papel da Petrobrás na produção do petróleo e gás), e
contou com participação explícita dos Estados Unidos, demonstrando a atua-
lidade da categoria imperialismo.
No caso de Honduras, houve a intervenção direta das forças armadas,
no Paraguai bastou a articulação parlamentar; no caso brasileiro, houve uma
importante contribuição do sistema de justiça, a partir da Lava Jato. Se as
denúncias do site The Intercept podem sugerir que se tratou de uma ação cri-
minosa de indivíduos vinculados à 13° Vara de Curitiba, uma leitura totali-
zante permite notar que o Lawfare não trata de ações individuais, mas surge
como novo mecanismo de reação das classes proprietárias ante a contexto em
que, pela primeira vez, classes subalternas alcançam o poder governamental.
Dessa maneira, não apenas Luís Inácio Lula da Silva, mas também Cristina
Kirchner e Rafael Correa vem sendo algo de perseguição político-jurídica,
enquanto que, em países que realizaram transformações radicais na lógica
e estrutura estatal, como Venezuela e Bolívia, não se desenvolve tal processo.
Por outro lado, o esforço da década anterior de construção de relações sul-
-sul, voltado a redução da dependência ante o capitalismo internacional, a partir
de iniciativas como a Unasul, o Banco do Sul, o G20, tem sido desmontado pelos
governos da região situados no campo liberal e conservador. As classes proprie-
tárias locais voltam-se para as exigências de transnacionalização, impostas e
esperadas pela globalização, “renascem e dinamizam-se processos e instituições

política que ocorreu na região nesta última década. Ver em: <https://oglobo.globo.com/mundo/na-
america-latina-mais-de-120-milhoes-de-pessoas-correm-risco-de-voltar-pobreza-23741716>.

13
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

de cunho colonialista e imperialista, por dentro do globalismo” (IANNI, 2009,


p. 209). Percebe-se, pois, uma ação articulada das potências capitalistas com
esses setores no sentido da manutenção de um continente dependente, com os
países da região conformando-se “semicoloniais e coloniais (dos quais é possível
maior drenagem de riquezas)” (FERNANDES, 2009, p. 37).
Ante esse cenário, de recuo das esquerdas na região, de desestabiliza-
ção do processo político venezuelano, de golpes de Estado em países centrais
para a geopolítica continental, abrem-se inúmeras reflexões. A primeira delas
é que, uma vez mais, a realidade dos fatos demonstrou que, ao contrário da
burguesia europeia, as burguesias locais não detêm espírito de soberania. Se
os adeptos do etapismo acreditavam que uma aliança entre trabalhadores e se-
tores da burguesia nacional levaria à derrota das oligarquias rurais e do impe-
rialismo, os eventos políticos desta década demonstram que, seja frente a go-
vernos mais radicalizados ou de conciliação, as classes proprietárias urbanas
e rurais se unem, ao lado de potências imperialistas, no afã de prolongar uma
realidade nacional de exportação de commodities nas relações internacionais,
e superexploração do trabalho em âmbito interno. É preciso, pois, superar as
tendências dentro do pensamento progressista da defesa de um “capitalismo
produtivo, inclusivo e integrado”. Essa visão, de acordo com Katz, “somente
computa os nichos que existem para gerir novos negócios, sem registrar os de-
sequilíbrios que essa acumulação gera na periferia”, não considera que o capi-
talismo latino-americano não faz frente aos centros imperialistas. Por isso, “a
radicalização anticapitalista socialista constitui a única certeza de bem-estar
e progresso” (KATZ, 2006, p 582). Apesar das dificuldades enfrentadas pelos
processos venezuelano e boliviano, a manutenção dos mesmos demonstra que
as lutas políticas das classes subalternas no continente devem priorizar a tessi-
tura de um projeto político autônomo, bem como de transformação radical do
Estado, enxergando-o como relação social que espelha a alteração na correla-
ção interna de forças entre as classes sociais (ao contrário daquela visão repu-
blicana, cujo horizonte é o regular funcionamento de instituições burguesas.
Ocorre que, na história, são justamente elas as que impedem transformações
radicais internas e preservam os privilégios coloniais).

14
Marxismo e América Latina

Como afirma Mészáros, não é possível a construção de uma sociedade


igualitária sob base capitalista:
Essa combinação de evasão ‘equilibrada’ do conflito e reforma – as
marcas reveladoras do liberalismo – pode muito bem explicar seu
relativo sucesso entre todas as formações estatais do capital. Mas de
nenhuma maneira ele poderia atingir mudanças significativas. O li-
beralismo nunca poderia defender uma sociedade equitativa, apenas
uma ‘mais equitativa’, o que sempre significou muito menos do que
equitativa. Mesmo em sua fase mais progressiva de desenvolvimento, o
liberalismo restringiu seus pontos de vista reformatórios e correspon-
dentes esforços práticos estritamente à esfera da distribuição dos bens
produzidos; naturalmente com sucesso de duração insignificante. Pois
o liberalismo sempre fechou os olhos para o fato embaraçoso de que
uma melhora significativa visando uma sociedade equitativa só pode
resultar de uma mudança fundamental na estrutura da própria produ-
ção (MÉSZÁROS, 2002, p. 25).

Podemos adicionar um elemento a mais: se esta é a realidade do modo


de produção capitalista, quanto a realidade latino-americana, sua história de-
monstra que ou seus países estão condenados à dependência ou à revolução.
As classes trabalhadoras latino-americanas devem, portanto, construir ins-
trumentos de disputa de hegemonia com fins a tecer um sentimento nacional-
-popular que se ponha como força hegemônica alternativa (GRAMSCI, 2009,
p. 8) e, à frente de estruturas estatais, redirecioná-las para os interesses das
classes trabalhadoras, das grandes maiorias que têm seu trabalho superexplo-
rado em seu cotidiano.

6. Considerações finais
O continente latino-americano possui uma formação social alicerçada
na inserção dependente no capitalismo internacional e na superexploração
do trabalho, negro e indígena, entrecortado pelo patriarcado. Para tanto, a
ausência democrática sempre foi requisito para classes proprietárias locais
e o imperialismo perpetuarem a exploração. Se o continente vivenciou, pela
primeira vez na história, uma década de governos progressistas – que conse-
guiram alterar qualitativamente as condições de reprodução social de suas
classes trabalhadoras - , como consequência, nesta década, ocorreram golpes

15
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

de Estado, Lawfare e outras táticas em que as classes proprietárias e o imperia-


lismo atuaram para conter os avanços das classes subalternas.
Se em vários momentos da história a validade do marxismo para a com-
preensão da realidade latino-americana foi colocada em xeque, várias das
principais categorias marxianas e marxistas foram fundamentais para a inter-
pretação do continente. Por outro lado, os fatos das últimas décadas demons-
tram a atualidade das mesmas; uma vez mais, a oposição capital x trabalho
está no centro dos conflitos sociais. A necessidade de construção de uma so-
ciedade sem miseráveis, sem a apropriação por uma minoria das inúmeras ri-
quezas dos países latino-americanos, revela a importância do marxismo para
a teoria e prática revolucionárias.
Apropriar-se do pensamento dialético desenvolvido por Marx e Engels,
bem como o pensamento latino-americano formulado por pensadores como
Mariátegui, revela-se um caminho para compreensão do continente latino-
-americano e para a tessitura de uma contra-hegemonia. Para tanto, faz-se
necessário identificar o que nos une como classe trabalhadora, sem deixar de
lado as lutas referentes às peculiaridades dos sujeitos que a compõe, mas tendo
como horizonte a superação do sistema capitalista-patriarcal-racista-sexista,
para a construção de uma sociedade socialista. Diante do trabalho incessante
dos capitalistas em que a ênfase é no individual, no egoísmo e oposição entre
as pessoas, devemos trabalhar, como afirma Álvaro García Linera (VALEN-
ÇA; PAIVA, 2017), com o excepcional presente nas pessoas: o coletivo.

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16
Marxismo e América Latina

LINERA, Álvaro García. ______. Indianismo e marxismo: o desencontro de


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______. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011b.

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dução do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

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MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Boitempo Editorial, 2002.

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17
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

VALENÇA, Daniel Araújo. De Costas para o Império: o Estado Plurinacio-


nal da Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lúmen
Juris, 2018.

VALENÇA, Daniel Araújo; PAIVA, Ilana Lemos de. Álvaro García Linera: um
relato do proceso de cambio e desafios da esquerda marxista latinoamerica-
na. Entrevista com Álvaro García Linera, Vice Presidente da Bolívia. Revista
Culturas Jurídicas, vol. 4, n. 8, mai./ago., 2017.

18
Lutas políticas na América Latina:
restauração conservadora e países
na corrente contra-hegemônica

Ronaldo Moreira Maia Júnior12


Leonardo Gomes de Miranda13

1. Introdução
O presente capítulo tem por objetivo analisar o contexto de lutas políti-
cas na América Latina, a partir dos processos de ascensão de governos pro-
gressistas nos últimos anos. Quando tratamos do momento que passam os
países latino-americanos, centralmente Bolívia, Venezuela, Equador, Brasil,
Argentina, Paraguai, é preciso ter em mente que tais países carregam marcas
de dominação, seja pelo processo de Colonização, ou mesmo pelo modo que
se desenvolveram as economias e os Estados frente às grandes potências.
A última década foi marcada pelo ascenso de lutas políticas e vitórias
sociais e institucionais em diversos países, demonstrando a força de setores
populares e revolucionários, que chegam aos governos com pautas voltadas
ao anti-imperialismo, ao desenvolvimento nacional popular, à garantia dos
direitos sociais e à negação do modelo de economia dependente. Além disso,
a afirmação de populações e povos historicamente invisibilizados e cerceados
de seus direitos de identidade e participação democrática.
A despeito de análises de natureza mais culturais, o momento pelo qual
passa a América Latina está relacionada à mudança das correlações de for-

12 Bacharel em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Especialista em


Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Mestre em Direito
Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: ronaldomaia4@gmail.com.
13 Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Especialização
em Direito Constitucional pela Rede Futura de Ensino/FAVENI (em andamento). Membro do
Projeto Universidade Operária - GEDIC/UFERSA. Email: leo.y.gomes@gmail.com.

19
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

ças e luta de classes no interior destes países supracitados, que despontam na


afirmação de outro projeto de sociedade, qual seja, plurinacional-popular-in-
dianista-socialista-democrático, contrário ao modelo colonial-imperialista-
-dependente-capitalista-burguês, historicamente hegemônico.
Por óbvio que esta contradição de projetos encontra-se em movimento, de
modo que as experiências revolucionárias possuem limites em seus avanços, seja
em termos objetivos ou de interpretação política. Por outro lado, os setores con-
servadores também se articulam para reverter os avanços recentes. Assim, muito
tem se debatido sobre um possível “fim de ciclo” revolucionário, bem como a pos-
sibilidade de uma restauração conservadora na América Latina. Sinais de que este
contexto é real se mostram nos recentes episódios de golpes institucionais, lawfa-
re, derrotas eleitorais, entre outros, que apontam para um contexto de defensiva
política e eleitoral por parte dos setores revolucionários no Continente.
É, portanto, sobre este cenário que nos debruçaremos, buscando analisar
como se deram os processos de lutas políticas e de ascenso aos governos pe-
los setores revolucionários ou populares, buscando caracterizar os principais
avanços e limites dessas experiências, de modo a pensar o atual momento pelo
qual passa a América Latina.
Para tanto, o método utilizado foi o materialista-histórico-dialético, a
partir de consulta bibliográfica e documental, de modo que o capítulo está or-
ganizado em três seções, quais sejam: a primeira buscará compreender quais
os padrões de dominação historicamente construídos na América Latina,
possibilitando conhecer elementos que expliquem o contexto de lutas políti-
cas e ascenso de setores populares aos governos. A segunda seção debruçar-
-se-á sobre as experiências de governos progressistas, buscando apontar seus
avanços e principais características. Por fim, serão abordados aspectos do atu-
al contexto de reação dos setores dominantes às experiências progressistas,
abordando os limites destas e o processo de restauração conservadora.

2. Padrões de dominação na américa


latina e relações de dependência
A compreensão dos processos de lutas políticas na América Latina passa
centralmente pela análise dos padrões de dominação econômica e social pelo

20
Marxismo e América Latina

qual passou o Continente. Assim como ocorreu em outros locais, a América La-
tina traz em sua história e formação social as marcas da expansão da civilização
ocidental proveniente de um tipo de colonialismo mais organizado e sistemáti-
co, cujas origens remontam às conquistas e dominação espanhola e portuguesa.
A colonização desenvolvida nos países latino-americanos, calcada na ex-
ploração dos recursos naturais, dos povos originários, e mais adiante, na pro-
dução agrícola em grande escala, com utilização de mão de obra negra escra-
vizada, se insere no momento de expansão do capitalismo mercantil. Segundo
Valença (2018, p. 34), a Colonização inseriu o território, nações e povos conquis-
tados em um longo processo de exploração em favor das metrópoles e em pleno
contexto de expansão do capital. Assim, o debate sobre reprodução social e a
possibilidade do desenvolvimento de uma dinâmica própria na América Latina
foi alterado não por fatores internos aos povos presentes à época no território,
mas por influência do capitalismo e do contexto geopolítico global.
Tal colonialismo persistiu devido à evolução do capitalismo e à incapa-
cidade (em função do desenvolvimento de uma relação extremamente depen-
dente) dos países latino-americanos em superar tal modelo de dominação –
seja por fatores políticos, econômicos ou socioculturais (FERNANDES, 1975,
p. 11). Assim, o processo de construção de relações dependentes com os países
centrais do capitalismo datam desde a época da conquista e seus desdobra-
mentos, passando por quatro modelos de dominação externa: o antigo mode-
lo colonial, o neocolonialismo, o imperialismo e o capitalismo monopolista.
Inicialmente, temos o antigo colonialismo, marcado pelas relações entre a
Coroa e a Colônia e pela existência de uma sociedade estratificada e com cer-
ta flexibilidade que possibilitava, concomitantemente, a permanência do poder
nas mãos dos colonizadores bem como a capacidade de absorção e controle das
massas – desde a exploração total da força de trabalho e da existência humana
dos mestiços, negros e indígenas até o aparecimento de segmentos sociais me-
nos explorados, mas ainda sim dependentes (FERNANDES, 1975, p. 13).
Nesse contexto, percebemos que a acumulação primitiva no contexto
brasileiro e latino-americano se dá, inicialmente, por meios extraeconômi-
cos, como pilhagens, colonizações, escravizações, trocas comerciais desiguais
e povoamento de novas terras, distinguindo-se da acumulação primitiva es-
sencialmente capitalista, que baseia-se nas relações entre proprietários livres
(POMAR, 2013, p. 23).

21
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

O início da colonização se dá, portanto, de modo a organizar as forças


produtivas do continente para o desenvolvimento das atividades de extração
de minerais, agricultura e exploração de especiarias naturais, buscando aten-
der à demanda do comércio internacional, de modo que a sociedade colonial
teve por base a exploração ilimitada do trabalho, principalmente com recorte
étnico (VALENÇA, 2018, p. 35).
A crise desse primeiro modelo residiu na incapacidade dos países metró-
poles (Portugal e Espanha) conseguirem sustentar economicamente tal relação,
na disputa pelo poder na Europa pelo controle das colônias latino-americanas
e na eclosão de movimentos de emancipação que voltavam-se contra a Coroa,
aliados às mudanças estruturais que ocorriam no continente europeu entre o
fim do século XVIII e o início do século XIX (FERNANDES, 1975, p. 14).
O segundo tipo de dominação externa surge a partir da desagregação do
antigo modelo colonial. Com isso, os países europeus que controlavam a impor-
tação e exportação dos países latino-americanos passaram a focar muito mais
esforço no comércio e na exportação do que na produção local. A produção com
vistas à exportação já estava amplamente organizada sob custos baixos para os
países centrais, fator que contribuiu para a fixação desse modelo indireto de
dominação – uma espécie de neocolonialismo (FERNANDES, 1975, p. 15).
Essa realidade, segundo aponta Fernandes (1975, p. 15-16), se deu em
vista de que as nações latino-americanas não dispunham de recursos neces-
sários para produzirem os bens que importavam, nem tampouco as elites lo-
cais tinham interesse na quebra com esse modelo restrito de exportação (com
destaque para os grandes produtores rurais). Assim, a dominação externa
consolidou-se como uma realidade duradoura apoiada pela classe dos expor-
tadores e comerciantes urbanos que não queriam dispor de grandes recursos
para romper com esse modelo. Para eles, era muito mais eficiente se sujeitar
ao controle externo indireto.
O terceiro modelo de dominação externa surge a partir da Revolução
Industrial inglesa, onde a dominação externa, ao atingir as mais variadas ca-
madas da existência social, revolucionando os processos de produção e dis-
tribuição, bem como também chegando às esferas culturais, tornou-se o im-
perialismo e possibilitou a consolidação de um capitalismo dependente nos
países latino-americanos (FERNANDES, 1975, p. 16).

22
Marxismo e América Latina

Esse modelo impactou negativamente de duas maneiras principais para


a América Latina: primeira, ao reforçar as estruturas econômicas arcaicas e
subdesenvolvidas voltadas à produção de matérias-primas e bens primários
para a exportação; e segunda, ao criar uma classe burguesa que negligencia o
potencial nacional ao ser condescendente com o modelo de exploração posto
(FERNANDES, 1975, p. 17).
Segundo Valença (2018, p. 36)
A Revolução Industrial e a revolução política na França ofereceram os
pilares para a superação da velha ordem mercantil e dos persistentes
resquícios feudais. Elas implicavam, antes de tudo, em uma reconfi-
guração das forças produtivas, relações sociais de produção e formas
políticas correspondentes.

Vale salientar que houve uma modificação estrutural do capitalismo in-


fluenciado pelo processo Inglês e Francês, que consolidou a venda de força de tra-
balho e o assalariamento como modelo de expansão da exploração capitalista, que
não se observou na América Latina. Segundo Valença (2018, p. 37), “Se na Europa
a forma república significava a vitória da burguesia na direção política da socie-
dade, [...] na América Latina a nova forma política não correspondiam às relações
sociais de produção”. Assim, a exploração de riquezas baseada no trabalho de ne-
gros e índios continuou, bem como a dependência econômica aprofundou-se.
Por fim, Fernandes (1975, p. 18; 21) aponta ainda um quarto modelo de
dominação externa que culmina com a intervenção das grandes empresas
corporativas nos países latino-americanos – o capitalismo monopolista, onde
o imperialismo moderno converte-se numa luta do capitalismo com ele mes-
mo pela sobrevivência e supremacia.
Mészáros (2012, p. 17), nesse aspecto, coloca que, em face de estrutural-
mente tender à formação de monopólios por meio do estímulo à competição e
dominação, o modo de produção capitalista não consegue, por si só, conceber
a formação verdadeira de um complexo global e universal pela falta, na raiz
do processo, de igualdade substantiva entre os “competidores”. Segundo ele,
isso implica dizer que
Na situação de hoje, o capital não tem mais condições de se preocupar
com o ‘aumento do círculo de consumo’, para benefício do ‘indivíduo
social pleno’ de quem falava Marx, mas apenas com sua reprodução

23
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

ampliada a qualquer custo, que pode ser assegurada, pelo menos por
algum tempo, por várias modalidades de destruição. Pois, do perverso
ponto de vista do ‘processo de realização’ do capital, consumo e des-
truição são equivalentes funcionais (MÉZÁROS, 2012, p. 21-22).

Nas décadas de 1980 e 1990, quando o modelo de desenvolvimento capi-


talista nos países centrais tende a cair em virtude da insuficiência de mercados
para absorver os excedentes, surgiu a possibilidade para que os países sub-
desenvolvidos se industrializassem e passassem a impor suas condições para
receber os excedentes do desenvolvimento dos países centrais; entretanto, em
vista da histórica construção da relação de dependência, nem a burguesia na-
cional nem seus pensadores econômicos foram capazes de fazê-lo, tanto que
na década seguinte, a concentração de capitais em alguns setores da economia
e nas mãos de poucos grupos econômicos resultou num maior desgaste do
capital nacional e na dependência, cada vez maior, da economia em emprésti-
mos e aplicações de curto prazo na bolsa de valores (POMAR, 2012, p. 61-62).
Esse movimento em direção à financeirização, baseada na ideia de valor sem
produto material e que levou, por exemplo, à crise do capital de 2008, consiste
numa outra saída ao capital para continuar seu fluxo normal de desenvolvimento
e produção. Durante essa crise, uma das saídas mais comuns foi que o Estado
arcasse com os danos causados pelos capitalistas, socorrendo os bancos e que
os ônus fossem distribuídos para a população (HARVEY, 2010, p. 33-34). Essa
“redistribuição” se deu/dá através de medidas draconianas como, por exemplo,
o ataque às legislações trabalhistas, o desmonte dos direitos e proteções sociais,
perseguição e criminalização dos movimentos sociais, entre outros.
Assim, ao tomar a história da América Latina e os padrões de dominação es-
tabelecidos entre as grandes potências e as nações do continente, percebemos que
[...] inexistiu um desenvolvimento latino-americano próprio. A fragilidade
de suas forças produtivas não advém, portanto, da “incapacidade natural”
de seus habitantes ou de não ter a América Latina percorrido o caminho
das grandes potências [...] Em verdade, seu atraso figurou como necessida-
de para o capitalismo se desenvolver em âmbito internacional, bem como
atendeu aos interesses das elites locais (VALENÇA, 2018, p. 38).

24
Marxismo e América Latina

Nesse sentido, as relações de dominação externa resultam na construção


político-econômica de países marginais que são submetidos à exploração in-
direta e generalizante, reduzidos a meras fontes de excedente econômico e de
acumulação de capital para os países centrais. Ademais, tais relações, histori-
camente construídas, conduzem a três realidades estruturais na abordagem de
Fernandes (1975, p. 19-20): a concentração de renda, recursos e poder nas ca-
madas sociais que têm alguma importância para o modelo de dominação exter-
na; a coexistência e interdependência, para o modelo de dominação externa, de
estruturas políticas, econômicas e socioculturais com características por vezes
anacrônicas; e a exclusão e invisibilização da maioria da população como pres-
suposto estrutural da manutenção e desenvolvimento desse sistema.

3. Experiências progressistas e
constitucionalismo latino-americano
Como já mencionado, nas última década ocorreu um momento de ascen-
so de lutas na América Latina, que modificou as correlações de força histori-
camente estabelecidas. As mobilizações e lutas despontaram em processos de
disputa eleitoral, com diversas experiências de vitórias. Entre as mais conhe-
cidas, pode-se mencionar a Bolívia, Venezuela e Equador. Além destas, Brasil,
Argentina, Paraguai também vivenciaram um momento em que as esquerdas
chegaram ao governo, implementando diversas medidas de natureza social.
Tais experiências, em maior ou menor nível de radicalidade, incorpo-
ram às suas agendas pautas que se contrapõem diretamente aos padrões de
dominação anteriormente expostos. A questão do nacionalismo, o caráter an-
ticolonial e anti-imperialista se entrelaçam e se afirmam (VALENÇA, 2018,
p. 34). No caso dos países andinos, a questão indígena e a plurinacionalidade
se incorporam ao discurso político de lutas e contribuem para reestruturar
os estados. O maior exemplo desse caso, a Bolívia. As questões identitárias e
culturais também acabam por compor o complexo de mudanças que visam
construir um modelo que se contraponha a todo o histórico de dominação.
Segundo Linera (2017, p. 14), a América Latina viveu uma década virtu-
osa de soberania continental, construída a partir de uma pluralidade de pro-
cessos, sujeitos, autonomias e linguagens. Em sua interpretação, são quatro as

25
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

vitórias que caracterizam o período de ascenso de lutas: a ampliação da demo-


cracia política; uma maior redistribuição da riqueza comum e uma amplia-
ção da igualdade social; o surgimento de formas pós neoliberais de gestão da
economia e administração da riqueza socialmente produzida; e a construção
do que chamou de “Internacional latinoamericana progresista y soberana”,
ou seja, a ampliação do aspecto de integração regional latino-americana e sua
afirmação enquanto bloco social, político, econômico e cultural.
Todo este processo se articula com a afirmação de um outro modelo de
Estado e de sociedade que se impôs não apenas nas ruas, mas também na ins-
titucionalidade. Em aspecto jurídico, foram diversas as experiências de Cons-
tituintes que se firmaram no contexto dos processos revolucionários, trazen-
do diversas invocações. Sobre isso, temos que a partir da década de 1980, em
face da redemocratização em diversos países, a América Latina passa a viven-
ciar um amplo processo de descolonização a partir da ruptura com os mode-
los socioculturais, econômicos e políticos europeu e norte-americano, o que
confluiu numa onda de valorização das características próprias locais no que
ficou conhecido como Novo Constitucionalismo Latino-americano (LAURI-
NO; VERAS NETO, 2016, p. 135).
Somado a isso, com a emergência do movimento jurídico do pluralismo
jurídico, iniciou-se um movimento no sentido de construir-se Cartas Consti-
tucionais de caráter plural e agregador nos países da América Latina, carac-
terizado pela quebra com os modelos jurídicos importados da Europa e dos
Estados Unidos e pautado no reconhecimento da existência de uma comuni-
dade permeada por diversos povos, de culturas, histórias e etnias diferentes
que historicamente construíram as bases dessas nações.
De acordo com Laurino e Veras Neto (2016, p. 134), apoiando-se em
Wolkmer, o Pluralismo jurídico foi impulsionado por um conjunto de fatores:
crise de valores, inconformismo das classes subalternas, exaustão do modelo
liberal e o declínio da burguesia capitalista. Nesse ínterim, portanto, onde
há um enfraquecimento desse Estado liberal, começam a ganhar forças nas
sociedades os movimentos populares, que passam a lutar (extra)institucional-
mente pelo reconhecimento dos seus direitos.
Assim sendo, do ponto de vista jurídico, houve amplo reconhecimen-
to dos direitos dos povos originários nesses países, com maior visibilidade
e respeito às suas culturas, práticas e religiosidades como também sua efeti-

26
Marxismo e América Latina

va participação na concepção da nação, constitucionalização do direito a um


meio ambiente ecologicamente equilibrado (pautado pela ascensão da ideia do
desenvolvimento sustentável bem como do ideal do bien vivir, pachamama –
Equador – ou suma qanaña – Bolívia), maior integração entre os países latino-
-americanos, entre outros (LAURINO; VERAS NETO, 2016, p. 130; 135).
Laurino e Veras Neto (2016, p. 136-137) dividem, com base nos trabalhos
de Raquel I. Fajardo e Antônio Wolkmer, esses processos de novos constitu-
cionalismos da América Latina em três momentos distintos: o constitucio-
nalismo multicultural, com destaque para as Constituições da Guatemala
(1985), Nicarágua (1987) e Brasil (1988); o constitucionalismo pluricultural,
com as Constituições da Colômbia (1991), México (1992), Peru (1993), Argen-
tina (1994) e Venezuela (1999); e o constitucionalismo plurinacional, marcado
pelas Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009).
Enquanto no primeiro ciclo do constitucionalismo (multicultural), te-
mos Constituições com um forte teor popular, com ampliação dos direitos co-
letivos e de participação do povo nos ambientes e políticas institucionais bem
como também com o reconhecimento dos povos originários, no segundo ciclo
(pluricultural), ocorre uma guinada no sentido de valorização da democracia
popular com a combinação de instrumentos representativos e participativos,
não se resguardando apenas a conferir à população o direito de escolher seus
representantes mas também de participar efetivamente da gestão pública. Por
fim, no terceiro ciclo (plurinacional), o antigo modelo de Estado de Direito
eurocêntrico passa a conviver com os saberes e crenças dos diversos povos ori-
ginariamente latino-americanos, enfatizando um processo de descolonização
e de valorização do local. É nesse contexto, portanto, que ocorre a elevação
da proteção ao meio ambiente e à natureza ao status de direito humano e
fundamental. Aqui, a nação passa a ser pensada não de um conceito externo
importado, mas sim da confluência dos seus povos de origem, que dão forma
verdadeiramente a uma pátria.
Dessa maneira, percebemos que os países que passaram por mais re-
centes mudanças institucionais na América Latina – Venezuela, Equador e
Bolívia – começaram, a partir de suas lutas expressas nas Constituições, a
questionar o modelo de democracia clássica que colocava no exercício do voto
todo o poder de participação da população no poder.

27
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Situados em um contexto de crise econômica mundial causada pelo capi-


talismo financeiro, crise do sistema partidário de representatividade e de que-
das de presidentes, esses países traduziram nas suas Constituições a ascensão
do novo constitucionalismo a um outro patamar que preza pela proteção e
respeito aos povos tradicionais e originários tanto no que diz respeito ao reco-
nhecimento dos seus direitos, saberes e tradições como também na influência
que eles passam a exercer ativamente na construção da ideia de Estado plu-
rinacional, assim como pelo respeito à natureza (traduzida no ideal de buen
vivir, Pachamama, sumak kawsay, entre outros) enquanto sujeito (FLORES,
CUNHA FILHO e COELHO, 2009, p. 2).
Analisando as Constituições dos três países em relação à participação
popular efetiva, FLORES, CUNHA FILHO e COELHO (2009) afirmam que
houve uma enorme ampliação da esfera de influência e poder conferida à so-
ciedade como um todo em diversos momentos, prezando sempre pela maior
legitimidade possível nas decisões e processos estatais. Segundo os autores,
para que isso ocorresse, foram adotados vários mecanismos e/ou tomadas
certas decisões constitucionais que permitissem à população revogar/retifi-
car leis, revogar mandatos, propor leis, co-gerir a coisa pública, entre outros.
Além disso, houve ainda uma ênfase na garantia material da igualdade de gê-
nero nas instâncias representativas e institucionais tanto às mulheres quanto
aos povos tradicionais indígenas.
No tocante à revogação de mandatos, nos três países, a população detém
o poder de, via voto popular, revogar os mandatos eletivos (inclusive, se esten-
dendo tal direito, na Venezuela, também aos magistrados, que também são
eleitos). No quesito da revogação/retificação de leis, também há semelhança
entre os países, cujo procedimento para tal é o referendo popular (FLORES,
CUNHA FILHO e COELHO, 2009, p. 7).
Já com relação à iniciativa de lei, as Constituições dos países permite que
os cidadãos tenham iniciativas de lei, inclusive podendo propor modificações
constitucionais, referendos sobre qualquer assunto e sobre a instauração de uma
Assembleia Constituinte (FLORES, CUNHA FILHO e COELHO, 2009, p. 8).
A co-gestão da coisa pública, entretanto, varia conforme o país: no Equa-
dor, os principais mecanismos são o Conselho Nacional de Planejamento, que
tem a atribuição de elaborar o Plano Nacional de Desenvolvimento, e a figura
da “cadeira vazia”, que consiste na reserva de uma cadeira, nas sessões dos go-

28
Marxismo e América Latina

vernos sub-nacionais, para a população exercer sua voz e voto; na Bolívia, por
meio da figura da “participação e controle social”, a Constituição estabelece a
população como uma espécie de contra-poder que pode
[...] participar no desenho das políticas públicas, exercer o controle so-
cial de todos os órgãos de governo e empresas públicas ou privadas
que recebam verbas públicas, auxiliar o legislativo na elaboração de
leis, denunciar atos de corrupção e pronunciar-se sobre os informes de
gestão emitidas pelos órgãos do Estado (FLORES, CUNHA FILHO e
COELHO, 2009, p. 10).

Já na Venezuela, a seu turno, ocorre o incentivo à descentralização por


meio dos estados e municípios através da transferência da gestão de serviços
públicos às comunidades e grupos de vizinhos e à participação dos trabalha-
dores e das comunidades na gestão das empresas públicas, sendo tais meca-
nismos regulamentados pela Lei dos Conselhos Municipais aprovada em 2006
(FLORES, CUNHA FILHO e COELHO, 2009, p. 9-10).
Em relação à garantia da igualdade de gênero, a Constituição do Equa-
dor garante a representação paritária entre homens e mulheres aos cargos de
nomeação ou designação pelo Poder Público e nos movimentos e partidos
políticos. Já na Bolívia, em referência a representação no parlamento, a Cons-
tituição garante a representação paritária entre homens e mulheres (FLORES,
CUNHA FILHO e COELHO, 2009, p. 12).
Já no âmbito da participação indígena, a Constituição boliviana define a
forma comunitária como uma das modalidades de democracia permitidas no
país, assegurando a observância da cultura, usos e costumes dos povos origi-
nários no processo de escolha de seus dirigentes. Na Venezuela, a seu turno, a
Constituição afirma que é dever do Estado assegurar a participação indígena
na política, garantindo ainda uma cota mínima de representação indígena
na Assembleia Nacional e nos organismos de deliberação nos níveis federal e
local (FLORES, CUNHA FILHO e COELHO, 2009, p. 12-13).
Ainda no âmbito dos povos indígenas, vale destacar que a Constituição
boliviana reconheceu os territórios indígenas como entes de governo sub-na-
cionais, hierarquicamente iguais aos municípios e províncias, com autogover-
no e autonomia. No Equador, os indígenas tiveram reconhecidos os direitos
à posse comunal de suas terras, com a aplicação de procedimentos de justiça

29
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

próprios e devem ser consultados sobre o aproveitamento dos seus recursos


naturais. Na Venezuela, semelhantemente ao Equador, esses povos têm direito
à organização territorial e à consulta prévia sobre a disposição de seus recur-
sos tendo, por meio da Lei de Conselhos Comunais de 2006, adquirido a pos-
sibilidade de instaurarem Conselhos Comunais com autogoverno (FLORES,
CUNHA FILHO e COELHO, 2009, p. 13).
Desse modo, fica claro que essas experiências atuais de novo constitucionalis-
mo latino-americano têm a potencialidade de radicalizar a democracia, superando
o modelo clássico que restringe o poder soberano popular ao momento do voto e
ignora o atual cenário político-econômico de crise do sistema representativo.
Contribuindo para este debate, Wood (2003) distingue dois tipos de
defensores da democracia: aqueles que acreditam que a democracia é com-
patível com o capitalismo, tendo em vista a ampliação da consciência social
das grandes empresas e corporações, a responsabilidade estatal pelos serviços
públicos essenciais etc.; e aqueles que acreditam que a democracia verdadeira
é totalmente incompatível com o capitalismo. Para estes últimos, a real demo-
cracia (a chamada democracia socialista e radical, que representa o verdadeiro
governo do povo e pelo povo) é essencialmente anticapitalista tendo em vista
que este modo de produção submete tudo e todos ao poder de acumulação do
capital e às leis do mercado. Não existe, para a autora, sociedade capitalista em
que a riqueza não teve acesso privilegiado ao poder, afastando cada vez mais
esferas da vida do alcance da democracia. Não há, para Wood, capitalismo
onde o poder popular esteja à frente das necessidades e imperativo do capital.

4. Restauração conservadora na América Latina


Em contraponto a esses processos de novo constitucionalismo latino-
-americano, a elite internacional capitalista, começa a se articular com as eli-
tes burguesas locais em tentativas variadas de derrubar o poder popular e
restaurar a agenda do capital. Segundo LINERA (2017, p. 13)
La actual contraofensiva imperial en América Latina tiene una forma
diferente a la que vivimos en los años sesenta, setenta u ochenta del siglo
pasado. Antes se privilegiaba el uso desnudo de la fuerza, que articulaba
tras de sí a políticos y empresarios que sostenían por detrás el tutelaje
dictatorial-militar sobre la sociedad. Ahora la punta de lanza es medi-

30
Marxismo e América Latina

ática, económica, social y cultural y, solo después –llegado el caso–, de


confrontación social, con posibilidades de recurrir a la fuerza armada.

Nesse contexto, podemos destacar alguns processos semelhantes que


ocorreram ou continuam a ocorrer nos países da América Latina: no Brasil, o
golpe depôs a presidenta eleita Dilma Rousseff em 2016 e permitiu a ascensão
conservadora ao poder iniciada no governo do presidente Michel Temer e que
culmina com a eleição do então candidato da extrema direita reacionária, Jair
Bolsonaro em 2019; na Argentina, a queda da presidenta Cristina Kirchner e
ascensão de governo de caráter conservador e elitista; na Venezuela, a tenta-
tiva em curso de golpe protagonizada pela elite local representada por Juan
Guaidó e pelas forças internacionais do capital, capitaneadas pelos Estados
Unidos e demais países centrais do capitalismo.
No Brasil, a crise que culminou no golpe de Estado de 2016 e na ascensão
conservadora que vivenciamos atualmente tem múltiplas raízes objetivas e sub-
jetivas. Do ponto de vista dos sujeitos, conforme ensina Marilena Chauí (2016,
p. 16), durante os governos petistas (2002-2016), a política econômica focada na
ascensão social por meio do consumo levou à emergência de uma nova classe
trabalhadora (e não um nova classe média, como afirmavam no período).
Chauí (2016, p. 17-18) destaca que existem duas principais classes sociais:
aquela que detém os meios de produção (burguesia) e a que somente dispõe
de sua força de trabalho (proletariado). Entretanto, existiam outros sujeitos
que não se encaixavam em nenhuma das duas aos quais se atribuía a noção de
classe média, hoje representada pelos profissionais liberais não assalariados, a
burocracia estatal, os servidores públicos, os pequenos proprietários fundiá-
rios e os pequenos empresários não vinculados aos oligopólios transnacionais.
Essa classe média, portanto, não detém nem o poder econômico da bur-
guesia nem o poder social do proletariado, estando fora da esfera de influência
de Estado e restando somente para ela o domínio do poder ideológico. Por
ser fragmentada e influenciada pelo individualismo competitivo, o ideário da
classe média passa a ser duplo: proteger-se da sua proximidade com o proleta-
riado e continuar sonhando alcançar a burguesia (CHAUÍ, 2016, p. 19).
Somados ao quadro fatores como a ascensão de ideologias meritocráticas
de sucesso como o pentecostalismo e empreendedorismo bem como também às
tendências historicamente hierárquicas da sociedade brasileira, temos o perfil da

31
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

classe média alta que possibilitou o golpe de Estado no Brasil de 2016 e a posterior
ascensão da extrema direita reacionária ao poder (CHAUI, 2016, p. 19-20).
Assim como dispõe Boito Jr. (2016, p. 24-25), o conflito que ocorreu no
Brasil em 2016 que culminou no golpe trata-se de um conflito distributivo,
relativo à distribuição de riqueza. Assim como nos demais conflitos de classe
ao longo da história, estes não aparecem desta forma; ao contrário, são dissi-
mulados em algo mais palpável como, por exemplo, o atual caso do discurso
do combate a corrupção. Ora, claramente, esse não era o interesse das elites no
cenário que se punha à época haja vista que os próprios políticos defensores
do golpe de Estado ou eram condenados ou eram investigados por corrupção.
Como a maioria enquadrava-se nesse segundo caso, um dos interesses por
trás do impeachment foi justamente (como afirmou o então senador Romero
Jucá) para parar as investigações de corrupção. Contudo, o principal interesse
motivador foi o conflito distributivo de riqueza.
Do ponto de vista objetivo, durante os governos do Partido dos Traba-
lhadores (com ênfase no primeiro governo Lula), a política econômica era
amplamente baseada na exportação de commodities e bens de consumo não
duráveis. Com a eclosão da crise do capital de 2008, o principal mercado im-
portador dos produtos brasileiros, a China, diminuiu as importações, afetan-
do diretamente a economia. Esse quadro piorou durante os governos da pre-
sidenta Dilma Rousseff, que passou a ser atacada pela elite interna (amparada
pelos interesses externos do capital imperialista), por setores da burguesia in-
terna anteriormente apoiadores do governo e pela classe média alta.
Assim, em 2016, o Brasil vivenciou um golpe de Estado perpetrado por
setores conservadores da população e instrumentalizados pelo Legislativo e
Judiciário nacionais, a serviço dos interesses da burguesia, que possibilitou a
assunção ao poder do vice-presidente Michel Temer.
De agenda claramente conservadora e neoliberal, durante o governo Temer
tivemos o retrocesso nos direitos trabalhistas e sociais com a aprovação da Lei da
Terceirização, que passa a permitir a terceirização irrestrita tanto das atividades-
-meio como das atividades-fim, bem como da Reforma Trabalhista, que represen-
ta um ataque ao arcabouço jurídico protetivo do trabalhador que precariza ainda
mais as relações de trabalho quando não as extingue ou inviabiliza.
Ainda no âmbito do cenário político brasileiro, podemos destacar a pri-
são do ex-presidente Lula como forma de impedir o retorno ao poder da es-

32
Marxismo e América Latina

querda brasileira, com amparo no mecanismo judicial a serviço da burguesia


e a eleição de um deputado reacionário da extrema direita à Chefia do Execu-
tivo do país, que possibilita a continuidade da agenda neoliberal de ataque aos
direitos e garantias sociais e de criminalização dos movimentos sociais.
Outro exemplo de golpes na América Latina foi o Paraguai. Neste caso,
o ex-presidente Fernando Lugo, eleito em 2008, foi deposto em 2012 por um
golpe articulado em conjunto com o Legislativo daquele país que, em menos
de 24 horas, consolidou a deposição, responsabilizando judicialmente o então
presidente pelo aumento da insegurança no país.
O governo de Lugo atuou fortemente nas matérias relativas à soberania
energética e à saúde pública bem como a efetivação da integração regional do
Paraguai com os outros países da América Latina, na UNASUL e no MER-
COSUL. Desde o início do governo, a oposição elitista tentou por várias vezes
depor o presidente mas necessitava de um fato político que embasasse a ação.
Nesse sentido, em junho de 2012, ocorreu o massacre do Curuguaty, fruto do
conflito entre camponeses sem-terra e um latifundiário.
Com a emissão de uma ordem de inspeção para expulsar os camponeses
da terra pelo Judiciário, houve um conflito intenso entre os mesmos e os poli-
ciais, resultando em mortes de ambos os lados. Tudo isso resultou na instru-
mentalização desse episódio pela mídia e pela elite burguesa do país, resultan-
do no processo que acabou por retirar o presidente eleito e permitir a ascensão
do conservadorismo ao poder, que consolidou retrocessos sociais diversos e
abertura do país à exploração estrangeira generalizada.
Assim, segundo Linera (2017) o que se percebe é um momento de de-
fensiva política e eleitoral por parte das esquerdas na América Latina. Soma-
-se a isso, a ação imperialista norte-americana, em articulação com as forças
conservadoras locais, no sentido de regressar aos governos. Isso não significa
dizer que estamos lidando com um fim de ciclo necessariamente, mas im-
põe que percebamos quais os limites das experiências da última décadas, bem
como o que ainda é necessário ser construído.
Valença (2018, p. 226) expressa a preocupação com os processos de restau-
ração conservadora e, especificamente sobre o caso Boliviano, demonstra que
“a contradição entre redistribuição e acumulação tende a agudizar-se até a ne-
cessidade de novas rupturas”, sob pena de haverem restaurações conservadoras.

33
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Para aqueles que sustentam a institucionalidade democrática expressa


nas novas Constituições, é importante perceber que o Direito, se mostra como
produto das correlações de forças na sociedade, podendo ter caráter estabili-
zador de processos democratizantes, no entanto, este também possui um li-
mite, na medida que atende aos interesses da produção e circulação do capital
(VALENÇA, 2018, P. 226).
Linera (2017) sobre os limites das experiências progressistas da última
década, aponta que os governos conseguiram de fato implementar diversos
avanços sociais e políticos, no entanto, ainda possuem tarefas que são im-
prescindíveis para manter o ciclo revolucionário vivo na América Latina. En-
tre as tarefas, pode-se mencionar cinco: inicialmente é necessário construir
crescimento e estabilidade econômica, enquanto base material para efetivar a
justiça social e a força política; em segundo, promover uma revolução cultural
permanente, pois os processos redistributivos promovidos no último período
apresentaram um limite claro – não possuíram conexão com uma mudança de
natureza cultural e política na população. É necessário construir hegemonia
política e cultural para estabilizar os processos recentes; um terceiro elemento
é promover uma reforma moral e anticorrupção, dado que esta tem sido obje-
to de instrumentalização por parte das forças conservadoras nos processos de
golpes recentes; outro elemento é a construção de lideranças históricas para os
processos revolucionários, fato que se apresenta como importante, mas tam-
bém como um limite, pois a construção de lideranças se dá muito lentamente,
principalmente aquelas que possuem grande conexão com as bases populares;
por fim, buscar superar as barreiras que impedem uma maior integração entre
as nações na América Latina.

5. Considerações finais
A América Latina historicamente carrega consigo em sua formação so-
cial e econômica, as marcas de séculos de exploração e dominação colonial,
escravismo, bem como de dependência dos países centrais do Capitalismo.
Nesse sentido, a história de diversos povos latino-americanos foi de negação
de direitos, invisibilização de sua identidade sócio-cultural, exploração ilimi-
tada da força de trabalho e baixo desenvolvimento de forças produtivas.

34
Marxismo e América Latina

As lutas políticas travadas na última década em diversos países, central-


mente Bolívia, Venezuela, Equador, e que culminaram na chegada aos gover-
nos, são expressão do ascenso de blocos históricos que conseguiram modificar a
correlação de forças internamente aos seus países, articulando pautas de caráter
anticolonial, anti-imperialista, anti-neoliberal, e de caráter nacional-popular.
O atual contexto, no entanto, é de defensiva política e eleitoral por parte
das esquerdas e dos grupos que impulsionaram esse processo, além de que
as experiências possuem limites que precisam ser superados para esse esta-
bilizarem. Além de fatores internos, setores nacionais conservadores, aliados
com o imperialismo norte-americano, tem buscado recompor sua influência
e poder na região, com a implementação de diversos golpes de Estado, pressão
internacional, boicotes econômicos às nações, poderio midiático, entre outras
ações. Entre os países que já vivenciaram restaurações conservadoras, pode-se
mencionar o Brasil, Argentina e Paraguai.
Assim, está claro que a América Latina viveu uma ascenso revolucioná-
rio na última década e que o atual momento é de reação conservadora, com
claros processos de restauração dos antigos grupos aos governos. No entanto,
esse processo de defensiva das esquerdas não pressupõe por si o fim do ciclo
progressista. Há ainda as experiências da Bolívia, Venezuela e Equador que
resistem e que apontam para um outro projeto de sociedade.

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36
Notas introdutórias sobre a Economia
Política da Dependência

Gabriel Miranda Brito14


Ilana Lemos de Paiva15
Lázaro Fabrício de França Souza16

1. Introdução
Por sua própria constituição, o modo de produção capitalista implica uma
relação desigual entre as duas classes que emergem com a consolidação da so-
ciedade moderna, ou seja, aquela composta pelos que possuem a propriedade
privada dos meios de produção – a burguesia, em suas diversas configurações:
comercial, industrial, financeira, etc. – e aqueles que têm a sua força de tra-
balho explorada pelos primeiros e se constituem como a classe-que-vive-do-
-trabalho, utilizando o termo proposto por Ricardo Antunes (2009). Sendo as-
sim, no modo de produção capitalista, a desigualdade social não é um defeito,
mas um elemento constitutivo para a reprodução do capital. Há, contudo, países
onde a desigualdade afeta de modo mais incisivo as condições de vida da classe-
-que-vive-do-trabalho. Um dos argumentos possíveis para compreender este
movimento parte do pressuposto de que há, em alguns países, localizados na
periferia do capitalismo, um processo de superexploração da força de trabalho
e maior precarização das relações de trabalho, ocasionado, sobretudo, pela lo-
calização destes países na divisão internacional do trabalho (MARINI, 2000).

14 Cientista Social. Possui graduação em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Mestre e, Psicologia e doutorando do Programa de Pós Graduação em Psicologia.
Membro do Grupo de Pesquisa Marxismo & Educação (GPM&E).
15 Doutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, coordenadora do Grupo de Pesquisa Marxismo & Educação (GPM&E)
16 Professor da Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA. Sociólogo e Mestre em Ciências
Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Coordenador
do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Humanidades e Saúde do Semiárido e membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (Gedic).

37
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Destarte, o presente trabalho, de caráter bibliográfico e exploratório,


pretende expor noções gerais acerca da teoria da dependência em sua vertente
marxista, conforme proposta por Ruy Mauro Marini (2000a, 2000b, 2000c)
e desenvolvida posteriormente por outros pensadores como Marcelo Carca-
nholo (2005, 2013) e Jaime Osório (2013), compreendendo-a como uma pers-
pectiva teórica adequada para refletir sobre o funcionamento do capitalismo
em países periféricos, como é o caso do Brasil e demais países da América
Latina. Tratar-se-á, em um primeiro momento, acerca de elementos distin-
tivos das duas principais correntes da teoria da dependência, buscando situ-
ar, de forma introdutória, as lides teóricas do campo. Posteriormente, serão
apresentados os principais fundamentos da teoria marxista da dependência, a
saber: o debate sobre divisão internacional do trabalho e superexploração da
força de trabalho, estratégia adotada pela burguesia nacional dos países peri-
féricos de modo a manter-se competitiva e pela burguesia internacional como
forma de aumentar a produção de mais-valor.
As décadas de 1960 e 1970 registraram um profícuo debate sobre a dialé-
tica desenvolvimento-subdesenvolvimento na maioria dos países da América
Latina e também em outras partes do mundo. É neste contexto que ganha
força a discussão sobre dependência econômica. No Brasil, conforme regis-
tra Prado (2013), o debate circunscreveu-se sobretudo em torno da obra de
Fernando Henrique Cardoso, que contava também com as contribuições do
sociólogo e historiador chileno Enzo Faletto. As discussões propostas pelos
intelectuais com inspiração marxista do chamado grupo de Brasília, dentre
os quais se destacam Vânia Bambirra, Theotônio dos Santos, André Gunder
Frank e Ruy Mauro Marini, foram colocadas de lado e até os dias atuais são
quantitativamente pouco discutidas no ambiente acadêmico.
Na assertiva de Prado (2013) e Wasserman (2017), podemos elencar pelo
menos dois elementos que contribuíram para que as ideias dos autores filiados
à perspectiva marxista não tenham germinado em solo brasileiro. Em primei-
ro lugar, o golpe civil-militar que impediu os autores marxistas de divulgarem
suas obras no Brasil. Tal circunstância permitiu que as teses dependentistas de
visada marxista fossem divulgadas por Fernando Henrique Cardoso, opositor
intelectual dos marxistas e que, amiúde, inverteu os argumentos dos autores
marxistas e criou falsas polêmicas no campo.

38
Marxismo e América Latina

Nesse diapasão, muitas das contribuições da denominada teoria marxis-


ta da dependência foram invisibilizadas ou simplesmente produzidas como
inexistentes e, para além disso, como escreve Durval Muniz (2017, p. 11), “a
própria paternidade ou maternidade da teoria da dependência lhes foi arreba-
tada e atribuída a um de seus opositores, poderoso e vencedor, na universida-
de e na política, Fernando Henrique Cardoso, na companhia de Enzo Faletto”,
tendo em vista que a publicação e divulgação da obra Dependência e desen-
volvimento na América Latina, atribuiu-lhes o título de fundadores da teo-
ria da dependência. É neste sentido que este trabalho se apresenta como uma
tentativa de resgatar, em linhas introdutórias, elementos centrais da vertente
marxista da teoria da dependência.
Ora, a condição social imposta aos estratos pauperizados da classe traba-
lhadora não pode ser compreendida “a olho nu”. As informações possíveis de
serem acessadas através dos sentidos e que, por vezes, são expressas em dados
quantitativos, não dão conta de explicar o profundo cenário de distribuição
desigual dos recursos em países da América Latina, como o Brasil. É preciso,
portanto, aliar os dados empíricos com a atividade racional do pesquisador, a
fim de identificar quais são as mediações envolvidas no processo de produção
e reprodução da desigualdade social. Neste sentido, advogamos que os fun-
damentos da economia política da dependência se constituem como chave
analítica essencial para a compreensão da realidade social dos países situados
na periferia do capitalismo, embora o caso brasileiro receba ênfase em alguns
exemplos utilizados ao longo do texto.

2. Sobre as lides presentes no seio da teoria da


dependência: contribuições preliminares
É em meio à crise do desenvolvimentismo, durante a década de 1960,
que a teoria da dependência ganha espaço nas análises acerca do subdesen-
volvimento e se coloca em oposição ao pensamento cepalino, que, em termos
gerais, pode-se dizer, constituía uma teoria do subdesenvolvimento econômi-
co que se debruçava e buscava compreender os precípuos problemas e carac-
terísticas dos países que formam a chamada periferia do sistema econômico
internacional. Ainda assim, as duas principais correntes do pensamento de-

39
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

pendentista são diametralmente opostas, no sentido que tanto compreendem


a dependência em termos distintos quanto fornecem caminhos diferentes
para a superação do subdesenvolvimento. O sociólogo chileno Enzo Faletto
e seu par brasileiro Fernando Henrique, encabeçavam a versão weberiana da
teoria da dependência ou, simplesmente, versão do capitalismo dependente-
-associado, como se convencionou chamá-la. No outro campo teórico, esta-
vam aqueles vinculados a vertente marxista do qual faziam parte, como já
supramencionado, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos, entre outros
(MARTINS, 2013; VALENCIA, 2018).
Para o modelo de Cardoso e Faletto, é possível conciliar desenvolvimen-
to e dependência, razão pela qual defendiam a integração da economia nacio-
nal ao mercado internacional, de modo a possibilitar a entrada de multinacio-
nais nas economias periféricas, meio que, como aponta a dupla, era adequado
para garantir desenvolvimento econômico nas periferias do sistema capitalis-
ta (CARDOSO; FALETTO, 1970). Tal premissa é combatida pelos intelectu-
ais marxistas, tendo em vista que, como será abordado nas próximas seções,
para a teoria da dependência marxista, essa abertura econômica permite uma
maior transferência de valor da periferia para o centro, marcando os países
dependentes na retaguarda do desenvolvimento capitalista.
Todavia, as discordâncias entre a vertente do desenvolvimento-associa-
do e a marxista não se esgotam no tema da abertura dos mercados. Se para a
vertente marxista não seria possível superar o subdesenvolvimento associado
à condição de dependência que ocupa o continente latino-americano senão
por meio de uma revolução, para Enzo Faletto e Cardoso, a correlação de for-
ças entre as classes sociais associada com um conjunto de políticas econômi-
cas poderia superar a condição de subdesenvolvimento de qual padecem as
economias dependentes.
Constitui-se igualmente como uma divergência em relação a vertente
marxista da teoria da dependência o fato de que o modelo de desenvolvimen-
to-associado, ao preconizar a abertura ao capital externo, tende a manter, e
em algumas circunstâncias até ampliar, o nível desigual de distribuição de
renda, fator este que não aparece no escopo de preocupações de Cardoso e
Faletto, o que denota que aquilo que entendem por desenvolvimento consiste
em um processo de crescimento econômico que não se articula com o aumen-

40
Marxismo e América Latina

to do bem-estar social da classe trabalhadora. Conforme os próprios autores


anotam como remédio para o desenvolvimento econômico na periferia:
[...] para aumentar a capacidade de acumulação […] é necessário conter
a demanda reivindicatória das massas. Isto é, a política de redistribui-
ção que ampliaria o seu consumo e torna-se ineficaz e mesmo, em de-
terminadas condições, perturbadora ao desenvolvimento (CARDOSO;
FALETTO, 1970, p. 131).

