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Biodiversidade e agricultores. Fortalecendo manejo comunitário

Book · January 2007

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4 authors, including:

Walter Simon de Boef Juliana Bernardi Ogliari


Ag-Connectors Federal University of Santa Catarina
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SEE PROFILE SEE PROFILE

Bhuwon Ratna Sthapit


Bioversity International
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SEE PROFILE

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KfW Crop Trust consultancy - promoting use of genetic diversity to enhance climate change resilience in agriculture View project

Conservation and Sustainable Use of Cultivated and Wild Tropical Fruit Diversity: Promoting Sustainable Livelihoods, Food Security and Ecosystem Services in South
and South East Asia (GEF UNEP) View project

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Biodiversidade e agricultores
Fortalecendo o manejo comunitário

Biodiversidade 0204.P65 1 5/4/2007, 10:48


Publicado pelas instituições parceiras:

Núcleo de Estudos em Agrobiodiversidade (NEABio) é um grupo de professores


e estudantes do Centro de Ciências Agrárias (CCA), da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), que tem como proposta de trabalho desenvolver e incenti-
var ações participativas de pesquisa, ensino e extensão, junto com as comunidades
de agricultures familiares, na linha temática de conservação, manejo e uso da agro-
biodiversidade. Rodovia Admar Gonzaga, 1346 – Itacorubi, CEP 88034-001,
Florianópolis – SC; www.cca.ufsc.br.
Wageningen International da Universidade e Centro de Pesquisa de Wageningen
(Wageningen UR) tem como objetivo desenhar e implementar programas de
capacitação para o desenvolvimento de indivíduos, organizações e instituições de
maneira integrada. P.O. Box 88, 6700 AB, Wageningen, Países Baixos;
www.wi.wur.nl.
Bioversity International é uma organização científica internacional autônoma,
apoiada pelo Grupo Consultativo de Pesquisa Agropecuária Internacional (CGIAR),
com o objetivo de fazer progredir a conservação e o uso da biodiversidade na agri-
cultura e florestas para o bem-estar das gerações atuais e futuras. Via dei Tre Denari
472/a, 00057 Maccarese, Roma, Itália; http://www.bioversityinternational.org.
O Instituto de Agrobiodiversidade e Desenvolvimento Socioambiental –
Porerekan é uma ONG de caráter científico, técnico e educacional, com, entre
outras, atividades nas áreas de agrobiodiversidade e ambiental e com os objetivos
de estimular a independência das famílias rurais quanto aos recursos genéticos,
sementes e tecnologias de produção e contribuir ao debate e estudar as implicações
sociais, políticas e jurídicas para o manejo e uso dos recursos naturais e da agrobio-
diversidade. Rua Nossa Senhora de Fátima, Guaraciaba- SC.
Equipe de apoio:
Tradução: Juliana Vitória Bittencourt e Gustavo Rinaldi Althoff
Edição: Maria José Guazzelli e Andréa Lúcia Paiva Padrão Ângelo
Desenhos: Hatsi Corrêa Galvão, do Rio Apa

Financiado pelo:
Programa de Capacitação “Estratégias integradas e participativas no manejo e uso
de agrobiodiversidade” (Projeto: NFP/BRA/619), pelo Programa de Financiamen-
to de Educação Superior dos Países Baixos (NFP), da Organização para Coopera-
ção Internacional em Educação Superior dos Países Baixos (NUFFIC), P.O. Box
29777, 2502 LT Den Haag, Países Baixos; www.nuffic.nl/nfp.

O conteúdo técnico, social e político dos capítulos e textos complementares é de


responsabilidade de seus respectivos autores.

Biodiversidade 0204.P65 2 5/4/2007, 10:48


BIODIVERSIDADE E AGRICULTORES
FORTALECENDO O MANEJO COMUNITÁRIO

Walter Simon de Boef, Marja Helen Thijssen,


Juliana Bernardi Ogliari e Bhuwon Sthapit
(editores)

Biodiversidade 0204.P65 3 5/4/2007, 10:48


Título do original:

Tradução:
Revisão: Jó Saldanha e Renato Deitos
Capa:

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

Copyright ©

Todos os direitos desta edição reservados à L&PM Editores


PORTO ALEGRE: Rua Comendador Coruja 314, loja 9 - 90220-180
Floresta - RS / Fone: 51.3225.5777
PEDIDOS & DEPTO. COMERCIAL: vendas@lpm.com.br
FALE CONOSCO: info@lpm.com.br
www.lpm.com.br

Impresso no Brasil
Outono de 2007

Biodiversidade 0204.P65 4 5/4/2007, 10:48


SUMÁRIO

Agradecimentos ............................................................................. 9
Lista de autores ............................................................................ 11
Siglas ............................................................................................ 14

1. Agrobiodiversidade e agricultores: introdução ....................... 15


1.1 Introdução ao trabalho de conservação e manejo
comunitário da biodiversidade agrícola ............................ 17
1.2 Equipes de facilitação em manejo comunitário
da agrobiodiversidade – aprendizagem e ação em
Santa Catarina .................................................................... 22

2. Biodiversidade, agricultura e conservação:


conceitos e estratégias .................................................................. 39
2.1 Biodiversidade e agrobiodiversidade ................................ 41
2.2 Biodiversidade e agroecologia .......................................... 46
2.3 Estratégias de conservação em unidades de
produção familiares ........................................................... 52
2.4 Perda da diversidade de espécies e de raças
de animais domésticos: um tema quase esquecido ........... 61
2.5 Uma perspectiva de sistemas aproximando
agricultores e pesquisadores no manejo
comunitário da agrobiodiversidade ................................... 69

3. Metodologias participativas: instituições,


agricultores e comunidades na pesquisa e no manejo ................. 79
3.1 Um novo profissional na pesquisa de
desenvolvimento agrícola participativo ............................ 81
3.2 Seleção de variedades e
melhoramento genético participativo ................................ 91

Biodiversidade 0204.P65 5 5/4/2007, 10:48


3.3 Melhoramento genético participativo e
conservação de variedades locais na
agricultura familiar .......................................................... 164
3.4 Melhoramento participativo de cultivos no Brasil ......... 111
3.5 Avaliação participativa do manejo de
agroecossistemas: indicadores de sustentabilidade ........ 122

4. Manejo comunitário da agrobiodiversidade:


práticas e ferramentas ................................................................ 139
4.1 Processos e ferramentas de diagnóstico
participativo ..................................................................... 141
4.2 Manejo comunitário da agrobiodiversidade ................... 154
4.3 Ferramentas práticas que estimulam o
manejo comunitário de agrobiodiversidade .................... 164
4.4 Registro da biodiversidade comunitária .......................... 185
4.5 Análise participativa de agrobiodiversidade
quatro-células................................................................... 193
4.6 Análise participativa de redes sociais de sementes ........ 213

5. Políticas de recursos genéticos relevantes


para o manejo comunitário da agrobiodiversidade ................... 215
5.1 Aspectos políticos e legais internacionais
com impacto local ............................................................ 217
5.2 Aspectos específicos do acesso ao patrimônio
genético e do conhecimento tradicional associado
à biodiversidade ............................................................... 226
5.3 Biodiversidade cercada: quem é o dono? ........................ 233

6. Experiências locais de manejo comunitário


da agrobiodiversidade no Brasil ................................................ 251
6.1 Metodologias participativas e a geração de
biotecnologias apropriadas para o desenvolvimento
rural sustentável ............................................................... 253
6.2 Resgate, uso e produção de sementes
crioulas de milho em Anchieta ........................................ 264

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6.3 Manejo e uso de variedades de milho como
estratégia de conservação, em Anchieta ......................... 273
6.4 Manejo e domesticação de mandioca por caiçaras
da Mata Atlântica e ribeirinhos da Amazônia ................ 282
6.5 Educação temática e participativa: a
agrobiodiversidade como tema na escola ....................... 293
6.6 Manejo e conservação da agrobiodiversidade
pelos índios Guarani Mbyá ............................................. 304
6.7 Recuperação, produção e melhoramento de
sementes crioulas de hortaliças em Santa Catarina ........ 315

Anexos
Quadros
Ferramenta participativa Linha do tempo,
utilizada no programa de agrobiodiversidade
em Santa Catarina (2005-2006) ............................................. 148

Ferramenta participativa matriz de cultivos e


variedades utilizada no programa de agrobiodiversidade
em Santa Catarina (2005-2006) ............................................. 150

Ferramenta participativa Mapa da comunidade


– agrobiodiversidade e sua distribuição, utilizada
no programa de agrobiodiversidade, em Santa
Catarina (2005-2006) ............................................................. 152

A Festa do Milho Crioulo em Anchieta ................................ 170

Textos complementares
Ensaios e canteiros de diversidade nos municípios
de Novo Horizonte, São Lourenço e em seis
outros do Oeste catarinense ................................................... 174

O Kit de Diversidade – motivação para usar e


conservar variedades crioulas ................................................ 178

Convivendo no semi-árido com as sementes da paixão ....... 183

Biodiversidade 0204.P65 7 5/4/2007, 10:48


Registrar as sementes crioulas no Brasil? ............................. 192

Análise participativa quatro-células praticada


no programa de agrobiodiversidade na comunidade
de Rio da Prata, Anitápolis-SC (2005-2006) ........................ 201

Biodiversidade 0204.P65 8 5/4/2007, 10:48


AGRADECIMENTOS
Aos agricultores de Anchieta, pela acolhida e amizade e tam-
bém por nos ter possibilitado exercitar nossa capacidade de obser-
vação, reflexão, análise e aprendizagem para o desenvolvimento de
nossas atividades acadêmicas e científicas, com um olhar mais
voltado às verdadeiras necessidades e anseios da agricultura fami-
liar. A todos aqueles agricultores do Brasil que retiram da natureza o
seu e o nosso sustento, sem perder a consciência e a persistência de
que para ela é preciso olhar e aos filhos da terra é preciso ensinar
como dela devemos cuidar. Aos agricultores do mundo inteiro, im-
buídos da árdua e prazerosa tarefa de guardar a fonte de vida eterna
para toda a humanidade, conservando e manejando nossa agrobiodi-
versidade.
A todos os participantes, parceiros e instrutores nacionais e
internacionais do Programa de Capacitação em “Estratégias Inte-
gradas e Participativas de Manejo e Uso da Agrobiodiversidade”,
que se dedicaram e participaram ativamente em todas as etapas na
busca de novos conhecimentos a serem aplicados em favor do ma-
nejo comunitário da agrobiodiversidade e que, dessa forma, tam-
bém contribuíram para o desenvolvimento deste livro.
Às organizações parceiras Wageningen International, Bioversity
Internacional e Instituto Porerekan, que se uniram ao nosso grupo
do Núcleo de Estudos em Agrobiodiversidade (NEABio) na publi-
cação deste livro.
A todos os autores dos capítulos e dos textos complementares
que se juntaram neste livro. É um grande prazer poder contribuir
para que seu trabalho com agricultores familiares e comunidades
possa, agora, ser compartilhado com companheiros pelo Brasil afo-
ra, e mais além.
A Maria José Guazzelli, do Centro Ecológico/Ipê, quem, com
seu compromisso social e profundo conhecimento de desenvolvi-
mento agrícola sustentável, contribuiu enormemente para que este
livro tivesse a atual configuração e formato. A Juliana Vitória
Bittencourt e Gustavo Rinaldi Althoff, pelo trabalho de tradução
dos textos que foram enviados pelos colegas estrangeiros. A Andréa

Biodiversidade 0204.P65 9 5/4/2007, 10:48


Lúcia Paiva Padrão Ângelo, pela competência profissional e pelo
exemplar trabalho de revisão dos textos deste livro. A Karèn
Verhoosel, pela contribuição na organização deste livro. E a Hatsi
Corrêa Galvão, do Rio Apa, pelo trabalho artístico dos desenhos, o
que trouxe mais luz aos textos deste livro.
Ao Programa de Financiamento de Educação Superior dos
Países Baixos (NFP), da Organização para Cooperação Internacio-
nal em Educação Superior dos Países Baixos (NUFFIC), pelo apoio
financeiro concedido para a realização do Programa de Capacitação,
em Santa Catarina. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico, à Fundação de Apoio à Pesquisa Científica e
Tecnológica do Estado de Santa Catarina, ao Centro de Ciências
Agrárias e às Pró-Reitorias de Pesquisa, de Pós-Graduação, de Cul-
tura e Extensão, pelo apoio aos trabalhos desenvolvidos pelo Nú-
cleo de Estudos em Agrobiodiversidade.
A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram com
a força de seu trabalho para que esta publicação se tornasse uma
realidade.

Florianópolis, março de 2007


Juliana Bernardi Ogliari e Walter Simon de Boef

10

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LISTA DE AUTORES
Walter Simon de Boef, professor visitante do Centro de Ciências Agrárias (CCA),
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), membro do Núcleo de Estudos em
Agrobiodiversidade (NEABio), Florianópolis-SC; consultor/capacitador Wageningen
International, Universidade e Centro de Pesquisa de Wageningen (WUR), Wageningen,
Países Baixos, e membro do Instituto Porerekan, Guaraciaba-SC
Marja Thijssen, capacitadora, Wageningen International, WUR, Wageningen,
Países Baixos
Juliana Bernardi Ogliari, Coordenadora do NEABio, professora, Centro de Ciên-
cias Agrárias (CCA), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis-
SC e membro Instituto Porerekan, Guaraciaba-SC
Bhuwon R. Sthapit, pesquisador, coordenador de programas de manejo comunitá-
rio e melhoramento participativo, Bioversity Internacional – Ásia, Pokhara, Nepal
Abishkar Subedi, pesquisador/técnico, Local Initiatives for Biodiversity, Research
and Development (LIBIRD), Pokhara, Nepal
Adriano Canci, coordenador do Instituto Porerekan e facilitador de Microbacias 2,
Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina S/A (Epagri),
Guaraciaba-SC
Alírio Carléssi, agricultor agroecológico, membro da equipe de agrobiodiversida-
de, São Lourenço/Novo Horizonte-SC
Altair Toledo Machado, pesquisador, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa), Cerrados, Planaltina-DF
Ana Maria Batista, professora municipal, membro da equipe municipal de agro-
biodiversidade, Anitápolis-SC
Angela Cordeiro, consultora, Florianópolis-SC
Anil Subedi, consultor, Matepani, Pokhara, Nepal
Antonio Carlos Alves, professor, NEABio, CCA, UFSC, Florianópolis-SC, e mem-
bro do Instituto Porerekan, Guaraciaba-SC
Ashok Mudwari, pesquisador/técnico, Agricultural Botany Division (ABD), Nepal
Agricultural Research Council (NARC), Kathmandu, Nepal
Bal Krishna Joshi, pesquisador/técnico, ABD, NARC, Kathmandu, Nepal
Bimal Baniya, chefe do Agricultural Botany Division (ABD), NARC, Kathmandu,
Nepal
Carmen Munarini, agricultora/liderança, Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC), Chapecó-SC
Cynthia Torres de Toledo Machado, pesquisadora, EMPRAPA Cerrados,
Planaltina-DF
Daniel Habib, consultor autônomo, mestrando do Curso de Pós-Graduação em
Agroecossistemas, CCA, UFSC, Florianópolis-SC
Deepa Singh, pesquisador, Horticulture Division, NARC, Kathmandu, Nepal
Deepak Rijal, técnico, LIBIRD, Pokhara, Nepal

11

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Devendra Gauchan, pesquisador, Socio-economic and Agricultural Research Policy
Division, NARC, Kathmandu, Nepal
Dirceu Cossa, agricultor, membro da diretoria da Microbacia de Rio Flores, difusor
do Kit Diversidade
Diwakar Paudel, pesquisador/técnico, LIBIRD, Pokhara, Nepal
Elivane Sechi, professora do Núcleo Escolar Municipal Aluíno Knapp, membro da
equipe municipal de agrobiodiversidade, Palmitos-SC
Fabiana Thomé da Cruz, mestranda do Curso de Pós-Graduação em
Agroecossistemas, CCA, UFSC, Florianópolis-SC; membro da equipe municipal
de agrobiodiversidade, Anitápolis-SC
Fábio Kessler Dal Soglio, professor, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR), Por-
to Alegre-RS
Fernando André Risso, agricultor, membro da equipe de agrobiodiversidade, Novo
Horizonte-SC
Fernando Monteiro, proprietário de uma pousada rural, membro da equipe muni-
cipal de agrobiodiversidade, Anitápolis-SC
Flávia Londres, consultora autônoma, Rio de Janeiro.
Franciele Rieg, aluna do Centro de Desenvolvimento do Jovem Rural (Cedejor – Lauro
Müller-SC, membro da equipe municipal de agrobiodiversidade, Anitápolis-SC
Gilson Gugel, professor do Núcleo Escolar Municipal Aluíno Knapp, membro da
equipe municipal de agrobiodiversidade, Palmitos-SC
Hans Schiere, consultor em sistemas e em produção animal, Wageningen, Holanda
Ivan José Canci, extensionista, EPAGRI-Anchieta, Anchieta-SC
Ivete Margarida Andrioli Mendes, agricultora/liderança, MMC, Chapecó-SC
Jalcione Almeida, professor, UFRGS, PGDR, Porto Alegre-RS
Jean Carlos de Andrade Medeiros, consultor autônomo, Mestre em Agroecossis-
temas, CCA, UFSC, Florianópolis-SC
Jorge da Silva, agricultor permacultor, membro da equipe municipal de agrobiodi-
versidade, Anitápolis-SC
Jwala Bajracharya, pesquisadora, Seed Division, NARC, Kathmandu, Nepal
Karine Louise dos Santos, estudante de doutorado do Curso de Pós-Graduação
em Recursos Genéticos Vegetais, CCA, UFSC, Florianópolis-SC
Lúcio Schmidt, extensionista da Epagri/Associação dos Agricultores Ecólogicos
das Encostas de Serra Geral, Anitápolis-SC
Madhusudan P. Upadhaya, Coordenador Nacional do Projeto, ABD, NARC,
Kathmandu, Nepal
Maria Dorothea Post Darella, professora de Antropologia, Museu Universitário,
UFSC, Florianópolis-SC
Mariane Carvalho Vidal, pesquisadora, Embrapa Hortaliças, Brasília-DF
Natália Hanazaki, professora, Departamento de Ecologia e Zoologia, Centro de
Ciências Biológicas (CCB), UFSC, Florianópolis-SC
Nivaldo Peroni, consultor/pesquisador; diretor do Fish and Food Institute, Campi-
nas-SC; professor do Programa de Pós-Graduação em Recursos Genéticos Vege-
tais, CCA, UFSC, Florianópolis-SC

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Olavo Guedini, agricultor, membro do Instituto Porerekan, Guaraciaba-SC;
facilitador de Microbacia 2, Epagri, e membro da equipe municipal de agrobiodi-
versidade, Novo Horizonte-SC
Pablo Eyzaguirre, pesquisador, Bioversity Internacional, Roma, Itália
Pablo Sidersky, consultor para a FAO; estudante de doutorado na Universidade de
Wageningen, Países Baixos; Recife
Paula Almeida, assessora técnica da AS-PTA, Rio de Janeiro
Pitamber Shrestha, técnico, LIBIRD, Pokhara, Nepal
Pratap K. Shrestha, diretor, LIBIRD, Pokhara, Nepal
Ram B. Rana, estudante de doutorado do Curso de Pós-Graduação, University of
Reading, Reading, RU
Resham Gautam, pesquisador/técnico, LIBIRD, Pokhara, Nepal
Ruud Ludemann, capacitador, Wageningen International, WUR, Wageningen,
Países Baixos
Sanjaya Gyawali, estudante de doutorado do Curso de Pós-Graduação, Department
of Plant Pathology, North Dakota State University, Fargo, EUA
Sérgio Leite Guimarães Pinheiro, pesquisador, Epagri, e professor participante do
Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas, CCA, UFSC, Florianópolis-SC
Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto, agricultora/liderança, MMC, Anchieta-SC
Tatiana Moto Miranda, mestranda do Curso de Pós-Graduação em Biologia Ve-
getal, Departamento de Botânica, CCB, UFSC, Florianópolis-SC
Thiago Heinzen, facilitador de Microbacia 2, Epagri, e membro da equipe munici-
pal de agrobiodiversidade, Anitápolis-SC
Volmir Kist, estudante de doutorado do Curso de Pós-Graduação em Recursos
Genéticos Vegetais, CCA, UFSC, Florianópolis-SC

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SIGLAS
AGRECO Associação dos Agricultores Ecológicos das Encostas de Serra Geral
APACO Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense
APQC Análise Participativa de Quatro Células
ASSO Associação dos Pequenos Agricultores Plantadores de Milho Crioulo
Orgânico e Derivados
CAPA Centro de Apoio aos Pequenos Agricultores
CCA Centro de Ciências Agrárias
CDB Convenção sobre Diversidade Biológica
CEADES Centro de Estudos Avançados em Desenvolvimento Sustentável
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
DRP Diagnóstico Rural Participativo ou Diagnóstico Rápido Participativo
Embrapa Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Epagri Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa
Catarina S.A.
FAO Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
MCT Ministério da Ciência e Tecnologia
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MGP Melhoramento Genético Participativo
MMA Ministério do Meio Ambiente
MMC Movimento de Mulheres Camponesas
MPA Movimento de Pequenos Agricultores
MPC Melhoramento Participativo de Cultivos
NEABio Núcleo de Estudos em Agrobiodiversidade
OMC Organização Mundial do Comércio
ONG Organização Não-Governamental
Porerekan Instituto de Agrobiodiversidade e Desenvolvimento Socioambiental
Sintraf Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar
SPV Seleção Participativa de Variedades
TI Tratado Internacional (de Recursos Fitogenéticos para Agricultura e
Alimentação), ou Tratado Internacional de Sementes
TTM Termo de Transferência de Material
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
WUR Universidade e Centro de Pesquisa de Wageningen (Países Baixos)

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1
AGROBIODIVERSIDADE E
AGRICULTORES: INTRODUÇÃO

15

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16

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1.1 INTRODUÇÃO AO TRABALHO DE CONSERVAÇÃO E MANE-
JO COMUNITÁRIO DA BIODIVERSIDADE AGRÍCOLA

Assim como a agroecologia e o desenvolvimento sustentável,


a biodiversidade é um assunto importante para o futuro da humani-
dade, no contexto da agricultura sustentável, em nível mundial e no
Brasil. Muitos dos componentes que contribuem para a agroecologia,
para a redução da pobreza e da fome e para o processo de construção
de uma sociedade mais igualitária estão relacionados a aspectos agro-
nômicos, econômicos, culturais e políticos da biodiversidade. Des-
de os anos 90 se reconhece a importância dos povos indígenas e dos
agricultores familiares para a manutenção da biodiversidade, a qual
alimenta e contribui para a economia mundial.
Em um contexto de desenvolvimento sustentável, apenas o re-
conhecimento dessa contribuição não é suficiente. Para apoiar esse
recurso, importante para a “humanidade”, é fundamental oferecer
condições para a continuidade dos processos de manejo da biodi-
versidade agrícola, ou agrobiodiversidade, como referido neste li-
vro, feitos pelas comunidades de agricultores e de populações indí-
genas. Para tanto, é premente aplicar estratégias participativas que
busquem a conexão entre o conhecimento científico da academia e
dos centros de pesquisa com o conhecimento das comunidades de
agricultores e de povos indígenas, tanto para a conservação da bio-
diversidade e da agrobiodiversidade como para o uso desses recur-
sos em sistemas mais sustentáveis de agricultura. Dentro do contex-
to sul-americano e brasileiro, é importante salientar que a conexão
entre cientistas de universidades, de entidades governamentais e não-
governamentais de pesquisa e comunidades de agricultores familia-
res é relativamente mais recente, se comparada a outros locais do
mundo. No estado de Santa Catarina, no sul do Brasil, esse processo
teve um início em 2002, a partir da fundação do Núcleo de Estudos

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Biodiversidade 0204.P65 17 5/4/2007, 10:48


em Agrobiodiversidade (NEABio), na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC).

NEABIO
O NEABio é composto por um grupo de professores universitá-
rios, pesquisadores e estudantes, associado aos Programas de Pós-
Graduação em Recursos Genéticos Vegetais e em Agroecossistemas da
Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. Tem como
proposta de trabalho desenvolver e incentivar ações de pesquisa, de
ensino e de extensão junto a comunidades de agricultores familiares,
na linha temática da conservação, do manejo e do uso da agrobiodiver-
sidade. A partir de ações participativas, o grupo se propõe a promover
a soberania alimentar e o desenvolvimento socioeconômico de comu-
nidades locais com base em quatro princípios:
•Valorização do conhecimento tradicional e científico, dentro
de um contexto integrado de participação;
• Utilização de estratégias de produção baseadas na sustenta-
bilidade dos sistemas agrícolas de produção familiar;
• Utilização de métodos participativos e integrados de pesquisa,
de ensino e de extensão;
• Promoção do manejo e uso do germoplasma local como es-
tratégia de conservação da agrobiodiversidade.

AGRICULTORES E ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL EM ANCHIETA


Uma grande inspiração para o fundação do NEABio foi decor-
rente do movimento e da organização dos agricultores do município
de Anchieta, no extremo Oeste de Santa Catarina, iniciado em 1998,
com base em um trabalho muito importante de resgate de variedades
crioulas de milho. Foram alguns agricultores, técnicos e organiza-
ções locais que conscientizaram outros agricultores do próprio mu-
nicípio e de municípios do entorno, e também outros profissionais
da região, sobre o valor das variedades crioulas para os sistemas
particulares da agricultura familiar.
Com essa finalidade, desde 2002, o NEABio vem estabelecen-
do parcerias de trabalho em comunidades de agricultores familiares
do extremo Oeste catarinense, tendo como colaboradores a Asso-
ciação dos Pequenos Agricultores Plantadores de Milho Crioulo

18

Biodiversidade 0204.P65 18 5/4/2007, 10:48


Orgânico e Derivados (ASSO) e o Sindicato dos Trabalhadores na
Agricultura Familiar (Sintraf) de Anchieta, o Movimento dos Pe-
quenos Agricultores (MPA) e, mais recentemente, o escritório mu-
nicipal, em Anchieta, da Empresa de Pesquisa e Extensão Rural de
Santa Catarina (Epagri). O Instituto de Agrobiodiversidade e De-
senvolvimento Socioambiental – Porerekam – do qual alguns de nós,
editores e autores de capítulos deste livro, fazemos parte – é uma
rede de agricultores, de técnicos, de pesquisadores e de professores,
inspirada na experiência de Anchieta, que começou a atuar nesse
tema, a partir de 2005, abrangendo um território mais amplo do que
aquele município.

PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO EM AGROBIODIVERSIDADE


Como universidade pública e tendo o compromisso social de
contribuir para o desenvolvimento sustentável no Estado de Santa
Catarina, o NEABio decidiu ampliar a parceria de trabalho para outros
locais do estado. Como pesquisadores e estudantes, também decidi-
mos que seria importante ampliar nossa área de atuação, envolven-
do outros cultivos além do milho, bem como atividades de capacitação
informal, além da pesquisa, extensão e ensino formal já desenvolvi-
dos na universidade. Baseado nisso, em 2003, o NEABio aproxi-
mou-se do governo da Holanda com uma proposta para financiar e
implementar um programa de treinamento intitulado “Estratégias
integradas e participativas de manejo e uso da agrobiodiversidade
para Santa Catarina, Brasil”. A partir desse programa de capacitação
profissional, um corpo de técnicos e lideranças de agricultores em
nível estadual e municipal, procedentes de alguns locais-chave do
estado, poderia ser capacitado em trabalhos participativos para con-
tribuir com o compromisso social do NEABio como grupo de
pesquisa, ensino e extensão, voltado para o desenvolvimento de tra-
balhos junto a comunidades de agricultores familiares, na linha
temática da conservação, manejo e uso da agrobiodiversidade. O
programa foi implementado no período de setembro de 2005 até
dezembro de 2006 pelo NEABio, tendo como parceiras locais algu-
mas organizações não-governamentais (CEADES, Instituto
Porerekam e AGRECO) e governamentais (Epagri). O instituto
Wageningen International, sediado na Holanda, que pertence à Uni-

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Biodiversidade 0204.P65 19 5/4/2007, 10:48


versidade e Centro de Pesquisa de Wageningen (Wageningen UR)
foi o responsável pela implementação do programa de treinamento.
O Bioversity Internacional, antigo IPGRI, com sede em Roma, na
Itália, foi um colaborador internacional, contribuindo com experiên-
cias de trabalhos em agrobiodiversidade especialmente na Ásia. Mais
detalhes sobre o programa de agrobiodiversidade em Santa Catarina
podem ser encontrados no Capítulo 1.2.

OBJETIVOS E ESTRUTURA DO LIVRO


Os textos incluídos neste livro visam compartilhar algumas
experiências que têm contribuído para o manejo comunitário da agro-
biodiversidade e para o melhoramento participativo das espécies
cultivadas, como forma de estimular o seu uso e conservação. Os
relatos descrevem tanto casos emblemáticos que ocorreram em uma
escala local, envolvendo alguns municípios do estado de Santa
Catarina, quanto alguns exemplos de outros estados do Brasil e tam-
bém de outras partes do mundo. Seu conteúdo contempla os avan-
ços na linha temática do manejo comunitário e do melhoramento
participativo em escala mundial considerados relevantes também para
o contexto sul-americano e brasileiro.
Com a finalidade de facilitar a leitura, segundo a lógica dos
temas tratados, buscou-se organizar os capítulos em seis partes, com
um capítulo introdutório, em que são relatadas as estratégias de apren-
dizagem e de ação na formação de equipes facilitadoras do manejo
comunitário da agrobiodiversidade (primeira parte), seguido por
capítulos de conteúdo conceitual e histórico sobre temas relaciona-
dos à biodiversidade, à agrobiodiversidade e à agroecologia e abor-
dagens aplicadas sobre estratégias de conservação de espécies vege-
tais e animais (segunda parte); sobre metodologias participativas e
experiências de manejo comunitário da agrobiodiversidade, apoiadas
pelo sistema formal e apresentando casos em melhoramento partici-
pativo (terceira parte); descrição de práticas e ferramentas participa-
tivas usadas no manejo comunitário da agrobiodiversidade, principal-
mente com base em trabalhos de Bioversity Internacional e parceiros
no Nepal e do NEABio, em Santa Catarina (quarta parte); políticas de
recursos genéticos consideradas relevantes para o manejo comunitá-
rio da agrobiodiversidade (quinta parte); e relatos de experiências e

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casos locais de manejo e uso comunitário da agrobiodiversidade
dentro de um contexto agroecológico (sexta parte).

Florianópolis, Wageningen e Pokhara, março de 2007

EDITORES
Walter Simon de Boef
Coordenador do Programa de Capacitação no Brasil
Wageningen International, Universidade e Centro de Pesquisa de
Wageningen
NEABio, Universidade Federal de Santa Catarina
Wageningen, Holanda/Florianópolis

Marja Helena Thijssen


Coordenadora do Programa de Capacitação na Holanda
Wageningen International, Universidade e Centro de Pesquisa de
Wageningen
Wageningen, Holanda

Juliana Bernardi Ogliari


Coordenadora do NEABio
NEABio, Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal de Santa
Catarina
Florianópolis

Bhuwon Ratna Sthapit


Pesquisador e coordenador dos projetos in situ na Ásia
Biodiversity International
Pokhara, Nepal

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1.2 EQUIPES DE FACILITAÇÃO EM MANEJO
COMUNITÁRIO DA AGROBIODIVERSIDADE –
APRENDIZAGEM E AÇÃO EM SANTA CATARINA

Walter Simon de Boef, Marja Thijssen,


Juliana Bernardi Ogliari e Nivaldo Peroni

CONTEXTO HISTÓRICO
Santa Catarina é um estado relativamente “jovem”, tomando-se
como referência o desenvolvimento agrário moderno e o uso de tecno-
logias e insumos, como fertilizantes sintéticos, agrotóxicos e meca-
nização. No início do século XX, grande parte do seu território era
coberta por uma densa floresta atlântica, com poucos indígenas da
tribo Guarani. Cerca de duzentos mil habitantes praticavam uma
forma semipermanente de agricultura itinerante. A “colonização” de
grandes porções do meio rural aconteceu na metade do século XX, por
meio da derrubada de florestas virgens e da expulsão dos povos indí-
genas. Foi uma continuação do processo de desmatamento e de colo-
nização que imigrantes de origem portuguesa e açoriana haviam
começado, ao longo da costa, desde o final do século XVIII até o
século XIX. Também imigrantes de origem alemã, italiana, polone-
sa e austríaca ocuparam terras no vasto interior de Santa Catarina, que
foram divididas em lotes viáveis para produção familiar. As famílias
agricultoras européias trouxeram consigo seus hábitos e começaram
a praticar um tipo de agricultura “tradicional”, caracterizada pela
diversificação na produção de plantas cultivadas e de animais, prin-
cipalmente para subsistência. Conhecimentos e práticas indígenas,
espécies nativas tropicais e subtropicais, variedades agrícolas e raças
animais e conhecimento de sistemas de cultivo mesclaram-se a um
sistema de produção rural “europeu” de agricultura permanente.
A partir da década de 60, a introdução de culturas comerciais
(principalmente tabaco) e a criação industrial de animais (sobretudo
suínos e aves domésticas) apressaram o processo, resultando numa
“modernização parcial” da agricultura. Essa transformação foi estimu-
lada pelo governo militar brasileiro da época, que pretendia acelerar o
progresso e a economia do país por meio da industrialização da agri-

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cultura. Com esse fim, um fator importante foi a criação de instituições
de pesquisa, de extensão e de educação em agricultura, em níveis fe-
deral e estadual, constituindo uma tríade similar àquela que acelerava
a modernização da agricultura na Europa e na América do Norte. Os
serviços públicos visavam aos sistemas de produção agrícola comercial,
de larga escala, e industrial, ignorando a maioria dos agricultores fami-
liares. O sistema de pesquisa e extensão produziu tecnologias para
agriculturas industriais e de grande escala (cultivares, raças, mecaniza-
ção, etc.), enquanto o sistema educacional formou técnicos e agrôno-
mos preparados para trabalhar nesse mesmo tipo de agricultura. Por sua
vez, os serviços de geração de tecnologias e os de recursos humanos não
souberam combinar as demandas e a realidade da maioria dos agricul-
tores, que eram agricultores familiares.
Governos posteriores criaram condições econômicas e sociopo-
líticas que promoveram e estimularam o agronegócio e, mais uma vez,
ignoraram a agricultura familiar. O objetivo era o crescimento econô-
mico por meio da exportação de produtos agrícolas. Gradualmente,
conglomerados agroindustriais voltados ao mercado externo torna-
ram-se peças-chave no desenvolvimento do setor da agricultura indus-
trial no Brasil. Esse processo resultou em monoculturas de alguns
poucos cultivos e variedades, em novas raças e sistemas de produção
animal e numa maior concentração da terra. Aos poucos, os agricul-
tores familiares que tinham condições mais favoráveis foram incor-
porados a cadeias integradas de produção, como a da produção indus-
trial de suínos e de aves domésticas, e a do cultivo de tabaco. As
conseqüências foram: a crescente exclusão de agricultores familiares;
os graves impactos no meio ambiente (degradação do solo, poluição
da água e seca devido ao desmatamento); e a perda de recursos gené-
ticos provenientes de plantas bem como do conhecimento tradicional
associado a elas. A partir da década de 80, muitas famílias rurais
migraram para as zonas urbanas. Êxodo rural, pobreza, violência
urbana, degradação do meio ambiente, problemas de saúde e outros
impactos socioambientais contribuíram para o crescente aumento da
desigualdade social e da insustentabilidade ecológica, tanto no meio
rural quanto no urbano, como em Santa Catarina e no resto do Brasil.1
A pesquisa agrícola e a extensão rural atuais, em Santa Catarina,
são caracterizadas por uma forte orientação para a agricultura in-

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dustrial. Na pesquisa pública e nas agências de extensão ainda pre-
domina a “transferência de tecnologia”, sem qualquer contestação.
Em geral, a pesquisa é estruturada conforme um modelo linear, vi-
sando, primeiramente, a interesses privados (o agronegócio). O se-
tor da agricultura familiar foi, e em grande parte ainda é, ignorado
pela pesquisa, pela extensão e pela educação pública; a relevância e
o potencial desse setor são considerados limitados e, conseqüente-
mente, avalia-se que seu impacto no sistema de produção é restrito.
Movimentos sociais, ONGs e governos municipais têm criticado o
modelo praticado pelas agências públicas. Por conseguinte, desen-
volveram estruturas paralelas de pesquisa e de extensão, focadas na
agroecologia, na conservação local e no uso da agrobiodiversidade,
quase sem qualquer contato com o setor público estadual e federal.

MILHO E VARIEDADES CRIOULAS – ESTÍMULOS À CONSCIENTIZAÇÃO SOBRE


A AGROBIODIVERSIDADE NO OESTE DE SANTA CATARINA
O milho é uma das principais culturas no Oeste de Santa Catarina.
Como conseqüência da revolução verde e da industrialização da agri-
cultura, agricultores familiares substituíram suas variedades locais de
milho, trazidas no princípio da colonização, por cultivares híbridos e
por variedades melhoradas de polinização aberta. Ao mesmo tempo,
mantiveram variedades locais da maioria das outras culturas alimenta-
res, apenas porque as pesquisas públicas e privadas e os programas de
sementes não lhes ofereceram alternativas viáveis. No entanto, por meio
do processo de comoditização, os agricultores tornaram-se dependen-
tes dos recursos provenientes do tabaco ou da produção intensiva de
suínos e aves domésticas para a compra de alimentos.
Particularmente, no município de Anchieta, movimentos po-
pulares e organizações da sociedade civil2 têm apoiado a indepen-
dência de agricultores familiares na produção de sementes de milho
e na conservação de variedades locais e crioulas, associados a um
movimento civil mais abrangente que enfatiza a agroecologia e a
autonomia dos recursos genéticos. As variedades locais de milho –
o milho crioulo – tornaram-se um símbolo dessa autonomia dos agri-
cultores familiares, fazendo-os independentes da pesquisa agrária,
da extensão e da educação pública direcionadas para a agroindústria
e para o setor privado.

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Um diagnóstico de 2002 demonstrou que, em Anchieta, os agri-
cultores distinguem trinta “variedades de milho crioulo” (destas, duas
cultivadas há mais de cem anos, duas há mais de quarenta anos,
nove há mais de quinze anos e quatorze há mais de dez anos)3. Uma
avaliação posterior identificou o cultivo de mais de quarenta varie-
dades crioulas4. A atenção às variedades de milho crioulo, no muni-
cípio, culminou na organização de feiras de variedades crioulas. Na
realizada em 2004, houve a participação de cerca de quinze mil pes-
soas. Esse número é impressionante considerando que Anchieta pos-
sui apenas 1.024 famílias de agricultores.4

NEABIO E ANCHIETA
As atividades em Anchieta chamaram a atenção do NEABio,
que decidiu estabelecer uma parceria informal com grupos de agri-
cultores e organizações desse município. Desde 2002, o NEABio e
seus parceiros investigam e apóiam os agricultores no manejo, na
conservação e no uso das variedades locais de milho crioulo. O po-
tencial de produção e os valores nutricionais e medicinais dessas
variedades foram analisados e iniciou-se um plano participativo de
desenvolvimento de sementes para melhorar geneticamente uma
das variedades de milho, de grande potencial agronômico. A par-
ceria resultou em três dissertações de mestrado a respeito do milho
crioulo em Anchieta e três projetos, em curso, de pesquisa de dou-
torado.4,5
O governo brasileiro, no período 2003-2006, pretendeu for-
talecer a posição da “agricultura familiar”, enfatizando a impor-
tância do setor para o desenvolvimento rural e para a economia
doméstica, complementares ao setor de produção em larga esca-
la, altamente industrializado e orientado para a exportação. Uma
vez que a pesquisa e a educação formais anteriores provaram-se
inadequadas para apoiar o agricultor familiar, abordagens parti-
cipativas envolvendo multiatores no desenvolvimento de pesquisa
e de tecnologia emergem como instrumentos para atingir os atuais
objetivos do governo. Como o NEABio visa a trabalhar nessa pers-
pectiva com os parceiros de Anchieta e de outros municípios do
Oeste de Santa Catarina, recebe apoio de agências federais para
continuar a desenvolver trabalhos dessa natureza no estado.

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O PROGRAMA DE TREINAMENTO EM AGROBIODIVERSIDADE
Como parte da única universidade federal de Santa Catarina,
o NEABio percebeu que não poderia concentrar todos os seus es-
forços num único município – Anchieta – e cultura – milho. Em
2003, o NEABio decidiu ampliar seu trabalho a outras localida-
des do estado e a outros componentes da agrobiodiversidade, ini-
ciando um programa de treinamento denominado “Estratégias in-
tegradas e participativas de manejo e uso de agrobiodiversidade
no Estado de Santa Catarina”. O Núcleo possui quatro parceiros
essenciais para desenvolver este programa: (i) o Centro de Estu-
dos Avançados em Desenvolvimento Sustentável (CEADES), uma
ONG que opera no Oeste de Santa Catarina e que apóia o desen-
volvimento rural e urbano utilizando abordagens participativas; (ii)
o Instituto de Agrobiodiversidade e Desenvolvimento Socioambien-
tal, Porerekam, uma outra ONG que une uma gama de agriculto-
res, técnicos, professores e pesquisadores catarinenses na pesquisa
de questões de agrobiodiversidade e socioambientais; (iii) a Asso-
ciação dos Agricultores Ecológicos das Encostas de Serra Geral
(AGRECO), que apóia e facilita a produção agrícola ecológica e a
comercialização desses produtos. As três organizações trabalham
junto às comunidades de agricultores e a governos municipais. E
(iv) pesquisadores e extensionistas da Empresa de Pesquisa Agro-
pecuária e Extensão Rural de Santa Catarina S.A. (Epagri) que par-
ticipam e apóiam a implementação do programa. O NEABio teve
dois parceiros internacionais na execução do programa: Wageningen
International, uma organização de capacitação profissional que per-
tence à Universidade e Centro de Pesquisa de Wageningen, na
Holanda, e a Bioversity International, uma organização internacio-
nal de pesquisa e de desenvolvimento focada especialmente em re-
cursos genéticos, com sede em Roma, na Itália, e com escritórios
em diversos países.
O programa de treinamento ocorreu no período de agosto de
2005 a dezembro de 2006, com recursos disponibilizados pelo Go-
verno dos Países Baixos6, com os seguintes objetivos:
• Fortalecer a universidade no desenvolvimento de metodolo-
gias interativas de educação e de aprendizagem;

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• Treinar os funcionários da universidade e os representantes
das entidades parceiras para o uso de uma abordagem prática na
elaboração e implementação dos programas participativos em agro-
biodiversidade;
• Apoiar o NEABio e seus parceiros na utilização de estraté-
gias comunitárias e participativas de manejo e de uso da agrobiodi-
versidade.

O processo de treinamento de uma rede composta de partes inte-


ressadas baseia-se em diversos elementos. Entre eles, destacam-se:
teorias e conceitos sobre aprendizagem social; participação e siste-
mas dentro do contexto do manejo comunitário da agrobiodiversida-
de; e ação orientada por estratégias de aprendizagem e de facilitação
envolvendo multiatores em apoio ao manejo comunitário.
O primeiro elemento desse programa de treinamento constituiu-
se da apresentação e da discussão das teorias relevantes sobre apren-
dizagem social (multiatores), participação e sistemas. A proposta vi-
sava a construir a base para viabilizar a ação conjunta entre os setores
formal e informal, bem como uma ponte capaz de transpor as supostas
barreiras existentes entre as partes envolvidas no processo de desen-
volvimento de culturas e de manejo da agrobiodiversidade. Ademais,
pretendia-se estimular uma melhor compreensão dos sistemas de ma-
nejo formal e informal da agrobiodiversidade e uma interpretação das
interações entre eles7. As contribuições, provenientes de assessorias
em nível internacional, nacional, estadual, municipal e comunitário
foram discutidas e aprenderam-se muitas lições úteis ao desenvolvi-
mento de redes destinadas a fortalecer ações locais de apoio aos agri-
cultores familiares e ao manejo comunitário da agrobiodiversidade.
O treinamento fez uso de ferramentas relevantes na avaliação
rural participativa para o manejo comunitário da agrobiodiversida-
de. Com isso, ampliaram-se as habilidades dos participantes em ava-
liar questões locais de forma participativa e em construir alianças
com as comunidades rurais – componentes necessários para se ini-
ciar uma ação comunitária. Utilizaram-se, como orientação, as fer-
ramentas de diagnóstico participativo descritas por Geilfus8 e Sthapit
e colegas9. Esse conjunto de ferramentas incluiu: (i) uma matriz histó-
rica e uma linha do tempo que avalia o desenvolvimento da comuni-

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dade e do sistema de produção agrícola; (ii) o mapeamento das unida-
des produtivas e das variedades; (iii) uma chuva de idéias (metaplan)
sobre características das variedades; (iv) matrizes ou tabelas de
ordenamento para a avaliação de variedades; (v) gráficos de fluxo,
para analisar o fluxo de variedades e de sementes; (vi) avaliação da
diversidade mediante a abordagem de análise de quatro-células; (vii)
diagrama de Venn; e (viii) análise de quem são as partes interessadas.
Enfatizou-se a formação de equipes municipais em agrobiodi-
versidade, por meio de intensas sessões de trabalho de treinamento
em ferramentas de diagnóstico participativo. As equipes eram com-
postas por diversos atores, com habilidades em diferentes áreas. O
CEADES, o Instituto Porerekam e a AGRECO enfatizaram a inclu-
são de jovens agricultores líderes, cuja participação se mostrou im-
portante para compartilhar conhecimentos sobre agrobiodiversida-
de entre gerações, para facilitar e melhorar a conscientização dos
jovens agricultores sobre agrobiodiversidade e para estimular o de-
senvolvimento de novas lideranças.
O segundo elemento do treinamento foi trabalhar uma estraté-
gia de ação orientada que permitisse a construção de uma relação de
confiança e de parceria entre as entidades e pessoas participantes,
visando a: desenvolver uma visão conjunta, estabelecer pontos de
referência sobre como essa visão pode ser alcançada e, por fim, como
chegar a um consenso sobre a maneira de conduzir o processo de
avaliação e monitoramento. Os participantes envolveram-se na de-
finição de projetos relacionados à agrobiodiversidade, com base em
atividades orientadas e práticas de diagnóstico participativo. Para
tanto, as equipes efetuaram esse diagnóstico nos seus respectivos
municípios e, a partir daí, delinearam os projetos em nível comuni-
tário ou municipal. O treinamento ofereceu um ambiente seguro e
estimulante para que as equipes assumissem o compromisso com a
elaboração do processo, trabalhando em comunidades de produto-
res e tratando de aspectos socioecológicos complexos e relevantes
para o manejo da agrobiodiversidade.
O terceiro e o quarto elementos da estratégia de treinamento
aplicada buscaram revisar alguns procedimentos adotados pelas ins-
tituições presentes envolvidas no setor da agrobiodiversidade, a fim
de que elas se tornassem mais efetivas no trabalho de apoio ao ma-

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nejo comunitário da agrobiodiversidade. O objetivo era melhorar a
competência dos membros do NEABio, do CEADES, do Instituto
Porerekan, da AGRECO, da Epagri, dos governos municipais, dos
líderes de comunidades e da sociedade civil, facilitando o processo
participativo e fortalecendo suas habilidades de trabalho em equipe,
de comunicação e de liderança compartilhada. Isso foi integrado ao
diagnóstico utilizando-se ferramentas participativas, como o diagra-
ma de Venn e análise de partes interessadas, e instituições locais.

RESULTADOS PRELIMINARES
Os participantes possuíam históricos variados. De um total de
mais de cem pessoas envolvidas nos diferentes estágios do progra-
ma, sessenta eram originárias do Oeste de Santa Catarina e da re-
gião das encostas. Cerca de 60% dos participantes eram agricultores
familiares em posição de liderança ou representantes de jovens pro-
dutores. Eles faziam parte de programas de treinamento em agricul-
tura, de associações de produtores ou de outras organizações que
apóiam os agricultores familiares a se manterem no meio rural e na
agricultura. Esse grupo de participantes formou o núcleo das equipes
e do programa de treinamento. Um segundo grupo (20%) de partici-
pantes era constituído por estudantes universitários e profissionais en-
volvidos com formação, pesquisa ou extensão agrícola nas universi-
dades. Um terceiro grupo (20%) era composto, em sua maioria, de
jovens profissionais de ONGs, extensionistas municipais e professo-
res de ensino médio compromissados com o desenvolvimento rural.
Representantes da sociedade civil lideraram e elaboraram a forma de
trabalhar das equipes. Os profissionais de educação pública, de
pesquisa e de extensão agrária, mesmo fazendo parte do grupo-alvo e
interessados em participar do treinamento, não conseguiram assumir
compromisso com o grupo durante os processos de aprendizagem e
de ação, delineados durante o curso sob orientação dos facilitadores.
A abordagem integrada e participativa que se seguiu foi resul-
tado de uma seleção de equipes locais constituídas por membros da
sociedade civil e do setor público (ONGs, governos municipais e
lideranças locais de agricultores). A estruturação de equipes em agro-
biodiversidade, em nove municípios, é o produto mais perceptível
do processo de treinamento.10

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Durante o treinamento, as equipes realizaram um diagnóstico
rápido da agrobiodiversidade e elaboraram um plano inicial de ma-
nejo comunitário da mesma para seus respectivos municípios. Nos
dez municípios, o diagnóstico e os planos foram discutidos e elabo-
rados junto com as comunidades interessadas. Atividades foram pla-
nejadas, iniciadas e apoiadas pelo programa de treinamento em oito
municípios.11 Dentre essas, estão o plantio de canteiros de observa-
ção com variedades locais de milho (ver Capítulo 4.3) e cursos sobre
produção de sementes, seleção e conservação de variedades locais
de milho.12 A escola parceira, em Palmitos, facilitou um processo de
motivação e desenvolvimento rural tendo como temática geradora a
agrobiodiversidade, apoiando famílias rurais no manejo comunitá-
rio de biodiversidade agrícola (ver Capítulo 6.5). Várias equipes
planejaram desenvolver unidades de demonstração.13 Uma equipe
implementou a produção de sementes para um kit de diversidade
contendo distintas variedades de culturas, tais como milho, arroz e
legumes; o kit foi distribuído a famílias rurais, em dezoito comuni-
dades do município de Guaraciaba. A partir da facilitação promovi-
da por esse projeto e pelo programa de treinamento, extensionistas e
agricultores participantes ofereceram assessoria técnica para aqueles
agricultores que iniciavam a multiplicação de novas sementes.
A partir do treinamento, a rede constituída pelas equipes mu-
nicipais tem trocado intensamente suas experiências, por meio de
encontros reunindo os grupos de cada região e entre as duas regiões.
O programa de treinamento foi concluído em dezembro de 2006.
Em julho de 2006, todos os participantes encontraram-se no “Semi-
nário da Agrobiodiversidade”. Nele, foram apresentados, junto com
as trocas de experiências das equipes locais, os avanços alcançados,
documentados em Relatórios Municipais da Agrobiodiversidade.11,14
O seminário também elaborou um plano de iniciativas de como con-
tinuar as atividades dessa rede informal e de como encorajar o apa-
recimento de novas parcerias entre a sociedade civil e pública que
apóiem, de forma integrada e participativa, a conservação e o uso da
agrobiodiversidade por meio do manejo comunitário.

CONSIDERAÇÕES CONCEITUAIS
O programa de treinamento passou por uma evolução gradual,
estimulado pela sua própria estrutura de aprendizagem e ação. Du-

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rante a organização e a participação no treinamento, todos seguiram
trabalhando no ambiente real, o que resultou em diversas ativida-
des, em vários municípios, mas requereu adaptações contínuas, ine-
rentes ao trabalho com comunidades agrícolas.
As equipes municipais de agrobiodiversidade que se forma-
ram têm uma base local firme que representa e apóia o manejo co-
munitário da agrobiodiversidade. Desde o início, a composição de
partes interessadas preocupou-se em incluir técnicos locais e agri-
cultores em posição de liderança. Um ambiente favorável, por meio
do apoio dos governos municipais, de ONGs ou de associações de
agricultores familiares, foi fator importante nesses municípios onde
essas equipes foram organizadas. Participantes oriundos de outros
municípios ou instituições onde faltou apoio não conseguiram
estruturar um grupo para iniciar atividades comunitárias voltadas à
agrobiodiversidade. Ao analisar a composição das equipes, perce-
be-se que extensionistas recentemente recrutados e estudantes de
pós-graduação desempenham papéis importantes quando compara-
dos com extensionistas, professores e pesquisadores mais experien-
tes. A intensidade do processo de aprendizagem e ação e o compro-
misso genuíno na participação comunitária, tal como insistido pelos
facilitadores, provaram ser uma forma de selecionar aqueles profis-
sionais capazes e dispostos a trocar um profissionalismo normal (se-
gundo a tríade da pesquisa, extensão e educação e o paradigma de
transferência de tecnologia) por um novo profissionalismo que tra-
balha com o manejo comunitário da agrobiodiversidade.15 Isso re-
sultou na formação de uma maioria de profissionais locais jovens e
de agricultores que participaram até o final do programa.
Questões como parceria e participação pareceram mais fáceis
de ser tratadas em um ambiente da sociedade civil e com pessoas
com o perfil anteriormente descrito do que em um ambiente de
pesquisa já estabelecido e em instituições de extensão, onde os pro-
fissionais estão mais “institucionalizados”. A própria natureza
público-privada, que orienta a pesquisa e a extensão pública, ou ape-
nas o fato de ser um profissional “normal”, tal como descrito, já em
1993, pelo inglês Robert Chambers16, cria limitações em suas capa-
cidades e interesses em nível de instituições e de técnicos. Essas
limitações podem ser a razão de esses profissionais terem dificulda-

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de de atuar com base num “novo profissionalismo”, que facilite e
apóie o manejo comunitário da agrobiodiversidade.17
Cinco professores, membros do NEABio, cinco estudantes de
pós-graduação da UFSC e quatro capacitadores de Wageningen In-
ternational participaram e contribuíram em vários momentos duran-
te o programa. Os professores do NEABio adotaram posições estra-
tégicas de apoio às equipes municipais, devido às suas posições e
responsabilidades acadêmicas (educação superior e pesquisa). O
perfil dos professores e estudantes do NEABio revela um profundo
entendimento sobre a importância de seu papel estratégico como
apoiadores e facilitadores de ações da sociedade civil e de governos
municipais no manejo comunitário da agrobiodiversidade. Junto com
os capacitadores de Wageningen Internactional, eles acompanharam
atividades propostas a partir dos projetos elaborados pelas equipes
locais, além de facilitarem o envolvimento de estudantes de pós-
graduação no desenvolvimento local e nos processos de gestão da
agrobiodiversidade. Os parceiros municipais respeitam e reconhe-
cem essa contribuição, embora sempre busquem um envolvimento
maior com quem eles têm relações mais diretas. Como resultado, o
NEABio e Wageningen International contribuíram, por meio de pes-
quisas em parceria e especialmente com o compromisso dos estu-
dantes, para a construção de um novo padrão de profissionalismo.
Em um nível menor, o Núcleo também oferece apoio contínuo aos
processos de desenvolvimento local, o que, por ele ser uma institui-
ção educacional, está em acordo com seus propósitos. Essa posição,
descrita anteriormente, constitui uma mudança quando se considera
o início do programa de treinamento. Deve-se mencionar que, num
contexto mais amplo da UFSC e também da organização guarda-
chuva do parceiro holandês, a Universidade e Centro de Pesquisa de
Wageningen, de seus programas de pesquisa e de pós-graduação,
bem como da grande comunidade acadêmica de Santa Catarina, do
Brasil e da Holanda, a posição dos profissionais que participam do
programa continua a ser criticada como não tendo fundamento cien-
tífico e por ir além da área da responsabilidade da academia.18
O delineamento inicial do programa presumia que as equipes
trabalhariam em parceria com a comunidade e, acima de tudo, para
ela. No programa de treinamento, o início e a representatividade da

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comunidade acabaram sendo distintos do planejado. Dessa forma, o
programa de treinamento foi modificado não só quanto ao tipo de
profissional participante, mas também evoluiu para apoiar o manejo
comunitário da agrobiodiversidade como um processo de construção
social. Autonomia, autoconfiança, complexidade e imprevisibilidade
– pontos críticos no modelo de agroecologia e na gestão da agrobiodi-
versidade comunitária – emergiram de uma maneira lógica e inerente.
O planejamento inicial, com um perfil fortemente acadêmico e público,
evoluiu para um processo integrado e orientado para a sociedade civil
e para os profissionais locais. Partiu-se de um programa de treina-
mento visando abordagens participativas para funcionários públicos,
que se transformou em um programa de aprendizagem e ação facilitador
na formação de equipes municipais (civis/públicas) envolvidas com
questões de interesse relativas à agrobiodiversidade.
A mudança que ocorreu na estratégia aplicada no treinamento
em agrobiodiversidade é consistente com uma análise recente feita
sobre os avanços obtidos em um programa de treinamento de pesquisa
participativa organizado pela Epagri, a partir de recursos financei-
ros do Banco Mundial/Governo Estadual do Santa Catarina, com
vistas a atender parte das atividades propostas pelo Programa de
Microbacias 2. A análise é coerente com aquela, em evolução, que
está sendo construída pelas equipes de treinamento em agrobiodi-
versidade. As equipes municipais de agrobiodiversidade focaram
processos de manejo local – assim, as ações de conservação e mane-
jo da agrobiodiversidade foram feitas dentro das comunidades ru-
rais, em vez de para as comunidades. Essa análise foi desenvolvi-
da19 e inspirada na de Maturana e Varela20 e de outros autores da
construção social do conhecimento. O modelo resultante da análise,
que pode ser visualizado na Figura 1.2.1, foi adaptado para apoiar o
manejo comunitário da agrobiodiversidade. O modelo,17,19,21 além
disso, trata das abordagens de “receitas” e “processos” que agregam
instituições, profissionais e comunidades de agricultores familiares
ao manejo e à conservação de recursos naturais, da natureza e da
agrobiodiversidade. O modelo pressupõe um posicionamento das
comunidades de agricultores familiares e dos profissionais quanto à
agrobiodiversidade de uma maneira bastante diferente daquela do
modelo convencional. O corrente programa de treinamento enfatizou

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essa mudança de paradigma não só ao tratar das relações entre co-
munidades de agricultores familiares e os profissionais, mas tam-
bém na relação entre comunidades, profissionais e suas instituições
e entre comunidades e a agrobiodiversidade.
A maioria dos profissionais em agricultura (pesquisadores, ex-
tensionistas e agentes de desenvolvimento rural) com um perfil forte
de transferência de tecnologia que originalmente se juntou ao progra-
ma de treinamento demonstrou estar preso aos seus paradigmas e/ou
às suas afiliações institucionais ao participar e assumir compromisso
com o processo de aprendizagem e ação. Isso confirma que as redes
de políticas públicas que funcionam com forte associação público-
privada e também atuam no setor de agricultura familiar operam de
forma paradigmática de cima para baixo. Esse tipo de atuação com
freqüência é contrário à pesquisa envolvendo aprendizagem e ação19,22
e ao manejo comunitário da agrobiodiversidade. O programa de trei-
namento focalizou os profissionais locais, oferecendo-lhes ferramen-
tas, criando condições e facilitando os processos para ação em nível
local ou municipal e criando ambientes de aprendizagem seguros dentro
de estruturas paralelas e institucionalmente não-prevalentes.
Técnicos e extensionistas locais e estudantes dos programas
de pós-graduação da UFSC mostraram-se facilitadores excelentes e
ávidos no apoio ao estabelecimento de equipes municipais de agro-
biodiversidade. Dentro desse processo de aprendizagem e ação, eles
foram apoiados por um grupo central formado por professores
compromissados do NEABio, por capacitadores de Wageningen In-
ternational e por um membro da Bioversity Internacional. Esse fato
ilustra que, embora a educação agrícola superior ainda seja funda-
mentada em termos convencionais de transferência de tecnologia e
sobre modelos lineares de pesquisa e de gestão de recursos, estu-
dantes são capazes de mudar o paradigma já postulado. Assim, os
professores do NEABio e os capacitadores de Wageningen Interna-
tional têm um papel de apoio ao estabelecer esse elo, mas também
tentam facilitar e contribuir para um “novo profissionalismo” no
ambiente acadêmico “normal”. O elo entre a universidade e as equi-
pes municipais aparece como um resultado positivo não antecipado
do programa de treinamento, o que inspira e fortalece a parceria e o
contrato social entre a UFSC/NEABio, Wageningen UR/ Wageningen
International ou a academia e os nove municípios de Santa Catarina.

34

Biodiversidade 0204.P65 34 5/4/2007, 10:48


O programa de treinamento evoluiu para o trabalho junto a
essa geração de novos profissionais e de novos agricultores familia-
res. Tanto os profissionais quanto os agricultores jovens têm o com-
promisso de investir nos modos de vida rural e de apoiá-los por meio
do trabalho em uma estrutura comunitária e da adoção de caminhos
alternativos e incertos para o manejo comunitário da agrobiodiver-
sidade. Estratégias participativas e integradas que apóiam o manejo
comunitário da agrobiodiversidade provaram ser um tema estimu-
lante na capacitação das pessoas, dando-lhes a responsabilidade por
um desenvolvimento sustentável.

Figura 1.2.1 – Abordagens contrastantes de apoio ao


manejo comunitário de agrobiodiversidade.17,19,21

35

Biodiversidade 0204.P65 35 5/4/2007, 10:48


NOTAS

1. Testa, V.M., et al. A escolha da trajetória da produção de leite como estragégia


de desenvolvimento do Oeste catarinense. Florianópolis: SAR, 2003.
Guanziroli, C.E.; Cardin, S.E. (eds). Novo Retrato da agricultura familiar: O Bra-
sil redescoberto. Brasília: FAO/INCRA, 2000.
2. Tais como o MPA (Movimento de Pequenos Agricultores) e o MMC (Movimen-
to de Mulheres Camponesas), a ONG CAPA (Centro de Apoio aos Pequenos Agri-
cultores) e a unidade local do Sintraf (Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura
Familiar). Desde 1998, a ASSO (Associação dos Pequenos Agricultores Plantadores
de Milho Crioulo Orgânico e Derivados), apoiada pelo Sintraf, tem estimulado o
uso de variedades locais e crioulas.
3. Canci, Adriano; Vogt, G.A.; Canci, I.J. A diversidade das espécies crioulas em
Anchieta-SC – diagnóstico, resultados de pesquisa e outros apontamentos para a
conservação da agrobiodiversidade. São Miguel do Oeste-SC: McLee, 2004.
Vogt, G. A dominância do uso e manejo de variedades locais de milho em proprie-
dades agrícolas familiares. Florianópolis-SC: Centro de Ciências Agrárias, Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-
Graduação em Recursos Genéticos Vegetais), 2005.
4. Canci, I.J. Relações do conhecimento formal e informal no manejo da agrobio-
diversidade no Oeste de Santa Catarina. Florianópolis-SC: Centro de Ciências
Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina (Dissertação de Mestrado, Pro-
grama de Pós-Graduação em Recursos Genéticos Vegetais), 2006.
5. Alves, A.C., et al. Milho crioulo: rendimento de grãos e características agronô-
micas. In: Canci, A.; Vogt, G.A.; Canci, I.J. A diversidade das espécies crioulas em
Anchieta-SC. São Miguel do Oeste-SC: McLee, pp. 87-94, 2004.
Ogliari, J.B., et al. Análise genética da diversidade de variedades locais de milho
(Zea mays L.). Relatório Final de Pesquisa do CNPq. Florianópolis-SC: NEABio,
p. 18, 2004.
Ogliari, J.B., et al. Análise Genética da Diversidade de Variedades Locais de Milho
do Extremo Oeste de Santa Catarina. In: Anais do III Congresso de Agroecologia,
Porto Alegre-RS, Brasil, 2004.
Kist, V. Seleção recorrente de famílias de meios-irmãos em população composta de
milho (Zea mays L.) procedente de Anchieta-SC. Florianópolis-SC: Centro de Ci-
ências Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina (Dissertação de Mestrado,
Programa de Pós-Graduação em Recursos Genéticos Vegetais), 2006.
Kuhnen, S., et al. Análise de (poli)fenóis totais em flores femininas de variedades
locais de milho (Zea mays). In: V Jornada Catarinense e I Jornada Internacional
de Plantas Medicinais, maio de 2006. Joinville-SC.
Lemos, P.M.M., et al. Identificação e quantificação de carotenóides de sementes de
variedades locais e crioulas de milho (Zea mays L.) desenvolvidas e cultivadas
tradicionalmente por agricultores familiares de Anchieta-SC. In: 58ª Reunião da

36

Biodiversidade 0204.P65 36 5/4/2007, 10:48


Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, julho de 2006.
Florianópolis-SC.
Vogt, G. A dominância do uso e manejo de variedades locais de milho em proprie-
dades agrícolas familiares. Florianópolis-SC: Centro de Ciências Agrárias, Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-
Graduação em Recursos Genéticos Vegetais), 2005.
6. A Wageningen International é uma organização de desenvolvimento e capacitação
profissional da Universidade e Centro de Pesquisa de Wageningen (Wageningen
UR), localizada nos Países Baixos, que deu apoio institucional e de facilitação. Os
programas de treinamento foram financiados pelo governo dos Países Baixos, por
meio da Organização para Cooperação Internacional na Educação Superior
(NUFFIC).
7. Almekinders, C.J.M.; De Boef, W.S. (eds). Encouraging diversity. Conservation
and development of plant genetic resources. Londres: Intermediate Technology
Publications, 2000.
8. Geilfus, Frans. Octienta herramientas para el Desarrollo Participativo: diag-
nóstico, planificación, monitoreo, evaluación. San Salvador, El Salvador:
Prochalate–IICA, p. 208, 1997.
9. Sthapit, B., Shresta, P., Upadhya, M. (eds). On farm management of agricultural
biodiversity in Nepal. Good Practices. Pokhara (Nepal): NARC/LI-BIRD/IPGRI e
IDRC, 2006.
Jarvis, D.I., et al. A training guide for in situ conservation on-farm. Roma: IPGRI,
2000.
10. A estruturação de equipes ocorreu nos municípios de Anchieta, Dionísio Cer-
queira, Novo Horizonte, Palmitos, Guaraciaba, São Lourenço e Tunápolis (Oeste de
Santa Catarina) e Anitápolis, Grão Pará e Santa Rosa de Lima (região de encostas).
11. Kist, V.; Santos, K.L. Estratégias participativas de manejo da agrobiodiversi-
dade. Relatórios municipais. Florianópolis-SC/Wageningen: NEABio e Wageningen
International, 2006.
12. Inspirados pelo que ocorre em Anchieta, onde se utilizam milhos crioulos, cur-
sos sobre produção de sementes e sobre conservação de variedades de milho criou-
lo foram organizados em Palmitos, Novo Horizonte e Anitápolis. Adriano Canci,
do Instituto Porerekan, foi crucial para motivar e facilitar o processo em Anchieta e
foi o técnico responsável pelos cursos. Técnicos e agricultores familiares participa-
ram dos cursos que aconteceram durante a temporada de colheita do milho.
13. A equipe mais avançada está em Guaraciaba, onde os agricultores familiares
receberam um kit de diversidade.
14. Estudantes do programa de pós-graduação e representantes das principais par-
ceiros (CEADES, Instituto Porerekan, NEMAK e AGRECO) documentaram os
avanços alcançados em Relatórios Municipais da Agrobiodiversidade.
15. Ver, também, De Boef e Pinheiro, no Capítulo 4.1.
16. Chambers, R. Challenging the professions. Frontiers for rural development.
Londres: Intermediate Technology Publications, 1993.

37

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17. De Boef, W.S. Tales of unpredictable. Institutional frameworks that support
farmer management of agrobiodiversity (PhD thesis). Wageningen: Wageningen
University, 2000.
18. De Boef, W.S., et al. Farmer management of local maize varieties in West
Santa Catarina and implications for strategies supporting in situ conservation on-
farm and participatory breeding. Paper international policy consultation “Incenti-
ves for supporting on-farm conservation, and augmentation of agrobiodiversity
through farmers’ innovations and community participation”, May 27-29, 2006,
Indian Institute of Management, Ahmedabad, India.
19. Pinheiro, S.L.G.; De Boef, W.S. Construção social de conhecimentos: uma ex-
periência de formação, ação e aprendizado promovendo pesquisas participativas
“com” comunidades rurais em Santa Catarina. Eisforia 3 (1), pp. 33-48, 2005.
20. Maturana, H.R.; Varela, F.J. Tree of Knowledge. The biological roots of human
understanding. Boston: Shambhala, 1992.
21. Pimbert, M.P.; Pretty, J.N. Parks, people and professionals: Putting “participa-
tion” into protected area management. In: Ghimire, K.B.; Pimbert M.P. (eds.). So-
cial change and conservation. Environmental politics and impacts of national parks
and protected areas. Londres: Earthscan Publications, 1997, pp. 298-330.
22. Pretty, J.N. Regenerating agriculture. Policies and practice for sustainability
and self-reliance. Londres: Earthscan Publications, 1995.
Röling, N.G.; Wagemakers, M.A.E. n(eds.). Facilitating sustainable agriculture.
Participatory learning and adaptive management. Cambridge: Cambridge
University Press, pp. 3-22, 1998.
Uphoff, N. Agroecological Innovations: Increasing Food Production With
Participatory Development. Londres: Earthscan Publications, 2002.

38

Biodiversidade 0204.P65 38 5/4/2007, 10:48


2
BIODIVERSIDADE, AGRICULTURA E
CONSERVAÇÃO: CONCEITOS E
ESTRATÉGIAS

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40

Biodiversidade 0204.P65 40 5/4/2007, 10:48


2.1 BIODIVERSIDADE E AGROBIODIVERSIDADE

Walter Simon de Boef

BIODIVERSIDADE
Riquezas vivas estão sendo perdidas em nosso planeta, espe-
cialmente nas últimas décadas. As conseqüências dessas perdas nem
sempre são visíveis, e este é considerado um dos dilemas a ser en-
frentado no futuro. Quando se observa sob a perspectiva da história
da Terra vê-se que essa diversidade desenvolveu-se num período
recente. Em particular, na agricultura, a diversidade também tem
sido moldada pela forma de viver dos seres humanos, que vêm usan-
do e desenvolvendo os recursos biológicos disponíveis. Nesses pro-
cessos naturais e humanos, a biodiversidade tem apresentado ga-
nhos e perdas contínuos. Entretanto, percebe-se que, nas últimas
décadas, esse equilíbrio tornou-se negativo.
Biodiversidade ou diversidade biológica refere-se à variedade
de formas de vida, à diversidade genética e às comunidades que
essas formas de vida formam. Podem ser distintos sistemas biológi-
cos, como florestas, savanas, campos, desertos, lagos, etc. Eles são a
soma e o produto dos diferentes níveis de diversidade na natureza.
Basicamente, distinguem-se três níveis:
• Diversidade genética;
• Diversidade de ecossistemas;
• Diversidade de espécies.

Diversidade genética é encontrada na unidade de base da he-


rança – o DNA. Está nos cromossomos e controla a identidade gené-
tica de todos os organismos vivos, individualmente. Refere-se à va-
riedade de genes de todos os organismos, dos seres humanos e de
plantas cultivadas, de fungos e vírus, etc.

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Diversidade de espécies normalmente se refere à diversidade
entre espécies. Espécies são compostas de organismos aparentados,
unidades morfologicamente distintas que, quando se cruzam, podem
dar origem a uma progênie que se reproduz. Refere-se, então, por
exemplo, às diferentes plantas em uma floresta, aos diferentes fun-
gos no solo, aos peixes em um rio ou às plantas em um jardim.
Diversidade de ecossistemas é a soma e o produto dos outros
dois níveis. A diversidade de espécies e de populações distintas dentro
das espécies constitui uma comunidade natural que se desenvolveu
ou evoluiu em um ambiente físico (seco, frio, úmido, quente, frágil,
pobre ou rico, etc.). A escala a que se refere a diversidade de um
ecossistema é importante, pois um metro quadrado em uma floresta
pode ser considerado um ecossistema, tanto quanto a Amazônia in-
teira ou o oceano Atlântico. Diversidade de ecossistemas é, então,
um termo relativo, é a diversidade entre sistemas. Assim, coloca o
metro quadrado da floresta em relação ao seu ambiente mais amplo
e coloca a Amazônia e o oceano Atlântico no ecossistema que nós
chamamos de planeta Terra.

BIODIVERSIDADE NA AGRICULTURA
Os termos em biodiversidade foram desenvolvidos no campo
da ecologia, disciplina que estuda as relações entre diferentes níveis
de diversidade. Os três níveis – referidos anteriormente – também
podem ser usados, de forma semelhante, para descrever a diversida-
de biológica na agricultura, ou seja, a agrobiodiversidade:
• Diversidade de sistemas de produção ou de agroecossistemas;
• Diversidade de plantas cultivadas, de animais e de outras es-
pécies;
• Diversidade varietal e outras diversidades genéticas.

A diversidade genética na agricultura pode ser mais bem


percebida na diversidade de variedades de espécies cultivadas e de
raças de animais. Pode-se referir a uma população ou a grupo de
variedades dentro de uma espécie; pode ser um pool gênico ou uma
população em um determinado cultivo (por exemplo, uma varieda-
de local de milho precoce).

42

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Diversidade de espécies na agricultura relaciona-se às dife-
rentes espécies que são produzidas. Isso inclui os diferentes tipos de
plantas, de animais e de microorganismos, como bactérias e fungos.
Mas tal diversidade também pode ser entendida como a dos cultivos
encontrados em uma unidade de produção familiar ou numa parte
do total da diversidade de cereais cultivados para alimentar seres
humanos no planeta.
Assim como na biodiversidade natural, a diversidade de agroe-
cossistemas na unidade de produção agrícola deve ser visualizada
em diferentes escalas. Uma unidade de produção familiar pode ser
considerada um sistema de produção, da mesma forma que uma re-
gião inteira. A diversidade de uma unidade de produção agrícola na
serra, no Oeste ou no litoral catarinenses tem níveis diferentes de
diversidade daquela situada no cerrado ou no sertão do Nordeste
brasileiro ou na Holanda.
Como a agricultura é um modo humano de usar os recursos
biológicos, físicos e naturais para se alimentar, curar, construir abri-
go, produzir fibras e gerar renda, esse é um elemento que distingue
fortemente a agrobiodiversidade da biodiversidade natural. O papel
dos seres humanos – os agricultores – no desenvolvimento da diver-
sidade na agricultura é muito importante. Um grande número de di-
ferentes agroecossistemas, de plantas cultivadas e de variedades pode
ser encontrado no mundo inteiro. Não são somente as condições
naturais que contribuem para essa diversidade, mas os distintos usos
humanos também, enormemente. Então, há quem considere a diversi-
dade humana com seus elementos sociais e culturais como o quarto
nível de diversidade. O conhecimento e as práticas dos agricultores de
como cultivar, bem como o conhecimento dos usos medicinais espe-
cíficos, por exemplo, são elementos dessa diversidade.

PERDA DE BIODIVERSIDADE
A degradação dos ecossistemas naturais em todo o mundo, so-
bretudo nas regiões tropicais, está bem documentada. Sabe-se que
florestas tropicais de planície, como a Floresta Atlântica, em Santa
Catarina, até pouco tempo eram áreas naturais tropicais menos per-
turbadas. E que as florestas da Amazônia contêm mais da metade das
espécies totais da Terra. Elas conseguiram chegar aos dias de hoje

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porque, até recentemente, eram relativamente difíceis de serem ma-
nejadas pelos seres humanos. O sistema de cultivo itinerante (com
queimadas) é uma forma de agricultura que cabe nas condições físi-
cas das áreas onde são encontradas florestas tropicais úmidas. Atual-
mente, o processo de destruição tende a se agravar já que a intensi-
ficação da agricultura, a pressão populacional, a pecuária extensiva
e a exploração de madeira levam a uma perda acelerada de diversida-
de desse ecossistema, com suas espécies e sua diversidade genética.
As causas da perda de biodiversidade são biológicas, mas a
raiz do problema, assim como nas florestas, inclui processos sociais,
econômicos e políticos que operam em escala mundial. As forças
nesse nível global são enormes, e o papel e as possibilidades para se
atuar individualmente são limitados. Por meio de ações diretas, agri-
cultores, consumidores e habitantes do Norte e do Sul podem contri-
buir para inverter a tendência no ambiente em que vivem. Isso pode
influir diretamente sobre as condições nas quais eles estão vivendo,
mas como em outros temas ambientais, contribuirá também para um
mundo melhor, em especial para seus netos.
Perda da biodiversidade natural. A diversidade da vida nunca
foi e nunca será estática. A biodiversidade varia no tempo, pois a evo-
lução adiciona novas espécies, enquanto a extinção elimina outras.
Evolução e extinção são processos naturais – elas são as respostas de
populações de organismos às mudanças nos seus ambientes físico e
biológico. Mudança, no seu sentido mais real, é um fator básico de
vida. Se mudança parece ser a norma, por que estamos preocupados
com a perda de diversidade biológica? Hoje, devido a mudanças
ambientais, a perda tem origem, ordem e magnitude diferentes das que
ocorreram anteriormente. A perda atual tem várias causas, entre elas:
• Destruição direta, conversão ou degradação de ecossistemas,
que resultam na perda de complexos de espécies diferentes;
• Sobreexploração, perturbação de habitat, poluição e a intro-
dução de espécies exóticas, que aceleram a perda de espécies indivi-
duais dentro de ecossistemas;
• Pressão de seleção oriunda, diretamente e indiretamente, de ati-
vidades humanas, que pode resultar na perda de variabilidade genética;
• A exploração, a presença de toxinas químicas ou a mudança
de clima regional, que podem eliminar partes geneticamente dife-

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Biodiversidade 0204.P65 44 5/4/2007, 10:48


rentes de uma população sem, contudo, causarem a extinção de es-
pécies inteiras, mas de parte de sua variação genética;
• A taxa acelerada de destruição de habitats, particularmente
em florestas tropicais.

Perda de biodiversidade na agricultura. Assim como na na-


tureza, ocorrem processos semelhantes que reduzem a biodiversida-
de na agricultura. Nesses, o papel dos seres humanos é também pre-
ponderante, apesar de também poderem ter uma atuação mais direta
na manutenção da agrobiodiversidade, já que é um contribuinte muito
mais ativo no processo. A perda da biodiversidade na agricultura
acontece nos três níveis – os sistemas de produção e os agroecossis-
temas mudam, algumas espécies deixam de ser usadas ou são margi-
nalizadas. O processo mais proeminente, na agricultura, é o que se
chama de erosão genética, ou a perda de diversidade genética.
O processo de substituição de variedades locais, indígenas, tra-
dicionais ou crioulas por variedades modernas, de alto rendimento,
é comparado, freqüentemente, com a perda de genes e, por conse-
guinte, é denominado erosão genética. Porém, os processos agríco-
las também precisam ser examinados no que diz respeito à perda de
genes, de combinações de genes ou de formas alélicas. A substitui-
ção de genes de plantas cultivadas acontece quando variedades lo-
cais são trocadas por novas. A erosão genética pode ser vista de
duas formas: como erosão gênica ou alélica e como erosão genômica.
A substituição de variedades crioulas por novas em um cultivo cau-
sa mudanças dramáticas já que há completa substituição dos alelos,
que são distintos na variedade local e na nova. Os alelos substituí-
dos são perdidos ou erodidos, se não forem conservados, mantidos
ou usados em outro lugar. Também se perde a combinação específi-
ca de genes que ocorre na variedade substituída.1
Afora a perda física de combinações de genes, de genes ou,
mais visivelmente, das variedades locais, também o conhecimento
tradicional de cultivos e de variedades específicos é ameaçado em
um processo de erosão. Habilidades de como manejar e usar deter-
minadas espécies ou variedades são perdidas pelo desenvolvimento
moderno da agricultura, orientada pela globalização das práticas
agrícolas: poucos tipos de cultivos e poucas variedades. No Quênia,
na África, atualmente, jovens rurais eram enviados à escola para

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que aí aprendessem a cultivar tomates e repolhos, tornando-os, as-
sim, agricultores modernos. Começou-se a perceber que nas escolas
não lhes ensinavam os conhecimentos disponíveis sobre as hortali-
ças nativas.2 Esse conhecimento das espécies locais cultivadas, im-
portantes, abundantes e disponíveis na unidade de produção famili-
ar, está sendo gradualmente perdido. Com isso, não se perde só o
conhecimento das espécies, mas também o das propriedades medi-
cinais e culinárias específicas, os modos de processá-las e de prepará-
las. O mesmo ocorre no Brasil, por exemplo, em Santa Catarina,
quando agricultores trocam o uso de raízes e tubérculos tradicionais
(taiá, cará, etc.) por um cultivo mais comum, ou moderno, como a
batata. O cultivo e o conhecimento de como produzir e preparar o
alimento são perdidos na substituição por outro “moderno”.
Uma outra forma de erosão genética ocorre no nível interme-
diário entre a agricultura e a natureza. Nos centros de origem e de
domesticação, a maioria dos cultivos ainda tem espécies silvestres e
espécies adventícias aparentadas. É possível que ocorra algum nível
de introgressão quando as plantas cultivadas crescem diretamente
no ambiente dessas espécies não-domesticadas. O milho – comple-
xo teosinte no México – é um exemplo de um sistema em que um
parente silvestre se desenvolve próximo aos cultivados. Vários pes-
quisadores investigaram essa interação, buscando características
específicas das variedades locais de milho que podem ter origem
nas plantas silvestres de teosinte.
Hoje em dia, de uma forma indireta, todas as plantas são “apa-
rentadas”. Por meio do melhoramento moderno de plantas e da bio-
tecnologia, essas espécies podem ser fonte de características impor-
tantes para o melhoramento no futuro. Devido à destruição de habitats
específicos, os parentes silvestres de cultivos importantes podem
desaparecer. Tal perda leva a um nível de erosão de ambos – das
espécies de cultivo e do nível genético.