Situadas essas divergências gerais sobre ambas as perspectivas, tomemos


agora como foco de análise uma revisão sobre dois grandes axiomas da teoria
marxista da dependência: a divisão internacional do trabalho e a superexplo-
ração da força de trabalho.

3. Notas introdutórias para compreender a condição de


dependência a partir de uma visada marxista
Para Ruy Mauro Marini (2000a), o processo através do qual o capitalis-
mo se desenvolve na periferia, em especial nos países América Latina, conti-
nente privilegiado nas investigações do autor, não é o mesmo que ocorreu e
ocorre nos países da Europa e nos Estados Unidos da América, por exemplo.
E esta distinção decorre, sobretudo, pelas desiguais posições dos países na
divisão internacional do trabalho. Uma divisão que remonta ao século XVII
e divide-se entre o grupo de países que acompanharam a revolução produtiva
e o movimento do capital, e aqueles que, não conseguindo revolucionar sua
base produtiva, assumem uma posição subordinada que se expressa:
[...] na dependência de recursos externos e de tecnologia; na constitui-
ção de uma estrutura produtiva heterogênea, pouco diversificada com
implicações desastrosas sobre a constituição do seu mercado interno,
instalando assim uma tendência de concentração de renda e ainda, um
mercado de trabalho heterogêneo e limitado (CARLEIAL, 2012, p. 8).

Observando a história, é possível identificar os processos que impedi-


ram a América Latina e, em especial, o Brasil, de traçar o mesmo percurso do
capitalismo nos países do centro. A subordinação que, em um primeiro mo-
mento, pré-capitalista, ocorria através da expropriação da riqueza dos países

41
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

colonizados pelos países centrais, reconfigura-se, posteriormente, na expor-


tação, por parte dos países dependentes – agora independentes, no plano for-
mal – de produtos utilizados para baratear a força de trabalho (como gêneros
alimentícios) e matérias-brutas e primas. Com o barateamento do capital va-
riável (ocasionado pela oferta de alimentos dos países periféricos) e do capital
constante (proporcionado pela oferta de matéria-bruta e prima), os países do
centro aumentam as suas taxas de lucro e deste modo, reforça-se o papel de
dependência dos países da América Latina, que apenas se desenvolviam na
medida em que contribuam com o desenvolvimento do capitalismo industrial
nos países centrais, que, por sua vez, se consolidavam como vanguarda do
desenvolvimento econômico (MARINI, 2000a).
Enquanto aos países do centro era possibilitado – em decorrência da
relação de dependência – o desenvolvimento de suas forças produtivas e a
extração de mais-valor sob a forma relativa17, a América Latina, ocupando a
retaguarda no desenvolvimento tecnológico, seguia se desenvolvendo às mar-
gens do capitalismo, com sua economia centrada em um modelo agropecuá-
rio, extrativista e exportador. Fruto desta desvantagem histórica, os países da
América Latina não logram, no intercâmbio internacional, as condições para
competir com os países do centro. E isto ocorre, pois, os últimos, possuindo
historicamente as condições para o maior desenvolvimento das forças pro-
dutivas, têm a possibilidade de produzir com menor valor a mesma merca-
doria que um país da periferia produz com um valor mais alto. No mercado,
contudo, por mais que se leve em consideração as variações da lei da oferta e
demanda, o preço da mercadoria (expresso em moeda) tende a refletir o valor
médio da sua produção (expresso em tempo de trabalho socialmente necessá-
rio). E é por isto que os países do centro – com maior produtividade – têm a
possibilidade de realizar as suas mercadorias por um preço acima do seu valor
e com isso, obter lucro extraordinário (MARINI, 2000a).
Portanto, conforme exposto, há a possibilidade de a dependência entre na-
ções estar baseada na produtividade, mas também pode estar expressa no fato
de determinada nação possuir o monopólio da produção de determinada mer-
cadoria, o que a permitirá burlar a lei do valor e comercializar a referida merca-

17 A extração de mais-valor sob a forma relativa nos países do centro é possibilitada pela redução do
valor da força de trabalho, ocorrida pela desvalorização dos bens-salários. E esta desvalorização,
por sua vez, é proporcionada pela oferta desses bens pelos países latino americanos.

42
Marxismo e América Latina

doria por um preço acima do seu valor. Tal fato demonstra outra possibilidade
de se realizarem trocas desiguais no comércio internacional de mercadorias. O
que resta demarcar é que estes processos implicam uma transferência de valor
da periferia para o centro. Conforme Ruy Mauro Marini adverte:
A apropriação de valor realizado encobre a apropriação de uma mais-
-valia que é gerada mediante a exploração do trabalho no interior de
cada nação. Sob esse ângulo, a transferência de valor é uma transferên-
cia de mais-valia, que se apresenta, desde o ponto de vista do capitalista
que opera na nação desfavorecida, como uma queda da taxa de mais-
-valia e por isso da taxa de lucro (2000a, p. 118).

Contudo, além do mecanismo de trocas desiguais, há outras formas de


transferência de valor da periferia para o centro. Dado a intensificação do re-
ceituário neoliberal como plataforma de governo nos países da América Lati-
na, e, portanto, a intensificação da desregulamentação e abertura financeira,
sobretudo no período posterior ao Consenso de Washington, deve-se desta-
car, conforme afirma Marcelo Carcanholo (2005, p. 5), que “o capital exter-
no, na forma de investimento direto, tende a repatriar lucros e dividendos, e,
portanto, remete valor criado na periferia para o centro”. Por fim, o endivi-
damento dos países da periferia também exprime um processo de espoliação
que ocorre através do capital sob a forma “portador de juros”. Ora, partindo
do pressuposto que o capital é o “valor que se valoriza”, a quantia monetária X
(ou, em outros termos, o capital portador de juros) emprestada pelos países do
centro, é investida nos países da periferia e retorna ao centro como X’. Ou seja,
retorna ao centro o capital inicialmente investido com o acréscimo dos juros.
A quantidade monetária expressa sob o nome de “juros” consiste em valor que
fora produzido na periferia e agora retorna ao país credor, num processo onde
o centro do capitalismo produz valor de forma parasitária, à custa da explo-
ração da força de trabalho periférica18. Tal mecanismo representa mais uma
faceta da dependência e, como assinalou Karl Marx sobre o processo de endi-
vidamento público, “uma grande parte dos capitais que atualmente ingressam
nos Estados Unidos, sem certidão de nascimento, é sangue de crianças que
acabou de ser capitalizado na Inglaterra” (MARX, 2011, p. 1005).

18 Marcelo Carcanholo (2005, p. 4) apresenta ainda outra condicionante histórico-estrutural da


dependência, a saber: “a instabilidade dos mercados financeiros internacionais, geralmente
implicando altas taxas de juros para o fornecimento de crédito aos países dependentes e colocando
os países dependentes periféricos a mercê do ciclo de liquidez internacional”.

43
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

4. A superexploração da força de trabalho


como chaga dos países dependentes
Diante do contexto de dependência supracitado, a forma encontrada pe-
los países dependentes para remediar a perda do mais-valor produzido para
os países do centro e, ao mesmo tempo, assegurar a dinâmica de reprodução
capitalista na periferia, foi através da superexploração da força de trabalho.
Conforme ilustra Ruy Mauro Marini (2000a, p. 118):
O que aparece claramente, portanto, é que as nações desfavorecidas
pela troca desigual não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os
preços e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria um
esforço redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho),
mas procuram compensar a perda de renda gerada pelo comércio in-
ternacional [e por outras formas, incorporadas posteriormente] por
meio do recurso de uma maior exploração do trabalhador.

A superexploração da força de trabalho é, portanto, de acordo com a


teoria marxista da dependência, o mecanismo utilizado pelas economias da
periferia para manter os padrões capitalistas de acumulação. Em linhas ge-
rais, a superexploração se caracteriza pela remuneração da força de trabalho
abaixo de seu valor e pode ser efetivada através de quatro modalidades que
geralmente se apresentam de forma integrada, mas também podem agir iso-
ladamente. São elas: i) a remuneração da força de trabalho por um preço infe-
rior ao seu valor real, que pode ser expresso em redução salarial ou em baixos
salários; ii) o aumento do valor histórico-moral da força de trabalho sem o
devido aumento da remuneração; iii) o aumento da intensidade do trabalho
e; iv) a elevação da jornada de trabalho (Marini, 2000a, 2000b; Osorio, 2013).
A redução salarial ou/e os baixos salários, caracterizando uma remune-
ração inferior ao valor da força de trabalho consiste em uma forma de supe-
rexploração presente e persistente no Brasil. Conforme aponta Luce (2013, p.
149), “como todas as categorias no marxismo, o valor da força de trabalho é
uma categoria histórica e relacional”, ou seja, é produto da ação dos homens e
mulheres, e assume formas diversas a depender do contexto em que é abordado.
Se hoje se tem, no Brasil, uma jornada de trabalho regulamentada em 8 horas
diárias, isto não é produto do acaso. A determinação de um valor normal da jor-

44
Marxismo e América Latina

nada de trabalho também carrega consigo uma série de determinações, como


a atuação de movimentos sociais, com relevo para os sindicais, e até mesmo a
necessidade do capital de que os trabalhadores não apenas produzam mercado-
rias, mas também participem do processo de realização do capital na condição
de consumidores. Ainda de acordo com Luce (2013, p. 149-150), o salário míni-
mo necessário (SMN), para uma família de quatro pessoas, calculado pelo De-
partamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE),
pode ser “considerado um parâmetro para avaliar a remuneração da força de
trabalho em condições próximas ao seu valor” no Brasil. Isto porquanto parte
do pressuposto que o salário mínimo deva permitir ao trabalhador sustentar a
si e sua família, e se reproduzir socialmente.
De acordo com o DIEESE19, em novembro de 2017, o salário mínimo ne-
cessário era de R$ 3.731,00, enquanto que o salário mínimo nominal consistia
na quantia de R$ 937,00. Ou seja, 3,98 vezes menor do que o salário mínimo
necessário. Ou, visto por outro ângulo: o salário mínimo brasileiro, em 2017,
cobria apenas 25,1% dos gastos necessários a uma família brasileira, de acordo
com o cálculo do DIEESE. Por si só, isto já configura um mecanismo de supe-
rexploração. Entrementes, ao analisar a realidade concreta dos rendimentos
da classe trabalhadora brasileira, é possível obter uma dimensão quantificada
de como esta forma de superexploração opera no Brasil.
Ora, de acordo com os microdados da PNAD/IBGE, em 2015, época em
que o salário mínimo equivalia a R$ 788,00 e o salário mínimo necessário atin-
giu a quantia de R$ 3.518,00, 25,56% dos trabalhadores brasileiros ocupados
com idade superior a 15 anos recebia até um salário mínimo, 36,9% recebia
entre um e dois salários mínimos, e 12,59% entre dois e três salários mínimos.
Se durante o período de 2015, o salário mínimo equivalia 4,46 vezes menos que
o salário mínimo necessário, isto significa que todo aquele trabalhador cuja re-
muneração fosse inferior à equação (4,46 x 1SM)20 estava em condição de supe-
rexploração. A partir dos dados supracitados, pode-se inferir que, seguramente,
75,05% dos trabalhadores estavam submetidos à condição de superexploração.
Com o golpe pseudolegal que aconteceu no Brasil de 2016 e a implemen-
tação de um programa de governo marcado por políticas econômicas de aus-

19 Cf. https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html
20 Ou, simplificando, que recebesse um salário inferior a 3.518 reais.

45
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

teridade e o desenvolvimento de uma contrarreforma do Estado que, dentre


outras implicações, contribui para precarizar e flexibilizar as relações de tra-
balho, tal cenário expresso em 2015 parece ter se agravado, como demonstra
a pesquisa do IBGE publicada em novembro de 201721, onde se obtém a infor-
mação que, em 2016, 50% dos trabalhadores brasileiros possuíam remunera-
ção inferior ao salário mínimo, de R$ 880,00. As implicações destes processos
não atingem de maneira homogênea todos os estratos da classe trabalhadora e
em um país como o Brasil, com uma trajetória escravocrata, os efeitos da de-
pendência atingem de maneira ainda mais incisiva a classe trabalhadora negra
– e isto sem entrar no debate sobre divisão sexual do trabalho, que certamente
exporia outras facetas da superexploração. Corroboram com esta afirmação
o fato de, durante o quarto trimestre de 2016, o rendimento dos negros cor-
responder a 55,3% do rendimento dos brancos, ou 63,7% da população negra
estar desocupada durante o mesmo período (IBGE, 2017).
A modalidade de superexploração, que implica um aumento do valor
histórico-moral da força de trabalho sem o devido aumento da remuneração,
desenvolvida em Marini (2000a), possui estreita relação com a primeira, uma
vez que mina as possibilidades de o trabalhador adquirir bens para a sua re-
produção biológica e de sua família. Nesta modalidade, todavia, se está diante
de um fenômeno que se expressa na produção de necessidades, por parte do
próprio movimento do capital, de mercadorias que outrora eram dispensáveis
na vida do trabalhador. O exemplo de Luce (2013, p. 160), exposto abaixo,
parece sintetizar a problemática com precisão:
Se um televisor [ou celular] passa a ser necessário na sociabilidade que
vai sendo criada com o capitalismo e se uma lavadora automática passa
a ser a maneira de facilitar as atividades domésticas que cumprem um
papel para a reprodução da força de trabalho (em um contexto de au-
mento do seu desgaste e de aumento do tempo de deslocamento até o
local de trabalho), esses são valores de uso que passam a compor o ele-
mento histórico-moral do valor da força de trabalho. Mas e se a única
forma de o trabalhador acessar tais bens de consumo que se tornaram
bens necessários for endividar-se ou submeter-se a uma carga extra de
trabalho? Se está diante de uma alteração do elemento histórico-moral
sem ser acompanhada pela remuneração.

21 Cf. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2013-agencia-de-noticias/releases/18376-pnad-
continua-2016-10-da-populacao-com-maiores-rendimentos-concentra-quase-metade-da-renda.html

46
Marxismo e América Latina

Nesse sentido, estabelecemos uma digressão a partir da leitura ofertada


por Pires (2000), que aponta para o fato de que as ideias, as representações,
os juízos, a consciência, são condicionados pelas condições concretas de exis-
tência. Continua ainda sublinhando que seria justamente por tal motivo que
Marx afirmou que o ponto de partida não seria o indivíduo abstrato, mas sim,
antes de qualquer coisa, um ser real, corpóreo, real, objetivo, que tinha exis-
tência material e uma atividade vital que não poderia ser reduzida somente à
consciência, embora a envolvesse, ao passo em que essa é uma característica
ontológica do homem, quer seja, “o fato de ter uma atividade vital consciente
e teleológica”. Pires (2000) segue postulando que a individualidade do sujeito
não é e não pode ser dissociada da “genericidade”:
A atividade social dos homens, com sua base material, é que cria o
meio onde o indivíduo vive e é apenas nesse meio, no “médium” criado
pela interatividade social, que ele pode se constituir. É ela que cria as
condições e os meios objetivos e subjetivos para a realização da forma
própria de ser de cada singular, da individualidade entendida como a
vida privada ou espiritual de cada um. Porém, ser condicionado pelas
circunstâncias não significa ter uma relação passiva com o preexisten-
te, adaptar-se ou conformar-se ao dado.

As assertivas de Pires servem como subsídio para que se perceba que em


Marx o indivíduo não é um mero reflexo da sociedade, um figurante, nem te-
ria suas individualidades canceladas por ela. O homem marxiano, destarte,
é produto das condições sociais, mas, por outro viés, é igualmente um ser de
criação já que elas são um produto seu. Para o pensador alemão, só é possível
entender as relações dos indivíduos com base nos antagonismos e contradições
existentes entre as classes sociais. Significa dizer que, para Marx, compreender
e interpretar a luta de classes era condição sine qua non para a compreensão
da vida social, de seus mecanismos e agentes. A luta de classes se desenvolve,
para Marx, à medida que homens e mulheres buscam suprir suas necessidades,
sejam elas provenientes do estômago ou da fantasia. Nesse contexto, o dinheiro
é ferramenta chave e exerce forte influência na constituição das “individualida-
des. Defeitos e imperfeições passam a ser qualidades e qualidades passam a ser
seu oposto. Como postulara Marx (1989, p. 232), o dinheiro é chancelado como
bem supremo, passando a ser também aquele que o possui.

47
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Aquilo que eu sou e posso não é, pois, de modo algum determinado


pela minha própria individualidade. Sou feio, mas posso comprar para
mim a mais bela mulher. Por conseguinte, não sou feio, porque o efeito
da fealdade, o seu poder de repulsa, é anulado pelo dinheiro.

Retomando, têm-se, outrossim, duas outras modalidades de superexplo-


ração: o aumento da intensidade de trabalho e a elevação da jornada de traba-
lho. E é mister demarcar que estas formas de superexploração podem se apre-
sentar combinadas com a primeira forma exposta neste texto, ou seja, com a
remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor, ou não. Por exemplo,
um operário pode, ainda que receba cinco mil reais, estar em condição de
superexploração, basta que o ritmo de trabalho a qual está submetido seja um
fator complicador para a sua reprodução biológica. Contudo, é notório que a
combinação entre dois ou mais dos mecanismos de superexploração agravam
a condição de vida do trabalhador.
Voltando às duas últimas formas de superexploração, é possível que se
eleve a jornada de trabalho através imposições expressas do patrão, sobretudo
quando se pode contar com um exército industrial de reserva para regular a
lei da oferta e demanda da força de trabalho em benefício da burguesia, mas
também pode-se utilizar de estratégias previstas na legislação trabalhista,
como horas-extras e banco de horas, por exemplo. Tal prática, ainda que legal,
representa um mecanismo de exacerbação da apropriação do fundo de vida
do trabalhador por parte do capital e, em um cenário em que a remuneração
da força de trabalho é inferior ao necessário para a reprodução biológica do
trabalhador, é vista pelo empregado como uma estratégia de adquirir renda
extra, por mais que isto acarrete implicações em sua saúde e na organização
da vida social e familiar (OSORIO, 1975).
Por fim, mas não menos presente no cotidiano do capitalismo dependen-
te, encontra-se o aumento da intensidade do trabalho, acarretando uma maior
produção de mais-valor às custas da deterioração da saúde do trabalhador. Es-
tudando a morfologia do trabalho no Brasil, Ricardo Antunes (2014) apresen-
tou as condições de trabalho em alguns setores, a saber: a agroindústria, com
foco nos cortadores de cana-de-açúcar, os atendentes de telemarketing e call
center e os operários metalúrgicos. Os três grupos de trabalhadores, apesar de
separados por funções distintas, constituem-se como exemplos da combina-
ção de diferentes mecanismos de superexploração. No entanto, será destacado

48
Marxismo e América Latina

apenas os efeitos sobre a intensificação da jornada de trabalho que, no setor da


indústria automobilística, pode ser observado através de “inúmeras lesões por
esforço repetitivo (LER), que afetam o corpo produtivo dos trabalhadores e
trabalhadoras, contribuindo para incapacitá-los definitivamente para o traba-
lho” (ANTUNES, 2014, p. 44), além de inúmeras manifestações de sofrimento
psíquico decorrentes do trabalho.
Na agroindústria, especificamente no trabalho dos cortadores de cana, os
efeitos da superexploração atingem níveis mais alarmantes, tendo em vista a
condição de pauperismo na qual estão inseridos estes trabalhadores, que tem
sua remuneração frequentemente associada à quantidade de toneladas de cana-
-de-açúcar cortada por dia. Por esta condição, “os trabalhadores rurais acabam
exaurindo suas energias físicas, visando produzir cada vez mais para aumentar
seu salário” (ANTUNES, 2014, p. 45). Como consequência deste processo, “além
de aumentarem significativamente o lucro e a mais-valia das empresas, tem-se
o aumento das doenças decorrentes do excesso de trabalho, [...] os acidentes e
mortes no trabalho” (ANTUNES, 2014, p. 46). No caso dos atendentes de tele-
marketing, os infoproletários, são mais de um milhão de trabalhadores, 70%
representado por mulheres, submetidas a seis horas diárias de trabalho intenso
com tempo restrito para alimentar-se e ir ao banheiro. Tais condições acarre-
tam uma série de problemas para a saúde, como infecções urinárias, sofrimento
psíquico e adoecimento da voz e audição (NOGUEIRA, 2009).
Assim, em ambas as modalidades de superexploração, são espoliadas do
trabalhador as condições necessárias para que este possa repor a sua força
de trabalho. Isso ocorre por infringir o fundo de consumo do trabalhador,
impedindo que este adquira os produtos necessários para repor o desgaste da
sua força de trabalho, conforme ocorre nos casos em que a remuneração pela
força de trabalho é paga por um preço inferior ao seu valor real. O mesmo
se dá quando o aumento do valor histórico-moral da força de trabalho não é
acompanhado pelo aumento da remuneração. Por outra feita, há os casos em
que existe aumento da intensidade do trabalho ou elevação da jornada de tra-
balho, infringindo, assim, o fundo de vida do trabalhador, com a imposição
de ritmos de trabalho extensivos e intensivos que conduzem a um processo de
adoecimento físico e psíquico, com aumento, inclusive, do número de aciden-
tes de trabalho. Conforme afirma Marcelo Carcanholo (2005, p. 6):

49
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Com essa dinâmica de acumulação de capital, o capitalismo dependente


pode crescer, contornando sua restrição externa. Entretanto, com esse
quadro, fica fácil entender como essa dinâmica traz consigo as consequ-
ências inevitáveis da dependência: distribuição regressiva da renda e da
riqueza, associada a uma marginalidade e violência crescentes.

Ora, compreendendo o capitalismo como sistema mundial, os Estados


capitalistas não podem ser analisados isoladamente. Os padrões de acumula-
ção do capital, embora desiguais entre as nações, estão inter-relacionados. Isto
implica afirmar que, a condição de país periférico, dependente, emergente,
subdesenvolvido, atrasado – ou qualquer outro adjetivo que se queira dar –
não se constitui como uma falha interna que poderá ser solucionada a partir
de alterações na política econômica do país, pois a condição de subdesenvol-
vimento representa parte constitutiva do processo de reprodução do capital
em escala mundial. O desenvolvimento (próprio aos países do centro) e o sub-
desenvolvimento (próprio aos países da periferia) constituem-se como fenô-
menos conectados tanto pelo antagonismo aparente que há entre eles quanto
pela complementaridade, ou seja, embora representem condições opostas,
subdesenvolvimento e desenvolvimento são engrenagens de uma mesma di-
nâmica de acumulação/reprodução do capital em escala global. Consonante
Ianni (1988, p. 145), “a análise da dependência estrutural, em sua amplitude e
intensidade, pode revelar tanto algumas manifestações essenciais do imperia-
lismo como alguns característicos singulares das contradições estruturais que
definem o país subordinado”. Nesse direcionamento, ainda, Marini (2000a, p.
109) afirma que a dependência se caracteriza como “uma relação de subordi-
nação entre nações formalmente independentes, em cujo âmbito as relações
de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para asse-
gurar a reprodução ampliada da dependência”.
Definição esta que corrobora com aquela proposta por Theotônio dos
Santos, ao afirmar que “por dependência entendemos uma situação em que a
economia de certos países está condicionada pelo desenvolvimento e expan-
são de outra economia à qual a primeira é submetida” (SANTOS, 1970, p. 231).
Em outros termos, a lógica do capital produz centros mundiais de acumula-
ção, em que determinadas economias se desenvolvem, e regiões dependentes,
cuja uma das marcas do seu processo produtivo é a transferência de valor para
as economias do centro. Portanto, pode-se afirmar que “a dialética do desen-

50
Marxismo e América Latina

volvimento, assim percebida, concebe que o subdesenvolvimento de alguns


países/regiões resulta precisamente do que determina o desenvolvimento dos
demais” (CARCANHOLO, 2005).
Faz-se importante demarcar que o processo de superexploração da força
de trabalho nos países periféricos se constitui como um mecanismo necessá-
rio para assegurar a reprodução do capital. Isso não implica afirmar que os
países situados no centro capitalista não empregam mecanismos para ampliar
a produção de mais-valor, aplicando, inclusive, mecanismos de superexplora-
ção da força de trabalho que tem como alvo aqueles que, embora no centro do
capitalismo, ocupam o “quarto mundo” por se constituírem como minorias
políticas. Contudo, embora países do centro possam adotar mecanismos de
superexploração, esta não é uma prática da qual depende a sua posição na
divisão internacional do trabalho. Já no caso dos países da América Latina,
dado o papel que historicamente esse continente desempenhou na divisão in-
ternacional do trabalho, ocupando uma posição periférica no processo de mo-
dernização, a superexploração se apresenta como uma opção dentre escolhas
escassas para assegurar a reprodução capitalista.
É necessário ainda sublinhar que os processos de superexploração variam
de acordo com o contexto sócio-político e econômico de cada país. Embora o
continente latino-americano compartilhe uma posição subalterna na divisão
internacional do trabalho, o grau de superexploração em cada um dos países
dar-se-á a partir do nível de intensificação do receituário neoliberal, da legisla-
ção trabalhista ou do nível de endividamento público, para citar apenas alguns
exemplos. No caso específico do Brasil, com a ruptura institucional e demo-
crática por meio de um golpe jurídico-midiático e parlamentar, em 2016, e a
vitória de Jair Bolsonaro, em 2018, criaram-se as condições para a implantação
de um receituário ultraliberal, capaz de agudizar o processo de superexploração
da força de trabalho, cenário que, inclusive, é compartilhado por vários países
latino-americanos que presenciaram, nos últimos dez anos, a ascensão de go-
vernos alinhados com o espectro político da direita, seja pela via do chamado
“neogolpismo” ou pelo voto popular, conforme registram os casos de Honduras,
Paraguai, Perú, Guatemala, Argentina, Colômbia, Chile, Brasil e Panamá.
Porém, é certo que tratar de superexploração não implica uma relação
binária. Conforme dito anteriormente, o processo de superexploração da for-
ça de trabalho se apresenta em gradações distintas. Para serem analisadas

51
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

com acuidade, devem levar em consideração as especificidades, particularida-


des e tecidos sociais de cada país. O debate exposto até aqui se propôs apenas
a analisar contributos teórico-conceituais da teoria marxista da dependência,
propondo, exempli gratia, alguns paralelos com a realidade social brasileira.

5. Considerações finais
A discussão expressa ao longo deste artigo buscou delinear fundamen-
tos gerais da economia política da dependência na América Latina. Isto por-
que se admite que características da economia destes países, como trajetórias
de desenvolvimento instáveis, elevados índices de concentração de renda e
endividamento público, estão relacionados com o movimento global de re-
produção do capital. Admite-se, ainda, que a condição de dependência e as
implicações econômicas que dela advém estão relacionadas com o cotidiano
da classe trabalhadora dessas regiões. Conforme exposto, a condição de eco-
nomia dependente apresenta como uma de suas características a alta concen-
tração de renda, o que conduz ao aumento da desigualdade. De acordo com o
índice Gini, o Brasil ocupava, em 2017, a posição de décimo país mais desigual
do mundo. E de acordo com Georges e Maia (2017), seis famílias brasileiras
detém a mesma riqueza que os 50% mais pobres. Este cenário, marcado por
abissal desigualdade econômica, é terreno fértil para a produção de cidadãos
de segunda, terceira, quarta e quinta categorias: os subcidadãos ou classe tra-
balhadora precarizada, a “ralé brasileira”, sem os privilégios de nascimento da
classe média, para fazer referência ao sociólogo Jessé Souza (2009).
Ora, tomando como referência José Murilo de Carvalho (2002) e Thomas
Marshall (1967), o sujeito se constituirá cidadão por estar imerso em uma re-
lação que pressupõe a garantia de direitos (civis, políticos e sociais) por parte
de uma comunidade política – o Estado, no caso das sociedades modernas – e
o cumprimento de determinados deveres por parte do cidadão. Fala-se em
subcidadania, pois embora o sujeito possua nacionalidade brasileira (a con-
dição necessária para, no Brasil, tornar-se cidadão do ponto de vista formal),
este não tem seus direitos garantidos por parte do Estado. A cidadania, fruto
das Revoluções burguesas europeias e estadunidenses nunca existiu no Brasil,
nem na República democrática, tampouco em qualquer outra forma de gover-

52
Marxismo e América Latina

no22. O que ocorre no concreto das relações sociais é que, com a ausência da
função do Estado como ente garantidor de direitos e liberdades individuais,
o grupo de sujeitos mais pauperizados da estrutura social é colocado em uma
condição de desvantagem e “abandono” social. Talvez o verso “trabalhador
brasileiro é tratado que nem lixo”23, do rapper Criolo, sintetize com precisão
aquilo que este parágrafo pretende tratar.
Em várias pesquisas no campo das Ciências Sociais e Humanas, a questão
da pobreza e da desigualdade social é abordada sem que haja, contudo, uma
reflexão aprofundada acerca das suas causas. Esse artigo pretendeu, a partir
da teoria marxista da dependência, que conforme aponta Ouriques (2013),
representa a crítica mais radical e, ao mesmo tempo, fecunda das teses cepa-
linas, fornecer um arcabouço teórico-conceitual que permita compreender a
produção, reprodução e superação da desigualdade e do pauperismo social.
Como empreendimento intelectual e político, a teoria marxista da depen-
dência encontra-se em aberto, disposta a incorporar os desafios teóricos que as
novas configurações do capitalismo contemporâneo impõem, o que inclui o avan-
ço do ultraliberalismo econômico e a financeirização do capital. Nunca é dema-
siado recordar que o empreendimento intelectual crítico se constitui tendo como
base a materialidade das relações sociais. Portanto, cabe ao intelectual marxista
acompanhar os movimentos do capital a fim de compreender sua dinâmica e o
modo como se expressa em distintos tempos históricos e em distintas partes do
globo. Compreender o movimento do capital em escala global continua a ser uma
tarefa necessária para os investigadores que pretendem compreender a realidade
social dos países da periferia do capitalismo, como o Brasil.
O que fazer, contudo, para romper com a condição de dependência, não é
uma resposta que será encontrada neste texto, tampouco se afirma que a supe-
ração desta condição reside na imediata possibilidade para que se possa “alcan-
çar o céu na Terra”. Entretanto, o rompimento com a condição de dependência
configura-se como uma mola propulsora para que se consolidem as condições
necessárias para avançar em direção à garantia de direitos da classe trabalhado-
ra. E superar a condição de dependência significa superar o próprio capitalismo.

22 A ideia exposta não reside em apresentar os ideais burgueses de sociedade como um horizonte
civilizatório, mas apontá-los como parâmetros de um estágio não alcançado no Brasil.
23 Presente na música “Demorô”, lançada em 2013, pelo rapper brasileiro Criolo.

53
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

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56
Constituinte exclusiva na Venezuela:
processo democrático entre lutas políticas

adriele Jairla de Morais Luciano24


Evillin Lissandra Cosme Santana25
Raissa Alves da Silva26
Thaís Frota Ferreira Cavalcante27

1. Introdução
Em 2017, o atual presidente venezuelano, Nicolás Maduro, convocou a
eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte na marcha chavista por
ocasião do Dia do Trabalhador. O órgão tem como objetivo elaborar uma
nova Constituição que substitua a de 1999 com finalidade, segundo o então
presidente, de acabar com a crise vivenciada no país desde 2012 e trazer a “paz
da República” em meio a um cenário de intensas lutas políticas.
Assim como o processo constituinte venezuelano de 1999, o de 2017 foi
fruto de uma grande instabilidade econômica, social e política. Em 1998, com
um discurso de transição democrática para o socialismo a Venezuela pelas
forças bolivarianas, foi instalado um governo socialista, processo liderado por
Hugo Chávez. Durante seu governo, além de conquistas no âmbito social, am-
pliou também direitos políticos da população e revigorou uma política exter-
na autônoma frente aos Estados Unidos (BENATUIL; PLESSMANN; PINE-
DA, 2017, p. 3146). No entanto, apesar de grandes avanços, a vulnerabilidade

24 Graduanda do curso de Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido. Integrante vinculada


ao Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – ajairlaml@gmail.com
25 Graduanda do curso de Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido. Integrante vinculada ao
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – evillinlissandra13@gmail.com
26 Graduanda do curso de Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido. Integrante vinculada
ao Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - raissa_ads@hotmail.com
27 Graduanda do curso de Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido. Integrante vinculada ao
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – thaysfrota2010@hotmail.com

57
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

do capitalismo rentista venezuelano28 vem sofrendo o impacto com a queda


dos preços do petróleo que se somou ao falecimento do líder Hugo Chávez.
Dentro deste contexto caótico, Nicolás Maduro assume o poder.29
No decorrer dos anos após a morte de Chávez, desencadeia-se na Ve-
nezuela, por motivos da crise desenfreada e das eleições de 2013, uma série
de manifestações populares. De um lado, propaga-se a certeza das fraudes
eleitorais e a aspiração da derrubada de Maduro do poder, e do outro, vi-
gorosos avanços das forças bolivarianas apoiando o presidente legítimo. Em
2015, o chavismo30 perde sua influência no controle da Assembleia Nacional
nas eleições parlamentares. No ano seguinte, o Conselho Nacional Eleitoral e
o Poder Judiciário fecham as portas para o referendo revogatório do manda-
to presidencial, aumentando a imunidade parlamentar (BENATUIL; PLES-
SMANN; PINEDA, 2017, p. 3156). Desde então, as forças bolivarianas31 vão

28 O capitalismo rentista na Venezuela “é, antes de tudo, uma economia de contrastes, de extremos que
se opõem permanentemente. Por um lado, um polo dinâmico, assentado sobre a indústria petroleira
configurada como uma articulação do Estado rentista, transnacionais do petróleo e empresas de
comércio de importação. Esse polo dinâmico tem seu núcleo constitutivo na empresa petroleira de capital
intensivo que exerce grande atração sobre o capital circulante disponível, dado sua muitíssima mais alta
lucratividade. Assim, apesar dos esforços estatais de boa ou má fé empenhados historicamente com os
objetivos de diversificar a indústria ou produzir bens salário, estimulando, por exemplo, a produção
agrícola, a própria lógica da acumulação do capital faz migrar o capital sempre para os setores mais
lucrativos da economia, mediante uma atração irresistível e irracional, impossível de ser contrarrestada
por políticas governamentais convencionais” (FERREIRA, 2011, p. 1)
29 De acordo com o artigo 233 da Constituição da Venezuela, “cuando se produzca la falta absoluta del
Presidente o Presidenta de la República durante los primeros cuatro años del período constitucional,
se procederá a una nueva elección universal y directa dentro de los treinta días consecutivos siguientes.
Mientras se elige y toma posesión el nuevo Presidente o Presidenta, se encargará de la Presidencia de
la República el Vicepresidente.”
30 A derrota do levante militar ocorrido na Venezuela em 1994 gerou “heróis claramente visíveis pela
opinião pública”, em especial para o tenente-coronel Hugo Chávez (MARINGONI, 2004, p. 144-
146). Após sua rendição, profere um discurso em rede nacional para convocar seus companheiros de
levante a baixar as armas, na qual deixou o país dividido em dois lados. De um, este representou um
caráter autoritário, do outro, conferiu visibilidade às insatisfações sociais das “classes populares”,
tendo como esperança a mudança do sistema vigente. “O chavismo surge logo após o levante militar,
de maneira a destacar a figura e a atribuir a responsabilidade ao ex-tenente-coronel, [...] encontra
sua gênese na crescente centralidade de Chávez como figura de unidade.” Surge mediante disputas
internas do Movimento Quinta República (MVR) como partido eleitoral (SEABRA, 2010, p. 215).
31 “O bolivarianismo pode ser definido pelos pontos essenciais do programa e da atuação histórica de
Bolívar, que ainda têm grande validade contemporânea. É o caso de sua constância e perseverança
revolucionárias, de sua compreensão da necessidade de união de todos os revolucionários para
alcançar o triunfo da revolução, de sua orientação para uma independência plena e soberana,

58
Marxismo e América Latina

sendo ameaçadas e o setor radical da oposição se impulsiona, o que acarreta,


em 2017, uma nova onda de manifestações para a saída de Maduro do poder.
É mediante esta crise humanitária que os direitos sociais e a estruturação da
democracia participativa começam a serem revertidas.
Neste contexto político, o presidente venezuelano convoca a Assembleia
Nacional Constituinte (ANC) em 2017. Para compreender o processo demo-
crático que envolve essa convocação, é necessário discutir as principais lutas
políticas que a desencadeou. Lutas essas que devem ser consideradas tanto
no âmbito nacional quanto internacional, entendendo todo o cenário latino-
-americano de retrocesso para as forças progressistas da região e as agres-
sões externas sobre a economia venezuelana, principalmente advinda da Casa
Branca (FUSER, 2018, p. 80). A partir de uma abordagem qualitativa, de cará-
ter explicativo, o estudo sobre a constituinte exclusiva de 2017 será desenvolvi-
do com base em uma pesquisa exploratória com levantamentos bibliográficos
e em especial, documentais.
Foi realizado levantamento do estado da arte quanto à análise acerca
da constituinte exclusiva na Venezuela. Apenas um artigo32 foi encontrado
sobre o tema em questão, desenvolvendo sobre o contexto histórico do pro-
cesso e fazendo um comparativo entre a convocação da constituinte de 1999
e a de 2017. A pesquisa a ser elaborada, de caso concreto e material, mediante
tal contexto histórico-político que ainda está sendo desenrolado, busca trazer
uma reflexão sobre a ANC de 2017 – bem como de que maneira influenciou a
democracia venezuelana – e o novo constitucionalismo, suas características e
seus desdobramentos na Venezuela.

de suas advertências constantes contra o perigo por parte do expansionismo dos EUA. Torna-
se precursor do anti-imperialismo, e seu programa de solidariedade latino-americana, com
conteúdo revolucionário e progressista [...] se fundamenta no resgate e na continuidade do projeto
de emancipação venezuelano das oligarquias político-econômicas que reproduzem a estrutura
dependente, contra a subordinação do país à influência de agentes do imperialismo e a distribuição
radical do poder político” (SEABRA, 2010, 212).
32 BENATUIL, Ana Graciela Barrios; PLESSMANN, Antonio González; PINEDA, Martha Lía
Grajales. Constituyentes Venezolanas de 1999 y 2017: Contextos y Participación. Rev. Direito e
Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, n. 4, p. 3144-3168, 2017.

59
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

2. Lutas políticas na Venezuela e o processo constituinte


É em meio a crises sociais, econômicas e/ou ideológicas que as lutas polí-
ticas tomam corpo. Na América Latina, os setores populares se destacam nas
trincheiras numa guerra inacabada travada contra o Capital que se faz sobre a
força de trabalho do povo gerando desigualdade econômico-social. Nesse âm-
bito, deve-se lembrar de O Caracazo (1989), na Venezuela, esse episódio mexeu
com as entranhas do país quando a classe trabalhadora disse “não” às medidas
neoliberais impostas por Carlos Andrés Pérez, retirando direitos dos trabalha-
dores e aumentando o custo de vida. Uma das respostas a isso é o surgimento
do MBR-200, liderado por Hugo Chávez que já havia pegado em armas contra
Pérez em 1992 levando-o à prisão e também a notabilidade nacional. Tal episó-
dio foi significativo para impulsionar o pensamento da esquerda na Venezue-
la, levando em conta as tentativas frustradas das experiências do socialismo na
Europa com o declínio político e econômico da União Soviética (URSS) (OLI-
VEIRA SILVA, 2012, p. 5). Nesse contexto que Chávez reunia as forças boliva-
rianas para a sua candidatura de chefe de Estado, enfatizando a necessidade da
nação de uma Assembleia Nacional Constituinte, em consequente, de uma nova
Constituição. A vitória de Chávez, em 1998, leva o movimento bolivariano para
além de uma concepção coletiva e encaminha o país em direção a uma Vene-
zuela nacionalista, em que o bem-estar da população vem em primeiro lugar
Em abril de 2002, sucedeu-se o enfrentamento de manifestantes a favor
e contra a presidência de Chávez. A crise oriunda desses protestos culminou
a tentativa de golpe de Estado liderado pelas classes proprietárias apoiadas
pelo EUA e sofrendo influência dos grandes meios de comunicação. O poder
de manipulação foi significativo para fazer a classe trabalhadora de Caracas
acreditar que o presidente havia renunciado, com a propagação de imagens e
vídeos cortados e/ou modificados, mas, após 47 horas, a verdade se espalhou:
Hugo Chávez foi sequestrado. Ao repercutir tal notícia, o povo saiu em protes-
to até o palácio para que devolvessem o presidente legítimo. Ainda hoje, esse
fato é lembrado pelos venezuelanos como uma vitória, que muito demonstrou
o poder midiático que se tem sobre um povo, de maneira a buscar fins benefi-
ciários aos Estados burgueses33.

33 Tal fato deu vida ao documentário “A Revolução não será Televisionada”, lançado em 2003. Os
irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain, estavam na Venezuela para fazer um documentário

60
Marxismo e América Latina

Em 2004, a oposição requisita um referendo e novamente fracassa na


tentativa de retirar o presidente de seu legítimo poder. Em seguida, no ano
de 2006, Chávez ganha as eleições mais uma vez e, durante algum tempo,
a Venezuela se encontra estável. O preço dos barris de petróleo está em alta
e o nacionalismo pautado no anti-imperialismo e independência das nações
estrangeiras se encontra mais forte do que nunca, em um governo com ideais
socialistas centrado na adoção de políticas públicas que acarretou a queda dos
níveis de pobreza e de analfabetismo de forma significativa, além da naciona-
lização dos recursos naturais e a distribuição de terras.34
Alguns anos após, Chávez anuncia que está enfermo e começa seu tra-
tamento em 2011. Ainda assim, no ano seguinte, ele concorre à presidência e
novamente sai vitorioso, porém, em 2013, ele falece e, assim, Nicolás Maduro,
até então vice-presidente, assume a presidência.
Nicolás Maduro ingressou na militância através de sua profissão, moto-
rista de ônibus. Tornou-se defensor dos direitos dos motoristas de transpor-
te coletivo de Caracas, logo depois virou chefe do sindicato. Durante muitos
anos esteve ativo na política e, após a morte de Chávez, assumiu o cargo de
chefe de Estado no ano de 2013. O contexto do seu governo veio imerso em
polêmicas, o mundo ainda vivia as consequências da crise de 2008, o preço
do petróleo despencava, a inflação subia e a insatisfação popular abria portas
para a oposição ter mais forças para desestruturar Maduro.
La actual crisis económica, social y politica venezolana, que se expres-
sa com fuerza desde 2012, viene revirtiendo los importantes logros del
proceso bolivariano em matéria de satisfaccion de derechos sociales y
profundización de la democracia participativa; al tempo que alejando
los intentos de construcción de uma sociedade alternativa al capitalismo
(BENATUIL, PLESSMANN, PINEDA, 2017, p. 3147).

É inegável que ser o sucessor de Chávez não é uma tarefa fácil, pois além
de ter sido uma pessoa carismática, ele deu nome à Revolução Bolivariana,
deixando o processo vulnerável depois que partiu. A simpatia e a centralidade

sobre Chávez e sua administração. Entretanto se depararam com um golpe de estado, com uma
mídia manipuladora que estava sob o controle das classes insatisfeitas com o atual governo.
34 VENEZUELA: Democracia ou Ditadura. Disponível em: < https://revistaopera.com.br/2019/02/10/
venezuela-democracia-ou-ditadura/>. Acesso em: 15 jul. 2019.

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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

da sua figura dificultaram a construção orgânica institucionalizada, para a


liderança coletiva do processo (BENATUIL, PLESSMANN, PINEDA, 2017).
Nesse contexto, após o agravamento da crise política com a vitória da
oposição nas eleições parlamentares, em 30 de julho de 2017, o povo da Vene-
zuela vai às urnas a fim de eleger os membros da Assembleia Nacional Cons-
tituinte, a qual Noberto Bobbio define como um órgão colegial, representa-
tivo, extraordinário e temporário, que é investido da função de elaborar a
Constituição do Estado, de pôr – em outros termos – as regras fundamentais
ordenamento jurídico estatais.35
O mesmo processo aconteceu em 1999 e foi uma das promessas de campa-
nha de Hugo Chávez. Enquanto o atual tem suas causas iniciadas em 2015, com
o crescimento da oposição inclusive dentro do poder legislativo da nação. Essa
esfera, agora comandada pelos simpatizantes de Leopoldo López, empossa depu-
tados que foram impugnados pela Justiça Eleitoral, fazendo com que o Tribunal
Supremo de Justiça diga que a Assembleia está em desacato. Eles tentam fazer um
acordo, todavia mais tarde novas irregularidades são apresentadas e a Justiça volta
a colocar o órgão em desacato, tornando as decisões da Assembleia nulas36.
Mesmo assim, a oposição declara o cargo de presidente vago, alegando
que Maduro não estaria cumprindo suas obrigações ao deixar o país afundar
numa crise e, diante disso, requisitam novas eleições. Entretanto, “trata-se de
argumento subjetivo de uma maioria parlamentar de oposição para derrubar
um presidente que lhe desagrada” (BELLO, 2018, p. 147).
Destarte, a oposição já vinha tentando tirar Maduro do poder, exem-
plo disso aconteceu em 2016, a oposição tentou angariar assinaturas a fim de
convocar um referendo revogando o mandato do presidente, entretanto, por
lei, esse tipo de processo contém diversas etapas de coletas das assinaturas e
também um prazo de entrega37, além disso, as assinaturas entregues conti-

35 Bobbio, Norberto, 1909- Dicionário de política I Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco
Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis
Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1 la ed.,1998, p. 61.
36 MADURO, Nicolás. Constituinte na Venezuela: como chegamos até aqui? Disponível em: <https://
operamundi.uol.com.br/politica-e- economia/47680/constituinte-na-venezuela-como-chegamos-
ate-aqui> Acesso em 16 mai. 2019.
37 “Artículo 72. Todos los cargos y magistraturas de elección popular son revocables. Transcurrida la
mitad del período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria, un número no menor del veinte

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Marxismo e América Latina

nham fraudes, de acordo com o Conselho Nacional Eleitoral, por isso foram
rejeitadas, mantendo Maduro no poder. Em maio de 2017, Maduro diz:
Anuncio que, no uso de minhas atribuições presidenciais como chefe de Es-
tado constitucional, de acordo com o artigo de 347, convoco o poder cons-
tituinte originário para que a classe operária e o povo, em um processo na-
cional constituinte, convoquem uma Assembleia Nacional Constituinte.38

É nessa conjuntura que a oposição ao governo de Maduro no país usa da


manipulação midiática e da omissão de dados para abrir portas ao imperia-
lismo norte-americano com o discurso de «ajuda humanitária». Elencando
isso à crise de 2008 e à história da economia venezuelana marcada majori-
tariamente pela comercialização do petróleo, que sempre ocupou o primeiro
lugar, de longe, nas receitas de exportação, enxerga-se a conjuntura para o
atual estado de calamidade da Venezuela. Tendo ela uma dependência signifi-
cativa da moeda estrangeira e de importações e, nos últimos anos, o preço das
commodities do país caindo de maneira desenfreada causando o atual cenário.
El precio del petróleo ha sufrido una de sus mayores caídas, prolonga-
das, desde hace décadas. En junio del 2014, el precio por barril alcanzó
los 115 dólares. Sin embargo, desde ese momento se viene produciendo
un derrumbe continuado en su precio. En el año 2015 acabó por debajo
de 40 dólares; a inicios de este año, continuó a la baja alcanzando su
mínimo de los últimos 11 años (MANCILLA, 2016).

Até hoje, boa parte dos países dependentes de importação sofrem com os
resquícios da crise, isto, somado à economia inflacionária da Venezuela, vem

por ciento de los electores o electoras inscritos en la correspondiente circunscripción podrá solicitar la
convocatoria de un referendo para revocar su mandato. Cuando igual o mayor número de electores y
electoras que eligieron al funcionario o funcionaria hubieren votado a favor de la revocatoria, siempre
que haya concurrido al referendo un número de electores y electoras igual o superior al veinticinco
por ciento de los electores y electoras inscritos, se considerará revocado su mandato y se procederá de
inmediato a cubrir la falta absoluta conforme a lo dispuesto en esta Constitución y la ley. La revocación
del mandato para los cuerpos colegiados se realizará de acuerdo con lo que establezca la ley. Durante
el período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria no podrá hacerse más de una solicitud
de revocación de su mandato” (VENEZUELA. Constitución (1999). Disponível em: <http://pdba.
georgetown.edu/Parties/Venezuela/Leyes/constitucion.pdf> Acesso em: 13 de maio de 2019).
38 MADURO, Nicolás. Constituinte na Venezuela: como chegamos até aqui? Disponível em: <https://
operamundi.uol.com.br/politica-e- economia/47680/constituinte-na-venezuela-como-chegamos-
ate-aqui> Acesso em 16 mai. de 2019.

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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

causando déficits significativos para a nação. Os Estados Unidos, sendo um


dos principias importadores do petróleo venezuelano, quando diminuiu suas
compras de 500 mil barris para 100 mil de petróleo, afetou drasticamente os
cofres venezuelanos.
Dessa forma, a atual conduta da maior nação capitalista em dificultar
as relações do Estado Venezuelano e apoiando Juan Guaidó, ou seja, estimu-
lando um golpe de Estado, mostra que eles utilizam do imperialismo norte-
-americano para se infiltrar na nação a fim de possuir mais patentes sobre o
petróleo. Os assédios dos EUA contra a Venezuela contêm não somente o as-
pecto de uma guerra por petróleo ou pela (pseudo) defesa democrática – como
é colocado pelos países habituados a violar o direito internacional. A realidade
indica o marco de uma verdadeira luta de classes geopolítica, uma aliança
internacional contra a Revolução Bolivariana, em que se dirigem a desafios
futuros a humanidade (BRIGNOLE, 2019).

3. Democracia venezuelana e a Constituinte exclusiva


A Assembleia Nacional Constituinte, iniciada no ano de 2017, ocorre em
meio à intensa crise política e econômica. Os tumultos causados pela acen-
tuada disputa política na Venezuela por vezes não deixam se escutar os ruí-
dos existentes na hiper concentração de capital no setor petroleiro, que vem a
ser fundamento material desta crise, juntamente com as agressões externas à
economia da extrema direita, que vem tomando destaque em toda a América
Latina. Tal cenário vai muito além da própria definição histórica, mas muito
se entrelaça com o contexto do sistema capitalista.39
A queda dos preços do petróleo impactou radicalmente a vida da população,
com a diminuição da capacidade de compra de produtos alimentícios, de saúde,
higiene pessoal, etc., no exterior, para o devido funcionamento do país. Ademais,

39 “Más allá de la retórica polarizada, el cuchicheo heroico y las voluntades de poder, el curso de la
definición histórica en la que nos encontramos, está también determinada por la racionalidad
del capital, por el mantenimiento o incremento de la tasa media de ganancia; por la búsqueda de
facilidades para el acceso a los llamados ‘recursos naturales’ del país; por la imperiosa necesidad de
aumento de la captación de las rentas y excedentes económicos por parte de las élites económicas y
estatales; por las demandas de mayor seguridad jurídica para los emprendimientos económicos; o por
las garantías de viabilidad de los negocios a corto, mediano y largo plazo” (TERÁN, 2017).

64
Marxismo e América Latina

nesse contexto, os ataques externos à economia nacional, advindos principalmen-


te do governo dos Estados Unidos, e o desabastecimento em larga escala do poder
aquisitivo do salário, aumentam em larga escala a pobreza no país.
La enorme dificultad para acceder a crédito o al refinanciamiento de
su deuda, producto de las sanciones directas o encubiertas, reducen ra-
dicalmente la disponibilidad de recursos del Estado para enfrentar la
crisis, minando también, con ello, la legitimidad de las fuerzas gober-
nantes (BENATUIL; PLESSMANN; PINEDA, 2017, p. 3151).

Em abril de 2017, a oposição ganha força e se inicia uma onda de protes-


tos para a saída do então presidente.
Durante estos cuatro meses, y con gran apoyo internacional (de Esta-
dos, medios de comunicación e instancias multilaterales), se realizaron
en el país, 5.594 manifestaciones exigiendo la salida de Maduro (MPPI-
JP, 2017), el 64,32% de las cuales ocurrieron en 15 municipios del país
(lo que representa el 4,5% del total de municipios). Más de 130 personas
murieron como consecuencia de la violencia política de estos 4 meses,
protagonizada tanto por particulares (de ambos bandos del espectro
político), como, en menor medida, por funcionarios de los cuerpos de
seguridad (BENATUIL; PLESSMANN; PINEDA, 2017, p. 3156).