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2.2 BIODIVERSIDADE E AGROECOLOGIA

Altair Toledo Machado

O termo agrobiodiversidade é relativamente recente. Surgiu,


com forte ênfase, após a Convenção sobre Diversidade Biológica
(CDB), como um contraponto aos sistemas agrícolas convencionais,
criticados por sua agressividade em relação ao meio ambiente e às
sociedades tradicionais. Eles contribuíram sobremaneira para uma
grande perda na diversidade genética e cultural de diferentes agroe-
cossistemas, especialmente nos países ditos megadiversos, situados
entre os trópicos do planeta.
A questão da biodiversidade passou, então, a receber um trata-
mento mais crítico no que se refere ao seu uso e conservação, incor-
porando elementos de sustentabilidade ao processo. Um dos concei-
tos revisado foi o de “desenvolvimento”, buscando-se superar a idéia
de que deveria estar fortemente associado a crescimento econômi-
co, a aumento de bem-estar humano (medido pelo acesso a bens e
serviços) e a formas de produção e de consumo que vêem o meio
ambiente, incluindo a biodiversidade, somente como fonte de recur-
sos naturais – e não como algo cuja integridade deve ser mantida
para permitir que todos os seres vivos, inclusive os seres humanos,
possam habitar este planeta.
Por outro lado, fortaleceu-se o conceito de “desenvolvimento
sustentável”, o qual inclui, além dos aspectos econômicos, os aspec-
tos sociais e ecológicos que interagem e criam uma relação de de-
pendência. Assim, “sustentabilidade” significa ser economicamente
viável, socialmente justo e ecologicamente correto. Nesse processo,
as agriculturas camponesa e indígena, cujos valores culturais, so-
ciais, econômicos e o manejo dos recursos naturais são exemplos
claros de “Manejo Sustentável da Biodiversidade”, ressurgiram com
muita força. Ambas fortalecem a agricultura de base familiar e in-
corporam aspectos de segurança e de soberania alimentares. Nessa
perspectiva, os conhecimentos tradicionais necessariamente têm que
ser valorizados, pois todos esses conceitos atuais baseiam-se nas
práticas e diferentes experiências milenares, com acúmulo de uma

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imensa diversidade de saberes que incluem os sistemas de cultivo e
o manejo dos agroecossistemas.
A biodiversidade trabalhada pelas populações tradicionais re-
quer um complexo sistema de manejo e um profundo entendimento
de seu ecossistema. Essas formas milenares de manejo serviram como
base para as diferentes formas de agricultura ecológica existentes
hoje. A biodiversidade funcional – aquela utilizada para cultivo e com
finalidade alimentícia, festiva, religiosa, entre outras, e que também
engloba os valores sociais e culturais de uma comunidade, bem como
sua relação com o ecossistema funcional ou agroecossistema – pas-
sa a formar a base do conceito agroecológico, relevante como alter-
nativa concreta aos sistemas químicos vigentes. Em documentos da
CDB, a agrobiodiversidade é definida como “um termo amplo que
inclui todos os componentes da biodiversidade relevantes para a
agricultura e alimentação e todos os componentes da biodiversidade
que constituem os agroecossistemas”. As relações humanas são um
fator fundamental para compreender a agrobiodiversidade.
Os primeiros sistemas de manejo da agrobiodiversidade com
enfoque agroecológico ocorreram nos centros de origem, nos locais
onde se iniciou a domesticação das plantas cultivadas. Muitos mo-
delos descritos hoje em agroecologia são baseados nessas culturas
milenares como, por exemplo, os povos americanos que vão do
México até a região dos Andes, na América do Sul. Em outras re-
giões, como o cerrado brasileiro, as savanas africanas e certas áreas
asiáticas, percebe-se que mais recentemente ocorreu um rompi-
mento nos sistemas agrícolas tradicionais, provocado por severos
problemas de estresse ambiental e de interferência da agricultura
moderna. A forte erosão da biodiversidade provocou a perda de
sistemas de cultivo e de aspectos sociais, culturais e antropológi-
cos dos agricultores e das comunidades indígenas.

AGROBIODIVERSIDADE, AGROECOLOGIA E SUSTENTABILIDADE


A questão da sustentabilidade foi introduzida indicando a im-
possibilidade de se continuar com uma agricultura tão perversa com
o meio ambiente, com a biodiversidade e com as comunidades tradi-
cionais. Nesse sentido, a aproximação integrada de conservação e
de utilização da agrobiodiversidade dentro de um enfoque agroeco-

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lógico é a chave para se buscar soluções estratégicas visando a uma
agricultura sustentável.
Os conceitos de desenvolvimento local, desenvolvimento
territorial, sustentabilidade, biodiversidade, agrobiodiversidade e
agroecologia passam a fazer parte das agendas de pesquisa e de de-
senvolvimento. Mas se torna necessário elucidá-los para não gerar
mal-entendidos. A biodiversidade, a agrobiodiversidade e a agroe-
cologia são conceitos próximos e bastante interligados por estarem
relacionados às questões do meio ambiente, dos agroecossistemas e
das comunidades tradicionais. Eles formam um complexo funcional
com diversas interações que originam os sistemas agroecológicos.

Figura 2.2.1 – Triângulo da sustentabilidade.

A agrobiodiversidade pode ser entendida como um processo


de relações e interações do manejo da diversidade dentre espécies e
entre elas, com conhecimentos tradicionais e com o manejo de múl-
tiplos agroecossistemas, sendo um recorte da biodiversidade. Por
sua vez, a agroecologia pode ser interpretada como o estudo das
funções e das interações do saber local, da biodiversidade funcio-
nal, dos recursos naturais e dos agroecossistemas.

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Figura 2.2.2 – Triângulo da agrobiodiversidade.

Os sistemas agroecológicos, por sua vez, promovem a agro-


biodiversidade e se relacionam com ela dentro de um processo de
relações e interações entre aspectos socioculturais, manejo ecológi-
co dos recursos naturais e manejo holístico e integrado dos agroe-
cossistemas. Isso dá origem à noção de sustentabilidade, baseada
em ações socialmente justas, economicamente viáveis e ecologica-
mente corretas. As figuras 2.2.1 e 2.2.2 ilustram essas interações. À
noção de justiça social corresponde a valorização das questões
socioculturais e dos conhecimentos tradicionais; à viabilidade eco-
nômica corresponde o manejo da diversidade entre e dentre espé-
cies, com a diversificação dos cultivos e o manejo ecológico dos
recursos naturais; e o aspecto das práticas ecologicamente corretas
relaciona-se ao manejo holístico dos agroecossistemas. Percebe-se,
assim, a forte relação que deve existir de forma harmônica e contínua
entre a agrobiodiversidade, a agroecologia e a sustentabilidade.
Observa-se também que qualquer desequilíbrio, seja de origem am-
biental ou de intervenção humana, pode provocar uma situação de
erosão sistêmica cuja conseqüência, inevitavelmente, será a miséria
e a fome, conforme ilustrado na Figura 2.2.3.

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Figura 2.2.3 – Triângulo da erosão sistêmica.

O problema da fome em grande parte se deve à falta de apoio à


agricultura nos países em desenvolvimento, onde a erosão genética,
os problemas de estresse ambiental, a falta de infra-estrutura, a falta
de água e os problemas socioeconômicos afetam o desenvolvimento
das atividades agrícolas. A perda de variedades locais altamente
adaptadas a esses agroecossistemas associada à perda de valores
culturais afeta terrivelmente as populações locais. Em todo o mundo,
fala-se em mobilização contra a pobreza, mas pouco se faz pela agri-
cultura, pela agrobiodiversidade e pelo desenvolvimento sustentável
das áreas marginais. É nelas que estão a maioria das comunidades
agrícolas e indígenas, e 70% dos pobres vivem em zonas rurais.
Para recompor locais que sofreram um forte processo de ero-
são da biodiversidade são necessárias diferentes estratégias de ação.
A pesquisa participativa pode ser um dos instrumentos na busca de
sustentabilidade dos agricultores familiares e dos assentados da re-
forma agrária. Desenvolver ações distintas em agrobiodiversidade e
agroecologia, como diversificação de cultivos, avaliação, seleção e
conservação de um amplo germoplasma de espécies cultivadas e de
interesse local, em conjunto com as comunidades dos agricultores,
pode ter como objetivo imediato a questão da segurança alimentar

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Biodiversidade 0204.P65 51 5/4/2007, 10:48


e, em médio prazo, a conquista da soberania alimentar. Para tanto,
faz-se necessária a utilização de metodologias participativas apro-
priadas, com visão holística e interações entre as instituições (setor
formal) e as comunidades (setor informal) que promovam o empo-
deramento comunitário.

2.3 ESTRATÉGIAS DE CONSERVAÇÃO


EM UNIDADES DE PRODUÇÃO FAMILIARES

Walter Simon de Boef, Bhuwon Sthapit,


Madhusudan P. Upadhaya e Pretap K. Shrestha

ESTRATÉGIAS DE CONSERVAÇÃO
Conservação biológica pode ser definida como o esforço para
manter a diversidade de organismos vivos, seus habitats e a inter-
relação entre os organismos e seu ambiente.3 Essa definição enfatiza
que conservação não se refere apenas a um indivíduo de espécies de
plantas e animais, mas também inclui todos os aspectos de biodiver-
sidade que formam os ecossistemas. As práticas atuais de conserva-
ção diferem de uma abordagem de biodiversidade do ecossistema e
da perspectiva genética. Na conservação da natureza, o interesse
maior é no habitat e no ecossistema, enquanto para a biodiversidade
agrícola o foco principal está em conservar a diversidade genética.
Pouco se avançou no desenvolvimento de um sistema global para a
conservação genética que aborde a biodiversidade nos três níveis e,
no caso de agrobiodiversidade, inclua o componente humano.
A conservação de recursos genéticos tem sido abordada com
duas estratégias que parecem se complementar: a conservação ex
situ, que significa a conservação dos componentes da diversidade
biológica fora do seu habitat natural; e a conservação in situ, que
significa a conservação de ecossistemas e habitats naturais, man-
tendo e recuperando populações viáveis de espécies nos seus pró-
prios ambientes e, no caso de espécies domesticadas e cultivadas,
nos ambientes onde elas desenvolveram as propriedades que as di-
ferenciam.4

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CONSERVAÇÃO EX SITU
A conservação ex situ de recursos genéticos de plantas ocorre
por meio de bancos genéticos, nos quais se armazenam amostras de
sementes ou de outros materiais de plantas, principalmente sob con-
dições controladas de temperatura e umidade. Em sua maioria são
guardados em refrigeradores/congeladores, sob temperaturas médias
(4ºC) para curto prazo e baixas (-20ºC) para longo termo. O objetivo
é conservar a maior diversidade genética possível, assegurando sua
disponibilidade para as gerações futuras. Materiais são colecionados
conforme o uso das plantas e são brevemente descritos (“dados de
passaporte”) antes de serem armazenados. Em geral, as técnicas para
conservação ex situ são consideradas apropriadas para a conservação
de cultivos, de parentes de cultivos e de espécies silvestres.
A conservação de germoplasma nos bancos de genes a campo é
outro elemento da estratégia ex situ. Isso envolve a coleta do material
em uma localidade e a transferência e plantio em um segundo local.
Usualmente, é a forma adequada para espécies como cacau, café, bana-
na, mandioca, batata-doce e inhame e sementes de espécies recalcitran-
tes, ou seja, que perdem a viabilidade quando secadas e congeladas.
Porém, nas últimas décadas, os bancos de genes têm se mos-
trado vulneráveis a vários problemas, incluindo falhas de infra-es-
trutura, poucos financiamentos e instabilidade política. Há fatos gra-
ves como, por exemplo, o banco de gene da Estação de Pesquisa de
Arroz, em Serra Leoa, na África Ocidental, que foi destruído por
criminosos. Em muitos bancos genéticos, as taxas de germinação
dos materiais – ou acessos – caem bem abaixo do nível aceitável
internacionalmente (85%), como é o caso da coleção mais famosa, o
banco de gene do Instituto de Vavilov, em São Petersburgo, na Rússia.
Uma característica importante dos bancos genéticos é que eles
congelam a evolução ou o desenvolvimento de cultivos locais, uma
vez que genótipos são retirados do seu ambiente original, não estan-
do mais sujeitos à adaptação contínua às condições de mudanças
ambientais e à seleção dos agricultores. Se armazenados correta-
mente, acessos de bancos genéticos podem ser reproduzidos com
poucas mudanças após um longo período de conservação. A conser-
vação ex situ também perde elementos, que podem ser essenciais
para o futuro, enquanto o germoplasma nos campos de agricultores

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tem possibilidade de co-evoluir com doenças e pragas e com distin-
tos sistemas de agricultura e de condições climáticas.5
A informação sobre acessos nos bancos de germoplasma é bas-
tante limitada ou imprecisa. A qualidade do material armazenado não
depende só de sua viabilidade, mas também da disponibilidade de
informações anexadas a ele. “Dados de passaporte” raramente in-
cluem características descritas por agricultores ou fazem referência
às condições ecológicas de onde se originou o material. Normalmente,
os coletores de plantas despendem apenas alguns minutos em cada
amostra coletada. Não há tempo para conversar com agricultores e
registrar o conhecimento deles. Isso rompe a conexão entre os agri-
cultores, ou o conhecimento de usuários, e o material biológico.
Em âmbito global, os bancos genéticos também têm sido criti-
cados a respeito dos direitos de propriedade em relação aos mate-
riais genéticos. Em termos práticos, as coleções de recursos genéti-
cos ex situ tornam-se extintas para as comunidades locais. Quando
armazenados por longo prazo, os materiais dificilmente estarão dis-
poníveis para os agricultores e as comunidades de onde eles vieram,
mas sim para melhoristas de plantas e pesquisadores. Outro aspecto
é quem detém o direito de propriedade. Conforme a Convenção da
Diversidade Biológica, os estados nacionais têm a soberania sobre
os seus recursos biológicos. Isso pode estar em conflito direto com o
interesse de comunidades locais. Elas podem escolher manter o
germoplasma ou dá-los aos bancos genéticos governamentais, em
um acordo de “caixa preta”. Em tal arranjo, o material é formalmen-
te armazenado enquanto a documentação permanece com o proprie-
tário, e o material somente poderá ser retirado com a autorização
dele. Isso é alheio à maioria dos mecanismos abertos de troca de
variedades que ocorrem no sistema informal de sementes.

CONSERVAÇÃO IN SITU
Conservação in situ, conforme já mencionado, visa a deixar
espécies no seu habitat natural, permitindo adaptação e evolução
contínuas. Essa estratégia é uma adaptação daquela usada em con-
servação da natureza. Esses conceitos são aplicados em conserva-
ção de agrobiodiversidade, particularmente para conservar espécies
semi-silvestres ou parentes silvestres de espécies cultivadas. Teori-

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camente, isso é apropriado sobretudo para habitats que estão amea-
çados, sejam eles naturais ou tenham um componente de manejo
humano.
Um exemplo de envolvimento humano na conservação in situ
são campos ou pastagens naturais. Pode estar relacionado à intensi-
dade de pastoreio no manejo do pasto e no modo como certas popu-
lações de espécies silvestres permanecem. A interrupção do pastoreio
pode ter um impacto mais forte em outras espécies que competem,
erodindo as espécies-alvo.
Na Turquia, um projeto internacional de conservação in situ
objetiva estabelecer manejo de genes em zonas ou reservas genéti-
cas, em regiões que são ricas em espécies-alvo silvestres, aparenta-
das a cultivos. Esse projeto trabalha na conservação de trigos silves-
tres, controlando o pastoreio, a ceifa ou o manejo do fogo, a fim de
desencorajar espécies perenes, especialmente gramíneas.6
Outro exemplo de conservação in situ é o programa nacional
de conservação do café na Etiópia. Um esforço especial está sendo
feito para conservar o café semicultivado em áreas de agricultores
familiares onde ocorre café florestal, bem como onde ele ocorre es-
pontaneamente. Isso complementa coleções de campo que são
mantidas, atualmente, em um banco genético de campo.7
Uma abordagem similar poderia ser desenvolvida para conser-
var espécies indígenas e semi-silvestres de mandioca que crescem
em sistemas de cultivo itinerante realizados por indígenas nas flo-
restas Atlântica e Amazônica. Manter o sistema de cultivo seria um
incentivo para manter o manejo humano por meio do qual a diversi-
dade genética foi gerada ou foi domesticada.

CONSERVAÇÃO NAS UNIDADES DE PRODUÇÃO FAMILIARES


Outra abordagem associada à conservação in situ requer a con-
servação de variedades locais por agricultores, ou seja, a conserva-
ção nas unidades de produção familiares. Nesse sentido, o manejo
de recursos genéticos do agricultor considera o sistema de agricul-
tura – ou agroecossistema – como o habitat onde a diversidade ge-
nética se originou. Em geral, os programas de conservação só ten-
dem a considerar importantes tais sistemas de agricultura quando
eles ocorrem nos locais onde os cultivos se desenvolveram (seu cen-

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tro de origem), como na definição de conservação in situ da Con-
venção em Diversidade Biológica (CDB), mencionada anteriormente.
Essa abordagem está em discussão desde os anos 90 e foi reconheci-
da pela CDB e FAO, constatando-se o papel que os agricultores de-
sempenham de modo complementar a uma estratégia de conserva-
ção ex situ. Isso é evidente com o milho, que tem sua origem no
México e na Guatemala, mas não significa que a diversidade desen-
volvida no Brasil e, por exemplo, no Oeste de Santa Catarina, seja
irrelevante. Essa estratégia de conservação enfatiza a manutenção e
o uso continuado dessa diversidade. O mesmo critério aplica-se, por
exemplo, para a diversidade de feijão e de mandioca (ambos com
origem na América do Sul) encontrada na África. A conservação e o
uso da diversidade genética de feijão e mandioca por agricultores
africanos são considerados importantes nessa abordagem.
A conservação in situ conduzida nas unidades de produção fa-
miliares compreende a conservação do agroecossistema inteiro, in-
cluindo a cultura plantada, os seus parentes silvestres e as plantas
adventícias relacionadas à espécie cultivada que podem estar cres-
cendo em áreas próximas. Em geral, a conservação nas unidades de
produção familiares é descrita como um processo de manejo de culti-
vos pelo qual os agricultores, ou as comunidades rurais, mantêm suas
variedades tradicionais nas suas condições locais de manejo e de me-
lhoramento contínuo. Assim, a conservação de genótipos específicos
é secundária ou não ocorre, pois os processos que permitem à espécie
evoluir e mudar, ao longo do tempo, são dinâmicos e contínuos.
O manejo de recursos genéticos por agricultores envolve a
manutenção de variedades de cultivos dentro de sistemas agrícolas
locais. Principalmente em ambientes marginais de produção, varie-
dades locais são semeadas e colhidas; a cada safra parte da semente
colhida é guardada para nova semeadura. Assim, a variedade local é
continuamente mantida no ambiente de produção específico dos
agricultores. É altamente adaptada ao ambiente local e provavelmen-
te contém alelos adaptados localmente. A conservação nas unidades
de produção familiares é um conceito desenvolvido por conservacio-
nistas, e não um objetivo dos agricultores. O “desenvolvimento local
de cultivos” pode ser definido como o complexo de manutenção,
utilização e melhoramento da diversidade genética de cultivos por

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agricultores.8 E, nesse contexto, é importante a participação ativa
dos agricultores no processo, que é contínuo e dinâmico e no qual os
agricultores manejam a diversidade em ambientes agroecológicos e
socioeconômicos específicos. São elementos básicos as trocas de
variedades, sua manutenção e utilização, aumentando a multiplica-
ção de sementes, o processamento e a armazenagem. Tal desenvol-
vimento local de cultivos é construído apoiado no conhecimento
de agricultores e na capacidade para inovação, com germoplasma e
sementes.
O desenvolvimento local de cultivos coloca o processo no es-
paço (local), mas em um processo contínuo de tempo, o que lhe dá o
elemento dinâmico. Nesse sentido, conservação visa a construir o
desenvolvimento de cultivos locais, que mudam continuamente, como
é elementar na biodiversidade – agricultores usam e conservam a
agrobiodiversidade.

POR QUE CONSERVAÇÃO IN SITU?


A ameaça potencial da perda de diversidade genética está dire-
tamente relacionada com o suprimento alimentar mundial. Isso é
reconhecido e levou à organização de coleções para armazenamento
ex situ de material genético em bancos de germoplasma. Embora
essa forma de conservação seja muito útil, especialmente para uso
imediato em programas de melhoramento de plantas, tem como des-
vantagens principais sua efetividade e extensão, além da paralisa-
ção inerente aos processos evolutivos. Por outro lado, as estratégias
de conservação in situ, conduzidas nas unidades de produção fami-
liares, contribuem para a conservação da diversidade em todos os
níveis, isto é, do ecossistema, das espécies e da diversidade genética
dentro das espécies. Também dão aos agricultores o poder para con-
trolar os seus recursos fitogenéticos como o principal recurso bioló-
gico e usá-los para melhorar o seu sustento.
Essas estratégias (ex situ e in situ), quando usadas de forma
integrada, também promovem uma ampla gama de esforços para a
conservação, envolvendo uma diversidade de parcerias para alcançar
os objetivos desejados, nas quais o sistema formal pode contribuir,
interagindo diretamente com o sistema informal de sementes. É uma
abordagem poderosa para integrar as comunidades rurais ao sistema

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nacional de recursos genéticos de plantas. É pertinente ressaltar que
a maioria das sementes das espécies cultivadas é oriunda de varie-
dades desenvolvidas por muitas gerações de seleção, sem contribui-
ções diretas do melhoramento formal de plantas. As sementes de
variedades desenvolvidas pelos agricultores fornecem, continuamen-
te, oportunidades para adaptação e seleção de cultivos. Assim, a di-
versidade das variedades locais, co-adaptadas a vários tipos de
estresses bióticos e abióticos, é usada como material de melhora-
mento primário para as variedades modernas.

CRITÉRIOS PARA A ESCOLHA DE LOCAIS PARA A CONSERVAÇÃO


Um problema fundamental, enfrentado em qualquer esforço
para a estratégia de conservação nas unidades de produção familia-
res, é a escolha de locais a partir dos quais as populações das espé-
cies cultivadas serão conservadas. É essencial considerar alguns cri-
térios gerais para a seleção desses locais: ecossistemas, diversidade
intra-específica de espécies-alvo, adaptação de espécies, erosão ge-
nética, valores diversos de uso, interesses da comunidade por culti-
vares particulares, parceiros e agências de governo e logística para
monitoramento. Uma das desvantagens da conservação nas unida-
des de produção familiares é a dificuldade de acessar o material
conservado. Isso ocorre principalmente quando os esforços de con-
servação feitos pelos agricultores não têm uma direção principal e
não estão conectados aos esforços do sistema formal de conserva-
ção e de uso de recursos genéticos de plantas.

O QUANTO É VIÁVEL A CONSERVAÇÃO IN SITU?


Pesquisa conduzida pela FAO, nos últimos anos, mostra o papel
crescente da estratégia de conservação nas unidades de produção como
complementação à conservação ex situ. Portanto, é importante enten-
der como os agricultores avaliam a diversidade dos cultivos locais e o
quanto eles aceitam despender tais recursos genéticos. A biodiversidade
agrícola fornece muitos produtos e serviços ambientais, econômicos,
sociais e de importância cultural; esses produtos e serviços ambientais
contribuem, de diversas formas, para a economia sustentável.
Os custos mais baixos de conservação ocorrerão em locais onde
os benefícios particulares dos agricultores sejam maiores com o plan-

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tio de variedades geneticamente diversas, uma vez que, nesses ca-
sos, são menores as intervenções públicas para encorajá-los a fazer
isso. Assim, os recursos genéticos das espécies cultivadas de pouco
valor público e utilidade ao agricultor (valor privado atual) terão
dificuldades em achar um espaço para a conservação in situ, a menos
que sejam feitas intervenções públicas para adicionar benefícios.

COMO A CONSERVAÇÃO BENEFICIA A COMUNIDADE?


Os benefícios alcançados podem ser econômicos, ecológicos e
socioculturais para os agricultores, as comunidades rurais e a sociedade.
Basicamente, duas opções podem ser consideradas na adição de bene-
fícios: a primeira, por meio do melhoramento genético participativo; e
a segunda, por meio da conscientização pública, de melhores estratégias
de publicidade e de incentivos políticos. A primeira opção busca melho-
rar a resistência a doenças, aumentar o rendimento, melhorar a palata-
bilidade e outras características desejadas no melhoramento, tais como
redes de semente e modificação de sistemas de agricultura. A segunda
opção inclui valor adicional aos recursos de cultivos locais, de forma
que a demanda para o material ou alguns produtos derivados possa ser
aumentada. Essas opções só serão possíveis se a capacidade local das
comunidades rurais e as instituições estiverem fortalecidas para uma
tomada de decisão apropriada e se esses parceiros compartilharem,
também, a responsabilidade de monitorar a diversidade de cultivos
locais após a realização das intervenções.

CONEXÕES ENTRE CONSERVAÇÃO E USO


O melhoramento da qualidade, o estímulo à troca de sementes
e o aumento da disseminação de variedades locais constituem ativi-
dades que contribuem para os sistemas informais e podem desempe-
nhar um papel importante na conservação da agrobiodiversidade nas
unidades de produção familiares. Entretanto, deve-se notar que tais
incentivos também podem conduzir à substituição da variedade ou à
erosão genética. Isso é inerente à natureza dinâmica do sistema infor-
mal. É importante perceber que, enquanto a utilização de diversida-
de genética por agricultores for mantida como foco, todos podem
contribuir com essa estratégia de conservação. Na forma de melho-
ramento participativo de cultivos e por meio do apoio a atividades

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informais de fornecimento de sementes é possível contribuir mui-
to mais eficazmente do que os conservacionistas conseguem fazer.
Essas contribuições para conservação nas unidades de produção fa-
miliares podem acontecer de diferentes modos. Podem ser, princi-
palmente, para monitorar as mudanças da diversidade genética no
tempo e no espaço, no sistema informal, mas também podem ser in-
tervenções diretas ou ações colaborativas.
Pode-se também contribuir consideravelmente para a conserva-
ção e a utilização da biodiversidade, em nível de unidade produtiva,
reforçando a conexão entre o sistema formal e o informal. Tomando
o sistema informal como ponto de partida, o NEABio e seus parcei-
ros trabalham com a diversidade de milho crioulo em Anchieta. Esse
é um ponto de partida para a implementação da estratégia referida de
conservação nas unidades de produção familiares. As estratégias não
são as únicas ações de conservação e, conseqüentemente, tornam-se
necessários elementos de agrobiodiversidade ao agroecossistema – de
espécies e em nível genético e humano, ao mesmo tempo. Em primei-
ro lugar, isso enfatiza o trabalho junto com agricultores e comunida-
des e, em segundo, leva uma abordagem orientada de diversidade,
com outras ações em desenvolvimento de cultivos (os melhoristas
profissionais, técnicos de sementes, extensionistas). Tal abordagem,
assim elaborada, incorporará aspectos de conservação em todas as
interações entre o sistema formal e o informal, integrando uma orien-
tação de diversidade em desenvolvimento de cultivos.9 Isso não ape-
nas pode ser uma forma para conservar a agrobiodiversidade, mas
leva em consideração a raiz do problema, estimulando o uso como
meio para uma agricultura mais sustentável. O trabalho desenvol-
vido pelo NEABio e parceiros, embora pequeno em escala, é um es-
forço dentro de Santa Catarina e do Brasil de conectar diversidade
e agricultura familiar, integrando a abordagem nos aspectos de se-
mentes, de melhoramento e de conservação em pesquisa e desenvol-
vimento.
A conservação nas unidades de produção familiares só será
possível quando os agricultores, as comunidades rurais e as insti-
tuições nacionais perceberem os benefícios em termos de contri-
buições econômicas, sociais e ambientais. Uma vez entendido que
o manejo local da diversidade de cultivos pelo agricultor é uma op-

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ção de desenvolvimento humano fundamental para a comunidade
rural, então o custo da conservação nas unidades de produção fa-
miliares se torna muito mais barato do que a conservação ex situ.
No processo, os agricultores não só utilizam os benefícios sociais,
econômicos e ambientais dos recursos genéticos locais, mas tam-
bém o seu potencial evolutivo. Porém, é importante notar que a con-
servação nas unidades de produção familiares não é, por si só, uma
panacéia, nem é recomendável como uma prática universal e ex-
clusiva ou viável para todas as circunstâncias. Essa estratégia de
conservação tem seu lugar e seu tempo para ser usada, uma vez que
pode ser passageira e sujeita a mudanças espaciais e temporais.
Por isso, é necessária uma maior conexão entre a conservação ex
situ e in situ, como estratégias complementares capazes de mini-
mizar a erosão genética dos cultivos, quando aplicadas em con-
junto.

2.4 PERDA DA DIVERSIDADE DE ESPÉCIES E DE RAÇAS DE


ANIMAIS DOMÉSTICOS: UM TEMA QUASE ESQUECIDO

Hans Schiere

Ao se pensar em perda de agrobiodiversidade, basicamente


se foca nas plantas cultivadas, tendendo a esquecer o importante
papel que os animais desempenham. A perda da diversidade de
espécies e de raças de animais domésticos apenas recentemente
foi reconhecida pela FAO. Esse órgão tem estimulado países e ins-
tituições a agirem no sentido de conservar essa fonte valiosa de
recursos genéticos, tratando da conservação e uso tanto de espé-
cies quanto de raças raras. No presente capítulo, inicialmente, com-
para-se a diversidade de cultivos e de animais usados na produção
rural, buscando diferenças e similaridades em relação à diversida-
de. A seguir, são descritas, de forma semelhante à da diversidade
de plantas, algumas características da tremenda erosão de espécies
animais e de diversidade genética ocorrida nas últimas décadas.
Finalmente, apresentam-se alguns esforços feitos, em diversos paí-
ses, para conservar e manejar a diversidade animal.

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AGROBIODIVERSIDADE EM ANIMAIS E EM CULTIVOS:
DIFERENÇAS E SIMILARIDADES
A diversidade é uma propriedade fundamental da natureza,
expressa em variações de padrões climáticos, de tipos de solo, de
comunidades, de idiomas, de diferentes animais e plantas em parques
naturais, etc. A agrobiodiversidade, se bem manejada, pode ajudar no
aumento da eficiência do uso de nutrientes, na identidade cultural, a
evitar doenças e a exploração unilateral do solo, entre outros aspec-
tos. A agrobiodiversidade ocorre em nível de regiões, dentre unida-
des de produção rurais e entre elas, dentre espécies cultivadas e de
animais e entre elas e em nível de lavouras e de rebanhos. Apesar de
a maioria pensar que o uso da agrobiodiversidade refere-se a esfor-
ços com o fim de conservar recursos genéticos, há também quem
considere a agrobiodiversidade como um conceito mais amplo.
A expectativa de se trabalhar com manejo comunitário da agro-
biodiversidade parece ser a busca de “autonomia”, apropriada às
variadas condições agroecológicas e sociopolíticas dos agricultores
familiares em Santa Catarina. As “expectativas” dependem de con-
dições e de preferências locais, mas também de questões que se re-
ferem à independência no fornecimento local de sementes, à adapta-
bilidade às condições locais, à reciclagem, ao uso mais eficiente de
nutrientes no solo, às plantas e às forragens a fim de alcançar a inde-
pendência econômica e cultural. Para tanto, também requer uma
mentalidade que desfrute da diversidade local, em vez de seguir pa-
drões prevalentes de consumo.
As formas, as funções e o manejo da agrobiodiversidade de
animais e de cultivos, na aparência, diferem consideravelmente. As
funções principais (= expectativas) da diversidade genética em ani-
mais estão listadas na Tabela 2.4.1, que fala por si só o quanto, na
realidade, são semelhantes. Para entender melhor a agrobiodiversi-
dade, é importante enfatizar tanto a utilização das diferenças quanto
das similaridades entre animais e cultivos. Isso é discutido a seguir,
em termos de escala e de padrões de combinações.

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Tabela 2.4.1 – Funções ou expectativas da diversidade na produção animal.

FUNÇÃO RAZÃO
Redução de riscos No caso de incidência de doenças, algumas
espécies de animais podem ser menos
suscetíveis do que outras. E quando
os cultivos não completam seu ciclo,
podem ser usados como forragem.
Uso de espécies Ovelhas sobrevivem de espécies vegetais
adaptadas diferentes daquelas usadas por vacas ou
porcos; algumas raças bovinas para carne,
mais rústicas, podem resistir a condições mais
difíceis do que raças leiteiras.
Dinâmica de fluxo É comum observar famílias pobres que
de dinheiro iniciam com poucas galinhas, para poupança,
até terem capital suficiente para comprar
cabras e ovelhas e finalmente adquirirem
cabeças de gado.
Tradição e emoção A maioria dos animais pode ser usada para
conservar e/ou estimular valores emocionais
e culturais, não importa se são galinhas ou
coelhos de estimação cuidados pelas crianças
(valor emocional ou educativo), ou animais
maiores como vacas, touros ou cavalos.
Melhor uso de recursos Coelhos e galinhas comem as sobras da
cozinha e da horta; porcos alimentam-se de
sobras de tubérculos, de grãos ou soro de
leite. Cabras e vacas usam restos dos
cultivos, e animais de baixa produtividade
podem usar as sobras dos animais mais
produtivos que recebem o melhor alimento
da unidade de produção.
Dinâmica do sistema Animais que comem biomassa disponibilizam
e reciclagem de nutrientes para os cultivos mais rapidamente
nutrientes do que quando a biomassa é deixada para
compostar ou para decompor a campo.

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Dinâmica do sistema Uma família pode decidir ter tanto animais
em termos de fluxo como cultivos porque uma renda regular de
de dinheiro leite ou de ovos pode sustentar a família na
entressafra, ou porque a poupança na forma
de animais pode ser transformada em dinheiro
quando a safra não está sendo comercializada.
Proteção contra doenças Diversidade implica que um animal pode ser
saudável enquanto outras espécies sofrem
doenças ou preços baixos de mercado. Ani-
mais que comem sobras também reduzem o
risco de restos apodrecendo e da presença de ratos.
Eqüidade social Galinhas e outros pequenos animais podem
ser importantes fontes de renda para mulheres
e crianças em nível familiar. Animais de maior
porte podem também ser uma fonte significativa
de renda para famílias pobres que usam resteva
ou áreas não-cultiváveis para pastoreio.
Valor natural Uma espécie rara de ave ou um animal de caça
podem servir para atrair turistas ou para se
tornarem mascotes locais. A criação para caça
é um negócio em ascensão em alguns lugares.
O agro-turismo é o negócio mais importante
conectado a esse valor, se noções holísticas
do valor intrínseco da natureza forem deixadas
de fora desta discussão.

A escala de animais e de cultivos é a primeira fonte de confu-


são sobre diferenças e similaridades. Quando se discutem as dife-
renças entre animais e plantas tende-se a comparar vacas com mi-
lho. De fato, os intervalos de gerações no milho são mais curtos do
que os de vacas, enquanto o número de sementes é maior no milho
do que nelas. Pode-se, então, pensar que o manejo da biodiversida-
de é mais fácil em culturas. No entanto, a comparação entre cultivos
e animais inverte-se caso se considere a diferença entre coelhos e
árvores frutíferas. A noção de escala tem importância tão funda-
mental que não deve ficar limitada a esses dois exemplos. Animais e
culturas de tamanho pequeno tendem a significar altas taxas
reprodutivas e elevado fluxo de nutrientes. O tamanho corporal é

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uma questão de escala no espaço, enquanto o fluxo de recursos é um
aspecto da escala no tempo. Assim, as dinâmicas de espaço e de
tempo combinam-se de tal maneira para nos proporcionar um maior
entendimento e capacidade de conservação e uso. Não menos impor-
tante é entendermos que a biotecnologia moderna reduz as diferenças
entre animais e cultivos à medida que se desenvolve a cultura de teci-
dos, clonagem, criogenia, ovulação múltipla e inseminação artificial.
Padrões de combinações entre animais e cultivos são uma
segunda questão na busca entre diferenças e similaridades. Nesse
caso, em termos de combinações adequadas e inadequadas. O uso
da agrobiodiversidade inclui raças e espécies que, combinadas, re-
sultam numa produção agropecuária mais sustentável e autônoma,
pela maior adaptabilidade, uso mais eficiente de recursos e recicla-
gem, entre outros. Isso pode significar a conservação de raças e de
variedades tradicionais, a combinação adequada de plantas e ani-
mais, o uso de raças localmente adaptadas e assim por diante. No
entanto, o uso inadequado da agrobiodiversidade provoca proble-
mas, por exemplo, em termos de rotinas de trabalho e/ou fluxo de
caixa, manejo complicado ou transmissão de pragas e doenças. Exem-
plos disso são: a sucessão de plantio de batata e feijão, que pode
levar a um aumento da infestação de nematóides; a combinação de
galinhas e aves aquáticas, que “ajuda” no aparecimento da gripe
aviária; sem falar nos parasitas intestinais que podem prosperar onde
homens e animais vivem em grande proximidade. Há que se consi-
derar, também, a tendência perigosa de se procurar espécies adapta-
das, o que é a maneira perfeita de retirar mais do sistema, deixando-
o, no fim das contas, completamente exaurido. As cabras são um
exemplo notório de animais que, se mal manejados, sobrevivem da
vegetação degradada, acabando por destruírem completamente o
ecossistema. Uma espécie cultivada, como a mandioca, também pode
apresentar a mesma tendência, possibilitando que o solo seja culti-
vado por mais tempo sem regenerar os recursos locais. Em outras
palavras, a biodiversidade só é útil se bem-feita.

DIVERSIDADE NA CRIAÇÃO DE ANIMAIS E SUA PERDA


Assim como na produção agricola de plantas cultivadas, são
muitas as vantagens da diversidade na criação de animais. Por que,
então, essa diversidade tende a desaparecer, apesar de suas vantagens?

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Um das principais razões desse desaparecimento e que está na
base da rápida mudança na reprodução animal é o uso de grandes po-
pulações, com alto grau de seleção, com o objetivo de se obter carac-
terísticas desejadas em detrimento de “características inferiores”. O uso
de aspas, aqui, é deliberado, para enfatizar que o termo “inferior” não
deveria ser aplicado a genes (ou a qualquer outro ser). O que é bom em
um caso não necessariamente o é em outro, e vice-versa. Por exemplo,
em geral, animais criados em regiões economicamente abastadas e de
elevado potencial, com acesso a bons veterinários, podem ser selecio-
nados para alto rendimento, à custa da resistência a doenças. Isso im-
plica que tais programas de reprodução podem ser bons para as áreas
de elevado potencial, mas esses animais não têm o mesmo valor para
serem criados em regiões de baixo potencial.
Uma outra razão é que a tendência à homogeneidade também é
inevitável, porque áreas de elevado potencial tendem a padronizar
suas condições de produção, pelo seu acesso relativamente fácil a
combustíveis fósseis e a outros insumos externos. A perda de biodi-
versidade pode, assim, estar parcialmente relacionada ao acesso a
combustíveis fósseis.
Uma razão, mais econômica, é que as empresas do setor pe-
cuário buscam sobreviver beneficiando-se da escala de produção.
Acreditam ganhar mais dinheiro com um produto-padrão (pelo maior
volume) do que com uma diversidade de produtos em menor volu-
me, que requerem canais distintos de distribuição. Algumas empre-
sas atuam nos mercados pequenos e variáveis como, por exemplo, o
de medicamentos, mas empresas maiores, como as de sementes e de
rações, tendem a visar, primeiramente, os mercados grandes e pa-
dronizados. Somente quando o mercado se estreita é que elas bus-
cam diversificar seus produtos.
Conectado a isso, o processamento em larga escala, os super-
mercados, os agronegócios, os processadores de alimentos e de pro-
dutos de exportação requerem padrões e classificações, cujos custos
são mais bem cobertos quando se trata com grandes volumes, em
vez de pequenos. Novos sistemas têm sido desenvolvidos para pe-
quenos produtores e produtos encontrarem espaço, no mercado, para
a diversidade, como, por exemplo, o movimento slow food. No en-
tanto, esse ainda não é um setor em grande expansão.

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A diversidade de espécies implica na presença de espécies be-
néficas e de outras “menos úteis”. Ratos, macacos, elefantes e co-
bras podem ser atraentes para turistas (com exceção dos ratos), mas
não para os agricultores. A mais recente ameaça para a biodiversi-
dade vem dos produtores de aves domésticas em larga escala, que
estão com medo dos pássaros migratórios, em função da expansão
da gripe aviária. É necessário um grande esforço de conscientização
para fazer com que comunidades comecem a reconhecer o benefício
de animais selvagens e de animais raros.

CONSERVAÇÃO GENÉTICA DE ANIMAIS


As vantagens da diversidade animal são cada vez mais reconhe-
cidas, levando a um progresso real na preservação de espécies e na
conservação de ecossistemas. Ela ocorre em muitos níveis, desde o
regional até a unidade produtiva e de cultivos de animais. Se bem fei-
ta, tem inúmeras funções, como manter a tradição e a autonomia locais,
prevenir doenças e pestes ou aumentar a eficiência no uso de recursos.
Ações nessa área envolvem escolas locais, empresas e asso-
ciações voluntárias e dependem muito da ação individual. Políticas
governamentais podem ajudar, por exemplo, com subsídios, ajus-
tando níveis dos lençóis freáticos, declarando certas áreas como pro-
tegidas, permitindo a vacinação em espécies raras, ajustando e/ou
afrouxando as normas locais que proíbem manter animais em re-
giões urbanas. Por outro lado, os produtores podem ter que projetar
construções especiais para evitar o barulho de um galo que canta em
áreas urbanas, ou cultivar determinadas árvores específicas e vege-
tação de abrigo, ou ter horários marcados para usar máquinas.
Em que pese existirem muitas situações de recursos genéticos
animais ameaçados de extinção, há casos bem-sucedidos de conser-
vação, com os quais podemos aprender. Alguns exemplos são:
• Associações de conservação de raças raras, com objetivos
que variam desde a conservação da natureza, com fins educacionais
e de produção com animais adaptados, até o agroturismo, que perce-
be melhor o valor de raças raras para a cultura local.
• A cegonha quase desapareceu na Europa devido à destruição
de seu habitat. Associações de produtores e grupos de apoio à natu-
reza foram importantes para recuperar sua população, afastando a
ameaça imediata de extinção.

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• O cavalo de Przewalskié é uma espécie rara que originalmen-
te habitava as estepes mongóis. Ele quase desapareceu, mas está se
recuperando gradualmente, primeiro por meio de intensos progra-
mas de reprodução e com a ajuda de jardins zoológicos europeus;
mais recentemente, há um programa em que cidadãos chineses abas-
tados podem “adotar um cavalo”.
• A criação de animais selvagens é um caso de conservação da
natureza em que as comunidades e os agricultores se unem para al-
terar o uso exclusivo do pasto para gado, a fim de ser utilizado por
animais selvagens e “domesticados”, como na África, por exemplo.
• Uma raça de ovelha holandesa (a Mergellandschaap) foi sal-
va por uma cadeia de criadores, açougueiros e distribuidores de ali-
mentos que começaram a oferecer esse tipo de carne em restauran-
tes. Com seu consumo, os produtores começaram a ver benefícios
na criação desse animal.
• O gado Nguni, na África do Sul, é um caso em que critérios
de qualidade discriminaram a carne de um animal que era apropria-
do às condições locais. A mudança desse sistema ajudou a raça Nguni
a recuperar um lugar valioso na produção agropecuária.
• Algumas vezes, decisões simples de manejo podem fazer mui-
ta diferença. A Figura 2.4.1 mostra dois esquemas de ceifa: o da
esquerda é desnecessariamente danoso à vida silvestre por concen-
trar todos os animais no centro sombreado durante a colheita, onde
eles provavelmente serão mortos. No esquema da direita, os animais
estão menos sujeitos a serem pegos porque durante a colheita eles
são perseguidos em direção ao exterior. Os números indicam a se-
qüência da ceifa.

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Figura 2.4.1 – Dois esquemas de ceifa e o impacto sobre os animais silvestres.

2.5 UMA PERSPECTIVA DE SISTEMAS APROXIMANDO


AGRICULTORES E PESQUISADORES NO MANEJO
COMUNITÁRIO DA AGROBIODIVERSIDADE

Walter Simon de Boef

O melhoramento genético de cultivos sempre desempenhou


um papel importante no desenvolvimento da agricultura. O melho-
ramento genético formal, nas últimas décadas, tanto logrou suces-
sos quanto falhas. Particularmente, os agricultores dos ambientes
mais marginais e mais heterogêneos pouco se beneficiaram desse
tipo de desenvolvimento agrícola. Por outro lado, a política global e
as estruturas legislativas e regulatórias nacionais estão dificultando
cada vez mais a disponibilidade e o livre uso da diversidade genéti-
ca, como é o caso das restrições impostas pela própria lei de prote-
ção de cultivares (uniformidade, estabilidade, distinguibilidade). Os
interesses por trás do desenvolvimento da biotecnologia, do paten-
teamento e da comercialização em geral dos recursos genéticos são
diferentes daqueles que visam o desenvolvimento local dos agricul-
tores e das comunidades. A influência das companhias que operam
globalmente é uma séria ameaça ao uso dos recursos genéticos nos
campos desses agricultores.

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Agricultores inovadores ou nodais10, pesquisadores e técnicos
do setor agrícola estão buscando maneiras alternativas para o mane-
jo, o uso da agrobiodiversidade e o melhoramento participativo de
cultivos. Eles procuram formas de restaurar a diversidade no sistema
a fim de diminuir a vulnerabilidade a pragas e doenças, reduzindo os
custos e resgatando o que foi perdido, atendendo às necessidades
múltiplas da unidade de produção e mantendo opções para responder
adequadamente a eventos inesperados do ambiente e do mercado.

AGRICULTORES E O SISTEMA FORMAL


Adiante, na Figura 2.5.1, mostramos o uso e o manejo da agro-
biodiversidade nas perspectivas formal e informal. O sistema formal
ou institucional é descrito como um modelo em que o papel dos agri-
cultores dá forma ao ponto inicial. Os dois modelos de sistemas são
uma simplificação da realidade, já que ela é sempre muito mais com-
plexa. O sistema varia de local para local e de cultivos para cultivos.
Pode variar, por exemplo, entre agricultores abastados e pobres em
uma comunidade. A complexidade da realidade é a razão pela qual
usamos um modelo para identificar oportunidades e possibilidades
para a sustentabilidade do sistema formal e o dos agricultores.
Sistema informal. Os agricultores sempre foram – e ainda são
– os principais curadores ou guardiões da agrobiodiversidade. Os
agricultores selecionam cultivos (geralmente, uma diversidade da
espécie) e variedades (variação genética dentro da espécie) para plan-
tar, armazenar e replantar as sementes (Figura 2.5.1). Nesse sistema,
os agricultores produzem suas próprias sementes e estão envolvidos
com o cultivo e o desenvolvimento (seleção entre variedades e me-
lhoramento genético de variedades), mantendo a diversidade gené-
tica. Ou seja, eles controlam os recursos genéticos de plantas de
uma maneira integrada e com diferentes finalidades. O manejo
fitotécnico e a seleção dos agricultores em combinação com proces-
sos naturais, tais como mutação genética, cruzamento entre varieda-
des com parentes silvestres e a influência do ambiente natural (agen-
tes abióticos – temperatura, umidade, solo, etc. – e agentes bióticos
– doenças, pragas, simbiontes e assim por diante) caracterizam um
sistema de evolução contínua dos cultivos. Os sistemas dos agricul-
tores são complexos e ainda não de todo compreendidos por estu-

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dos. Adriano e Ivan Canci apresentam no Capítulo 6.2 a natureza
dinâmica da agrobiodiversidade dos agricultores em Anchieta.

Figura 2.5.1 – Sistemas informal e formal de manejo e de conservação da


agrobiodiversidade com suas estruturas e interações11

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Sistema formal. Instituições envolvidas na conservação de cul-
tivos (bancos genéticos), no melhoramento (programas de melhora-
mento) e como fontes de sementes dão forma a um sistema de recur-
sos genéticos de plantas que têm funções paralelas ao sistema dos
agricultores (Figura 2.5.1, p. anterior). Os sistemas institucionais
que surgiram após a descoberta dos “genes” estabeleceram-se tendo
o conhecimento sobre a possibilidade de manipular caracteres de
plantas por meio dos cruzamentos. O melhoramento transformou-se
em atividade especializada, realizado por instituições de pesquisa e
por pesquisadores/melhoristas. Os bancos genéticos mantêm cole-
ções de materiais genéticos e podem, prontamente, fornecer esses
materiais aos melhoristas e aos pesquisadores. Os programas de se-
mentes foram projetados para difundir variedades melhoradas aos
agricultores, com um certificado de qualidade da semente. O siste-
ma formal é organizado com regras claras; entretanto, é menos
integrador do que o sistema dos agricultores. Esse sistema de desen-
volvimento agrícola evoluiu com sucesso na Europa e na América
do Norte e foi usado como modelo na América do Sul. Nesse mode-
lo, é totalmente ignorado o papel dos agricultores no melhoramento
dos cultivos, na produção e na conservação de sementes.
Aproximação inadequada. O sistema dos agricultores e o sis-
tema formal podem ser considerados dois sistemas paralelos, com tão-
somente dois pontos de contato entre eles. O primeiro acontece no
momento das missões para estabelecer coleções genéticas, que ocor-
rem onde os agricultores ainda cultivam muitas variedades tradicio-
nais. O segundo ponto é quando o sistema formal distribui as sementes
melhoradas aos agricultores. Como descrito anteriormente, os siste-
mas institucionais não foram muito eficazes na seleção de ambientes
agroecológicos variados nem no atendimento das necessidades e
preferências da diversidade de agricultores. A regra convencional dos
programas de sementes é o fornecimento de variedades melhoradas,
produtos dos programas de melhoramento. Essas variedades melho-
radas muitas vezes não se tornam atrativas aos agricultores devido à
combinação inadequada entre o melhoramento e as necessidades
deles. Em outras situações, somente são aceitas quando incentivadas
por subsídios. Freqüentemente, os programas convencionais de se-
mentes são anulados pela boa qualidade das sementes dos agriculto-

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res. A maioria deles não tem razões para comprar novas sementes, a
menos que percam as suas ou que queiram experimentar novas varie-
dades ou cultivar variedades híbridas de milho ou de outras plantas.
A produção agrícola em áreas remotas e de difícil acesso dificulta o
fornecimento de sementes pelo setor formal. Com esses contrastes,
não é surpresa constatar que os programas de sementes, copiados do
modelo ocidental, no geral não foram bem-sucedidos.

CONSERVAÇÃO VERSUS DESENVOLVIMENTO?


O valor da conservação da diversidade genética cultivada, nos
sistemas tradicionais, é incalculável. Isso torna cada vez mais claro
que os agricultores sempre terão a necessidade da diversidade gené-
tica para lidar com as condições ambientais e as variações do merca-
do. O desafio está em manter a diversidade genética associada ao
desenvolvimento. A “Revolução Verde” introduziu variedades me-
lhoradas, as quais substituíram os materiais locais em larga escala,
freqüentemente reduzindo o número de variedades plantadas. Para a
maioria dos melhoristas isso é aceito como um resultado indireto. A
seleção de variedades com maior produtividade conduz à eliminação
de diversas outras, que apresentam menor desempenho. A seleção do
melhor genótipo numa variedade (ou a eliminação dos indesejáveis)
reduz a diversidade genética de variedades locais. Por causa disso,
muitos consideram que a manutenção da diversidade genética não pode
ser combinada com o melhoramento dos cultivos. No entanto, a reali-
dade pode ser diferente. Particularmente, nas circunstâncias em que
os ambientes variam dentro de uma mesma lavoura, entre lavouras e
entre estações, os genótipos ou variedades melhoradas podem res-
ponder de maneira diferente a distintas situações.

OS DOIS SISTEMAS TÊM SUAS PRÓPRIAS FUNÇÕES


Uma avaliação mais próxima dos sistemas de agricultores e de
instituições mostra claramente que ambos têm pontos fracos e for-
tes. Na realidade, os dois sistemas são complementares. O sistema
formal tem múltiplas oportunidades de apoio aos sistemas de agri-
cultores.12 No entanto, historicamente, verifica-se que esse apoio não
é oferecido como padrão e não é adaptado às condições específicas
e de preferenciais locais. As contribuições nesse sentido mostram,

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potencialmente, abordagens descentralizadas, construídas com a
participação dos agricultores e de ONGs. O apoio distingue-se em
três áreas de intervenção dos sistemas convencionais: fontes de se-
mentes, melhoramento participativo de cultivos e conservação da
diversidade genética.

APOIO AO MANEJO DOS AGRICULTORES


Uma melhor aproximação entre os sistemas de agricultores e
de instituições oferece muitas oportunidades para combinar forças
em ambos, ainda que a aproximação do pesquisador trabalhando
para ajudar os agricultores tenha necessidade de melhor direção.
Apesar de existirem vários exemplos mostrando que tais aproxima-
ções aumentam a disponibilidade e o acesso dos agricultores à di-
versidade de cultivos genéticos, elas também melhoram a efetividade
do sistema formal, desde que conduzidas de forma mais adequada
para atender às necessidades dos agricultores.
Produção e troca de sementes. Sem dúvida, as sementes pro-
duzidas na unidade de produção ou obtidas com parentes, amigos ou
outros canais informais e ressemeadas são as mais importantes fontes
de sementes para a agricultura familiar nos países em desenvolvimen-
to e, além disso, são significativas nos países mais industrializados.
Calcula-se que 80% das sementes dos países em desenvolvimento são
produzidas pelos próprios agricultores. Obviamente, essa porcenta-
gem varia muito, dependendo dos cultivos. Essa tendência é bem
representada, por exemplo, no trigo, uma espécie autógama, cuja
semente é relativamente fácil de armazenar. Em cultivos como fei-
jão ou amendoim, essas porcentagens são muito mais baixas devido
a doenças e a limitações de armazenagem.
O melhoramento de práticas de armazenagem ou de fitossani-
dade das sementes poderia apoiar a produção de sementes na unida-
de de produção. A manutenção de variedades também é um apoio
importante, como, por exemplo, a produção de sementes e práticas
de seleção que visem a manter as características da variedade e seus
potenciais genéticos positivos e negativos por meio da seleção
massal.11 Tais atividades de suporte são particularmente úteis para
variedades locais: sementes dessas variedades não costumam estar
disponíveis em instituições e, em muitos casos, a seleção massal

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pode melhorar bastante o rendimento das variedades locais. As ati-
vidades do SINTRAF, em Anchieta, distinguem-se principalmente
por aumentarem a autoconfiança dos agricultores e a independência
da comunidade no abastecimento de sementes de milho.
O sistema informal de troca de sementes entre os agricultores,
junto com os cruzamentos espontâneos entre variedades silvestres e
aparentadas cultivadas são os mecanismos mais importantes para
“alimentar” o pool gênico local com novos materiais e característi-
cas, mantendo o dinamismo e a diversidade, bem como a disponibi-
lidade local de acesso às sementes. Feiras de sementes, como ocorre
nos Andes, são eventos tradicionais importantes, pois facilitam a
troca de sementes entre agricultores e comunidades. As atividades
das organizações locais, como as festas de sementes crioulas organi-
zadas em Anchieta, incentivam a troca entre os agricultores e, além
disso, estimulam a troca de sementes entre comunidades. Os cantei-
ros de diversidade de variedades de milho foram instaladas em 2005/
2006 em oito municípios no Oeste de Santa Catarina e são um dos
meios para estimular a troca de sementes de variedades crioulas en-
tre os agricultores e entre comunidades.
Melhoramento participativo de cultivos. O desenvolvimen-
to de variedades locais de espécies silvestres, pela seleção realizada
por agricultores, ilustra que o desenvolvimento de plantas cultiva-
das é um sistema efetivo para o melhoramento de cultivos. A fragi-
lidade do sistema dos agricultores também é visível: é um sistema
dinâmico, com variações genéticas importantes dentre variedades
locais e entre elas, mas um sistema no qual a introdução de novos
genes ou materiais exóticos é normalmente restringida. A introdu-
ção de genes de resistência que não estão disponíveis no pool gênico
local quase inevitavelmente requer o apoio do setor formal. Mas, da
mesma forma, também se observa que a introdução de variedades
criadas por melhoristas em um sistema de melhoramento centraliza-
do também não resulta em médias ótimas ou satisfatórias.11 O me-
lhoramento genético participativo de cultivos é uma alternativa pro-
missora, na qual o conhecimento dos agricultores é combinado com
a capacidade dos melhoristas e com o acesso aos materiais.
Em síntese, a expectativa de uma variedade ser escolhida pe-
los agricultores será uma resposta deles próprios por meio da sele-

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ção em distintos ambientes, por diferentes agricultores. Os esforços
do NEABio no melhoramento genético participativo de variedades
locais de milho são no sentido de estimular as habilidades dos agri-
cultores na experimentação e no melhoramento especialmente no
processo de melhoria genética das variedades desenvolvidas por eles
próprios. Busca-se incentivar o uso de métodos científicos de me-
lhoramento, para acelerar os ganhos decorrentes da seleção. O pro-
cesso de seleção é descentralizado de estações experimentais e con-
duzido nas próprias unidades de produção, além de as estratégias de
seleção serem monitoradas pelo conhecimento local e ajustadas para
os agroecossistemas particulares dos agricultores familiares.13

OS DESAFIOS NA CONSERVAÇÃO DE DIVERSIDADE GENÉTICA


As experiências aqui apresentadas, bem como em outros capí-
tulos deste livro, são evidências de que existem oportunidades para
apoiar o desenvolvimento da agricultura familiar sem acabar com a
diversidade de que os agricultores dispõem e da qual eles visivel-
mente precisam.
Unidades de produção familiares precisam de diversidade ge-
nética por múltiplas razões: para satisfazer as necessidades de con-
sumo e de comercialização e para lidar com as variações de clima,
de solos e de mercado, mantendo opções para um futuro incerto.
Com o aumento da integração de mercados, agricultores tendem a
se especializar e a usar menor diversidade de cultivos. Simultanea-
mente, tradições culturais são perdidas. Considerando que muitas
tradições culturais estão relacionadas com o rico uso da biodiversi-
dade, o apoio para a manutenção do conhecimento local e da heran-
ça cultural pode oferecer oportunidades importantes para o manejo
sustentável dos recursos genéticos.
A organização de bancos comunitários de sementes apóia e
melhora o acesso dos agricultores à diversidade de cultivos. As fei-
ras de diversidades têm um papel semelhante, pois permitem aos
agricultores o acesso a sementes perdidas por fracassos de safra ou
por outros acidentes. Essas atividades contribuem com a conserva-
ção de variedades locais nas unidades de produção familiares e com
a conservação de sementes. O melhoramento genético de cultivos
também contribui para manutenção da diversidade genética. Isso mos-

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tra que contribuições relevantes à conservação nas unidades de pro-
dução familiar podem ser feitas sob diferentes perspectivas, ao mes-
mo tempo em que essas atividades apóiam o desenvolvimento.9
O grande desafio é passar de uma situação inovadora mas rela-
tivamente isolada em projetos de profissionais e agricultores para
uma situação nas quais essas abordagens sejam em escalas abran-
gentes, como práticas normais em instituições formais e informais
de âmbito nacional e internacional. Esse não é um desafio fácil e
requer, acima de tudo, flexibilidade e vontade de profissionais go-
vernamentais e não-governamentais para cooperarem com os agri-
cultores e com outros atores institucionais. O fato de as atividades
do NEABio no Brasil e em Santa Catarina ainda serem recentes
mostra que tais esforços, todavia, estão longe do desejado.

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NOTAS

1. Qualset, C.O., et al. Locally based crop plant conservation. In: Maxted, N., Ford-
Lloyd, B.V., Hawkes, J.G. (eds). Plant genetic conservation. The in situ approach.
Londres: Chapman & Hall, pp. 160-175, 1997.
2. Opole, M. Revalidating women’s knowledge on indigenous vegetables:
Implications for policy. In: De Boef, W.S., et al. (eds). Cultivating knowledge, genetic
diversity, farmer experimentation and crop research. Londres: Intermediate Tech-
nology Publications Ltd., pp. 157-164, 1993.
3. Spellerberg, I.F.; Hardes, S.R. Biological conservation. Cambridge: Cambridge
University Press, 1992.
4. Definições de acordo com a Convenção da Diversidade Biológica; UNEP, 1992.
5. Berg, T., et al. Technology options and the gene struggle. NORAGRIC Occasional
Papers Series C. Ås: Norwegian Centre of International Agricultural Development,
Agricultural University of Norway, 1991.
6. Ertug Firat, A.; Tan, A. In situ conservation of genetic diversity in Turkey. In:
Maxted, N., Ford-Lloyd, B.V., Hawkes, J.G. (eds). Plant genetic conservation. The
in situ approach. Londres: Chapman & Hall, pp. 254-262, 1997.
7. Worede, M.; Tesemma, T.; Feyissa, R. Keeping diversity alive: an Ethiopian
perspective. In: Brush, S.B. (ed). Genes in the field. On-farm conservation of crop
diversity. Boca Raton FL: Lewis, pp. 143-163, 1999.
8. Hardon, J.; De Boef, W.S. Linking farmers and plant breeders in local crop
development. In: De Boef, W.S., et al. (eds). Cultivating Knowledge, genetic diversity,
farmer experimentation and crop research. Londres: Intermediate Technology
Publications Ltd., pp. 64-71, 1993.
9. Almekinders, C.J.M.; De Boef, W.S. (eds). Encouraging diversity. Conservation
and development of plant genetic resources. Londres: Intermediate Technology
Publications, 2000.
10. Agricultores nodais são aqueles que, numa comunidade, possuem os maiores conhe-
cimentos e interesse sobre a diversidade, a produção e a seleção de sementes, a ecolo-
gia da produção e os usos de diferentes cultivares. Apresentam características de pesqui-
sadores e querem compartilhar conhecimentos e materiais com os outros agricultores.
11. Fonte original: Almekinders C.J.M.; De Boef, W.S. The challenge of collaboration
in managing crop genetic diversity. ILEIA Newsletter 15 (3/4): pp.5-7, 1999.
Traduzido e modificado por Canci, I.J. Relações do conhecimento formal e informal
no manejo da agrobiodiversidade no Oeste de Santa Catarina. Florianópolis-SC:
Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina (Dissertação de
Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Recursos Genéticos Vegetais), 2006.
12. Almekinders, C.J.M.; Louwaars, N.P. Farmers’ seed production. New
approaches and practices. Londres: Intermediate Technology Publications, 1999.
13. Ogliari, J.B., et al. Análise Genética da Diversidade de Variedades Locais de
Milho (Zea mays L.). Relatório Final de Pesquisa do CNPq. Florianópolis-SC:
NEABio, p. 18, 2004.

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3
METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS:
INSTITUIÇÕES, AGRICULTORES E
COMUNIDADES NA PESQUISA
E NO MANEJO

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3.1 UM NOVO PROFISSIONAL NA PESQUISA
DE DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA PARTICIPATIVO

Walter Simon de Boef e Sérgio Leite Guimarães Pinheiro

Abordagens participativas de desenvolvimento têm sido usadas


em diferentes contextos. As diversas denominações empregadas –
pesquisa e estudos participativos, demanda de pesquisas dirigidas, de-
senvolvimento participativo de tecnologias, desenvolvimento parti-
cipativo e facilitação de aprendizagem, extensão participativa e de-
senvolvimento rural e trabalhando a organização social – refletem os
objetivos que se quer alcançar. Por exemplo, enfocar no desenvolvi-
mento da tecnologia para a solução de problemas complexos, rela-
cionados a pragas e doenças, implica que a organização social e a
aprendizagem facilitada são aspectos que deverão ser levados em con-
sideração. Este capítulo apresenta formas para se atingir os objeti-
vos desejados.

SISTEMAS DE CONHECIMENTO
A abordagem participativa distingue dois tipos de sistemas de
conhecimento: os sistemas tradicionais (ou locais) e os científicos.
É possível fazer um paralelo entre eles e os sistemas formal e infor-
mal de melhoramento de plantas (Capítulo 2.5). O ponto de contato
convencional entre os dois sistemas é a transferência da tecnologia,
usando fluxo linear de informação; no caso, tecnologias de melho-
ramento genético e germoplasma. Por sua vez, o melhoramento ge-
nético participativo objetiva conectar o sistema local com o científi-
co. A Tabela 3.1.1 mostra uma caracterização dos dois sistemas,
acrescida do DPT (desenvolvimento participativo de tecnologia). O
DPT é uma abordagem que une ambos os sistemas, ou seja, é uma
maneira alternativa de desenvolver a tecnologia.

81

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Tabela 3.1.1 – Principais características das três abordagens
de desenvolvimento de tecnologia1.

CRITÉRIOS TRADICIONAL TRANSFERÊNCIA PARTICIPATIVA


OU LOCAL OU CIENTÍFICA
Objetivos Vida segura, Maximizar Agricultores com
redução de rendimento manejo próprio
riscos da agricultura
Fonte de Agricultores Instituições de Agricultores
inovação pesquisa complementados
por organizações
de pesquisa
Natureza Holístico Particular Conflito entre
do conhe- criatividade holís-
cimento tica e particular
Abordagem Em grande parte, Procedimentos Os métodos dos
experimental desconhecida científicos agricultores são
complementados
por procedimentos
científicos simples
Canais de Agricultor a Serviço de Sistemas múltiplos:
comunicação agricultor extensão rural agricultores, ONGs,
extensionistas
Processo de Informal Formal (vertical), Semiformal
comunicação (horizontal) de cima para baixo
Papel dos Gerador do Receptor, que Gerador,
agricultores conhecimento, adota comunicador,
comunicador, avaliador de idéias
usuário exteriores, usuário
Papel das Nenhum Professor, controle, Múltiplo:
equipes de conformidade com moderador,
profissionais regulamentos pessoa-recurso,
de campo co-pesquisador,
professor

82

Biodiversidade 0204.P65 82 5/4/2007, 10:48


Por meio de abordagens participativas, o sistema científico
incrementa o sistema de conhecimento local. É crítico considerar
que o conhecimento local é dinâmico, e não isolado. De fato, a pre-
sença de pesquisadores ou de técnicos de campo pode contribuir
com processos que “crioulizam” o conhecimento científico, o de-
senvolvimento de tecnologias e a experimentação. Na prática, no
processo de adaptar às circunstâncias locais as variedades modernas
introduzidas, os agricultores continuamente “crioulizam” as tecno-
logias.2 Quem será o “profissional” – se um pesquisador, um técnico
da extensão ou de ONG, ou um outro agricultor – vai depender, e
muito, do objetivo que se quer desse encontro.

TIPOLOGIAS DE PARTICIPAÇÃO
A aproximação entre pesquisadores e agricultores pode ser
analisada por meio das várias formas de participação nas relações
entre pessoas, a exemplo dss sete apresentadss na Tabela 3.1.2. Essa
tipologia é útil para compreender as interações entre agricultores e
técnicos no melhoramento participativo dos cultivos.

Tabela 3.1.2 – Tipologia da participação3

TIPOLOGIA COMPONENTES DE CADA TIPO


A A comunidade participa recebendo informação do que
Participação irá acontecer ou do que já aconteceu. Suas respostas
passiva não são levadas em conta. A informação
compartilhada pertence aos profissionais externos.
B A comunidade participa respondendo às perguntas
Participação ten- feitas por pesquisadores-conservadores, que utilizam
do como resulta- questionário ou abordagem similar, por exemplo, para
do a transferên- identificar critérios de seleção para o melhoramento
cia deinformação de plantas. A comunidade não tem a oportunidade de
continuadamente influenciar os resultados encontrados
durante o projeto de pesquisa, que nem mesmo é com-
partilhado e/ou tem verificada a exatidão dos dados.
C A comunidade participa, sendo consultada, e os agentes
Participação por externos escutam exemplos para identificar os objetivos
consulta do melhoramento e as recomendações de variedades.
Os agentes externos definem problemas e soluções e

83

Biodiversidade 0204.P65 83 5/4/2007, 10:48


podem modificá-los de acordo com as respostas das
pessoas. Um processo de consulta não concede o direi-
to de tomada de decisões. Os profissionais estão obri-
gados a fazer levantamento de opinião com cada pessoa.
D A comunidade participa fornecendo recursos, por
Participação exemplo, trabalho ou terra, e, em contrapartida,
por incentivos recebe alimento, dinheiro ou outros incentivos materiais
materiais (sementes, fertilizantes). Muitos testes a campo de
variedades caem nesta categoria, em que as comuni-
dades rurais fornecem os recursos mas não são
envolvidas na experimentação.
E A comunidade participa formando grupos que vão
Participação ao encontro de objetivos predeterminados relacionados
funcional ao projeto, que podem englobar o desenvolvimento
ou a promoção de iniciativas de organizações externas.
Essas instituições geralmente dependem de iniciado-
res e facilitadores externos, mas podem se tornar auto-
suficientes.
F A comunidade participa da análise em comum, que
Participação orienta os planos de ação, a montagem de grupos lo-
interativa cais ou os ajustes nos existentes. Pesquisadores utili-
zam metodologias interdisciplinares que procuram
perspectivas múltiplas e fazem uso sistemático de
processos de aprendizagem. O controle de aprendi-
zagem dos grupos influencia na tomada de decisões,
e, nesse sentido, as pessoas têm um papel importante
na manutenção e na evolução das estruturas e
práticas criadas.
G A comunidade participa tomando iniciativas
Automobilização independentes das instituições externas para o sistema
de troca. Tais mobilizações de auto-iniciativas e ações
coletivas podem ou não pôr em risco a distribuição
igualitária da riqueza e do poder.

Para fortalecer a comunidade, as habilidades dos profissionais de


ciências e tecnologias necessitam se combinar de maneira eficaz com
as forças dos agricultores, que estão embasadas no conhecimento e na
experimentação local. Isso significa modificações nas atividades e nos

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Biodiversidade 0204.P65 84 5/4/2007, 10:48


papéis convencionais. As interações entre técnicos e comunidades
rurais evoluem do controle coercivo e de sistemas de ensino conven-
cionais para o papel de facilitador e de sistemas de aprendizagem par-
ticipativa. Conseqüentemente, os tipos das interações podem se esta-
belecer entre os extremos, num gradiente que vai desde a “participação
passiva” até a “automobilização”. Nos sete tipos de participação, uma
perspectiva crítica que perpassa as várias possibilidades de interações
relaciona-se ao nível de empoderamento e ao grau de responsabilida-
de compartilhado entre técnicos, agricultores e outros participantes. A
Figura 3.1.1 ilustra os sete tipos de pesquisa participativa e o grau de
responsabilidade entre técnicos e agricultores.

Figura 3.1.1 – Diferentes tipos de participação de acordo com diferentes


níveis de poder e de responsabilidade nas relações entre participantes.4

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Biodiversidade 0204.P65 85 5/4/2007, 10:48


DIVERSIDADE DE MÉTODOS DE PESQUISA PARTICIPATIVA
Nas últimas décadas, uma grande variedade de métodos de
pesquisa participativa foi delineada, testada e discutida. Esses mé-
todos variam em sua conceituação; entretanto, estão unidos por meio
do conhecimento local e científico. Uma outra distinção entre esses
métodos é o ator-chave nas tomadas de decisão sobre a agenda e o
processo de pesquisa. A tomada de decisão sobre os recursos (finan-
ceiro, humano e produtivo) é um parâmetro de distinção entre vários
métodos. Nesse sentido, o quanto se delega ou o tipo de participa-
ção é facilmente identificado.
CIAL (Comitê de Investigação Agrícola Local): Esse méto-
do foi desenvolvido e defendido na Colômbia. Um CIAL é uma equi-
pe de agricultores voluntários eleitos por uma comunidade com base
na capacidade experimental dos envolvidos. A equipe é responsável
por conectar a comunidade com o sistema formal da pesquisa, refor-
çando as capacidades locais de pesquisa, avaliação e disseminação
da informação e dos seus produtos. O método identifica inovadores
locais. Tem sido muito usado nas experiências com testes de varie-
dades. Os programas de melhoramento de feijão e de mandioca têm
usado os métodos de CIAL em muitos países latino-americanos.
PPAA (Pesquisa Participativa de Aprendizagem e Ação):
A idéia central nesse método é uma equipe de agricultores e facili-
tadores/pesquisadores. Os agricultores são identificados em todas
as categorias de uma comunidade, de acordo com a forma como
resolvem problemas complexos relevantes à comunidade inteira.
A equipe analisa os problemas e as estratégias dos agricultores asso-
ciados para resolvê-los. A equipe planeja e conduz experiências si-
multaneamente, testando inovações. O agricultor experimentador é
um componente importante, mas inovações fornecidas pela pesquisa
também poderiam ser incluídas na experimentação dos agricultores.
A crítica é que cada agricultor deve conduzir as inovações em nível
de unidade produtiva e os monitores do grupo avaliam os resulta-
dos. As experiências com esse método estão basicamente na África,
por exemplo, no manejo de doenças e pragas em vários cultivos e no
manejo integrado da fertilidade do solo.
DPT – Desenvolvimento Participativo de Tecnologias: Nesse
método, o tema central é uma equipe de agricultores e técnicos que

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Biodiversidade 0204.P65 86 5/4/2007, 10:48


compartilham conhecimentos e perspectivas. A experimentação é
fundamentada inicialmente na percepção dos problemas dos agri-
cultores e nas inovações locais para resolvê-los. O objetivo do DPT
é tratar dos problemas locais. As experiências que utilizam o DPT
são encontradas no Brasil, em trabalhos da AS-PTA e outras ONGs.
ECAS – Escola de Agricultores no Campo: Nesse método, a
equipe é formada por agricultores e professores/treinadores que de-
sempenham um papel central dentro do treinamento e da dissemina-
ção de práticas de manejo e de tecnologias, estimulando a experi-
mentação local. O tema central é o alto grau de multiplicação dos
agricultores treinadores. Na Ásia, há muitos trabalhos, principal-
mente com o Manejo Integrado de Pragas em arroz. O INIAP (Insti-
tuto Nacional de Pesquisa Agropecúaria), no Equador, tem expe-
riências no uso de metodologias de escolas no campo, em manejo
integrado de doenças de cacau.5
Portanto, há diversas metodologias, cada qual com seus pon-
tos fortes e fracos, adequadas para aplicação em locais ou proble-
mas específicos, conforme mostra na Tabela 3.1.3.

Tabela 3.1.3 – Comparação de pesquisas agrícolas participativas


e de metodologias de desenvolvimento

CRITÉRIOS CIAL PPAA DPT ECAS


Tipo de Consultiva Funcional e Interativa Funcional até a
participação e funcional interativa até a auto- automobilização
mobilização
Parceiros dos Agricultores, Agriculto- Agricultores Agricultores,
agricultores experimen- res e expe- e experimen- experimentado-
tadores e rimentado- tadores res e instrutores
voluntários res (estrati-
ficação)
Escala Campo – Campo – Abordagem Unidade
unidade unidade identificada produtiva e
produtiva produtiva – localmente comunidade
comunidade

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Foco Avaliação Testar Inovação Disseminação
das inovações local e capacidade
tecnologias no manejo local de aprendi-
zagem no manejo
Complexi- Simples Elevada Simples Elevada
dade
Limitação Inadequada Alto número Limitado Mais uma
no que se re- de informa- grau de ferramenta de
fere a recur- ções e de fa- organiza- extensão; não
sos naturais cilitadores e ção social; necessariamente
complexos e difícil de interação um elemento
a problemas transferir a do conhe- de pesquisa
no manejo outras loca- cimento
de culturas lidades
Grau da Organização Requer Limitado Alto nível de
organização local forte; alguma dentro da organização, o
social e da incentivo organização; organização; que resulta em
capacidade externo para investimen- elevado grau grupos que
local de a aprendiza- to elevado de aprendi- aprendem e
aprendizagem gem local zagem local manejam
em base
individual

Não existe um método perfeito; mais importante do que qual-


quer método é construir e fortalecer processos para a conservação da
agrobiodiversidade e do melhoramento genético usando abordagens
participativas. Isso significa que distintos métodos podem ser usados
pela equipe quando se está trabalhando com testes de variedades,
avaliação da diversidade, multiplicação de materiais ou manejo de
doenças. Isso é fundamental para estabeler os objetivos do trabalho
com manejo participativo, e estes podem orientar a equipe sobre qual
abordagem empregar. Outro fator importante é o grau de organização
social – se existente, facilitará o início e o desenvolvimento dos tra-
balhos num processo de pesquisa e desenvolvimento com abordagem
participativa. Em caso contrário, o trabalho será mais complexo.

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PARTICIPAÇÃO E PROFISSIONALISMO
É importante, na pesquisa participativa a ser aplicada no ma-
nejo comunitário de agrobiodiversidade, concentrar esforços na for-
mação de equipes de pesquisadores e de extensionistas (e de outros
participantes) para a facilitação de processos participativos. A ex-
periência mostra que essa não é uma tarefa fácil, pois entre os pro-
fissionais de conservação e melhoristas estabeleceu-se um paradigma
que faz o processo tornar-se mais difícil para trabalhar de maneira
participativa. Basicamente, podem ser observados dois paradigmas
que descrevem bem a relação entre técnicos e agricultores: a primei-
ra abordagem poderia ser descrita como orientada por “receitas cu-
linárias” e a segunda, pelo “processo facilitador” (Tabela 3.1.4).

Tabela 3.1.4 – Paradigmas de inovação agrícola:


receitas e processos de aprendizagem3.

CARACTERÍSTICAS RECEITAS PROCESSOS DE


APRENDIZAGEM
Ponto de partida Diversidade natural Diversidade da comunidade
e seus potenciais e valores da natureza
valores comerciais
Primeiras etapas Coleta de dados e Consciência e ação de
do projeto planejamento estático progredir das comunidades
por especialistas envolvidas
Principais recursos Fundos centralizados Comunidade local e seus
e técnicos recursos
Métodos, regras Padronizado, pacote Diversos pacotes, com
universal fixo vários processos locais
Suposições analíticas Reducionismo Sistêmico, holístico
(polarização natural
da ciência)
Foco de gerência Orçamentos de des- Sustentabilidade e
pesas; os projetos são melhoria de desempenho
concluídos em tempo
Comunicação Vertical: ordens de Lateral: experiência de
cima para baixo, aprendizagem e
relatórios compartilhamento mútuos

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Avaliação Externa, intermitente Interna, contínua
Erro Não é aceito É aceito
Relacionamento Controlar, policiar, Permitir, apoiar,
entre técnicos e induzir, motivar, fortalecer; a comunidade é
comunidade local criar dependência; a vista como uma parte
comunidade é vista interessada
como beneficiária
Visão do As comunidades As comunidades são
relacionamento dominam ou são parceiras ou sócias da
entre comunidade e guardiãs da natureza natureza
natureza
Associado com Profissional normal Profissional novo
Diversidade de Diversidade na Diversidade como um
saída conservação e uni- princípio da produção e da
formidade na produ- conservação
ção (agricultura,
florestal, etc.)
Estratégia associada Reservas naturais ou Programas integrados de
de conservação parques; conservação conservação e desenvol-
ex situ (banco de vimento; conservação in
germoplasma) situ e manejo na unidade
produtiva pelo agricultor
Empoderamento Empoderamento Empoderamento das
final dos profissionais comunidades

É um desafio quebrar esses paradigmas. Devido ao treinamen-


to que recebem, os técnicos agrícolas e agrônomos foram “formata-
dos” por meio de uma abordagem de “receitas”. Quando envolvidos
com pesquisa participativa, inicia-se um desaprendizado ou reapren-
dizado no processo de pensar e de trabalhar. Entretanto, o ambiente
institucional ao redor mantém, até hoje, aquele tipo de processo,4
gerando muitos conflitos nos profissionais.