É em um contexto de violência que se produz o chamado a um novo pro-


cesso constituinte no dia 1° de maio. A decisão de convocar uma ANC surgiu
como uma maneira de resposta à constante rejeição da oposição em manter
um diálogo, iniciativa essa impulsionada em diversas ocasiões pelo chefe de
Estado, em que segundo ele, passou
16 semanas llamándolos, 16 semanas buscándolos, para buscar a través de
la palabra acuerdos de paz para el país, se han negado, ya yo hoy tengo clara
la película, ellos no se va detener con su plan fascista y nos toca derrotarlos
con las leyes, con la Constitución, con la unión cívico-militar.40

40 Presidente Maduro convoca a uma Asamblea Nacional Constituyente. Disponível em:


<https://w w w.telesurtv.net/news/Presidente-Maduro-convoca-una-Asamblea-Nacional-
Constituyente-20170501-0028.html> Acesso em 13 mai. de 2019.

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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Presidente Nicolás Maduro convoca a Assembleia Nacional Constituinte


e fundamenta sua decisão no capítulo III do título IX da Constituição, com
o título “De la Asamblea Nacional Constituyente”, além dos artigos 70 e 236
também provenientes do texto constitucional. Sua convocatória é apresentada
oficialmente pelo Decreto nº 2.830, publicado na Gazeta Oficial da República
Bolivariana da Venezuela.41
Após a notícia de que a Assembleia Nacional Constituinte seria convoca-
da, emergiu no país uma discussão sobre a realização ou não de um referendo
consultivo e, por conta disso, o Estado devidamente explicou, ao fundamen-
tar seu argumento na Constituição que o legitima, de que não é necessário
ou constitucionalmente obrigante um referendo. A Constituição da República
Bolivariana da Venezuela prevê os mecanismos para se convocar uma ANC
nos artigos 347 e 34842.
Portanto, a leitura da Constituição deixa evidente a diferença entre o
poder de convocar, pertencente ao povo da Venezuela, segundo o artigo 347,
e a iniciativa de convocação, de competência do Presidente da República em
Conselho de Ministros, de acordo com o artigo 348. Diante disso, o Tribunal
Supremo de Justicia, instância máxima do sistema de administração de justiça
do país, respondeu um recurso de interpretação dos artigos constitucionais
utilizados por Nicolás Maduro para convocar a Assembleia Nacional Consti-
tuinte utilizando essa mesma lógica. A Sala Constitucional em sua Sentença

41 “En uso de la facultad que me confiere el artículo 348 de la Constitución de la República Bolivariana
de Venezuela, en concordancia con los artículos 70, 236 numeral 1 y 347 ejusdem; con la bendición
de Dios Todopoderoso, e inspirado en la grandiosa herencia histórica de nuestros antepasados
aborígenes, héroes y heroínas independentistas, en cuya cúspide está el Padre de la Patria, El
Libertador Simón Bolívar, y con la finalidad primordial de garantizar la preservación de la paz del
país ante las circunstancias sociales, políticas y económicas actuales, en las que severas amenazas
internas y externas de factores antidemocráticos y de marcada postura antipatria se ciernen sobre su
orden constitucional, considero un deber histórico ineludible convocar una ASAMBLEA NACIONAL
CONSTITUYENTE[...].” (Presidencia de la República, Gaceta oficial n° 2.830).
42 “Artículo 347. El Pueblo de Venezuela es el depositario del poder contituyente originario. En ejercicio
de dicho poder, puede convocar una Asamblea Nacional Constituyente con el objeto de transformar
al Estado, crear un nuevo ordenamiento jurídico y redactar una nueva Constitución.
Artículo 348. La iniciativa de convocatoria a la Asamblea Nacional Constituyente podrá hacerla el
Presidente o Presidenta de la República en Consejo de Ministros; la Asamblea Nacional, mediante
acuerdo de la dos terceras partes de sus integrantes; los Consejos Municipales en electores inscritos y
electoras en el Registro Civil y Electoral.” (VENEZUELA. Constitución (1999). Disponível em: <http://
pdba.georgetown.edu/Parties/Venezuela/Leyes/constitucion.pdf> Acesso em: 13 mai. 2019).

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Marxismo e América Latina

nº 378 afirmou que não se faz necessário um referendo consultivo para a con-
vocação de uma Assembleia Nacional Constituinte43.
Maduro, perante a Assembleia Nacional Constituinte, definiu seis bases
de trabalho com o objetivo de superação da crise que o país passa. Enfatizou
que deve continuar com a luta contra a corrupção e, simultaneamente, buscar
políticas sociais e outros benefícios para a população subalterna. O diálogo e a
pacificação se encontram no topo da pirâmide, entendendo as lesões deixadas
pelas conspirações no país. O presidente coloca como importante o trabalho
em conjunto de todos os setores políticos a favor do bem-estar do povo vene-
zuelano. Reafirmar valores para garantir a paz, potenciar o sistema de justiça,
além da garantia de direitos sociais a juventude são suas principais metas.44
A segunda base se insere no tema econômico, em que se faz necessário um
acordo produtivo para a estabilização do país e “recuperar o crescimento susten-
tável baseado na produção de riquezas e na satisfação das necessidades”45. Esse
acordo deverá ser feito com os setores produtivos públicos, mistos e privados, para
um processo de crescimento e recuperação do sistema econômico venezuelano.
A terceira linha de ação é a luta frontal contra todas as formas de corrup-
ção e o surgimento de uma nova ética patriota e cidadã, de forma a reconhecer a
identidade do povo venezuelano, destacando a sua diversidade cultural. A quar-

43 “La Sala considera que no es necesario ni constitucionalmente obligante un referéndum consultivo


previo para la convocatoria de una Asamblea Nacional Constituyente, porque ello no está
expresamente contemplado en ninguna de las disposiciones del Capítulo III del Título IX (…) En
efecto, el pueblo de Venezuela es el depositario del poder constituyente originario y, en tal condición, y
como titular de la soberanía, le corresponde la convocatoria de la Asamblea Nacional Constituyente.
Pero la iniciativa para convocarla le corresponde, por regla general, a los órganos del Poder Público
(…) quienes ejercen indirectamente y por vía de representación la soberanía popular. La única
excepción de iniciativa popular de convocatoria es la del 15 % de los electores inscritos y electoras
inscritas en el Registro Civil y Electoral. De tal manera que el artículo 347 define en quien reside el
poder constituyente originario: en el pueblo como titular de la soberanía. Pero el artículo 348 precisa
que la iniciativa para ejercer la convocatoria constituyente le corresponde, entre otros, al ‘Presidente
o Presidenta de la República en Consejo de Ministros’, órgano del Poder Ejecutivo, quien actúa en
ejercicio de la soberanía popular”. (Tribunal Supremo de Justicia (TSJ), 2017, Sentencia N° 378 de la
Sala Constitucional. Disponível em: <http://historico.tsj.gob.ve/decisiones/scon/mayo/199490-378-
31517-2017-17-0519.HTML> Acesso em: 13 mai. 2019.)
44 CORREO DEL ALBA. Tras ganhar las presidenciales, Maduro define el rumbo. 2018. Disponível
em: <https://correodelalba.org/2018/05/24/tras-su-victoria-en-las-presidenciales-maduro-marca-
el-rumbo-de-venezuela/> Acesso em: 15 mai. 2019.
45 MADURO, Nicolás. Acto completo: Nicolás Maduro es juramentado como presidente ante la ANC, 24
mayo 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=irm7qJDY55s> Acesso em: 15 mai. 2019.

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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

ta base tem como fundamento a proteção popular e a seguridade social, tudo


relacionado à saúde, emprego, moradia, etc. O Carnê da Pátria, uma espécie de
identidade eletrônica, e a Grande Missão Lares da Pátria, serão utilizados como
instrumentos para ampliar a política de proteção social.46 A ANC entra como
forma de constitucionalizar o sistema de missões sociais, de maneira a contri-
buir com a preservação da vida e a manutenção da espécie humana.
A quinta linha, de suma importância, é a defesa da Venezuela e das ins-
tituições contra os ataques do imperialismo dos Estados Unidos, de feitio a
enfrentar maquinações em defesa da integridade da nação e fortalecer a polí-
tica exterior soberana. No juramento como presidente ante a ANC, realça os
diversos ataques feitos pelo governo norte-americano e desenvolve que “las
nuevas acciones de Trump nos traerán muchos problemas, pero las vamos a
derrotar”47. Por fim, a sexta e última base é o socialismo. Maduro acrescenta
que é necessário fortalecer os princípios e as bases fundamentais para ratifi-
car o seu rumo. Para Hugo Chávez, o socialismo tem cinco dimensões, pelas
quais foram destacadas pelo chefe de Estado:
Tenemos que construir las cinco dimensiones del socialismo en todos los
espacios: ética, moral y espiritual, en primer lugar; la dimensión política,
ideológica, institucional, en segundo lugar; la dimensión social, el nue-
vo modelo social; la dimensión económica, y la dimensión territorial,
aplicado como fórmula de planificación. [...] Estoy más comprometido
que nunca con nuestro pueblo. Han elegido ustedes a un presidente para
construir el socialismo; para solucionar los problemas; para el diálogo
y la pacificación; que es pueblo, que es pueblo de verdad. Un presidente
pueblo. Me someto al poder del pueblo.48

46 O Carnê da Pátria é uma espécie de identidade eletrônica, em que estão inseridas informações
pessoais sobre os detentores do cartão, no qual permite saber as necessidades sociais do cidadão. “Com
esse carnê já podemos ver o lar que de verdade necessita, a mulher que de verdade necessita. Não há
intermediários, gestores nem ninguém que lhe faça o favor”, explica o então presidente Nicolás Maduro.
Tendo conhecimento das condições de existência socioeconômicas das mais variadas famílias, este
carnê ajuda na promoção da Missão Lares da Pátria. Esse programa social oferece uma contribuição
econômica às mães ou chefes de famílias que estejam com baixos recursos materiais. Disponível em:
<https://gz.diarioliberdade.org/america-latina/item/156828-700-mil-familias-venezuelanas-estao-
protegidas-pela-missao-lares-da-patria.html> Acesso em: 12 jul. 2019.
47 MADURO, Nicolás. Acto completo: Nicolás Maduro es juramentado como presidente ante la ANC, 24
mayo 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=irm7qJDY55s> Acesso em: 15 mai. 2019.
48 MADURO, Nicolás. Acto completo: Nicolás Maduro es juramentado como presidente ante la ANC, 24
mayo 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=irm7qJDY55s> Acesso em: 15 mai. 2019.

68
Marxismo e América Latina

Visto que compete ao Presidente Nicolás Maduro, em sua posição de


convocante, propor as bases eleitorais territoriais e setoriais, o artigo 2º do
Decreto Nº 2.830 declara como os integrantes da ANC serão eleitos e, dessa
maneira, requisita que sejam criadas as bases que irão reger a convocação, for-
mação e funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte. Diante disso,
no dia 23 de maio de 2017, o Decreto nº 2.878 é publicado na Gazeta Oficial
com a função de estabelecer as bases eleitorais49.
Em outras palavras, a Assembleia Nacional Constituinte contem 545
membros, onde 364 serão eleitos em representação dos territórios em que es-
tão divididos no país, enquanto os outros 181 participantes provêm de setores
da população, com o intuito de trazer uma maior representatividade às mino-
rias sociais e à classe trabalhadora, confirmando que a convocação da ANC
segue o princípio de representação proporcional.
Uma das principais críticas levantadas pela oposição, a qual, por sinal,
teve seus principais partidos se abstendo ou tentando impedir a realização do
processo constituinte, é voltada para a afirmação de que a eleição por setores
caracterizaria uma espécie de fraude ou eleição indireta50, pelo fato de os seto-
res que foram nomeados serem os que mais apresentam a força do chavismo
e, supostamente, isso ocasionaria uma super-representação de sua posição nas
decisões da Assembleia Nacional Constituinte. Todavia, enxergar apenas nas

49 “PRIMERO.- Los integrantes de la Asamblea Nacional Constituyente serán elegidos y elegidas en el


ámbito territorial y sectorial, mediante el voto universal, directo y secreto, sin perjuicio de los y las
integrantes de los pueblos indígenas que serán elegidos y elegidas de acuerdo a sus costumbres y prácticas
ancestrales, amparados por los artículos 119 y 125 de la Constitución de la República Bolivariana de
Venezuela. Los sectores comprenden: 1) Trabajadores y Trabajadoras. 2) Campesinos y Campesinas y
Pescadores y Pescadoras. 3) Los y las Estudiantes. 4) Personas con discapacidad. 5) Pueblos Indígenas. 6)
Pensionados y Pensionadas. 7) Empresarios y Empresarias. 8) Comunas y Consejos Comunales. […]
TERCERO.- En el ámbito territorial se producirá la elección de trescientos sesenta y cuatro (364)
Constituyentes a la Asamblea Nacional Constituyente, conforme a la siguiente distribución: un o una
(1) Constituyente por cada Municipio del País que será electo o electa de forma nominal de acuerdo
al principio de representación mayoritario, y dos (2) Constituyentes en los Municipios Capitales,
que serán electos o electas mediante la modalidad lista, de acuerdo al principio de representación
proporcional. En el Municipio Libertador de Caracas, Capital de la República Bolivariana de
Venezuela y el asiento de los órganos del Poder Nacional, se escogerán siete (7) Constituyentes
mediante la modalidad lista de acuerdo al principio de representación proporcional.” (Presidencia de
la República, Gaceta oficial n° 2.878).
50 Presidente Maduro convoca a uma Asamblea Nacional Constituyente. Disponível em:
<https://w w w.telesurtv.net/news/Presidente-Maduro-convoca-una-Asamblea-Nacional-
Constituyente-20170501-0028.html> Acesso em 13 mai. 2019.

69
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

bases eleitorais territoriais uma solução para a representatividade de toda a


Venezuela é, no mínimo, desconhecer a conjuntura social que o país se en-
contra. Os representantes territoriais não apresentam, proporcionalmente, os
anseios da população, daí surge a necessidade de especificar a classe trabalha-
dora como promotores das decisões da constituinte.

4. Constitucionalismo venezuelano em movimento:


desdobramentos e expectativas
Até aqui discutimos sobre o processo constituinte e a democracia vene-
zuelana, suas lutas políticas e todo o desenrolar de eventos que culminaram na
convocação da Assembleia Nacional Constituinte por Maduro. Cabe agora fa-
zermos uma breve análise acerca do novo constitucionalismo latino-americano,
e consequentemente todo o impacto da Constituinte de 2017 na Venezuela.
O processo constitucional sul-americano do século XIX é marcado, na
esfera privada, fundamentalmente pelas culturas jurídicas provenientes dos
Direitos canônico, germânico e romano, visto que apesar de as nações latino-
-americanas já serem independentes nesse período, ainda prevalecia entre a
elite local um sentimento que valorizava demasiadamente os princípios legais
europeus e anglo-americanos alicerçados nas constituições liberais burguesas
de nações como Estados Unidos e França.
Mesmo que teoricamente as primeiras ondas constitucionais dos países
latino-americanos tenham sido marcadas pela igualdade formal perante a lei,
soberania popular, universalidade, tripartição dos poderes, garantia liberal de
direitos e cidadania culturalmente homogênea, o que prevalecia era uma de-
mocracia excludente em que o controle era centralizado nas mãos das estru-
turas agrárias e elitistas. Os interesses dessa classe dominante sobressaíam-se
perante às necessidades dos grupos sociais majoritários: (a) campesinos agrá-
rios; (b) nações indígenas; (c) afrodescendentes; (d) populações dos movimen-
tos urbanos. (WOLKMER; FAGUNDES, 2011)
Para Gargarella (2014), os liberais e conservadores que constituíam essa
elite hegemônica, apesar de inimigos ferrenhos, conseguiram estabelecer
acordos políticos que sintetizaram imperfeitamente seus objetivos nas cartas
magnas criadas durante o século já citado, dado que as normas ali sistemati-

70
Marxismo e América Latina

zadas apenas tratavam acerca dos limites e organização do poder. Tudo o que
se referia as urgências das classes trabalhadoras não era contemplado pelas
cláusulas das mesmas, não havia nem sequer uma brecha para que os margi-
nalizados socialmente fossem incluídos na esfera política.
O novo constitucionalismo latino-americano busca, portanto, danificar essa
estrutura liberal que sustenta as constituições do século XIX, de modo a desenvol-
ver instrumentos jurídicos que consigam abarcar a quem muito já foi esquecido.
[...] os movimentos do constitucionalismo ocorrido recentemente em
países sul-americanos (Bolívia, Equador e Venezuela) tentam romper
com a lógica liberal-individualista das constituições políticas tradicio-
nalmente operadas, reinventando o espaço público a partir dos interes-
ses e necessidades das maiorias alijadas historicamente dos processos
decisórios (WOLKMER; FAGUNDES, 2011).

Além de buscar romper com essa lógica liberal-individualista, o novo


constitucionalismo diverge do movimento neoconstitucionalista por haver mais
centralidade na participação popular do que no judiciário em si (BRAYNER,
2018). A interferência direta da sociedade na concepção, e consequentemente na
anuência dessas cartas magnas, possibilita uma valorização da soberania popu-
lar que antes, nas constituições liberais, só ocorria no campo teórico.
Para Lima e Rodrigues (2013), conforme citado por Brayner (2018), as
constituições da Venezuela, Equador e Bolívia possuem elementos análogos que
as caracterizam além dos mecanismos de democracia direta que viabilizam a
flexibilização do poder do Estado. Pode-se dizer que esses elementos são decor-
rentes de um intenso processo revolucionário que reinventou o democrático,

[...] a democracia que está sendo reinventada na AL (América Latina) é


a plebeia, a da rua, do parlamento, da ação coletiva, da participação, da
mobilização. Concebida como a crescente participação das pessoas nos
assuntos comuns – econômicos, médicos, públicos e etc. (LINERA, 2015)

As novas constituições são símbolos desse processo revolucionário que


através das mudanças nos parâmetros lógicos de percepção e de ordenamento
do mundo moral da sociedade, provocaram uma transformação na correlação

71
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

de forças entre as classes sociais que resultou justamente nos processos cons-
tituintes que as originaram (LINERA, 2015).
Para exemplificar tudo o que foi dito anteriormente, voltamos a nossa
atenção para a Constituição da Venezuela de 1999. Assim como a da Bolívia e do
Equador, ela é considerada uma carta magna rígida e analítica decorrente de um
longo processo de lutas sociais que reivindicaram uma maior participação do
povo nas decisões governamentais. Esse novo texto constitucional venezuelano
se destaca por ter rompido com a tripartição dos poderes objetivando distribuir
o poder entre cinco esferas distintas, o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, o
Eleitoral e o Cidadão. Particularmente o poder Cidadão, por meio de referendos
e plebiscitos, é o que garantirá a soberania popular, bem como
[...] o fomento da consciência social, identificando o indivíduo como
agente das necessidades coletivas, tanto regionais, como municipais e
comunitárias. A participação (popular) serve como mecanismo de em-
poderamento por parte do indivíduo dos recursos coletivos, cor-res-
ponsabilizando-o a investir de maneira eficiente e eficaz e estimulando
as potencialidades do indivíduo. Porquanto, destacam-se no mínimo
três níveis de participação: (i) a participação política – que diz respeito
ao processo social de democratização do poder e dos processos de to-
mada de decisão; (ii) a participação social – que envolve o processo de
integração do indivíduo à sociedade; e a (iii) participação econômica
– que integra o indivíduo ao processo de geração e controle (uso racio-
nal) das riquezas (BRAYNER, 2018).

Consequentemente, ao retomar as análises feitas nos tópicos anteriores


sobre a Assembleia Nacional Constituinte, pôde-se observar que Maduro, ao
optar por uma base eleitoral definida com base em critérios sociais e territo-
riais, conserva justamente o mecanismo que viabiliza a democratização do
poder, ou seja, a participação política. É ela que permite, no contexto das par-
ticipações populares citadas por Brayner (2018), que aqueles que normalmente
ocupam o papel de coadjuvantes, possam chegar a serem protagonistas nas
tomadas de decisões que atingem primeiramente a eles.
Outro posicionamento de Maduro que age conforme essa premissa
constitucional de soberania popular, foi a decisão de adiantar em um ano seu
mandato. Essa antecipação das eleições presidenciais, e simultaneamente das
eleições para os conselhos municipais e assembleias regionais, sustenta a afir-
mação feita por Leonel Jr. e Seabra (2017) de que não se deve analisar um pro-

72
Marxismo e América Latina

cesso histórico, social, econômico e político somente pela perspectiva formal


do Direito, pois as normas jurídicas e interpretações constitucionais não são o
suficiente para captar toda a complexidade de um dado momento (LEONEL
JR. e SEABRA apud BELLO, 2018).

5. Considerações finais
O processo constituinte de 2017 ocorreu no contexto de uma grave cri-
se econômica, social e política. Sendo assim, um dos elementos chave para
explicitar as razões dessa conjuntura é o reconhecimento de que a República
Bolivariana da Venezuela sofre tratamento desigual por ser um país que apre-
senta forte dependência exportadora petrolífera. Por conta disso, a Venezuela
vive uma expressão de uma crise do modelo rentista, altamente dependente
dos preços de petróleo no mercado internacional, o que afeta diretamente as
contas públicas do país, visto que “La caída de los precios del petróleo marca
de modo considerable una restricción muy inquietante para las arcas públicas
del país. Lo mismo le ocurre a todos aquellos Estados que dependen de este
recurso” (MANCILLA, 2016).
O governo de Nicolás Maduro perdeu uma fonte de financiamento que
poderia pagar suas dívidas internacionais e importar alimentos e medicamen-
tos, após as novas sanções econômicas impostas pelo presidente estadunidense
Donald Trump, que deixaram a Venezuela sem possibilidade de obter créditos
para emissão de bônus do Banco Central e da empresa estatal de Petróleos de
Venezuela (PDVSA). Segundo comunicado da Casa Branca, a escolha dessa
atitude tem um objetivo específico: “Estas medidas están cuidadosamente ca-
libradas para negar a la dictadura de (Nicolás) Maduro una fuente crítica de
financiación para mantener su gobierno ilegítimo” (LEON, 2017).
Os Estados Unidos, com essa afirmação, explicitam o caráter ideológico
de suas decisões econômicas, além de reverberarem o fato de que utilizam do
imperialismo para controlar as outras nações e a geopolítica internacional,
privando países dependentes do capitalismo, como a Venezuela, de atuarem
com autonomia e de planejarem a recuperação econômica frente à crise.
Portanto, a superação do modelo rentista é um dos principais e mais
árduos desafios apoderados pelo governo bolivariano da Venezuela. Na con-

73
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

juntura do ano de 2017, o Estado buscou aplicar medidas de emergência, como


subsídios à alimentação e moradia, com o intuito de diminuir o impacto da
crise econômica na vida da população. Assim, políticas consistentes com o
programa bolivariano de transição democrática socialista são os principais
objetivos do Estado para com a sociedade.
Entretanto, tendo em vista um cenário nacional em que a oposição de di-
reita joga de maneira desleal com a democracia, se torna necessária uma ação
defensiva por parte do governo a fim de neutralizar a violência opositora. É
justamente nesse contexto que o presidente da República Bolivariana da Vene-
zuela, Nicolás Maduro, decreta na Gazeta Oficial a convocação da Assembleia
Nacional Constituinte (ANC). Esta foi promulgada por meio de uma eleição
de deputados constituintes com base em critérios territoriais e sociais, que
garantiram a participação política da população. A insistência da oposição em
dar um golpe em Maduro só torna evidente que a Assembleia Nacional Cons-
tituinte “não deixa de ser uma oportunidade para se debater o caráter do Es-
tado venezuelano e apresentar uma saída socialista que mude completamente
a estrutura do poder e a matriz econômica do país” (AGRELA, 2017). Além
disso, fundamenta o objetivo do Governo Maduro de aprofundar “as metas
da Constituição de 1999” e de resgatar “os elementos originários do bolivaria-
nismo, na medida das condições materiais de possibilidades” (BELLO, 2018).

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77
60 anos da Revolução Cubana:
Nova Constituição e transformações
na ordem econômica socialista

ana Flávia Oliveira Barbosa de Lira51


Carlos Eduardo Mota de Brito52

1. Introdução
Neste ensaio, pretendemos debater acerca das mudanças constitucionais
nas ordens econômica e socialista cubanas com a Constituição de 2019, fazendo
breves apontamentos sobre as suas implicações e contradições diante do proces-
so revolucionário, bem como analisando as necessidades concretas desse pró-
prio processo a partir da reestruturação do capital internacional pós-crise de
2008. Para tanto, adotaremos três aspectos centrais nesta análise constitucional,
quais sejam, as relações de trabalho, a propriedade dos meios de produção e o
controle estatal da economia. Contudo, não será objeto de nossa investigação a
constituição em si, isto é, o código normativo como um dever ser, mas, sim, os
processos de continuidade e ruptura oriundos da totalidade das relações sociais
e econômicas na ilha caribenha que, a partir de uma determinada correlação
de forças, desembocou em um processo constituinte, ora chamado de continui-
dad53, ora colocado como atualização das ideias socialistas, herdeiras diretas do
reformismo que Marx, Engels e Lenin combateram54.

51 Graduanda em Direito na Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Membra do Grupo de


Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina. E-mail: anaflaviaolira@gmail.com.
52 Graduando em Direito na Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina. E-mail: carlos.brito@ufersa.edu.br.
53 Referimo-nos à eleição de Miguel Días-Canel, primeiro presidente de Cuba que nasceu pós-
revolução de 1959. Días-Canel, nome de Raúl Castro à presidência, assumiu o posto defendendo a
continuidade da Revolução Socialista e das reformas econômicas iniciadas com Raúl Castro.
54 Ver artigo de Jesús Pastor García Brigos, doutor em Filosofia, intitulado de: “Socialismo,
¿comunismo?: ¿cuál es lacuestión?.”

79
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Nos filiamos, dessa forma, a uma perspectiva que se propõe a dar conta
do movimento real deste objeto de estudo, qual seja, a materialista, histórico-
-dialética, calcada na análise do desenvolvimento histórico e da totalidade
das relações sociais e de produção. É neste aspecto que partiremos, na pri-
meira seção, de uma breve discussão sobre o quadro das forças produtivas
cubanas antes da Revolução de 1959, demarcando o seu caráter de desenvolvi-
mento predominantemente agrícola, o qual assumia formas pré-capitalistas,
e de subserviência aos Estados Unidos da América. Assim, construiremos os
subsídios para compreender o socialismo como uma necessidade do próprio
processo histórico revolucionário cubano que era, em sua gênese, anti-impe-
rialista e democrática e que, a partir de novas necessidades, adota a opção
socialista como essencial ao desenvolvimento das forças produtivas e da mu-
dança qualitativa na qualidade de vida da classe trabalhadora. Pretende-se,
na sequência, lançar aportes para o debate acerca das contradições existentes
entre a revolução socialista e o desenvolvimento das forças produtivas.
Na segunda seção, analisaremos a ordem econômica socialista cubana
no debate constitucional pós-Revolução de 1959, no qual três textos são fun-
damentais: a Ley Fundamental del Estado Cubanode 1959, a Constituição de
1976 e a reforma constitucional de 1992.
Por fim, analisaremos o processo que desembocou na Constituição de
2019, bem como as transformações ocorridas em âmbito de ordem econômi-
ca, a partir do novo texto magno.

2. O quadro das forças produtivas


em Cuba antes da Revolução de 1959
Para que possamos adentrar nos rumos políticos, econômicos e sociais
que a Revolução Cubana atualmente percorre, sobretudo com as mudanças
propostas pela nova constituição (2019), faz-se necessário fazer um breve
resgate sobre o quadro das forças produtivas cubanas antes da Revolução de
1959. Nessa periodização, elencamos pontos essenciais para a discussão, quais
sejam: o caráter neocolonial, de subserviência aos Estados Unidos; e o desen-
volvimento predominantemente agrícola, baseado em formas pré-capitalistas,
associadas ao latifúndio.

80
Marxismo e América Latina

A condição de neocolônia estadunidense refletia-se diretamente no baixo


nível de desenvolvimento das forças produtivas cubanas, uma vez que estavam
diretamente condicionadaspelas necessidades da economia dos Estados Unidos.
Podemos destacar uma economia voltada, majoritariamente, à produção de açú-
car a partir do cultivo em grandes fazendas monocultoras. Destacamos as escas-
sas bases industriais, bem como a ausência da produção de produtos industriais
primários e de bensde consumo não-duráveis para o aquecimento do mercado de
consumo interno (BELMARIC; BRIGOS; FERRER; PINEDA, 2012).
A agropecuária, portanto, era caracterizada pelas grandes monoculturas
de cana-de-açúcar (essencialmente), de café e de tabaco (de modo auxiliar).
Inexistia o desenvolvimento de bases industriais agrícolas, predominando,
nesse sentido, as formas pré-capitalistas de produção e reprodução, represen-
tadas não só pela estrutura latifundiária55, mas também pela força de trabalho
pouco qualificada, não assalariada e à mercê da sazonalidade (BELMARIC;
BRIGOS; FERRER; PINEDA, 2012).
A organização da propriedade em Cuba, por sua vez, era baseada na pos-
se estrangeira, vejamos:
[…] en el cual resulta un rasgo determinante el alto peso de la pro-
piedad jurídicamente extranjera,con altas tasas de rendimiento de sus
capitales, fundamentalmente de los Estados Unidos, como expresión y
fundamento jurídico de un proceso productivo dependiente de la neo-
metrópoli en todas sus fases y dirigido a la acumulación en función de
los intereses de este centro de desarrollo(BELMARIC; BRIGOS; FER-
RER; PINEDA, 2012, p. 283-284).

Não nos é estranho que a experiência neocolonial cubana seja a mesma


vivenciada pela grande maioria dos países latino-americanos. Para que com-
preendamos esse processo em sua totalidade, é importante resgatarmos im-
portantes postulados marxistas que se propuseram a pensar a América Latina
a partir de uma concepção historicizante da nossa realidade, dos quais desta-
camos o peruano Ruy Mauro Marini. A perspectiva de Marini aborda o papel
fundamentalmente necessário do subdesenvolvimento das economias latino-

55 De acordo com Pérez (1973), antes da Lei de Reforma Agrária, datada de 1959, 68 empresas
agropecuárias controlavam 27,5% do território nacional (apud BELMARIC; BRIGOS; FERRER;
PINEDA, 2012, p. 283)

81
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

-americanas para que as economias de capitalismo central possam se desen-


volver a partir de uma relação de dependência - estabelecida na dialética entre
centro-periferia – a qual tem como resultante uma unidade: a acumulação do
capital nos países centrais. Tal acumulação é resultado da superexploração do
trabalho por meio das burguesias nacionais e de sua dependência direta com
a burguesia internacional. Assim, o capital estrangeiro garante a transferência
de parte da mais-valia obtida no país periférico para possibilitar o processo de
acumulação do capital nos países centrais. Nos explica Marini (1998):
[...] a diferença do que acontece nos países capitalistas centrais, onde a
atividade econômica está sujeita à relação existente entre as taxas in-
ternas de mais-valia e de investimento, nos países dependentes o me-
canismo econômico básico deriva da relação exportação-importação:
ainda que se obtenha no interior da economia, a mais-valia se realiza
na esfera do mercado externo mediante a atividade de exportação, e se
traduz em receitas que se aplicam, em sua maior parte, em importa-
ções. A diferença entre o valor de exportação e das importações, isto
é, o excedente aplicável, sofre pois a ação direta de fatores externos à
economia nacional (MARINI, 1998, p. 115).

Desse modo, a burguesia nacional, para minimizar o seu prejuízo com


a perda de parte dessa mais-valia transferida, aumenta a mais-valia absolu-
ta que furta dos trabalhadores, gerando consequências ainda mais nefastas
como baixos salários, ausência de postos de emprego, repressão e analfabe-
tismo, sinalizando para uma piora cada vez mais latente na qualidade da vida
da classe trabalhadora dos países de capitalismo periférico (MARINI, 1998).
Notamos, por fim, que a importação de grandes quantidades de bens de
consumo que poderiam ser produzidos em Cuba, caso houvesse um desenvol-
vimento de bases industriais compatível com as necessidades do povo cubano,
somado à dependência tecnológica dos Estados Unidos e de uma política de ex-
portação de monoculturas, são reveladoras não só de uma economia fragiliza-
da, com debilidade de acumulação interna, mas que assume tal condição devido
à necessidade de acumulação e reprodução dos países de capitalismo central.
Para que Cuba pudesse garantir o desenvolvimento das suas forças pro-
dutivas, associada a um avanço qualitativo na qualidade de vida do seu povo,
ela teria que romper com a sua dificuldade de acumulação. Isto significa dizer
que Cuba deveria romper com a essência de sua condição de dependência,

82
Marxismo e América Latina

ou seja, como processo de transferência de mais-valia para um capital global


mais desenvolvido. As bases desse rompimento se deram em 1959, resgatando
o processo de independência nacional barrado56em 1898, e ganhou seu cará-
ter revolucionário socialista em 1961, com a nacionalização dos centros açu-
careiros, dos bancos, das indústrias e de grandes empresas, isto é, quando a
propriedade foi adquirindo outros lastros em que a propriedade privada não
tinha mais expressão essencial.
Nesse movimento, é crucial retirarmos quaisquer ilusões acerca do com-
prometimento da burguesia nacional com o desenvolvimento nacional e com
a ruptura da condição de dependência:
[...] a burguesia herdou como uma constante somente o ambiente polí-
tico pós-revolucionário de suas co-irmãs e jamais teve qualquer preten-
são em realizar suas ditas tarefas econômicas, o que significaria rom-
per com sua herança colonial. Sua fraqueza econômica é compensada
pelo monopólio político, condição para a superexploração do trabalho
e para a barganha com o capital externo. Reproduziu, particularmente,
os regimes autocráticos num movimento pendular ora sob o manto
constitucional, ora totalmente despido, revelando todo o absolutismo
burguês-bonapartista. Herda não a revolução, mas a contra-revolução.
Encontra-se impossibilitada, historicamente, pela subordinação e de-
pendência ao capital externo de promover a modernização capitalista
necessária para um desenvolvimento econômico nacional indepen-
dente. Sua origem colonial reduz e comprime sua consciência e hori-
zontes, impedindo-a de completar sua formação política de classe e de
realizar uma dominação burguesa clássica sob a forma democrático-
-liberal (BARSOTTI, FERRARI, 1998)57.

56 Aqui, referimo-nos ao processo de independência consolidado em 1895 e liderado por José Martí,
Máximo Gomes e Antonio Maceo. A independência de Cuba se dá a partir de uma correlação de
forças composta por setores da pequena burguesia, pelas forças remanescentes da Guerra dos Dez
anos, pelos escravos libertos em 1886 que, segundo Paulo Barsotti e Terezinha Ferrari, expressará
pela primeira vez na América a sua natureza antiimperialista-internacionalista. Entretanto, esse
movimento de massas será utilizado pelos Estados Unidos da América para o seu projeto de
expansão do capital industrial-financeiro. Assim, os EUA colocam suas tropas militares em Cuba
em adesão ao movimento de independência ao passo em que alia a repressão aos setores populares
e nacionais. Dá-se, com isso, a aliança entre o capital internacional estadunidense e as elites
cubanas nacionais para que se pudesse prosseguir o regime de latifúndio e neocolonial a partir da
modernização conservadora. Interrompe-se, portanto, um processo de ruptura político e social em
Cuba (BARSOTTI; FERRARI, 1998).
57 Grifos dos autores.

83
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Esse aspecto é, pois, revelador de uma questão muito cara aos debates
acerca do desenvolvimento das forças produtivas nos chamados países de ca-
pitalismo periférico, uma vez que o centro da estratégia para tal se coloca sub-
dividida entre a tradição que defende ser possível o desenvolvimento das for-
ças produtivas a partir de uma revolução burguesa, na qual é imprescindível
a aliança entre os trabalhadores e a burguesia nacional, e aquela que assume a
revolução socialista como a única alternativa a esse desenvolvimento.

3. A ordem econômica socialista cubana


no debate constitucional
Na presente seção, faremos uma breve discussão sobre três elementos
essenciais a essa investigação nos textos constitucionais do pós-Revolução
Cubana, quais sejam: o trabalho; a propriedade; e o controle estatal da econo-
mia. Nesse sentido, cabe-nos inferir que, com o movimento revolucionário, o
debate constitucional nos primeiros dias se fez a partir da necessidade de se
manter a Constituição de 1940 até que a Ley Fundamentaldel Estado Cubano,
aprovada em 04 de fevereiro de 1959 pelo Consejo de Ministros, entrasse em
vigor. A lei fundamentalserviu como embrião constitucional das tarefas revo-
lucionárias que se desenhavam.
Em seu artigo 24, a lei autoriza o confisco de bens do ditador Fulgêncio
Batista, deposto pela revolução, e de seus colaboradores, bem como das pessoas
físicas e/ou jurídicas responsáveis pelos delitos cometidos contra a economia na-
cional. Desse leque de confisco, participam também aqueles que enriqueceram
ilicitamente com o amparo do poder público na medida em que se delimita que
o interesse público e social está acima da propriedade privada. Nesse sentido:
En cuanto a las formas de propiedad, la “clave” definióelinicio de lasex-
propiaciones y nacionalizaciones anticapitalistas en Cuba y erradicó,
casi de manera consecutiva, la propiedad privada de grandes y medianos
propietarios privados, nacionales y extranjeros, fuelanecesidad de dar
respuestasaplastantes a laagudización de los ataques políticos, económi-
cos, militares y de otro tipo, que el imperialismo y sus fuerzas políticas
aliadas en el interior del país empezaron a fraguar y ejecutar desde el
triunfo revolucionario; delcontraataque que se vioobligada a asestar la-
Revolución ante al aislamiento diplomático y económico a que fue some-
tida Cuba (BELAMARIC; BRIGOS; FERRER; PINEDA, 2012, p. 308).

84
Marxismo e América Latina

As políticas primárias de expropriação da propriedade privada em articu-


lação à necessidade de romper com o domínio imperialista são elementos bali-
zares para, em 1961, a revolução assumir o seu caráter socialista. A propriedade
estatal passa a ter papel central na configuração econômica cubana, sendo o
desenvolvimento econômico e social à serviço do povo o seu fundamento.
O poder revolucionário, nos primeiros anos, realizou duas reformas
agrárias responsáveis por eliminar a burguesia agrária enquanto se naciona-
lizava a indústria, o comércio, os transportes e os serviços e se investia em
programas sociais de saúde e de geração de empregos.Entretanto, somente
dois anos após a tomada do poder político, Cubaadota o caráter socialista ao
processo revolucionário como uma alternativa de enfrentamento à dependên-
cia econômica e à exploração estadunidenses, isto é, com a transferência de
mais-valia aos países de capitalismo central.
A Lei Fundamental de 1959 é reflexo da necessidade do primeiro mo-
mento revolucionário, marcado, substancialmente, pela defesa da soberania
nacional cubana.
Com o I Congresso do Partido Comunista de Cuba, realizado em de-
zembro de 1975, foram incorporados ao modelo cubano algumas experiências
institucionais dos países conhecidos pelo socialismo real, principalmente o
socialismo soviético. Dentre eles, ressaltamos alguns: a centralização político-
-administrativa, caracterizada pela propriedade estatal de todo o povo sobre
os meios de produção, sendo aquela responsável pela formação de uma eco-
nomia planificada; e a socialização da produção e da política, centradas na
estatização e no centralismo, vistos como elementos capazes de se garantir a
emancipação político-econômica do povo cubano.
Nesse sentido, a propriedade estava organizada, além da propriedade es-
tatal socialista, na propriedade coletiva e dos pequenos agricultores sobre as
suas terras e outros meios e instrumentos de produção (artigo 20, inciso I); a
propriedade pessoal sobre a renda e a poupança do próprio trabalho, sobre a
habitação que é possuída apenas como o título de propriedade e outros bens
e objetos que servem para satisfazer as necessidades materiais e culturais das
pessoas, bem como a propriedade sobre os meios e instrumentos de trabalho
pessoal ou familiar que não sejam utilizados para a exploração do trabalho
alheio (artigo 22); e a propriedade das organizações políticas, sociais e de mas-
sas sobre os bens destinados ao cumprimento das suas finalidades (artigo 23).

85
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Nos revelam Belamaric, Brigos, Ferrer e Pineda que:


El contenido principal de la política económica del Estado en el dece-
nio 1976-1985 fue la industrialización intensiva y compleja (a diferen-
cia del período de 1964-1975, en el cual el desarrollo industrial tenía
un carácter subordinado). Se planteó como tarea fundamental crear
una base para abastecer con equipos materiales a la industria, la agri-
cultura y la ganadería y lograr así el desarrollo continuo de las fuerzas
productivas, incrementar el volumen de exportaciones, reducir las im-
portaciones y conseguir un amplio surtido de mercancías de consumo
popular, lo anterior reflejaba la implementación de un enfoque análogo
al seguido por los países socialistas hasta ese momento (BELAMARIC;
BRIGOS; FERRER; PINEDA, 2012, p. 340).

A Constituição de 1976 deu início à política de planificação econômica à


longo prazo, incorporou consigo a noção de ditadura do proletariado, bem como
a máxima marxiana presente na Crítica ao Programa de Gotha: “de cada qual
de acordo com suas capacidades, a cada qual segundo o seu trabalho” (MARX,
2012, p. 33), ainda que tal momento histórico não refletisse a fase comunista,
haja vista, por exemplo, a manutenção da própria forma jurídica58 presente na
constituição. Quanto à política salarial, a Constituição determinava que os cida-
dãos, sem distinção, receberão salários iguais por trabalho igual.
A estratégia econômica adotada em meados dos anos 1980 foi calcada
substancialmente no investimento interno, principalmente por parte da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que serviram como fontes financiamen-
to das políticas na ilha. Ainda assim, o investimento em matérias-primas e o
processo de industrialização crescente foram elementos basilares para manter
a economia cubana, ainda que isto lhe custasse a condição de dependência.
Com o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e com o
avanço e imposição das políticas neoliberais no mundo inteiro, Cuba passou a
enfrentar uma grave crise econômica, política e social que lançou aportes para
se questionar a possibilidade de se prosseguir com o com o modelo socialista
na ilha59. Na contramão do que se esperava pelo imperialismo estadunidense

58 Para maiores detalhes sobre a forma jurídica, consultar Mascaro (2013) em “Estado e forma
política”, editora Boitempo.
59 Segundo Álvarez (2000) e Rodríguez (1999), os países socialistas forneciam 85% das importações
cubanas, 80% dos investimentos e recebiam ao redor de 80% das exportações do país (apud
GARCÍA, 2011, p.29).

86
Marxismo e América Latina

com suas políticas de embargos econômicos, o socialismo não se desidratou,


apesar da piora nas condições objetivas de reprodução social. Nesse cenário
de crise, a ilha enxerga a necessidade de reorientar a sua estratégia político-
-econômica, principalmente do ponto de vista externo, o que reflete em um
processo de abertura ao capital estrangeiro, haja vista a sua relação desvincu-
lada diretamente do mercado internacional capitalista.
Um programa econômico de emergência foi aplicado a partir de uma
estratégia cujos objetivos principais eram persistir e superar os efeitos
da crise aomenor custo social possível e, ao mesmo tempo, criar as con-
dições para reinserira economia cubana nas novas condições internas
e externas, contando para issocom o indispensável consenso político.
(...) o processo de transformação do paradigma econômico se caracte-
rizaria por abrir um considerável espaço aos mecanismos de mercado
sem renunciar à essência do socialismo, visando à recuperação da pro-
dução e dos serviços (GARCÍA, 2011, p. 29 - 30).

Inaugura-se, portanto, o período que será caracterizado por Gónzales


(1993) por socialismo de mercado. Diante disso, surge a necessidade de altera-
ção do texto constitucional de 1976, iniciando-se o processo que dará origem à
Reforma Constitucional de 1992. Dentre as principais mudanças do ponto de
vista econômico, estão a eliminação do monopólio estatal do comércio exterior
e o reconhecimento da propriedade mista, isto é, a flexibilização do caráter da
propriedade. Neste cenário, segundo Valdés (1997), apenas a seguridade nacio-
nal, a educação e a saúde ficaram resguardados da abertura ao capital privado.
Essas características que definiam o projeto socialista cubano foram
modificadas com as reformas iniciadas em 1991, permitindo a expan-
são das relações mercantis e a descentralização do planejamento. Em
primeiro lugar, modificou-se constitucionalmente o conceito de pro-
priedade e a definição de planejamento centralizado. Em segundo, um
acelerado processo de desestatização das terras que foram transforma-
das em cooperativas. Em terceiro lugar, a descriminalização da posse e
uso de divisas estrangeiras, a liberalização do trabalho por conta pró-
pria e a autorização para o funcionamento de vários mercados privados
de produtos agropecuários, industriais e de artesanato (CARCANHO-
LO; NAKATANI, 2006).

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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Aqui, o sistema econômico, outrora baseado na propriedade socialista de


todo o povo sobre os meios de produção, altera-se para propriedade socialista
de todo o povo sobre os meios fundamentais de produção. A mudança, por-
tanto, ocorreno caráter irreversível da propriedade socialista sobre os meios de
produção, dando entrada para a propriedade privada,bem como a supressão
da exploração do trabalho do homem pelo homem. Desse modo, estabelecerá,
em seu artigo 43, que os cidadãos cubanos receberão salário igual por traba-
lho igual, resguardando a política salarial adotada na constituição anterior.
Podemos observar, portanto, que as alterações constitucionais percebi-
das ao longo da Revolução Cubana são reflexos elementares das necessidades
de produção e reprodução da sociedade. Ainda assim, podemos encará-las
como partes essenciais das estratégias político-econômicas adotadas pela ilha
para que se levasse à cabo o seu programa socialista e de planificação econô-
mica ao passo em que se aliava soberania nacional à necessidade de aberturas
ao mercado internacional. Passamos, então, a analisar as transformações na
ordem econômica a partir do novo texto constitucional.

4. Novo texto constitucional e mudanças


na ordem econômica cubana
Frente à crise de 2008 e à reestruturação do capitalismo, o VI Congresso
do Partido Comunista de Cuba (PCC), realizado entre 16 a 19 de abril de 2011,
foi responsável por estabelecer, como ponto central de suas discussões, as novas
diretrizes da política econômica e social do partido e da Revolução, representa-
das pelo Proyecto de Lineamientos de la Política Económica y Social del Partido
y laRevolución. Tal projeto foi resultado final de um acúmulo de estudos, forma-
ções político-econômicas, consultas e reformulações realizados com a militância,
com as organizações de representação de massa, com a população cubana e com
a Asemblea Nacional del Poder Popular entre o final de 2010 e o início de 2011, o
qual teve a aprovação do texto final no VI Congresso.
O documento supracitado, que posteriormente foi reformulado e atualizado
no VII Congresso do PCC,associado aos documentos “Conceptualizacióndel Mo-
delo Económico y Social Cubano de Desarrollo Socialista e Bases delPlan Nacional
de Desarrollo Económico y Social hasta el 2030” e“Visión de la Nación, Ejes y Secto-

88
Marxismo e América Latina

res Estratégicos”,também aprovado nesse congresso, serviu e servirá como base às


reformulações no plano normativoem curso, o que já incluiu a própria Constitui-
ção de 2019, no que se refere às mudanças econômicas e sociais.
Cuba, con una economía abierta y dependiente de sus relaciones eco-
nómicas externas, no ha estado exenta de los impactos de dicha crisis,
que se han manifestado en la inestabilidad de los precios de los produc-
tos que intercambia, en las demandas para sus productos y servicios de
exportación, así como, en mayores restricciones en las posibilidades
de obtención de financiamiento externo. Entre 1997 y 2009 las varia-
ciones de precios en las exportaciones y las importaciones produjeron
una pérdida neta para el país por 10 mil 149 millones de pesos, en re-
lación con los niveles de 1997. En promedio, el poder de compra de las
exportaciones de bienes se deterioró 15%. Además, el país experimentó
el recrudecimiento del bloqueo económico, comercial y financiero que
ininterrumpidamente por espacio de medio siglo le ha sido impuesto
por los Estados Unidos de América, situación que no se ha modificado
con la actual administración de ese país y que ha significado cuantiosas
perdidas (PCC, 2011, p. 5).

Associado a isso, o material do VI Congresso apresenta que na ordem


econômica interna o país tem passado por um processo de descapitalização
da infraestrutura e da sua base produtiva; uma baixa eficiência das formas
de gestão; e o envelhecimento e estancamento do crescimento populacional.
Para solucionar tais problemas, se propõe dois tipos de soluções, quais sejam,
um à curto prazo, o qual tem como objetivo eliminar o déficit da balança de
pagamentos; e outro, à longo prazo, cuja política permita a autossuficiência
alimentar e energética, a competitividade nas produções tradicionais, bem
como a produção de bens e serviços de alto valor agregado (PCC, 2011).
Os documentos apresentam como eixos centrais para a política de desen-
volvimento e de superação da crise a abertura ao capital internacional o papel
estratégico da ciência, da tecnologia e do desenvolvimento humano para o
desenvolvimento das forças produtivas, bem como para a promoção da equi-
dade e da justiça (PCC, 2016).

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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

4.1. A propriedade, o controle


estatal da economia e o trabalho
Para superar a crise, a revolução enveredou por alguns caminhos que re-
sultaram em mudanças significativas no novo texto constitucional, dentre elas
elencamos o reconhecimento de diferentes formas de propriedade, quais se-
jam: a) a propriedade socialista de todo o povo, a qual, de acordo com o Mode-
lo Económico y Social Cubano, é a principal forma de propriedade na econo-
mia nacional, assim sendo, ela é a coluna vertebral de todas as outras formas
e são todos os cidadãos cubanos o seu proprietário comum; b) a propriedade
cooperada, cuja configuração é a forma não-estatal, assumindo caráter em-
presarial e personalidade jurídica, baseia-se nos princípios do cooperativismo
e é sustentada pelo trabalho coletivo dos seus sócios-proprietários e tem como
finalidade a produção de bens e serviços visando os desenvolvimentos econô-
micos e sociais; c) a propriedade mista, constituída por entidades nacionais ou
estrangeiras que tem como função a produção e a comercialização de bens ou
serviços, assumindo, o Estado, o compromisso em assegurar os direitos dos
trabalhadores, a proteção dos recursos e do meio ambiente; d) a propriedade
privada, a qual deve cumprir um papel social e complementar ao do Estado,
contribuindo assim com a satisfação das necessidades do povo e a eficiência
integral da economia, podem ser possuídas por pessoas naturais cubanas ou
estrangeiras, sendo permitida as propriedades totalmente estrangeiras com o
objetivo de implantar, por meio do desenvolvimento estrangeiro direto, mo-
dernas capacidades produtivas baseadas no desenvolvimento econômico e so-
cial; e) a propriedade das organizações políticas, de massas e sociais, que está
voltada aos objetivos próprios dessas organizações, com o fim de contribuir
com o interesse público e o desenvolvimento social; f) a propriedadede de
instituições e formas associativas, cujos fins não são lucrativos, correspondem
a instituições que estão ligadas ao desenvolvimento das atividades espirituais,
culturais, históricas e recreativas; g) e a propriedade pessoal, que não se con-
figura enquanto meio de produção e corresponde aos meios de satisfação de
necessidades materiais e espirituais do seu proprietário.
La existencia de formas de propiedad y de gestión no estatales tiene
como objetivos posibilitar que el Estado y el Gobierno se concentren en
las complejas tareas que le son propias, tributar a la eficiencia integral de

90
Marxismo e América Latina

la economía, generar empleos, desplegar iniciativas, impulsar las fuer-


zas productivas, incrementar los ingresos al Presupuesto del Estado y
contribuir al bienestar en función de los objetivos del desarrollo socia-
lista. La transferencia temporal de la posesión o la gestión de determi-
nados medios de producción de propiedad de todo el pueblo a actores
económicos no estatales no constituye una privatización o enajenación
de estos bienes, en el sentido de que el Estado mantiene el ejercicio de
las principales facultades que le corresponden en virtud de la condición
de representante del propietario. Además, establece las normas jurídicas
para regular estas transferencias, controla a estos actores y vela por los
derechos y deberes de los involucrados (PCC, 2017, p. 5 e 6).

Sendo assim, a ampliação da abertura à intervenção estrangeira é colo-


cada como uma das principais medidas a serem adotadas para enfrentar os
problemas mais urgentes frente à crise posta para que se possibilite o desen-
volvimento das forças produtivas.
Os componentes principais do modelo de desenvolvimento econômico e
social cubano são quatro, quais sejam a planificação socialista, a regulação, a
gestão do Estado e do governo e o controle. A planificação socialista constitui,
aqui, o elemento fundamental desse modelo, uma vez que possibilita, a par-
tir da centralização estatal, a condução do desenvolvimento econômico pelo
Estado (artigo 19) visando a consolidação do socialismo à medida em que se
reconhece todos os atores econômicos da sociedade, inclusive a propriedade
privada. Tal condução deve estar, necessariamente, articulada com os meca-
nismos de regulação estatal da circulação de moeda, isto é, a regulação do
peso cubano, da política de preços e de comercialização, bem como da própria
propriedade privada. Para tanto, o controle estatal, social e popular, trazidos
no artigo 20 da Constituição de 2019, são mecanismos centrais para a efetiva-
ção da política de planificação.
El sistema de dirección planificada del desarrollo económico y social
tiene en cuenta la vigencia de las relaciones de mercado y regula el ac-
cionar de ellas en función del desarrollo socialista, contribuyendo a
facilitar de modo más eficiente y efectivo, el acceso de los actores eco-
nómicos de las diferentes formas de propiedad y gestión a los insumos
y a los mercados de sus producciones y servicios, en función de cuyas
demandas deben optimizar oportunamente las ofertas en surtido y ca-
lidad. El mercado regulado ha de tributar a la satisfacción de las nece-
sidades económicas y sociales de acuerdo con lo planificado, sobre la

91
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

base de que sus leyes no ejercen el papel rector de la vida económica y


social, y se limitan los espacios de su actuación. La existencia objetiva
de las leyes del mercado está dada fundamentalmente por el nivel de
desarrollo de las fuerzas productivas, la división social del trabajo y la
coexistencia de diferentes formas de propiedad y de gestión. Los meca-
nismos del mercado son objeto de regulaciones para ser utilizados en
función del desarrollo económico y social (PCC, 2017, p. 14).

Neste aspecto de desenvolvimento planificado, a geração de empregos


assume papel central, de tal sorte que se prioriza os postos de trabalho na es-
fera produtiva e um aumento da produtividade do trabalho. Aliado a isso, se
mantém o ideal de que toda pessoa tem direito que o seu trabalho se remunere
em função da qualidade e da quantidade, donde se faz alusão ao princípio
marxiano “de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo o seu
trabalho” (artigo 65). Assim sendo, se projeta, também, as condições para que
o trabalho se configure enquanto uma necessidade em si mesmo, bem como
um motivo de realização e satisfação social dos trabalhadores, ao qual os sa-
lários sejam a principal fonte de reprodução e estímulo (PCC, 2017). Os fun-
damentos que deram origem ao texto normativo entendem o trabalho como a
fonte principal de ingressos, capaz de garantir qualidade de vida, elevando o
bem-estar material ou espiritual das pessoas (PCC, 2017).

5. Considerações finais
Diante do exposto nessas breves páginas, se pôde observar que, de forma
correspondente ao que deve ser um país de capitalismo dependente, Cuba teve
no seio do desenvolvimento das suas forças produtivas as marcas da explora-
ção e da subserviência aos países de capitalismo central, nos quais se destaca
os Estados Unidos da América. Tais marcas revelam não só uma condição
histórica alicerçada em determinado padrão de desenvolvimento econômico,
sustentado em formas pré-capitalistas, mas na necessidade desse projeto estar
articulado à repressão às classes trabalhadoras quando em momento de sub-
versão à ordem sustentada pelas burguesias nacional e internacional.
Para superar essa relação de dependência, se forjaram no seio da correla-
ção de forças sociais da sociedade cubana as possibilidades de uma revolução
democrática e anti-imperialista que, exitosa em 1959, encontrou na afirmação

92
Marxismo e América Latina

da via socialista (1961) os meios mais adequados para o desenvolvimento das


forças produtivas. Com isso, o papel central do Estado é colocado em cena
no controle da planificação da economia e, consequentemente, das relações
sociais de produção com a finalidade de os trabalhadores não só assumirem o
controle do poder político, mas, sobretudo, do econômico.
Entretanto, como toda relação dialética, ela se constituirá revelando di-
versas contradições, sejam elas entre a planificação econômica e a abertura
capital estrangeiro, sejam elas ligadas à preservação do regime socialista ou
ao estímulo a relações capitalistas. É nesse cenário contraditório e de reorga-
nização do capitalismo internacional que as discussões econômicas em Cuba
ganharam mais fervor e se tornaram elementos centrais das discussões dos
últimos congressos do Partido Comunista Cubano, o que resultou em um
processo constituinte que deu origem à atual constituição.
A nova constituição e suas alterações econômicas refletem as alternativas
encontradas por Cuba para enfrentar a atual crise, garantindo a qualidade de
vida dos trabalhadores e o desenvolvimento das forças produtivas, reafirman-
do a via socialista.
Diante disso, observamos que é a partir das contradições postas na tota-
lidade das relações econômicas e sociais se emergem as possibilidades para a
sua superação, ou seja, a interatividade das relações humanas se configuram
o solo fértil para a superação das próprias contradições produzidas por elas.
Resta saber se as aberturas ao capital, encontradas como respostas à atual cri-
se pela revolução cubana, irão de fato se configurar enquanto mediação e/
ou superação para esse momento. Isso, só a história, com a ação dos atores
políticos e sociais, nos dirá.

Referências

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cial%20Version%20Final.pdf>. Acesso em 06 de agosto de 2019.

95
Lawfare na América Latina e machismo:
análise dos casos Kirchner e Rousseff

Adriana Dias Moreira Pires60


Dacielle da Silva Ingá61
Gabriel Braga dos Santos62

1. Introdução
Países da América Latina como Brasil, Argentina, Chile e Equador, têm
experimentado um fenômeno denominado como Lawfare que corresponde a
uma forma de utilização de aparatos judiciais, com suporte de meios de co-
municação, com a finalidade de atingir objetivos eminentemente políticos. No
Brasil, isto pode ser identificado através do impeachment da presidenta Dilma
Rousseff em 2016 e do processo que culminou na prisão do presidente Luís
Inácio Lula da Silva em 2018. Já na Argentina, a presidenta Cristina Kirchner
vem enfrentando um verdadeiro combate em oito processos judicias, que de
certo modo, guardam semelhanças com os que o presidente Luís Inácio Lula
da Silva vem enfrentando. No Equador, em julho de 2018, a ordem de captura
internacional e de prisão do Presidente Rafael Correa também evidencia que
este foi alvo desta estratégia jurídico-política.
Nestas situações, percebe-se que não se tratam de simples escândalos de
corrupção. Isto pelo fato de que, analisando-se cada caso, fica perceptível o
uso de falácias hermenêuticas do direito burguês, do uso de ferramentas po-

60 Graduada em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), especialista em


educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
mestranda em Direito pela UFERSA e integrante do Grupo de Estudos em Direito Crítico,
Marxismo e América Latina (GEDIC). E-mail: adriana.pires20@gmail.com.
61 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA) e integrante do Grupo
de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC). E-mail: ingadacielle@gmail.com.
62 Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA) e integrante do Grupo
de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC). E-mail: gabrielbs777@gmail.com.

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Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

líticas de forma errônea e de reinvenções das narrativas, contadas a partir da


grande mídia para a população.
Diante disso, com a ocorrência do Lawfare em países da América Latina,
especificamente no Brasil e na Argentina, onde alguns dentre os principais
personagens são mulheres, surge a questão que este artigo pretende se de-
bruçar: existem relações entre o Lawfare e o machismo nos casos Kirchner e
Rousseff, situados na América Latina?
Para compreender essa problemática, utilizaremos utilizaremos como
método o materialismo histórico dialético e, como instrumentos metodológi-
cos, faremos uso de revisão bibliográfica e pesquisa documental, com ênfase
nos processos judiciais e notícias envolvendo as Presidentas Cristina Kirchner
e Dilma Rousseff. O trabalho está dividido em três seções, sendo a primeira
delas dedicada a fazer uma síntese do contexto social latino-americano, os
conceitos em torno do conjunto de práticas mencionadas e sua relação com o
machismo. Na seção seguinte, serão debatidas as especificidades, aproxima-
ções e diferenças entre os casos de Kirchner e Rousseff. Por fim, abordaremos
os impactos do uso dos aparatos judiciais e do machismo como armas políti-
cas utilizadas para fragilizar as democracias latino-americanas.

2. Lawfare, machismo e américa latina


Como nos demonstra Valença e Barbosa (2018), a América Latina revela
especificidades em sua formação social, sendo estas derivadas da empreitada co-
lonial. De acordo com os autores, as sociedades coloniais latino-americanas fun-
daram seus pilares na submissão de civilizações indígenas e africanas à superex-
ploração do trabalho e na dependência do capitalismo mercantil, através das quais
foi possível estruturá-las a partir de elementos de classe, sexo e raça distintas.
A economia e a sociedade formada no espaço colonial imprimiram a traje-
tória dos futuros países da América Latina, que historicamente se organizaram
voltados para fora, atendendo aos interesses mercantis externos (europeus). Esta
trajetória histórica foi iniciada entre os séculos XVI ao XIX, articulada com os
interesses das Coroas ibéricas, que encontraram no caráter periférico e comple-
mentar da economia colonial as condições específicas (forças produtivas) relativa-
mente favoráveis ao estabelecimento de diferentes relações de produção. Não por

98
Marxismo e América Latina

acaso, inseria-se no contexto europeu da época quando, nas fendas do feudalismo,


começam a surgir novas relações de produção, que futuramente darão origem ao
capitalismo e a generalização do assalariamento.
Como formações periféricas, os países do continente latino-americano
trazem consigo a marca de forças produtivas dependentes, defasadas histo-
ricamente e influenciadas pela conjuntura e pelos interesses internacionais.
Os casos de Lawfare identificados em países da América Latina são exemplos
claros destas marcas históricas, uma vez que tal dispositivo vem orientado a
perseguir lideranças que se opõem ao pensamento neoliberal desenhado nos
centros financeiros internacionais.
Por esta razão, é a partir da formação social da América Latina que
Valença e Barbosa (2018) enfatizam que o Lawfare deve ser compreendido
atentando-se para o fato de que o contexto histórico latino-americano nos
apresenta uma realidade na qual há uma nítida indisposição das elites quan-
to a possibilidade de constituição de um padrão de sociabilidade pautado no
bem-estar das pessoas e de um ambiente democrático.
Feitas estas considerações iniciais acerca da formação social latino-ame-
ricana, impõe-se agora adentrar especificamente no arcabouço conceitual que
a doutrina traz sobre a definição do instituto.
Streck (2017) leciona que o termo denominado atualmente de Lawfare
remete a uma expressão cunhada por John Carlson e Neville Yeomans, para
quem representa uma espécie de duelo, conflito, no qual se utiliza o direito
como arma para atingir um inimigo específico.
Entretanto, em seu sentido puro, a expressão foi utilizada pelo General
das Forças Aéreas dos EUA, Chales Dunlap (2011), a fim de significar uma
“estratégia do uso – ou não uso - do Direito como um substitutivo dos meios
militares tradicionais para atingir um objetivo de combate de guerra”. Neste
sentido, Andrade (2018) aponta que Lawfare seria, portanto,
[...] o emprego da lei como forma de obtenção de algo que, usualmente,
exigiria o uso de força militar tradicional, funcionando como meio de
compelir um comportamento específico com menor custo que a tradi-
cional guerra cinética, sempre com a intenção de enfraquecer ou des-
truir um adversário. Projetada para a política, a Lawfare é o uso abusivo
das leis e de processos judiciais pelos agentes do sistema de justiça, usu-
almente com o auxílio da mídia, para perseguir um adversário, sempre

99
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

por motivação política e visando a sua destruição. É o emprego da lei


como arma para a guerra política e a fim de impactar nas disputas por
espaços de poder. Usa-se a lei para causar a morte política em lugar da
execução física do adversário, de maneira que primeiro escolhe-se um
culpado para depois buscar-se um crime (ANDRADE, 2018, p. 207).

O Lawfare, como fenômeno jurídico, é compreendido por Streck (2017)


a partir da correlação com outros três elementos de suma importância: a eco-
nomia, a moral e a política. Para o autor, o fenômeno é uma manifestação do
relativismo moral do Direito, na medida em que parte de uma construção
fraudulenta de um raciocínio jurídico para perseguir fins politicamente orien-
tados. A economia, consequentemente, seria a responsável por indicar quais
adversários serão os alvos da fraude jurídica.
O autor sustenta, ainda, que o fenômeno não é algo isolado, único e sui generis,
mas apresenta-se como um sintoma da falta de autonomia do direito. Um direi-
to que conserva sua autonomia é compreendida como ordem de validade, dotada
de força normativa “produzida democraticamente e institucionalizada, de forma a
funcionar como blindagem contra seus próprios predadores externas, sendo essa,
portanto, sua própria condição de possibilidade” (STRECK, 2017, p. 122).
No mesmo sentido, Rodrigues (2018) enfatiza que as práticas de Lawfare
transformam o direito num instrumento manipulado de guerra, empregado
como ferramenta de exclusão de uma pessoa do universo da cidadania e de
sua transformação em um inimigo comum do povo a ser caçado e deslegiti-
mado. Segundo o autor,
Isso faz com que o Judiciário, o Ministério Público e as forças policiais
venham agir dentro de uma lógica seletiva, espetacularizada e midiá-
tica como se o processo penal devesse funcionar a partir de um siste-
ma de execração pública nos moldes de um direito medieval, mas que
encontra amparo na lógica de ação do Golpe de 2016, golpe este que,
como muito bem destaca Yarochewsky (2017, p. 261), é permanente no
Brasil (RODRIGUES, 2018, p. 70).

Portanto, em síntese, o Lawfare pode ser compreendido como um fe-


nômeno jurídico no qual o direito, especificamente o direito penal, é utiliza-
do para perseguir fins políticos, valendo-se da institucionalidade estatal e do
aparato da grande mídia.

100
Marxismo e América Latina

O impeachment da Presidenta Dilma Rousseff no Brasil e a perseguição judi-


cial da Presidenta Cristina Kirchner na Argentina são exemplos flagrantes da ma-
terialização da guerra político/jurídica. Em ambos os casos, primeiro escolheu-se
as culpadas para depois buscar-se um crime e imputar-lhes. No caso da Presiden-
ta Dilma, inclusive, o crime que lhe foi imputado (“pedalada fiscal”), logo após o
impeachment, curiosamente, deixou de ser um “tipo penal”.
Sinteticamente, a “pedalada fiscal” corresponde a uma prática do gover-
no em atrasar o repasse de dinheiro para bancos públicos, com o objetivo de
acumular caixa e apresentar as contas públicas de uma forma mais positiva.
Tal prática, até então usual pelos governos, na gestão da Presidenta Dilma
Rousseff foi considerada como uma operação de crédito, ou seja, um emprés-
timo e, assim sendo, seria necessária uma previsão deste na meta fiscal e a
autorização pelo Congresso Nacional. Dois dias após o impechment da Presi-
denta Dilma Rousseff, o Senado aprovou a Lei nº 13.332/2016 flexibilizando as
regras para a abertura de créditos suplementares sem a necessidade de autori-
zação do Congresso Nacional.
Outro aspecto que merece destaque quanto ao Lawfare na América Latina
atine a um critério específico de escolha dos seus “alvos”, qual seja, a posição po-
lítico-ideológica destes sujeitos. No caso do Brasil e da Argentina, a ascensão dos
governos reconhecidamente progressistas de Dilma Rousseff no Brasil e Cristina
Kirchner na Argentina colocam-nas alvos da categoria doutrinária estudada.
Os dois casos também chamam atenção sob uma ótica específica: o re-
corte de gênero. Tanto Dilma Rousseff quanto Cristina Kirchner foram eleitas
como as primeiras mulheres a ocupar o cargo de Presidenta em seus respecti-
vos países, Brasil e Argentina. Ambos guardam semelhança peculiar quanto à
tímida participação da mulher no espaço político, assumindo cargos públicos
de poder, conforme demonstra o levantamento da Inter-Parliamentary Union
- IPU63. Tal fato remete às marcas que o patriarcado64 imprimem na sociedade,

63 De acordo com os levantamentos da Inter-Parliamentary Union, o Brasil ocupa a 132º posição no


Ranking de participação de mulheres na política, ocupando 77 das 513 cadeiras (15%) da Câmara
Federal e 12 das 81 (14,8%) do Senado. A argentina ocupa a 19ª posição, possuindo 99 das 255
(38,8%) da Câmara Federal ocupada por mulheres e 30 das 72 (41,7%) do Senado. Disponível em:
<http://archive.ipu.org/wmn-e/classif.htm>. Acesso em 15 de jul. de 2019.
64 Patriarcado, como observa Sabadell (2002, p. 78), “trata-se de um poder exercido em âmbitos
estritamente privados, como na família, por parte dos homens em relação às crianças e às mulheres.

101
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

onde o direito das mulheres em inserirem-se, participarem e permanecerem


ativamente construindo o espaço público é obstaculizado pela negação.
Nas linhas que seguem, passaremos a debater como as expressões do
machismo se manifestaram nos casos do impeachment de Presidenta Dilma
Rousseff e na perseguição judicial de Cristina Kirchner, bem como discutire-
mos seus reflexos na caracterização destes casos como Lawfare.

3. Casos Kirchner e Rousseff: aproximações e diferenciações


O sistema normativo, conjunto de regras e princípios valorados pelos
interesses das elites, necessariamente tem suas estruturas erigidas através da
manifestação do patriarcado, que, por sua vez, encontra-se intrínseco às di-
ferentes partes da sociedade. Tal ordenamento é altamente influenciado pela
prática sexista, desde suas leis à imparcialidades subjetivas de julgamento,
bem como no sentido de tentar diminuir, no campo teórico, as capacidades
da mulher perante suas atividades, além de difundir a ideia de que serviços
realizados por homens tendem a ser mais suscetíveis de sucesso.
Em casos de Lawfare, como os enfrentados pelas ex-presidentas Dilma
e Cristina, tal machismo é crucial no ato de tentar deslegitimar e punir as
ações analisadas, além de modificar a realidade fática, instrumentalizando,
nestes casos, preceitos patriarcais e elitistas, através de um “golpe institucio-
nal65. Sob tais bases machistas, facilita-se a reinvenção do direito burguês,
quebrando a falácia de suas garantias, portanto, “o devido processo legal” e
o garantismo processual, que trazem a suposta perspectiva de um procedi-
mento justo nas relações jurídicas.

Este poder é denominado de “dominação masculina” ou “patriarcado” e se manifesta através da


desigualdade das relações entre os gêneros masculino e feminino”.
65 Uma conspiração, com o objetivo de tomar o poder do Estado, operando-se de uma troca da
liderança política sem uso de violência explicita, mas sim de falsas reinterpretações do ordenamento
jurídico e reinvenção dos fatos reais.

102
Marxismo e América Latina

3.1 Caso Dilma


Visto o exposto, cabe analisar inicialmente o processo enfrentado por
Dilma Rousseff. Para diversos especialistas, como Marcelo Braz, tratou-se de
uma farsa parlamentar-judicial, que utilizando-se da grande mídia, do judi-
ciário parcial e do legislativo essencialmente contrário à classe trabalhadora,
deslegitimou mais um governo de esquerda, como vem ocorrendo por toda a
América Latina. Segundo ele (2017, p. 88),
A farsa evidenciou-se na peça jurídica que embasou o processo de
impedimento da presidente, claramente forjada para tornar “crime
de responsabilidade” alguns atos de governo (créditos suplementares
envolvendo instituições do Estado) praticados na gestão. Tratou-se de
uma operação claramente política voltada, exclusivamente, para sus-
pender o mandato de Dilma Rousseff.

Em tese, tal deslegitimação serviu não só para destituir Dilma do car-


go, abrindo espaço para a reemergência da política neoliberal66 do Brasil, mas
principalmente para evitar, também através de manipulação do sistema legal,
com aparência de legalidade, bem como das instituições estruturadas nacio-
nalmente, que o antecessor, Lula da Silva, retorne à presidência da república.
Como observa Teles (2018, p. 66)
Na véspera da audiência de julgamento do habeas corpus ao ex-presi-
dente Lula, o general Eduardo Villas Bôas perguntou “às instituições e
ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações
futuras”. As palavras do comandante do Exército, instituição que este-
ve à frente da ditadura, repercutiram como ameaças ao Supremo Tri-
bunal Federal (STF), o qual, ao final, negou a solicitação, em 4 de abril
de 2018. O militar ainda disse que “se mantém atento às suas missões
institucionais” e, enquanto representante dos “cidadãos de bem”, está
pronto para intervir em defesa da ordem.

66 Luís Felipe Miguel observa que “tanto de uma utilização competente das novas ferramentas
tecnológicas quanto pelo espaço concedido nos meios de comunicação tradicionais, a direita
extremada, em suas diferentes vertentes, contribuiu para redefinir os termos do debate público no
Brasil, destruindo consensos que pareciam assentados desde o final da ditadura militar”.

103
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Isto pois, como já era previsto, as pesquisas de votos mostravam Lula,


mesmo preso, com “39% das intenções de voto na primeira pesquisa estimula-
da do Datafolha realizada após os registros das 13 candidaturas ao Palácio do
Planalto”. Assim sendo, em tal contexto, no dia 31 de agosto de 2016, deu-se
procedência ao impedimento, com 61 votos a favor e 20 contra; sem absten-
ções. Sobre isto, discorrem Ramires e Lucero (2016, p. 120):
Os autores do impeachment efetivamente alcançaram seu objetivo de
manejar o Direito, especialmente o sistema penal, para destruir o ad-
versário político. Uma estratégia de “Lawfare” político instrumental:
instauração de persecução criminais (denúncia por crime de respon-
sabilidade dando origem ao processo de impeachment) para alcançar
objetivos políticos e com isso jurisdicionalizaram discussões essencial-
mente reservadas ao campo político, reinterpretando de forma criativa
o ordenamento para afastar as garantias processuais do processo de
impeachment. Isso tudo com o auxílio luxuoso da operação Lava Jato e
suas divulgações de persecuções criminais com a afetação de imagens
pessoais para alcançar objetivos políticos.

Ou seja, utilizando-se da popularização da Operação lava-jato, bem como do


contexto da situação nacional, já com diversos golpes à imagem de Dilma, possibili-
tou-se a errônea adequação das formas processuais para a cassação do mandato da
presidenta. Assim sendo, em conjunto com o exposto, de modo a facilitar/garantir
o processo de impeachment, os três Poderes, juntamente com a grande mídia67, de
diversas formas, utilizaram das bases machistas institucionais e sociais.
O processo de impeachment, trazendo à tona a origem dos questiona-
mentos do segundo mandato, começou com a oposição articulando-se em
pedir a recontagem de votos pós eleição, buscando deslegitimar o processo
eleitoral. Como atesta reportagem do G1, em outubro de 2014:
Na solicitação apresentada pelo coordenador jurídico da campanha do
candidato derrotado Aécio Neves, deputado federal Carlos Sampaio
(PSDB-SP), o partido sugere a criação de uma comissão com represen-
tantes do tribunal e de partidos para verificar o sistema que apura e faz
a contagem dos votos.

67 Entendemos a expressão grande mídia como sendo o conglomerado de meios de divulgação de


informações controlados pela classe capitalista, representados pelas famílias historicamente
dominantes no contexto regional.

104
Marxismo e América Latina

A grande mídia, nessa esteira, supervalorizou as consequências pós aliança


do Governo com os empresários, que buscou um aumento de investimentos na-
cionais através da redução de impostos. Entretanto, tais empresários não repro-
duziram o esperado investimento, mas ao contrário, aumentaram sua margem
de lucro investindo no exterior.68 Dessa forma, exacerbou-se um espectro social
de negação à figura de Rousseff, uma vez que a crise nacional ficou agravada.
Além disso, tomadas as medidas de contingenciamento dos gastos, por con-
sequência da desaceleração econômica provocada pela desvalorização dos com-
modities, por 2014 ser ano eleitoral e devido à crise energética, foram necessá-
rias as chamadas “pedaladas fiscais”69, que foram utilizadas como pretexto para
o impeachment. Observa-se que, entretanto, como trouxe a própria Dilma, ao se
defender do processo de impeachment, no Senado: “O TCU recomendou a apro-
vação das contas de todos os presidentes que editaram decretos idênticos aos que
editei”70. De fato, a prática ocorre desde 2000, porém com o TCU aprovando to-
das as vezes. Somando-se a isso, houve também as acusações no tocante ao plano
Safra, sendo este de competência no Ministério da Fazenda, não da presidenta.
Todas essas acusações infundadas se valeram de um malabarismo de
armas e retóricas jurídicas absurdas, em conjunto com a grande mídia e a
crise internacional do Euro71, culminaram em um ambiente de perseguições
institucionais à Dilma. Assim sendo, em meio à instabilidade política, observa
Amélia Tereza (2016, p. 13):
A mídia teve um papel fundamental. Ela alicerçou a base para a revolta,
para a construção de um imaginário nacional sobre a presidenta Dilma

68 Sobre isso, comentou Dilma: “Acho que todo o processo que fizemos de redução de imposto
beneficiando o setor empresarial não resultou em ganhos para o conjunto da economia”.
69 Nome dado à prática do Tesouro Nacional de atrasar de forma proposital o repasse de dinheiro para
bancos (públicos e privados) ou autarquias, financiadores de despesas do governo com benefícios
sociais e previdenciários como o  Bolsa Família, abono salariais e o seguro-desemprego, com o
objetivo de maquiar déficits nas contas públicas, por a conta ir para o período seguinte, cumprindo,
portanto, as metas fiscais.
70 O discurso pode ser encontrado na íntegra em <https://mpabrasil.org.br/noticias/discurso-da-
presidenta-dilma-no-senado-federal/>.
71 O motivo da tensão foi a dificuldade que alguns países enfrentavam para conseguir empréstimos e
refinanciar suas dívidas públicas. Essa falha aconteceu porque existe um grande desequilíbrio fiscal,
com a arrecadação dos governos em queda e os gastos em alta, em torno, principalmente, de cinco
países: Portugal , Irlanda , Itália , Grécia e Espanha, o que causa crises, também, nos países que
comercializam com a Europa, como o Brasil.

105
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Rousseff e sobre o Partido dos Trabalhadores. E a Rede Globo foi uma das
expoentes da arquitetura do golpe, junto com as outras mídias, como a Fo-
lha de São Paulo, o Estadão, o jornal A Tarde, aqui na Bahia, a revista Veja,
Isto É, Época, enfim, todas estas empresas midiáticas comandadas pelas
grandes famílias no Brasil e nos estados. Elas tiveram um papel impor-
tante de criar a dimensão de uma crise nacional sem resolução. [A mídia]
construiu a imagem de fraqueza diante da articulação política que pode-
ria dar sustentação ao governo. Fortaleceu – com certeza – uma imagem,
um discurso e uma prática misógina com relação à Dilma Rousseff. [...].
Basta ver como foram televisionadas todas as manifestações construídas
[contra o governo de Dilma Rousseff], porque não foram manifestações
espontâneas simplesmente, foram manifestações induzidas a partir de
ideias construídas de uma derrocada do País, de uma crise econômica e da
incompetência de Dilma de tomar as rédeas do processo.

Trazendo um dos principais exemplos, a revista “Isto É”, em 2016, pu-


blicou matéria com o seguinte subtítulo: “Bastidores do Planalto nos últimos
dias mostram que a iminência do afastamento fez com que Dilma perdesse
o equilíbrio e as condições emocionais para conduzir o país” e em legenda:
“DESCONTROLE. A presidente se entope de calmantes desde a eclosão da
crise. Os medicamentos nem sempre surtem efeito, atestam seus auxiliares”.
Com isso, percebe-se o nível em que se situaram os argumentos midiáticos
pró-impeachment, nos quais se pode observar o caminho que se guiou as re-
portagens daquele contexto.
Outros exemplos:

Edição Nº 2417. 06/04/2016 Edição de 15/04/2016 Edição 1110. 24/03/2016

106
Marxismo e América Latina

No legislativo, diversos projetos72 com o objetivo de atenuar a crise eco-


nômica sofreram de barreiras institucionais e parlamentares. Diante disso, o
questionamento central, favorecido pela grande mídia e pelo patriarcado,foi
que, uma mulher presidente, ao não ceder às pressões de homens que sempre
objetivaram/estiveram no poder, estaria sendo dura demais, atestando sua
inabilidade política e justificando sua saída da chefia do Executivo.
Ademais, o judiciário também se comprometeu em relação ao impea-
chment, representado principalmente por Sérgio Moro e o STF, no golpe em
curso. Como observa Almeida (2016), em artigo no periódico Justificando:
Quando Moro divulgou de maneira arbitrária interceptações ilegais de
conversas entre Dilma e Lula, no dia em que este seria nomeado minis-
tro, mesmo o magistrado admitindo que não havia ali indícios de cri-
mes e afirmando agir assim em defesa do “interesse público”, ele impe-
diu que o jogo da política fosse jogado pelas suas regras minimamente
consensuadas. Afinal, ele praticamente impediu que Lula assumisse a
Casa Civil e batalhasse para compor um bloco parlamentar suficien-
te para impedir o impeachment e viabilizar alguma governabilidade
que desse sobrevida ao governo Dilma. A inação também é a marca
de outra contribuição fundamental do STF para o golpe: a demora em
apreciar o pedido da Procuradoria Geral da União pelo afastamento
de Eduardo Cunha da presidência da Câmara, diante das alegações de
que ele se valeria do cargo para defender seus interesses mesquinhos e
evitar sua própria punição.

Portanto, o judiciário, como demonstrado, não agiu imparcialmente


como deveria, mas foi um dos sujeitos do golpe à democracia brasileira.

3.2 Caso Kirchner


Situação semelhante se segue contra a ex-presidente da Argentina, Cris-
tina Kirchner73. As dúvidas de que conseguiria governar recaíram sob ela com
a morte do seu marido, o ex-presidente Nerstor Kirchner, em 2010, período

72 Recriação da CPMF, adoção de uma margem de flutuação do resultado fiscal, o aumento de impostos
que incidem sobre a renda e o patrimônio, dentre outros.
73 Ao contrário de Dilma, Cristina não sofreu impeachment. Com o fim do seu mandato, lançou a
coligação política “Unidade Cidadã” e entrou na corrida eleitoral de 2017 para o cargo de Senadora,
sendo oficialmente eleita com 37% dos votos, pela província de Buenos Aires.

107
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

em que diversas matérias apontavam suposta falta de capacidade da presiden-


ta. Diferentemente do ocorrido com a ex-presidenta do Brasil, não se procedeu
um golpe institucional contra Kirchner. Tal conjunto de práticas contra a Se-
nadora se dá através de golpes em sua popularidade, objetivando a permanên-
cia no poder da classe política dominante.
Desde 2015, diversas são as perseguições político-judiciárias sofridas
pela Senadora. Ela foi, além da primeira mulher eleita para a presidência da
Argentina, a única pessoa com o cargo eletivo do Senado a ter sua residência
invadida74 para fins de investigação policial, acompanhados, de praxe, com
todo o círculo midiático hegemônico do país, num dos principais processos
que a envolve. Como é mostrado em reportagem do grupo “Clarin”, parte
da grande mídia:
Con perros que rastrean dinero, equipos especiales y una orden de allana-
miento amplia, fuerzas de la Policía Federal ingresaron este jueves a dos
propiedades de Cristina Kirchner: el departamento de Recoleta donde la ex
presidenta reside y la casa familiar de Río Gallegos. Los operativos arran-
caron poco antes del mediodía y se extendieron durante trece horas.
La medida fue tomada por el juez Claudio Bonadio, que investiga a la ex
presidenta como jefa de una asociación ilícita que se dedicó a la recaudación
de fondos ilegales. Fue horas después de recibir luz verde del Senado, que
habilitó los allanamientos por unanimidad y sin aceptar las condiciones que
la ex presidenta pretendía ponerle al juez (Grifos dos autores).

74 O juiz Claudio Bonadio, autorizado por unanimidade pelo Senado, ordenou a busca em três residências
de Kirchner no caso que investiga propinas milionárias em troca de contratos de obras públicas.

108
Marxismo e América Latina

Foto capturada no momento da invasão à casa da Senadora (Natacha Pisarenko/AP)

A invasão, após apoio do Senado, se deu por suposto envolvimento em


um esquema de corrupção em contratos de obras públicas durante a sua pre-
sidência., chamado “cuadernos de la corrupción”75. O caso teve grande reper-
cussão, como mostra reportagem da CNN:
La Cámara Nacional de Apelaciones confirma el procesamiento con pri-
sión preventiva para la expresidenta de Argentina Cristina Fernández
de Kirchner en la causa de los cuadernos de la corrupción. Sin embargo,
Kirchner no irá a la cárcel porque tiene fueros parlamentarios como se-
nadora nacional. La ex presidenta niega responsabilidad alguna y afir-
ma que el procesamiento forma parte de una persecución política en su
contra. Ignacio Grimaldi explica de una manera clara y simple de qué
se trata la causa de los cuadernos de la corrupción.

Entretanto, como Farinelle observa em matéria ao Carta Maior:


Em janeiro deste ano, o site Cohete a la Luna, do famoso jornalista inves-
tigativo Horacio Verbitsky, revelou a existência de um esquema de chan-
tagem, extorsão e coação de empresários para que declarem no chamado
Caso dos Cadernos contra a atual senadora e ex-mandatária progressis-
ta. As reportagens de Verbitsky também comprovam que o operador do

75 A causa judicial baseia-se em supostas anotações feitas por um ex-motorista do Ministério de


Planejamento, Oscar Centeno, em 8 (oito) cadernos escolares. Durante 10 anos, Centeno, segundo a
acusação, era o responsável pela entrega das sacolas com a propina.

109
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

esquema, um obscuro advogado chamado Marcelo D´Alessio, trabalha-


va junto com o promotor Stornelli, o que pode ser comprovado por meio
de vídeos, áudios e banners de e-mails e conversas por whatsapp entre
eles e outros envolvidos, como o empresário Pedro Etchebest, o primeiro
em denunciar as extorsões da dupla D´Alessio-Stornelli.

Fica constatado, portanto, que se trata de mais um caso de Lawfare con-


tra líderes progressistas. Nessa esteira, recentemente, em 6 de junho de 2019,
com Cristina liderando a corrida eleitoral, a Justiça da Argentina ampliou as
acusações contra  Kirchner. Na decisão mais recente, o magistrado Claudio
Bonadio76 acusa Cristina de corrupção passiva em mais de mil ocasiões, a
maior parte delas como coautora, enviando ao Senado uma nova solicitação
para que seja retirada a imunidade parlamentar da Senadora. Nesse sentido,
nos traz Farinelli a observação do jornalista Horacio Verbitsky:
A Lava-Jato foi o prólogo para a destituição da presidenta Dilma Rousse-
ff, que não foi acusada de delito algum, e depois para a detenção e pros-
crição de Lula da Silva, por delitos que nunca foram provados, o que
permitiu a chegada ao poder do obscuro ex-capitão do Exército Jair Bol-
sonaro, que reivindica os piores extremos da ditadura em seu país. Algo
parecido acontece na Argentina, onde a causa judicial mais difundida
pelos meios de comunicação tradicionais tem como objetivo impedir
que Cristina Kirchner seja candidata em outubro deste ano. Por isso o
caso é tão relevante, porque Stornelli é uma das principais responsáveis
pelo Caso dos Cadernos, e cada vez que avançamos nas investigações
descobrimos mais de sua relação com D´Alessio e a deste com outras fi-
guras como o juiz Claudio Bonadio ou a ministra Bullrich. Relações que,
se chegam a uma conclusão na linha que se trabalha atualmente, poderia
enterrar definitivamente a causa antes que ela possa ter os mesmos efei-
tos eleitorais que a Lava-Jato teve no Brasil em 2018.

Cristina, como visto, tem sido alvo também de outros processos que en-
volvem, segundo ela, alegações que se tratam de um novo capítulo da perse-
guição judicial ordenada pelo presidente Mauricio Macri. Um desses trata-se

76 O juiz Claudio Bonadio, atualmente, é o responsável pela maior parte dos processos por corrupção
(cinco) contra a ex-presidente. Segundo Cristina, ao falar à imprensa sobre o primeiro pedido de
prisão feito pelo juiz, no caso do suposto acobertamento por atentado do Irã, “Mauricio Macri é o
diretor da orquestra e Bonadio executa a partitura judicial”.

110
Marxismo e América Latina

do caso “Hotesur”77, nome do empreendimento do segmento hoteleiro que


a família Kirchner possui na província patagônica de Santa Cruz, por meio
do qual a Justiça argentina acusa que foram feitas manobras de lavagem de
dinheiro, além de pagamentos de subornos.
Outrossim, recentemente o juiz Claudio Bonadio, principal executor dos
recentes ataques judiciais, acusou Cristina de acobertar78 ataques terroristas
do Irã, minando, com isso, a popularidade da progressista. Os ataques, por
fim, têm se direcionado à filha de Kirchner. Sendo tratada em Cuba, a justiça
argentina tenta barrar o contato pessoal com sua filha, sob o pretexto de fuga
da mandataria para um país em que não poderia ser levada a prisão. Sobre
isso, o jornal La-epoca, em 01/04/2019, observa em matéria:
Tras calificar de absurda una resolución que obliga a su hija Florencia
Kirchner interrumpir un tratamiento médico en Cuba, la expresidenta
argentina Cristina Fernández solicitó hoy que se le autorice permanecer
en esa isla hasta ser dada de alta. Florencia permanece desde el 7 de
marzo pasado -cuando viajó a un curso de televisión- hospitalizada por
un trastorno de estrés postraumático, el cual, según la exmandataria,
se debe al ciclo de odio y violencia contra ella y su familia.La semana
pasada el tribunal oral que impulsa un juicio contra Florencia por ser
parte de una supuesta asociación ilícita en la causa Los Sauces le dio un
plazo de 15 días para regresar al país desde La Habana y una semana
para presentar su historia clínica.

No que se refere ao atual contexto vivenciado pela anterior mandatária


da Argentina, Dilma publicou em nota, na sua página do Facebook oficial o
seguinte trecho: “O Lawfare contra Cristina Kirchner é um conluio entre o
Judiciário, serviços de inteligência do governo federal e a mídia empresarial.

77 A sociedade Hotesur pertence à família Kirchner e, de acordo com a deputada Margarita Stolbizer,
autora da denúncia, foi usada para receber propina do empresário e sócio Lázaro Báez, em troca de
benefícios obtidos em concessões de obras públicas. O pagamento teria sido feito através do aluguel
de quartos em hotéis administrados pela Hotesur.
78 Bonadio atribui a Cristina e a outros dos seus colaboradores processados crimes de “acobertamento
agravado pelo fato precedente e pela sua condição de funcionários públicos, estorvo de um ato
funcional e abuso de autoridade”. Segundo reportagem da Exame, “O juiz alega que esta “complexa
manobra” requereu “canais paralelos e privados de comunicação e negociação”, razão pela qual foi
necessária a intervenção de um grupo de cidadãos “estreitamente vinculado” com funcionários e
ex-funcionários dos governos que contribuíram, “na informalidade”, com as ações necessárias para
a concretização do plano”.

111
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

A intenção também é desviar a atenção dos argentinos da grave crise social e


econômica criada pelo governo liberal de Macri79”.
São comuns argumentos machistas a chamando de “velha” e “louca”, in-
clusive proferidos pelo próprio atual presidente, Macri. Como diz a materia
do jornal La nación,
En medio del debate por el aumento de tarifas , el presidente Mauricio
Macri dio un mensaje por televisión junto al ministro de Producción,
Francisco Cabrera, y les pidió a los senadores del peronismo que no sigan
el camino de la expresidenta Cristina Kirchner. Les pido a los senadores
que “demuestren que existe un peronismo confiable, que no se deja con-
ducir por las locuras que impulsa Cristina Kirchner. Confío en que van
a actuar de manera racional”, dijo.

Outros exemplos:

Edição nº 1902. 07/06/2013 Edição de 07/09/2012

79 Com as novas eleições presidenciais, após o fim do mandato de Cristina Kirchner, Macri foi eleito
presidente com 51,34% dos votos, encerrando os doze anos de governos kirchneristas no país.

112
Marxismo e América Latina

Além disso, Cristina foi considerada impopular por ser uma figura forte,
com um estilo de governar considerado “masculino”. Do mesmo modo, como
supracitado, Dilma foi também associada a estereótipos de histérica e fora de
si, bem como de “dura” e pouco carismática, que iam contra a ideia de uma
postura feminina “adequada”.

4. Depois da sentença: impactos do direito


e do machismo como arma política
O modo de produção capitalista vive do trabalho de quem não tem capi-
tal (AGUIAR, 1999, p. 83). Para que possa circular e ser acumulado, o capital
necessita de alto grau de exploração daqueles que não possuem os meios de
produção, obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver, os traba-
lhadores (MARX, 2009). Dessa forma, a desigualdade é consequência inafas-
tável das relações de produção capitalistas.
As forças produtivas, isto é, o conhecimento, a ciência, a técnica e a pro-
dutividade do trabalho, por exemplo, foram desenvolvidas a tal ponto que a
humanidade, nos dias de hoje, tem a capacidade de solucionar a maior parte
das angústias que atingem o ser humano desde os primórdios, como a fome,
doenças e catástrofes naturais. Todavia, a produtividade social e coletiva é
administrada por poucos e pelo interesse de poucos e baseia-se na apropriação
privada daquilo que é produzido coletivamente (POMAR, 2016).
Posto isto, em vista dos casos expostos, os impactos ocasionados pela
utilização do Lawfare e do machismo como armas políticas devem ser anali-
sados a fim de se compreender quais suas naturezas, função e a quem interessa
o emprego destes.
A dogmática jurídica é constituída de abstrações que mascaram as rela-
ções reais entre as pessoas, estas postas como produtores de mercadoria. Assim,
“naturaliza-se” os atos de troca entre proprietários independentes e iguais apenas
formalmente (PACHUKANIS,1988). Isto porque a visão positivista, para o jurista
soviético, concebe a forma jurídica como invariável em todos os tempos e luga-
res, ao passo que ela é histórica, pois surgiu em uma formação social específica,
eminentemente burguesa, alcançando seu pleno desenvolvimento no capitalismo.

113
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Em outras palavras, o direito é campo social radicalmente histórico, ou


seja, é resultado das práxis dos homens, condicionado historicamente pelas
relações sociais de produção e pelos conflitos de interesses antagônicos na so-
ciedade de classes (PEREIRA, 2015).
Em O Socialismo jurídico, texto de autoria de Friedrich Engels e Karl
Kautsky (2012), retrata justamente isto: a concepção da crítica à ideologia ju-
rídica, ao fundamentar de que forma o direito permitiu, em sua origem, per-
mite e fundamenta a produção e circulação de mercadorias.
Pachukanis (1988) percebe a autonomia própria do direito no interior do ca-
pitalismo, não o renegando a mera ideologia80, mas pelo contrário, pondo-o como
um operador real que atua no âmbito da complexa sociedade capitalista. Portanto,
as relações jurídicas são constitutivas das relações de produção, ou seja, o Direito é
uma das formas por meio do qual o capitalismo é operacionalizado.
Atualmente, especificamente no cenário latino americano, o que está
posto é a incapacidade das classes dominantes81 da periferia do Capital sus-
tentar-se política e economicamente a nível regional e mundial, mantendo as
regras do jogo constitucional. Giovanni Alves (2016) posiciona a dominância
rentista como a maior oposição à mínima tentativa legítima de manutenção
da democracia brasileira, o que não é diferente na Argentina.
A justificativa para tanto, em tempos em que outras nações sustentam o
conteúdo democrático de suas instituições, encontra-se na chamada teoria da
dependência. A dependência deve ser “entendida como uma relação de subor-
dinação entre nações formalmente independentes, em cujo âmbito as relações
de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para asse-
gurar a reprodução ampliada da dependência” (MARINI, 2000, p. 109). Vale

80 Sobre essa forma de manifestação, que torna invisível a verdadeira relação e mostra justamente o
contrário dela, repousam todas as concepções jurídicas tanto do trabalhador como do capitalista, todas
as mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as pequenas
mentiras apologéticas da Economia vulgar (MARX, 1985, p.130). “[...] o papel específico da ideologia
como instrumento da luta de classes é impedir que a dominação e a exploração sejam percebidas em
sua realidade concretas. Para tanto, é função da ideologia dissimular e ocultar a existência das divisões
sociais como divisões de classes, escondendo, assim, sua própria origem. Ou seja, a ideologia esconde
que nasceu da luta de classes para servir a uma classe na dominação.” (CHAUÍ, 1997, p.103)
81 “[...] uma classe é dominante em dois modos, isto é, ‘dirigente’ e ‘dominante’. É dirigente das classes
aliadas e dominante das classes adversarias. Por isso, já antes da chegada ao poder uma classe
pode ser ‘dirigente’ (e deve sê-lo); quando chega ao poder torna-se dominante, mas continua a ser
‘dirigente’” (GRAMSCI, 1977, p. 41).

114
Marxismo e América Latina

ressaltar que a geração deste excedente nos países periféricos se dá através da


superexploração de sua força de trabalho82.
Ademais, após as principais ofensas às ex-presidentas, a agenda neoliberal83
passou a ser implementada de forma contundente, com Temer no Brasil, a prisão
de Lula e a posterior eleição de Bolsonaro, e com a eleição de Macri na Argentina.
Fine e Saad Filho (2014) concluem que as reformas neoliberais são geral-
mente implementadas através de um processo com dois estágios. O primeiro
seria de transição ou de choque, pois requer a forte intervenção do Estado
para conter os trabalhadores e a esquerda organizada, promover a integração
transnacional do capital nacional e impor o novo quadro institucional.

82 O que aparece claramente, pois, é que as nações desfavorecidas pela troca desigual não buscam tanto
corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria
um esforço redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas, antes, compensar a
perda de rendas gerada pelo comércio internacional, através do recurso a uma maior exploração do
trabalhador. (MARINI, 1973, p. 36-37). A maior exploração do trabalhador é a superexploração.
83 “Estudos marxistas mostraram que as políticas neoliberais implementadas através do reaganismo,
do thatcherismo e do (pós-)Consenso de Washington são, em grande medida, inspiradas pela
Escola de Chicago. Elas se apoiam em cinco plataformas ontológicas (Saad Filho & Johnston, 2005).
Em primeiro lugar, a dicotomia entre o Estado e os mercados, o que implica que estes são instituições rivais
e mutuamente exclusivas (é importante notar que essa dicotomia é rejeitada pelo ordoliberalismo).
Em segundo lugar, a suposição de que os mercados são eficientes, enquanto a intervenção estatal
necessariamente cria desperdícios porque ela distorce os preços e a alocação de recursos, induz
o comportamento rentista e promove o atraso tecnológico. Em terceiro lugar, a crença de que o
progresso técnico, a liberalização das finanças e dos movimentos de capital, a busca sistemática de
“valorização” para os acionistas e as sucessivas transições ao neoliberalismo criaram uma economia
mundial caracterizada pela rápida mobilidade do capital dentro de cada país e entre os países, e por
um processo mal definido de “globalização”. Onde eles são acolhidos, o crescimento econômico
necessariamente segue, e se acelera, através da prosperidade das empresas locais e da atração de
capital estrangeiro. Em contraste, a relutância ou a “excessiva” intervenção econômica estatal (como
quer que ela seja definida) afugenta o capital, os empregos e o crescimento econômico para outras
paragens (Kiely, 2005). Em quarto lugar, a presunção de que eficiência alocativa, a estabilidade
macroeconômica e o crescimento do produto estão condicionados à inflação baixa, o que é garantido
principalmente pela política monetária à custa das políticas fiscais, cambiais e industriais. Em
quinto lugar, a percepção de que a operação das principais políticas macroeconômicas neoliberais,
incluindo a “liberalização” do comércio, dos mercados financeiros e de trabalho, as metas de
inflação, a independência do Banco Central, o câmbio flutuante e as regras orçamentais restritivas,
está condicionada à oferta de garantias estatais potencialmente ilimitadas para o sistema financeiro,
uma vez que este é estruturalmente incapaz de se sustentar apesar de seu controle cada vez mais
extenso sobre os recursos da sociedade.”” (SAAD FILHO, 2015).

115
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

O segundo estágio corresponderia ao amadurecimento do neoliberalis-


mo. Nele consolida-se a estabilização das relações sociais impostas no perí-
odo anterior, o controle do setor financeiro sobre a alocação de recursos, o
gerenciamento pelo Estado da nova modalidade de integração internacional
da produção e a introdução de políticas sociais especificamente neoliberais.
Tais políticas teriam como escopo gerenciar as privações criadas pelo neolibe-
ralismo, como reconstituir os sujeitos sociais em linhas neoliberais. Tanto no
Brasil como na Argentina, após Lawfare medidas como reforma trabalhista e
reforma da previdência foram propostas.
Ademais, é evidente que o impacto do machismo como arma política84 se
verifica na desestabilização da confiança política em Rousseff e Kirchner. A di-
visão social do trabalho concebe estereótipos no quais as mulheres são restritas
e naturalmente qualificadas apenas para o ambiente privado, ou seja, doméstico
(BRIOLI, 2010). Opõe-se a este ambiente o espaço público, que é associado pela
sociedade ao homem, sujeito central da vida social de cunho patriarcal.
A projeção de forma negativa da capacidade de governar de ambas as
lideranças enfraquece-as e, por consequência, o projeto político progressista
resistente à agenda neoliberal que elas representam. O que não é antagônico
à promoção pela mídia da oposição entre Marcela Temer, “Bela, recatada e do
lar”, e Dilma. A imagem da mulher subserviente, boa esposa, dona de casa,
sobressai-se, reafirmando o perfil ideal da instituição burguesa família.
Tanto no caso de Dilma Rousseff quanto no da Cristina Kirchner, visualiza-
-se a perseguição por via jurídica, de mulheres, a qual se deu pelo projeto político
que ambas defendem cujo já não é mais o que as burguesias pretendem tolerar.

5. Considerações finais
Conclui-se, portanto, que de maneiras distintas, Dilma e Cristina en-
frentaram em seus processos um inimigo em comum: o capital, atrelado ao
patriarcado. A grande mídia, judiciário e partidos atuaram de maneira con-
junta para atribuir suas conquistas políticas institucionais constantemente a
homens, Lula no caso brasileiro e Néstor na experiência platina, ao passo que

84 No presente trabalho adota-se o termo “arma política” para representar aquilo que ordinariamente
não se presume como instrumento no campo da política.

116
Marxismo e América Latina

suas falhas são demonstrações de estereótipos forjados para as mulheres que


assumem cargos políticos - descontroladas, histéricas, mães. De forma que, a
existência do que a literatura especializada cunha de Lawfare se demonstra
a partir da junção desses elementos nos casos das duas ex-presidentas, cujo
pano de fundo é a ascensão de governos progressistas na América Latina, que
promoveram, cada um a sua maneira, uma melhoria nas condições de vida da
classe trabalhadora dessas periferias do Capitalismo central.
Ademais, em uma análise comparativa, percebe-se que o conceito em es-
tudo desgastou frente a seus eleitores, de forma mais acentuada, a ex-presidenta
do Brasil, Dilma Rouseff, que sequer conseguiu uma reeleição como senadora, a
qual tentou pelo estado de Minas Gerais, em 2018. Por conseguinte, os ataques
contra Dilma não são assíduos como antigamente, sendo estes cessados por mo-
tivos de esta já não ser obstáculo à aplicação da agenda neoliberal. Kirchner, por
sua vez, lidera a corrida presidencial das eleições presidenciais de 2019, além
de ter sido eleita Senadora pela província de Buenos Aires. Nesse contexto, os
ataques jurídicos e midiáticos contra Cristina continuam a todo vapor, sendo
facilmente visualizados em qualquer fonte hegemônica de notícias.

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Fábricas ocupadas: estudo comparado
de realidades latino-americanas

Maria Taynara Ferreira Bezerra85


Amália Rosa de Moraes Silva86

1. Introdução
Muitas foram as crises financeiras internacionais que ocorreram desde
1973, baseadas em questões de desenvolvimento urbano e propriedade (HAR-
VEY, 2011). A saída escolhida para lidar com essas crises foi o aprofundamen-
to do neoliberalismo87, principalmente na América Latina, tendo em vista a
sua incapacidade de continuar atendendo aos interesses dos Estados Unidos
no que diz respeito à dívida externa (BANDEIRA, 2002).
Paralelo a isto, o capital passou a se deslocar para onde havia trabalho
excedente, priorizando os locais onde a força de trabalho e as matérias-primas
fossem mais baratas. Esse fenômeno teve início na década de 60, foi se expan-
dindo e tornou-se irrefreável nos anos 90 (HARVEY, 2011).
A crise dos anos 90, marcada pela desindustrialização, reestruturação
produtiva e financeirização da América Latina (NOVAES, 2007), provocou o
abandono e fechamento de várias fábricas, surgindo inúmeros casos de fábri-
cas tomadas (ou recuperadas) por trabalhadores88. Embora este movimento

85 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal


Rural do Semi-Árido (PPGD/UFERSA). Bacharela em Direito pela mesma universidade. Membro
do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: taynara.
bezerra@ufersa.edu.br.
86 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Bacharela em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido - UFERSA.
Membro do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email:
amaliarosa1993@gmail.com.
87 O neoliberalismo é um projeto de classe, surgido em 1970, que traz uma retórica de liberdades
individuais, benesses da privatização, autonomia e responsabilidade pessoal, livre-mercado, mas
que se fundamenta em novos padrões de reprodução do capital (HARVEY, 2011, p. 16).
88 É o que a legislação boliviana caracteriza, atualmente, como Empresas Sociais.

123
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

tenha sido muito forte na América Latina, (provavelmente pela força com a
qual foi atingida pela crise), outros locais também passaram por esse pro-
cesso, tendo em vista que, após a crise de 200889, a tomada de fábricas pelos
operários se espalhou pelo mundo, como consequência do fechamento das
empresas ou reação à realocação das mesmas em um país diferente.
Para Henriques et. al. (2013), esse fenômeno da tomada de fábricas pelos tra-
balhadores pode ser caracterizado como um processo social e econômico, cuja
materialização se dá pela existência de uma empresa capitalista enfrentando fa-
lência ou inviabilidade econômica, resultando na luta dos trabalhadores para geri-
-la, na grande maioria dos casos, a fim de proteger seus empregos em meio à crise.
As empresas recuperadas simbolizam, na perspectiva dos trabalhadores,
mais uma alternativa ao desemprego do que ao capital, apesar dos sonhos de
muitos ativistas. De fato, elas se configuram mais como um processo “inters-
ticial” de mudança sócio-produtiva - transformação no nível da unidade pro-
dutiva - do que uma estratégia de mudança social em nível sistêmico (REBÓN
E KASPARIAN, 2018).
Nesse sentido, a presente proposta tem por objetivo analisar quais os li-
mites e desafios da regulamentação das empresas ocupadas por trabalhado-
res, a partir de uma análise comparativa das experiências latino-americanas,
com ênfase no Brasil e Bolívia.
O método utilizado foi o materialista-histórico-dialético, pois buscamos
tecer análises a partir da realidade das ocupações de fábricas por trabalha-
dores, tentando perceber as suas contradições e limites dentro do processo
histórico e da totalidade social na qual se encontram inseridas. A pesquisa em
tela é exploratória, de natureza bibliográfica, ao utilizar referências teóricas já
publicadas e documental, através da análise de legislação pertinente ao tema,
documentos oficiais, matérias jornalísticas e outros materiais sem prévio tra-
tamento analítico (GERHARDT E SILVEIRA, 2009).
Trata-se de uma investigação qualitativa, pois procura compreender e
explicar a dinâmica das relações sociais que não podem ser quantificadas
(MINAYO, 2001). O presente trabalho é, também, produto do acúmulo sobre
marxismo e realidades latino-americanas, desenvolvido no âmbito do Grupo

89 Também conhecida como crise de subconsumo do capital, acontece quando há maior oferta de
produtos produzidos do que demanda para absorvê-los (HARVEY, 2011, p. 92).