90

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3.2 SELEÇÃO DE VARIEDADES E
MELHORAMENTO GENÉTICO PARTICIPATIVO

Walter Simon de Boef e Juliana Bernardi Ogliari

Os impactos positivos dos programas de melhoramento gené-


tico de plantas podem ser obtidos mais rapidamente e com maior
eficiência quando estratégias participativas são aplicadas nas várias
etapas do processo. Basicamente, os beneficiários de tais programas
são agricultores familiares, com poucos recursos financeiros, que
cultivam apenas variedades locais, em ambientes marginais,6 que
dependem dos cultivares melhorados, quando as áreas de cultivo
estão localizadas em ambientes mais favoráveis.7
Este capítulo visa a contextualizar historicamente e numa for-
ma metodológica o uso das estratégias participativas em programas
de seleção participativa de variedades (SPV) e de melhoramento
genético participativo de plantas (MGP).8 Também são descritas as
ferramentas participativas que devem ser incluídas nas etapas ini-
ciais de um programa de SPV, bem como os experimentos envol-
vendo testes de progênies ou familial, que devem ser ajustados aos
programas de MGP.

CONTEXTO HISTÓRICO DO MELHORAMENTO PARTICIPATIVO DE CULTIVOS


O melhoramento participativo de cultivos (MPC) surgiu como
uma alternativa aos programas de melhoramento conduzidos pelas
instituições do setor formal de países em desenvolvimento. Essa
abordagem surgiu em resposta aos impactos negativos, do ponto de
vista agroecológico e socioeconômico, desses programas sobre os
agricultores familiares que vivem em áreas marginais.
A principal razão disso é que os programas formais de melho-
ramento concentraram seus esforços em alguns poucos cultivos eco-
nomicamente favoráveis e nos cereais, quase sempre manejados em
sistemas agrícolas de alta tecnologia e de uso de insumos. A expec-
tativa desses programas era de que alguns dos cultivares desenvol-
vidos para tais sistemas de produção também fossem bem-sucedi-
dos em ambientes rústicos, onde os fatores de risco eram pouco ou
nada controlados pelas novas tecnologias agrícolas emergentes. En-

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Biodiversidade 0204.P65 91 5/4/2007, 10:48


tretanto, os efeitos positivos esperados sobre a produtividade da maior
parte dos cultivos foram limitados, exceto no caso particular do mi-
lho, cultivado em alguns países do Sudeste da Ásia e no Leste e no
Sul da África e do arroz irrigado, no Sudeste Asiático.
As variedades destinadas ao cultivo em ambientes marginais
eram, e ainda são, muito diferentes daqueles cultivares usados em
áreas mais favoráveis à produção.9 Os cultivares modernos, em ge-
ral, ainda são melhorados para se adaptarem ao cultivo em áreas
favoráveis à produção e a sistemas onde existe um bom controle dos
fatores de risco. Entretanto, as variedades locais conservadas, ma-
nejadas e usadas pelos agricultores familiares são mais apropriadas
aos ambientes estressados das áreas marginais.
Por essa razão, os cultivares melhorados que hoje em dia são
usados pelos agricultores de áreas estressadas fazem parte de uma
coleção de variedades nem sempre ajustada às necessidades ecológi-
cas de manejo e de uso dessas comunidades rurais.10 Esses bioprodu-
tos do sistema formal, além de quase sempre serem dependentes de
insumos externos, também buscam, em geral, atender às necessida-
des impostas por segmentos de mercado de elevado valor comercial,
nem sempre compatíveis com a adaptação ecológica e as necessida-
des de manejo e de uso dos agricultores familiares.
Variedades locais ou crioulas, ainda remanescentes nos países
em desenvolvimento, foram e continuam sendo a principal fonte de
germoplasma para a maioria dos agricultores familiares, bem como
a matéria-prima de alguns programas convencionais de melhoramento
e de todos os programas de MPC. No caso daqueles cultivos
subutilizados pelo homem, seja pelo baixo valor econômico ou pelo
pouco valor agregado, o melhoramento formal não ocorreu ou teve
pouca influência. Geralmente, nesses casos, os agricultores conti-
nuam cultivando o germoplasma local, produzido na própria comu-
nidade.
Ainda que inicialmente o melhoramento convencional tenha
desenvolvido os cultivares modernos a partir de variedades locais, à
medida que os programas foram avançando eles passaram muitas
vezes a desenvolver seus novos cultivares derivados de material ge-
rado dentro do próprio programa. Na busca de novos genes e de no-
vas combinações úteis entre genes, inicialmente os melhoristas

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Biodiversidade 0204.P65 92 5/4/2007, 10:48


combinaram entre si diferentes fontes genéticas para vários atributos
desejáveis. Com o desenrolar dos programas e a identificação das
melhores combinações, a diversidade genética foi sendo reduzida den-
tro dos programas, seja pela obtenção de uns poucos genótipos porta-
dores da composição genética desejada, seja pela eliminação de outros
tantos, com nenhuma aparente utilidade. Em pouco tempo, grandes
extensões de terra foram ocupadas com poucos cultivares ou genótipos
nas principais espécies cultivadas pelo homem. A erosão genética
decorrente da substituição de grande parte das variedades locais dos
agricultores pelos cultivares modernos foi inevitável. Para agravar a
situação, alguns poucos ancestrais geneticamente relacionados foram
e continuam sendo repetidamente escolhidos pelos programas formais
de melhoramento para o desenvolvimento dos novos cultivares. A base
genética restrita detectada em muitos programas de melhoramento,
principalmente de espécies autógamas como o arroz e a soja, mas tam-
bém observada em espécies alógamas como o milho, tem sido uma das
causas da erosão genética promovida pelo sistema formal.11

LIMITES PARA O IMPACTO DO MELHORAMENTO FORMAL


Em geral, o melhoramento formal concentrou-se no aumento
do potencial produtivo para condições de ambiente favorável, seja
pelo uso de material genético mais responsivo aos insumos exter-
nos, seja pelo maior controle do agroecossistema decorrente do uso
de mecanização para o manejo do solo e para outras práticas cultu-
rais, bem como pelo uso de irrigação e de agroquímicos.
A importância da estabilidade produtiva frente às variações
proporcionadas por ambientes estressados, o valor da adaptação eco-
lógica dos cultivos frente aos fatores bióticos e abióticos, o valor
atribuído ao manejo particular praticado pelos pequenos agriculto-
res familiares, bem como o valor intrínseco aos usos secundários e
às preferências culturais de cada comunidade rural quase sempre
receberam pouca atenção. Enquanto os melhoristas se concentraram
no rendimento de grãos (em cevada) ou na produtividade de raízes
tuberosas (em batata-doce), outros usos localmente importantes não
foram considerados ou foram negligenciados.12
O interesse em vincular o aumento da produtividade à ampla
adaptação dos cultivares, bem como a falta de conhecimento sobre a

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importância de outras características úteis para os agricultores fami-
liares, ainda pode ser observado em inúmeros programas atuais de
melhoramento. Contudo, considerando a grande extensão de terra
ainda cultivada com variedades locais como a única opção de mui-
tos países, pode-se concluir que o melhoramento formal, com carac-
terísticas convencionais, foi ineficaz em atender à diversidade agroe-
cológica do planeta e, especialmente em se dirigir aos sistemas de
produção usuários de poucos insumos.
O melhoramento formal, por razões econômicas, tenta desen-
volver cultivares amplamente adaptados e que possam ser cultivados
em grandes extensões de terra. A ampla adaptação desses cultivares é
reconhecida pela estabilidade de colheita, comumente observada ao
longo do tempo e nos diferentes agroecossistemas ocupados pelo
mesmo cultivar. Contudo, nem sempre tal atributo associado aos cul-
tivares melhorados consegue atender às condições agroecológicas
particulares estabelecidas nas unidades de produção familiares.
A maior parte dos países em desenvolvimento concentra seus
programas de melhoramento dentro de estações de pesquisa, sob cir-
cunstâncias bem-controladas, onde as variações de ambiente são
reduzidas, visando a aumentar a herdabilidade dos caracteres de in-
teresse e os decorrentes ganhos genéticos esperados com a seleção.
O fato de controlar as variações de ambiente, com vistas a homoge-
neizar a área experimental, é um aspecto positivo de tais programas,
pois isso permite identificar genótipos superiores mais por seus atri-
butos genéticos e menos pelos efeitos do ambiente sobre a expressão
fenotípica dos caracteres. Tais conceitos já foram bastante discutidos
por Fisher nas primeiras décadas do século passado e exaustivamen-
te por outros biometristas póstumos e posteriores a ele.
Contudo, se na busca de condições homogêneas se usarem es-
tratégias de fertilização, de irrigação, de controle de pragas e doen-
ças e de manejo de solo, que, além de homogeneizarem a área expe-
rimental e controlarem os riscos da produção também forem muito
distintas das práticas dos agricultores, então os genótipos superiores,
identificados dentro de tais programas, quase sempre serão imprópri-
os para cultivo em ambientes estressados. E o melhoramento formal,
direcionado para a geração de cultivares adaptados a sistemas de
produção de moderada a elevada tecnologia, além de buscar reduzir

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as variações de ambiente em relação às variações genotípicas, tam-
bém visa a reduzir as interferências dos fatores abióticos e bióticos,
se comparado aos sistemas de produção de baixa tecnologia.13 Deve-
se considerar que a maioria dos agricultores familiares habita ambi-
entes altamente variáveis, complexos e estressantes e pouco contro-
lados frente aos fatores de risco da produção. Essa estratégia, adota-
da pelo sistema formal, é capaz de afetar o desempenho de um mes-
mo cultivar de forma visivelmente diferenciada quando submetido em
cada um desses dois agroecossistemas individualmente. Nesses casos,
os bioprodutos dos programas de melhoramento quase sempre são
pouco adaptados às condições de ambiente das áreas estressadas.
Essa tem sido uma das causas das discrepâncias observadas
entre a performance do material genético apresentado dentro das
estações experimentais e nas unidades de produção familiares. No
entanto, deve ser destacado, mais uma vez, que não são as condições
de homogeneidade, buscadas para os experimentos, que causam tais
diferenças, pois elas são necessárias para a identificação, com maior
segurança, de genótipos superiores, seja em experimentos conduzi-
dos dentro das estações experimentais ou naqueles conduzidos nas
unidades de produção familiares. O problema está nas estratégias
usadas pelos pesquisadores convencionais para atingirem tal objetivo.
Se os ambientes das estações experimentais e das unidades de
produção familiares forem muito diferentes entre si, a interação
Genótipo × Ambiente (G×A) pode ser a causa das diferenças de
performance detectadas no germoplasma avaliado, principalmente
em termos de rendimento.14 O melhoramento formal leva em conta a
interação G×A proporcionada por um único caráter, freqüentemente
relacionada de modo direto ou indireto ao rendimento do cultivo.
Contudo, além das diferenças em rendimento decorrentes da interação
G×A, também as diferenças resultantes dos critérios de seleção usa-
dos por melhoristas e agricultores podem ser outro fator importante
de tais discrepâncias. Este último aspecto também tem contribuído
para que o produto do melhoramento formal não atenda por comple-
to às necessidades particulares da produção familiar. O desempenho
de um determinado genótipo se deve a um complexo de caracteres,
os quais têm importância relativa e diferenciada entre si e que po-
dem ser decisivos para a determinação da sua classificação final.

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No melhoramento formal, a importância relativa dos vários
caracteres pode ser descrita por um índice de seleção. A rejeição de
variedades, por agricultores, aponta situações em que o índice de
seleção usado pelos melhoristas não corresponde às preferências dos
agricultores. Estes últimos quase sempre tendem a dar mais atenção
para a estabilidade de colheita e para outros caracteres de importân-
cia secundária15 do que para o rendimento. Esses outros critérios
podem ser fatores muito importantes para a adoção ou a rejeição dos
cultivares melhorados pelos agricultores. Por essa razão, a inclusão
dos mesmos na análise da interação do G×A é imprescindível para
definir estratégias de seleção mais apropriadas, dentro de uma abor-
dagem participativa de melhoramento genético.
Finalmente, as discrepâncias podem ser agravadas ainda mais
quando os critérios de seleção usados pelo melhoramento formal
forem inversamente correlacionados aos critérios priorizados pelos
agricultores. Um exemplo disso foi observado em um programa de
MGP de milho, conduzido pelo NEABio, com parceiros locais, no Sul
do Brasil. Quando a produtividade de grãos era o principal critério
usado na composição do índice de seleção, ainda que o rendimento
de grãos tivesse uma previsão de incrementos da ordem de 10%,
outros atributos importantes para os agricultores eram piorados, tal
como a espessura do colmo, a inclinação da espiga na hora da colheita,
a altura de planta e a quantidade de raízes adventícias. Por outro lado,
quando na composição do índice também eram considerados os cri-
térios apontados como prioritários pelos agricultores, os incrementos
de produtividade não eram tão espetaculares. Porém, os outros atri-
butos puderam ser melhorados conjuntamente ou pouco modificados
em relação à população local original.16 A preocupação desse progra-
ma de MGP foi usar estratégias de controle experimental e de rigor
científico nas análises para conduzir o ciclo de seleção, porém inte-
grando as ações de melhoramento a campo ao sistema de produção e
ao conhecimento local dos agricultores.

MPC: ESTRATÉGIAS E DEFINIÇÕES


O objetivo do MPC é conectar os sistemas formais e informais
de desenvolvimento de cultivos, procurando combinar a melhoria
da produtividade com o fornecimento da agrobiodiversidade neces-

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Biodiversidade 0204.P65 96 5/4/2007, 10:48


sária aos agricultores.17 A estratégia do MPC é introduzir diversida-
de genética útil dentro dos sistemas locais e auxiliar a capacidade de
construção dos agricultores, na seleção e na troca de sementes.
Melhor do que tentar aumentar o impacto dos programas de
melhoramento convencionais que geram, no seu final, um número
limitado de variedades geneticamente uniformes, a idéia é manter um
maior número de variedades nas lavouras dos agricultores, represen-
tando uma escala mais ampla da diversidade genética da espécie. O
MPC reconhece a capacidade dos agricultores de selecionar materiais
mais adaptados a seus ambientes e de desenvolver material melhorado
a partir da seleção de sementes efetuada em suas próprias variedades
locais ou crioulas. São confiadas ao agricultor a produção e a troca de
sementes para manter as variedades difundidas.
A principal vantagem do MPC sobre o melhoramento conven-
cional é o fato de envolver os agricultores no processo de desenvol-
vimento, adaptação e adoção das novas variedades, ajustando os
objetivos do melhoramento e selecionando genitores de acordo com
as exigências locais. Entretanto, o nível de participação dos agricul-
tores varia com a natureza, os objetivos e a disponibilidade de recur-
sos do projeto. Além disso, o MPC desenvolve, entre as diferentes
organizações e agricultores, um espírito de trabalho conjunto e de
valoração das potencialidades e contribuições de cada um. Nele, as
forças e as potencialidades de todos os interessados são inteiramen-
te utilizadas, de forma integrada. Esses processos, atualmente, estão
passando por um momento de avaliação global para a sua aceitação
como “mais normal”.
Uma distinção funcional comum dentro do MPC é a seleção
participativa de variedades (SPV) e o melhoramento participativo de
plantas (MGP). A primeira (SPV) envolve a seleção entre populações
avançadas, ou linhagens, ou clones geneticamente estáveis. A segun-
da (MGP), envolve o melhoramento participativo de plantas, median-
te a seleção dentro das populações segregantes,18 sintéticas ou com-
postas, geradas e/ou manejadas por melhoristas e agricultores.
Na SPV, por exemplo, os produtos testados pelos agricultores
em suas lavouras, durante o processo de avaliação e seleção, são
variedades. Após um programa bem-sucedido de SPV, as varieda-
des preferidas pelos agricultores podem ser usadas diretamente pela

97

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comunidade de agricultores envolvida ou, ainda, como genitores de
um programa de melhoramento, em que agricultores também parti-
cipam como colaboradores ativos.
Essa segunda abordagem (MGP), dependendo do caso, envol-
ve a geração de novas variações genéticas via hibridações controla-
das, bem como avaliações e seleções, conduzidas ou não em condi-
ções experimentais, com vistas a identificar novas combinações de
genes e, portanto, novas variedades. Entretanto, a distinção entre SPV
e MGP nem sempre é tão clara, especialmente no caso de espécies de
polinização cruzada, em que as seleções entre populações (SPV)
costumam ser combinadas com a seleção dentro de população (MGP).
A avaliação na unidade de produção agrícola permite levar em
consideração as preferências e as necessidades do usuário final dos
produtos. Além disso, permite a minimização dos efeitos negativos
da interação G×A por submeter o material genético à seleção no
próprio local onde será cultivado com toda a complexidade de inte-
rações impostas pelas condições desses ambientes particulares.

SELEÇÃO PARTICIPATIVA DE VARIEDADES (SPV)


A SPV é a seleção na liberação ou pré-liberação de linhagens
avançadas (inclusive variedades locais) por agricultores em seus
ambientes-alvo, usando seus próprios critérios de seleção.

Basicamente, a SPV:
• Fornece opções de variedade para agricultores, sob condi-
ções específicas de ambiente;
• Promove testes com abordagem participativa;
• Seleciona e dissemina variedades preferenciais.

Um programa de SPV segue quatro passos lógicos principais,


com as seguintes ferramentas participativas aplicadas19:
1. Análise de situação e avaliação de necessidade:
• Avaliação participativa rural (entender as demandas).
• Documentação das práticas locais (mapas, fluxogramas).
• Documentação dos materiais locais (matrizes, fluxogramas,
quatro-células).
2. Procura pelo material genético:

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• Materiais locais e melhorados.
• Material pré-lançado.
3. Experimentação conduzida na unidade de produção, junto
com o agricultor:
• Cultivo de materiais introduzidos, paralelamente aos mate-
riais locais, sob a administração do agricultor.
• Caminhadas na unidade produtiva.
• Discussões em grupos focalizados (critérios de seleção, pla-
nejamento de metas, matriz de classificação).
• Classificação das preferências.
• Avaliação pós-colheita.
4. Ampla disseminação:
• Reuniões comunitárias.
• Disseminação por kits de sementes e de materiais de propa-
gação de variedades.
• Monitoramento da expansão e da difusão.

A SPV se propõe a testar novas variedades com a participação


dos agricultores, e isso pode ser feito de muitas formas. Não há um
protocolo único preestabelecido. Os métodos variam entre cultivos
e de acordo com a situação dos pesquisadores e agricultores. No
entanto, podem ser feitas algumas generalizações relativas aos re-
cursos requeridos para os diferentes métodos.
O método SPV é amplamente usado e aceito em programas de
melhoramento. Na literatura, a SPV é aceita cada vez mais como
prática comum de alguns programas de melhoramento formais. No
Instituto Internacional de Pesquisa de Arroz (IRRI), nas Filipinas, o
responsável pelo programa de melhoramento de arroz sequeiro20 de-
fende que todos os programas de melhoramento deveriam incluir
testes participativos nas unidades de produção dos agricultores.

MELHORAMENTO GENÉTICO PARTICIPATIVO (MGP)


Muitos acreditam estar trabalhando com o MGP. Entretanto, na
realidade, trabalham com SPV.21 O MGP é um processo de melhora-
mento no qual os agricultores e melhoristas unem-se para selecionar
populações de plantas no próprio ambiente onde serão cultivadas após
terem sido melhoradas.

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O MGP pode ser tanto de consulta quanto colaborativo, de-
pendendo da tipologia sugerida pela participação do agricultor (Ta-
bela 3.2.1). O sucesso do MGP dependerá das ações conjuntas dos
agricultores, melhoristas e técnicos envolvidos no processo. O uso
de métodos consultivos ou colaborativos, como também o grau da
participação dos agricultores irá depender dos seguintes fatores: (i)
cultivos; (ii) capacidade de participação dos agricultores; (iii) von-
tade; (iv) disponibilidade dos melhoristas; (v) disponibilidade de
recursos ao alcance dos pesquisadores e melhoristas.

Tabela 3.2.1 – Tipologia do melhoramento participativo de plantas20

MGP CONSULTIVO MGP COLABORATIVO


• Agricultores são consultados • Agricultores estabelecem os
para estabelecer os objetivos objetivos do melhoramento;
do melhoramento; • Agricultores cultivam materiais
• Agricultores escolhem os genéticos segregantes;
parentais apropriados e os • As melhores plantas são selecionadas
locais de testes. nos seus ambientes de produção.

Entretanto, há uma lei22 em MPC, geralmente aceita, que diz


que o MGP só começa depois de vários anos de sucesso na imple-
mentação de SPV, pois os agricultores têm que aprender a trabalhar
com a diversidade genética e com algum nível de experimentação
formal. Dentro desse contexto, a capacitação técnica de agricultores
e de pesquisadores é fundamental. Os primeiros, para melhor enten-
derem os princípios da experimentação, capazes de oportunizar o
sucesso de qualquer programa de seleção, seja formal ou participa-
tivo. Os últimos, para aprenderem a identificar as necessidades das
comunidades rurais, pelo desenvolvimento das habilidades intuiti-
vas, pela leitura e tradução dos códigos intrínsecos ao conhecimen-
to local.
O MGP torna-se uma opção quando os esforços com a SPV
tiverem alcançado seus limites, pela exaustão das possibilidades ou
porque a procura, no processo de SPV, não identificou qualquer cul-
tivar satisfatório para o teste almejado. Outra razão para se mudar
de SPV para MGP poderia ser a de que os agricultores identificaram
um problema novo em cultivares existentes. Então, uma estratégia

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de MGP torna-se uma abordagem conduzida por demanda e pode
proporcionar aos melhoristas uma oportunidade mais efetiva para a
escolha dos genitores.
Em MGP, pelo menos, um dos genitores deve ser uma varieda-
de local ou uma cultivar adaptada localmente. A escolha deve ser
realizada no ambiente de cultivo a partir do conhecimento e dos
critérios de seleção dos agricultores. Nesse caso, os agricultores são
envolvidos já em fases mais preliminares do processo de melhora-
mento. Os testes de progênies e de genitores podem ser usados para
gerar dados científicos úteis, como agente disseminador dos resulta-
dos do MGP. O MGP também pode ser a conexão com o sistema de
pesquisa formal, quando os testes de reação frente a doenças e os
testes multilocais dos produtos do MGP são conduzidos de forma
colaborativa, conforme apresentado na Tabela 3.2.2, que trata de
um processo aplicado a espécies autógamas, tal como a cultura do
arroz. A tabela é baseada no trabalho conduzido por Witcombe et al,
mas o processo também pode ser aplicado para outras espécies, após
alguns ajustes.

Tabela 3.2.2 – Processo de MGP e ferramentas participativas 20.

PROCESSOS FERRAMENTAS PARTICIPATIVAS


1. Identificação das necessidades e estabelecimento de objetivos
Entendimento das razões para Diagnóstico rápido participativo.
o crescimento de diversas Reuniões comunitárias e discussão de
variedades. Estabelecimento grupos específicos. Matriz de classificação.
dos objetivos do melhoramento Discussão de grupos específicos.
e dos papéis dos parceiros para
satisfazer as necessidades.
2. Seleção de parentais e geração de diversidade
Identificação e uso de varie- Canteiro da diversidade, diagnóstico
dades localmente adaptadas rápido participativo.
como materiais parentais.
3. Identificação de parcelas e de agricultores experimentadores
Identificação e seleção por Análise da rede de agricultores, discussão
agricultores inovadores com de grupos específicos, caminhada na
interesse em MGP. Confirmação unidade produtiva/comunidade. Feiras de

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do papel dos agricultores na diversidade. Pesquisadores fazem o
seleção das variedades dos delineamento segundo o manejo dos
materiais segregantes. Manejo agricultores; critério de seleção dos
das atividades de pesquisa, sob agricultores.
as condições dos agricultores, e
estabelecimento dos critérios
de seleção.
4. Seleção de progênies segregantes
Descentralização na seleção das Caminhada na unidade produtiva, discus-
progênies segregantes, por agri- são de grupos específicos, classificação
cultores, em ambientes-alvo de preferência, seleção de progênies por
dos melhoristas. comunidade de agricultores.
5. Lançamento e distribuição de variedades
Distribuição das variedades, Teste de matrizes e progênies,
pelo fornecimento informal de monitoramento por diagnóstico
sementes. Lançamento de va- rápido participativo.
riedades com base nos resulta-
dos dos testes de matrizes e
progênies; divulgação dos
dados das variedades.

PAPÉIS DOS AGRICULTORES E BENEFÍCIOS ALCANÇADOS


Os benefícios dos agricultores nos processos de melhoramen-
to participativo de plantas não são universais. Esforços são feitos no
sentido de se ter uma visão equilibrada de suas necessidades e bene-
fícios. Há uma dicotomia23 no estabelecer um programa – se é parti-
cipativo ou convencional. Tal dicotomia requer um sim ou um não
para definir a estratégia a ser adotada no programa de melhoramen-
to. Para tanto, é necessário compreender, apenas, que o grau de par-
ticipação dos agricultores nos processos participativos precisa ser
avaliado numa perspectiva centrada na efetividade e na eficiência
dos programas de melhoramento e na contribuição para a conserva-
ção da diversidade genética24, ou num contexto de empoderamento
dos agricultores nos processos de desenvolvimento de tecnologias,
como o melhoramento de variedades.
Um assunto fundamental para a discussão do potencial de pro-
gramas de melhoramento participativo de cultivos e do papel dos

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agricultores nesse contexto envolve uma reflexão sobre a complexi-
dade dos programas de MGP. As primeiras experiências de SPV
indicavam papéis distintos para os agricultores e melhoristas. Ainda
não está claro como esses papéis mudam, à medida que os progra-
mas se desenvolvem e passam de SPV para MGP. É possível que, ao
longo do tempo, o rendimento torne-se um componente mais impor-
tante do programa e sujeito aos mesmos efeitos negativos da interação
de G×A, já observados no melhoramento formal de plantas.25 O in-
teresse por caracteres mais sujeitos aos efeitos da interação pode
requerer a aplicação de esquemas de seleção mais complexos para
os agricultores, mas necessários, se o objetivo for continuar tendo
algum progresso significativo no rendimento.
No entanto, o novo profissional em MPC não pode perder a
atenção para os princípios básicos de experimentação, pois estes
determinaram e continuam determinando o sucesso dos programas
que têm como objetivo a melhoria de atributos de herança genética
mais complexa, tais como aqueles relacionados à adaptação do ma-
terial frente aos fatores bióticos e abióticos, presentes nas áreas
marginais. Portanto, as estratégias de MPC devem ser compatíveis
com o tempo disponível para gerar resultados positivos. Se a escala
para obter resultados for em anos, e não em centenas de anos pela
frente, as estratégias, então, devem ser ajustadas para esse tempo. O
relógio usado para medir a eficiência desse novo profissional de-
pende da escolha de estratégias eficientes de seleção, que, além de
cumprirem com um compromisso científico ou acadêmico, também
atendam ao compromisso social, caso dependa desse novo profis-
sional a viabilização do desenvolvimento local sustentável.
Certamente o desejo dos agricultores de participarem desse
processo e a capacidade de investir recursos para a seleção e partici-
pação deles no trabalho de melhoramento dependem muito dos be-
nefícios decorrentes, os quais podem ser o acesso a material com
alto rendimento, a estabilidade de rendimento, ou outras melhorias.
Também podem advir do acesso ao conhecimento, do aumento das
capacidades (empoderamento) e das trocas de sementes. O benefí-
cio é medido a posteriori. Porém, para que sejam atraentes para um
grupo maior de agricultores, deve-se buscar a seleção de populações
locais portadoras de ampla adaptação agroecológica.

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O empoderamento dos agricultores é considerado um impor-
tante benefício social do MPC.26 O tipo de participação é influencia-
do pelo impacto do empoderamento dos agricultores. Se os agricul-
tores só são consultados para identificar genótipos superiores e com
eles não é compartilhada a tomada de decisões, não há nenhuma
participação verdadeira no estabelecimento dos critérios de seleção
e na própria atividade de seleção. Conseqüentemente, nenhum be-
nefício é conseguido. Nesse caso, os agricultores tornam-se apenas
clientes ou beneficiários, e não são parceiros ou sócios do processo
de melhoramento participativo. Dentro desse contexto, a proposta
de reformulação das definições das metodologias participativas para
melhoramento orientado para clientes 25 significa, na relação
melhorista e agricultor, uma volta do profissionalismo novo para o
profissionalismo normal, dentro de melhoramento, segundo a termi-
nologia discutida no Capítulo 3.1. O fortalecimento da capacidade
dos agricultores para trabalhar com melhoramento em sua própria
situação é, reconhecidamente, uma condição importante para o de-
senvolvimento agrícola sustentável e, por isso, um objetivo secun-
dário de programas de MPC.

3.3 MELHORAMENTO GENÉTICO PARTICIPATIVO E CONSER-


VAÇÃO DE VARIEDADES LOCAIS NA AGRICULTURA FAMILIAR

Sanjaya Gyawali, Bhuwon Sthapit, Bal K, Joshi,


Ashok Mudwari e Jwala Bajracharya

A capacidade dos agricultores de selecionar características


importantes a partir da diversidade das espécies cultivadas foi reco-
nhecida, segundo a Convenção de Biodiversidade, como um capital
humano importante para a conservação da agrobiodiversidade nas
unidades de produção familiares. Para agricultores com poucos re-
cursos, as variedades locais adaptadas a micronichos particulares,
estresses bióticos e abióticos, ou usos diversos, são os principais
recursos disponíveis para o aumento da produção, além de fornece-

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rem opções seguras de sustento. O processo de melhoramento gené-
tico oferece conceitos de melhoramento de plantas e habilidades para
que os agricultores continuem a selecionar variedades e a manejar
populações de espécies cultivadas locais e sistemas de provisão de
sementes, por meio de redes informais e formais. Com base nisso,
pode ser considerada uma estratégia de manejo comunitário da agro-
biodiversidade.

HISTÓRICO
Nas duas últimas décadas, a conservação nas unidades de pro-
dução familiares e o manejo dos recursos genéticos, particular-
mente o melhoramento genético participativo (MGP), tornaram-se
conhecidos como uma abordagem singular para a conservação da
diversidade dos cultivos locais pelos agricultores familiares. De-
senvolvida para superar as limitações e as deficiências nos siste-
mas de melhoramento genético conduzidos pelo setor formal, esta
abordagem busca desenvolver as variedades que melhor se adaptam
às condições ambientais locais e de manejo, atenta às diversas ca-
racterísticas que os agricultores e os consumidores valorizam em
suas localidades específicas. Por princípio, um dos genitores local-
mente adaptados é utilizado para hibridação, visto que permite reter
alguns alelos úteis do complexo gênico. O MGP é uma resposta a
vários impactos negativos que ocorreram no sistema de produção
agrícola dos últimos cinqüenta anos, principalmente a forte erosão
genética (causada por mudanças nos sistemas de produção, no uso
da terra e na comercialização); a erosão do conhecimento e da cultu-
ra dos agricultores para lidar com os novos estresses bióticos (pra-
gas e doenças) e abióticos (corrente de ar, frio, calor); e a baixa taxa
de adoção de variedades do setor formal por agricultores localiza-
dos em áreas específicas e difíceis decorrente da pouca ênfase em
valores culturais e de uso.
O melhoramento participativo de cultivos (MPC), termo “guar-
da-chuva” mencionado no Capítulo 3.2, envolve uma gama de abor-
dagens diferentes, desde iniciativas lideradas por pesquisadores até
outras, lideradas pelos agricultores. O projeto in situ do Bioversity
Internacional27 focalizou no desenvolvimento do MPC em um am-
biente de liderança dos agricultores no qual eles decidiram os obje-

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tivos do melhoramento. A disponibilidade de materiais genéticos,
incluindo os produtos das variedades tradicionais localmente adap-
tadas e das linhagens geradas pelo melhoramento formal, é muito
importante para o sucesso do MPC. Isso sugere que a abordagem
requer alianças de parceria bem fortalecidas entre as comunidades
de agricultores e as instituições de melhoramento de plantas, incluin-
do garantias relativas aos resultados advindos dos programas de
melhoramento participativo de plantas.
O MPC visa a conservar os recursos genéticos locais que estão
ameaçados ou à beira da extinção por meio da agregação de valor. O
projeto in situ busca demonstrar que o valor de variedades locais de
arroz identificadas pelos agricultores, algumas das quais estão com
sua sobrevivência ameaçada, poderia ser aumentado mediante um
processo de MPC. O método oferece as habilidades e a oportunida-
de aos agricultores de procurarem por novas diversidades, por sele-
ção e troca de populações variáveis que correspondam às suas pre-
ferências e necessidades locais. No MPC e especialmente no com-
ponente que trabalha com populações segregantes e grande número
de materiais que serão avaliados pelos agricultores – o melhoramen-
to genético participativo (MGP), tanto o agricultor quanto o
melhorista profissional envolvem-se na seleção de populações se-
gregantes desde as fases iniciais. Do ponto de vista da conservação,
o MGP tem sido defendido como um modo de manter, ou até mesmo
de intensificar, o nível de diversidade genética usada nas unidades
de produção familiares.

METODOLOGIA
As atividades do MPC, no projeto de conservação in situ, foram
iniciadas com as seguintes perguntas da pesquisa, a serem respondidas:
• As variedades dos agricultores podem ser conservadas in situ?
• O MPC pode contribuir para a intensificação e a conservação
da diversidade de variedades locais nas unidades de produção fami-
liares e para o fornecimento de benefícios à comunidade?
• O MPC pode ser alcançado sem a perda de diversidade gené-
tica?
Os passos do MPC são habituais ao melhoramento de plantas
convencional; entretanto, a metodologia e as abordagens para o es-

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tabelecimento de metas, a escolha de genitores, o tamanho da popu-
lação das primeiras gerações e os testes de avaliação de material
segregante, nos campos dos agricultores, são diferentes (ver Capítu-
lo 3.2, Tabela 3.2.2).

TRABALHANDO COM OS AGRICULTORES, NO CASO DE MGP DE ARROZ


• As seleções feitas pelos agricultores após as gerações F5-F6
são multiplicadas e testadas em muitas famílias, por meio da utiliza-
ção de “ensaios de mãe e nenê”28, na municipalidade onde ocorre o
MGP. Uma vez que os materiais sejam do agrado dos agricultores,
esses são adicionalmente testados numa escala maior, mediante a
seleção participativa de variedades (SPV). As linhagens selecionadas
em SPV são, então, multiplicadas por meio de programas de produ-
ção de sementes em comunidades, e a distribuição é feita tanto por
agências do governo quanto por empresas privadas.
• Técnicos do Escritório Distrital para o Desenvolvimento da
Agricultura, grupos de produtores de sementes e comerciantes en-
volvem-se durante a SPV para obter as informações sobre as linha-
gens selecionadas.
• A distribuição das linhagens selecionadas, de agricultor para
agricultor, é monitorada. Os estudos detalhados da maioria das va-
riedades preferidas melhoradas a partir do MGP são feitos com o
propósito de lançar novas variedades. A coleta e a análise sistemáti-
ca dos dados gerados a partir da geração F6 progressiva são realiza-
das com esse propósito.

RESULTADOS: MUDANDO AS ATITUDES DOS AGRICULTORES


E DOS CIENTISTAS
Nos sistemas de produção dos cultivos tradicionais, o valor de
uso imediato da diversidade genética local é bem reconhecido pelos
agricultores. No entanto, com freqüência, as comunidades rurais
podem não reconhecer completamente o valor do melhoramento
genético e das características genéticas inerentes às variedades dos
agricultores ou variedades locais. Foi demonstrado que, ao se utili-
zar o conhecimento dos agricultores e recursos genéticos in situ, o
valor da diversidade local foi aumentado via MGP.29 Por exemplo,
programas de MGP que utilizam variedades locais intensificaram

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características desejáveis, tais como a tolerância ao frio e a resistên-
cia à brusone, e características adaptativas eliminadoras, de cor e de
qualidade de grãos. Da mesma forma, por meio do MGP, uma varie-
dade local de arroz, Mansara, valorizada por sua melhor adaptação
a campos pobres, foi cruzada com variedades modernas lançadas
localmente (variedade Khumal-4), a fim de melhorar a qualidade e a
produção, enquanto mantinha sua característica de adaptação às con-
dições de agricultura de baixo uso de insumos.30 De modo similar, o
programa de MGP de arroz na região de Bara resultou em cinco
linhagens promissoras (K4, K5, K11, 124 e K162), que foram dis-
tribuídas para dezesseis famílias de agricultores (8,6 ha) e, poste-
riormente, a mais 35 famílias (88 ha). As razões principais para a
seleção foram o melhor desempenho de produção sob condições
de chuva e estiagem, resistência à armazenagem, melhor sabor e
tipos de grão semelhantes ao genitor local. Um cruzamento entre
duas variedades de arroz de alta qualidade, Biramphool e Himali,
também está indo bem na região do projeto.

Radha Adhikari torna-se agricultora melhorista, em Begnas, Nepal


”Aprendi a habilidade de selecionar sementes depois que me juntei à equi-
pe MGP”, diz Radha Adhikari, membro da equipe do projeto MGP, em Begnas,
Nepal. Ela está entusiasmada com suas três linhagens selecionadas a partir do
cruzamento Mansara, que têm mais tolerância à seca e melhor qualidade do que
seu tipo anterior desse arroz. Ela as está cultivando em uma grande área de seus
campos de arroz. A maioria dos agricultores, seus amigos, quer saber mais sobre
essa variedade melhorada; é interessante notar que ela possui muitas sugestões
para dar sobre o valor do tamanho de grandes populações, a seleção de ambien-
tes-alvo e técnicas de seleção. “Os agricultores deveriam se juntar ao programa
do MGP para aprender a habilidade de seleção, a fim de colher boas sementes
de variedades locais para o futuro”, insiste ela. Muitos agricultores, no local do
projeto, revelam que o cruzamento Mansara mostrou-se um amigo dos pobres
por sobreviver sob condições de seca, ao passo que a Birmaphool melhorada é
um belo presente aos agricultores pobres, que vendem arroz de qualidade com
sobrepreço. O especialista molecular que acompanhou de perto a seleção feita
pelos agricultores fez elogios a eles pela escolha sábia de genes desejáveis em
progênies de suas variedades locais. E também pelas outras características favo-
ráveis de plantas-mãe exóticas, valorizando as conquistas do MGP enquanto es-
tratégia capaz de contribuir para a conservação genética in situ de variedades
locais.

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O envolvimento dos agricultores no processo de melhora-
mento não só agrega valor à conservação da diversidade genéti-
ca de cultivos, mas também ajuda a manter e a intensificar o seu
conhecimento, na seleção e no manejo de populações de cultivos
locais e no manejo de sistemas de fornecimento de sementes. Ao
mesmo tempo, as diversas preferências dos agricultores, os nichos
agroecológicos e os sistemas de produção locais ajudam a con-
servar um estoque de diversidade genética nas unidades de pro-
dução familiares. Tal estoque pode ser considerado um valioso
germoplasma de pré-melhoramento, visto que leva segurança ao
sustento dos agricultores. A criação de grupos de agricultores de
MPC ajudou a implementar as atividades do MPC (incluindo
MGP) mais sistematicamente e resultou em: (i) melhor qualidade
da participação dos agricultores; (ii) capacidades locais aumenta-
das; e (iii) aumento da aprendizagem social e um sentimento de
propriedade. Houve maior consciência e respeito pelo valor dos
seus conhecimentos e experiências e de sua ação conjunta na pro-
dução de melhores resultados.