124
Marxismo e América Latina

de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC, do qual


fazemos parte desde o ano de 2013.

2. Ocupações de fábricas como um fenômeno mundial


As experiências de ocupações de fábricas por trabalhadores, principal-
mente em decorrência dos contextos de crise econômica, não é um fenômeno
isolado, dado que em todas as partes do mundo percebem-se contextos de
organização social que questionam a lógica de produção do modelo capitalista
na tentativa de garantir a reprodução social dos trabalhadores.
Para citar alguns exemplos, podemos mencionar o caso da antiga Pilpa,
uma fábrica de sorvetes situada em Carcassone (França), em atividade há cerca
de 40 anos, que foi vendida em virtude de dificuldades financeiras. A compra-
dora anunciou, menos de um ano depois, que iria fechar a indústria, ocasionan-
do a demissão de 113 trabalhadores. Estes operários iniciaram um processo de
ocupação da fábrica e decidiram transformá-la em uma cooperativa de proprie-
dade dos trabalhadores, chamada Fabrique du Sud (PIMENTEL, 2017).
Na Itália houve processo semelhante quando a Maflow foi vendida a um
grupo de investimentos que reduziu seu quadro de operários de 330 para 80 e,
logo em seguida, decidiu fechar a empresa. Os empregados ocuparam a fábri-
ca e constituíram a cooperativa Ri-Maflow. Já em Chicago (EUA), em meados
de 2008, a Republic Windows and Doors declarou falência e seus empregados
traçaram a estratégia de ocupar a empresa (PIMENTEL, 2017).
Diante do exposto, verificam-se os casos de fábricas ocupadas por trabalha-
dores em processos iniciados a partir da organização de trabalhadores contra as
decisões tomadas por seus empregadores que iriam ocasionar a demissão de deze-
nas de trabalhadores e/ou o fechamento das fábricas. Tais processos objetivavam a
proteção do pleno emprego e das condições de reprodução material destes sujeitos
que eram diretamente afetados pelas decisões das cúpulas das empresas.
Ademais, podemos somar estes casos citados com as experiências ocorridas
na América Latina, aproximando este estudo da nossa realidade socioeconômica.

125
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

3. Experiências latino-americanas
No contexto latino-americano, pelos motivos já explicitados anterior-
mente, há inúmeras experiências. Na Argentina, país que se destaca na região
devido ao movimento de fábricas ocupadas, a Indústria de Metal e Plásticos
da Argentina (IMPA) parou de pagar os trabalhadores e os ameaçava constan-
temente de demissão. Após a ocupação da empresa, os operários nomearam
uma comissão diretiva e instalaram, em conjunto com a produção da fábrica,
um centro cultural (MACDONALD E SARDÁ DE FARIA, 2012).
Segundo Paulucci (2017), de acordo com levantamento realizado em maio
201790, a Argentina possuía, à época, 367 Empresas recuperadas por trabalhado-
res (ERTs), que empregavam cerca de 15.948 operários, sendo este um número
expressivo de empregos protegidos, de geração de renda e circulação de riqueza.
Um caso emblemático para este país foi o da Zanón, considerada por
muitos anos uma das fábricas de azulejo e porcelanato mais modernas da
América Latina. Após a demissão de 600 funcionários em 2001, os operários
saíram às ruas bradando a palavra de ordem: “os trabalhadores podem produ-
zir sem os patrões, mas os patrões não podem produzir sem os trabalhadores”.
A partir de então, surgiu a FaSinPat91 Zanón, que lutava pelo enquadramento
na Lei de Expropriação e pela estatização sob controle operário (MACDO-
NALD E SARDÁ DE FARIA, 2012).
Já a Inveval, na Venezuela, surgiu a partir da ocupação da Construtora Na-
cional de Válvulas, após o seu proprietário resolver fechá-la e, posteriormente,
reabrir com menos empregados e pagando salários menores. No Uruguai, a Ce-
rámica Olmos faliu após 75 anos de atividades e aqui os trabalhadores ocuparam
a fábrica e resistiram, organizando-se numa cooperativa e conseguindo aval judi-
cial para uso das instalações (MACDONALD E SARDÁ DE FARIA, 2012).
De acordo com Dagnino, Sardá de Faria, Novaes (2008, p. 126), seguindo
esta dinâmica da América Latina, o Brasil também possui muitas empresas
recuperadas por trabalhadores. As experiências brasileiras deixaram de ser
fenômenos isolados a partir dos anos 1990, “numa conjuntura defensiva do

90 A equipe do Programa Facultad Abierta de la Facultad de Filosofia y Letras de la UBA realiza


levantamentos nacionais das Empresas Recuperadas por Trabalhadores desde 2002.
91 FaSinPat é um termo construído a partir da junção das palavras Fábrica Sin Patron (Fábrica Sem Patrão).

126
Marxismo e América Latina

movimento dos trabalhadores”. Nesta época, fábricas recuperadas, cooperati-


vas e associações de trabalhadores surgiram na contramão do intenso proces-
so de desestruturação e precarização do trabalho ditado pela voracidade do
neoliberalismo de financeirização, abertura comercial, aperto fiscal e enxu-
gamento do Estado. Aqui, os fenômenos foram deflagrados especialmente as
empresas familiares falidas, fazendo surgir uma nova perspectiva que indica-
va a possibilidade real da propriedade coletiva dos meios de produção, sendo
que os autores ainda destacam que essas experiências passaram a assumir o
sentido do associativismo e da autogestão.
Verifica-se que entre anos 2011 e 2013 foram registrados 67 empresas
recuperadas, que empregavam cerca de 11.704 operários, conforme o levanta-
mento realizado Programa Facultad Abierta. De acordo com o levantamento
supracitado, 18 dessas empresas tiveram suas atividades encerradas no ano de
2017 (PAULUCCI, 2017).
A Cooperminas foi um dos casos pioneiros no Brasil: a CBSA, empresa de
extração de carvão mineral, encerrou as atividades depois de atrasar os salários
por vários meses. Depois de muita luta por parte dos trabalhadores, a empresa
funcionou cerca de 10 anos através da reabertura da massa-falida, transforman-
do-se em cooperativa após um acordo com os antigos proprietários.
Outro caso emblemático é o da Usina Catende, atualmente Projeto Ca-
tende, que envolve cerca de quatro mil famílias da zona da mata sul do Per-
nambuco, trabalhando no campo ou na indústria. A crise da Usina e a defla-
gração da ocupação pelos trabalhadores se deram após a demissão de 2.300
funcionários sem o pagamento dos direitos trabalhistas (MACDONALD E
SARDÁ DE FARIA, 2012).
Em meados de 2002, o Brasil assistiu ao nascimento do Movimento das
Fábricas Ocupadas (MFO), quando trabalhadores deflagraram greve de ocu-
pação na Cipla e Interfibra (Joinville/SC), reivindicando manutenção dos pos-
tos de trabalho e direitos trabalhistas.
O MFO, em 2013 ocupou também a Flaskô (Sumaré/SP), que juntamente
com as outras duas fábricas, fazia parte da Holding Brasil (HB), integrante do
grupo Tigre, que chegou a ter 47 fábricas pelo país. Devido a diversas frau-
des, sonegação de impostos, liquidação de patrimônio e demissões em mas-
sa, apenas essas três fábricas resistiram, através da ação dos trabalhadores.
Após uma ação coletiva de trabalho, houve uma decisão judicial que previa a

127
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

criação de uma comissão de fábrica, eleita pelos funcionários, para analisar a


situação econômica e gerir a empresa, mas depois de uma dura intervenção
federal, apenas a Flaskô manteve suas atividades (MANDL, 2011).
É importante ressaltar que, pela lógica em que ocorrem as ocupações das
empresas no Brasil, geralmente em decorrência de processo falimentar, a ten-
dência é que o número cresça, diante dos alto índice de fechamento de empresas
no país e do contexto atual de redução dos direitos trabalhistas na legislação
brasileira. De acordo com os dados do Cadastro Central de Empresas - CEM-
PRE92, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2016 foi
registrado o fechamento de 64,3 mil empresas e outras organizações ativas.

4. Desafios e perspectivas jurídicas na


regulamentação de fábricas ocupadas
O desafio que estes fenômenos de fábricas ocupadas enfrentam é o pou-
co de suporte jurídico-legal para continuar desenvolvendo suas atividades.
A ausência de institutos jurídicos e normas que compreendam este processo
de organização dos trabalhadores pela defesa de seus postos de trabalhos é o
grande obstáculo aqui.
Analisando os casos brasileiros e dos demais países latino-americanos,
percebe-se que as ocupações de fábricas por trabalhadores na América Latina
redundam, majoritariamente, na transformação dessas empresas em coope-
rativas (PAULUCCI, 2017). É possível, portanto, que este fenômeno se dê pela
falta de tutela jurídica que direcione este processo. Para além disto, a decisão
de constituir cooperativa pode ser relacionada à existência de políticas públi-
cas de incentivo e apoio ao cooperativismo.
Marx (1977, p. 442) entende a cooperação como uma forma de trabalhar
que se desenvolve entre muitos participantes, sob o mesmo plano e no mesmo
processo, ou em diferentes processos, mas conectados. Trata-se, segundo ele,
da criação de uma força produtiva necessariamente de massas, cuja potência
social se potencializa quando muitas mãos trabalham simultaneamente na

92 Disponíveis em <https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/economicas/comercio/9016-
estatisticas-do-cadastro-central-de-empresas.html?=&t=resultados>

128
Marxismo e América Latina

mesma operação. A ideia de cooperativa contempla, efetivamente, até certo


ponto, o direito ao trabalho, ou ainda, a proteção ao pleno emprego. contudo,
apresenta limitações no que diz respeito à proteção dos direitos trabalhistas.
É o que justifica a existência de casos como o da Flaskô, que se man-
tém resistindo, negando-se a constituir cooperativa. Esse tipo de situação é
uma exceção à regra. Os operários da Flaskô se recusam a assumir essa forma
de associação, pois afirmam que não estão dispostos a parar de lutar pelos
seus empregos e direitos trabalhistas, dos quais abdicariam caso aceitassem
se transfigurar em cooperativa, perante a ausência de vínculo empregatício
entre a cooperativa e os cooperados93.
Devido a essa resistência, contrariando a regra alimentada pela ordem
jurídica, pelo Estado e pelo capital, a Flaskô enfrenta muitos problemas para
se manter em atividade, tais como represálias por parte do Estado (na forma
de intervenções) e problemas com dívidas (em sua maioria herdada dos anti-
gos donos e devidas ao Estado).
Um exemplo de enfrentamento por parte da Flaskô, que também demonstra
a ausência de regulamentação jurídica sobre fábricas ocupadas, é a apresentação
de projetos de lei sobre a pauta. O PLS N.º 257/2012 pleiteia uma declaração de
interesse social para fins de desapropriação da planta industrial da fábrica. Com
isto, a Flaskô passaria a ter o caráter de propriedade social, controlada por seus
trabalhadores. Além disto, os trabalhadores defendem a estatização sob controle
operário94, a fim de garantir o caráter social da produção.
Outro Projeto de lei apresentado (PLS N.º 469/2012) pelos trabalhadores
versa sobre a inserção de um nono inciso no art. 2º da Lei nº 4.132/62, a qual de-
fine os casos de desapropriação por interesse social. Esta PLS propõe que o apro-
veitamento produtivo de bens de empresas abandonadas ou falidas (que tenham
passado a ser administradas por seus funcionários, sob qualquer modalidade de
autogestão) seja considerado como de interesse social para fins de desapropriação.
Isso se dá em virtude da inexistência de proteção jurídica para empresas
ocupadas e autogeridas por operários no Brasil. É o que justifica o recorte escolhi-

93 A configuração do vínculo trabalhista se dá a partir da ocorrência de requisitos da pessoalidade, a


continuidade (ou não eventualidade), a subordinação e a onerosidade, as quais não estão presentes
na relação entre cooperativa e cooperado.
94 Em consonância com o Manifesto Comunista, onde Marx e Engels (1998) trabalham a centralização
dos meios produtivos nas mãos do Estado.

129
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

do neste trabalho, que se propôs a analisar comparativamente a situação brasileira


com a experiência boliviana, especialmente porque, em maio de 2019, a Bolívia
aprovou a Lei Nº 1055, que regulamenta a criação das chamadas Empresas So-
ciais. Um grande avanço, especialmente se comparado à realidade brasileira.
De acordo com o governo boliviano, esta lei não ataca o direito de pro-
priedade privada, pois só atingirá empresários que não garantam os direitos
trabalhistas, bem como não se aplicará a micro e pequenas empresas. O presi-
dente Evo Morales afirmou, no seu discurso de primeiro de maio, que esta lei
é um mecanismo para garantir a continuidade dos empregos95
As possibilidades de criação das Empresas Sociais definidas na Lei Nº
1055/2018 são nas situações de ‘concurso preventivo’, instituto que pode ser
entendido como uma espécie de recuperação judicial para os bolivianos; fa-
lência ou liquidação; encerramento ou abandono injustificado. Para que esta
empresa seja criada, os trabalhadores da fábrica devem manifestar a sua deci-
são, de forma necessariamente majoritária, perante a autoridade pública com-
petente que a ateste. Também é preciso apresentar um plano de reativação da
empresa, definir o novo capital social e, caso existam, reprogramar as dívidas..
A Confederação de Empresários Privados da Bolívia (CEPB), a Câma-
ra de Indústria, Comércio, Serviços e Turismo de Santa Cruz, bem como os
opositores ao governo de Morales expressam seu rechaço e descontentamento
com esta lei, argumentando que a norma descumprirá o direito à propriedade
privada, prejudicará futuros investimentos e questionam no Tribunal Consti-
tucional Plurinacional (TCP) a constitucionalidade da norma.
A promulgação da Lei Nº 1055/2018 foi, para a Central Obrera Bolivia-
na (COB), um avanço, mas o processo já demonstra algumas fragilidades. O
governo é categórico ao afirmar que não ajudará financeiramente as Empre-
sas Sociais e os líderes de ocupações de fábricas já questionam esta decisão,
afirmando que, se o governo, com toda sua estrutura, não consegue lidar com
essas ocupações, menos ainda os trabalhadores podem mantê-las sozinhos.
O debate da autogestão, da radicalização democrática dentro das fá-
bricas, do enfrentamento classista, bem como da estatização sob controle
operário nos transporta para uma reflexão sobre a tentativa destas empresas

95 Matéria disponível em < https://www.eldeber.com.bo/economia/Gobierno-Ley-de-Empresas-


Sociales-no-atenta-contra-la-propiedad-privada-20190109-8350.html>.

130
Marxismo e América Latina

ocupadas por trabalhadores de romper com a lógica do capital. Os casos de


autogestão realizados pelos trabalhadores, em geral, não estão orientados pelo
princípio capitalista da acumulação, da maximização de lucros, uma vez que
as empresas ocupadas ou recuperadas estão as empresas recuperadas visam
manter a reprodução social dos trabalhadores e de suas famílias.
Para Marx (2012), o modelo de organização produtiva fundado no tra-
balho associado revela a desnecessidade do pólo patronal e a possibilidade
da superação do assalariamento (que, para tanto, necessário seria, também,
a tomada prévia do poder político). De toda forma, conforme explica Raslan
(2010), mesmo que seja suprimida a figura do patrão, o capitalista não desa-
parece, uma vez que estas empresas são desenvolvidas dentro do modo de
produção capitalista e, portanto, reproduzem a sua lógica.
Neste contexto, observa-se atualmente que muitas das experiências na
América Latina que dizem respeito ao movimento das cooperativas e das fá-
bricas recuperadas se encontram envolvidas num processo de assimilação à
ordem capitalista. E isto se dá em razão tanto dos limites internos ao próprio
movimento, como da necessidade de produzir para os circuitos de acumula-
ção do mercado capitalista. Além disso, outra razão são os limites que decor-
rem das ações de um aparelho de Estado que, mesmo com governos simpáti-
cos ao movimento, continua adotando políticas públicas cujo ajuste desfigura
a dinâmica impulsionada por aqueles empreendimentos, e tende a submeter
as fábricas e cooperativas às práticas do mercado que favorecem o grande ca-
pital (DAGNINO, SARDÁ DE FARIA E NOVAES, 2008).
Contudo, apesar disso, as experiências deste processo de tomada das
fábricas e das atividade econômicas por trabalhadores podem representar,
como aduz Valença (2018), a expressão de um novo modelo de sociabilida-
de, tendo em vista que o critério de distinção dos padrões desta sociabilidade
se funda no caráter social da produção – especialmente a propriedade dos
meios de produção e as relações sociais de produção – e não no seu modelo de
intercâmbio. De acordo com o referido autor, o rompimento com as antigas
relações de produção e dominação de classe é um processo não linear, de su-
peração dialética da universalização da venda da força de trabalho. Para tanto,
é necessária uma fase de transição, pois a transformação das relações sociais
de produção não virá por decreto (LINERA, 2015).

131
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

5. Considerações finais
Conclui-se acerca das dificuldades de encontrar previsões normativas que
deem suporte jurídico às fábricas ocupadas mesmo diante do argumento da pro-
teção do direito ao trabalho, especialmente porque a ordem jurídica e econômica
vigentes acabam por desestimular este tipo de organização dos trabalhadores por
meio da tutela de institutos jurídicos que não condizem com este fenômeno da
ocupação. Outra barreira é que este processo tende a ir na contramão da ordem
estabelecida na sociedade capitalista, no que diz respeito à produção.
Diante disso, mesmo sendo experiências contra-hegemônicas, as fábricas
ocupadas resistem a partir das lutas dos trabalhadores na busca pela garantia dos
postos de trabalhos e pela manutenção de direitos trabalhistas, sofrendo com au-
sência de suporte jurídico-legal e de políticas públicas que possibilitem um ampa-
ro maior pelo Estado para continuarem desenvolvendo suas atividades.
De outro lado, elas também sofrem com a pressão estatal, seja pela via admi-
nistrativa, legislativa ou judicial, para que se encaixem nos padrões institucionais
já existentes na ordem jurídicas, como por exemplo, o cooperativismo. Esse mo-
delo é rechaçado pela assembleia diretiva de algumas fábricas atualmente ocupa-
das e por movimentos sociais que encampam essa luta. A principal justificativa é
que aceitando transfigurar-se em cooperativa, estariam abandonando as trinchei-
ras da luta pelos direitos trabalhistas, cedendo a pressão da pura e simples manu-
tenção dos postos de trabalho. Há também quem defenda que aceitar a condição
de cooperativa seria ceder às pressões do capital.
Ademais, ainda que estas fábricas autogeridas por trabalhadores não te-
nham, a princípio, o ideal de ser uma alternativa ao modo de produção capitalista,
mas sim um meio para evitar o desemprego, este fenômeno representa, na prática,
uma mudança na perspectiva das relações de produção à medida que traz um
caráter social quando se fundamenta na reprodução dos trabalhadores e não na
exploração destes que visa o lucro para os proprietários dos meios de produção.
Por fim, observa-se que há um caminho cheio de obstáculos, mas também
cheio de possibilidades para as fábricas ocupadas, tendo em vista sua existência e
os processos impulsionados pelos trabalhadores podem forçar o Estado a não só
reconhecê-las, mas também a dar-lhes proteção legal e incentivar a continuidade
de sua atividades por meio de políticas públicas e outros mecanismos de incentivo.

132
Marxismo e América Latina

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135
Feminismos, Bolívia e Política:
impactos da representação feminina
parlamentar na vida das mulheres

Rayane Cristina de Andrade Gomes96


Thariny Teixeira Lira97
Giovanna Helena Vieira Ferreira98

1. Introdução
A Bolívia figura no cenário internacional, de acordo com os levantamentos
realizados pela Inter Parliamentary Union em parceria com a ONU Mulheres,
como o terceiro país do ranking em igualdade de participação política entre ho-
mens e mulheres no Parlamento. O Estado plurinacional boliviano fica atrás ape-
nas de Ruanda e Cuba, segundo país da lista. Contudo, o mesmo estudo aponta
que nos cargos ministeriais e de representação do executivo essa equiparação des-
penca, levando o país para a 123ª (centésima vigésima terceira) posição.
Esse dado contradiz diretamente o texto constitucional da Constitución
Política del Estado (CPE) de 2009 que, em seu artigo 172, item 22, determina
que os ministros e ministras devem ser nomeados respeitando-se a igualdade
entre homens e mulheres. Apesar da norma avançada, esse contraste demons-
tra que as assimetrias políticas entre homens e mulheres persistem no terri-
tório boliviano e apontam para a necessidade de investigar os efeitos que essa

96 Professora de Direito da Universidade Estadual de Goiás (UEG), coordenadora do Grupo de


Estudos em Direitos humanos, democracia e marxismo (GEDM), membro do Grupo de Estudos em
Direito crítico, marxismo e América Latina (GEDIC). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação
em Direitos Humanos da UnB, mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) e advogada popular. E-mail: rayane.gomes@ueg.br.
97 Advogada. Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte.
Mestranda em Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido, membro do GEDIC. E-mail:
adv.tharinylira@gmail.com.
98 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido. Diretora do Centro Acadêmico
Marcos Dionísio (CAMAD-UFERSA). Membro do GEDIC. E-mail: giovannahvf@gmail.com.

137
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

intensa representação feminina no Parlamento tem provocado, especialmente


do ponto de vista das condições de vida das mulheres bolivianas. Esse é, por-
tanto, o problema central o nosso texto.
A partir dos marcadores de acesso ao trabalho, saúde, escolarização e
violência como produto das relações sociais de sexo99, seguindo a esteira dos
objetivos do desenvolvimento sustentável do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD)100 traçados para a Bolívia procuraremos
identificar os impactos da presença feminina das instâncias institucionais e as
condições de vida das bolivianas.
Delimitamos esses marcadores também por razões metodológicas. Sendo
estabelecidos como focos do olhar dos organismos internacionais, o acesso a
bancos de dados e estatísticas publicadas foram fundamentais para a realização
do estudo. Utilizamos, assim, dados do Observatório da igualdade de gênero na
América Latina e do Caribe e como fonte de referências domésticas, trabalha-
mos com os dados levantados pelo Instituto Nacional de Estatística da Bolívia.
Dessa maneira, a investigação parte de uma abordagem qualitativa, com enfo-
que exploratório, utilizando procedimentos de levantamento bibliográfico, do-
cumental, com ênfase em dados estatísticos e de produção legislativa boliviana.
No que concerne ao corte epistemológico, nos vinculamos a matriz de pen-
samento marxista, por entendermos, conforme Mirla Cisne (2018, p.211), que ar-

99 “Ora, raciocinar em termos de categorias sociais ou de classes de sexo exige uma verdadeira ruptura
com o naturalismo e com uma definição puramente biológica dos sexos. Dizer que as relações
entre os sexos constituem uma relação social significa afirmar, ao mesmo tempo, que ambos
formam um sistema. Presentes em todas as esferas da sociedade, as relações de sexo a estruturam
e organizam do mesmo modo que as relações de classe ou de raça. Essas relações sociais de sexo
possuem quatro características: 1. São antagônicas, relações de força que opõem os dois grupos em
questão, um procurando manter sua dominação e o outro tentando libertar-se; 2. São transversais,
não se limitando a uma esfera da sociedade e não se baseando, como se pretende com frequência,
principalmente na família; 3. São  dinâmicas  e historicamente construídas e o resultado de uma
correlação de forças em movimento contínuo. Afirmar que a dominação masculina pode ser
encontrada em todas as sociedades não significa que ela constitua um «invariante»: é uma
construção sócio-histórica, podendo, portanto, ser subvertida. Homens e mulheres nascem dentro
de uma sociedade definida por relações sociais de sexo, mas todos participam da produção e da
reprodução dessas relações. 4. Elas  bicategorizam, definindo de forma hierárquica as categorias
sociais de sexo, ou seja, atribuem posições para os homens e as mulheres na sociedade” (RIAL;
LAGO; GROSSI, 2005, p. 677).
100 PNUD Bolívia. Objetivos de desarrollo sostenible, objetivo 5: igualdad de género. Disponível em <
http://www.bo.undp.org/content/bolivia/es/home/sustainable-development-goals/goal-5-gender-
equality.html> Acesso em 24 de abr. de 2019.

138
Marxismo e América Latina

ticulação entre feminismo e marxismo tem “como horizonte estratégico para a


sua ação política a luta pela emancipação humana” perpassando a compreensão
individualista da leitura sobre os papéis das relações de sexo, colocando-as em
perspectiva coletiva, compreendendo a liberdade de maneira material.
Para alcançar nosso objetivo, organizamos o texto em três momentos.
Na primeira seção, Feminismos na Bolívia, abordamos as leituras diferencia-
das sobre a organização das mulheres no Estado plurinacional boliviano e sua
relação com a participação política institucional. Na sequência, em Mulheres
bolivianas na política: conquistas e desafios, identificamos a conexão entre a
representação formal feminina na política e as condições de vida das mulheres
bolivianas, apresentando sua relação com os marcadores de acesso ao traba-
lho, saúde, escolarização e violência. Por fim, o tópico Impactos da presença
feminina institucional: persistências e avanços, fazemos um balanço entre os
dados, as leituras feministas bolivianas, no intuito de estabelecer um panora-
ma sobre as condições de vida das bolivianas.
Assim, a presente pesquisa visa contribuir para a reflexão sobre a experi-
ência boliviana no enfrentamento as desigualdades provocadas pelo machis-
mo estrutural, atravessadas pelo racismo101 e colonialismo102, dentro de um
Proceso de Cambio103, que provoca distensões dentro do modo de produção
capitalista. A luta das mulheres bolivianas e o processo de refundação estatal
apontam para a aliança indissociável entre a emancipação política feminina e
a construção de um horizonte socialista, não sendo desvios na luta de classes,
mas elementos dessa nova sociabilidade altiva.

101 “O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo normal com que se
constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia
social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural” (ALMEIDA, 2018, p.38).
102 Segundo Ferreira (2013, p. 255) “O colonialismo como fenômeno antecede o capitalismo enquanto
sistema mundial e o acompanha como “política” em suas diferentes fases de desenvolvimento. A
expansão europeia do século XVI tem o colonialismo como seu componente central e são as relações
de produção e acumulação primitiva e demais processos históricos engendrados nesse contexto que
tornaram o capitalismo possível como “modo de produção”. Por outro lado, o capitalismo estendeu
as relações coloniais sobre o espaço e as formas sociais, atualizando-o como componente estrutural
de seu próprio sistema e amplificando de forma nunca antes vista sua dimensão e significado,
tornando-o onipresente na história das diferentes sociedades”.
103 “El proceso de cambio creó una matriz explicativa y organizadora del mundo: Estado plurinacional,
igualdad de naciones y pueblos indígenas, economía plural con liderazgo estatal, autonomías. Hoy,
izquierdas y derechas se mueven en torno a esos parámetros interpretativos que regulan el campo de
lo posible y lo deseado socialmente aceptado” (LINERA, 2016, web).

139
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

2. Feminismos na Bolívia: vozes plurais e altivas


Compreender o lugar das mulheres nas democracias representativas, es-
pecialmente nos países da América Latina, prescinde de uma leitura sobre a
organização política dessas sujeitas. Os movimentos feministas e de mulhe-
res104 são e foram determinantes para que o Estado plurinacional boliviano
chegasse a figurar como uma das referências em igualdade de participação
política legislativa para todo o mundo. Contudo, as leituras sobre os papéis e
os objetivos dessa presença são múltiplas.
Conforme Aillón (2015), a própria definição sobre o que seria feminismo
na Bolívia demanda um olhar mais demorado. Como adverte a autora, não
pode ser transplantada a cronologia ocidental e europeia para explicar a orga-
nização das bolivianas diante das opressões patriarcais105. Antes do período
histórico que se convencionou chamar de “primeira onda feminista” (séculos
XIX e XX), as mulheres indígenas e mestiças na Bolívia já tinham cumprido
papéis determinantes nas sublevações contra o processo de Colonização106.
Esse processo de construção da história do feminismo na Bolívia, im-
plica em um resgate dos processos de participação política feminina e sua
relação com a institucionalidade. Assim, o objetivo da seção é apontar, de ma-
neira breve, as relações entre o pensamento feminista e sua articulação com
a luta pelos direitos políticos107, apresentando como marco a construção do

104 “Nem todas as organizações do movimento de mulheres definem-se como parte do movimento
feminista. Sabemos que há mulheres em todos os movimentos sociais, mas nem todos os movimentos
sociais enfrentam os problemas da situação das mulheres. Também nem todas as mulheres refletem
sobre a situação de dominação e exploração que nós vivemos. Por isto, nem todas apoiam as causas
feministas. Assim, embora, sejamos todas mulheres lutando pelas mulheres, o que nos faz a todas,
em certo sentido, feministas, existe ainda muito desconhecimento, algumas desconfianças e posições
antifeministas dentro do próprio movimento de mulheres. Por isto, tende-se a considerar o feminismo
como parte do movimento de mulheres, mas não como sendo a mesma coisa. São feministas aquelas
mulheres e organizações que se definam assim” (SILVA; CAMURÇA, 2010, p. 11).
105 Segundo Saffioti (2004), o patriarcado é um sistema de opressão e exploração das mulheres, onde o
machismo é uma de suas expressões.
106 Em suas palavras “estas mujeres y sus lides no son generalmente incorporadas en la historia del
feminismo, salvo como figuras individuales: Bartolina Sisa, Gregoria Apaza, Juana Azurduy de
Padilla” (AILLÓN, 2015, p. 11).
107 Segundo Bobbio (1998, p.354), “os direitos políticos, (liberdade de associação nos partidos, direitos
eleitorais) estão ligados à formação do Estado democrático representativo e implicam uma liberdade
ativa, uma participação dos cidadãos na determinação dos objetivos políticos do Estado”.

140
Marxismo e América Latina

sufrágio até a contemporaneidade. De acordo com Giménez (2011) a organi-


zação da luta sufragista na Bolívia surge com um forte recorte de classe e raça,
implicando em uma identificação da luta pelo voto com as mulheres de classe
média e alta, com acesso a escolaridade, distante da realidade da maioria das
trajetórias femininas daquele país108.
O recorte de classe, portanto, afastou as organizações das mulheres tra-
balhadoras bolivianas da luta sufragista protagonizada pelas organizações
feministas “letradas”. Nesse percurso, a autora destaca ainda o papel funda-
mental que La Guerra del Chaco (1932 - 1935)109 teve na vida e na organização
das mulheres bolivianas. As circunstâncias do conflito obrigaram as mulheres
a ocuparem posições que antes eram reservadas exclusivamente aos homens.
Essa presença leva o Partido Liberal a apoiar a causa do sufrágio feminino e o
desfecho do conflito implica na reformulação constitucional sob a inspiração
do “constitucionalismo social”110, que produz a Carta constitucional boliviana
de 1938, que abre espaço para a demanda sufragista (GÍMENEZ, 2011).
Assim, a demanda pelo acesso aos direitos políticos na Bolívia, iniciada
nos anos 1920 até 1954, demarca tanto no plano das ações políticas, quanto na
concepção teórica, os caminhos distintos para as lutas femininas na Bolívia.
As organizações das mulheres trabalhadoras tinham como objetivo pautas
que refletiam sua própria condição de classe e raça, luta por melhorias sala-
riais e de alimentação, por exemplo. Já as organizações de mulheres “letra-

108 Nos ditos da autora: “mientras que las mujeres de clases alta y media que pertenecían a los Centros
Intelectuales y Artísticos pedían el derecho al voto para las mujeres que supiesen leer y escribir,
las sindicalistas que pertenecían a las clases bajas de la sociedad tenían reivindicaciones sociales
tales como el trabajo de 8 horas diario, leyes que protejan a las mujeres y niños en el trabajo, etc.”
(GÍMENEZ, 2011, p.7).
109 “Paraguai e Bolívia enfrentaram-se em torno da posse da região por motivos econômicos,
sobretudo no caso do Paraguai, e por motivos estratégicos, precipuamente no caso da Bolívia que
teria, com a tomada do Chaco, acesso à bacia platina e, assim, maior facilidade de escoamento para
a sua produção petrolífera. A deflagração do conflito envolveu mais diretamente os interesses da
Argentina e do Brasil, que tiveram importante papel no desenrolar e na conclusão da Guerra do
Chaco” (BANDEIRA, 1988, p.168).
110 “A partir de Weimar (e da Constituição do México, de 1917), a característica essencial das
constituições do século XX passa a ser o seu caráter diretivo ou programático, que incorpora
conteúdos de política econômica e social. Esta característica é fruto da democracia de massas. A
tentativa de incorporação da totalidade do povo no Estado passa a exigir a presença de uma série
de dispositivos constitucionais que visam a alterar ou transformar a realidade sócio-econômica”
(BERCOVICI, 2008, p. 31).

141
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

das”, como Gímenez (2011) chama atenção, agiam dentro dos ditames da ins-
titucionalidade, buscando alianças com os homens e organizações dirigentes
para alcançar seu objetivo.
A conquista do voto feminino na Bolívia explicita esse caráter, uma vez
que as mulheres que poderiam exercer os direitos políticos deveriam saber
ler e escrever. Assim, a participação política possuía um filtro determinante:
as mulheres poderiam até compor os espaços da democracia representativa
institucional, mas não eram quaisquer mulheres. Era necessário ter a cor e a
classe certa – a das elites dirigentes111.
A autora aponta ainda que no período entre o fim da Guerra del Chaco
até a década de 1980, as mulheres – camponesas, indígenas e urbanas – passa-
ram a se organizar em movimentos nacionalistas e marxistas, o que culminou
no surgimento do feminismo moderno boliviano. Esse período é marcado por
uma disputa no campo das organizações de esquerda sobre o papel da luta
das mulheres. Existiam, também, setores marxistas e nacionalistas que enten-
diam que as questões relacionadas as desigualdades entre homens e mulheres
deveriam ocupar o segundo plano na luta de classes, defendendo que esses
debates seriam distrações, ou ainda que o feminismo estaria vinculado ao co-
lonialismo e o capitalismo, devendo ser combatidos (AILLÓN, 2015).
Esse “feminismo boliviano moderno” é explicado por Zabala (2012)112
em três grandes períodos e aponta as principais características da organização
das mulheres bolivianas em cada um. O que marca os 1980 é o lema “o pessoal
é político”, refletindo uma posição preponderante do feminismo ocidental. As

111 Como assinala Aillón (2015): “con todo, [...] entre los hitos iniciales del feminismo en Bolivia,
ha establecido la imagen de dos versiones del feminismo boliviano: una, adscrita a la teoría y el
movimiento feminista pero abrazada por mujeres de clase media y media alta; y la otra, adscrita
a las reivindicaciones más bien obreras y étnicas y abrazada por mujeres indígenas urbanas. Este
hecho, que será calificado como la ausencia del análisis étnico en el feminismo o la ausencia del
análisis de género en las reivindicaciones [...] se convertirá em una tónica en las disputas al interior
del feminismo y el movimiento de mujeres en Bolivia hasta la actualidad” (AILLON, 2015, p.13).
112 “El primer período corresponde al decenio de 1980, que marca el momento de la salida de los
regímenes de corte militar autoritario y la transición hacia la democracia. El segundo, a inicios de los
años noventa con la consolidación de la democracia liberal representativa en un contexto de reformas
estatales y de consolidación de políticas de corte neoliberal y, finalmente, el tercero, acompañado
por el cambio de siglo, en el que la crisis de la democracia representativa da lugar a un proceso de
refundación estatal bajo la hegemonía de nuevos actores sociales que reivindican nuevos lazos de
convivencia social basados en el reconocimiento de las diferencias étnicas y culturales en un país
abigarrado como es el caso de Bolivia” (ZABALA, 2012, p. 278).

142
Marxismo e América Latina

mulheres dos movimentos que contestavam a recém deposta ditatura, assim


como demais grupos das classes médias e urbanas se voltavam ao debate femi-
nista como bandeira de organização. Retomando as pautas de reivindicação
dos direitos políticos, ONGs e demais formatos organizativos ganham espaço
no cenário político boliviano. Nesse sentido, aponta Aillón (2015, p.15) que
“este feminismo muy pronto se encontró con otros postulados post estructuralis-
tas de la teoría feminista que se desarrollaban en el Norte, como el feminismo
de la diferencia y especialmente la así llamada teoría de género”.
A autora prossegue apontando que os debates feministas acontecem sob
a influência da Conferência Mundial sobre a Mulher realizada em Beijing, que
vincula diretamente desenvolvimento e feminismo. Um dos saldos desse mo-
mento, aponta Aillón (2015), foi a aproximação das organizações de mulheres
marxistas ao debate da ocupação institucional e da necessidade de reafirmar a
presença feminina do Estado. Essa transição inaugura o segundo período do
feminismo moderno boliviano, que conforme Zabala (2012) é marcado como
o momento de questionamento do Estado.
A partir dos anos 1990, a preocupação do conjunto dos movimentos das
mulheres bolivianas se volta aos processos de reforma e reestruturação institu-
cionais. A demanda por políticas públicas que priorizassem as questões das mu-
lheres toma assento, e como exemplos paradigmáticos desse processo estão a Lei
Nº 1779, de 19 de março de 1997, que estabelece a política de ações afirmativas de
30% para candidaturas femininas e a Lei Nº 1674, de 15 de dezembro de 1995, que
define mecanismos de enfrentamento a violência familiar e doméstica e a criação
em 1994, da Subsecretaria de Gênero (AILLÓN, 2015, p.17).
É nesse período, sob a batuta neoliberal, que há uma grande divisão no
campo das organizações de mulheres. De um lado estavam as “institucionais”
e de outro as “autônomas”113. Aillón (2015) explica que a divisão tem como
protagonistas o movimento Mujeres Creando e as ONGs Feministas. O pri-
meiro, de inspiração anarquista, aponta para a reprodução do pensamento eu-

113 Zabala (2012) explica que: “sin intentar reeditar una mirada maniquea ni pretender homogeneizar las
distintas posiciones o estrategias feministas, es evidente que algunas, como las “autónomas”, perfilan su
campo discursivo y político privilegiando de modo exclusivo a la sociedad civil, mientras que las feministas
“institucionalizadas” lo hacen desde las ONG y ponen el acento en su capacidad de incidir y negociar con
el espacio público estatal. Esto no solamente porque su interlocución compromete escenarios globales que
convierten las cumbres y conferencias mundiales en palestras para potenciar y legitimar las iniciativas
nacionales en pos de afirmar los derechos de las mujeres” (ZABALA, 2012, p. 281).

143
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

ropeu e ocidental em geral, criticando as ONGs feministas a partir do que elas


chamam “tecnocracia de gênero”, que seria a reprodução da lógica de “gênero
para o desenvolvimento”. Outra crítica do Mujeres Creando atingia o caráter
de classe e território das ONGs feministas, em geral urbanas e sem a partici-
pação das mulheres indígenas. De igual forma, o debate sobre diversidade se-
xual não era pauta central das ONGs, o que levou a militância feminina lésbi-
ca boliviana a compor a perspectiva autônoma feminista do Mujeres Creando.
Apesar das diferenças e frações, Zabala (2012) aponta que os movimen-
tos feministas e de mulheres tinham como meta em comum enfrentar a sub-
-representação das mulheres nos espaços institucionais. Ainda que houvessem
discordância quanto as táticas para conseguir o objetivo o lema “democrati-
zar a democracia” leva as mulheres bolivianas, junto com o processo histórico
de refundação do Estado, a conquistar a paridade representativa114.
As Bartolinas Sisa115, conforme Echevarría (2015), são a organização
feminina de maior destaque nessa articulação. A ressignificação dos mitos
nacionais para demarcar a presença feminina, elemento cunhado de Chacha-
-warmi, ou seja, a dualidade paritária, se traduz no que a autora chama de
“revolución democrática y cultural”. A própria CPE carrega a marca desse
tensionamento como elemento estruturante, não incidental – desde a adoção
inflexão de gênero em sua escrita até a incorporação de dispositivos explícitos
sobre a igualdade entre homens e mulheres nos espaços institucionais e na
busca do enfrentamento ao patriarcado116.

114 Ainda conforme a autora, “con una institucionalidad desbordada por la acumulación de protestas y
rebeldía, Bolivia es testigo de la emergencia de nuevos actores sociales que se despliegan y se apropian
del espacio público, actualizando demandas de participación, de democratización de redistribución
del excedente, de derechos colectivos y autodeterminación de los pueblos indígenas. La Asamblea
Constituyente se convierte en el escenario privilegiado para canalizar estos impulsos y producir un
nuevo pacto social que permita refundar el país sobre la base de una nueva institucionalidad estatal
que responda a los cambios sociales, políticos, económicos y culturales y a los rezagos y tensiones que
expresan la emergencia de nuevas identidades étnicas y de género, con demandas de participación y
reconocimiento” (ZABALA, 2012, p.284).
115 La Confederación de Mujeres Campesinas Indígenas Originarias de Bolivia “Bartolina Sisa”. O nome
da organização celebra Bartolina Sisa, mulher indígena aimará, que foi esposa de Tupac Katari e
juntos organizaram a resistência indígena ao processo colonizador.
116 CPE 2009, Artigo 8, II; Artigo 14, II; Artigo 15, III; Artigo 79; Artigo 104; Artigo 172, 22; Artigo 270;
Artigo 278.

144
Marxismo e América Latina

Apesar das divergências apontadas pela autora com os demais grupos fe-
ministas117, notadamente por ser a maior organização de mulheres na Bolívia,
segundo Echevarría (2015), as Bartolinas tem um peso diferenciado na susten-
tação do Proceso de cambio. Seu perfil organizativo – mulheres indígenas da
classe trabalhadora – e seu impacto histórico no processo de transformação
da política boliviana produzem a aproximação necessária entre os feminis-
mos plurais daquele país com as necessidades das mulheres.
A união entre as pautas tradicionalmente tratadas por um movimento
feminista elitizado encontra nas Bartolinas a ressignificação da luta por re-
presentação. Esse momento inaugura o terceiro período, o de refundação do
Estado. Zabala (2012) assinala que esse momento histórico é singular por unir
a pluralidade do movimento de mulheres e feminista boliviano desde o mo-
mento da convocação da constituinte até seu desenrolar. Assim, o argumento
central das mulheres gira em torno na paridade na representação institucional
que tem, entre outras repercussões:
Con la fórmula de la paridad actuando en un sistema de instituciones
liberal representativas, la articulación amplia de mujeres se asegura va-
rias cosas. Primero, contrarrestar la apariencia de un mercado político
que se muestra como neutro, regulando los intercambios de los actores
políticos sin preferencias y sin favorecer a nadie en particular. Segundo,
hacer efectivo el derecho a la elegibilidad de las mujeres, es decir, garan-
tizar que los resultados electorales ya no sean fruto del azar o de los capi-
tales simbólicos o materiales que entran en juego, sino que se conviertan
em previsibles: mitad hombres y mitad mujeres. Ya no es el mercado
político o la voluntad de las organizaciones del sistema político las que
deben garantizar la presencia de esa otra diversidad que constituyen las
mujeres, sino un nuevo pacto social entre el Estado y el colectivo de las
mujeres (ZABALA, 2012, p.287).

117 Segundo Echevarrría (2015) “Los argumentos esgrimidos por las Mujeres Presentes en la Historia
(feministas, representantes de partidos políticos, mujeres provenientes de las ONG) se sustentaron
en teorías del feminismo europeo; los esgrimidos por las “Bartolinas” en la noción andina del
chacha-warmi. “Para muchas líderes indígenas la reivindicación de la paridad se afianzó buscando
similitudes con la noción andina de chacha-warmi, o de la complementariedad entre hombre y mujer”
(Zabala, 2014:98). Ya posteriormente, el tema de la paridad se consolidó en la Constitución Política del
Estado y en una serie de leyes articuladas que hicieron posible para las mujeres, finalmente, alcanzar
en las últimas elecciones el 51% en la cámara de diputados y el 44% en la cámara de senadores”
(ECHEVARRÍA, 2015, p.23).

145
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

A própria autora aponta que, por mais que as mulheres agora tenham
espaços reservados, a lógica da reprodução patriarcal persiste. A defesa das
pautas vinculadas as mulheres é atravessada pela forte pressão dos costumes
e as lideranças femininas ainda tem tratamento diferenciado e acompanha-
mento próximo da tutela masculina. As diferenças entre as táticas adotadas
pelo movimento feminista e de mulheres na Bolívia foram fundamentais para
contornar o novo Estado que persiste em seu Proceso de cambio, e que como
todo processo dialético, encerra contradições e dilemas.

3. Mulheres bolivianas na política: conquistas e desafios


A execução da ideia de representação feminina, que pretendia alcançar
a presença de mulheres em cargos políticos, uma vez que estas representavam
grande parcela da população mundial e ainda assim possuíam uma repre-
sentação muito reduzida, não estava contemplando devidamente as mulheres
bolivianas, já que as mulheres que ocupavam esses espaços eram as “mujeres-
-blancas-urbanas”. A “lei de cuotas”, de 1997, surgiu diante da necessidade de
representar a heterogeneidade que abrange o coletivo feminino boliviano.
Diante disso, incialmente, a Lei de Cotas da Bolívia determinava que a re-
presentação feminina nas candidaturas seria de no mínimo 30%. Esse é um exem-
plo de cotas legislativas (tal como o modelo brasileiro), no qual todos os partidos
devem lançar um número mínimo de candidaturas femininas (Venturini e Vil-
lela, 2016, p.2). Além deste modelo, também há a reserva de assentos, no qual há
um número mínimo de eleitas, e as cotas dos partidos, que são adotadas volunta-
riamente a fim de indicar um percentual mínimo de mulheres à candidatura. De
acordo com González y Sample (2010, apud Gigena, 2014, p. 114):
[...] si miramos retrospectivamente las últimas tres décadas, Bolivia ha
sido uno de los primeros países latinoamericanos en promulgar medidas
de acción afirmativas de género orientadas a aumentar la representa-
ción femenina en el Parlamento y han creado comisiones específicas y
espacios transversales en el ámbito legislativo.

Devido ao impacto dessas medidas, conforme Krook (2008, apud Gi-


gena, 2014), a representação feminina passou de 6.9% a 16.9% dentre os anos
de 1993 a 2005, quando Evo Morales foi eleito como presidente do país. Após

146
Marxismo e América Latina

isso, no ano de 2010, segundo González y Sample (2010, p. 17, apud Gigena,
2014, p. 114), em 2010 foi alcançada uma porcentagem de 25.4% de mulheres
parlamentares, acima da média da América Latina de 20.85%. Em 2010, quan-
do a Bolívia contava com um avanço considerável no que se refere às mulheres
presentes na política, a “lei de cuotas” passou por uma reforma. O seu artigo
11, que trata da equivalência, possui o seguinte texto:
A Democracia intercultural boliviana garante a equidade de gênero e a
igualdade de oportunidades entre mulheres e homens. As autoridades
eleitorais competentes estão obrigadas ao seu cumprimento, conforme
os seguintes critérios básicos: a) As listas de candidatas e candidatos a
Senadoras e Senadores, Deputadas e Deputados, membros das Assem-
bleias Departamentais e Regionais, Conselheiras e Conselheiros Mu-
nicipais e outras autoridades eletivas, titulares e suplentes, respeitarão
a paridade e alternância de gênero entre mulheres e homens, de tal ma-
neira que exista uma candidata titular mulher e, em continuidade, um
candidato titular homem; um candidato suplente homem e, em conti-
nuidade, uma candidata suplente mulher, de maneira sucessiva. b) Nos
casos de eleição de apenas uma candidatura em uma circunscrição, a
igualdade, paridade e alternância de gênero se expressará em titulares
e suplentes. No total das referidas circunscrições, ao menos cinquenta
por cento (50%) das candidaturas titulares pertencerão às mulheres. c)
As listas de candidatas e candidatos das nações e povos indígenas de
origem camponesa, elaboradas de acordo com as suas normas e proce-
dimentos próprios, respeitarão os princípios mencionados no parágra-
fo precedente (Tradução livre das autoras).

Além disso, como consta no artigo 107, sobre o artigo 11: “o descum-
primento desta disposição dará lugar à não admissão da lista completa de
candidaturas, caso em que se notificará a rejeição à organização política, que
deverá emendar em um prazo máximo de setenta e duas (72) horas contados
de sua notificação”. Ou seja, a reforma sofrida pela Lei de Cotas boliviana em
2010 proporcionou ainda mais avanços no que se refere a assegurar que as
mulheres ocupem esses espaços, fazendo com que as candidaturas masculinas
deixem de ser predominantes.
Adicionalmente a Lei de cotas, com relação às medidas que buscavam a
modernização do Regime Eleitoral, foi criada, em 1999, “La Ley de Partidos
Políticos” que, conforme Gonzáles (2001, p. 26), “regula la organización, fun-
cionamiento, reconocimiento, registro y extinción de los partidos políticos, así

147
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

como las alianzas entre ellos em los procesos políticos de representación.” Essa
lei representou um considerável avanço em termos de igualdade de gênero,
repelindo discriminações referentes à idade, etnia e cultura. O que ela deter-
minou em seu texto foi a designação de 30% de participação feminina, tanto
nos níveis de direção partidária, como nas candidaturas eleitorais.
Também em 1999, foi aprovada a “Ley de Municipalidades”, que buscou
promover, nos municípios, a equidade e o desenvolvimento humano, sendo
uma de suas competências a promoção da participação feminina. Em 2004,
buscando aumentar a representatividade, foi aprovada a “Ley de Agrupaciones
Ciudadanas y Pueblos Indígenas”. Consoante Gonzáles (2001, p.27):
Esta disposición se propone romper con el monopolio de los partidos po-
líticos como representantes exclusivos de la sociedade civil en su relación
con el Estado, a partir de la emergencia de dos nuevos actores: las agru-
paciones ciudadanas y los pueblos indígenas (GONZÁLES, 2001, p.27).

Apesar de ter um importante objetivo – de integrar a população, incluin-


do suas diversidades, a lei não obteve êxito no que se propôs, uma vez que
determina requisitos difíceis de serem cumpridos, fazendo com que essas or-
ganizações não participem dos processos eleitorais. Ainda assim, a aprovação
dessa lei foi um passo importante, pois considerou a necessidade da partici-
pação política das mulheres, bem como estabeleceu critérios de equidade. Por
fim, a lei acabou por determinar 50% das candidaturas a cargos relacionados
à participação popular para as mulheres.
No mesmo ano, em 2004, ocorreram mudanças significativas no Código
Eleitoral boliviano, que estabeleceu a obrigatoriedade de uma cota de 30% de
mulheres nas candidaturas de “diputados(as) plurinominales e senadores(as)”.
No caso da candidatura à deputado(a), a Lei determinou a apresentação de
listas, de modo que, a cada três candidatos homens, uma candidata obriga-
toriamente deveria ser mulher. Já no senado, ficou estabelecido que a cada
quatro candidatos homens, uma seria mulher. O Código Eleitoral modificou,
também, acerca dos conselhos municipais, aplicando um critério que alter-
nava os titulares e os suplentes, de modo que uma mulher estaria presente no
conselho o mesmo número de vezes que um homem. De acordo com dados
do Observatorio de Género, baseando-se em dados anteriormente disponibi-
lizados pela Corte Nacional Electoral (CNE) e pela Asociación de Concejalas

148
Marxismo e América Latina

de Bolivia (ACOBOL), a porcentagem de mulheres presentes nos conselhos


municipais subiu de 19% a 43%, de 2004 a 2010.
Durante a primeira gestão do governo de Evo Morales, em 2006, este presi-
dente realizou como uma de suas primeiras tarefas a convocação ao processo de
eleição de representantes para a Assembleia Constituinte, objetivando a elabo-
ração de uma nova constituição boliviana. Devido a isso, o Congresso Nacional
boliviano começou a elaborar a “Ley Especial de Convocatoria a la Asamblea
Constituyente” (LECAC). Diante disso, os movimentos feministas bolivianos
passaram a articular-se, visando garantir a presença das mulheres nesse espaço
que iria definir tanto acerca da legislação boliviana, bem como estariam com-
pondo os debates de discussão de gênero e paridade. Além disso, as demandas
solicitadas por essas mulheres estavam vinculadas às suas identidades étnicas
(indígenas, originárias e campesinas). Por fim, tendo sido aprovada em março
de 2006, a LELAC definiu a convocatória para a Assembleia Constituinte, que
seria composta por 255 representantes. As listas que seriam apresentadas nos
departamentos deviam conter, no mínimo, duas mulheres em alternância (mu-
lher-homem, homem-mulher). No que se refere aos representantes, 210 deles
seriam eleitos por “circunscripciones uninominales”, isto é, maioria simples (voto
distrital no Brasil), 3 por departamento, cujos partidos políticos deveriam de-
monstrar a lista que constasse a presença de homem-mulher e mulher-homem,
sendo esta prática denominada de binômio. O binômio vencedor iria ingres-
sar na assembleia, de modo que o terceiro ou terceira congressista fariam parte
da segunda força política. Os resultados desta prática foram bastante positivos,
pois foram incorporadas 88 mulheres dentre os 255 representantes, formando
um índice de 34% de mulheres nesse espaço de decisão.
A nova “Constituición Politica del Estado” (CPE) foi promulgada em 7 de
fevereiro de 2009, o que passou a exigir das mulheres que estavam nos cargos
eleitorais a implementação de políticas que assistissem as mulheres, buscando
diminuir a desigualdade de gênero. Havia vários artigos na CPE que versavam
acerca do tratamento igualitário e da equidade. Além disso, durante a segun-
da gestão governamental de Evo Morales, seu gabinete de ministros passou a
ter paridade de gênero, sendo 50% das cadeiras do ministério ocupadas por
mulheres e 50% ocupadas por homens. De 2006 a 2009, apenas 20% eram
mulheres, segundo o Observatorio de Género.

149
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Em 2009, foi aprovada a “Ley de Régimen Electoral Transitorio” que, com


relação às mulheres, trata do direito delas participarem dos processos eleito-
rais e do critério de alternância na elaboração das listas eleitorais, entretanto,
não havia nada acerca das candidaturas especiais e “uninominales”. Devido a
isso, essas mulheres que estavam a par dos acontecimentos e das aprovações
legislativas perceberam a necessidade de implementação de um novo meca-
nismo: as “listas para las listas”.
Essa iniciativa buscava acompanhar atividades de incidência política, bem
como a opinião pública acerca da participação das mulheres bolivianas na polí-
tica. Além disso, também se pretendia garantir o que estava estipulado na CPE.
A campanha foi articulada tendo dois pontos centrais: a incidência política e a
comunicação. No que tange à incidência política, ela foi dividida em três fases:
na primeira, houve ações para realizar o registro das mulheres; na segunda, as
mulheres apresentaram suas agendas e propostas concretas que versavam sobre
os direitos femininos e, na terceira, as mulheres eleitas foram convocadas ao
“Primer Encuentro entre mujeres Asambleístas y representantes de organizacio-
nes de mujeres”, o que objetivava a construção de alianças. Já acerca da comu-
nicação, foram criados jingles, notas de imprensa, camisetas e afins, buscando
visibilidade à campanha, que teve resultados positivos e instigou as organiza-
ções a continuarem buscando financiamento específico para uma campanha de
comunicação, que acabou sendo denominada de “Mujeres listas para tu voto”.
Foram então divulgados os resultados obtidos entre dezembro de 2009
e abril de 2010, que tratavam da “Ley de Régimen Electoral Transitorio”. Tais
resultados foram compatíveis com os dados obtidos durante a apresentação de
listas à candidatura118, o que serviu como motivação para que se continuasse
a pensar em propostas benéficas às mulheres dentro do que posteriormente
se tornaria uma Assembleia Legislativa Plurinacional, visto que o objetivo de
garantir a equidade ainda não havia sido alcançado.

118 Havia um número considerável de mulheres representando as circunscrições por população (42%), mas um
baixo número de mulheres que representavam as circunscrições por território e indígenas (17%). (Dados do
Observatorio de Género com base em dados da CNE, elaborados pela Coordinadora de la Mujer).

150
Marxismo e América Latina

4. Impactos da presença feminina institucional:


persistências e avanços
A Bolívia foi um dos países mundiais e da América Latina que mais ino-
vou nas suas legislações e disposições constitucionais no que se refere a temá-
tica de gênero. Podemos apontar os avanços da nova constituição Boliviana,
como a elevação da equidade de gênero a um dos valores fundantes do Estado
Plurinacional, além de atribuir a integridade física e mental das mulheres à
qualidade de direito fundamental (VALENÇA, 2018, p. 199).
Além da Constituição e de leis da Bolívia que dispõem acerca da prote-
ção da mulher contra a violência familiar, o Estado Plurinacional da Bolívia
se destaca por também ter leis119 de proteção da mulher contra a violência
pública, esta entendida como:
El espacio externo a las fronteras de la familia, donde se establecen las
relaciones sociales que no están mediadas por el parentesco, como son:
las unidades educativas, el trabajo, la calle, los lugares de esparcimien-
to social, entre otros, donde se patentiza el poder del género masculino
sobre el femenino como una característica del sistema patriarcal y una
muestra de la violência estructural contra las mujeres (INE, 2017, p.18).

As conquistas legais e constitucionais elevaram a Bolívia a ocupar as pri-


meiras classificações a nível mundial da participação política feminina, es-
pecificamente no Parlamento. Porém, a garantia da participação quantitativa
de mulheres nesses espaços desencadeou outras opressões, especialmente a
violência política em razão do gênero. Os registros da La Asociación de Con-
cejalas de Bolivia (ACOBOL) apontam que a violência e o assédio principal
sofrido pelas mulheres, especialmente as vereadoras, se materializa na obri-
gação de renunciarem seus mandatos, o uso da força física para assinarem
documentos e tomarem decisões que elas não concordam (ONU MUJERES,
2017, p. 133). Buscando garantir a proteção das mulheres vereadoras, prefeitas,

119 Podendo se destacar aqui a Lei 348, de 09 de março de 2013 que dispõe sobre a violência no sistema
educativo (art. 7.12), no trabalho (art. 11) e nos serviços de saúde (art. 7.9), violência contra os
direitos reprodutivos (art. 7.8) (INE, 2017, p. 19)

151
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

parlamentares foi promulgada, em 2012, a Lei contra o assédio e violência


política das mulheres120.
Esta ley no limita su aplicación a mujeres en cargos electivos, sino que
amplía su alcance a mujeres designadas o en el ejercicio de la funci-
ón política o pública, lo que representa una diferencia de los primeros
proyectos presentados. Esta ley establece una clasificación de los actos de
acoso y violencia política, distinguiendo entre faltas leves, graves y muy
graves, y fjja las sanciones para cada categoría, lo que permite identifi-
car claramente estos actos y sus correspondientes castigos (ONU MUJE-
RES, 2017, p. 131).

A Lei promulgada na Bolívia demonstra um importante avanço na efeti-


vação da garantia da participação efetiva das mulheres na política, sendo um
instrumento na luta pelo rompimento de um sistema patriarcal.
Em relação ao impacto da representação feminina institucional na vida
das mulheres na Bolívia é importante observar que esta representação se deu
no âmbito Parlamentar nacional (53,1%), no âmbito estadual (57%) e no âmbi-
to do Parlamento municipal (51,1%), ao passo que no âmbito do Poder Execu-
tivo não há paridade de gênero, conforme aponta o Observatório de Igualdade
de Gênero da América Latina e do Caribe, a porcentagem de mulheres nos
gabinetes ministeriais na Bolívia, é de 27,8% 121. Já a porcentagem de mulheres
eleitas prefeitas é de 8.2%122.
Além da baixa representatividade feminina nos espaços do Poder Exe-
cutivo, ainda há índices de opressões de gênero no Estado Plurinacional da
Bolívia, fato comprovado por pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de
Estatística da Bolívia – INE no ano de 2016, publicado em maio de 2017, com
o título: Encuesta de Prevalencia y Características de La Violencia Contra Las
Mujeres 2016. As opressões vão desde o ambiente doméstico e familiar, ao
ambiente público e social, incluindo o espaço educacional, laboral, nos esta-
belecimentos de saúde.

120 La Ley 243, de 28 de mayo de 2012, denominada: Ley contra ela Acoso y la Violência Politica hacia las Mujeres.
121 Disponível em: <https://oig.cepal.org/pt/indicadores/poder-executivo-porcentagem-mulheres-
nos-gabinetes-ministeriais> Acesso em 15 de jul. de 2019.
122 Disponível em <https://oig.cepal.org/pt/indicadores/mulheres-prefeitas-eleitas> Acesso em 15 de
jul. de 2019.

152
Marxismo e América Latina

O INE (2017) aponta em pesquisa que mulheres nas áreas urbanas e ru-
rais são vítimas de violência doméstica e familiar, correspondendo um per-
centual de 71,3% de mulheres vítimas na área urbana e 82,5% na área rural.
Desse percentual, os tipos de violência com maior ocorrência são a psicológica
(92,7%), física (67,3%), sexual (45,5%) e econômica (41,8%) (INE, 2016, p. 33).
O INE aponta, ainda, que:
En Bolivia, el 81,2 por ciento de las mujeres separadas, divorciadas y
viudas de 15 años o más sufrieron violencia psicológica; el 68,2 por cien-
to violencia física; el 61,2 por ciento violencia económica y el 48,2 por
ciento violencia sexual todas estas agresiones fueron perpetradas por
parte de su ex pareja (INE, 2017, p. 36).

No âmbito da saúde, há ainda a violência obstétrica, violência institucio-


nalizada que se expressa com o tratamento desumanizado pelos profissionais
de saúde, desde o período de gestação das mulheres até o pós-parto. Na Bolívia,
63,5% das mulheres já sofreram esse tipo de violência, desse percentual, a maio-
ria dos casos ocorreu em estabelecimento públicos de saúde123 (INE, 2017, p. 48).
No âmbito público e social, segundo o INE (2017, p.62), 60% das mulhe-
res entrevistadas afirmaram que se sentiram incomodadas e ofendidas com
elogios e frases de natureza sexual, 51,1% afirmaram que foram humilhadas e
menosprezadas no ambiente escolar e universitário, e 54 de cada 100 mulheres
afirmaram ter sido humilhadas e menosprezadas no ambiente de trabalho.
Um dado importante percebido na pesquisa é que as mulheres solteiras são as
mais vulneráveis a sofrerem violência no âmbito social. Mais especificamente
nos centros educativos a pesquisa aponta que:
Los resultados de la EPCVM124 revelaron que de 3.349.160 de mujeres
que asisten o asistieron a un centro educativo, un 65%, revelan algún
incidente violento durante su vida estudiantil (colegio, instituto univer-
sidad) ejercida por el personal administrativo, profesores, catedráticos
o compañeros de estudio. El área rural registró un mayor porcentaje de
mujeres en situación de violencia de género en el ámbito educativo con
un 69,7%; mientras que el área urbana, porcentualmente se encuentra
por debajo de la nacional, registrando un 63,2% (INE, 2017, p. 69).

123 68,3% Hospital Público; 64,2% em Hospital de la seguridade social; 35,4% Clínica Privada (INE, 2017, p. 49)
124 Encuesta de Prevalencia y Características de la Violencia contra las Mujeres.

153
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

A violência na educação é marcada pelo abuso de autoridade e poder de


professores, diretores, servidores e também pelos colegas, sendo a violência psi-
cológica a de maior incidência, fato que interfere na capacidade de concentração,
rendimento escolar e acadêmico, autoestima, influenciando na evasão escolar.
No âmbito do trabalho, as mulheres ainda encontram situações de pre-
conceitos para serem contratadas, ou até receberem salários iguais aos dos
homens, por razões de discriminação de gênero, como a maternidade, por
exemplo. De acordo com pesquisa do Observatório da Igualdade de Gênero
da América Latina e do Caribe, os indicadores da população sem renda, em
2017, 32,3% são mulheres, ao passo que 7,6% são homens125. O Observatório
analisou que esse indicador econômico caracteriza a falta de autonomia eco-
nômica das mulheres, as tornando mais vulneráveis (CEPAL, 2017).
Ao analisar a população empregada por nível de produtividade126 e sexo
(CEPAL, 2014)127, o Observatório percebeu que as mulheres ocupam 82,5 %
de setores de baixa produtividade (agricultura, comércio e serviços), 11,3%
setores de média produtividade (construção, manufatura e transporte) e 6,2%
setores de alta produtividade (atividade financeira, eletricidade e mineração).
Por outro lado, os homens ocupam 52,4% das vagas de baixa produtividade,
39,1% média produtividade e 8,6% alta produtividade. Como analisa o Obser-
vatório, o setor de alta produtividade é ocupado por trabalhadores com maior
nível educacional, com melhores condições de trabalho e maior proteção dos
direitos trabalhistas. Já os empregos de baixa produtividade concentram tra-
balhadores com renda mais baixa, menor nível educacional, instabilidade,
cobertura limitada da seguridade social e ausência de contratos de trabalho,
incluindo o serviço doméstico.

125 Disponível em <https://oig.cepal.org/es/indicadores/poblacion-sin-ingresos-propios-sexo> Acesso


em 15 de jul. de 2019.
126 . “Los sectores de actividad económica se han determinado de acuerdo con la Clasificación Industrial
Internacional Uniforme de todas las Actividades Económicas (CIIU), Rev.2. Estos sectores se han
agrupado considerando su productividad laboral promedio (en dólares PPA de 2005) en los siguientes
niveles: • Sector de baja productividad: agricultura, comercio y servicios • Sector de productividad
media: construcción, manufactura y transporte • Sector de alta productividad: actividad financiera,
electricidad y minería” (CEPAL, 2014).
127 Disponível em <https://oig.cepal.org/es/indicadores/distribucion-la-poblacion-ocupada-segun-
nivel-productividad-sexo> Acesso em 15 de jul. de 2019.

154
Marxismo e América Latina

A Bolívia se destaca na ONU pelos avanços na CPE e na representati-


vidade equitativa de gênero no Parlamento nacional. Essa equidade trouxe
várias conquistas e a promulgação de diversas leis em defesa da mulher, seja
no âmbito privado, no âmbito social e público, incluindo o ambiente escolar,
laboral, nos estabelecimentos de saúde, podendo ser citadas algumas Leis: Lei
n 348 de 9 de março de 2013 (Lei para garantir às mulheres uma vida sem vio-
lência); Lei nº 243 de 28 de maio de 2012 (Lei contra o assédio e violência po-
lítica com as mulheres); Lei nº 263 de 31 de julho de 2012 (Lei contra o tráfico
e o tráfico de pessoas), a Lei promulgada no ano de 2019: Ley de Abreviación
Procesal Penal y de Fortalecimiento de la Lucha Integral Contra la Violencia a
Niñas, Niños, Adolescentes y Mujeres que tem como finalidade acabar com a
morosidade judicial (CAMBIO, 2019)128. Contudo o Estado Plurinacional da
Bolívia ainda enfrenta muitos desafios para promover a efetivação dessas Leis
e da CPE, sendo uma das medidas primordiais do Governo a erradicação da
extrema pobreza no país, que afeta especialmente as mulheres. O período cor-
respondente 2006 a 2018 o índice da extrema pobreza baixou de 38,2% para
15,2%, o objetivo é até 2025 reduzir esse percentual para 5%.
A Presidente do Senado da Bolívia, Adriana Salvatierra explanou na
ONU, na 63ª sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher, os avanços na
equidade de gênero em seu país, entre 2005 e 2018, elencando a redução do
percentual da pobreza, de 60% para 35% e da extrema pobreza de 37% para
15,5%. O aumento da expectativa de vida das mulheres, de 66 para 77 anos. A
democratização do acesso à terra, com a concessão de 45,6% dos títulos agrá-
rios às mulheres. O aumento do número de mulheres licenciadas, passando
de oito mil para dezesseis mil. A garantia do direito a assistência hospitalar
durante o parto, afirmando que nove em cada dez mulheres tem assistência.
Afirmou, ainda, que: “Por estos avances, de acuerdo con el Índice de Brecha de
Género trabajado por el Foro Económico Mundial, Bolivia se encuentra en el
puesto 17 de países en donde las oportunidades y los recursos se distribuyen de
forma más ecuánime entre ambos géneros” (CAMBIO, 2019).
Ainda de acordo com a Senadora, o grande desafio da Bolívia é a con-
solidação da democracia paritária, buscando efetivar as leis contra o assédio
e a violência política sofrida pelas mulheres, bem como promulgar leis que

128 Disponível em <http://www.cambio.bo/?q=node/65395> Acesso em 15 de jul. de 2019.

155
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

promovam o acesso à terra para as mulheres. Para além do que afirma a Se-
nadora, é importante medidas educativas e políticas públicas que promovam
a transformação cultural patriarcal, de forma a dar maior efetividades às leis.
Além disso, a pouca representatividade de mulheres no âmbito do Poder Exe-
cutivo interfere no problema da efetivação das leis, pois é no executivo que se
implementam as políticas públicas.

5. Considerações finais
Identificamos que a Bolívia tem produzido legislações inovadoras, reco-
nhecendo a violência institucional contra a mulher e a necessidade de enfren-
tar o patriarcado de maneira estrutural. A presença feminina nas instâncias
parlamentares tem se provado um importante espaço para o desenvolvimento
de melhores condições de vida para as bolivianas.
Essas alterações são resultado de um acúmulo extenso de lutas feministas
desenvolvidas no país andino, que estão longe de se encerrarem. As múltiplas vi-
sões do papel das mulheres ao longo da sua história colocaram as mulheres como
protagonistas da refundação do Estado, reconhecendo o debate das relações de
sexo como elemento central, e não incidental, no processo de luta de classes.
Contudo, as limitações estão presentes. As necessidades de combater a
condição de fragilidade das mulheres que vivem na Bolívia variam de acordo
com a posição de pertencimento de classe, raça e território. A organização
política segue sendo o denominador comum entre essas sujeitas plurais. A luta
das Bartolinas Sisa se encontra com as Mujeres Creando, especialmente na
arena da institucionalidade que aquele país decidiu enfrentar como uma ins-
tância na construção do Proceso de cambio. Portanto, ainda com limitações e
desafios, a Bolívia segue um importante caminho na luta contra o machismo,
o sistema patriarcal, bem como ao Capitalismo.

156
Marxismo e América Latina

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160
A Função Eleitoral no Equador
e na Bolívia: avanços e contradições

Vítor Carlos Nunes 129


Ana Letícia de Oliveira Bezerra Fernandes 130
Patrick Campos Araújo131

1. Introdução
A Venezuela, a Bolívia e o Equador passaram, nas últimas décadas, por
radicais processos de transformação política, marcados pela presença de no-
vas constituições. Essas novas Cartas magnas decorreram da ação política de
partidos, movimentos, em cada uma dessas realidades.
Nessa perspectiva, o contexto de dominação imperialista132 nos países su-
pracitados foi crucial para a insurgência de movimentos que buscavam a prote-
ção de seus territórios e um modelo de sociedade mais igualitário. Nesse sentido,
as novas constituições desses países são consequências da correlação de forças
de classes sociais. Decorrem de movimentos que questionaram a hegemonia do
modo de produção e produziram avanços no continente, sem haver, contudo,
uma subversão completa da forma como os meios de produção se repartem.

129 Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC) e extensionista do Centro de Referência
em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH Semiárido). E-mail: vitorcarlosnunes@hotmail.com
130 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC) e extensionista do Centro de Referência
em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH Semiárido). E-mail: leticiafernandes1277@gmail.com
131 Mestrando em Educação pelo PPGFPPI – UPE, membro do Grupo de Estudos em Direito Crítico,
Marxismo e América Latina (GEDIC). E-mail: patrickaraujo@gmail.com
132 O imperialismo é uma relação de poder entre as burguesias externas e nacionais. Os países latino-
americanos são frutos de um processo de expansão ocidental, que teve início com a chegada dos
portugueses e espanhóis, e adquiriu novas formas a partir da independência das nações latinas.
Segundo Florestan Fernandes (2009), esse processo está relacionado à evolução do capitalismo e
à incapacidade dos países latino-americanos de impedir sua incorporação dependente ao espaço
econômico, cultural e político das sucessivas nações capitalistas hegemônicas.

161
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Na Bolívia, por exemplo, a privatização da água, dentre outras medidas


neoliberais, foi o estopim para que grupos que historicamente não atuavam de
forma conjunta, como o movimento indianista e os marxistas, se aliassem e,
através de um movimento que abrangesse a maior parte da classe trabalhado-
ra do país, culminou na eleição de Evo Morales à presidência e, anos depois,
na nova Constituição pautada na plurinacionalidade.
No Equador, após a Assembleia Constituinte finalizar seus trabalhos e
ter sido posto o processo eleitoral do Referendo Constitucional, em que a po-
pulação votaria pela aprovação ou reprovação da nova Carta magna, o movi-
mento pelo “sim” aglutinou importantes setores da sociedade, como partidos
políticos e movimentos sociais. Partidos como o próprio Alianza PAIS (Alian-
za Patria Altiva y Soberana), em que o então presidente Rafael Correa fazia
parte, a Izquierda Democrática, o PS FA (Partido Socialista-Frente Amplio), o
Partido Comunista del Ecuador, dentre outros, foram de grande importância
para a aprovação da nova Constituição133.
As constituições da Bolívia, Equador e Venezuela têm, como algumas de
suas características, maior enfoque à participação popular, compreendendo inú-
meras nações e povos indígenas originários. No Equador, expressamente, a Carta
magna traz inovações quando se trata do Bem viver134. Nesse sentido, este traba-
lho visa analisar especificamente as mudanças constitucionais no contexto boli-
viano e equatoriano, dando destaque às inovações presentes na temática eleitoral.
Dessa maneira, será feita uma contextualização da tripartição de poderes
advinda da modernidade, apontando suas limitações. Além disso, será feita uma
análise de como está disposta nas duas Constituições a Função eleitoral, a fim de
compreender as particularidades e inovações dessa função. Por fim, realizar-se-á
uma ponderação entre o que avançou e o que destoou da teoria em relação às duas
Cartas constitucionais, focando na atuação da Função eleitoral.

133 Conforme Pedro Bocca, Fátima Mello e Gonzalo Berrón (2016), o lado oposto, que defendia o “não”,
era liderado por partidos tradicionais de direita. As críticas ao novo texto constitucional eram no
sentido de que esse fortaleceria o papel do Estado e era norteado por ideologias qualificadas pela
oposição com marxistas e bolivarianas.
134 De acordo com Maldonado Bravo (2019), o Bem viver é uma perspectiva de vida que vai de encontro
ao atual sistema capitalista de exploração humana e da natureza, sendo pautado um resgate das
culturas andino-amazônicas e suas formas de sociabilidade.

162
Marxismo e América Latina

Quanto à metodologia, utilizar-se-á do método materialista histórico-


-dialético. Tratando-se de pesquisa qualitativa, como instrumentos metodo-
lógicos aparecem a pesquisa bibliográfica, consultando-se livros e bases de
dados indexadas, e documental, a partir de sítios oficiais do governo, de mo-
vimentos sociais e entidades, especialmente aquelas que se voltam à análise do
sistema de Justiça e eleitoral.

2. Contexto histórico da tripartição de poderes


Nesta seção será feito um debate sobre o surgimento do constitucionalismo no
Estado moderno, com intuito de compreender melhor quais são suas críticas. Desse
modo, será feita uma breve contextualização acerca dessa temática para que possa
ser realizado o estudo das Constituições da Bolívia e do Equador.
Primeiramente será realizada uma análise da situação econômica do pe-
ríodo que antecederam as revoluções burguesas. A igreja era uma instituição
“organizada feudal e hierarquicamente, a qual, proprietária de cerca de um
terço das terras, em todos os países detinha poderosa força no quadro feu-
dal. ” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p.17). Nesse contexto, o dogma da igreja
era dominante, sendo presente na filosofia, direito, etc. Contudo, o modo de
produção da época “se baseava, essencialmente, no autoconsumo de produtos
elaborados no interior de uma esfera restrita – em parte pelo produtor, em
parte pelo arrecadador de tributos” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p.17) e os
burgueses produziam suas mercadorias e eram comerciantes.
Nessa perspectiva, “a concepção católica de mundo, característica do feuda-
lismo, já não podia satisfazer à nova classe e às respectivas condições de produção
e troca” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p.18). Contudo, muitas foram as tentativas
de adaptação da visão teológica de mundo com as necessidades da nova classe. 
Mas tal adaptação era impossível. A bandeira religiosa tremulou pela
última vez na Inglaterra no século XVII, e menos de cinquenta anos
mais tarde aparecia na França, sem disfarces, a nova concepção de
mundo, fadada a se tornar clássica para a burguesia, a concepção jurí-
dica de mundo. (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p.18).
 

163
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Isso posto, atenta-se que a visão comumente compartilhada pela corren-


te liberal, incluindo o próprio é de que o constitucionalismo surge no final do
século XVIII, como práxis política que visa estabelecer uma nova ordem de go-
verno baseados na figura de um documento escrito que contivesse as principais
normas norteadoras do Estado, em contraponto as tradições consuetudinárias,
em sua grande maioria orais, que não se propunham ao crivo do processo for-
mal de criação das leis. No entanto, essa visão mais tradicionalista, exposta pelo
professor Paulo Bonavides (2000) em seus escritos sobre a matéria, mascara o
fato de que as constituições do Estado moderno surgiram como um projeto
político encabeçado pela classe burguesa para assegurar privilégios e manter
o controle da nova ordem social a partir de suas próprias demandas de classe.
A ideia de uma Constituição que trouxesse segurança jurídica e a con-
tenção de arbítrios foram então os princípios ditos como norteadores durante
a construção do cenário político moderno, mas seguiam os ideais burgueses
de proteção à propriedade privada e de uma igualdade seletiva. O escritor Eric
Hobsbawm (1996) em sua obra A Revolução Francesa, disserta sobre como
este movimento revolucionário objetivava o fim dos privilégios hierarquica-
mente concebidos a nobreza, mas que estava longe de construir uma socieda-
de democrática e mais igualitária, dizendo assim:
[...] de modo geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de
1789-1848) não era um democrata, mas sim um devoto do constitucio-
nalismo, de um Estado secular com liberdades civis e garantias para
a empresa privada e de um governo de contribuintes e proprietários.
(HOBSBAWM,1996, p. 20-21).

Dessa maneira, a ideia de uma democracia plena foi construída sobre os


pilares de um respeito irrestrito às normas constitucionais, que por sua vez
resguardavam  essencialmente os direitos da classe burguesa, que utilizava-
-se da bandeira de um cumprimento à legalidade constitucional como for-
ma de garantir uma igualdade social fictícia na prática, já que sua efetividade
limitava-se a estabelecer o que estava escrito nos documentos e não aplicá-los.
Para compreender melhor isto, é interessante comentar acerca da tripartição
dos poderes do Estado, que se torna muito importante durante a modernidade
por estar comumente associada a ruptura com os governos absolutistas, que
contribuiria para a efetivação de uma sociedade fundada aos moldes liberais.

164
Marxismo e América Latina

Embora não tenha sido o primeiro a tratar do assunto, Montesquieu ela-


borou uma pesquisa em que conceitua a natureza e o princípio regente dos go-
vernos republicano, monárquico e despótico, a fim de entender os aspectos que
ajudariam com que estes regimes se tornassem mais estáveis. Sobre isto, Paulo
Bonavides (2000) trata em seu livro Ciência Política da seguinte maneira:
O princípio da separação de poderes, de tanta influência sobre o mo-
derno Estado de direito, embora tenha tido sua sistematização na obra
de Montesquieu, que o empregou claramente como técnica de salva-
guarda da liberdade, conheceu, todavia, precursores, já na antiguida-
de, já na Idade Média e tempos modernos (BONAVIDES, 2000, p. 173).

O entendimento da época era de que ninguém poderia estar acima das


leis existentes, estabelecendo assim que o poder dos governantes precisaria ser
limitado para que não houvesse abusos. Dessa maneira, o poder de mando do
Estado, antes visto como uno e concentrado na figura do monarca, torna-se tri-
partido entre o legislativo, o executivo e o judiciário. Esta teoria, a da separação
dos poderes, foi e continua sendo amplamente difundida por atender e justificar
as demandas da burguesia, que se apropriou da instabilidade política dos go-
vernos monárquicos e da insatisfação das classes subalternas com os privilégios
da nobreza para se colocar como classe dirigente da administração do Estado.
Dessa maneira, foi proposta uma repartição das funções estatais135, onde
o exercício de criar leis, executar as resoluções públicas e julgar os crimes e
questões da sociedade estariam funcionando independentemente e com o
mesmo poder, porém de forma harmônica visando a melhor gestão da coleti-
vidade. A existência de três poderes de igual importância coexistindo foi uma
forma de justificar a nova organização política, que se propunha a minimizar
as arbitrariedades, principalmente entre os governantes e as pessoas comuns,
tendo em vista que um poderia frear os arbítrios do outro quando estivesse
excedendo suas funções.

135 Faz-se importante mencionar que existe uma discussão acadêmica acerca do uso dos termos
“poder” e “função”. Esse embate teórico se dá pelo de que alguns autores relacionam “poder” com
suas origens advindas de governos e que tal carregaria o peso da temeridade e um ideário separatista
que este carregava na época citada. Assim, há neste texto também uma preferência pelo uso do
termo “função”, por adotar um entendimento de que este traria uma maior relação com as novas
qualidades que tal deve representar, caracterizadas pela distinção, coordenação e colaboração.

165
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

A realidade mostra como esta repartição de poderes tinha maior pretensão


de incluir a insurgente burguesia nas atribuições de governo estatal, já experien-
ciado pelas classes mais altas, do que atingir um estágio de mais igualdade entre
as camadas sociais, já que isso implicaria numa perda de seu grande acúmulo
de poder. Tornou-se mais fácil e cômodo dividir estes privilégios apenas com
a burguesia, do que efetuar uma repartição isonômica entre toda a sociedade. 
Observa-se, então, que o constitucionalismo trouxe inovações para a
época que surgiu, relacionadas ao controle do poder do governante e a garan-
tia de direitos ao cidadão, entretanto, seu caráter individualista característico
do liberalismo, esteve muito mais presente do que a prática democrática. Di-
mitri Dimoulis (2009), tece uma crítica a essa corrente do pensamento cons-
titucional que apresenta problemas desde a sua estruturação, advindos justa-
mente da aproximação desta doutrina com o liberalismo. Segundo o autor: 
A Constituição foi pensada como projeto político que objetivava ga-
rantir, na maioria dos casos, sistemas capitalistas em sua versão liberal
e instaurando a democracia representativa. Nesse sentido, as Consti-
tuições sempre foram materiais e carregadas de valores (wertgeladen).
Justamente por isso, os projetos constitucionais nascem no seio de mo-
vimentos políticos - e não em gabinetes de burocratas e formalistas.
(DIMOULIS, 2009, p.214)

Desse modo, as Constituições modernas, por nascerem de movimentos


políticos protagonizados pela burguesia, atendem aos interesses dessa clas-
se. Nesse sentido, ao falar sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, Hobsbawn (1996) afirma que “este documento é um mani-
festo contra a sociedade hierárquica de privilégios da nobreza, mas não um
manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária” (HOBSBA-
WN, 1996, p.20). Ainda conforme Dimoulis (2009), compreendendo que os
projetos constitucionais nascem no seio de movimentos políticos, as Cartas
constitucionais de Venezuela, Bolívia e Equador são frutos da insurgência das
classes subalternas de seus países que, com projetos políticos próprios, uma de
suas pautas era a constituinte.    
Nesse sentido, o debate sobre a tripartição de poderes é essencial para
uma melhor compreensão da Função eleitoral, visto que essa, como será visto
adiante, extrai as questões eleitorais do judiciário, havendo uma quebra com a
lógica moderna de tripartição.

166
Marxismo e América Latina

3. A Função eleitoral no Equador e na Bolívia


Tendo em vista a crítica supracitada acerca da tripartição de poderes,
neste tópico, será realizada uma análise de como está disposta a função eleito-
ral na Constituição da Bolívia e do Equador. Contudo, antes de uma análise do
texto constitucional estritamente dito, é necessário um breve debate acerca do
tema democracia e de que forma as novas Cartas magnas de Bolívia e Equador
podem representar avanços para a temática. Quando se fala em democracia,
tanto o senso comum quanto na academia, duas correntes se sobressaem:
De um lado, a idéia de “governo do povo”, que corresponde a seu sig-
nificado etimológico; é a herança dos gregos, que nos deram a palavra
e parte do imaginário associado à democracia. De outro, a democracia
está ligada ao processo eleitoral como forma de escolha dos governan-
tes (MIGUEL, 2002, p.483).

Isso posto, Luís Felipe Miguel (2002) argumenta que há uma incompa-
tibilidade entre a ideia de democracia como governo do povo e a ligada ao
processo eleitoral, visto que, na Grécia Antiga, como todos os cidadãos eram
iguais, as eleições não ocorriam, havendo, na verdade, sorteios. Somado a isso,
“as decisões políticas são tomadas por uma minoria, via de regra mais rica
e mais instruída do que os cidadãos comuns, e com forte tendência à here-
ditariedade” (MIGUEL, 2002, p.484). Assim sendo, o autor demonstra que
o fato de uma minoria tomar as decisões há uma grande incoerência com o
quê a palavra democracia carrega: uma forma de organização política em que
a igualdade potencial de todos os cidadãos faz com que esses coletivamente
decidem seus destinos (MIGUEL, 2002, p.484).
A ideia de democracia pautada em eleições periódicas é, portanto, bastante
limitada, pois a população, que exerce o direito ao voto de tempos em tempos,
apenas escolhe uma dentre as poucas opções que já foram pré-estabelecidas por
grupos políticos, tendo uma participação bastante restrita. Ademais, conforme
Luís Felipe Miguel (2000), há o problema da crise de legitimidade da represen-
tação política, que tanto está relacionada a casos de corrupção, como à descon-
fiança aos partidos políticos e aos parlamentos. Quanto a isso, afirma o autor:
Há, na esmagadora maioria dos parlamentos do mundo, uma parti-
cipação desproporcional de homens, integrantes da etnia dominante,

167
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

proprietários, com educação superior e renda maior do que a média.


Nunca foi diferente, e antes a disparidade era até maior: a novidade é
o crescimento das manifestações de descontentamento com a situação
(MIGUEL, 2000, p.70).

Dessa maneira, é evidente que há graves problemas com um modelo de


democracia pautado em eleições periódicas que elegem os representantes do
povo. Essa lógica está ligada ao modelo de democracia liberal, que tem como
algumas de suas características, a tripartição de poderes, representatividade,
igualdade formal e defesa pela liberdade, etc. O modelo liberal acarreta uma
despolitização, já que a população fica descrente com questões de sub-repre-
sentação, acarretando a crise de legitimidade supracitada e a apatia do povo
com a política. Nesse sentido, afirma Florestan Fernandes que “à democracia
liberal são inerentes limitações fundamentais, que redundam na sua incapa-
cidade de eliminar iniquidades sociais que são incompatíveis com a própria
democracia” (FERNANDES, 2008, p.167).
Ademais, entendendo-se que a democracia é uma forma de enfrentar
as estruturas opressoras, o modelo liberal é bastante limitador desse poten-
cial por minimizar a participação popular e não buscar a materialidade das
formalidades que defende. Nessa perspectiva, Florestan Fernandes (2008), em
Sociedade de classes e subdesenvolvimento, mesmo se tratando da realidade
brasileira, trouxe importantes observações acerca da importância da demo-
cracia enquanto central na luta anticapitalista. Afirma o autor que:
A instauração da democracia deve não só ser compreendida como o re-
quisito número um da “revolução burguesa”. Ela também será o único
freio possível a esta revolução. Sem que ela se dê, corremos o risco de ver
o capitalismo industrial gerar no Brasil formas de espoliação e iniquida-
des sociais tão chocantes, desumanas e degradantes como outras que se
elaboram em nosso passado agrário (FERNANDES, 2008, p. 167).

Essa discussão acerca da democracia é fundamental para uma melhor


compreensão do contexto de novas Constituições na América Latina. A Bolívia,
o Equador e a Venezuela “têm em comum o fato de terem passado por uma
ampla transformação institucional que em maior ou menor medida questionam
o modelo de democracia representativa clássico por meio da adoção de novas
constituições” (FLORES; CUNHA FILHO; COELHO, 2009, p.2). Nesse senti-

168
Marxismo e América Latina

do, as novas Cartas apresentam mecanismos de participação popular, como por


exemplo: revogação de mandatos, revogação/ratificação de leis; iniciativa de lei,
mecanismos de co-gestão, mecanismos populares de controle e prestação de
contas, mecanismos de representação ampliada, autonomia indígena e política
externa. Esses mecanismos de participação popular trouxeram novas perspec-
tivas para o debate da cidadania, conforme se lê:
Outra questão importante diz respeito à prática da cidadania na de-
mocracia. Usualmente, diz-se que esta é exercida primordialmente no
momento do voto, quando o cidadão pode escolher seu representan-
te. Essas novas possibilidades têm o potencial de radicalizar a práti-
ca cidadã, tornando-a não apenas restrita ao momento do voto, mas
também em um controle constante sobre as ações dos representantes,
conforme refletido nos mecanismos de co-gestão e controle e prestação
de contas (FLORES; CUNHA FILHO; COELHO, 2009, p.2).

Destarte, percebe-se que tais mecanismos de participação popular am-


pliaram a concepção de cidadania, comumente ligada ao ato de votar, fazen-
do com que o cidadão tenha mais participação na vida política. Desse modo,
passada a discussão acerca da democracia e de que forma tal debate está rela-
cionado com o contexto latino-americano, atenta-se agora para uma melhor
compreensão da Função Eleitoral, objeto deste artigo.
A Função eleitoral é de grande importância para um maior combate à
burocracia estatal, visto que é uma forma de tirar do judiciário as temáti-
cas eleitorais. Esse enfrentamento ocorre porque, historicamente, as classes
dominantes ocuparam os espaços de alto escalão da função judicial, assim
sendo, a Função eleitoral é uma quebra com a tripartição de poderes discutida
anteriormente. Desse modo, a fim de compreender a Função Eleitoral, será
feita uma análise focada nos textos constitucionais propriamente ditos. Para
facilitar a compreensão, serão realizados dois subtópicos, um em relação à
experiência boliviana e outro sobre a equatoriana.

3.1 A Função eleitoral na Bolívia


No artigo 12 da Constituição Política do Estado (CPE), está disposto que
“El Estado se organiza y estructura su poder público a través de los órganos Le-
gislativo, Ejecutivo, Judicial y Electoral. La organización del Estado está funda-

169
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

mentada en la independencia, separación, coordinación y cooperación de estos


órganos”. Nesse sentido, a Constituição, ao dizer que o Estado se organiza e se
estrutura não só através do legislativo, executivo e judiciário, mas, também, a
partir da Função Eleitoral, está havendo uma quebra com o modelo de tripar-
tição advindo das revoluções burguesas.
O artigo 205, o primeiro a se tratar exclusivamente das atribuições ao
órgão eleitoral, estabelece que este é composto por “El Tribunal Supremo Elec-
toral, los Tribunales Electorales Departamentales, los Juzgados Electorales, los
Jurados de las Mesas de sufrágio, los Notarios Electorales”. Tendo em vista a
divisão entre as atribuições do órgão eleitoral, é importante ressaltar que o
Tribunal Supremo Electoral tem jurisdição nacional devido à sua relevância,
bem como deve possuir sete membros, esses que devem ficar na função por
improrrogáveis seis anos, bem como no mínimo dois devem ser indígenas
originários campesinos.
A Constituição Política do Estado estabelece, também, como devem ser
eleitos os membros do Órgão eleitoral, “La Asamblea Legislativa Plurinacio-
nal, por dos tercios de votos de los miembros presentes, elegirá a seis de los
miembros del Órgano Electoral Plurinacional. La Presidenta o el Presidente del
Estado designará a uno de sus membros”. Ademais, estabelece a obrigatorieda-
de de convocação pública prévia dos candidatos, exigindo-se classificação de
capacidades e méritos.
O artigo 208, por sua vez, trata-se das funções do Tribunal Supremo Elec-
toral, que são organizar, executar, administrar as eleições e proclamar seus
resultados. Deve, também, assegurar que as eleições sejam efetivas, garantin-
do a equidade de gênero no processo eleitoral, a supervisão das eleições das
comunidades originárias, etc.
Além disso, conforme aponta o artigo 209 da nova Constituição boliviana,
as candidatas e candidatos a algum cargo público devem ser postuladas por meio
de organizações das nações e povos indígenas originários campesinos, agrupa-
ções de cidadãos e partidos políticos, desde que em igualdade de condições. Ou-
tros artigos deste capítulo focam na importância do caráter democrático das or-
ganizações políticas, devido a isso, estão sujeitos a fiscalização do Órgão Eleitoral.
Ademais, vale destacar que no artigo 211 permite aos povos originários elegerem
seus representantes de acordo com suas próprias formas de eleição.

170
Marxismo e América Latina

Conforme é perceptível após o que foi discutido, a Função Eleitoral na reali-


dade boliviana visa uma maior garantia do funcionamento das instâncias demo-
cráticas, facilitando a participação popular de todos os grupos, visto que respeita às
particularidades e métodos de todas as culturas que compõem o Estado boliviano.

3.2 A Função eleitoral no Equador


Após uma análise de como está a disposição constitucional da realidade
boliviana, passamos a análise da Carta equatoriana no que diz respeito à Fun-
ção Eleitoral. Em seu primeiro artigo, aponta a Constituição do Equador, que “el
Ecuador es un Estado constitucional de derechos y justicia, social, democrático,
soberano, independiente, unitario, intercultural, plurinacional y laico. Se organi-
za en forma de república y se gobierna de manera descentralizada.” Tal passagem
evidencia o caráter plurinacional e democrático da Carta equatoriana.
A Constituição equatoriana, também conhecida como Constituição de
Montecristi, em seu artigo 217 estabelece que “La Función Electoral garanti-
zará el ejercicio de los derechos políticos que se expresan através del sufragio,
así como los referentes a la organización política de la ciudadanía”. Dessa ma-
neira, a Função Eleitoral no Equador tanto deve garantir o pleno exercício
das eleições como à participação popular, apresentando similaridades com
a Constituição boliviana no sentido de também dispor sobre as questões de
temática eleitoral, que antes englobavam o judiciário.
A Carta do Equador apresenta na seção referente à Função Eleitoral al-
gumas questões mais técnicas, como por exemplo, que deve ser conformada
pelo Conselho Nacional Eleitoral e pelo Tribunal Contencioso Eleitoral, tra-
zendo seus critérios e características nos artigos 218 ao 224. Isso posto, con-
forme aponta o artigo 217, o Órgão eleitoral e as instituições que o conformam
“se regirán por principios de autonomía, independencia, publicidad, transpa-
rencia, equidad, interculturalidad, paridad de género, celeridad y probidade”.
Destarte, há uma importante delimitação de pautas que devem não apenas
serem respeitadas pela Função Eleitoral, mas introduzidas a sua atuação, fa-
vorecendo o fortalecimento da democracia.

171
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Assim sendo, na Constituição equatoriana, bem como na boliviana, a Fun-


ção eleitoral trouxe inovações ao dispor sobre as temáticas eleitorais, que antes
eram restritas à Função Judicial. Desse modo, necessita-se, neste momento, ave-
riguar se na prática essa modificação trouxe os avanços esperados ou não.

4. Avanços e contradições da função eleitoral nas


experiências bolivianas e equatorianas
Entre avanços e contradições, Equador e Bolívia vivem importantes mu-
danças em suas correlações de forças, principalmente nos dez anos de governo
de Rafael Correa (BOCCA, 2017), no primeiro caso, e com os já treze anos de
governo de Evo Morales no segundo. Ambos os países viveram profundas
transformações oriundas das lutas populares. Na Bolívia, o processo revo-
lucionário mudou sua estrutura social, sua estrutura estatal e a organização
econômica da sociedade (GARCÍA-LINERA, 2017, p. 355). No caso equatoria-
no, contra os 30 anos de políticas neoliberais, com enorme impacto na estabi-
lidade política, econômica e social em todas as estruturas do Estado.
Afinal, desde a fundação da República em 1830 até a posse de Correa em
2007, “o país teve 19 Constituições – a maioria oriunda de golpes de Estado –
e 84 presidentes, sendo apenas 43 deles eleitos democraticamente, além de 13
juntas de governos militares” (BOCCA, 2017). O atual presidente, Lênin Mo-
reno, que rompeu com as ideias de Correa, é o 44º presidente eleito por meio
de um processo democrático.
O movimento desencadeado pela chamada “Revolução Cidadã”136, prin-
cipalmente do ponto de vista das reformas do Estado, foi um marco em toda a
América Latina e Caribe. Consolidando o entendimento de que era necessário
desmontar as velhas estruturas para que um novo projeto de sociedade pudes-
se ser erguido, a Constituição de Montecristi realizou uma inédita repartição
das funções do Estado.
Seguindo o exemplo venezuelano e o caminho percorrido até ali pelo
governo boliviano, a Constituição equatoriana extraiu da função judicial tudo
aquilo que dizia respeito às questões eleitorais. Ora, era condição elementar

136 Projeto político que é representado por Rafael Correa, é a consigna adotada por seu governo.

172
Marxismo e América Latina

para enfrentar a resistência da burocracia de Estado, ocupada historicamente


por representantes das elites e classes dominantes, que as consultas populares
e a participação cidadã na tomada de decisões não ficassem condicionadas a
velocidade e as amarras do judiciário.
Para além disso, retirar da tutela do judiciário a função eleitoral, atribuin-
do a esta verdadeira condição de igualdade com as demais funções do Estado,
era fomentar uma sociedade participativa, que pudesse ser capaz de enxergar na
própria estrutura do Estado as condições materiais para sua atuação.
Na Constituição equatoriana, o disciplinamento da função eleitoral está
previsto no capítulo sexto do título quarto da Carta, em que é possível localizar
os órgãos responsáveis por seu exercício, sendo estes o Conselho Nacional Elei-
toral e o Tribunal Contencioso Eleitoral, ambos regidos por princípios como a
interculturalidade e a paridade de gênero em suas composições. Sobre o tema da
interculturalidade, que remete a questão da Constituição equatoriana trazer em
seu artigo 1º o reconhecimento do Estado como plurinacional e intercultural,
são elucidativas as palavras de Bocca, Mello e Berrón (2017, p. 35):
A Constituição de 2008 é a primeira no mundo a afirmar o conceito de
plurinacionalidade. Além da novidade em si – o reconhecimento das di-
ferentes nacionalidades indígenas, comunidades originárias e afrodes-
cendentes que se mantêm no país –, este termo representa uma ruptura
com a própria ideia de Estado sob os moldes capitalistas, em que toda
uma população é homogeneizada de maneira arbitrária a partir de sua
localização geográfica entre as fronteiras do Estado. A plurinacionalida-
de permite, portanto, não apenas o reconhecimento por parte do Estado
das diversas nacionalidades, como aos seus membros a possibilidade de
se identificarem socialmente não apenas como equatorianos, mas atra-
vés de sua herança originária (BOCCA, MELLO, BERRÓN, 2017, p. 35).

A Constituição boliviana de 2009 traz, já em seu preâmbulo e no artigo


1º, o reconhecimento daquele como um “Estado Unitário Social de Direito Plu-
rinacional Comunitário”. Esse reconhecimento, para a Bolívia, é também um
levante de classe, em que as classes trabalhadoras, especialmente os indígenas
camponeses, impuseram um projeto político. Ademais, é importante situar a
situação da Bolívia antes desse levante, em que até a eleição de Evo o país pos-
suía o mais baixo IDH da América Latina, com mais de 63% de sua população
economicamente ativa desempregada ou na informalidade.

173
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Outro traço particular da Bolívia é o grau de exclusão social e política em


que viveram, até recentemente, os indígenas e seus descendentes – 88% de-
les se encontravam na condição de pobreza. Não se trata apenas da imensa
desigualdade material entre ricos e pobres – traço comum a toda a América
Latina e à periferia do sistema capitalista de modo geral –, mas da negação
dos direitos formais de cidadania mais elementares (FUSER, 2016, p.13).

Nesse sentido, a Constituição boliviana dá uma dimensão concreta para


a ideia de plurinacionalidade. É neste tocante que a refundação do Estado bo-
liviano enfrenta as estruturas tradicionais do estado liberal. O Estado Plurina-
cional reside, para além das valiosíssimas disposições quanto à indianização
do Estado, no projeto político de transformar o Estado desde uma revolução
democrática em seu próprio interior (VALENÇA, 2017. p.48).
Destaca-se, nesse terreno, o estabelecimento de uma jurisdição indígena
originária camponesa, na qual a aplicação de leis emanadas da proprieda-
de comunidade, com base na tradição, é feita por suas próprias autoridades.
Como assinala Áurea Mota (2009, p. 148), o órgão eleitoral também passa
a ter composição plurinacional – das sete vagas que o compõem, duas são
reservadas para indígenas originários camponeses (FUSER, 2016, p. 96).

Indo além do posterior exemplo boliviano, a Constituição de Montecristi


deu forma e modelou uma nova função de Estado, com a chama “Função da
Transparência e Controle Social”. Já em seu caput, a função é apresentada afir-
mando que “o povo é o mandate e o primeiro fiscalizador do poder público,
no exercício de seu direito a participação”.
O objetivo desta função é o de promover e impulsionar o controle das
entidades e órgãos do setor público, intensificando o combate à corrupção.
Ele é formado por um Conselho de participação cidadã e controle social, uma
Defensoria do Povo e uma Controladoria Geral do Estado. A função da Trans-
parência e do controle social, assim, mantem intima ligação com a Função
eleitoral, uma vez que ambas complementam o sistema de participação.
Mas mesmo com estas profundas mudanças nas estruturas do Estado, ne-
nhuma das duas experiências escaparam de contradições importantes. Certa-
mente uma das principais, nos dois casos, diz respeito a relação com setores dos
movimentos sociais, com destaque para aqueles oriundos e vinculados a ques-
tão indígena. Nos dois casos, o centro da discussão passa pela ideia de bem viver,

174
Marxismo e América Latina

ou bom viver. Os dois governos erigiram grande parte de seus programas sobre
a noção de uma nova sociedade, na qual a natureza ocuparia lugar privilegiado.
A ideia do “Buen Vivir”, trazida ao horizonte da política equatoriana pelo
movimento indígena e por setores ambientalistas foi protagonista da
Constituição Cidadã e da estruturação do governo Correa. A noção da
natureza como sujeito de direitos, a crítica ao capitalismo, ao extrativismo
e à especulação neoliberal e uma proposta de desenvolvimento sustentável
ao país unificaram amplos setores da sociedade (da classe média às comu-
nidades indígenas) em um horizonte transformador (BOCCA, 2017).

Enquanto que na Bolívia, a presença indígena também foi o elemento


central que trouxe para o primeiro plano da agenda política e cultural o de-
bate sobre o bem viver. É justamente nesta área que os dois governos enfren-
taram profundas contradições. O debate em torno da necessidade de desen-
volver políticas de crescimento econômico e industrialização, com distribui-
ção de renda ao mesmo passo que se mantenha um alto grau de preservação
ambiental, evitando questões como o extrativismo e a exploração mineral,
provocaram nos dois países imensos problemas com os movimentos sociais.
Isso posto, é imprescindível destacar que a potencialização da participação
feminina, o reconhecimento do elemento plurinacional e os mecanismos de ação
institucional que a formação legal dada pelas constituições permitiu, assegurou
que muitas das vozes destoantes se projetassem a ponto de ocupar lugar em ou-
tras funções do Estado. Exemplo disso é o fato de que já em 2010, na Bolívia “um
número recorde de mulheres (50%) e de indígenas (40%) se tornou juízes e promo-
tores do Estado, como resultado do processo” (FUSER, 2016, p. 94).
Outro avanço visível está presente na Constituição equatoriana. Seu ar-
tigo 104 estabelece que a convocação de consultas populares é competência do
órgão eleitoral, bastando apenas uma prévia análise de constitucionalidade
por parte da Corte constitucional. Assim, a Função eleitoral do Estado passa a
responder de maneira quase vinculante as demandas populares, uma vez que
não se torna necessária nenhuma manifestação do órgão legislativo.
Além disso, o processo constitucional equatoriano foi bastante simplifi-
cado e a Constituição garante aos cidadãos que suas iniciativas ante o parla-
mento e outros órgãos sejam discutidas com celeridade, uma vez que o des-
cumprimento dos prazos para discussão de um projeto de lei de iniciativa

175
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

popular ocasiona a entrada em vigor daquela lei. E caso de trate de reforma


constitucional, a Função Eleitoral é acionada para que realize uma consulta
popular, na modalidade de referendo, para assegurar a efetividade da medida.

5. Considerações Finais
É perceptível, portanto, que o contexto de luta de classes na Bolívia e no
Equador propiciaram o surgimento de um projeto político que visava a proteção
de seus territórios e a defesa de necessidades vitais. Desse modo, as novas consti-
tuições são apenas uma das consequências da insurgência das classes subalternas.
A partir disso, as novas constituições da Bolívia (2009) e Equador (2008),
em certa medida, não seguem o modelo advindo das revoluções burguesas da
tripartição de poderes, esse tem como características os pesos e contrapesos
entre os poderes e materializa uma democracia de baixa intensidade, a liberal-
-representativa. Isso ocorre com o surgimento da Função eleitoral, que tira
do judiciário as questões referentes às eleições e à participação popular na
política. Tal fato ganha ainda mais importância ao levar em conta que, histo-
ricamente, quem ocupa espaços na Função Judicial são indivíduos das elites
ou pertencentes às classes dominantes.
Desse modo, as novas Cartas constitucionais, ao delimitarem a Função eleito-
ral, em certa medida rompem com a lógica de democracia restrita às eleições, con-
tendo mecanismos que favorecem a participação popular na política, bem como
contribuem para que haja uma maior participação política de mulheres e povos
originários. Nesse sentido, é imprescindível destacar que o sujeito que reconhece os
direitos indígenas é o sujeito indígena (GARCÍA-LÍNERA, 2017, p. 357), essa cons-
tatação é fundamental pois está relacionada ao fato de as Constituições terem uma
relação direta com o contexto das lutas populares na Bolívia e Equador.
Quanto aos avanços e contradições da Função eleitoral aqui em análise,
nota-se que há importantes avanços ao tirar as questões eleitorais do judici-
ário, favorecer uma maior participação da população na política, não sendo
essa restrita às eleições, bem como ao incentivar a participação feminina e
indígena na política. Contudo, é imprescindível ressaltar e compreender as
contradições nesse processo, que estão relacionadas a problemas do modo de
capitalista de produção e à luta em defesa do meio ambiente.