QUESTÕES QUE EMERGIRAM E APRENDIZADO


Muitos programas de melhoramento de plantas do setor público
não utilizam técnicas e abordagens para levar em conta as necessi-
dades de seus clientes. A análise participativa de quatro-células (Ca-
pítulo 4.5), delineada pela equipe in situ, foi considerada bastante
útil no estabelecimento de metas de melhoramento e na identifica-
ção de variedades locais como um dos genitores para o MGP. A
consulta para estabelecer metas de melhoramento com agricultores-
alvo é um passo importante do MGP, o qual é comumente ignorado
no melhoramento de plantas no setor público. O MGP pode ser uti-
lizado para se atingir uma orientação qualificada junto ao público-
alvo, mas essas técnicas não necessariamente têm que envolver os
agricultores na realização de cruzamentos e de seleção, durante as
gerações segregantes iniciais.
É essencial ter uma população de tamanho grande durante as
gerações segregantes, de modo a aumentar as chances de se encon-
trar melhores segregantes transgressivos. Isso quer dizer que os agri-
cultores com pequenas unidades produtivas podem ter que arrendar

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terras para fazer avançar as gerações durante as avaliações das gera-
ções de segregação F2 e F3. A seleção de linhagens pelo método
populacional modificado e pelo método populacional são estraté-
gias simples de melhoramento, facilmente adaptadas aos programas
de melhoramento orientados aos agricultores, como é o caso do MGP.
A seleção, conduzida de forma descentralizada e nas condi-
ções de ambiente onde será futuramente efetuado o cultivo, é funda-
mental para o sucesso do MGP em programas de conservação in
situ. É importante treinar os agricultores sobre segregação, seleção,
hereditariedade, métodos de melhoramento e genética a fim de torná-
los conscientes da importância da diversidade nas gerações segre-
gantes. A participação de agricultores no pós-colheita é essencial na
comparação a campo das linhagens segregantes.
A mobilização de grupos de MGP de agricultores locais na
identificação de lotes individuais, de agricultores interessados e de
SPV, após a seleção das linhagens, também é importante. Isso ajuda
a desenvolver, entre os agricultores, o senso de propriedade dos pro-
gramas. A avaliação da contribuição de genitores locais (genes fa-
voráveis) nas progênies selecionadas, mediante o uso de marcadores
moleculares, é útil para avaliar a produção e para se atingir objeti-
vos da conservação in situ. Entende-se, com isso, que genes úteis
oriundos de genitores locais podem ser conservados nas unidades
de produção familiares, por meio do MGP, e que os agricultores
podem ter um papel importante para se alcançar essas metas de con-
servação. As questões relacionadas a direitos de propriedade inte-
lectual dos produtos gerados pelo MGP também estão emergindo, e
existe a necessidade de se discutir o assunto com a comunidade no
início do programa.

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3.4 MELHORAMENTO PARTICIPATIVO DE CULTIVOS NO BRASIL
Altair Toledo Machado e
Cynthia Torres de Toledo Machado

O melhoramento participativo de cultivos (MPC) é um compo-


nente do manejo da diversidade genética das plantas, que, por sua vez,
consiste no resgate, avaliação, caracterização, seleção e conservação
dos recursos genéticos. Ambas as estratégias – MPC e manejo da di-
versidade – desempenham importante função em comunidades de
agricultura familiar, onde são comuns os problemas relacionados à
fertilidade dos solos e aos estresses nutricionais, entre outros.

ORIGENS DE UM TRABALHO INOVADOR E ESTIMULANTE:


O PROJETO SOL DA MANHÃ
Em 1984, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-
pecuária), por intermédio de um pesquisador de melhoramento do
Centro de Pesquisa de Agrobiologia, iniciou trabalhos de melhora-
mento participativo com milho. Esse projeto pioneiro foi realizado
com agricultores do Mutirão Sol da Manhã, localizado no Estado do
Rio de Janeiro, envolvendo ainda alguns professores e pesquisado-
res da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). A
comunidade Sol da Manhã é um assentamento criado pelo programa
de reforma agrária, próximo a áreas urbanas populosas. Essa região
apresenta problemas sociais e econômicos graves, muita pobreza e
um profundo processo de erosão cultural. Representantes do assen-
tamento buscaram o apoio técnico das instituições de pesquisa para
a implementação de sistemas agrícolas viáveis para essa área, já que
o desenvolvimento de um sistema agrícola sustentável foi conside-
rado impossível devido ao estresse ambiental e à falta de recursos
genéticos, físicos e econômicos.
O objetivo inicial foi a recuperação de uma área com elevada
degradação genética, onde ocorrem graves problemas com estresses
ambientais. No assentamento predominam solos arenosos, com bai-
xos níveis de matéria orgânica e baixa fertilidade natural e acentua-
da degradação da variabilidade genética – as variedades locais de
milho, na região, desapareceram há mais de vinte anos. O clima quen-
te é caracterizado por temperaturas de verão que alcançam 42ºC e

111

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por chuvas muito irregulares. Os principais fatores de estresse são a
falta ou excesso de água, o baixo pH, pouco nitrogênio (N) e fósforo
(P) disponíveis e a presença de alumínio.

PASSOS DO PROGRAMA DE MELHORAMENTO NO


MUTIRÃO SOL DA MANHÃ
Diagnóstico: O processo participativo, iniciado por demanda
da comunidade, começou com um diagnóstico rápido participativo
(social, cultural, econômico e ambiental) realizado em alguns en-
contros com os assentados, com técnicos e pesquisadores em semi-
nários e cursos de capacitação. Nesse processo, o grupo detectou
problemas relacionados às sementes, ao ambiente e a condições
ambientais adversas e apontou a enorme vulnerabilidade da comu-
nidade – insegurança alimentar e situações reais de fome. Foram
identificados dois fatores primordiais responsáveis pelo limitado
desenvolvimento agrícola na comunidade: (i) a elevada erosão ge-
nética, por meio da perda de germoplasma local, conseqüência da
desconexão dos produtores com suas variedades tradicionais, e (ii)
a baixa fertilidade do solo no que tange à disponibilidade de N.
Decidiu-se iniciar um programa de melhoramento participati-
vo intitulado “Manejo de diversidade genética de milho em áreas de
baixa disponibilidade de nitrogênio”. A estratégia inicial desse tra-
balho foi identificar variedades que se adaptassem à realidade local
e que produzissem sementes suficientes para o próximo cultivo, para
a comercialização de milho verde e de grãos e também para dar iní-
cio a uma criação de galinhas. Na verdade, haveria uma integração
inicial do milho com animais e com adubação orgânica a partir do
resíduo das galinhas. Em um segundo momento, haveria a diversifi-
cação com outras espécies e a incorporação de adubos verdes.
Opção pelo melhoramento de variedades de milho toleran-
tes à seca: A comunidade escolheu o milho como cultura principal de-
vido à sua significação cultural, ao seu elevado preço de mercado e
à falta de variedades adaptadas a essas condições ambientais. O pro-
grama desenvolveu-se de 1986 a 2000 e teve como objetivo principal
caracterizar e selecionar variedades de milho eficientes no uso de N,
a partir das estratégias de MPC, bem como possibilitar incrementos
de produção que habilitassem os assentados e agricultores familiares

112

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a sobreviver em áreas de baixa disponibilidade de N. Assim, a estra-
tégia adotada de MPC para esse local incluiu o resgate, a caracteri-
zação, a seleção e a conservação de variedades de milho.
Seleção participativa de variedades entre as tolerantes à seca:
O primeiro passo do processo de MPC foi a avaliação de variedades
de milho a partir de ensaios experimentais conduzidos em área dos
assentados. Eles participaram ativamente dessa avaliação, sendo res-
ponsáveis pela escolha das melhores variedades, tendo a produtivi-
dade como critério principal. Dezesseis variedades, representativas
de quatro grupos de germoplasma, foram avaliadas.
Desses ensaios de avaliação e seleção participativa de varieda-
des (SPV), uma variedade mostrou ter o melhor potencial. Ela se
originou de uma base genética ampla que consistia de 35 popula-
ções do Caribe e da América do Sul31 que foram escolhidas por seu
potencial de produção em áreas tropicais. A variedade identificada
possui endosperma duro e semiduro e grão de cor alaranjada. De
1986 a 1992, a comunidade passou a produzir essa variedade em
pequena escala comercial. Durante esse período, a variedade sofreu
processo de melhoramento exclusivamente na instituição de pesquisa
para que pudesse incorporar estabilidade de produção em áreas com
problemas de estresse para N. Seu cultivo na comunidade represen-
tou um incremento de 100% na produtividade, que passou de 1.000
para 2.000 kg/ha.
Melhoramento genético participativo da variedade Sol da Ma-
nhã: A estratégia adotada pelo programa de MGP levou em conta a
baixa disponibilidade de N nos solos da comunidade Sol da Manhã.
O programa incluiu diversos passos, ao longo de quinze anos (Qua-
dro 3.4.1). Após esse período, a variedade passou a se chamar “Sol
da Manhã”, em homenagem à comunidade, e a sua produtividade
foi incrementada de 2.000 para 4.000 kg/ha.

Quadro 3.4.1 – Passos do MGP na comunidade Sol da Manhã durante 15 anos


1. Realizaram-se seis ciclos de seleção, sendo três ciclos de seleção massal,
um ciclo de seleção dentro e entre famílias de meios-irmãos, um ciclo de seleção
dentro e entre famílias de irmãos germanos e um ciclo de seleção dentro e entre
famílias endogâmicas S1. Eles ocorreram no período de 1986 a 1992, dentro das
áreas experimentais da Embrapa.

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2. As famílias endogâmicas S1 foram testadas para verificar, em nível de
laboratório, a atividade da enzima glutamina sintetase, importante no metabolis-
mo do N. A atividade dessa enzima foi utilizada como parâmetro de seleção du-
rante o processo de melhoramento da variedade “Sol da Manhã”;
3. A variedade “Sol da Manhã” foi reintroduzida na comunidade em 1992,
após os primeiros ciclos de seleção realizados na Embrapa. Um grupo de assenta-
dos assumiu a responsabilidade pela seleção participativa nessa variedade que,
em conjunto com o melhorista, passaram a selecionar.
4. Essa variedade foi selecionada por mais seis ciclos de seleção massal
estratificada na comunidade, perfazendo um total de 12 ciclos, em 15 anos.

Seleção de variedades para solos de baixa disponibilidade de


N: Na comunidade, foram identificados cinco grupos de agriculto-
res com responsabilidade de testar as variedades nos diferentes ní-
veis de manejo de N (altos e baixos níveis de adubos orgânicos, alto
e baixo uso de fertilizantes químicos e sem adubo). Os pesquisado-
res da Embrapa eram responsáveis pela caracterização do solo e do
clima e pelo suprimento de água nas áreas de experimentação no
assentamento. Um sexto grupo foi formado a partir da seleção efe-
tuada pelos melhoristas da Embrapa, levando em conta os parâmetros
bioquímicos. Os experimentos produziram informações significati-
vas quanto ao uso de adubação nitrogenada.
O processo de seleção massal estratificada participativa: A
seleção massal estratificada por localidade foi adotada para manter
um tamanho efetivo de cultivo da variedade e para evitar a perda de
sua variabilidade genética, que poderia ocorrer na amostragem, por
efeito de condições de estresse, comprometendo o processo de sele-
ção em uma ou mais localidades. Cada uma das seis unidades de
experimentação conduziu campos de seleção (Quadro 3.4.2).

Quadro 3.4.2 – Esquema de seleção massal estratificada por localidade


Em cada uma das seis unidades de experimentação foram:
• Cultivadas 3.000 plantas em cada campo de seleção.
• Selecionadas as 200 melhores plantas, por ocasião da colheita.
• Escolhidas, após a seleção, 40 espigas por local, retirando-se de cada espi-
ga duas amostras de 100 sementes – uma amostra guardada para conservação da
variedade e a outra, para ser utilizada no próximo plantio.
• Obtidos, assim, dois volumes de 24.000 sementes, oriundos de 240 espigas
por ciclo de seleção.
O processo de seleção, no assentamento, seguiu o seguinte critério, em cada
campo de seleção:

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• Antes do florescer, os produtores selecionaram as plantas mais verdes, des-
cartando as amareladas, a fim de fazer a seleção com base na alta eficiência de
captação de N.
• Durante a colheita, selecionaram plantas quanto ao porte, à sua resistência
ao acamamento e/ou quebramento do colmo, à resistência do empalhamento das
espigas, ao aspecto saudável das espigas e a outros aspectos gerais da planta e,
principalmente, em função de sua capacidade de produção.
Foram realizados, dentro da estação experimental da Embrapa Agrobiolo-
gia, três ciclos de seleção massal, um ciclo de seleção de meios-irmãos, um ciclo
de seleção de irmãos germanos e um ciclo de seleção de famílias endogâmicas S1.
Adicionalmente, foram realizados mais dois ciclos de seleção massal e um de
irmãos germanos, na comunidade Sol da Manhã.

Os assentados envolvidos na seleção podiam exercitar suas


preferências e aspirações por uma variedade mais apropriada à sua
comunidade não somente de acordo com a produtividade, mas tam-
bém adequada à cultura local. Ao todo, foram nove ciclos de seleção
e oito anos de trabalho realizados em solos de baixa fertilidade natu-
ral, onde não se utilizou adubo nitrogenado. O setor formal, repre-
sentado pela Embrapa Agrobiologia, tomou parte nas atividades de
pesquisa participativa por meio do melhoramento genético e na iden-
tificação e caracterização de variedades adaptadas ao estresse abió-
tico. Em função disso, foram realizados diferentes trabalhos de
pesquisa para eficiência no uso de N e P, tolerância à seca, ao alumí-
nio e ao encharcamento.32
O trabalho de MGP proporcionou, em curto espaço de tempo,
o aparecimento de variedades com alto potencial produtivo e adap-
tadas a condições de estresse bastante acentuadas que atestam a efi-
ciência da pesquisa participativa realizada pela Embrapa Agrobio-
logia e pelos agricultores do Mutirão Sol da Manhã. Hoje, a Sol da
Manhã, lançada a partir desse trabalho, é uma das variedades de
polinização aberta de milho mais produzidas e comercializadas no
Brasil.

MPC: MELHORANDO AS CONDIÇÕES DE SEU SUSTENTO


Por meio desse processo de seleção massal estratificado, a di-
versidade genética foi mantida e sementes estavam disponíveis para
a multiplicação e o uso na comunidade do assentamento, assim como
para a distribuição para outras comunidades, para a produção co-

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mercial de sementes, para bancos de genes e ensaios de avaliação.33
Esse processo proporcionou à comunidade a capacidade de selecio-
nar variedades de outras espécies adaptadas ao seu agroecossiste-
ma, devido ao aprendizado que teve com a cultura do milho e, tam-
bém, à recuperação de sua auto-estima, que reforçou a confiança em
suas habilidades. O processo participativo também mostrou a im-
portância da cooperação entre assentados e que soluções para pro-
blemas locais podem ser encontradas dentro do assentamento. Isso
proporcionou à comunidade autoconfiança para poder lidar melhor
com outras questões sociais. O processo do MPC resultou no forta-
lecimento de sua organização social e no aumento da autoconfiança
da comunidade, que gradualmente se engajou em muitas outras ati-
vidades além do melhoramento participativo de cultivos.
Considerando que o milho era uma fonte de alimentação mui-
to importante para o assentamento, o aumento da produtividade re-
presentou uma melhoria da segurança alimentar e da saúde. Por ou-
tro lado, o milho também é importante para a alimentação dos ani-
mais. Foi possível melhorar a ingestão de proteína pelas famílias do
assentamento a partir da criação de frangos; ao mesmo tempo, a
utilização do estrume de galinhas pode servir como uma fonte orgâ-
nica de N. Essa situação auxiliou o aumento da produção dentro de
um sistema agrícola mais sustentável. A experiência de aumento da
agrobiodiversidade e a possibilidade de cultivar sem a dependência
química e com preocupações ambientais também ajudaram as famí-
lias de assentados a se reconectarem ao meio ambiente.

UM PROCESSO DESCENTRALIZADO: A “REDE MILHO”


Como conseqüência do Projeto Sol da Manhã iniciou-se, em
1990, um trabalho conjunto, com enfoque participativo, entre insti-
tuições públicas (representadas pela Embrapa Agrobiologia), a Rede
PTA (uma rede de 42 ONGs que trabalham com agroecologia e agri-
cultores familiares em doze estados do Brasil) e agricultores da co-
munidade Sol da Manhã34. Mais tarde, esse programa passou a se
chamar de Rede Milho.
O objetivo da Rede Milho foi desenvolver estratégias basea-
das em princípios participativos para o uso e a conservação da di-
versidade genética de milho em comunidades agrícolas. Foram rea-

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lizados ensaios locais e nacionais de milho com o objetivo de se
fazer uma avaliação agronômica e de caracterização morfológica e,
em seguida, procedeu-se ao melhoramento de variedades adaptadas
a distintas situações ambientais, culturais, sociais e econômicas.
Os principais componentes da Rede Milho foram:
Resgate e caracterização das variedades locais: A primeira
ação desse trabalho conjunto foi o resgate e a caracterização de va-
riedades locais de milho, pois muitas delas estavam em franco pro-
cesso de desaparecimento, gradativamente substituídas por varieda-
des melhoradas e por cultivares híbridos. O resgate é necessário não
somente para preservar a sua diversidade como também para estu-
dar sua estrutura, verificando o processo de erosão genética que pode
ter ocorrido e o seu potencial para uso imediato ou futuro.
De 1990 a 1992, foram coletadas quarenta variedades em 26
municípios de cinco estados brasileiros (MG, ES, PR, SC e RS).
Para ser considerada uma variedade local, ela deveria estar sendo
mantida assim pelos produtores por mais de dez anos. As localida-
des das coletas foram caracterizadas pela altitude, latitude, longitu-
de, textura do solo e fertilidade, assim como pelo clima (temperatu-
ra e precipitação). As coletas ocorreram em uma grande amplitude
de latitude (de 16°25' a 31°20'), longitude (de 39°40' a 54°00') e
altitude (de 20 a 1.200 m). As condições do solo apresentavam textu-
ras variando desde a arenosa até a argilosa e, na maior parte, com
fertilidade de regular a pobre. Em sua maioria, eram locais com
temperaturas elevadas. Também foi observado que áreas que mos-
travam problemas de seca foram caracterizadas como de fertilida-
de pobre.
A coleta de sementes obedeceu a alguns procedimentos técni-
cos no intuito de representar adequadamente as características ge-
néticas das variedades locais – amostras representativas de um mí-
nimo de duzentas espigas ou a partir de cinco quilos de sementes.
Imediatamente após o resgate, as variedades foram caracterizadas
seguindo seus descritores mínimos.35
Seleção participativa de variedades locais: A segunda ação foi
a avaliação dessas variedades em ensaios de competição. É funda-
mental que essas variedades, depois de serem resgatadas, sejam sub-
metidas à experimentação em diversos locais e por vários anos para

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Biodiversidade 0204.P65 117 5/4/2007, 10:48


determinar o seu valor como variedade local, permitindo a difusão
das mesmas por meio da troca de materiais entre os agricultores,
bem como avaliar o seu potencial genético para melhoramento, vi-
sando a seu uso em diferentes agroecossistemas.
Os ensaios em unidades de produção de agricultores familia-
res começaram na primavera de 1992. Foram avaliados 49 mate-
riais, entre eles 35 variedades locais, duas variedades de milho com
alta qualidade protéica, duas variedades oriundas de melhoramento
participativo da comunidade Sol da Manhã, seis variedades comer-
ciais de polinização aberta, melhoradas por centros de pesquisa em
diferentes regiões do Brasil, e dois híbridos comerciais. Todos os
ensaios seguiram o mesmo delineamento, e as características avali-
adas foram o número de plantas, a umidade e o peso do grão.
Os ensaios de melhoramento permitiram identificar os princi-
pais problemas que afetam a produtividade do milho no campo,
notadamente o excesso ou falta de água e a baixa fertilidade do solo.35
Eles também foram importantes para identificar, num curto período,
novas fontes genéticas para alto potencial produtivo sob estresse
por água, N, P e alumínio. Também foi possível observar que as
variedades locais podiam ter alto potencial de produção, semelhante
às variedades melhoradas e aos híbridos.35 Após a estabilização das
melhores variedades elas passaram a ser selecionadas de forma par-
ticipativa pelos agricultores.
Melhoramento genético participativo na base de varieda-
des locais: A terceira ação foi o melhoramento dessas variedades
junto com os agricultores, dentro de um enfoque integrado. O MGP
é, sem dúvida, uma excelente estratégia que contribui para o desen-
volvimento sustentável de comunidades de agricultores familiares.
O método de seleção seguiu, basicamente, o sistema adotado
no Projeto Sol da Manhã. Os resultados foram bastante similares em
diferentes regiões do Brasil, em que se lidou com panos de fundo
sociais e culturais muito distintos. O aprendizado a partir de uma
pequena experiência tornou possível uma revolução no melhoramento
para produtores e comunidades de agricultura familiar. Hoje, o pro-
grama ainda é conduzido em vários estados brasileiros e beneficia
milhares de famílias. Embora algumas das comunidades sejam, atual-
mente, independentes no melhoramento de suas próprias culturas,

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em outras, novos projetos estão sendo conduzidos (DF, GO, MG,
ES, RJ e SC).
A estratégia do trabalho de melhoramento genético participa-
tivo da rede de milho está resumida na Figura 3.4.1.

Figura 3.4.1 – Estratégia do trabalho da Rede Milho.

Manejo integrado de recursos fitogenéticos


em áreas com processos de erosão genética

Resgate
Avaliação considera aspectos sociais
culturais e antropológicos

Caracterização
Criação
Melhoramento participativo
Conservação e produção

Manejo genético com visão holística e sistêmica

O trabalho com a Rede PTA contou com a participação ativa


de diferentes associações de agricultores familiares, de sindicatos,
de cooperativas e ONGs e teve o envolvimento direto de cerca de
dez mil famílias. Resgataram-se aproximadamente duzentas varie-
dades locais de milho, que foram avaliadas e caracterizadas para
tolerância ou resistência a estresses ambientais. Mas o principal re-
sultado desse trabalho foi demonstrar a viabilidade de um novo
enfoque na conservação e no manejo dos recursos genéticos, por
meio de metodologias participativas em que se observa a possibili-
dade da auto-suficiência local em sementes, combinada com a con-
servação da agrobiodiversidade.

METODOLOGIA UTILIZADA E LIÇÕES APRENDIDAS


Dois aspectos fundamentais da cultura do milho devem ser
destacados: a sua grande diversidade genética, o que torna o cultivo
possível em distintas áreas, e o seu uso variado para a alimentação
humana e animal e na indústria agrícola. O trabalho de seleção do

119

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milho começou entre os nativos do México, há aproximadamente
sete mil anos, e se tornou muito intenso no século XX, com a chega-
da do milho híbrido e o melhoramento de variedades para diferentes
formas de uso e de cultivo.
É fato bem conhecido que o milho, originado por meio da sele-
ção natural e da domesticação subseqüente pelo homem, pode estar
sofrendo um processo de erosão genética em que muitos genes estão
sendo perdidos. Tal processo aconteceu e continua a acontecer devi-
do, principalmente, aos problemas relacionados com amostragem e
contaminação, no quais se alteram as freqüências genéticas e
genotípicas. E também devido à perda de variedades locais, que es-
tão sendo substituídas gradualmente por “cultivares” selecionados
com uma base genética estreita. No enfrentamento desse problema é
necessário preservar a diversidade genética da cultura do milho,
representada por inúmeras variedades locais, a fim de se manter seu
potencial genético. Desse modo, o resgate de variedades locais se
torna extremamente necessário, sobretudo para verificar o nível do
processo de erosão genética, o potencial genético e os possíveis usos
dessas variedades locais.
A integração de setores formais e informais como na Rede
Milho foi uma estratégia bastante interessante para se obter, em cur-
to período de tempo, variedades adaptadas aos diferentes tipos de
estresses ambientais.35 O MPC é uma forma de integrar os setores
formais e informais em um processo que permite um maior progres-
so genético em variedades locais submetidas a processos de seleção,
além de incrementar e preservar a sua diversidade. Atualmente, a
literatura menciona vários trabalhos em MPC em outros cultivos
como batatas36, arroz31,37, feijão38 e milheto39. O sucesso do trabalho
teve um impacto importante nas atividades da rede PTA em outras
comunidades do Brasil, incluindo o grupo de parceiros do NEABio,
em Santa Catarina. A Rede Milho e o Projeto Sol da Manhã foram
muito importantes para a Embrapa, pois provaram ser uma grande
oportunidade para ajustar a sua agenda de pesquisa com as deman-
das da sociedade civil40, o que culminou na formação de um Grupo
de Trabalho em Agroecologia, estabelecido por sua Diretoria no fi-
nal de 2005, que por sua vez estabeleceu o Marco Referencial em
Agroecologia da Embrapa, em 2006.

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MPC COM ENFOQUE NA AGROBIODIVERSIDADE E NA AGROECOLOGIA
Este é um breve histórico do melhoramento genético participati-
vo, com enfoque no milho, no Brasil. De uma forma geral são traba-
lhos que têm um forte componente ambiental, ecológico e social, e
foram estabelecidos naquele momento de forma mais efetiva, mas um
longo caminho ainda está por ser percorrido e inúmeros debates ainda
estão por vir. Dentre estes, podemos destacar o debate paradigmático
das diferentes vertentes da ciência, a concepção da propriedade inte-
lectual em trabalhos dessa natureza e o arcabouço do uso e benefício
dos recursos genéticos, incluindo os diversos aspectos da biopirataria.
No Brasil, as áreas dos agricultores familiares constituem-se,
em geral, de ambientes marginais, onde a agricultura é dominada por
variações nas condições agroecológicas e socioeconômicas, sujeitas a
estresses complexos e a elevados custos e riscos de produção. Nesse
sentido, o manejo da diversidade genética de plantas nessas comuni-
dades é uma importante estratégia para selecionar variedades adapta-
das à sua realidade.
Como ponto para reflexão, ao se iniciar um trabalho participa-
tivo em comunidades de agricultores familiares, devem ser enfatiza-
dos alguns aspectos importantes que se referem à realidade agrícola
desses agricultores e ao manejo da diversidade genética de plantas
dentro dessas comunidades – devem ser abordadas questões refe-
rentes à segurança alimentar e à fome, à biodiversidade, à agrobio-
diversidade, ao desenvolvimento de metodologias participativas, com
ênfase no melhoramento participativo, e uma contextualização final
sobre a importância estratégica do manejo da diversidade genética
de plantas em comunidades agrícolas.
O manejo da agrobiodiversidade é de fundamental importân-
cia para a sobrevivência da agricultura familiar, incorporando, nes-
se processo, a questão da semente como fator relevante de sustenta-
bilidade. A recuperação e o desenvolvimento de variedades locais
podem colaborar na recuperação da soberania alimentar das popula-
ções e podem ser elementos-chave nos processos de segurança ali-
mentar.

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3.5 AVALIAÇÃO PARTICIPATIVA DO MANEJO DE
AGROECOSSISTEMAS: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE

Cynthia Torres de Toledo Machado


e Mariane Carvalho Vidal

Indicadores de sustentabilidade vêm sendo utilizados para a


caracterização e o monitoramento de agroecossistemas, mas poucos
métodos propostos são de fácil manipulação pelos agricultores. Do
ponto de vista ambiental, a promoção da sustentabilidade de um
agroecossistema depende, basicamente, de que seu manejo leve à
otimização de processos como a disponibilidade e equilíbrio no flu-
xo de nutrientes, a proteção e a conservação da superfície do solo, a
preservação e a integração da biodiversidade e a exploração da adap-
tabilidade e complementaridade no uso dos recursos genéticos ve-
getais e animais.
Em projetos cujas metodologias participativas constituam uma
das principais premissas, a aplicação de metodologias de indicado-
res de sustentabilidade deve, além de caracterizar e monitorar os
sistemas, fornecer às comunidades a capacidade de observar, ava-
liar e tomar decisões, adaptando as tecnologias às condições socioe-
conômicas e biofísicas dos agricultores e de seus agroecossistemas.
Esse trabalho apresenta a determinação de indicadores de sus-
tentabilidade de fácil entendimento e aplicação por agricultores.41 E
relata, também, seu emprego em uma área de um assentamento pólo
de um projeto de agrobiodiversidade e agroecologia, com o objetivo
de caracterizá-la quanto aos aspectos de manejo dos solos e das la-
vouras, além de capacitar os agricultores em pré-requisitos agroeco-
lógicos que devem ser atingidos para garantir a sustentabilidade dos
agroecossistemas.

A METODOLOGIA
Denomina-se Sistema de avaliação rápida da qualidade do
solo e da sanidade dos cultivos42 a metodologia que permite aos
agricultores medidas relativas de sustentabilidade mediante a com-
paração ao longo do tempo, num mesmo agroecossistema, ou me-
diante a comparação de dois ou mais agroecossistemas que estão

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sob diferentes estágios de transição ou sob diferentes práticas de
manejo. Isso permite que os agricultores avaliem os sistemas mais
saudáveis, possibilitando que, em conjunto, identifiquem processos
e interações biológicas que expliquem seu desempenho superior.
Essas informações serão traduzidas para práticas específicas que
otimizem os processos agroecológicos desejáveis.
O objetivo desse método43 é avaliar o manejo do agroecossis-
tema por meio de indicadores sensíveis e fáceis de estimar em cam-
po. Determinam-se os indicadores relevantes junto com os agri-
cultores e se estabelecem valores de 1 (menos desejável), 5 (valor
moderado) e 10 (mais desejável), conforme as características do
cultivo ou do solo e segundo os atributos observados para cada
indicador. Cada indicador pode assumir valores entre 1 e10. Após
análise, em conjunto, obtém-se a média para a sanidade dos culti-
vos e a qualidade do solo. Médias menores do que 5 são considera-
das abaixo do limite mínimo de sustentabilidade.
Na aplicação da metodologia, as observações de campo devem
ser precedidas de capacitação que aborde: (i) conceitos de agroecos-
sistemas e de agricultura sustentável; (ii) dimensões ecológica, so-
cial e econômica da sustentabilidade; (iii) indicadores de sustenta-
bilidade e suas características; (iv) explanação sobre a metodologia
e seu detalhamento, por meio de exemplos e da apresentação do
roteiro a ser seguido nas atividades de campo; (v) discussão dos
indicadores.
Duas listas de possíveis indicadores-padrão para os atributos
de manejo dos cultivos e de solo são, então, apresentadas às comu-
nidades para que se escolha, de forma participativa, quais os que
serão determinados nas áreas de condução das atividades. Avalia-se
se todos são aplicáveis àquela determinada realidade e também se
há algum indicador “local” que deva ser incorporado, bem como
suas características. Cada indicador e suas características são expli-
cados detalhadamente.
De posse das tabelas-padrão apresentadas a seguir, cada um
dos indicadores listados são avaliados no campo. Quando da avalia-
ção, são reforçados o conceito e as características de cada indicador,
bem como o seu significado e as possíveis relações entre o atributo
em questão e os demais.

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Os indicadores de Sanidade dos Cultivos (Tabela 3.7) relacio-
nam-se de forma significativa à diversidade funcional e aos elemen-
tos da agrobiodiversidade como principais reguladores da saúde dos
cultivos, afetando diretamente a aparência das plantas, o nível de
incidência de pragas e doenças, a tolerância à competição pelas plan-
tas espontâneas e o potencial de produção.43 São avaliados: (1) a
aparência geral da cultura e (2) o crescimento das plantas, para se
ter noção do estado nutricional e do desenvolvimento das culturas;
(3) as incidências de doenças e (4) incidências de insetos e pragas,
relacionadas ao estado nutricional adequado, aos atributos estrutu-
rais (combinação das lavouras e cultivos no espaço e no tempo) e de
manejo (diversidade de culturas, níveis de insumos); (5) o rendi-
mento atual ou potencial, estimado em relação a um valor médio
alcançado por outros produtores locais ou regionais, ou mesmo por
um valor alcançado pelo mesmo agricultor em determinada época.
Os demais indicadores (6 a 10) dão uma idéia da infra-estrutura eco-
lógica do sistema ou subsistema, ou lavoura, que está sendo avaliado,
em termos de níveis de diversidade vegetal (espécies), de diversidade
genética (variedades ou genótipos), de diversidade da vegetação
circundante e do tipo de manejo dado ao sistema. A compreensão
dessas interações e sinergismos servirá para desenhar, melhorar e
manejar o agroecossistema na busca de sustentabilidade.

Tabela 3.5.1 – Indicadores de sustentabilidade para agroecossistemas


– Sanidade dos Cultivos – com seus valores e características correspondentes.

VALOR CARACTERÍSTICAS VALOR


ESTABELECIDO ESTIMADO
1. Aparência geral da cultura
1 Clorótica, folhagem descolorida
com sinais de deficiência
5 Folhagem verde-claro com alguma
perda de pigmentação
10 Folhagem verde-escuro, sem sinais
de deficiência

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2. Crescimento das plantas
1 Padrão desigual, ramos finos e
curtos, crescimento novo limitado
5 Padrão mais denso, porém não
uniforme. Ramos mais grossos,
sinais de novas brotações
10 Folhagem e ramos em abundância.
Crescimento vigoroso
3. Incidência de doenças
1 Suscetível, mais de 50% das plantas
com folhas e/ou frutos danificados
5 Entre 20-45% das plantas com algum
dano
10 Resistentes, menos de 20% das
plantas com danos leves
4. Incidência de insetos e pragas
1 Mais de 85% das folhas danificadas
5 Entre 30-40% das folhas danificadas
10 Menos de 30% das folhas danificadas
5. Rendimento atual ou potencial
1 Baixo em relação à média local
5 Médio, aceitável
10 Bom ou alto
6. Abundância e diversidade de inimigos naturais
1 Ausência de vespas predadoras/
parasitas em uma amostra aleatória
de 50 folhas
5 Presença de pelo menos um inseto
benéfico
10 Mais de 2 indivíduos de uma ou
duas espécies de insetos benéficos
7. Competição e supressão de plantas espontâneas
1 Plantas estressadas suprimidas por
plantas espontâneas

125

Biodiversidade 0204.P65 125 5/4/2007, 10:48


5 Presença média de plantas espon-
tâneas, algum nível de competição
10 Plantas vigorosas suprimindo plantas
espontâneas
8. Diversidade de vegetação
1 Monocultura
5 Presença de algumas plantas espon-
tâneas ou presença desigual de
plantas de cobertura
10 Formação densa de plantas de
cobertura e plantas espontâneas
9. Vegetação natural circundante
1 Circundado por outras culturas sem
vegetação natural
5 Vegetação natural adjacente em pelo
menos um dos lados
10 Circundado por vegetação natural
em pelo menos dois lados
10. Desenho agroecológico (barreiras de vento, policultivos,
corredores, etc.)
1 Sem barreira de vento, sem corre-
dores de vegetação, apenas uma cul-
tura plantada
5 Barreiras e corredores dispersos na
área de cultivo; mais de uma cultura
plantada na área
10 Com barreiras de vento e corredores,
várias culturas plantadas

Dependendo das condições locais, outros indicadores podem


ser propostos, além dos descritos na Tabela 3.5.1, a fim de comple-
mentar a caracterização do agroecossistema, como, por exemplo, os
descritos na Tabela 3.5.243.

126

Biodiversidade 0204.P65 126 5/4/2007, 10:48


Tabela 3.5.2 – Indicadores de sustentabilidade para agroecossistemas –
específicos para diversidade genética e sistemas de manejo –
com seus valores e características correspondentes.

VALOR CARACTERÍSTICAS VALOR


ESTABELECIDO ESTIMADO
Diversidade genética (cultivo de diferentes variedades ou genótipos)
1 Pobre, domina 1 só variedade de
determinada espécie
5 Média, 2 variedades
10 Alta, mais de 2 variedades
Sistema de manejo
1 Convencional, monocultivo, manejo
com agroquímicos
5 Em transição para orgânico ou
agroecológico, com substituição
de insumos
10 Orgânico diversificado ou
agroecológico, com pouco uso
de insumos naturais externos

Os indicadores Qualidade do Solo (Tabela 3.5.1) introduzem e


reforçam a condição primordial do solo como organismo vivo.43 São
também apresentadas noções gerais sobre formação e origem dos
solos. São avaliados: (1) a profundidade dos solos; (2) sua estrutu-
ra; (3) a compactação; (4) o estado dos resíduos, em relação à sua
decomposição e reciclagem de nutrientes; (5) a cor, odor e matéria
orgânica do solo; (6) a capacidade de retenção de água; (7) a co-
bertura de solo, em termos de retenção de umidade, disponibilidade
de água para as culturas, elevação da temperatura do solo e seu efei-
to sobre os microrganismos e riscos de erosão; (8) a erosão; (9) a
presença de invertebrados e (10) a atividade microbiológica.

127

Biodiversidade 0204.P65 127 5/4/2007, 10:48


Tabela 3.5.3 – Indicadores de sustentabilidade para agroecossistemas –
Qualidade de Solo – com seus valores e características correspondentes

VALOR CARACTERÍSTICAS VALOR


ESTABELECIDO ESTIMADO
1. Profundidade do solo
1 Subsolo exposto, ou quase exposto
5 Fina superfície de solo (< 10 cm)
10 Solo superficial > 10 cm
2. Estrutura
1 Solto, empoeirado sem visíveis
agregados
5 Poucos agregados que quebram
com pouca pressão
10 Agregados bem-formados difíceis
de serem quebrados
3. Compactação
1 Solo compactado, arame
encurva-se facilmente
5 Fina camada compactada, alguma
restrição à penetração do arame
10 Sem compactação, arame é todo
penetrado no solo
4. Estado de resíduos
1 Resíduos orgânicos com lenta
decomposição
5 Presença de resíduos em decom-
posição de pelo menos um ano
10 Resíduos em vários estágios de
decomposição, muitos resíduos
bem decompostos
5. Cor, odor e matéria orgânica
1 Pálido, odor químico e ausência
de húmus

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5 Marrom-claro, sem odor, alguma
presença de húmus
10 Marrom-escuro, odor de matéria
fresca e abundante, presença de húmus
6. Retenção de água (grau de umidade após irrigação ou chuva)
1 Solo seco, não retém água
5 Grau limitado de umidade por um
curto período
10 Considerável grau de umidade por
um curto período
7. Cobertura do solo
1 Solo exposto
5 Menos de 50% do solo coberto por
resíduos ou cobertura viva
10 Mais de 50% do solo coberto por
resíduos ou cobertura viva
8. Erosão
1 Erosão severa, presença de pequenos
valos
5 Evidentes, mas baixos sinais de erosão
10 Ausência de sinais de erosão
9. Presença de invertebrados
1 Ausência de atividade de
invertebrados
5 Poucas minhocas e artrópodes
presentes
10 Presença abundante de organismos
invertebrados
10. Atividade microbiológica
1 Muito pouca efervescência após
aplicação de água oxigenada
5 Efervescência leve a média
10 Efervescência abundante

129

Biodiversidade 0204.P65 129 5/4/2007, 10:48


Da mesma forma, dependendo das condições locais, pode-se
propor outros indicadores, além dos descritos na Tabela 3.5.3, com
o objetivo de complementar a caracterização do agroecossistema,
como, por exemplo, o apresentado na Tabela 3.5.443.
Tabela 3.5.4 – Indicadores de sustentabilidade para agroecossistemas –
específico para desenvolvimento de raízes com seus valores e característi-
cas correspondentes

VALOR CARACTERÍSTICAS VALOR


ESTABELECIDO ESTIMADO
Desenvolvimento de raízes
1 Raízes pouco desenvolvidas,
enfermas, curtas
5 Raízes de crescimento limitado,
observam-se algumas raízes finas
10 Raízes com bom crescimento,
saudáveis e profundas, com presença
abundante de raízes finas

Os pontos básicos dessa abordagem residem na ênfase de que


as interações complementares entre os diferentes componentes
bióticos do agroecossistema são de natureza múltipla e que podem
ser utilizadas para induzir efeitos positivos e diretos na sanidade dos
cultivos, na regeneração e/ou aumento da fertilidade e na conserva-
ção do solo.43
Após a atribuição das notas, são construídas tabelas com os
indicadores e os valores atribuídos a cada um deles. Os valores dos
indicadores são, então, somados e divididos pelo número de indica-
dores analisados, obtendo-se assim um valor médio para a sanidade
dos cultivos e um valor médio para a qualidade de solo. Se o valor
médio for inferior a 5 para a sanidade dos cultivos e/ou a qualidade
de solo, considera-se que estão abaixo do valor-limite para a sus-
tentabilidade. Conseqüentemente, algumas medidas deveriam ser
tomadas para melhorar o desempenho dos indicadores que estão com
valores baixos.
Uma outra forma de representar os resultados é a plotagem em
gráficos na forma de radar ou “ameba”, mais fáceis de visualizar os

130

Biodiversidade 0204.P65 130 5/4/2007, 10:48


indicadores individualmente, ao mesmo tempo em que permite a
observação do padrão geral deles. Os valores médios obtidos para
cada indicador são plotados, os pontos são ligados e constrói-se a
“ameba”. Quanto mais próxima a “ameba” estiver da borda do cír-
culo (próximo à nota 10), mais sustentável é o sistema. A “ameba”
mostra também quais indicadores estão fracos (abaixo de 5), permi-
tindo que o agricultor priorize intervenções agroecológicas necessá-
rias para corrigir deficiências nas culturas, no solo ou no sistema,
atuando em pontos específicos que acabam interferindo de maneira
positiva em outros parâmetros.