176
Marxismo e América Latina

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178
Políticas de transferência de renda na
América Latina: uma análise comparativa
entre a experiência brasileira e a boliviana

Nayara Katryne Pinheiro Serafim137


Gabriel Vinicius Jesus Maia Medeiros138

1. Introdução
O sistema capitalista impõe seus paradigmas de dominação das classes me-
nos favorecidas exercendo influência em diversos setores da sociedade, em espe-
cial o aparato das burocracias estatais, que representam espaços de disputa entre
os grupos de interesse pertencentes aos diversos segmentos sociais. Neste ínterim
a disputa entre os setores da sociedade para priorização de pautas referentes ao
atendimento de suas necessidades por parte do Estado, expõem os conflitos entre
as classes mais privilegiadas e menos favorecidas por espaço para a contemplação
de suas demandas por parte das políticas públicas formuladas pelo estado.
Na América latina o poder das classes dirigentes configurou-se de vá-
rias formas. Em especial, a partir das oligarquias familiares, que se caracteri-
zam pela ocupação de posições de destaque em setores econômicos e políticos
(AKOTIRENE, 2018; FERNANDES,1998). Tal característica está diretamente
vinculada ao processo de colonização do território, construído a partir da ex-
ploração massiva dos recursos naturais e da mão de obra dos trabalhadores
(ALMEIDA, 2018; FLEURY, 2007; PENA et al, 2015).
Assim, as desigualdades sociais não se restringem apenas ao caráter econô-
mico, também estão relacionadas aos elementos da trajetória histórica, cultural

137 Professora temporária na Universidade Federal Rural do Semiárido, mestra em Administração


(UFPB), graduada em Administração (UFERSA), pesquisadora no Grupo Estudos Críticos em
Direito Marxismos e América Latina. E-mail: naykatrynne@hotmail.com.
138 Graduando em Direito, pesquisador no Grupo Estudos Críticos em Direito Marxismos e América
Latina. E-mail: Gabriel.maiamedeiros@gmail.com.

179
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

e política, que contribuem para a transmissão das disparidades sociais de forma


intergeracional pela ausência de isonomia de oportunidades (ALMEIDA, 2018).
Com esse pano de fundo, a América Latina nas últimas décadas pre-
senciou um período de ascensão de governos progressistas que propuseram
implementar agendas voltadas para o combate das disparidades sociais. Desta
forma, a ocupação de espaços de poder estatal, anteriormente, em regra, res-
tritos apenas as classes mais favorecidas, representa um marco importante na
luta por uma sociedade mais justa (LINERA, 2018; PEÑA et al, 2015).
Neste texto, abordaremos a adoção das políticas de transferência de ren-
da implementadas no Brasil e na Bolívia, pelos governos progressistas do pre-
sidente Luiz Inácio Lula da Silva no período referente ao primeiro mandato, e
do presidente Evo Morales aos primeiros anos de governo. Ambos adotaram
agendas de governo e políticas de Estado voltadas para o combate das desi-
gualdades sociais e econômicas em todos os segmentos da sociedade.
A representatividade política é, por si, um elemento fundamental na
análise aqui pretendida. Luiz Inácio Lula da Silva é o primeiro operário a se
tornar presidente no Brasil. Evo Morales, por sua vez, é o primeiro indíge-
na ocupar o cargo de representação máxima no Estado boliviano. Os dois
rompem, assim, com a dinâmica de eleições sucessivas dos grupos hegemô-
nicos no cenário político de ambos os países (SILVA, 2007; HARVEY, 2011;
VALENÇA, 2017). Lula e Evo chegam à presidência do Brasil e da Bolívia em
momentos de crises econômicas intensificadas pelo longo período de adoção
de políticas neoliberais nos dois países. Os dois territórios partilhavam um
histórico abismo de desigualdades sociais, externalizado em vários aspectos,
onde se destaca a distorção de renda, provocando a manutenção da marginali-
zação e esquecimento estatal das classes trabalhadoras (FERNANDES, 1998;
SILVA, 2007; SUPLICY, 2007).
Neste estudo, nos debruçaremos sobre a temática relativa á implementa-
ção de politicas de transferência de renda no Brasil e na Bolívia, com o objeti-
vo de compreender a partir de uma perspectiva comparativa as modificações
apresentadas nos contextos após consolidação do Bono Juancito Pinto e do
Programa Bolsa Família.
Para possibilitar à compreensão em torno dos questionamentos relativos
aos contextos sociais caracterizados pelos altos índices de concentração de
renda e marginalização do acesso aos serviços públicos nos países da América

180
Marxismo e América Latina

Latina em particular Brasil e Bolívia. Optou-se pela utilização de uma aborda-


gem qualitativa e descritiva, com a realização de levantamentos bibliográficos
em portais digitais Capes, Scielo e Spell, nos quais constatou-se a centraliza-
ção das discussões em torno do contexto geral dos países latinos, como tam-
bém a consulta de documentos oficiais. E, por fim, como método de análise
de resultados, restringiu-se a análise de conteúdo dos documentos oficiais
referentes aos dados do Estado Plurinacional da Bolívia e do Brasil relativos
aos indicadores de evasão escolar, distribuição de renda e anos regulares na
escola com inferências em torno dos dados e avaliação dos seus impactos nos
cenários de melhora nos índices ou estabilização.
Para desenvolver nossa análise sobre o objeto, dividimos o texto em cin-
co sessões. No primeiro momento, evidenciamos os aspectos introdutórios do
tema, objetivos e elementos referentes aos procedimentos metodológicos. Na
sequência, o segundo tópico se centra nos debates em torno da historicidade
e conceitos relativos à implementação do Bono Juancito Pinto e do Programa
Bolsa Família. No terceiro momento, nos centramos na análise comparativa
entre as políticas e os seus contextos, ao que se segue a quarta sessão, onde
serão descritos aspectos relativos ao comparativo de dados entre ambos os
países. Encerramos o texto com as discussões em torno dos dados descritos e
realizamos reflexões e conclusões em torno do estudo.
O enfrentamento das disparidades sociais, de forma direta demanda
execuções de ações que possam contribuir na busca por uma distribuição de
renda mais justa entre as diversas classes, e da democratização do acesso à
serviços públicos básicos como saúde e educação (MONTEIRO, et al, 2010;
SUPLICY, 2007).

2.1 A Bolívia e o Bono Juancito Pinto


A economia boliviana possui como matriz econômica fundamental a ex-
ploração de seus recursos naturais em especial à exploração de gás natural e
as atividades do setor agrícola especializada na produção de insumos funda-
mentas em bases do setor primário. Ao assumir o governo em 2006, a gestão
do presidente Evo Morales iniciou um processo de reestruturação da política
econômica do país, direcionando os esforços para a retomada do controle da
economia e do protagonismo do estado na exploração das riquezas naturais.

181
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Dentre as principais ações priorizadas pelo presidente Evo, destaca-se o


processo referente à reestatização de empresas estratégicas que atuavam na
exploração dos recursos na região em especial hidrocarbonetos, que estavam
sobre a gestão da iniciativa privada com o intuito de captar recursos financei-
ros para o financiamento do aparato estatal.
Essa nova estratégia política residiu na ideia de utilizar a riqueza produzida
no país para a redistribuição de excedentes, não mais para o lucro das multinacio-
nais presentes em solo boliviano. Em contraposição ao modelo neoliberal desen-
volvido anteriormente, contexto em que ocorreu a crise do Estado em 2003. A na-
cionalização dos recursos foi uma parte essencial de uma política bem articulada,
que pretendeu a redistribuição do excedente econômico entre a população como
um todo. Valença (2018), cita o novo modelo de desenvolvimento:
Desde a modificação nos instrumentos de controle e exploração dos
hidrocarbonetos e a apropriação de seus excedentes, ocorreu uma rup-
tura da estruturação econômica da sociedade. Neste campo, voltou-se
para o desenvolvimento de políticas públicas com vistas a assegurar
direitos de cidadania e criação de um incipiente mercado interno, em
paralelo a uma política expansiva de inversão produtiva com fins de
criar um parque industrial mínimo para superar o modelo primário
exportador. (VALENÇA, 2018, p.115)

É nesse contexto social que surge o Plan Nacional de Desarrollo e nele


os programas de Bonos, numa perspectiva de utilizar esse excedente de renda
para auxiliar a população com o provimento de recursos para determinados
fins. O Estado passa a ser o acumulador e o distribuidor dos excedentes eco-
nômicos produzidos pelas empresas nacionalizadas, e também o fomentador
de um modelo comunitário de economia que não mais priorizaria somente o
lucro das empresas estrangeiras, mas sim o fortalecimento da economia na-
cional (VALENÇA, 2017, p.116).
Com a nacionalização dos hidrocarbonetos, o governo boliviano retirou
as multinacionais de exploração petrolíferas estrangeiras e passou o controle
para a estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB). E diversos
outros setores industriais passaram ao controle do Estado através de múltiplas
empresas nacionalizadas ou recém-criadas, tais como: Corporación Minera de
Bolívia – COMIBOL, a Empresa Nacional de Telecomunicaciones – Entel e a
Transportes Aéreos Bolivianos – TAB (VALENÇA, 2017, p.116).

182
Marxismo e América Latina

Diante disso, a reconstrução da soberania nacional por meio do retorno


do controle das estatais, possibilitou ao Estado um acréscimo no orçamento
público em função da exploração dos recursos naturais de forma que auxi-
liassem o crescimento e desenvolvimento econômico e social do país. Desta
forma a receita advinda dessas reestatizações em vários setores estratégicos,
proporcionou o aumento de investimentos do estado em políticas de enfren-
tamento às disparidades de renda e democratização do acesso aos serviços pú-
blicos, em especial o Bono Juancito Pinto, objeto de discussão neste capítulo.
O Bono Juancito Pinto foi instituído através do Decreto Supremo N°
28899, de 26 de outubro de 2006. Esse programa faz parte de um grupo de
ações de Transferências Monetárias Condicionadas (TMC) inseridas na Po-
lítica de Proteção Social e Desenvolvimento Integral Comunitário do Plano
Nacional de Desenvolvimento (PND) do Estado Plurinacional boliviano, que
tinha por objetivo a erradicação da pobreza extrema através de medidas es-
truturais e também imediatas. (Decreto Supremo N°28899 de 2006, Governo
do Estado Plurinacional da Bolívia. Disponível em: https://www.minedu.gob.
bo/files/ministerio-educacion/Creacion-Unidad-Ejecutora-DSN-28899.pdf.
Acesso em 15 de jul. de 2019.)
Os objetivos desse programa são relacionados ao acesso à educação, prin-
cipalmente em níveis primários. Para tentar evitar a perpetuação da pobreza
através de gerações, estimula-se o acesso à educação mediante percepção de
renda. Portanto, as metas incluem aumentar o número de crianças matricula-
das em unidades escolares e diminuir os índices de deserção. Como o citado
no Artigo segundo Decreto Supremo N° 28899:
ARTÍCULO 2.- (BONO JUANCITO PINTO). I. Se establece el Bono “Ju-
ancito Pinto”, como incentivo a la matriculación, permanencia y culmi-
nación del año escolar de los niños y niñas en los primeros cinco (5) años
de primaria, en las unidades educativas públicas de todo el territorio
nacional (Bolívia, 2006)

O aporte estatal ocorre a partir de uma transferência monetária, com o


intuito de auxiliar no custeio de ações e materiais relacionados ao processo
educacional. Desse modo, se reconhece que a educação não somente se limita
ao âmbito da sala de aula, mas também a diversos fatores externos que fa-

183
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

zem parte da realidade do aluno. Ainda no Artigo 2° do Decreto Supremo N°


28899, são estipulados os valores iniciais para o Bono:
II. El Bono tendrá un valor de Bs200.- (DOSCIENTOS 00/100 BOLI-
VIANOS) anuales y será entregado en dos cuotas, cada una de Bs100.-
(CIEN 00/100 BOLIVIANOS). El primer pago, será efectuado al inicio de
la gestión escolar y el segundo pago al cierre de esa gestión, de acuerdo a
los anuncios oficiales de la unidad ejecutora.(Bolívia, 2006)

A ação é executada pelo Ministerio de Educacion da Bolívia e com o apoio de


outras instituições governamentais. Esse valor anual deverá ser responsável por
cobrir despesas externas relacionadas ao acesso à educação por parte das crianças
bolivianas e assim agir de maneira a diminuir os índices de evasão escolar.
O financiamento para o Bono Juancito Pinto advém de fontes próprias
do Estado Plurinacional da Bolívia através principalmente de recursos gera-
dos pela exploração de petróleo e lucros de empresas nacionalizadas e novas
companhias estatais. No ano da criação do programa (2006), uma parte signi-
ficativa dos seus fundos vinha da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos
(YPFB) cujos lucros eram provenientes da nacionalização dos hidrocarbone-
tos pelo Estado. Portanto, os recursos gerados pelo Estado Plurinacional da
Bolívia através dessas empresas estatais se mostram necessários para o fun-
cionamento do programa. (Decreto Supremo N°28899 de 2006, Governo do
Estado Plurinacional da Bolívia. Disponível em: https://www.minedu.gob.
bo/files/ministerio-educacion/Creacion-Unidad-Ejecutora-DSN-28899.pdf.
Acesso em 15 de jul. de 2019.)
Uma vez que, o auxílio financeiro estava restrito aos alunos com idade li-
mite de até cinco anos, cursando o ciclo primário em uma escola pública, não
atendia a demanda superior de grandes quantidades de alunos que, mesmo
em situação de carência financeira, não se encontravam nos ciclos escolares
definidos pelo decreto original. Entretanto, algumas alterações legais rela-
cionadas aos grupos atendidos pelo programa foram desenvolvidas em 2007,
diante disso um número maior de alunos em diferentes faixas etárias passou
a ser atendido pelo abono financeiro de 200 Bolivianos (aproximadamente 28
dólares americanos, em câmbio de 2019).
Essas mudanças foram instituídas no Decreto Supremo N° 29321, de
24 de Outubro de 2007, que regula sobre o aumento da faixa etária atendida

184
Marxismo e América Latina

(Bolívia, 2007): “Se amplía los beneficiarios del Bono “Juancito Pinto” hasta el
sexto (6to) de primaria, incluidos los alumnos de Educación Especial y los niños
o niñas de Educación Juvenil Alternativa”. Redefine uma nova regra sobre o
pagamento do auxílio, que no momento passa a ser feito em apenas uma par-
cela, não mais em duas parcelas como previa o decreto anterior.
O Decreto N° 29321 dispõe em seu artigo 5° sobre as “Responsabilidades
de la Unidad Ejecutora”, ou seja, sobre as regras que deveriam ser seguidas
pela execução do programa. Um dos pontos desse artigo está relacionado à
necessidade de se criar mecanismos para efetuar o pagamento do Bono. Dis-
põe-se também sobre a elaboração e atualização de uma base de dados com os
usuários do programa. O texto cita a necessidade de se criar uma equipe téc-
nica interinstitucional, com membros do Ministério da Presidência, Ministé-
rio da Defesa Nacional, Ministério da Justiça, Ministério do Planejamento do
Desenvolvimento e do Ministério da Fazenda.
A remuneração do auxílio é feita a um responsável legal, já que (com
exceção dos estudantes de Centros de Educação Especial) os beneficiários do
programa são menores de 18 anos, no entanto, estes precisam estar presentes
no momento do pagamento. E, para se encaixar como beneficiário, o aluno
precisa obter uma frequência regular de pelo menos 80% de suas aulas du-
rante o ano letivo. Dessa forma, o programa exige um retorno por parte dos
usuários, que precisam manter regularidade em sua frequência escolar para
se tornarem aptos ao Bono.
No ano de 2018, segundo o Ministerio de Educación del Estado Plurina-
cional de Bolivia139 o orçamento utilizado para o pagamento do Bono Juancito
Pinto (461.000.000,00 bolivianos) advém da receita de estatais; não havendo
a necessidade de se recorrer aos recursos do Tesouro Nacional. E, desse or-
çamento, 47,72% (220.000.000 bolivianos) veio da Yacimientos Petrolíferos
Fiscales Bolivianos – YPFB, estatal responsável pela exploração do petróleo,
21.69% (100.000.000 bolivianos) da Empresa Nacional de Telecomunicaciones
– ENTEL e o restante dividido entre múltiplas empresas nacionalizadas.

139 Cf. Ministério da Educação, Governo do Estado Plurinacional da Bolívia. Disponível em: https://
www.minedu.gob.bo/index.php?option=com_content&view=article&id=3506&catid=246&Item
id=470. Acesso em: 16 de jul. de 2019.

185
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Portanto, o financiamento para esses programas sociais advém exclusiva-


mente dos recursos produzidos por empresas nacionalizadas ou criadas pelo
estado; sem depender de tributação estatal sobre particulares. Sendo assim, as
companhias bolivianas geram dinheiro que é reinvestido em programas sociais
para a população; sem gerar carga tributária para os cidadãos bolivianos.

2.2 O Brasil e o Programa Bolsa Família (PBF)


A historicidade da formação social e do Estado brasileiro carregam ele-
mentos econômicos, políticos, que somados aos aspectos culturais contri-
buem para a manutenção de um contexto caraterizado por altos índices de
concentração de renda. E da permanência de frações da classe trabalhadora
marginalizada, em especial a população negra e o seu predomínio nas zonas
periféricas (IBGE,2010).
O predomínio dos indivíduos de pele negra nas periferias carrega con-
sigo o aspecto geracional relativo a séculos de escravidão e da ausência de
equidade de oportunidades, como também da postura de marginalização por
parte do estado, decorrente do caráter de racismo institucional e dos elemen-
tos estruturais (ALMEIDA, 2018).
As sucessões de governos com agendas prioritárias voltadas para as clas-
ses mais favorecidas retardaram por um longo período de tempo, o atendi-
mento das demandas de cunho social que não foram priorizadas pelo estado,
ocorrendo apenas por iniciativas isoladas ainda por atuação de instituições
da sociedade civil em uma perspectiva filantrópica. Apenas no final do século
XX, foram acolhidas pelo estado como demandas legitimas de sua atuação.
Na virada do século XX, políticas de transferência de renda condicionadas
ganharam particular relevância na agenda nacional, quando nasceram os
Programas de Erradicação do Trabalho Infantil, Bolsa Escola, Bolsa Ali-
mentação, entre outros. Estas políticas sociais tinham dois objetivos cen-
trais: o alívio da pobreza no curto prazo e o combate a sua transmissão in-
tergeracional. Tendo como alvo a parcela mais empobrecida da população
brasileira, esses benefícios exigiam contrapartidas consistentes, principal-
mente quanto à frequência escolar mínima de 85% no ano para crianças
de 6 a 15 anos, aleitamento materno, exames pré-natais para gestantes e
vacinação das crianças (PEÑA et al, 2015, p. 2).

186
Marxismo e América Latina

No ano de 2003 o governo Lula lançou um pacote de medidas relacio-


nadas ao enfrentamento da pobreza extrema com a reformulação e ampliação
dos programas sociais existentes, com a perspectiva de atuar a partir de um
panorama intersetorial. Deste modo, as ações estavam focalizadas na formu-
lação e execução de políticas públicas de compensação social que possibilitas-
sem uma atuação mais ampla por parte do Estado.
Para essa transformação na forma de gestão e aplicação dos programas
sociais, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)
optou pela aglutinação dos programas sociais existentes com a implementa-
ção do Programa Bolsa Família (PBF), agrupando todas as políticas que conti-
nham algum tipo de compensação monetária concedidas as famílias em con-
dição de extrema pobreza, tendo como público alvo crianças e adolescentes
(PEÑA et al,2015).
Portanto, com essa ação conjunta dos diversos programas sociais soma-
dos a transferência de renda possibilitaria um impacto mais direto na utiliza-
ção dos recursos e no acompanhamento das diversas esferas em nível estadu-
al, federal e municipal como disposto na lei nº 10.836 que determina a criação
do Bolsa Família. Dessa maneira, previa os artigos primeiro e segundo:
Art. 1o Fica criado, no âmbito da Presidência da República, o Progra-
ma Bolsa Família, destinado às ações de transferência de renda com
condicionalidades.
Parágrafo único. O Programa de que trata o caput tem por finalidade a
unificação dos procedimentos de gestão e execução das ações de trans-
ferência de renda do Governo Federal, especialmente as do Programa
Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação - Bolsa Escola, ins-
tituído pela Lei nº 10.219, de 11 de abril de 2001, do Programa Nacional
de Acesso à Alimentação - PNAA, criado pela Lei n o 10.689, de 13 de
junho de 2003, do Programa Nacional de Renda Mínima vinculada
à Saúde - Bolsa Alimentação, instituído pela  Medida Provisória n o
2.206-1, de 6 de setembro de 2001, do Programa Auxílio-Gás, instituí-
do pelo Decreto nº 4.102, de 24 de janeiro de 2002, e do Cadastramento
Único do Governo Federal, instituído pelo Decreto nº 3.877, de 24 de
julho de 2001.”( BRASIL,2004).
Art. 2o Constituem benefícios financeiros do Programa, observado o
disposto em regulamento:
I -  o benefício básico, destinado a unidades familiares que se encon-
trem em situação de extrema pobreza;

187
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

  II - o benefício variável, destinado a unidades familiares que se en-


contrem em situação de pobreza e extrema pobreza e que tenham em
sua composição gestantes, nutrizes, crianças entre 0 (zero) e 12 (doze)
anos ou adolescentes até 15 (quinze) anos, sendo pago até o limite de 5
(cinco) benefícios por família;                      
III  -  o benefício variável, vinculado ao adolescente, destinado a uni-
dades familiares que se encontrem em situação de pobreza ou extre-
ma pobreza e que tenham em sua composição adolescentes com idade
entre 16 (dezesseis) e 17 (dezessete) anos, sendo pago até o limite de 2
(dois) benefícios por família.

O caráter de atuação intersetorial torna-se mais evidente nos incisos do


artigo 3, que impõe condições de comparecimento ao regime escolar regular de
frequência mínima de 85%, realização do pré-natal para as gestantes e acompa-
nhamento nutricional e da saúde com a vacinação regular (BRASIL, 2004). Esse
caráter de execução integrada reformulou a forma como o estado desempenha
suas demandas no gerenciamento e acompanhamento das políticas públicas
com demanda social em especial as relacionadas ao combate de desigualdades e
da concentração de renda (MONTEIRO et al, 2010; PENÃ,2015).
Para tanto a busca por justiça social perpassa a isonomia de oportunida-
des como um elemento central que auxilia no combate massivo das desigual-
dades sociais e nos abismos relativos aos altos níveis de concentração de ren-
da. Neste cenário, o Programa Bolsa Família representa uma das ações mais
agressivas já executadas pelo Estado brasileiro no enfretamento às disparida-
des de renda e de oportunidades fortalecidas pelos aspectos intergeracionais
enraizados em nossa história.

3. Os indicadores de avanços sociais


do Bono Juancito Pinto na Bolívia
Um dos pontos a se discutir em relação a políticas de transferência de
renda diz respeito ao valor monetário instituído para esse suporte financeiro.
Segundo a análise de (PARDO, 2010; UDAPE, 2011) presente no relatório da
Comisión Económica para América Latina y el Caribe, o valor médio anual gasto
com a educação primária por uma família boliviana que vive em área urbana é

188
Marxismo e América Latina

de cerca de 375 Bolivianos. Tal valor representa uma quantia exponencialmente


superior aos 200 Bolivianos da Bono Juancito Pinto, que, nesse cenário, repre-
senta uma cobertura de 53% dos custos anuais investidos na educação infantil.
Isto posto, esta análise também apresenta a média dos custos educacio-
nais com a educação primária para famílias de área rural, que é de aproxi-
madamente 171 Bolivianos. Portanto, o valor da Bono se adequa melhor a
realidade de famílias que não se encontram em centros urbanos. Porém, mes-
mo não representando o valor total referente aos gastos, essa política pública
ainda é essencial no sentido de diminuir a taxa de deserção escolar. Mas, há
necessidade de se discutir o valor anual de 200 Bolivianos do Juancito Pinto,
e sua possível atualização para que possa atender de forma mais completa as
necessidades da população urbana.
Na pesquisa desenvolvida por Flavia Marco Navarro, Consultora de la
División de Desarrolo Social de la Comisión Económica para América Latina
y el Caribe (CEPAL), são citados os efeitos do Bono na assistência estudantil e
também seus impactos na deserção escolar. As questões relacionadas ao nú-
mero de matrículas ainda estão em discussão.
A pesquisa desenvolvida pelo CEPAL se utiliza de dados estatísticos e
também de relatos de alunos e funcionários de unidades escolares bolivianas.
Nela, é citado (CEPAL, 2012) que os destinatários valorizam o Bono e este
é percebido como uma ajuda por parte do Estado. É relatado também que
o dinheiro recebido do programa nem sempre é utilizado para a compra de
materiais relacionados ao uso escolar, o que mostra que esse auxílio também é
utilizado para o atendimento de necessidades mais básicas da população. Esse
Bono, junto com as demais Bono criadas pelo governo boliviano, age de forma
a suprir carências vinculadas a pobreza.
O Bono Juancito Pinto é reconhecido como eficiente, na pesquisa realizada
pelo CEPAL tanto os relatos de alunos e docentes quanto as pesquisas estatís-
ticas apontaram para esse resultado. Apesar disso, algumas dificuldades rela-
cionadas ao acesso são relatadas referentes a cobertura do programa, que ainda
não atinge todas as faixas etárias escolares, como o citado no próprio relatório:
Entre las insuficiencias del programa se identifica el monto de la pres-
tación y los grados cubiertos por el mismo, puesto que están excluidos el
nivel inicial, que tiene una escasísima cobertura escolar, y cuatro grados
de secundaria, nivel en que hay una importante deserción y en el que los

189
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

y las adolescentes tienen mayores gastos en los útiles escolares, que en


algunos casos afrontan con un trabajo remunerado (CEPAL, 2012, p.7)

Nesta conjuntura, os discentes que não são contemplados pelo programa em


decorrência dos requisitos restritivos do Bono, e estão em condição de vulnerabi-
lidade social, necessitam se dividir entre as tarefas desenvolvidas em atividades
laborais que asseguram a sua sobrevivência e a escola. Como já foi mencionado
anteriormente, vários alunos responderam, durante a pesquisa do CEPAL, que o
dinheiro advindo do Bono não se destinava apenas à compra de material escolar, e
sim para utilização do custeio de despesas básicas das famílias. Portanto, o papel
do Bono na diminuição do impacto das disparidades sociais, no entanto estava
muito além da permanência das crianças na escola e representava o acesso aos
recursos mínimos para a subsistência de um núcleo familiar.
Entretanto, mesmo com os problemas relatados na pesquisa, os dados es-
tatísticos apontam para uma redução da deserção em algumas faixas etárias,
demostrando o êxito do programa, em uma área essencial e necessária de sua
realização. Essa redução auxilia na diminuição da transferência intergeracio-
nal da pobreza, que se perpetua através da falta de isonomia de oportunidades
dos grupos menos favorecidos da população que se encontram em situação
vulnerabilidade social e seus descendentes.
O Gráfico “Tasa de deserción en primaria de población de 6 a 12 años, según
recepción del Bono Juancito Pinto y área de residencia, años 2004 y 2007”, desen-
volvido pela División de Desarrollo Social da CEPAL, apresenta comparações en-
tre os índices de deserção escolar nacional na faixa etária dos 6 a 12 anos nos anos
de 2004 e 2007 (após a implantação da Bono Juancito Pinto, criada em 2006) nas
áreas urbana e rural e também entre quem recebe ou não o auxílio do Estado.
De acordo com essas informações (CEPAL, 2012), no ano de 2004, o ín-
dice de deserção nessa faixa etária representava um total de 1,85% na zona
urbana e na zona rural o índice era de 2,41%.Por conseguinte no ano de 2007,
é notória a melhoria nos índices, a média nacional geral nessa faixa etária
(incluindo quem recebe ou não o Bono) em todo o país era de 0,78% e mais
especificamente no ambiente rural era de 1,6%, evidenciando a redução signi-
ficativa nesses índices após a implementação da politica do Bono em compa-
ração ao ano de 2004.

190
Marxismo e América Latina

3.2 Os indicadores sociais do Bolsa Família no Brasil


As disparidades sociais estão associadas a questões econômicas, finan-
ceiras e culturais, que assombram o país com a manutenção de péssimos índi-
ces relativos ao acesso a serviços públicos, distribuição de renda e grupos em
situação de extrema pobreza. Este caráter das disparidades reforça a necessi-
dade de realização de ações de forma integrada que possam gerar impacto em
diversas demandas sociais.
Para tanto, a integração proposta pelo Bolsa Família representou uma
política de enfretamento das desigualdades sociais que possui um aspecto
integrador em consonância com as especificidades do contexto brasileiro de
intensa desigualdade e concentração de riquezas.
Neste contexto, nos primeiros anos de atuação do programa, verificou-se
uma mudança nos número relativos ao aumento da frequência escolar entre
crianças entre 7 e 14 anos de idade, como demonstra a tabela abaixo:
Frequência escolar entre crianças 7 a 14 anos

Fonte: elaborada pelos autores, IPEA, 2019.

O Programa Bolsa Família foi criado e implementado entre os anos de


2003 e 2004, e nos anos seguintes os dados já demonstravam alterações nos
índices de frequência escolar, em decorrência dos critérios básicos relativos
a frequência atribuída nos critérios de acesso ao programa, consolidando ao
longo dos anos os padrões de democratização do acesso à educação e do com-
bate à evasão escolar advinda da execução de atividades laborais para auxílio
na sobrevivência familiar.
Pobreza Número de Domicílios Extremamente Pobres no Brasil

Fonte: elaborada pelos autores, IPEA,2019.

191
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Outro indicador relevante, diz respeito a melhora nos índices relativos a


famílias em situação de extrema pobreza no país, que sofreram alterações signi-
ficativas em relação aos anos anteriores a implementação do programa. A partir
do ano seguinte a implementação do Bolsa Família, já se mostrava evidente a
melhora nos índices relativo à domicílios que saíram da situação de pobreza
extrema no país, demonstrando o impacto imediato do PBF na redistribuição
de renda por meio do fomento de política sociais de transferência de renda.
Razão entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres

Fonte: elaborada pelos autores, IPEA, 2019.

Ademais, outro fator de relevância quanto à aplicação da política de transfe-


rência de renda é o fator relativo à razão entre os 10% mais ricos da população e os
40% mais pobres. Os dados demonstram uma melhora expressiva nos números
relativos à concentração de renda, considerando o cenário de décadas sem uma
intervenção estatal de forma mais abrangente e direta no enfrentamento das dis-
paridades de renda e o pouco tempo de implementação da política.
Portanto, o Programa Bolsa Família representa um grande avanço na atuação
do estado no enfrentamento das desigualdades sociais e na melhoria dos níveis de
distribuição de renda, a partir da democratização do acesso aos serviços públicos
por meio da educação e de resguardar os direitos sociais de uma nação marcada
pelo abandono do poder público em relação às demandas sociais, impostos pelo
predomínio das classes mais favorecidas no comando da burocracia estatal.

4. Considerações finais
As políticas públicas direcionadas a transferência de renda em contextos
de alta vulnerabilidade social como os existentes na América Latina. Em desta-
que, as experiências na execução do Programa Bolsa Família no Brasil e do con-
junto de Bonos que integram os programas sociais implementados pelo estado
boliviano. Em particular o objeto deste estudo o Bono Juancito Pinto, representa
um marco nas ações de combate a pobreza e as desigualdades sociais na região.

192
Marxismo e América Latina

Para tanto, os programas de transferência de renda criados pelo governo


boliviano e brasileiro foram estruturados de formas distintas. O Bono Juanci-
to Pinto é específico para a educação, tendo como foco principal possibilitar
o acesso à escola e a permanência dos discentes. Enquanto, o Bolsa Família,
é um programa mais amplo e com diversas subdivisões e um aspecto setorial
integrador voltado para a democratização do acesso à educação e saúde alia-
dos ao enfrentamento dos níveis de extrema pobreza.
Outro fator está relacionado ao monitoramento por parte dos Estados
boliviano e brasileiro dos impactos das ações fomentadas pelos programas,
tendo os Bonos atuação de forma independente dificultando a reunião de in-
formações entre si e a oferta de dados em portais oficiais do Estado Pluri-
nacional da Bolívia é limitada. Diante disso, no Bolsa Família, a oferta de
informações é mais ampla, inclusive em relação a comparação de índices re-
lacionados aos diversos setores de atuação do programa possibilitando uma
visualização mais eficaz dos impactos produzidos com a implantação das
políticas de transferência de renda associadas à democratização do acesso à
educação em decorrência do seu caráter integrador.
Destaca-se que ambos os programas o Bono e o Bolsa Família possuem
semelhanças relativas ao público alvo das ações e seus objetivos relativos a me-
lhoria nos níveis de pobreza extrema da população, com foco na permanência
das crianças em idade escolar atuando no combate à evasão escolar decorren-
te da realização de atividades de trabalho infantil. Portanto, seus objetivos
contemplam elementos que contribuem para o enfretamento da problemática
da transferência intergeracional da pobreza.
Com base nas discussões e nos dados descritos no texto é notória a con-
tribuição do Bono Juancito Pinto e do Programa Bolsa Família na melhoria dos
indicadores sociais referentes à evasão escolar e aos índices de concentração
de renda. É importante ressaltar que os avanços são relevantes na aplicação do
Bono Juancito Pinto e do Bolsa Família, e que ainda necessitam de outras ações
para que esses contextos continuem sendo modificados. Tendo em vista da
complexidade dos elementos culturais, históricos e econômicos presentes nos
cenários reforçados pela lógica do sistema capitalista. Como também a atuação
do estado como uma ferramenta de promoção da seguridade social não implica
em prejuízos de ordem econômica para os demais setores da economia.

193
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Os resultados dispostos nos debates realizados ao longo do texto, apesar


de relevantes limitam-se em torno ao estudo isolado do Bono Juancito Pinto,
tendo os programas dos Bonos uma variedade de setores de atuação, que em
estudos futuros poderão denotar uma relação mais completa de elementos de
comparação com os cenários apresentados após a consolidação do Programa
Bolsa Família e demais atividades relativas a políticas sociais no geral.

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195
Questão Agrária na Bolívia: a tessitura
de novos consensos hegemônicos

luan Fonseca Araújo140


Afonso Falcão de Almeida Filho141
Douglas Diógenes Holanda de Souza142

1. Introdução
Os avanços e acirramentos da luta de classes na América Latina, em países
como a Bolívia por exemplo, refletiram em mudanças na organização política
dos Estados do continente no final do século XX. Nesse sentido, o conjunto da
classe trabalhadora avançou na sua organização. A consequência desse movi-
mento é a conquista de muitos mecanismos de representação das classes su-
perexploradas143, como os institucionais. Diante disso, o Estado boliviano vem
se destacando com seu novo modelo constitucional por trazer novas garantias
para os trabalhadores. Nesse cenário, o Novo Constitucionalismo Latino-Ame-
ricano apresenta-se como um processo advindo da luta de classes.
Nesse sentido, o presente trabalho visa o estudo sobre a questão agrária
na Bolívia, pois o processo que se deu de restruturação agrária e reformula-
ção do Estado se mostram importantes para o debate sobre as contradições
presentes dentro da América Latina. O estudo se dividirá em dois momentos:

140 Acadêmico de Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido, UFERSA, membro do Grupo de
Estudo em Direito Crítico, Marxismo e América Latina, GEDIC, <luanfonseca53@gmail.com>.
141 Acadêmico de Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido, UFERSA, membro do Grupo de
Estudo em Direito Crítico, Marxismo e América Latina, GEDIC, <afonsofalcao12@gmail.com>.
142 Acadêmico de Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido, UFERSA, membro do Grupo de
Estudo em Direito Crítico, Marxismo e América Latina, GEDIC, <douglasdiogenes144@gmail.com>.
143 “Pois bem, os três mecanismos identificados – a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada
de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de
trabalho - configuram um modo de produção fundado exclusivamente na maior exploração do
trabalhador, e não no desenvolvimento das suas forças produtivas na economia latino-americana,
mas também com os tipos de atividades que ali se realizam” (MARINI, 2005, P. 156).

197
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

pós Revolução de 1952 e pós-Constituição Política de Estado – CPE de 2009.


Assim, buscamos compreender os avanços e limitações sociais e jurídicas,
buscando compreender as mudanças na concentração de terras e em que me-
dida isso alterou a vida dos camponeses e indígenas da Bolívia. Além disso,
no tocante aos avanços jurídicos levar-se-á em consideração suas limitações,
compreendendo o debate sobre igualdade formal no modo de produção capi-
talista, bem como a questão do Direito como instrumento de limite e controle
social, no sentido de manutenção da ordem.
Para a consecução dos objetivos, nos amparamos, prioritariamente, em
análise de dados, bibliográfica e documental, a partir da teoria marxista e
marxiana. Com isso, utilizamos uma abordagem qualitativa, amparada no
método materialista histórico. Para isso, o trabalho está organizado de modo
a, no primeiro momento, analisar os principais limites e contradições da Re-
forma Agrária de 1953, buscando deixar nítida a importância dos movimentos
sociais e sindical para a consolidação dessa. Em seguida, estudar a formação
agrária da Bolívia, bem como a mudança na correlação de forças entre explo-
rados e exploradores da força de trabalho e no interior da sociedade boliviana.
Logo em seguida, entender as limitações do direito e os principais impasses
que há hoje para a expansão e consolidação da reforma agrária após Consti-
tuição do Estado Plurinacional da Bolívia.

2. A Reforma Agrária de 1953


A Reforma Agrária na América Latina se configura como uma reivindi-
cação histórica dos movimentos sociais dos trabalhadores. Assim, o avanço das
lutas dos camponeses no século XX, na Bolívia, acentuou o debate político e eco-
nômico sobre o uso coletivo da terra, contrariando o sistema de latifúndio, tam-
bém chamado de hacienda144 (MOTA, 2012). Nesse sentido, a Reforma Agrária
de 1953 na Bolívia foi resultado direto da Revolução nacionalista de 1952, que
trazia como pautas a nacionalização das minas, reforma agrária e voto univer-
sal. Para Valença (2017), a revolução foi conduzida política e ideologicamente

144 Para Costa Neto (2005), as haciendas eram propriedades de 8.137 latifundiários e ocupavam uma
área de 12.701.076 hectares com sistema de produção baseado na imposição da prestação de serviços
e trabalhos pessoais ao produtor.

198
Marxismo e América Latina

pela pequena burguesia, porém o período pré-revolucionário e a Revolução de


1952 provocaram novas configurações de classe, organização e identidade.
No lapso temporal do século XIX até a reforma agrária de 1953, a Bolívia
teve sua estrutura agrária caracterizada pela contínua ampliação do sistema
de grandes propriedades e sua base econômica era dividida em três susten-
táculos: a mineração de estanho no Oeste do país, a economia da borracha
no Norte e a exploração de petróleo e gás natural na região Sudeste (COSTA
NETO, 2005). A atividade mineradora foi a que mais se destacou, influencian-
do um enorme movimento migratório de populações camponesas e indígenas
para os centros mineiros. Isso fez com que a atividade agrícola fosse colocada
em segundo plano (GIMENEZ, 2014). Diante disso, o setor econômico bo-
liviano teve na produção do estanho sua principal atividade econômica e a
hacienda como sua modalidade de organização da produção.
Até a reforma, conviveram, na estrutura fundiária da Bolívia, três mo-
dalidades distintas: as haciendas, as comunidades indígenas e a produção par-
celária, sendo que a considerada mais hegemônica foi a hacienda. Além de se
expandir para as melhores terras, ela se mostrou como o regime de proprie-
dade mais influente econômica e politicamente, pois introduziu, na relação
de mão de obra, um controle de regime de colonato, que permitia a obtenção
de formas diferenciadas de renda tributária de acordo com as condições espe-
cíficas das regiões. A comunidade indígena, por sua vez, partia do princípio
da reciprocidade e da participação coletiva no trabalho na terra, resgatando
características das tradições andinas, e a produção parcelaria se caracterizava
pela utilização da terra precária em troca de renda em trabalho ou renda em
dinheiro (GIMENEZ, 2014).
Nesse cenário, é importante lembrar que a crise internacional do capi-
talismo em 1930 abalou a situação econômica do país, porque a mineração
dependia de investimentos do capital internacional. Além disso, no âmbito
regional, o confronto em Chaco145 intensificou uma crise econômica que já
havia estourado com a situação internacional de 1930. A partir disso, Cunha
Filho (2014) afirma que muitos bolivianos traziam novas ideias e visões acerca
do país e suas injustiças ao voltarem do conflito do Chaco e que a constru-

145 Segundo Cunha Filho (2014), a Guerra do Chaco (1932-1935) foi um conflito armado do país contra
o Paraguai que resultou na perda da região do Chaco Boreal.

199
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

ção dos trabalhadores como atores políticos fundamentais teria seu ápice na
Revolução de 1952. Por isso, no ano de 1940 começam a ascender, dentro do
campo político do Estado, partidos de esquerda e de centro esquerda. Surgem
então, o Partido de Esquerda Revolucionário (PIR), Partido Operário Revolu-
cionário (POR) e o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). Poucos
dias depois da Revolução surge a Central Obrera Boliviana (COB).
O MNR, o partido com maior base social entre as classes médias urbanas,
se lança à presidência do país em 1951. Em seu plano de governo, a nacionali-
zação das minas, reforma agrária e voto universal eram pontuados. A situa-
ção política, entretanto, entra em uma forte crise quando se percebe a fraude
acompanhada de um golpe militar a fim de impedir a posse o MNR do poder.
Ou seja, os militares tentam controlar a situação, entretanto, a pressão popular
e a dissidência interna levaram à insurreição, que se transformou em uma re-
volução nacional-popular em abril de 1952 (COSTA NETO, 2005). O partido
tratava a questão da reforma agrária sobre o prisma da qualidade técnica de
agricultura, concentrando-se em mudanças tecnológicas, assim, de acordo com
os estudos de Mota (2012), havia uma correlação de forças dispostas a avançar
com a pauta da reforma agrária como um dos pilares da revolução boliviana.
A proposta de Reforma Agrária se mostrou, portanto, como consenso
entre as lideranças do partido, porém estavam sobre a ótica da modernização
da agricultura, não incidindo de forma radical sobre a concentração de terras.
O governo, por exemplo, divulgava medidas relativas às condições de trabalho
no campo e à produtividade a fim de conseguir ganhar tempo para convencer
os grandes proprietários de terras que havia a necessidade de modernização,
entretanto não deixava nítida sua pretensão de confiscar a propriedade lati-
fundiária da terra (COSTA NETO, 2005). Assim, as sublevações no campo au-
mentavam e a reforma agrária se tornava cada vez mais inevitável e os saques
às propriedades agrárias e às ocupações de terras eram lideradas por setores
da esquerda, como a COB e o POR. Diante disso, o grupo governista do MNR
toma a decisão de agir contra esses levantes a fim de acalmar os ânimos no
campo, porém, ao tentar reprimir os revoltosos, o governo acabou por aumen-
tar o descontentamento dos camponeses com a sua administração.
Nesse sentido, a ação repressora do governo não levou em consideração
dois aspectos: o seu distanciamento das bases camponesas, que almejavam a
revolução agrária expropriadora (nacionalização da terra sem indenização) e

200
Marxismo e América Latina

os interesses dos ativistas sindicais que se encontravam dentro do governo,


como o Ministro dos assuntos camponeses Ñuflo Chaves (Costa Neto, 2005).
Logo, a tentativa do grupo governista do MNR de se manter vivo após a tática
equivocada de atacar os levantes foi a apresentação de uma declaração favo-
rável à reforma agrária pelo ministro Chaves. Para conseguir se reaproximar
das massas camponesas, portanto, Chaves e a esquerda do MNR legalizaram
os sindicatos rurais e se comprometeram com a Reforma Agrária com os cam-
poneses (GIMENEZ, 2014).
Dentro dos debates, saíram duas propostas: o Plano Urquidi e uma re-
solução conjunta COB/POR. O primeiro garantiu que o latifundiário ficaria
nas mesmas terras antes da reforma, mas na condição de médio proprietário.
Dessa forma, caberia às autoridades as distribuições da terra e delimitar qual
parte ficaria com o proprietário (COSTA NETO, 2005). Já a proposta da COB
previa a nacionalização da terra com a entrega direta às organizações campo-
nesas, ou seja, previa uma transição para um sistema de produção coletivo,
buscando se aproximar da forma organizativa dos indígenas originários da
Bolívia (GIMENEZ, 2014). Contudo, o Plano Urquidi foi bem recebido pelo
MNR, provocando, assim, a sua sanção. Dessa forma, a legislação da reforma
ignorou os anseios das organizações camponesas.
Para Gimenez (2014), a Reforma Agrária de 1953 provocou uma relação
diferenciada entre governo e população uma vez que foi um marco inicial
para o atendimento das reivindicações camponesas. Além disso, a reforma
decretava o fim do sistema de colonato ou qualquer outra forma de serviços
não remunerados assim como reconhecia a organização sindical como pro-
tagonista da Reforma Agrária. Diante disso, as comemorações da medida da
Reforma Agrária foram intensas até mesmo para o setor governista, pois a
reforma, de forma geral, atingiria cerca de dois milhões de pessoas, dando
um respaldo positivo para o governo da época em relação aos trabalhadores.
No entanto, mesmo com a legitimidade alcançada pelo Estado com a reforma,
Cunha Filho (2014) compreende que o governo não foi capaz de eliminar as
principais deficiências estruturais do Estado, como a pobreza.
Nesse sentido, Costa Neto (2005), afirma que, a longo prazo, é possível
visualizar vários aspectos negativos da reforma. A manutenção das grandes
propriedades privadas, por exemplo, já era muito criticada pelas organizações
camponesas, porém continuaram mesmo com a aprovação da reforma. Nesse

201
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

contexto, Lora (1993) entende que a Reforma Agrária de 1953 possuiu um


caráter liberal, já que tinha a intenção de criar uma grande quantidade de
pequenos proprietários, garantindo a indenização dos antigos donos de terra
e a permanência dos latifúndios. Logo, o MNR provocou a substituição do
latifúndio para inserir os camponeses bolivianos no sistema de mercado por
meio da pequena propriedade (MOTA, 2012).

3. Formação agrária boliviana: novos consensos hegemônicos


A compreensão do aspecto político, econômico e cultural da Bolívia, no
limiar do século XXI, recai de forma central no entendimento da formação
social, em uma perspectiva totalizante, visto os processos de transformações
globais e continentais, mas também das peculiaridades do desenvolvimento
do país. Não se pode negar, por um lado, que já existiam, antes da chegada
europeia na América Latina, Espanha e Portugal, principalmente, povos que
habitavam o continente americano, que possuíam cultura e sociabilidades
próprios. Entretanto, por outro lado, não se pode negar que a formação social
latino-americana tem como ponto nevrálgico a colonização e superexplora-
ção do trabalho dos povos aqui já existentes (VALENÇA, 2017).
Nessa perspectiva, a dominação dos povos originários na Bolívia, pela
metrópole hispânica, os colocaram em um contexto internacional até então
desconhecido, radicalizado pela busca incessante do seu enriquecimento e
de subjugação daqueles. Isso consolidou especificidades sociais fundadas no
isomorfismo de classe e indianitud, de tal forma que a classe é um capital a
mais, um bem acumulável, que possibilita mudanças sociais. A etnicidade é,
portanto, uma forma de construção de classe social.
Para se pensar a questão agrária na Bolívia, pois, é necessário evidenciar
e pensar a história a partir da colonização, como já dito, e ter em mente o
camponês e o indígena, que interagem na história formando um bloco identi-
tário. Nesse sentido, a terra sempre foi central na vida dos povos originários,
e a luta por esta foi e é constante, como na guerra de independência contra os
espanhóis ou nas sublevações populares que levaram à Reforma Agrária de
1953 (GIMENEZ, 2014). Porém, essa foi repleta de limitações.

202
Marxismo e América Latina

Por esse ângulo, a mesma reforma agrária que, na década de 1950, pro-
porcionou distribuição de terras no ocidente do país, impulsionou a agroin-
dústria latifundiária, voltada para a exportação, na região oriental do país.
Na década de 1980, a partir de créditos cedidos pelo Banco Mundial e pela
Cooperação Alemã, foram dados passos largos em direção ao início do polo
sojeiro do país, como a construção e ampliação de estradas, silos e rede elétri-
ca, na região oriente do departamento de Santa Cruz de la Sierra (GIMENEZ,
2014). Isso indica uma mudança radical na evolução da superfície cultivada
do país, que foi estruturada no agribusiness, a partir do capital internacional.
Tendo em vista o avanço neoliberal, iniciado na década de 1980, e os
ataques do governo boliviano aos pequenos camponeses, principalmente no
Chapare, em Cochabamba, região propícia a agricultura, que se evidencia pela
produção da folha de coca, se criam condições para o campesinato disputar
a liderança popular no seio das classes subalternas (VALENÇA, 2017). Es-
ses ataques e a declaração de guerra à coca, portanto, aos 70 mil camponeses
desse território, se apresenta como uma forma de atender aos interesses das
multinacionais do agronegócio, que desejavam produzir naquela terra, bem
como para ter acesso aos recursos disponibilizados pelas agências americanas.
Logo, com a criação da consciência e da organização de classe, aliados a
capacidade de liderança de Evo Morales e de Leonilda Zurita146, a luta dos cam-
poneses do Trópico rompeu as fronteiras e se expandiu, possibilitando um con-
fronto conjunto das classes subalternas contra o colonialismo e ao imperialis-
mo. Assim, se alia a luta corporativa à luta eleitoral e participam da disputa mu-
nicipal em 1989 e da nacional em 1993, com as siglas Izquierda Unida e Eje de
Convergencia Patriótica, respectivamente (MORALES-AYMA, 2014). E, com a
necessidade de se criar um instrumento para a luta, acontece o I Congresso do
Instrumento Político de Tierra y Territorio, o qual estabelece que aquele seria a
Asamblea por la Soberanía de los Pueblos (ASP) (VALENÇA, 2017).
O ASP teve seu registro eleitoral impedido pelo Poder Judiciário, o que
fez com que este tomasse emprestada a sigla Movimiento Al Socialismo (MAS),
conformando o MAS-IPSP. Nesse sentido, o MAS-IPSP evidenciou a crise da
hegemonia neoliberal e se tornou instrumento de luta dos movimentos cam-
poneses e indígenas (CUNHA FILHO, 2015). A crise na hegemonia domi-

146 Dirigente Bartolina Sisa, líder cocaleira e, atualmente, é senadora pelo MAS.

203
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

nante se aprofunda, a partir de sublevações populares marcantes, em 2000,


como a Guerra del Agua e Guerra do Gás, a qual possibilitou ao sindicalismo
indígena camponês a liderança de um bloco, o camponês-indígena-popular.
Esse bloco expandiu sua direção intelectual e moral sobre as massas e exerceu
lideranças antes mesmo de conquistar o governo (VALENÇA, 2017).
Com o avanço desse bloco, em 22 de janeiro de 2006, Evo e Linera ganham
a disputa presidencial e tomam posse, com votação histórica de 53,7% dos votos.
Portanto, o bloco popular estava no governo e, o bloco imperial-burguês-colo-
nial, apesar de ter saído desse, detinham a lógica e mando institucional, além do
poder econômico e midiático. Entretanto, mesmo com tantos avanços, as polí-
ticas públicas, na agricultura, têm como alvo culturas de exportação industrial,
não a toa que essa domina a estrutura de cultivos, na Bolívia147.
Assim, a força das classes subalternas em ascensão levou a processos
constituintes que são relacionados com suas necessidades e possibilidades
pontuais. E, em janeiro de 2009 foi posto em referendo se haveria uma nova
constituição ou não, e 61% votou sim, além de 80,65% contra o latinfúndio,
estipulando em até cinco mil hectares o tamanho da propriedade. Logo, na
Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia (CPE), a questão agrária é
colocada de maneira evidenciada e a reforçar o que já outrora foi proclamado
na Lei de Recondução Comunitária da Reforma Agrária (Lei nº3345) de 2006
e, a possibilidade por reversão148 da terra, em casos de descumprimento da
função econômico-social se destaca.

4. A CPE e o protagonismo dos movimentos sociais


A Constituinte convocada em 2006 possuía, segundo Valença (2017), a
influência de três fatores marcantes: a ascensão dos camponeses e indígenas, a
grande participação popular e a constituição de uma nova lógica estatal. Era,
nesse sentido, uma constituinte que divergia da lógica do constitucionalismo
internacional. Assim, Oliveira Filho (2016) afirma que a constituição trazia
um novo rol de direitos e princípios, como o direito à Pachamama, que é a

147 “De los 3,63 millones de hectáreas cultivadas en Bolivia entre 2014 y 2015, el 84% (3.03 mill de hectáreas)
son cultivos industriales y de éstos 1,35 son soya (com datos de INE y MDRyT)” (CEDIB, 2016, p.6).
148 A reversão caracteriza o retorno da terra ao domínio do Estado, afastada a concessão de indenizações.

204
Marxismo e América Latina

elevação da natureza a sujeito de direitos. Diante disso, a cidadania assumia


dimensões inovadoras, pois às nações, aos povos originários ou indígenas fo-
ram garantidos direitos políticos específicos, contrariando a lógica de igual-
dade formal do Estado Liberal.
A contribuição dos camponeses e indígenas no processo constituinte, se-
gundo Oliveira Filho (2017), representou um conjunto de transformações que
refundaram o Estado, objetivando superar o neoliberalismo e o colonialismo.
Nesse cenário, ele diz que a CPE, além dos avanços, trouxe muitas expecta-
tivas de mudanças que não estavam positivadas na Constituição, já que, por
exemplo, após sua promulgação, houve a publicação de leis que regulamen-
tavam a organização das terras bolivianas. Com isso, tais leis acabavam por
limitar os direitos das autoridades das autonomias e das que não tinha reco-
nhecimento pelo Estado.
Diante disso, pode-se citar a Lei do Regime Eleitoral Transitório n. 4021,
que possibilitava a conversão dos municípios em autonomias territoriais indí-
genas (AIOCs) promulgada em 14 de abril de 2009 pelo presidente Evo Mora-
les. A sanção dessa lei foi fruto também de muita luta pelos camponeses, pois,
por exemplo, antes da aprovação da CPE, já havia a vontade do território de
Lomerío149 de se tornar autonomia. Logo, em 2008, o Território Comunitário
Originário (TCO) de Lomerío foi considerado o primeiro território indígena
autônomo da Bolívia, ou seja, a primeira nação indígena autônoma a nível
nacional (DAN, 2018).
A partir do reconhecimento constitucional da autonomia territorial, de-
veria se criar necessariamente novas jurisdições étnicas indígenas, porém o
processo de autonomias indígenas não é apenas um processo jurídico, mas
social e político, pois a organização e a mobilização dos camponeses e indíge-
nas requerem que o governo boliviano ultrapasse a barreira jurídica e cumpra
mais que os requisitos previstos na constituição (DAN, 2018). Além disso, os
líderes indígenas enfatizavam que não se tratava de uma construção, mas sim
de uma consolidação de uma autonomia que já existia.

149 Encontra-se no departamento de Santa Cruz, província de Ñuflo de Chávez, com vinte e oito (28)
comunidades, distribuídas em quatro (4) regiões ou cantões: San Antônio com 9 comunidades,
Santa Rosa del Palmar com 6 comunidades, El Puquio com 6 comunidades e San Lorenzo com 7
comunidades (FUNDACIÓN TIERRA, 2010).

205
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

É importante destacar que a constituinte se deu em torno da nacionali-


zação dos hidrocarbonetos, sendo uma demanda popular. Assim:
A Constituinte surgiu, ao lado da nacionalização dos hidrocarbo-
netos, como demanda popular nas mobilizações da quarta crise de
Estado vivenciada pela Bolívia1. Como visto, o bloco histórico que se
estava gestando trazia consigo o acumulado de séculos de lutas popu-
lares. A questão indígena-camponesa, a indígena-originária, a pers-
pectiva anti-imperialista do nacionalismo revolucionário, um mar-
xismo debruçado sobre a particular realidade nacional e que supera
visões marxistas esquemáticas e importadas quanto ao problema do
índio; todo esse repertório conformava uma diversidade de frações
das classes subalternas – inclusive quem se recusa a se “classificar” na
categoria classe, como setores indianistas que afirmam ser ela uma
construção ocidental – cuja unidade se formou sob a liderança políti-
ca e moral do sindicalismo indígena-camponês, ao redor do Pacto de
Unidad150. (VALENÇA, 2017, p.122)

Em tal contexto, houve uma tensão no pacto dos movimentos, que se re-
velava no que rege às distinções entre matrizes camponesas e indígenas. Mo-
vimentos como o CSUTCB151, FNMCB152 “BS” e CSCB153 se reivindicavam
como indígenas, contudo não aceitavam abdicar da identidade camponesa. A
CIDOB154, que tem base social dentre os indígenas de terras baixas orientais
e a CONAMAQ155, que é formada especialmente por Ayllus156 de terras altas

150 Perante a Assembleia Constituinte, o Pacto de Unidad revelou-se como o lócus do encontro de
organizações sindicais camponesas, indígenas originárias, de povos das terras altas e baixas,
colonizadores (SCHAVELZON, 2012). O Pacto, os constituintes eleitos pelo MAS-IPSP e o
governo Evo-Linera conformariam uma rica experiência de consensos e dissensos na busca pela
materialização de um texto constitucional (VALENÇA, 2017).
151 Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia.
152 Federación Nacional de Mujeres Campesinas de Bolivia-Bartolina Sisa.
153 Confederación Sindical de Colonizadores Bolívia.
154 Central Indígena de los Pueblos del Oriente de Bolivia.
155 Consejo Nacional de Ayllus y Marcas del Qullasuyu.
156 A organização Ofensiva Roja de Ayllus Tupakataristas que era o braço político da organização
político-militar Ejército Guerrillero Tupak Katari no final dos anos 1980 e inícios dos anos 1990,
vinha na esteira desse movimento maior de construção de uma cultura política indígena e teve
papel importante nesse processo de fortalecimento dos movimentos indígenas, uma vez que
esteve presente ao declínio da influência operária no movimento social, bem como procurou se
afastar das posições historicamente defendidas por esse grupo. A atuação da Ofensiva e a difusão

206
Marxismo e América Latina

demandavam a identidade originária considerada “pura” (VALENÇA, 2017).


Todo esse processo acirrou a discussão sobre a questão agrária na constituinte.
A proposta de alteração agrária do Governo boliviano, tinha o objetivo
de eliminar os latifúndios improdutivos e dar milhões de hectares a comu-
nidades indígenas. Essa proposta recebeu várias críticas e também elogios.
Em 2006 foi apresentado um plano, na cidade de Cochabamba, no centro
do país, como um conjunto de medidas urgentes que foram debatidas com
os produtores rurais (ALIAGA, 2006). Nessa perspectiva, o programa pre-
via a distribuição imediata de uma extensão entre 2 milhões e 4,5 milhões
de hectares de terra de propriedade do Estado. Toda essa massa territorial
destinado às comunidades indígenas e sindicatos de trabalhadores rurais.
Também era prevista a desapropriação dos latifúndios improdutivos exis-
tentes principalmente no leste do país.
As críticas surgiram entre as autoridades e empresários de uma das re-
giões mais prósperas da Bolívia. Um deles foi o governador do departamento
de Estado Oriental de Santa Cruz, Ruben Costas, que por sua vez reivindicou
suas atribuições em algumas políticas sobre a terra. Havia resistência à inten-
ção do governo de centralizar as decisões sobre a temática. Paralelamente,
entidades patronais agropecuárias do leste do país atribuíram à proposta a
uma manobra política, diante da Assembleia Constituinte, ainda que tenham
posição de dialogar com o Governo. Por outro lado, indígenas Aimarás não
queriam acordo com os proprietários (ALIAGA, 2006).
Tendo em vista a construção do “socialismo comunitário”157 embutido
na proposta constitucional, podemos trazer a contribuição de (STEDILE,
2013) sobre a perspectiva da reforma agrária no socialismo. Stedile (2013) em

do tupakatarismo como alternativa revolucionária deixou marcas profundas na cultura política


indígena, de tal maneira que o seu discurso, com seus aspectos identitário, político e social tem um
papel central para o entendimento mais geral das mudanças ocorridas na Bolívia durante os anos
1990 e 2000, através do protagonismo indígena (FREITAS, 2014).
157 “Álvaro García Linera, principal formulador do “socialismo comunitário”, recupera essa formação
social boliviana e, subsidiando-se no aporte marxiano quanto à compreensão de modos de produção
pré-capitalistas, intenta uma original interpretação da realidade boliviana. Nessa perspectiva, a
presença histórica e a persistência de comunas agrícolas (Ayllus) e tempos civilizatórios paralelos ao
capitalista, poderia se constituir em base material – ao invés de empecilho – de uma sociabilidade
superior ao capitalismo. Analiso, portanto, os pontos nodais da civilização pré-colombiana e que
se prolongam no decorrer dos séculos, e as reflexões dos fundadores da filosofia da práxis quanto
ao desenvolvimento das forças produtivas e possibilidade de revoluções na periferia do sistema

207
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

primeiro lugar avalia que uma reforma agrária socialista necessariamente


precisa atingir a descentralização da propriedade. Ademais, ela tem que orga-
nizar a propriedade coletiva dos meios de produção, tendo em vista o traba-
lho associado. Sendo assim, podemos verificar aspectos ainda capitalistas na
própria Bolívia, ao avaliar a legislação. Destaca ele, também, que não adianta
ter só terra, é fundamental ter a propriedade dos tratores, dos armazéns e dos
trens que conduzem a produção. É necessário que a reforma agrária tenha
abrangido a propriedade coletiva de todos os meios de produção que afetam
a agricultura. É nesse sentido que ela adquire um caráter anticapitalista. Em
síntese, não é só a propriedade da terra que é central, mas também a proprie-
dade dos vários meios de produção.

5. Considerações finais
Ao longo do trabalho, analisou-se que a batalha por reforma agrária não
é recente e perdura até os dias atuais como expressão da luta dos povos origi-
nários, camponeses. A existência secular desses povos foi ressignificada pela
exploração colonial, que ao passo que os superexplorava, estreitava o vínculo
entre classe e etnia, chegando ao ponto que a etnicidade se tornou um capital
a mais, que possibilita o ascenso e descenso social. Assim, a classe, econo-
micamente existia, mas com isomorfismo com a etnia, ou seja, a divisão da
sociedade por meio da economia era similar a por identidade étnica.
Nesse sentido, a reforma agrária aparece como ponto a ser discutido,
já que nas sublevações populares, na Revolução de 1952, ela foi pautada de
maneira expressiva. Assim, em 1953, se teve a primeira expressão da refor-
ma agrária, entretanto repleta de limitações, como a participação do capital
internacional, a partir do Banco Mundial e da Cooperação Alemã. Esses
mesmos credores estiveram na linha de frente da criação do polo sojeiro do
País, na década de 1980.
Esse contexto, da reestruturação produtiva por meio de políticas de fi-
nanciamento internacional, aliado aos ataques do governo boliviano aos pe-
quenos camponeses, somado à insatisfação e à resistência desses, possibilita-

capitalista para, logo após, debruçar-me sobre suas consequências no processo político boliviano no
século XXI” (VALENÇA, 2017, p181).

208
Marxismo e América Latina

ram a sua organização de classe e o alinhamento da luta corporativa à elei-


toral. Logo, a organização do campesinato indígena desembocou na vitória
eleitoral de Evo, em 2005, e hegemônica, em 2009, a partir da superação do
horizonte econômico-corporativas por étnico-políticas.
E, com essa vitória hegemônica, em 2009, com a aprovação popular, no
referendo, para a criação de uma nova constituição e para o combate do lati-
fúndio, se repensa a reforma agrária na Bolívia. A CPE, portanto, estabiliza
e institucionaliza as ideias-força em evidência e, esse avanço legislativo de-
monstra que o espaço jurídico também deve ser considerado um meio para o
avanço da luta política. Entretanto, o Direito é uma expressão do Capital, é o
meio no qual se organiza as relações de subordinação, em uma sociedade que
o acúmulo de valor é evidenciado.
Assim, a relação final que foi extraída é que as conquistas sociais devem
ser encaradas como uma vitória da batalha, não da guerra, compreendendo
as limitações jurídicas e que o Estado Plurinacional deve ser encarado como
uma transição, decorrente da previsão constitucional de convocar nova cons-
tituinte, assim como em 2009, ou por golpe de estado. Sob essa ótica, é neces-
sário que se entenda a imprevisibilidade de outro momento de ruptura, mas
entendendo que não há revoluções permanentes, como afirma Schavelzon.

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213
Uma análise sobre as Autonomias
indígenas no contexto do Estado
Plurinacional da Bolívia

Dayane da Silva Mesquita158


Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes159

1. Introdução
O Estado Plurinacional, inaugurado após a promulgação da Constitui-
ção Política do Estado da Bolívia (CPE), representa uma conquista de décadas
de luta dos movimentos indígenas-camponeses e demais segmentos populares
pelo reconhecimento da existência de institucionalidades próprias e distintas
dos múltiplos núcleos organizativos das nações e povos originários. Agora,
territórios tradicionais de propriedade coletiva indígena, com sistemas legisla-
tivos e políticos podem ascender ao estado de Autonomias Indígenas, que são
um nível administrativo do Estado central que coexiste a ele.
O processo de consolidação das Autonomias no contexto do Estado Plu-
rinacional e em qual medida estas encontram-se atualmente, mais de oito
anos após a regulamentação de sua previsão Constitucional pela Ley Marco de
Autonomías y Descentralizacion (LMAD), será o objeto central de análise nes-
te capítulo. Para isso, será abordado inicialmente os aspectos gerais da conso-
lidação das classes sociais na Bolívia, sobretudo de como o fator étnico esteve
e se manteve ligado durante um longo período histórico a desvalorização so-
cial e às camadas ignoradas pelas políticas oficiais do Estado. A relação entre

158 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membra do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC) e Pesquisadora de
Campo da ONG Ação Educativa. E-mail: ddayanesm@gmail.com.
159 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membra do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC). E-mail: euanavit2@gmail.com

215
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

as diversas Nações e Povos Indígenas Originários Camponeses160 (NPIOCs)


e o Estado central moldado desde a República por mãos brancas com aspira-
ções capitalistas de uma modernidade europeia, apontam uma acirrada luta
de classes que interferiu no decurso da história da estruturação de uma oficia-
lidade estatal que se demorou a romper com seu passado colonialista.
O resgate das mobilizações populares em busca de mudança do estado
das coisas, sobretudo do modo de produção colonialista que destinava grande
parte dos camponeses e indígenas a exploração da mão de obra em grandes
haciendas, aponta a existência de núcleos organizativos autóctones que vive-
ram por longos períodos alheios ao Estado oficial, seja do ponto de vista do
capital estatal (poder político, econômico, social, cultural), ou mesmo como
público alvo de políticas públicas.
O acúmulo de décadas de lutas populares pela adoção de um destino
comum Estatal alinhado com a formação social da Bolívia possibilitou que
em 2005 fosse eleito o primeiro presidente indígena da Bolívia, Evo Morales
(MAS161). A constituinte convocada em sua primeira gestão inaugurou através
da CPE o Estado Plurinacional da Bolívia, o qual abriu a possibilidade de con-
formação de territórios autônomos que se fundamentam no reconhecimento
da habitação preexistente de nações e povos originários em territórios ances-
trais da Bolívia que tiveram o seu devir interrompido pela invasão colonial.
Partindo disso, pretende-se investigar através do método histórico dialé-
tico, subsidiado por pesquisas bibliográficas e documentais, como se encontra
a execução da previsão normativa das Autonomias Indígenas, núcleo inovador
da existência do plurinacional, abordando quais são as barreiras para a con-
cretização e reconhecimento desses territórios pela oficialidade, abrangendo
aspectos políticos, estruturais e sociais dessa conformação institucional que
existe há mais de oito anos.

160 A LMAD define esta categoria de sujeitos coletivos, criada pela Constituição de 2009, como povos e
nações que existem com anterioridade a invasão espanhola e que constituem uma unidade sociopolítica,
historicamente desenvolvida, com organização, cultura, instituições, direito, ritualidade, religião,
idioma e outras características comuns e integradas (Capítulo II, Artigo 5°, III da LMAD).
161 O Movimiento al Socialismo (MAS) consiste na organização política que foi responsável pela
coalizão eleitoral de movimentos sociais urbano-rurais que introduziu inúmeros deputados o
Parlamento boliviano, sendo a maior força eleitoral desde julho de 2002 (LINERA, 2010)

216
Marxismo e América Latina

2. O horizonte jurídico-institucional: sublevações


populares e o projeto autonômico
No início do século XXI esteve em movimento um intenso processo po-
lítico, social, econômico e cultural na Bolívia, onde vimos a eleição de Evo
Morales, primeiro indígena a ser presidente, a vigência de uma nova CPE e
o início da instauração do Estado Plurinacional. Faremos uso da categoria
marxista da totalidade162 para compreendermos como foi possível esse avanço
na formação social da Bolívia, o que nos permitirá ter uma visão ampla e com-
pleta da história boliviana através da interconexão de seus variados fatores
econômicos e políticos (VALENÇA, 2018).
Esse tópico tem como intuito demonstrar, em apertada síntese, de que
maneira ocorreu o processo colonizador na Bolívia e de que modo ele se cor-
relaciona com o decurso de sua história, explicitando as disputas sociais, po-
líticas e econômicas. É primordial a compreensão da história boliviana visto
que o sujeito revolucionário boliviano é reflexo do decurso da luta de classes
da Bolívia, onde cada período histórico e suas disputas econômicas possibili-
taram o surgimento de um sujeito central distinto.
A empreitada colonial europeia foi responsável por destruir e modificar
as bases de sociabilidade e cultura das múltiplas matrizes civilizatórias que
pré-existiam na América Latina e, ainda, impôs a essas civilizações novas re-
lações de produção, religião, direito e outras organizações sociais. Não há um
modelo único de sociedade colonial, visto que a pluralidade de povos, aspectos
geográficos e climáticos e os diferentes estágios de produção fizeram com que
cada uma das sociedades coloniais adquirisse suas características próprias,
como é o caso da Bolívia, que tem em sua história a intersecção das ques-
tões indígenas, da terra e de seus recursos naturais. Desse modo, as diferentes
realidades de sociabilidade dos povos originários implicaram na criação de
variadas opções colonizadoras, onde o colonizador buscou adaptar para cada

162 Na produção social que os homens realizam, eles entram em determinadas relações indispensáveis
e independentes de sua vontade; tais relações de produção correspondem a um estágio definido de
desenvolvimento das suas forças materiais de produção. A totalidade dessas relações constitui a
estrutura econômica da sociedade – fundamento real, sobre o qual se erguem as superestruturas política
e jurídica, e ao qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da
vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral (MARX, 1977).

217
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

realidade específica, o modelo mais eficiente de circulação do capital mercan-


til. Diferente do Brasil, em que foi usado o sistema de plantations163, as regiões
que antes pertenciam aos domínios dos Impérios inca, asteca e maia, tiveram
seu modo de organização coletiva do trabalho indígena adaptado ao modelo
de exploração colonial europeu (VALENÇA, 2018).
A opção colonial-exploratória escolhida para as regiões andinas foi de-
finida a partir da descoberta de valiosas reservas de ouro e prata e, ainda, sob
a influência do modo de organização coletiva de trabalho pré-existente entre
os indígenas. Diferente dos métodos usados nas regiões tropicais, os espanhóis
exploraram de maneira ampla os modos autóctones de organização social dos
povos indígenas das regiões andinas e os colocou à serviço da metrópole, che-
gando a usar de lideranças incaicas como forma de mediação entre os coloni-
zadores e as nações indígenas para facilitar o processo de exploração (CUNHA
FILHO, 2017). Possibilitou, assim, uma ruptura com a ordem econômica até
então vigente, visto que o excedente do trabalho que antes era destinado, em sua
maior parte, à reprodução social, passou a ser remetido à acumulação privada.
Como visto, na Bolívia, os colonizadores importaram as instituições da
Europa feudal e as adaptaram ao modelo de sociabilidade pré-existente. Desse
modo, ao invés de destruir por completo as organizações sociais, políticas e eco-
nômicas dos povos indígenas, o processo colonizador fomentou a manutenção
da autonomia de fato de várias dessas matrizes civilizatórias. Entretanto, apesar
dessa autonomia de fato experienciada pelos povos originários, a exploração
colonial foi responsável pela consolidação da discriminação e subjugação social
de várias camadas indígenas, de suas instituições sociais, de seus modos de ex-
ploração do trabalho, além de suas culturas e identidades (VALENÇA, 2018).
O período colonial foi responsável pela consolidação da indianitud164
como um elemento de desvalorização social, justificando o fato de a divisão

163 Plantation é um sistema agrícola, e foi bastante utilizado durante a exploração das Américas, visto
que aqui se possuía um solo fértil e propício para o cultivo das mais variadas espécies vegetais. Foram
cultivadas principalmente as plantas tropicais, já que se adaptavam bem ao clima e às condições do
solo, fazendo com que os gastos fossem muito menores. Dentro desse mega-sistema agrícola, um
país apoiava sua suposta economia no cultivo de apenas uma espécie vegetal, fazendo com que
essa fosse levada para fora do país. ARAÚJO, Ana Paula, Plantation. Disponível em: <https://www.
infoescola.com/historia/plantation/> Acesso em: 16 de jul. de 2019.
164 A indianitud é todo o capital étnico dos povos originários, ou seja, cor da pele, sobrenome, as roupas, o
idioma, que por muito tempo foi usado como um modo de ascenso social e desvalorização (LINERA, 2019).

218
Marxismo e América Latina

da sociedade boliviana pelo trabalho e pela propriedade ser símile à divisão


da sociedade pelas identidades étnicas (LINERA, 2017), tal processo deu a et-
nicidade um papel central para a compreensão da novas formas de exploração
do trabalho e de acumulação de capital impostas pelos espanhóis, tornando a
realidade racial fulcral para a compreensão do modo de exploração escolhido.
O fim do período colonial em 1825, ao menos formalmente, foi alicer-
çado pela luta pela independência da Bolívia, possibilitando, assim, a criação
da República e a ascensão de Simón Bolívar165 ao poder político. Apesar de ter
sido Bolívar o primeiro presidente da incipiente República, foi Antonio José
Sucre166 o responsável pela tentativa de implementação das medidas liberais167
destinadas a desmontar a sociedade colonial e consolidar a nova estrutura po-
lítica de Estado, porém esse projeto liberal colocou contra Sucre todas frações
de classe dirigentes (VALENÇA, 2018).
A guerra pela libertação acarretou uma série de dívidas à Bolívia e le-
vou a jovem República à uma severa crise econômica. A instabilidade interna
causada pelas medidas liberais tornou o poder político incontrolável, sendo
nesse contexto de total instabilidade em que ocorreu o pedido de renúncia de
Sucre. De acordo com Springerová e Valisková (2017), a exploração das nações
indígenas não é exclusiva apenas aos espanhóis, porém é também uma carac-
terística dos governantes bolivianos que os sucederam. Visto que a derrocada
de Sucre foi seguida por um regime republicano que não alterou significa-
tivamente o arranjo social existente, mas ao contrário, manteve muitas das

165 Nascido na Venezuela, filho de aristocratas espanhóis, Simón Bolívar (1783-1830) foi figura central
da independência das colônias espanholas na América, ao lado do argentino San Martín. Herói da
libertação da Venezuela, Colômbia, Peru, Equador e Bolívia, Bolívar colocou em prática na América
idéias de Rousseau, Hobbes e outros filósofos do Iluminismo. Foi fortemente influenciado pelos
ideais das Revoluções Americana e Francesa. Disponível em: http://www.memorial.org.br/simon-
bolivar/. Acesso em: 16/07/2019.
166 Participou, junto com os generais Mariño, Piar, Bermúdez e Valdez da campanha para libertar a
parte oriental da Venezuela. Foi nomeado “Jefe del Estado Mayor General Libertador”. Participou
da negociação do armistício e regularização da guerra com o General Morillo no ano de 1820.
Por seu desempenho foi nomeado General de Divisão e Intendente do Departamento de Quito.
Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/s/sucre_antonio.htm.
Acesso em: 16/07/2019.
167 Extinção do tributo indígena, proibição de serviços gratuitos, implementação do trabalho remunerado,
confisco de bens da Igreja pelo Estado e extinção da mita na mineração (VALENÇA, 2018).

219
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

características e peculiaridades coloniais, entre elas, a manutenção de relações


semi-feudais e a negação da emancipação política dos indígenas.
Apesar de no período republicano haver a completa exclusão da maioria
absoluta da massa indígena, o Estado era totalmente dependente do Tributo In-
dígena168. Essa relação, entre Estado e povos indígenas, nunca se mostrou pací-
fica, visto que, apesar da existência de fato dos territórios indígenas autônomos,
eles até então não eram reconhecidos formalmente pelo Estado, estando assim, a
margem da ordem social imposta. As lutas organizadas pelos povos originários
impediram que o processo de homogeneização modernizadora se instaurasse
de maneira eficiente no território boliviano, havendo, assim, a formação de um
“Estado-nação” aparente169 que negava a existência formal de grande parte de
seus habitantes (SPRINGEROVÁ; VALISKOVÁ, 2017).
Entre os levantes e lutas indígenas, para Cunha Filho (2014), a Guerra do
Chaco170 foi o principal aspecto motivador para que ocorresse o processo conhe-
cido como “encontro com a nação”, visto que, através dela, pela primeira vez, inte-
lectuais e setores da classe média urbana tiveram contato com pessoas dos vários
recantos do país, incluindo muitos indígenas. Isto desencadeou na construção de
novas ideias e perspectivas acerca do país e das injustiças e desigualdades por ele
atravessadas, sendo responsável pela recriação da ideia de nação boliviana. Dessa
maneira, vemos que esse incipiente encontro dos diversos povos que coexistiam
na Bolívia, porém historicamente separados, foi basilar para a criação do ideá-
rio nacional-popular e para a ascensão de um novo sujeito revolucionário, ambos
como resposta à crise de dominação oligárquica na Bolívia.

168 De acordo com Springerová e Valisková (2017), o Tributo Indígena é o imposto da coroa espanhola
que incidia sobre as comunidades indígenas livres e em seguida estendido para todos os indígenas da
colônia, servindo para pressionar a migração espontânea de indígenas para trabalhar nas fazendas.
169 Conforme Gonçalves (2012), em que ele esmiúça o marxismo de René Zavaleta, o Estado Aparente é
caracterizado quando o Estado oficial não representa e nem engloba todos os setores da sociedade,
nem sequer para organizar a exploração do proletariado. Desse modo, as comunidades indígenas
andinas não se reconhecem naquele Estado, e este por sua vez tem poucos mecanismos de fazer-se
reconhecer por elas.
170 Conflito armado entre a Bolívia e o Paraguai, que se originou na disputa pela região do Gran Chaco
ou Chaco Boreal após a descoberta de poços de petróleo. O conflito armado perdurou entre os anos
de 1932 e 1935, sendo responsável pela morte de mais de 90 mil pessoas e considerado o maior
conflito da América do Sul no século XX. NEVES, Daniel. Guerra do Chaco. Disponível em: https://
guerras.brasilescola.uol.com.br/seculo-xx/guerra-chaco.htm. Acesso em: 16 de jul. de 2019.

220
Marxismo e América Latina

A mineração foi a pedra angular da luta de classes durante o século XX,


visto que, foi através da acumulação que ela possibilitou que o operariado
mineiro se constituísse como sujeito revolucionário e objetivou a Revolução
de Nacional de 1952 (VALENÇA, 2018). Desse modo, o surgimento de sujeitos
revolucionários na Bolívia sempre esteve ligado a maneira de entrelaçamento
das estruturas econômicas, políticas e sociais, e a forma com que elas molda-
ram a luta de classes. O projeto nacional-popular teve seu ponto máximo na
Revolução de 1952171, que buscou apagar as identidades indígenas baseadas na
etnicidade e tentou homogeneizar a nação boliviana a partir da ideologia da
mestiçagem, fazendo uso da modernização capitalista através da economia.
A homogeneização proposta pela Revolução Nacionalista pressupunha o
fim dos vínculos comunais, o embranquecimento e a incorporação da subjeti-
vidade ocidental pelos indígenas, entretanto, essa ideia foi incapaz de superar
a lógica da racialização construída pela colonização espanhola, visto que a
etnicidade é um nítido marcador fenotípico (CUNHA FILHO, 2014). Após a
Revolução de 1952, os indígenas e camponeses permaneceram a parcela mais
pobre da população boliviana, demonstrando a manutenção da divisão racial.
Entretanto, ocorreu o surgimento de novas formas de organização, entre elas,
o aparecimento de sindicatos no campo.
A reorganização das classes trabalhadoras latino-americanas e de suas
lutas, junto do descenso dos governos neoliberais no final do século XIX, per-
mitiram a aproximação das tradições do nacional-popular e do indianismo-co-
munitário, a qual resultou na eleição de Evo Morales e na promulgação da nova
Constituição Política do Estado (CPE) em 2009. Essa modificação na correlação
de forças, que toma fôlego através da CPE, impulsionou o reconhecimento do
Estado Plurinacional, onde o indígena é o sujeito protagonista. Portanto, a plu-
rinacionalidade surge com a proposta do indígena ser tanto o sujeito a ser reco-
nhecido, como o sujeito que reconhece, para que dessa forma se modifique de
maneira significativa a ordem simbólica e material de mundo (LINERA, 2017).
Além disso, outra conquista, foi o reconhecimento das Autonomias In-
dígenas Originárias Campesinas (AIOC), visto que ele foi fulcral para o mo-
vimento revolucionário, demonstrando que este extrapolou a dimensão do

171 Popularmente conhecida como Revolução Nacional e apontada como a primeira revolução
proletária da América Latina.

221
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

simples reconhecimento das identidades étnicas e de fato construiu um hori-


zonte jurídico-institucional. Portanto o que houve na Bolívia não foi o simples
reconhecimento dos povos e de suas culturas, mas o reconhecimento desses
povos como nações autônomas, com o direito de exercer seus idiomas, siste-
mas educativos e instituições próprias (LINERA, 2017).

3. Crise estatal na bolívia e ascensão


da pauta da plurinacionalidade
Como visto, a forma de exploração colonialista fundada na economia
de exportação de commodities e na exploração da mão de obra camponesa
e indígena perpassou por muitas alterações em sua forma, porém conservou
o seu conteúdo capitalista que séculos após o fim da exploração colonialista,
manteve os postos de trabalho informais e mal remunerados com a parcela
indígena e o poder de tomada de decisões e capital estatal172 em uma pequena
parcela de proprietários brancos. Nesse cenário, ainda que numericamente
os NPIOCs fossem (e continuem sendo) uma parcela numericamente maior,
a tomada de decisões na gestão pública historicamente se concentraram nas
mãos de uma elite branca com promessas de modernização e globalização.
Esse modelo de cidadania moderna relaciona-se diretamente com o que
Zavaleta denomina de “Estado Aparente”, que seria o fato de a Bolívia possuir
uma gama de NPIOCs que não adotaram o modelo de produção capitalista
como padrão dos processos de organização de sua força de trabalho, alheios
à organização e procedimentos próprios do Estado central (LINERA, 2010).
Tal fato contribui para que inúmeros territórios ocupados ancestralmente por
esses grupos mantivessem o trabalho associado como pilar do processo pro-
dutivo, organizados tradicionalmente em territórios de propriedade coletiva
da terra. Isto fez emergir, no Estado Boliviano, inúmeras sociedades autoges-
tionadas, conforme Linera (2010):

172 O capital estatal é uma categoria presente em “A Potência Plebeia”, no qual Alvaro Garcia Linera
o conceitua como um poder sobre as demais espécies de Capital, como o econômico, cultural,
social e simbólico. Além disso, o capital estatal seria fruto do capital de força física e do capital de
reconhecimento enquanto monopólios da estatalidade.

222
Marxismo e América Latina

Ao mesmo tempo, contudo, essa outra institucionalidade, na medida


em que está ancorada nos saberes coletivos daquela parte do mundo
indígena situada na margem da subsunção real - ou, caso se prefira,
do capitalismo de racionalidade técnica-, é baseada em normas, pro-
cedimentos e culturas políticas tradicionais, corporativas, não liberais,
que colocam em questão a centenária simulação histórica de uma mo-
dernidade e de uma liberalidade política estatal de tecto e instituição
que não é acatada nem sequer pelas elites proponentes, que, apesar de
tudo, não abandonaram jamais o velho método da política senhorial e
patrimonial (LINERA, 2010, p.287).

O modelo de Estado neoliberal na Bolívia consolida-se por volta de 1980


com o descenso político e cultural do sindicalismo operário, que ainda que
recaísse em contradições e adotasse o ideário de mestiçagem, representava al-
gum poder político de participação das classes subalternas na administração
Estatal. Esse período foi marcado também pela antecipação das eleições devi-
do a ingovernabilidade do país, sendo eleito em 1985, Víctor Paz Estenssoro.
Como aponta Valença (2017) a acumulação por despossessão foi um marco
desse período através das privatizações e flexibilizações trabalhistas, no qual o
Decreto Supremo 21060 adequou a política macroeconômica boliviana ao ne-
oliberalismo, responsável também pela privatização das minas. O que houve
foi um rearranjo das classes dominantes, as quais nesse período tornaram-se
o núcleo hegemônico e dotado de capital estatal, bem como houve um alija-
mento das classes subalternas das eleições presidenciais através da democracia
pactuada, a qual consistia em indicação pelo Congresso do chefe do executivo
entre aqueles que fossem os mais votados em um primeiro turno -no caso de
não haver maioria absoluta (VALENÇA, 2017)
Seguiu-se a esse período o que Linera (2010) denomina Estado “neolibe-
ral-patrimonial”, que teve como pontapé essa derrota política do sindicalismo
operário, a qual abriu espaço para a consolidação de um “bloco social composto
por frações empresariais vinculadas ao mercado mundial, partidos políticos, in-
vestidores estrangeiros e organismos internacionais de regulação que ocuparam
o cenário dominante da definição de políticas públicas” (LINERA, p.282, 2010).
O que houve, na verdade, foi que esse modelo de Estado moderno não
logrou êxito em suas promessas de ascensão social dentro do modelo capita-
lista de produção, ancorado em privatizações de empresas públicas -como foi
o caso das minas, e investimento no mercado externo através exportação de

223
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

commodities como política econômica majoritária. O que aconteceu, na ver-


dade, foi o aumento da concentração de riquezas acompanhado do aumento
de 13 %, em vinte anos, do trabalho informal.
Essa conjuntura contribuiu para que houvesse o fortalecimento dos laços
comunitários como estratégia coletiva de possibilitar a reprodução coletiva,
fato que fortaleceu organizações agrárias, indígenas e unificações territoriais
locais (VALENÇA, 2017) de tipo territorial. O que houve foi a unificação de
povos e nações indígenas que viviam nas terras baixas da Bolívia, interiori-
zando e ramificando a sua atuação política mediante assembleias e organi-
zações comunitárias, responsável por conformar, em maior ou menor grau,
a Central Indígena de los Pueblos del Oriente de Bolivia (CIDOB). Aliam-se
a este período de reorganização de classe a Confederación Sindical única de
Trabajadores Campesinos de Bolívia (CSUTCB), criada em 1987, bem como
destacam-se nesse processo a Central Obrera Boliviana (COB), a Confedera-
ción Sindical de Colonizadores de Bolivia (CSCB) e a Federación Nacional de
Mujeres Campesinas de Bolivia (FNMCB) ou “Bartolina Sisa”.
O entrelaçamento entre classe e etnia se sobressai nesse período como
elemento mobilizador e ideia força173 entre os movimentos sociais e sindicatos
camponeses e indígenas, o qual influencia também as reivindicações desse
período que são principalmente a realização de uma assembleia constituin-
te e que haja uma descentralização político administrativa e autonômica. É
também nesse período que lideranças indígenas camponesas emergem, como
por exemplo Evo Morales. A sua eleição como presidente da Bolívia no ano de
2005 apresenta-se como uma conquista fruto dos esforços das mobilizações
indígenas-camponesas no seio da crise estatal.
Pode-se afirmar que a sua eleição possibilitou o pontapé inicial da con-
vocação da constituinte que mudaria o Estado da Bolívia, havendo em 2006
a promulgação da Ley Especial de Convocatoria a la Asamblea Constituyente
(Lei 3.364/2006). O posterior reconhecimento do Estado Plurinacional seria
então o reflexo, de maneira imediata, de um longo e conflitivo processo cons-
tituinte que durou três anos (2006-2009). Os constituintes, majoritariamente
das classes subalternas, tinham a difícil tarefa de elaborar uma normativa ca-

173 “As ideias força seriam crenças cuja a materialização os grupos sociais estão dispostos a destinar
tempo, esforço e trabalho. No caso da Bolívia, estas crenças mobilizadoras possuem relação direta
com a reivindicação nacional-étnica do mundo indígena” (LINERA, p. 288, 2010).

224
Marxismo e América Latina

paz de compreender a diversidade de anseios e demandas existentes no centro


das classes subalternas e materializá-las em normativas que dialogassem com
a dinâmica social boliviana, diferentemente das outrora constituições multi-
culturalistas vigentes. Essas consistiam em normas que apesar de reconhe-
cer a existência de inúmeras institucionalidades, tratavam-as como minorias
dentro de uma suposta homogeneidade do padrão civilizatório branco, orga-
nizado pela forma de produção capitalista moderna.
Nessa mesma perspectiva, a CPE de 2009, resultado de uma acirrada luta
de classes, estabeleceu uma forma de Estado que é baseada no profundo re-
conhecimento da multiplicidade de povos e nações que constroem a socieda-
de boliviana, sem fragmentar o território nacional, consolidando um Estado
Unitário com múltiplas unidades territoriais governativas: as Autonomias In-
dígenas Originárias Campesinas. Tendo como base a retomada da continui-
dade histórica174 dessas nações, a CPE e as normativas infraconstitucionais in-
corporam esses territórios subestatais autônomos à estrutura do novo Estado
Plurinacional (TORRA, 2015). Os entraves e o estado atual da consolidação
desses territórios é algo que vem apresentando sucessos e contradições em sua
execução que serão explorados na seção seguinte.

4. A consolidação do projeto autonômico: um panorama


sobre os municípios e tiocs em conversão
A “negociação” - embalada por massacres e coação de parcela dos consti-
tuintes175 - foi determinante no processo conflitivo de formulação da CPE, ten-

174 “La autodeterminación adquiere un sentido reivindicativo que parte de la experiencia colonial de los
pueblos indígenas en donde fueron despojados no sólo de sus territorios y medios de sobrevivencia
material, sino de su derecho a existir como comunidades con cultura, formas de convivencia e
historicidad propias. Por tanto se vuelve fundamental también la noción de continuidad histórica,
porque sólo a través de la recuperación de las historias particulares de estas comunidades pueden ellas
mismas plantear reivindicaciones respecto a su derecho a la autodeterminación con implicaciones
culturales, políticas y territoriales” (PONCE, 2017).
175 “El adjetivo “turbulento” no es gratuito. La actitud de bloqueo frontal, activo y a menudo violento de los
sectores opositores al desarrollo de la Asamblea Constituyente fue finalmente canalizada por el oficialismo
a través de la apertura de un proceso de negociación en el Congreso (octubre del 2008) sobre el texto
aprobado por la propia Asamblea Constituyente el 2007. El proceso de negociación con la oposición llevó a
modificar, por fuera del poder constituyente legal y legítimo, 144 artículos de la Carta Magna finalmente
referendada en enero del 2009, sin alterar la estructura y bases fundamentales del texto, pero sí incluyendo

225
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

do como resultado dispositivos legais amplos, em disputa, alguns deles imbuídos


de concessões políticas à parcelas privilegiadas da sociedade176. Esse fenômeno
também atingiu a regulamentação das Autonomias Indígenas, que tiveram a sua
moldura montada com certa rigidez processual, burocratizando tanto o processo
de criação de Autonomias mediante conversão municipal, quanto o seu estabele-
cimento por conversão de Território Indígena Originário Campesino177 (TIOC).
As Autonomias, além de serem o núcleo inovador da estruturação do
Estado Plurinacional, questionam a estrutura histórica do Estado boliviano
que concentrou, durante longo espaço de tempo, o capital estatal em classes
sociais econômica e culturalmente homogêneas e distintas da parcela mais
numerosa da sociedade: as comunidades indígenas originárias. O projeto
autonômico tem como núcleo a reivindicação da autogoverno e autogestão
indígena e consequentemente a mudança das relações econômicas, histori-
camente imbuídas da carga colonial, pautadas na exploração da mão de obra
indígena, no latifúndio e na política de exportação de matérias primas.
Todavia, o processo de estabelecimento das AIOCS é permeado por contra-
dições, que vão desde a distribuição de TIOC pela política de Reforma Agrária, até
o complexo e longo sistema de conversão municipal. A normativa infraconstitu-
cional que regulamenta o tema é a Ley Marco de Autonomías e Descentralizacíon
(LMAD), ela trata do funcionamento e atribuições da descentralização estatal,
que consiste na transferência de competências de um órgão público a instituições
da mesma administração através da qual uma entidade territorial adquire quali-
dade governativa, desde que atenda aos requisitos legais (BOLÍVIA, 2010).
O Decreto 231 de 06 de dezembro de 2009 possibilitou a formação de
autonomias por referendo municipal, e descreve quatro etapas deliberativas
como requisitos a serem obedecidos: a constituição de um conselho delibera-
tivo, passando à elaboração e aprovação da Carta Orgânica que, após, é revi-

importantes concesiones de “carácter conservador” según el constituyente Raúl Prada, en Boaventura de


Sousa Santos, Refundación del Estado en América Latina” (TORRA, p.98, 2015).
176 Exemplo disto foi o tamanho máximo de cinco mil hectares imposto às propriedades agrárias que
passou a ser aplicado apenas às terras adquiridas após a promulgação da Constituição, mantendo
intocados grandes extensões de terras preexistentes a ela. Ver Brum e Silva (2017).
177 “La Tierra Comunitaria de Origen es una modalidad de propiedad agraria ya reconocida por la
constitución de 1994, donde pueblos campesinos y comunidades indígenas desarrollan sistemas
comunitarios de organización económica, social y cultural” (MUN, 2012).

226
Marxismo e América Latina

sada pelo Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) e posto a votação, para


aprovação por referendo. Conforme dados de 2018, nove anos após a previsão,
apenas três localidades conseguiram concluir todas as etapas e constituir um
governo autônomo: Uru Chipaya (Departamento de Oruro) e Charagua (De-
partamento de Santa Cruz) mediante conversão municipal; e Raqaypampa
(Departamento de Cochabamba) via TIOC (RIVAS, 2018).
Quando constituídas de fato e de direito, passam a possuir prerrogativas
administrativas próprias e o Estado Central adquire a qualidade de articu-
lador de interesses e políticas públicas a nível macro. Uma das questões que
persistem sobre essa escolha de modelo de descentralização é que a horizon-
talidade e formas comunitárias de tomada de decisão se limitam ao âmbi-
to territorial das Autonomias, e não influenciam significativamente o Poder
Central. Springerová & Vališková (2017) citam como exemplo o efeito não
vinculativo que possui a Consulta Prévia à povos e comunidades indígenas
sobre a exploração de recursos naturais localizados em territórios autônomos,
ratificando sua pouca influência sobre o Estado Central.
O burocrático caminho a ser seguido e suas barreiras processuais, políti-
cas e geracionais178 podem ser reconhecidas como freio e explicação ao pequeno
número de Autonomias por via Municipal constituídas até então, em consequ-
ência, a demora e a complexidade processual são apontadas pelos protagonistas
do processo de conversão do município de San Pedro Totora Marka como travas
a formação das Autonomias. Integrantes do movimento indianista fazem res-
salvas sobre o produto final da conversão ser parecido, quiçá idêntico, ao mode-
lo municipal importado dos colonizadores espanhóis nos moldes republicanos,
os quais ignoram a noção de continuidade territorial própria da visão indígena,
e adotam como paradigma a ideia de parcelação de terra (SPRINGEROVÁ &
VALIŠKOVÁ, 2017). Além disso, alguns indianistas pontuam que seria republi-
cana a própria lógica de enquadramento em uma moldura institucional, que o
caráter da oralidade e da constituição “de fato” deveriam prevalecer.

178 Em San Pedro de Totora Marka, por exemplo, a maioria dos habitantes é de origem Aymará (nação
Jach’a Karangas) e a sua forma de organização em ayllus implica em hierarquia geracional. Vários
jovens desse Município se opuseram a sua conversão, pois o Estatuto Autonomico definia que
somente após ter passado por cargos originários aconteceria o ingresso em cargos institucionais,
o que de certa forma limitava a participação política da juventude, sobretudo dos jovens indígenas
urbanizados. Ver Springerová & Vališková (2017).

227
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Sobrepondo-se a essa visão, Rivas (2018), Vice ministro de Autonomias,


destaca que é a primeira vez na história que criam-se unidades territoriais
autônomas na Bolívia, portanto, esse processo não pode esquivar-se da elabo-
ração de normas institucionais gerais, já que elas regulamentarão o funciona-
mento das entidades territoriais e serão uma ferramenta que funcionará como
uma norma “marco”, mediando a institucionalidade das AIOC com o Estado
Central. Nesse sentido, critérios como o quantitativo populacional - que deve
ser entre dez e cinco mil habitantes para Municípios (Art. 15, III, LMAD) - e o
limite territorial, teriam o intuito de evitar a emergência de entidades territo-
riais autônomas que possam vir a ter gestões precárias com poucos recursos.
Somadas a essas questões, tem-se que considerar fatores políticos que, na
prática, transformam-se em travas processuais. O Município de San Pedro To-
tora Marka, por exemplo, teve a sua conversão rechaçada pelas elites locais, que
utilizaram-se de mecanismos de contra-campanha ao projeto de Autonomias,
visto que ela ameaçava sua hegemonia governativa: “Como la autonomía indígena
fortalece las instituciones tradicionales y estrategias comunitarias e intenta generar
el equilibrio social en la comunidad, para esta élite significaría la pérdida de una
parte de su propiedad privada” (SPRINGEROVÁ; VALIŠKOVÁ, 2017, p.14).
Ademais, também influem no processo de configuração jurídica das Au-
tonomias as organizações indígenas e a estrutura sociopolítica rural da Bolí-
via (TORRA, 2015). Esta última é sobremaneira afetada pela Reforma Agrária,
que é uma política essencial para a formação das Autonomias através da sua
atuação na distribuição e saneamento179 de terras para comunidades e povos
indígenas originários camponeses.
A Ley de Reconducíon Comunitária de Reforma Agraria (LRCRA), promul-
gada pelo Governo Evo em 28 de novembro de 2006, aumentou significativamen-
te o alcance do saneamento de terras. Conforme apontam dados presentes no
Relatório acerca dos Territórios Indígenas Originários Campesinos da Bolívia de
2010, da Fundação Terra, até o ano anterior a sua vigência, quando vigorava em
matéria de legislação agrária a lei Instituto Nacional da Reforma Agrária (INRA)

179 “Es el procedimiento técnico jurídico transitorio destinado a regularizar y perfeccionar el derecho
de propiedad agraria y se ejecuta de oficio o a pedido da parte (Ley 1715 art. 64). El saneamiento
tiene existencia legal desde 18 de octubre de 1996 y su reglamento fue aprobado mediante el Decreto
Supremo N° 23763 de 5 de mayo de 200. El 2 de agosto de 2007 este reglamento fue sustituido mediante
Decreto Surpemo N° 29215” (COLQUE, 2010, p.5)

228
Marxismo e América Latina

haviam titulados apenas 9,3 milhões de hectares, que correspondiam apenas a


8,7% da superfície destinada ao saneamento. Após a vigência da LRCRA foram
titulados e saneados 45,6 milhões de hectares, ficando demonstrado o avanço de
42,8%. Apenas em 2010 foram saneados 14,07 milhões de hectares, os quais equi-
valem a 13% da superfície destinada para essa finalidade.
O governo de Evo Morales titulou mais de 10,5 milhões de hectares como
TIOC, estando 6,8 milhões de hectares em terras altas dos Altiplano Boliviano
(FUNDACION TIERRA, 2011). No intervalo de 1996 a 2012, foram saneados
mais de 20 milhões de hectares e 195 TIOCs, mas somente uma pequena parcela
possui os requisitos necessários, estabelecidos pela LMDA, para converterem-se
em AIOC, cerca de 11% apenas (MUN, 2012). Dos 135 TIOCs das terras altas,
apenas vinte atendem os requisitos populacionais (no mínimo dez mil; para terras
baixas o requisito é de mil) e de continuidade territorial (visto a descontinuidade
geográfica) (MESQUITA E VALENÇA, 2018). Por sua vez, o cenário das terras
baixas é mais precário: 50% das TIOC não cumprem os requisitos populacionais
mínimos e 70% não possuem continuidade territorial.

5. Considerações finais
O entrelaçamento entre classe e etnia é um fato histórico contínuo na
Bolívia, que fica evidente desde a invasão colonial, na qual a existência de
grande parte da sociedade, que é indígena, foi colocada à margem do Estado.
A conformação de um Estado que ignora a existência e as necessidades reais
da maioria da população, causou o enquadramento dos povos e nações indí-
genas originários como minorias políticas, desconsiderando a sua forma de
organização social e territorial própria. A inexistência de fato do Estado na
vida e na construção de sociabilidade da maior parte da sociedade boliviana
e processo colonizador de base capitalista foram pilares para que a divisão
social étnica se tornasse símile a divisão de terras.
Diante disso, o engajamento político-organizativo, saldo de inúmeras su-
blevações indígenas e agora da experiência pela via institucional do governo do
primeiro Presidente indígena do país, pavimentou o caminho para a reorga-
nização estatal que colocou no centro do projeto político a perspectiva da in-
dianitud. Nesse cenário de superação do passado colonial, é possível visualizar
dificuldades na materialização do Estado Plurinacional, que em sua maioria re-

229
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

sultam da própria contradição do avanço do capitalismo nos países latino ame-


ricanos e da sua coexistência com outras formas de organização social, sobretu-
do as norteadas por vínculos comunitários. As contradições persistem também
na política orientadora das Autonomias, que se constitui como uma inovação
histórica no que diz respeito ao exercício coletivo de direitos indígenas, mas por
outro apresenta travas processuais e materiais que obstam a formação de novos
territórios autonômicos, seja pelo longo processo de conversão municipal ou
ainda pela existência de poucos TIOCs que preenchem os requisitos da LMAD.
Apesar de todas as contradições apontadas, é inegável os avanços alcançados
pela luta dos indígenas na Bolívia, que vão desde a construção do Estado Plurina-
cional até a fuga da perspectiva multiculturalista na conquista de direitos.

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232
Coleção Crítica do Direito:
Experiências Sociais e Jurídicas

Coordenação:
Prof. Dr. Enzo Bello e Prof. Dr. Ricardo Nery Falbo

Inaugurada em 2016, a Coleção Crítica do Direito: Experiências Sociais e


Jurídicas tem publicado livros que trazem pesquisas acadêmicas com perfil
crítico e interdisciplinar, oportunizando a seus leitores e suas leitoras contato
com produções recentes e inovadoras. E assim prosseguirá esse importante
trabalho de divulgação.

LIVROS PUBLICADOS LIVROS NO PRELO

Marxismo e América Latina: lutas políticas


De costas para o Império: o Estado
e novos processos constituintes, 2019.
Plurinacional da Bolívia e a luta pelo
Daniel Araújo Valença, Ronaldo socialismo comunitário, 2019 (2ª edição).
Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina
Daniel Araújo Valença
de Andrade Gomes (orgs.).
Apresentação de Enzo Bello e
Prefácio de Enzo Bello e Martonio
Martonio Mont’Alverne B. Lima
Mont’Alverne B. Lima

Política Judicial: a disputa pela supremacia A cidadania na luta política dos movimentos
na Defensoria Pública, 2019. sociais urbanos, 2019 (2ª edição).
Vinícius Alves Barreto da Silva Enzo Bello

A Ofensiva do Conservadorismo: Serviço Teoria Constitucional e as Desigualdades


Social em Tempos de Crise - volume I, 2019. Raciais no Brasil, 2019.
Suéllen Bezerra Alves Keller Gustavo Proença da Silva Mendonça

233
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

A Ofensiva do Conservadorismo: Luta de Classes


e Crise do Socialismo - volume 2, 2019. Irregularidades do Parque Olímpico e
Violações à Vila Autódromo, 2019.
Rene José Keller
Mariana Gomes Peixoto Medeiros
Prefácio de Enzo Bello

Direito e Marxismo: Tempos de Regresso


e a contribuição marxiana para a
Cidade cerzida: sobre o que também se
teoria constitucional e política.
pode esperar de nossas favelas, 2019.
Enzo Bello; Martonio Mont’Alverne
Adriana Ribeiro Rice Geisler
Barreto Lima; Daniel Araújo Valença;
Sergio Augustin (orgs.).

Curso de Direito à Cidade: Teoria


e Prática, 2019 (2ª edição).
Enzo Bello e Rene José Keller (orgs.).
Prefácio de Jacques Távora Alfonsin
Apresentação de José Geraldo de Sousa Jr.

Transexualidade e Direito: construções para


além dos círculos hegemônicos de poder, 2019.
Ana Patrícia Racki Wisniewski

A cidadania no constitucionalismo
latino-americano, 2018 (2ª edição).
Enzo Bello
Prefácio à 2ª edição de Fernanda Frizzo Bragato
Apresentação de Martonio Mont’Alverne B. Lima

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Experiências Sociais e Jurídicas

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Inaugurada em 2016, a Coleção Crítica do Direito: Experiências Sociais e


Jurídicas tem publicado livros que trazem pesquisas acadêmicas com perfil
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De costas para o Império: o Estado Plurinacional da


Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário, 2018.
Daniel Araújo Valença
Apresentação de Enzo Bello e
Martonio Mont’Alverne B. Lima

Curso de Direito à Cidade: Teoria e Prática, 2018.


Enzo Bello e Rene José Keller (orgs.).
Prefácio de Jacques Távora Alfonsin
Apresentação de José Geraldo de Sousa Jr.

P.E.CS: Propostas de Emenda à Constituição ou


Processos de Exclusão e Criminalização? 2018.
Laila Maria Domith Vicente
Prefácio de Maria Livia do Nascimento

235
Daniel Araújo Valença, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Rayane Cristina de Andrade Gomes

Vila Autódromo na disputa: entre a colonização


do urbano e o direito à moradia, 2017.
Marcela Münch de Oliveira e Silva
Prefácio de Enzo Bello
Apresentação de Fernanda Frizzo Bragato

Direitos humanos vistos do lado de cá: teoria


crítica e pensamento descolonial, 2017.
Natália Martinuzzi Castilho
Prefácio de Fernanda Frizzo Bragato
Orelha de Ricardo Nery Falbo

Pensamento descolonial e direitos indígenas: uma


crítica à tese do “marco temporal da ocupação”, 2017.
Dailor Sartori Junior
Prefácio de Paulo Gilberto Cogo Leivas
e Fernanda Frizzo Bragato

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Copa do Mundo de 2014, 2016.
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nos sites de redes sociais, 2016.
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237

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