A aplicação da metodologia de indicadores


de sustentabilidade no Assentamento Mulungu, Itapipoca, Ceará

A aplicação da metodologia Sistema de avaliação rápida da qualidade do


solo e da sanidade dos cultivos foi realizada nos três assentamentos pólo das ativi-
dades do projeto Manejo Sustentável da Agrobiodiversidade nos Biomas Cerrado e
Caatinga, do Programa Biodiversidade Brasil-Itália, durante o ano de 2005.
O projeto tem como objetivo principal o manejo da agrobiodiversidade den-
tro de princípios agroecológicos. Essa metodologia, que enfoca a diversificação
dos sistemas produtivos e a qualidade do solo (como sendo produto da quantida-
de de matéria orgânica e da atividade biológica), é uma ferramenta de avaliação e
monitoramento dos agroecossistemas. Além disso, verificou-se, desde o início, o
potencial da atividade prática para a capacitação dos agricultores em conceitos e
premissas da agroecologia e em pré-requisitos ou atributos básicos dos agroecos-
sistemas que devem ser melhorados e/ou conservados, de modo a mantê-los pro-
dutivos ao mesmo tempo em que se conservam os recursos naturais. Paralelamen-
te, fornece um caminho para a planificação e o planejamento das unidades de
produção. Teve a complementação de entrevistas e questionários básicos sobre
aspectos estruturais, socioeconômicos e organizacionais das comunidades.
A prática foi realizada no Assentamento Mulungu, em Tururu, distrito de
Itapipoca, Ceará, em maio de 2005. O subsistema escolhido, uma lavoura de fei-
jão-de-corda (macassar ou caupi), consorciado com abóbora e mandioca, encon-
tra-se na área coletiva do assentamento onde estão sendo conduzidas as ativida-
des do projeto.
No início da atividade, os possíveis indicadores-padrão das duas listas para
os atributos de manejo dos cultivos e de solo foram apresentados (tabelas 3.5.1 e
3.5.3). Em conjunto, as comunidades escolheram quais os indicadores a serem
determinados e avaliou-se a pertinência de cada um deles.
Na atividade a campo, foram reforçados as características e os conceitos de
cada indicador. Em função de características específicas da comunidade ou área,
alguns indicadores foram suprimidos, considerando-se principalmente a opinião
dos agricultores e suas justificativas.

131

Biodiversidade 0204.P65 131 5/4/2007, 10:48


Em função do número de participantes, eles foram agrupados (cerca de 10
grupos de 7 pessoas) e as notas foram anotadas por um dos participantes designa-
do monitor do grupo. Esse monitor geralmente é um técnico que já tenha acompa-
nhado a atividade em outro momento ou agricultor que tenha se destacado pela
melhor compreensão da atividade.
No campo, as notas foram atribuídas e, após, foram construídas tabelas com
os indicadores e os valores dados a cada um deles. A partir das notas, foram
plotados gráficos em forma de radar ou ameba, representando o estado de cada
indicador. No presente caso, determinou-se a situação inicial ou o tempo zero.
Essas características serão monitoradas anualmente, no decorrer do projeto. Além
disso, a área foi amostrada para as análises química e granulométrica do solo.
O diagrama da qualidade do solo (Figura 3.5.1) evidenciou deficiência na
estruturação do solo, com a presença de poucos agregados visíveis, sendo estes
frágeis e facilmente esboroáveis à pressão dos dedos. O valor médio para esse
indicador, fornecido pela média das notas atribuídas a campo pelos agricultores,
foi de 4,53, abaixo do valor-limite 5, indicativo da necessidade de alguma inter-
venção para a melhoria do seu desempenho.
Verificaram-se também limitações na atividade biológica, tanto pela escas-
sez de elementos da fauna (nota média de 5,83 para presença de invertebrados)
como pela baixa atividade microbiológica, determinada pela efervescência resul-
tante da adição de água oxigenada a amostras de solo (nota média de 4,95) e para
o estado de decomposição dos resíduos, que recebeu nota média de 3,6, indicando
quantidade significativa de resíduos com lenta decomposição. As limitações ob-
servadas se inter-relacionam (decomposição de resíduos e atividade biológica) e/
ou são confirmadas por análises de laboratório: relação entre a agregação do solo
e a classe textural (textura média, com 72% de areia) e teores de matéria orgânica
(1,6 dag.kg-1).
Essas observações estão sendo traduzidas para práticas específicas que
otimizem, entre outros processos agroecológicos, aqueles relacionados com o
aumento do teor de matéria orgânica e melhoria da estruturação e atividade bioló-
gica do solo.
Já o gráfico correspondente à sanidade dos cultivos (Figura 3.5.1) indicou
crescimento menos vigoroso das plantas, alguns sinais de clorose e incidência de
doenças. As médias das notas atribuídas foram de, respectivamente, 6,08; 6,18 e
5,49, todas acima do valor moderado 5. Mais uma vez, as deficiências observadas
permitiram certa associação e relação com processos do agroecossistema.
A atividade, que vem sendo repetida periodicamente, permitiu que os agri-
cultores avaliassem o sistema e as áreas que se destacaram e identificassem os
processos e interações biológicas responsáveis pelo seu desempenho. Além de
caracterizar o estado atual de cada indicador, a prática se apresentou como estra-
tégia e excelente forma de capacitação em agroecologia, introduzindo os concei-
tos de cada atributo e suas implicações para a sustentabilidade do agroecossiste-
ma, definida, de forma bastante simples, como um conjunto de pré-requisitos
agroecológicos que devem ser satisfeitos.

132

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Figura 3.5.1 – Representação gráfica do estado da qualidade do solo e da
sanidade dos cultivos na área de plantio de feijão de corda. Assentamento
Mulungu, Itapipoca, Ceará, maio de 2005.

Conclusão
Esta é uma atividade dinâmica e participativa que permite a
troca de conhecimentos e de percepções. Contudo, a metodologia
empregada ainda é uma ferramenta bastante preliminar, necessitan-
do ser desenvolvida e ajustada. Os agricultores tomam conhecimen-
to dos processos sinérgicos e das interações existentes entre os indi-
cadores determinados, percebendo que o bom funcionamento de uma
determinada área de produção acarreta no bom funcionamento de
outras e que esses sinergismos e interações são responsáveis pelo
bom desempenho do sistema de uma maneira geral. Após a reali-
zação da prática, deve haver uma discussão entre agricultores e
técnicos sobre os problemas mais críticos, que merecem atenção, e
também sobre as possíveis intervenções necessárias para superar
as limitações apontadas pelos indicadores e pelo diagnóstico. A
metodologia apresentada é um passo na direção de permitir que os
próprios agricultores possam observar seus sistemas de forma rá-
pida e tomem decisões direcionadas à melhoria dos atributos que
estão insatisfatórios, melhorando as funções do agroecossistema
como um todo. Permite também que eles percebam e concluam
sobre o nível de sustentabilidade da unidade produtiva, sua evolu-
ção no tempo e a comparação entre unidades produtivas sob dife-
rentes sistemas de manejo, identificando quais os mais saudáveis e
a razão de funcionarem melhor.

133

Biodiversidade 0204.P65 133 5/4/2007, 10:48


NOTAS

1. Fonte: Van Veldhuizen, L.; Waters-Bayer, A.; De Zeeuw, H. Developing technology


with farmers. A trainer’s guide for participative learning. Londres: Zed Books, 1997.
2. Canci, I.J. Relações do conhecimento formal e informal no manejo da agrobio-
diversidade no Oeste de Santa Catarina. Florianópolis-SC: Centro de Ciências
Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina (Dissertação de Mestrado, Pro-
grama de Pós-Graduação em Recursos Genéticos Vegetais), 2006.
3. Fonte: De Boef, W.S. Tales of unpredictable. Institutional frameworks that support
farmer management of agrobiodiversity (PhD thesis). Wageningen: Wageningen
University, 2000. Modificado de: Pimbert, M.P.; Pretty, J.N. Parks, people and
professionals: Putting “participation” into protected area management. In: Ghimire,
K.B.; Pimbert M.P. (eds.) Social change and conservation. Environmental politics
and impacts of national parks and protected areas. Londres: Earthscan Publications,
pp. 298-330, 1997.
Modificado de: Pretty, J.N. Regenerating agriculture. Policies and practice for
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riência de formação, ação e aprendizado promovendo pesquisas participativas “com”
comunidades rurais em Santa Catarina. Eisforia 3 (1), pp. 33-48, 2005.
5. Quiroz, J.; Amores, F.; Suárez, C. Introducción a la metodologia de escuelas de
campo de agricultores (ECA) en manejo integrado del cultivo de cacao en Ecuador.
In: De Boef, W.S.; Thijssen, M. (eds). Manual curso melhoramento participativo
de cacau. Wageningen e Itabuna: Wageningen International e CEPEC, 2006.
6. Virk, D.S., et al. Collaborative and consultative participatory plant breeding of
rice for the rainfed uplands of eastern India. Euphytica 132, pp. 95-108, 2003.
Witcombe, J.R.; Joshi, A.; Goyal, S.N. Participatory plant breeding in maize: A
case study from Gujarat, India. Euphytica 130, pp. 413-422, 2003.
7. Witcombe, J.R.; Virk, D.S. Number of crosses and population size for participatory
and classical plant breeding. Euphytica 122, pp. 451-462, 2001.
8. Os seguintes artigos foram usados como base para a visão geral deste texto:
Almekinders, C.J.M.; Elings, A. Collaboration of farmers and breeders: Participatory
crop improvement in perspective. Euphytica 2001, 122, pp. 425-438, 2003.
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UPWARD. Conservation and sustainable use of agricultural biodiversity: a source
book. Los Baños, The Philippines: International Patato Center–Users’ Perspectives
with Agricultural Research and Development, pp. 271-276, 2003.
Witcombe, J.R.; Joshi, A.; Goyal, S.N. Participatory plant breeding in maize: A
case study from Gujarat, India. Euphytica 130, pp. 413-422, 2003.
Witcombe, J.R., et al. (2006). Participatory plant breeding is better described as
highly client-oriented plant breeding. I. Four indicators of client-orientation in plant
breeding. Experimental Agriculture 41, pp. 1-21, 2005.

134

Biodiversidade 0204.P65 134 5/4/2007, 10:48


9. Hardon, J.; De Boef, W.S. Linking farmers and plant breeders in local crop
development. In: De Boef, W.S., et al. (eds). Cultivating knowledge, genetic diversity,
farmer experimentation and crop research. Londres: Intermediate Technology
Publications Ltd., pp. 64-71, 1993.
10. Almekinders, C.J.M.; Louwaars, N.P.; De Bruijn, G.H. Local seed systems and
their importance for an improved seed supply in developing countries. Euphytica
78, pp. 207-216, 1994.
Bellon, M. The dynamics of crop infra specific diversity: a conceptual framework
at the farmers’ level. Economic Botany 50, pp. 26-39, 1996.
11. Ogliari, J.B. Estratégias de manejo de monogenes de resistência a doenças de
plantas. In: Stadnik, M.J.; Talamini, V. (eds). Manejo ecológico de doenças de
plantas. Florianópolis-SC: CCA/UFSC, pp. 193-220, 2004.
12. Ceccarelli, S., et al. Farmer participation in barley breeding in Syria, Morocco
and Tunisia. Euphytica 122, pp. 521-536, 2001.
13. Bänziger, M.; Betrán, F.J.; Lafitte, H.R. Efficiency of high nitrogen selection
environments for improving maize for lownitrogen target environments. Crop Science
37, pp. 1103-1109, 1997.
14. Ceccarelli, S.; Grando, S.; Hamblin, J. Relationship between barley grain yield
measured in low-and high-yielding environments. Euphytica 64, pp. 49-58, 1992.
15. Thiele, G., et al. Farmer involvement in selection of new varieties: potatoes in
Bolivia. Experimental Agriculture 33, pp. 1-16, 1997.
16. Kist, V. Seleção recorrente de famílias de meios-irmãos em população com-
posta de milho (Zea mays L.) procedente de Anchieta-SC. Florianópolis-SC: Cen-
tro de Ciências Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina (Dissertação de
Mestrado Programa de Pós-Graduação em Recursos Genéticos Vegetais), 2006.
17. Hardon, J. Participatory plant breeding. Outcome of a workshop on participatory
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18. Adaptadas de: Witcombe, J.R., et al. Farmer participatory crop improvement. I.
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19. Subedi, A., et al. Participatory approaches to crop improvement in Nepal. In:
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source book. Los Baños, The Philippines: International Patato Center–Users’
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Agriculture 32, pp. 445-460, 1996.

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23. Biggs, S.; Gauchan, D. The broader institutional context of participatory plant
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Proceedings of the International Symposium on Participatory Plant Breeding and
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Kathmandu: PRGA/CIAT, pp. 61-74, 2001.
24. Witcombe, J.R., et al. Participatory plant breeding is better described as highly
client-oriented plant breeding. I. Four indicators of client-orientation in plant
breeding. Experimental Agriculture 41, pp. 1-21, 2005.
25. Almekinders, C.J.M.; Elings, A. Collaboration of farmers and breeders:
Participatory crop improvement in perspective. Euphytica 2001, 122, pp. 425-438,
2003.
26. Sperling, L., et al. A framework for analyzing participatory plant breeding
approaches and results. Euphytica 122: pp. 439-450, 2003.
27. O título do projeto do Bioversity Internacional (IPGRI) foi “Reforçar a base cien-
tífica de conservação in situ nas unidades de produção familiares de biodiversidade
agrícola” e ele foi executado em nove países (Burkina Faso, Etiópia, Nepal, Vietnã,
Peru, México, Marrocos, Turquia e Hungria). Parceiros principais no projeto nacio-
nal do Nepal foram o instituto govermental com o nome Conselho Nacional para
Pesquisa Agropecuário (NARC) e o organização não-governamental com o nome
Iniciativas Locais para Biodiversidade, Desenvolvimento Rural e Pesquisa (LI-BIRD).
28. “Mother baby trial” – ensaio em que a “mãe” é feita com repetições, como
ensaio experimental, em condições favoráveis, de todo o material que está sendo
testado, enquanto o “nenê” distribui os mesmos materiais do ensaio, em unidades
de produção dos agricultores, mais ou menos como os canteiros de diversidade,
sem repetições. Para os resultados, se observam todos os “nenês” juntos.
29. Sthapit, B.R.; Joshi, K.D.; Witcombe, J.R. Farmer participatory crop
improvement. III. Participatory plant breeding, a case study for rice in Nepal. Expe-
rimental Agriculture 32: 479-496, 1996.
30. Sthapit, B.R., et al. Enhancing biodiversity and production through participatory
plant breeding: setting breeding goals. In: PRGA/CIAT. An Exchange of Experiences
from South and Southeast Asia: Proceedings of the International Symposium on
Participatory Plant Breeding and Participatory Plant Genetic Resource
Enhancement, Pokhara, Nepal, 1-5 May 2000. Kathmandu: PRGA/CIAT, NARC
and LI-BIRD, pp. 29-54, 2001.
31. Machado, A.T. Perspectiva do melhoramento genético em milho (Zea mays L.)
visando eficiência na utilização do nitrogênio. Rio de Janeiro-RJ: Universidade
Federal de Rio de Janeiro (Tese – Doutorado em Genética e Melhoramento de Plan-
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32. Machado, A.T.; Machado, C.T.T. Melhoramento vegetal participativo com ên-
fase na eficiência nutricional. Documentos/Embrapa Cerrados. Planaltina, DF:
Embrapa Cerrados, 2003.
33. Machado, A.T.; Fernandes, M.S. Participatory maize breeding for low nitrogen
tolerance. Euphytica 122, pp. 567-573, 2001.

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34. Soares, A.C., et al. Milho crioulo: Conservação e uso da biodiversidade. Rio
de Janeiro-RJ: AS PTA, 1998.
35. Machado, A.T. As instituições públicas de pesquisa e a conservação dos recur-
sos genéticos. Caderno de Agroecologia, Biodiversidade. Rio de Janeiro-RJ: AS
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36. Prain, G.; Uribe, F.; Scheidegger, U. Small farmers in agricultural research:
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J.; Waters-Bayer, A. Joining farmers’ experiments. Experiences in participatory
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37. Joshi, A.; Witcombe, J.R. Farmer participatory research for the selection of
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38. Sperling, L.; Loevinsohn, M.E.; Ntambovura, B. Rethinking the farmers role in
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pearl millet with farmers in Rajasthan. In: Sperling, L.; Loevinsohn, M.E. (eds).
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Intermediate Technology Publications, 2000.
41. O texto ampliado, com a discussão de cada um dos indicadores está disponível
em:
Machado, C.T.T.; Vidal, M.C. Avaliação participativa do manejo de agroecossis-
temas e capacitação em agroecologia utilizando indicadores de sustentabilidade
de determinação rápida e fácil. Planaltina-DF: Embrapa Cerrados, 2006.
42. Altieri, M.A.; Nicholls, C.I. Un método agroecologico rapido para la evaluación
de la sostenibilidad de cafetales. Manejo Integrado de Plagas y Agroecologia 64,
p. 17-24, 2002.
Nicholls, C.I., et al. Método agroecológico rápido e de fácil acesso na estimativa
da qualidade do solo e saúde do cultivo em vinhedos. Material didático distribuído
no Workshop Fundamentos em Agroecologia, na Rede de Projetos de Agricultura
Orgânica da Embrapa. Rio de Janeiro: Embrapa Agrobiologia, 2004.
43. Altieri, M. O papel ecológico da biodiversidade em agroecossistemas. Alter-
nativas – Cadernos de Agroecologia. Biodiversidade. Rio de Janeiro-RJ: AS-
PTA,. p. 1-6. 1994.

137

Biodiversidade 0204.P65 137 5/4/2007, 10:48


138

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4
MANEJO COMUNITÁRIO
DA AGROBIODIVERSIDADE:
PRÁTICAS E FERRAMENTAS

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140

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4.1 PROCESSOS E FERRAMENTAS DE
DIAGÓSTICO PARTICIPATIVO

Ruud Ludemann e Walter Simon de Boef

Este capítulo visa a introduzir, sucintamente, o uso de diversas


ferramentas de diagnóstico, dentro de um contexto de manejo co-
munitário de agrobiodiversidade e de melhoramento genético parti-
cipativo. Inicialmente, apresenta, em termos gerais, o diagnóstico
rural participativo (DRP). Depois, descreve brevemente cinco gru-
pos de ferramentas.

A HERANÇA DO ENSINO FORMAL E A PRÁTICA DA METODOLOGIA DRP


Os quadros dos serviços de apoio a comunidades e famílias
rurais, que participam nos programas de manejo de agrobiodiversi-
dade, aprendem com mais eficácia quando são seguidos os princí-
pios da educação de adultos. Isso significa que a motivação dos téc-
nicos e lideranças como facilitadores, sua capacidade, seu nível de
conhecimento e experiências e as condições do contexto determi-
nam a eficácia das atividades de facilitação de processos participati-
vos, mais do que o conhecimento do formador e o teor acadêmico do
conteúdo da informação apresentada.
O papel do formador de adultos difere do papel do professor
tradicional, tanto quanto difere o papel do pesquisador “tradicional”
(na procura de processos e padrões subjacentes a um nível funda-
mental) do papel do pesquisador, que procura identificar o que mo-
tiva as pessoas a atuar ou modificar o seu comportamento (sob for-
ma de pesquisa-ação ou pesquisa-sistêmica).
Como a quase totalidade dos quadros que trabalham em servi-
ços de apoio ao setor da agricultura familiar e a grande maioria dos
membros das comunidades rurais têm sido formadas por métodos de
ensino formal tradicional, com forte ênfase em métodos depositórios

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e na transferência de informação, cabe sublinhar a pertinência dos
princípios da educação para adultos. São esses princípios que deter-
minam, também, de maneira decisiva, o impacto positivo da utiliza-
ção das ferramentas do DRP ou a falta de sucesso na sua aplicação.

DIAGNÓSTICO RÁPIDO E DIAGNÓSTICO RURAL PARTICIPATIVOS


Em geral, organizações governamentais e não-governamentais
de pesquisa e de extensão referem-se ao DRP como “diagnóstico
rápido participativo”. Neste livro, denominamos esse termo de “diag-
nóstico rural participativo” porque, em nossa opinião e experiên-
cia, um diagnóstico participativo necessita de tempo para ser reali-
zado de forma verdadeiramente participativa. Percebemos que em
muitas das ocasiões, como as descritas em Santa Catarina, de fato, o
DRP foi bastante rápido, enquanto o processo de aprendizagem com-
partilhada, com um grau elevado de posse e controle sobre o diag-
nóstico pela própria comunidade, com os agentes de extensão e/ou
pesquisa operando como facilitadores, toma mais tempo do que su-
gere o “rápido”, na perspectiva convencional do DRP.

CONDICIONANTES NAS ATIVIDADES E UTILIDADE DAS INFORMAÇÕES


Para se atingir bons resultados numa sessão de formação ou na
aplicação do DRP, deve ser criado um ambiente no qual os partici-
pantes:
• Estejam dispostos a compartilhar experiências, opiniões e
perspectivas, e queiram analisar e discutir estes elementos do seu
saber.
• Possam participar e influenciar a programação dos eventos,
tendo voz nas decisões a serem tomadas.
• Sintam-se motivados para identificar fatores, contribuindo
ou contrariando a realização de certos objetivos, e queiram buscar
soluções aos problemas assim identificados.
• Queiram sistematizar e analisar as suas experiências a fim de
encontrar soluções adequadas às suas situações.

A informação e o saber fazer são elementos necessários para


induzir a ação ou para convencer as pessoas a alterar o seu compor-
tamento. Mas na prática são, sobretudo, a motivação interna, a par-

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ticipação e a utilidade da informação que fazem isso. Tanto os for-
madores de adultos como os profissionais que utilizam técnicas e
ferramentas participativas do DRP têm que criar e fomentar oportu-
nidades que permitam aos participantes do grupo-alvo encontrar,
eles próprios, as soluções. Aprender e participar por meio de ação
própria – experimentando, descobrindo, fazendo – é muito mais im-
portante do que o aporte e a apresentação de informações por parte
de especialistas que repassam o seu conhecimento por meio de pa-
lestras, de aulas centralizadas ou de conferências.

O DRP, SUA ORIGEM E APLICAÇÃO


O DRP pode ser caracterizado como uma atividade sistemáti-
ca, semi-estruturada, conduzida no meio rural por uma equipe mul-
tidisciplinar visando à coleta rápida e eficaz de informação e à veri-
ficação de hipóteses relativas aos modos de vida e ao manejo de
recursos no campo. Ele nasceu de múltiplas tentativas e experiên-
cias para conceber uma metodologia que pudesse facilitar ao máxi-
mo a comunicação e a colaboração entre indivíduos da população
rural, técnicos de serviços de extensão e outras pessoas de fora do
meio rural interessadas em iniciativas para melhorar as condições
de vida no campo.
Um DRP pode servir a diferentes propósitos, mas todos os
métodos e ferramentas utilizados visam a maximizar a participação
e o engajamento da população rural, em todas as fases da identifica-
ção de problemas, da priorização dos tópicos da pesquisa, da execu-
ção da mesma e da promoção de inovações no meio rural. A
metodologia DRP pode ser utilizada para explorar uma situação es-
pecífica; por exemplo, identificar a problemática com a qual um
grupo está lidando; em seguida, iniciar, apoiar e fortalecer um pro-
cesso para enfrentar essa situação e, na sequência, facilitar a tomada
de decisões a fim de encontrar soluções satisfatórias.
Outra função potencial de um processo DRP pode ser o acom-
panhamento de ações e iniciativas empreendidas por certos grupos
de indivíduos, associações ou entidades que estão tentando fomen-
tar ou melhorar aspectos da sua situação particular. Qualquer que
seja o propósito específico do DRP em questão, sempre estará pre-
sente maximizar o engajamento e a participação ativa por parte dos

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membros da comunidade, sendo eles sujeitos e protagonistas princi-
pais das ações e tentativas de melhorar a situação empreendida. O
objetivo de todas as iniciativas DRP é capacitar as pessoas para que
elas conheçam e possam lidar da forma mais adequada com as deci-
sões e atividades que afetam diretamente a qualidade de suas vidas.

AS RAÍZES DA ABORDAGEM DRP


O conjunto dos métodos e ferramentas conhecido como a me-
todologia DRP tem características em comum com outras técnicas
similares e aparentadas, como:
1. Pesquisa-ação participativa: Um gênero de abordagens e
métodos que utiliza a técnica de diálogo e de pesquisa-ação para
facilitar a conscientização e fomentar a autoconfiança das pessoas,
a fim de promover a capacidade de autogestão das suas ações.1
2. Análise de agroecossistemas: Essa metodologia foi desen-
volvida inspirada na abordagem sistêmica e ecológica. Combina
análise de sistemas e características de sistemas (produtividade, es-
tabilidade, sustentabilidade, eqüitatividade) com análise de padrões
espaciais, temporais, fluxos, relações, valores e processos de toma-
da de decisões.2
3. Antropologia aplicada: Antropólogos sociais ajudaram es-
pecialistas em desenvolvimento rural a apreciar a riqueza e a valida-
de dos conhecimentos e experiências da população rural.3

ASPECTOS RELEVANTES NA CONDUÇÃO DO DRP


Diálogo em vez do debate. Um princípio básico em processos
participativos é o estímulo ao diálogo entre profissionais e a popula-
ção rural, mas também entre os próprios membros das comunida-
des. As ferramentas costumam criar uma atmosfera para que o diá-
logo aborde problemas e suas possíveis soluções. O foco no diálogo
difere do debate, em que os participantes tomam posições opostas.
Com esse enfoque, se tem uma abordagem construtiva. O diálogo
também é fundamental para estabelecer uma conexão entre os siste-
mas científicos e locais de conhecimento, trabalhando, assim, com
ambos para o ajuste a uma situação local.
Trabalho em equipe. O trabalho de planejamento, execução e
seguimento de um DRP é feito em equipe; é um empenho de sinergia

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e de complementaridade. É importante observar continuamente as
percepções dos membros da equipe e das pessoas com quem se está
trabalhando para, assim, buscar aplicar uma abordagem sistêmica
holística.
Visualização. Técnicas de visualização são usadas para facili-
tar a comunicação entre profissionais e os participantes do meio ru-
ral e também estimular o diálogo. Essas técnicas incluem vários for-
matos, como tabelas ou matrizes, mapas, fluxogramas e diagramas.
As técnicas de visualização criam um grupo dinâmico no qual todos
participam. Os técnicos facilitam as reuniões, conduzindo os parti-
cipantes ao longo de uma série de etapas metodológicas. Um grupo
dinâmico fornece resultados de melhor qualidade do que os resulta-
dos obtidos, por exemplo, por meio de entrevistas individuais. A
pressão social contribui para a confiabilidade dos dados.4
Participantes. As ferramentas podem ser aplicadas a uma di-
versidade de cenários. No campo, com um(a) agricultor(a) indivi-
dual, em casa, com a família dos agricultores, na comunidade, com
um grupo selecionado, ou em uma reunião, com partes interessadas
chave. Os participantes das atividades dependem exclusivamente
do objetivo do diagnóstico. Em alguns casos, é importante identifi-
car os participantes de forma estratificada; por exemplo, quando o
tópico do encontro trata de um determinado problema de doença num
cultivo, é importante incluir um grande número de agricultores. Se a
qualidade da água de um rio for o tópico do encontro, é importante
incluir representantes de todas as famílias que vivem perto do rio,
excluindo, assim, algumas famílias que não vivenciam o problema.
Grau adequado de imprecisão. É muito útil determinar o grau
de detalhe da informação necessária para se estar suficientemente
informados e, ao mesmo tempo, evitar uma sobrecarga de informa-
ção. A triangulação da qualidade de informações provenientes de
fontes diferentes pode contribuir, de maneira significativa, para a
identificação de diferenças na percepção por parte dos vários gru-
pos, organizações e indivíduos envolvidos no tópico central do DRP.
Facilitador. O facilitador é de grande relevância no processo
participativo. Significa que o técnico guia o processo, mas deixa as
decisões de todas as etapas ao grupo envolvido. Com freqüência isso
é difícil, pois os profissionais, por sua natureza, tendem a transferir a

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tecnologia ou a dizer ao agricultor o que fazer. No diagnóstico partici-
pativo, entretanto, esse fluxo de informação é invertido. Deve-se cons-
cientizar não somente o profissional dessa mudança de atitude. Os
agricultores e a comunidade rural estão acostumados a receber instru-
ções, dos agentes de extensão ou pesquisadores, acerca de como fazer;
portanto, às vezes eles relutam em aceitar outra modalidade de comu-
nicação. Transparência e explicação clara dos objetivos da reunião
ajudam todos a participar em uma forma diferente de comunicação.

AS FERRAMENTAS DO DRP
Muitas vezes, a metodologia DRP refere-se a um conjunto de
métodos participativos como uma “caixa de ferramentas”. Os méto-
dos podem ser utilizados por pessoas com distintos níveis de expe-
riência. Porém, a eficácia e a pertinência da aplicação das várias
ferramentas diferem conforme a experiência e o grau de “saber fa-
zer” de quem as aplica.
Há cinco aspectos importantes a serem considerados no uso
eficaz das ferramentas:
1. Criatividade: Elas devem ser usadas de maneira criativa,
ajustando-as à situação particular do processo. Uma improvisação
inspirada nas condições locais pode apresentar melhores resultados
do que uma aplicação cega e rígida de regras preconcebidas.
2. Interação: Para que os participantes do DRP compreendam
e consigam comunicar melhor as suas idéias, percepções e preocu-
pações, é preciso estimular a interação, de forma que cada um se
sinta envolvido e motivado para se expressar.
3. Repetição: Várias ferramentas podem ser utilizadas para ob-
ter informações sobre um mesmo tema ou tópico de pesquisa. Os va-
riados métodos facilitam às pessoas se expressarem de distintas ma-
neiras, contribuindo com mais informações a respeito de um mesmo
assunto ou de aspectos que eles consideram estar relacionados.
4. Informalidade: É fundamental estabelecer um ambiente in-
formal de colaboração, evitando (ou reduzindo) projeções e expec-
tativas habitualmente provocadas pelo modelo clássico de especia-
listas que “sabem” e grupos-alvo de ações que “não sabem nada”.
5. No local: Visitar as pessoas em suas comunidades, ou acom-
panhá-las aos locais que apresentam um interesse específico para

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elas, auxilia a conhecer o ambiente físico e as condições ecológicas
e de infra-estrutura em que vivem.

FERRAMENTAS PARTICIPATIVAS
Os seguintes grupos de ferramentas participativas estão dispo-
níveis:
• Mapas;
• História e tempo;
• Tabelas ou matrizes para a caracterização;
• Aspectos sociais e institucionais;
• Aspectos específicos da agrobiodiversidade.

Mapas: Eles ajudam a visualizar territórios em diferentes esca-


las, focalizando recursos e informações específicas. O grupo partici-
pativo pode ser uma comunidade, vizinhos, grupos de interesse ou
uma família. Eles podem ser alocados em diferentes épocas, incluindo
mapas do passado, do presente e do futuro. São exemplos de mapas:
unidade de produção; comunidade; recursos naturais (água, floresta,
etc.); distribuição das espécies, cultivos e/ou variedades; fluxos de
sementes e de variedades; e mapa de transecto (caminhada).
Ferramentas tratando de história e de tempo: O exemplo
mais importante é a linha do tempo. Ela utiliza o conhecimento dos
participantes sobre as mudanças ao longo do tempo que são signifi-
cativas à comunidade e a influência de um aspecto específico sendo
trabalhado. Os participantes podem ser desde uma família até uma
comunidade. O gradiente de idades dos participantes desempenha
um importante papel quando se trabalha com história. Outras ferra-
mentas que trabalham com aspectos de tempo são: calendário de
cultivos; tabela histórica de uma comunidade; e linha do tempo, re-
lacionando o acesso a variedades, um sistema específico de cultivo
ou eventos que influenciem um sistema de cultivo (doenças, por
exemplo).

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Quadro 4.1.1
Ferramenta participativa Linha do tempo utilizada no programa de
agrobiodiversidade em Santa Catarina (2005-2006)

Fabiana Thomé da Cruz,


Karine Louise dos Santos e Volmir Kist

Esta ferramenta foi aplicada individualmente nas unidades de produção ou


em reuniões com a comunidade, em grupos de no máximo 10 pessoas para facili-
tar a dinâmica de trabalho (ver Capítulo 6.5). A partir do diálogo e da reflexão, os
agricultores lograram: (i) levantar os fatos mais marcantes para a história da co-
munidade e das famílias, bem como os principais problemas e potencialidades
locais; (ii) reconhecer a perda gradual da diversidade de cultivos e da autonomia
no processo produtivo; (iii) sensibilizar-se e demonstrar interesse em resgatar
variedades locais e em recuperar a autonomia; (iv) identificar instituições impor-
tantes para as comunidades, em complemento a outras ferramentas, como o Dia-
grama de Venn e (v) analisar o tema agrobiodiversidade, o resgate e a troca de
experiências entre agricultores. Em uma das comunidades foi utilizada a linha do
tempo direcionada, adaptada do Gráfico Histórico da Comunidade.5 Essa ferra-
menta foi utilizada para otimizar o tempo disponível para o encontro e direcionar
a discussão para as mudanças que ocorreram na comunidade em relação à agro-
biodiversidade desde antes da colonização até os dias de hoje.

Tabelas ou matrizes: Têm como objetivo avaliar, com um


grupo de participantes, os critérios, as preferências e os conheci-
mentos básicos sobre assuntos específicos (variedades, sistemas de
cultivo, doenças, oportunidades de mercado, etc.). Os participan-
tes podem ser grupos de agricultores estratificados ou de interesse.
Se o tema for variedades, é possível concentrar o trabalho em agri-
cultores experimentadores ou inovadores. Outras ferramentas asso-
ciadas às tabelas ou às matrizes são caracterizações de aspectos es-
pecíficos. Um exemplo é a caracterização das unidades de produ-
ção. O objetivo de cada exercício é determinar os diferentes ní-
veis socioeconômicos e ambientais, os critérios de sustentabili-
dade de unidades de produção e quais são os níveis de acesso aos
recursos naturais. Os informantes das experiências ou são os par-
ticipantes individuais ou são os representantes de diferentes gru-
pos. Outros tipos de tabelas ou de caracterizações são: tabela de
preferência e classificação (variedades, plantas medicinais); tabela
de tomadas de decisões sobre os recursos naturais – biodiversi-

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dade; tabela de classificação de unidades de produção e recursos
e caracterização de práticas de manejo.
Ferramentas tratando de aspectos sociais e institucionais:
Elas auxiliam a ter uma visão da comunidade, por exemplo, na
estratégia em lidar com problemas específicos identificados pelos
próprios membros da comunidade. Tais ferramentas podem ser úteis
para identificar parceiros ou famílias com vistas a planejamentos e
ações participativas. Os grupos podem ser famílias individuais ou
representantes da comunidade. Um exemplo é o Diagrama de Venn.
O objetivo desta ferramenta é aprender sobre as organizações e
grupos ativos dentro da comunidade e entender suas relações e
interações. Os resultados desta ferramenta podem auxiliar na es-
colha de atores para ações participativas e na distribuição de res-
ponsabilidades. Os participantes podem ser representantes da co-
munidade ou das famílias. Caso haja representantes de institui-
ções é melhor separar os grupos, a fim de permitir atuações distin-
tas dos grupos formados. Outras ferramentas relacionadas aos as-
pectos sociais e institucionais são: classificação por nível econô-
mico; mapas de serviços; mapa de intercâmbio e de fluxos.
Ferramentas tratando de aspectos da agrobiodiversidade:
A análise participativa de quatro-células é uma ferramenta eficiente
para avaliar a diversidade de espécies ou as variedades disponíveis
na unidade de produção ou na comunidade (ver Capítulo 4.5). O
objetivo é analisar a biodiversidade para tomar decisões comuni-
tárias de manejo e de conservação. Os participantes podem ser re-
presentantes da família ou de um grupo específico. O resultado
pode ser usado para a comunidade tomar decisões ou na escolha
das estratégias de conservação ou melhoramento. Outras ferramen-
tas relacionadas à agrobiodiversidade são: caracterização da agro-
biodiversidade; análise de redes de sementes e fluxogramas.

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Quadro 4.1.2
Ferramenta participativa Matriz de cultivos e variedades
utilizada no programa de agrobiodiversidade em Santa Catarina
(2005-2006)

Fabiana Thomé da Cruz,


Karine Louise dos Santos e Volmir Kist

Esta ferramenta proporciona amplo levantamento de dados e conduz ao de-


bate de temas relevantes para a comunidade. Ela ajuda a identificar a diversidade
importante na alimentação humana e animal, tanto de plantas quanto de animais.
Também revela a dependência em relação à aquisição de sementes, proporciona in-
tercâmbio de informações e estimula o interesse em resgatar variedades perdidas.
Os participantes podem ser separados por grupos de interesse. Por exemplo,
na comunidade do Rio da Prata, município de Anitápolis, Santa Catarina, a sepa-
ração foi por gênero – o grupo dos homens elaborou a tabela de caracterização e
de uso das plantas cultivadas (figura 4.1), enquanto as mulheres elaboraram tabe-
la semelhante, de plantas medicinais. Os relatos demonstraram a constante troca
de mudas e sementes tanto no município como em encontros estaduais e nacio-
nais sobre plantas medicinais. A tabela provou ser uma ferramenta útil para ini-
ciar a discussão com o objetivo de inventariar a diversidade em nível de cultivos
e variedades. E, em particular, provou ser um apoio importante aos participantes
em sua identificação dessa biodiversidade, bem como para ter uma visão geral do
fluxo de materiais de plantas dentro da comunidade. Especialmente quando se
refere a levantamento de plantas medicinais, mas também de variedades raras, o
uso de espécies e variedades torna-se mais importante para o diagnóstico. A tabe-
la é o primeiro passo para desenhar o mapa da diversidade (Figura 4.1.2) e a
subseqüente análise de quatro-células (Figura 4.5.3).

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Figura 4.1.1 – Tabela da agrobiodiversidade elaborada pela comunidade
Rio da Prata, no município de Anitápolis.

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Quadro 4.1.3
Ferramenta participativa Mapa da comunidade – agrobiodiversidade e
sua distribuição, utilizada no programa de agrobiodiversidade em Santa
Catarina (2005-2006)

Fabiana Thomé da Cruz,


Karine Louise dos Santos e Volmir Kist

O mapa da comunidade permite a localização geográfica das famílias na


comunidade e também a identificação daquelas que ainda conservam variedades
locais e podem contribuir como nucleadoras de agrobiodiversidade. Durante o
desenho do mapa, muitos agricultores retrataram as unidades de produção dos
vizinhos que não estavam presentes no encontro, pois conheciam as espécies e
variedades presentes na comunidade, aspecto que intensificou o intercâmbio de
informações e a cooperação.
Em Anitápolis, a equipe de trabalho propôs a associação do mapa da agro-
biodiversidade e sua distribuição na comunidade com a tabela da agrobiodiversi-
dade. Com base nas informações constantes na tabela, foi desenhado o mapa da
diversidade comunitária. O desenho de alocação das culturas anuais foi feito pelo
grupo de homens, enquanto as mulheres alocaram as plantas medicinais. A troca
de informações a partir do uso dessa ferramenta possibilitou a descoberta de cul-
tivos e variedades dadas muitas vezes como perdidas. Além disso, o envolvimento
e entusiasmo da comunidade geraram discussão e reflexão sobre o tema.

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Figura 4.1.2 – Mapa da comunidade do Rio da Prata no município
de Anitápolis mostrando a distribuição da agrobiodiversidade

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CONCLUSÃO
Quando a aplicação da metodologia DRP é realizada levan-
do-se em conta os aspectos relevantes discutidos anteriormente, o
diagnóstico obtém dados significativos sobre a situação das comu-
nidades e da agrobiodiversidade, gerando entusiasmo e facilitando
a participação.
A apropriação e a familiarização com o DRP e sua “caixa de
ferramentas” requerem tempo e acompanhamento sistemático em
sua aplicação para se obter melhores resultados no entendimento da
agrobiodiversidade, seu manejo e uso pelos agricultores familiares
e/ou comunidades. A flexibilidade das ferramentas proporciona um
amplo levantamento de dados e conduz ao debate de temas relevan-
tes para a comunidade.
Uma relação mútua de aprendizado e confiança entre facilita-
dores, instituições e agricultores é uma exigência dessas ferramen-
tas, capazes de fortalecer programas de resgate da agrobiodiversida-
de, promover a construção coletiva de alternativas para a agricultura
familiar e, ao mesmo tempo, estimular a conquista gradual da auto-
nomia das comunidades rurais.

4.2 MANEJO COMUNITÁRIO DA AGROBIODIVERSIDADE

Abishkar Subedi, Pitamber Shrestha, Pratap K. Shrestha,


Resham Gautam, Madhusudan P. Upadhyay,
Ram Rana, Pablo Eyzaguirre e Bhuwon Sthapit

O manejo comunitário da biodiversidade é uma abordagem


participativa para reforçar o poder dos agricultores e das institui-
ções locais em prol de benefícios sociais, econômicos e ambientais
para a comunidade e para o público em geral, fortalecendo a tomada
de decisão comunitária na conservação e uso dos recursos comuni-
tários da biodiversidade. Em nível de comunidade, ela enfoca os
temas que aumentam a sua capacidade de analisar aspectos relacio-
nados à qualidade de vida e aos problemas e a buscar e implementar

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soluções respeitando o uso e a conservação de recursos genéticos da
biodiversidade agrícola, em particular, e da biodiversidade em geral.
Reconhece e apóia instituições locais e as comunidades, legitimando-
as e colocando-as como atores essenciais no sistema de recursos ge-
néticos de plantas e no contexto mais amplo de biodiversidade e do
desenvolvimento. As comunidades são fortalecidas para exercer os
seus direitos de acesso seguro e de controle sobre os seus recursos
genéticos. Essa é uma abordagem profunda que objetiva gerar um
sistema sustentável de manejo da biodiversidade.

HISTÓRICO
Em nível mundial, o conjunto da biodiversidade agrícola está
sob os cuidados e manejo das comunidades rurais. Com o objeti-
vo de manter e aumentar o valor da biodiversidade agrícola como
um recurso para os povos rurais pobres e para a humanidade como
um todo, as comunidades e as instituições precisam ser apoiadas,
fortalecidas e auxiliadas a acessar e manejar a sua biodiversida-
de agrícola para contribuir no seu sustento. As comunidades ru-
rais que dependem de biodiversidade também precisam colaborar
com outras agências, receber novos conhecimentos e materiais de
outras instituições parceiras e de comunidades envolvidas no ma-
nejo da agrobiodiversidade. O objetivo de tal processo é assegu-
rar que as comunidades tenham a capacidade de manejar a sua
biodiversidade agrícola, uma vez que elas dependem e continuam
influenciando na formação e na adaptação da diversidade parti-
cular para satisfazer as suas necessidades, conforme os distintos
ambientes.
A falta de poder sobre os próprios recursos é a pior forma de
pobreza. Isso nega o acesso às informações e recursos para a sua
sobrevivência. A pesquisa formal e os programas de desenvolvimento
costumam falhar quando não envolvem os agricultores e/ou não for-
talecem a capacidade das comunidades locais para o manejo dos
seus recursos de biodiversidade. A pouca capacidade dos agriculto-
res e das comunidades para tomar decisões em assuntos relaciona-
dos ao manejo e à conservação da biodiversidade agrícola e para
implementar decisões são problemas que freqüentemente impedem
os esforços organizados dos agricultores para acessar conhecimento,

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informação, tecnologia, capital, recursos genéticos, mercados e ou-
tros parâmetros de qualidade de vida.
O manejo comunitário da biodiversidade é uma abordagem
participativa da comunidade, dirigida para fortalecer a capacidade
dos agricultores e das comunidades rurais para manejar a biodiver-
sidade visando ao benefício social, econômico e ambiental da uni-
dade de produção e da comunidade. A abordagem fortalece o poder
dos agricultores e das comunidades para se organizarem, desenvol-
verem estratégias e planos que apóiem o manejo e conservação da
agrobiodiversidade nas unidades de produção familiares, como sis-
temas sadios de sementes, de bancos comunitários de semente, de
feiras de diversidade, de feiras de semente e registros comunitários
da biodiversidade. Também reforça o papel dos agricultores como
melhoristas de plantas. Esse método resulta num maior controle da
comunidade sobre os seus recursos, com o aumento da capacidade
para a conservação nas unidades de produção e de opções sustentá-
veis de modos de vida com seleção cuidadosa e apropriada de insumos
externos e de riscos. A abordagem de manejo comunitário de biodi-
versidade ajuda os agricultores e as comunidades a manejar e utilizar
a diversidade de maneira sustentável. Está especialmente relacionada
a facilitar processos sociais, como redes sociais, instituições comuni-
tárias e ação e decisão coletiva que contribuem para a conservação e
a utilização dos recursos da biodiversidade da comunidade. Por exem-
plo: redes sociais de sementes desempenham um papel fundamen-
tal, determinando o acesso às sementes e à informação. A aborda-
gem de manejo comunitário da biodiversidade está baseada nos
resultados, indicando que a grande diversidade de sementes rústi-
cas depende das práticas e costumes dos agricultores e das tradi-
ções e necessidades de sustento. Tudo isso interfere no movimento
de genes entre unidades de produção, dentro e entre comunidades,
e sobre amplas áreas geográficas.

METODOLOGIA
O empoderamento da comunidade é a estratégia fundamental
da abordagem de manejo comunitário de biodiversidade. Dentro
desse contexto, empoderamento da comunidade significa dar supor-
te a processos de tomada de decisão e ao controle dos recursos da

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própria comunidade. Tem como objetivo construir a capacidade dos
agricultores ou usuários da comunidade e as suas instituições, de
modo a aumentar o seu poder na tomada de decisão, assegurando o
seu controle sobre os recursos necessários para o manejo comunitá-
rio sustentável da biodiversidade. Os elementos fundamentais que
formam a base do manejo comunitário da biodiversidade são:

I. Conhecimento sobre biodiversidade e paisagens associadas.


II. Sistemas sociais que facilitem a manutenção e a troca dos
recursos genéticos pelos agricultores.
III. Instituições locais que apóiem e gerenciem localmente o
acesso à biodiversidade.
IV. Tecnologias, processos e práticas que agreguem valor aos
recursos genéticos locais.
V. Recursos financeiros locais, como poupanças e créditos, que
assegurem a sustentabilidade na continuidade de boas práticas.
VI. Conexões necessárias com instituições apropriadas que sus-
tentarão o acesso a esses recursos.

O manejo comunitário da biodiversidade é uma abordagem que


conduz o processo e constrói a capacidade existente nas comunida-
des de agricultores/usuários. A seguir, são enfocados os passos ne-
cessários para estabelecer e promover a abordagem de manejo co-
munitário da biodiversidade. A Figura 4.2.1 explica essa abordagem
e os passos que poderiam constituir um programa que facilita e apóia
o manejo comunitário de agrobiodiversidade.

157

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Figura 4.2.1 – Processo e boas práticas de conservação da
diversidade de cultivos locais nas unidades de produção familiares.6

Etapa 1: Conscientização e capacitação: Geralmente, o pri-


meiro passo é o aumento da consciência e a educação do público
sobre o valor da conservação da agrobiodiversidade. Isso desempe-
nha um papel crucial para motivar as comunidades rurais, desenvol-
vendo e implementando estratégias de conservação baseadas na co-
munidade. As ações individuais de manejo agrícola são amplamente
orientadas a ter como fim a sustentabilidade nos modos de vida;
apesar de tais ações poderem contribuir para a conservação, por si
só não a asseguram. A consciência e a capacitação guiam e unem
indivíduos para mostrar a sua responsabilidade social e para que
contribuam nas ações comunitárias, objetivando a conservação co-
munitária da agrobiodiversidade.

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Biodiversidade 0204.P65 158 5/4/2007, 10:48


Etapa 2. Entendimento do contexto local: O foco da aborda-
gem manejo comunitário da biodiversidade ocorre em nível local,
para demonstrar a relevância da atividade. Como primeiro passo, a
feira de diversidade (Capítulo 4.3) é uma prática para entender o
contexto local e também pode ser usada para localizar a diversida-
de, os guardiões, o conhecimento básico dos agricultores e assim
por diante. Então, uma avaliação participativa da agrobiodiversidade
é feita, usando-se o método de análise participativa quatro-células
(Capítulo 4.5), envolvendo os membros da comunidade no processo.
O método auxilia os membros da comunidade e as organizações a
identificar recursos genéticos raros e únicos; a entender as razões dos
agricultores, determinando a extensão e a distribuição da diversidade
de cultivos locais; a identificar os recursos biológicos importantes,
que desempenham papéis relevantes na alimentação local e, final-
mente, a permitir que eles diversifiquem as suas opções de sustento
e as estratégias de conservação.
A análise participativa de redes sociais de sementes (Capítulo
4.6) é usada para identificar agricultores nodais, que desempenham
papéis importantes no fluxo informal de materiais genéticos e co-
nhecimentos associados dentro e fora das comunidades agrícolas. A
análise também auxilia a entender as características de agricultores
nodais. Essas redes de agricultores nodais foram consideradas insti-
tuições locais “importantes” para a estratégia de conservação nas
unidades de produção familiares e na utilização comunitária dos re-
cursos genéticos de plantas. Descobriu-se que os agricultores nodais
são responsáveis pela introdução e manutenção de grande quantida-
de da diversidade genética em suas unidades de produção, e outros
agricultores dependem da diversidade de materiais genéticos deles.
Etapa 3: Construindo a capacidade de instituições da comu-
nidade: A abordagem manejo comunitário da biodiversidade para a
conservação e a utilização de agrobiodiversidade é construída por meio
da capacidade dos agricultores de organizarem-se institucionalmente
na comunidade. A identificação de instituições comunitárias (pelo Dia-
grama de Venn), inclusive os grupos de agricultores, e a avaliação das
suas atividades e inovações apontaram que o manejo dos recursos ge-
néticos de plantas é feito para planejar e implementar programas para
o fortalecimento da capacidade destas instituições. A análise das for-

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Biodiversidade 0204.P65 159 5/4/2007, 10:48


ças, fraquezas, oportunidades e ameaças (FOFA) das organizações com
base comunitária é realizada para identificar a capacidade de constru-
ção necessária a essas instituições (Diagrama de Venn). São organiza-
dos treinamentos, baseados em comunidades e programas de orienta-
ção, visando ao repasse de conhecimento e capacidades para avaliar as
suas próprias necessidades, estabelecer prioridades com base nos recur-
sos disponíveis, preparar um plano de trabalho e implementar a parti-
cipação dos membros da comunidade. As organizações comunitárias
de base que facilitam o manejo comunitário da biodiversidade em pro-
jetos de conservação nas unidades de produção familiares têm sido ca-
pacitadas visando a desenvolver princípios e códigos de conduta local-
mente adequados para o manejo, o acesso e a repartição de benefícios
dos recursos genéticos de plantas da comunidade.
Etapa 4: Estabelecendo as modalidades de trabalho institu-
cional: A conservação e a utilização dos recursos genéticos em uma
comunidade é governada por normas socioculturais e valores preva-
lentes naquela comunidade. Quando o manejo comunitário da biodi-
versidade faz intervenções, como organização de feiras de diversidade
ou estabelecendo bancos de semente nas comunidades (Capítulo 4.3),
é necessário ter cuidado para que estejam em acordo com os sistemas
sociais, os valores e as normas. Vários métodos participativos, como
seminários municipais e exercícios de auto-avaliação da comunida-
de, são usados para definir papéis e responsabilidades das instituições
locais de base comunitária e para identificar as instituições fundamen-
tais e suas redes, para a coordenação. São fixadas normas institucio-
nais, preparadas de acordo com o plano de trabalho, e identificados
indicadores da comunidade para monitorar o desempenho. As insti-
tuições comunitárias são encorajadas a estabelecer o comitê de ma-
nejo comunitário da biodiversidade, integrado pelos membros da
comunidade de agricultores familiares e das instituições de base
comunitária, para coordenar e implementar as estratégias e planos de
manejo. Esse comitê reforça, também, os códigos de conduta estabe-
lecidos para o manejo dos recursos genéticos da comunidade (Qua-
dro 4.2.1). A capacidade do comitê é fortalecida para estabelecer
conexões institucionais, como buscar recursos dos fornecedores de
serviço de fora da comunidade, visando a apoiar o trabalho de manejo
dos recursos genéticos da comunidade.

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Quadro 4.2.1 – Princípios essenciais de manejo comunitário da biodiver-
sidade, desenvolvidos por uma instituição local (Município de Begnas,
Nepal)

i. Cada membro deve trocar duas variedades locais por ano, no mínimo.
ii. Cada membro deve participar do programa de crédito grupal.
iii. Cada membro deve usar adubo orgânico e um mínimo de agrotóxicos,
para conservar a biodiversidade associada e os polinizadores.
iv. A comunidade deve ter um registro comunitário de biodiversidade para
identificar fontes de sementes, conhecimento tradicional associado, documenta-
ção e troca de experiências.
v.Os membros da comunidade com menos recursos e as mulheres têm prio-
ridade para implementar o plano de execução do manejo comunitário de biodiver-
sidade.

Etapa 5. Consolidando os papéis no planejamento e na im-


plementação: Nos processos de planejamento, o manejo comunitá-
rio da biodiversidade incentiva os programas a partir da base, orien-
tados pelas necessidades da comunidade, identificadas localmente.
O comitê coordena a formulação e a ordenação dos planos de ação
do manejo da biodiversidade, planejando por meio de seminários
nos municípios e discussões de grupo de foco, envolvendo os mem-
bros da comunidade e instituições locais no processo. As atividades
são organizadas, além disso, para fortalecer a capacidade dos mem-
bros do comitê e as instituições de base da comunidade para coorde-
nar a implementação dos planos de ação do manejo da biodiversida-
de e para mobilizar os recursos e fundos internos e externos à comu-
nidade. Várias práticas baseadas na ação comunitária para a conser-
vação e a utilização dos recursos genéticos evoluíram a partir de
projetos de manejo comunitário e estão cada vez mais sendo
interiorizadas dentro dos planos de ação comunitários. Essas práti-
cas incluem feira de biodiversidade, registro comunitário da biodi-
versidade, bloco de diversidade, kits de diversidade, banco de se-
mente comunitário e produção de sementes de variedades locais.
Essas práticas são apresentadas, em detalhes nos capítulos 4.3 e 4.4.
Etapa 6. Estabelecendo fundos: A implementação dos pla-
nos de ação de manejo comunitário da biodiversidade não somente
requer ação coletiva dos membros da comunidade, mas também de
recursos financeiros para adquirir os serviços necessários. Assim,

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Biodiversidade 0204.P65 161 5/4/2007, 10:48


um fundo de manejo comunitário da biodiversidade é parte inte-
grante da abordagem de manejo comunitário da biodiversidade, vi-
sando à conservação e à utilização dos recursos genéticos da comu-
nidade. Nos componentes do projeto in situ do Bioversity Interna-
tional com parceiros locais no Nepal7, tal fundo foi criado por meio
de contribuições do projeto, como os recursos da venda de semen-
tes. Esse fundo passa a ser administrado pelo comitê em esquemas
de poupança e crédito em que os membros da comunidade recebem
créditos para a utilização na produção orientada para a conservação
dos recursos genéticos. O interesse gerado por tal ajuda de investi-
mento faz com que o fundo cresça e passe a utilizar parte disso para
o seu próprio gerenciamento. O fundo pode se tornar parte do es-
quema de acesso e repartição de benefícios, com parte dos benefí-
cios que se originam do uso dos recursos genéticos comunitários
indo diretamente para ele e sendo, posteriormente, usado para o bem-
estar da comunidade. O fundo tem sido eficaz na organização de
membros da comunidade, no desenvolvimento das unidades de pro-
dução, em programas e na motivação para implementar as ações. É
importante fortalecer a capacidade do comitê em gerenciar fundos.
É bastante útil a transparência no livro-caixa e o treinamento em
princípios de contabilidade.
Etapa 7. Sistema comunitário de monitoramento e de ava-
liação: Desenvolver os indicadores de monitoramento e avaliação e a
concordância nos procedimentos para monitorá-los, com participação
ativa das comunidades rurais é um componente importante da aborda-
gem. O projeto in situ no Nepal7 tem auxiliado o comitê a organizar
reuniões de revisão e seminários itinerantes, envolvendo regularmen-
te os membros da comunidade. De forma similar, o calendário das
atividades, preparado em acordo com a comunidade de agricultores,
foi considerado uma ferramenta efetiva para planejar e monitorar as
atividades. A documentação de boas práticas também é incentivada,
pois amplia a área geográfica e o contexto social do aprendizado.
Etapa 8. Aprendizagem social e a ampliação para a ação
coletiva: A etapa final da abordagem manejo comunitário da biodi-
versidade está na ampliação das boas práticas de manejo comunitá-
rio da biodiversidade, para incluir um número maior de agricultores
e de comunidades agrícolas, adotando/adaptando tais práticas. É útil

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Biodiversidade 0204.P65 162 5/4/2007, 10:48


organizar, a cada doze ou 24 meses, reuniões sociais de aprendiza-
gem, para revisar os avanços, trazer as intervenções bem-sucedidas
e os fracassos e identificar as inovações e práticas que podem ser
aplicadas em outras unidades de produção e comunidades. A publi-
cação de uma revista comunitária, as feiras de biodiversidade, rádios
rurais, organização de viagens de agricultores e seminários têm sido
eficazes para o aumento da disseminação de agricultor para agricul-
tor. A síntese da aprendizagem social e das boas práticas tem sido
efetiva para informar aos políticos responsáveis pela tomada de de-
cisão e influenciar a criação de um ambiente real de apoio.

LIÇÕES ADQUIRIDAS E ASSUNTOS QUE EMERGIRAM


Várias práticas de conservação e de utilização, como o registro
comunitário da biodiversidade, o banco de sementes comunitário, os
canteiros de diversidade, a produção e propagação de sementes de
variedades locais, a agregação de valor por processamento e a divul-
gação de produtos obtidos a partir de variedades locais, entre outras,
foram institucionalizadas de forma complementar. A seleção varietal
participativa e o melhoramento genético participativo foram usados
para aumentar a competitividade de sementes rústicas localmente
adaptadas. Os comitês e outras organizações comunitárias de base
evoluíram fortemente e têm coordenado ativamente os programas de
manejo comunitário da biodiversidade e outras atividades. Os fun-
dos do manejo comunitário da biodiversidade também foram estabe-
lecidos e têm sido efetivamente usados para beneficiar os membros
da comunidade. Muitos dos agricultores socialmente excluídos e as
mulheres das famílias com menos recursos começaram a participar e
a se beneficiar dos programas do manejo comunitário da biodiversi-
dade. Mulheres que nunca participavam de reuniões públicas e ex-
pressavam suas opiniões tornaram-se atuantes nas atividades sociais.
Elas ganharam acesso a sementes e a um pequeno crédito, sem ter
que depositar qualquer garantia, para comprar cabras, aves, aumen-
tando a contribuição da produção na renda familiar.
Os resultados iniciais da abordagem de manejo comunitário
da biodiversidade têm mostrado a eficácia do fortalecimento das
comunidades agrícolas, aplicando uma ampla gama de práticas para

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Biodiversidade 0204.P65 163 5/4/2007, 10:48


a conservação e a utilização dos recursos de agrobiodiversidade des-
sas comunidades. A efetividade das instituições baseadas na co-
munidade poderia ser melhorada, futuramente, organizando-se as
conexões ativas e a parceria com a pesquisa e as instituições de
desenvolvimento que trabalham no campo do manejo da agrobio-
diversidade. O apoio técnico para melhorar a qualidade das se-
mentes no banco de semente e a conexão do banco comunitário
de semente com o banco de germoplasma nacional são áreas que
precisam de atenção adicional. O valor adicional de incentivo à
conservação foi reconhecido como uma estratégia efetiva dentro
da abordagem do manejo comunitário da biodiversidade para con-
servação e utilização dos recursos genéticos locais. Para um com-
promisso e dedicação de longo prazo, são requeridas futuras vali-
dações relativas ao sucesso da abordagem adicional. Igualmente,
a capacidade de construção não acontece da noite para o dia. Re-
quer compromisso contínuo, sobretudo no gerenciamento de re-
cursos financeiros e humanos, buscando fundos para apoiar e au-
mentar as atividades deles. Atualmente, o manejo comunitário da
biodiversidade está sendo promovido pelas organizações comuni-
tárias em base individual e isso pode apresentar dificuldades em
alinhar-se com estrutura de manejo compatível à do governo, cau-
sando problemas especialmente no momento de aplicar mecanis-
mos de acesso e repartição de benefícios e na operacionalização
dos fundos de crédito.

4.3 FERRAMENTAS PRÁTICAS QUE ESTIMULAM O


MANEJO COMUNITÁRIO DA AGROBIODIVERSIDADE

Bhuwon Sthapit, Abishkar Subedi e Resham Gautam8

Estimular o manejo comunitário da biodiversidade pelo uso de


ferramentas práticas fortalece os agricultores e as instituições locais
e contribui para o desenvolvimento sustentável. Isso ocorre em vir-
tude dos benefícios sociais, econômicos e ambientais decorrentes.

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Este capítulo discute algumas ferramentas úteis para, em nível das
comunidades, despertar a consciência, desencadear ações locais de
manejo e desenvolver capacidades no sentido de propiciar maior
autonomia e facilitar tomadas de decisão em aspectos de conserva-
ção e de uso da biodiversidade. As ferramentas apresentadas, em
relação à conceituação, à metodologia de aplicação e às lições apren-
didas são: feira da diversidade, canteiro da diversidade, kits de di-
versidade e banco de sementes comunitário.

FERRAMENTA 1: FEIRA DA DIVERSIDADE


As feiras da diversidade ajudam a identificar áreas de alta diver-
sidade e a maioria das espécies ameaçadas de extinção ou variedades
locais. Reconhece também os reais possuidores da diversidade gené-
tica e do conhecimento associado a ela. A feira da diversidade é uma
prática na qual estão envolvidos diversos atores de origens geográfi-
cas distintas e em arranjos institucionais múltiplos. Por isso, fornece
um bom foro – que se mantém com o passar do tempo – e um
espaço que aumenta e cria a diversidade genética dos cultivos. Isso
assegura sua disponibilidade para os agricultores e outros atores,
visando à melhoria da qualidade de vida em base sustentável. A
participação na feira da diversidade tornou-se uma atividade de
orgulho para agricultores individuais e comunidades rurais, já que
podem exibir seus ricos recursos genéticos e seus conhecimentos
tradicionais a convidados e a outros agricultores. É um dos melho-
res foros para criar consciência e interesse sobre a importância e o
valor dos recursos genéticos locais de plantas, atingindo parceiros
diversos. Além disso, afeta favoravelmente cientistas, pesquisado-
res, empresários e políticos.
O que é? A feira de diversidade é uma ferramenta participati-
va para criar consciência pública sobre o valor e a utilidade da con-
servação das sementes tradicionais, reunindo agricultores de diferen-
tes comunidades para exibir sua gama de variedades locais; faz com
que o sistema tradicional de sementes e a transmissão de conhecimen-
tos continuem sendo mantidos. Isso também vale para feiras da bio-
diversidade, feiras de sementes, festivais de sementes, feiras agríco-
las, etc. Tradicionalmente, os mercados locais de sementes e as fei-
ras constituem uma importante parte da rede comunitária de troca de

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Biodiversidade 0204.P65 165 5/4/2007, 10:48


sementes nos povoados de muitos países em desenvolvimento. No
Nepal, os mercados locais e os haat bazaar (feiras semanais)
oportunizam a troca de sementes e de conhecimentos e, junto com as
feiras agrícolas, ainda são usados para manter, no mercado, um sis-
tema sadio de sementes. O conhecimento indígena e tradicional sobre
o manejo dos recursos genéticos locais nas unidades de produção
começou a erodir. Um dos objetivos para se iniciar a organização das
feiras da diversidade é incentivar os agricultores a compartilharem in-
formações e sementes na sua própria localidade, permitindo-lhes uma
escolha mais ampla de variedades e mantendo um alto nível de bio-
diversidade. Geralmente, é organizado um evento de competição, de
forma a estimular as comunidades locais a manterem a alta diversi-
dade de cultivos e a trazerem para exibição as variedades com carac-
terísticas únicas. Essa é também uma boa oportunidade para os pes-
quisadores e extensionistas identificarem os possuidores dessa diver-
sidade e aprenderem mais sobre conhecimento tradicional.
Os objetivos da feira da diversidade são:
• Criar uma consciência pública sobre o valor da diversidade
local de cultivos.
• Localizar as áreas das principais diversidades e identificar as
espécies raras e com características únicas.
• Identificar os detentores importantes de alta diversidade ge-
nética chave e as razões por que as conservam.
• Promover, na comunidade, a troca de sementes e conheci-
mentos como base da aprendizagem social.
• Melhorar o acesso ao germoplasma raro.
• Documentar o nome das variedades, o conhecimento asso-
ciado aos usos e outros valores para o registro da biodiversidade da
comunidade.
• Educar e influenciar as gerações mais jovens, bem como os
políticos e administradores, sobre o valor da biodiversidade agrícola.

METODOLOGIA
As instituições locais (grupos de mulheres; organizações co-
munitárias de base; organizações de povos indígenas; grupos de
agricultores; clubes; escolas, etc.) organizam a feira da diversi-
dade com a ajuda técnica de pesquisadores e profissionais de de-

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senvolvimento. O diagnóstico rural participativo é utilizado para
obter informações sobre os agricultores que cultivam sementes
rústicas, sobre quando e onde as cultivam e como as mantêm e
as usam. Esses métodos participativos asseguram a aprendizagem
social para a conservação e a utilização da biodiversidade agrí-
cola. São diversas as etapas a serem seguidas na organização das
feiras da diversidade:
Etapa 1: Planejamento participativo. Devem ser feitas: (i) a
sensibilização das comunidades de agricultores, dos extensionistas
e dos pesquisadores sobre o propósito da feira da diversidade; (ii)
uma série de reuniões de planejamento participativo com institui-
ções-chave e (iii) a decisão detalhada sobre as etapas e procedimen-
tos, incluindo as opções para os prêmios. Essa fase de interação,
com os membros da comunidade local, grupos de agricultores ou
organizações comunitárias de base é muito importante para discutir
o conceito, o propósito e o apoio financeiro para a feira da diversi-
dade. É necessária, também, uma reunião para identificar e realizar
acordos com a instituição-foco local para a co-organização da feira.
Em nível da comunidade, deve-se buscar compartilhar e planejar
amplamente a feira da diversidade. Deverão ser formulados os prin-
cípios que orientam a feira e os critérios para a seleção das comuni-
dades participantes. A escolha de local e data apropriados deve ser
feita em parceria com a instituição local.
Etapa 2: Preparação para fixar as normas e os procedi-
mentos. É essencial que as normas e os procedimentos sejam
transparentes devido à natureza de competição da atividade. As
informações devem ser amplamente divulgadas aos diferentes ní-
veis. Devem ser definidas zonas agroecológicas para eleger os
participantes da feira da diversidade. Diferentes normas devem
ser usadas para diferentes localidades, para que sejam adequadas
às condições locais. Devem ser fornecidos, para cada amostra, o
nome da variedade, as características de distinção e o endereço
dos seus possuidores, as informações de passaporte dos materiais,
as razões específicas para o cultivo e as características interes-
santes. Sementes ou materiais de plantio com origem entre os
membros do grupo deverão ser sujeitas à verificação in situ, se
houver contestação. Uma apresentação oral do valor e da impor-

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tância das variedades locais deve ser feita à banca de jurados. É
necessária ampla divulgação de todas as informações da feira aos
agricultores, tais como data, local e critérios da feira da diversi-
dade, usando vários meios de comunicação, como rádio rural, jor-
nais, carros de som, cartazes nas escolas, etc., com bastante an-
tecedência. Aos potenciais competidores devem ser explicados os
critérios para avaliação nas diferentes categorias e as regras ge-
rais para exibição ou competição. É importante fornecer aos mem-
bros participantes orientação sobre os materiais expostos, as infor-
mações compartilhadas, a identificação de materiais, o número e
os tipos de prêmios, as regras e os regulamentos para a feira; dis-
tribuir as informações de logística e materiais ao comitê de agri-
cultores, com os papéis e as responsabilidades de cada um e or-
ganizar sessões práticas para preencher as planilhas de informa-
ção. As comunidades locais devem ser incentivadas a usar os
materiais locais, de forma que a feira possua características ét-
nico-culturais próprias. A imprensa deve ser convidada, junto
com celebridades locais, políticos e administradores municipais,
empresários, comunidades vizinhas e estudantes para visitar as
instalações da feira. Um comitê de avaliação deve ser formado
e deve definir os critérios para a avaliação.
Etapa 3: Implementação. Alocação dos espaços para cada
grupo de agricultores junto com os materiais a serem expostos. As
inscrições de campo e os materiais inscritos precisam ser verifica-
dos. A inauguração da feira deve ser realizada pelo convidado de
honra. Os agricultores e convidados devem ser conduzidos a visitar
os estandes e ajudados a compartilhar as informações e os conheci-
mentos associados aos materiais exibidos. A instituição local deve
ser incentivada a se integrar ao espetáculo cultural para atrair mais
participantes e compartilhar o conhecimento por meio de canções,
poemas e teatro.
Etapa 4: Avaliação participativa. A avaliação dos materiais
expostos por cada grupo deve ser feita antes do evento formal; se
possível, com um dia de antecedência, notificando-se os vencedores
de acordo com as categorias de prêmios ou recompensas. A cerimô-
nia da distribuição de prêmios deve ser iniciada pelo convidado de
honra. Deve ser mantida, ou atualizada, a base de dados/inventário

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da diversidade de cultivos locais no registro comunitário da biodi-
versidade, para futuro monitoramento.
As avaliações das feiras agrícolas são preparadas por especialis-
tas de fora da comunidade, tecnicamente capacitados em tecnologias
de melhoramento de novas sementes. A composição dos jurados deve
incluir no mínimo um agricultor nodal com bom conhecimento, um
especialista em recursos genéticos de plantas, um profissional da agri-
cultura, uma ONG, um comerciante, pessoas do local e um pesquisa-
dor do projeto. O grupo de avaliação também deve desenvolver um
conjunto de critérios para avaliação dos prêmios. Isso pode variar,
novamente, de acordo com os especialistas e a situação local. Os cri-
térios principais a serem considerados são:
• Número de sementes locais exibidas pelo grupo, ou agricul-
tor, em cultivos-alvo (40%).
• Qualidade da informação e sua autenticidade (30%).
• Estilo de apresentação e qualidade do conhecimento (15%).
• Raridade da variedade exibida (10%).
• Grau de participação de mulheres (5%).

O peso dado para cada critério e os indicadores avaliados em


cada um deles podem ser acordados mutuamente ou desenvolvidos
pela banca. Antes do evento, a informação precisa ser compartilha-
da com todos os grupos participantes, durante o tempo de orienta-
ção e de preparação para a feira da diversidade.
Lições aprendidas. Em geral, a nomenclatura dos agricultores
sobre as variedades não é consistente dentro das comunidades e entre
elas. Assim, para assegurar a autenticidade da nomenclatura utilizada
nas espécies ou variedades durante a exibição na feira da diversidade,
deve ser realizada uma verificação a campo por meio de visita à uni-
dade de produção durante a safra do cultivo. Os membros das organi-
zações comunitárias de base precisam visitar as unidades de produção
potenciais para avaliar a diversidade in situ; porém, isso só é possível
quando as instituições locais tomam a iniciativa e entendem que o pro-
pósito principal da feira é incentivar os agricultores a manter alta ad-
versidade, bem como espécies e variedades raras.
As espécies raras, únicas, ou variedades identificadas e coleta-
das durante a feira da diversidade podem ser úteis para os programas

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de conservação ex situ e servem também para preparar um inventá-
rio de recursos genéticos de cultivos. As feiras de diversidade forta-
lecem o sistema sadio de fornecimento de sementes, identificam as
principais fontes informais de fornecimento de sementes dentro do país
e ajudam a entender as razões econômicas, culturais, religiosas de me-
lhoramento e de valores ecológicos de se cultivar diversos recursos
genéticos. Também estimula a comunidade local a ter controle sobre os
seus recursos genéticos e desenvolve o senso de propriedade do ban-
co genético da comunidade, unindo os sistemas informais e formais de
fornecimento de sementes. As feiras da diversidade, inicialmente finan-
ciadas por organizações governamentais e não-governamentais, com o
tempo podem se tornar financeiramente auto-suficientes.

Quadro 4.3.1
A Festa do Milho Crioulo em Anchieta

Adriano Canci, Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto e Ivan José Canci

O objetivo principal da Festa do Milho Crioulo – assim denominada porque o


milho crioulo é o símbolo de Anchieta – é promover a agrobiodiversidade e mostrar
que existe outra proposta política e técnica para a agricultura do Brasil. A idéia,
surgida em 1999, reuniu agricultores e técnicos para organizar a 1ª Festa Estadual
do Milho Crioulo9 (20/05/2000), que teve a participação de 17 expositores e cerca
de 5.000 visitantes, procedentes de 60 municípios de 5 estados brasileiros.
A festa seguinte (6-7/04/2002), a primeira em âmbito nacional, foi intitulada
1ª Festa Nacional do Milho Crioulo (1ª Fenamic). Esse evento contou com a ex-
posição de 228 variedades de milho crioulo, das quais 33 foram produzidas em
Anchieta, e de 943 variedades de diversas outras espécies. Como demonstração
inequívoca da importância do tema, cerca de 15.000 pessoas, oriundas de 20 esta-
dos brasileiros, junto com os agricultores de Anchieta, participaram, expuseram e
intercambiaram sementes e saberes, em 64 bancas. Agricultores de outros países
da América Latina se fizeram representar. Praticamente toda a comunidade local
participou da organização, por meio das diferentes comissões, criando um espaço
de troca de experiências, de geração de auto-estima e de solidariedade entre pes-
soas e povos.10 A 2ª Fenamic11 (24-25/04/2004) teve tamanho semelhante à ante-
rior, com representantes de um número maior de países sul-americanos, além de
representantes da África e da Europa.

A participação dos movimentos sociais


Diferente no conteúdo, na proposta e no método é a festa que promove a
participação e redefine valores. As experiências resgatam sementes crioulas de
várias espécies. É a festa da biodiversidade, com características próprias, revela-

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das pela comida feita à base do milho crioulo e o artesanato elaborado a partir da
palha. A cultura, enquanto modo de vida, entrelaça-se à história do milho, à troca
de sementes, aos estudos e debates sempre presentes, traduzindo-se na permanen-
te luta dos Movimentos Sociais, especialmente os do Campo. É uma festa que
aponta caminhos novos, sinalizando a possibilidade real de vida no planeta Terra.
A participação dos movimentos sociais do campo na Fenamic faz parte da
campanha internacional “Sementes: Patrimônio dos Povos a Serviço da Humani-
dade”, que visa a mostrar o trabalho de resgate das sementes crioulas, cultivadas
e conservadas por camponesas e camponeses de geração em geração. Para os
movimentos, a participação significa, acima de tudo, um espaço de luta pela
conscientização de seus membros, bem como da própria sociedade, quanto à im-
portância do resgate das sementes e do consumo de produtos agroecológicos.
Além disso, a feira é um espaço coletivo de formação. Na 2ª Fenamic acon-
teceu também o “Encontro Nacional de Formação Camponesa”. Por meio de
seminários para capacitação em saúde, meio ambiente, ALCA, reforma agrária,
biotecnologia, entre outros temas, os movimentos sociais se fortalecem.

FERRAMENTA 2: CANTEIRO DE DIVERSIDADE


Canteiro de diversidade é um canteiro experimental das varieda-
des de agricultores manejadas por uma instituição local de pesquisa e
desenvolvimento. O canteiro não é só usado para medir e analisar ca-
racterísticas agromorfológicas. Ele também valida os descritores dos
agricultores, que são convidados a acompanhar o canteiro de diversi-
dade no campo e a verificar se as nomenclaturas e descrições são con-
sistentes. O canteiro de diversidade também tem a vantagem adicional
de chamar à consciência pública. Plantando-se materiais, estes podem
ser multiplicados e utilizados para a troca de germoplasma, a produção
de semente de variedades raras, a coleção destinada à conservação ex
situ e a regeneração para o banco comunitário de sementes.

Objetivos. Os objetivos do canteiro de diversidade podem ser:


• Avaliar a consistência dos nomes dados pelos agricultores e
as características de distinção das variedades.
• Validar os descritores utilizados pelos agricultores, convidan-
do-os para que acompanhem o canteiro de diversidade no campo.
• Avaliar a diversidade das variedades, utilizando característi-
cas agromorfológicas.
• Sensibilizar a comunidade local sobre a importância da pró-
pria comunidade manejar a biodiversidade e criar consciência das
riquezas associadas a ela.

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• Multiplicar os materiais de cultivo para a pesquisa e para
propósitos de desenvolvimento.
• Repatriar as variedades locais antigas e trocar materiais e o
conhecimento tradicional associado.

Metodologia. O canteiro de diversidade é uma parcela expe-


rimental que contém uma repetição de cada variedade local e é
implantado em uma unidade de produção familiar. Essa é uma abor-
dagem prática para cultivos anuais, visando a demonstrar para a
comunidade a riqueza de variedades locais. O mesmo conceito pode
ser aplicado no jardim de biodiversidade, parque ou campo de culti-
vos perenes e de olerícolas. O tamanho dos canteiros é variável,
dependendo dos cultivos, da área disponível e do número de varie-
dades presentes. Esse método foi inicialmente delineado para culti-
vos anuais como arroz, milheto, feijão, etc.
Como estabelecer um canteiro de diversidade? O estabeleci-
mento e o sucesso de um canteiro de diversidade dependem do interesse
e do nível de consciência da comunidade local sobre a importância da
agrobiodiversidade. Porém, as seguintes etapas podem ser efetivas no
estabelecimento de um canteiro funcional de diversidade.
Etapa 1: Colecionar amostras de sementes (50-200g por varie-
dade, dependendo de cultivo); coletar, durante as feiras de diversi-
dade, as informações essenciais relativas à origem da amostra (va-
riedade), o nome da variedade, os descritores dos agricultores, o
nome do agricultor, o habitat, a altitude, o nome de localidade, o
valor especial de uso.
Etapa 2: Relembrar os objetivos e os benefícios potenciais do
canteiro da diversidade e verificar, na comunidade, instituições lo-
cais interessadas em plantar e manter o canteiro de diversidade em
um lugar público estratégico e representativo.
Etapa 3: Orientar os membros da comunidade para o delinea-
mento simples do campo; plantar e colocar identificação e escolher
uma pessoa para manejar o canteiro. É essencial realizar um treina-
mento conceitual e prático para assegurar a condução e o armazena-
mento correto das sementes.
Etapa 4: A produção deve ser conduzida no sistema de manejo
dos agricultores. Se a diversidade de sementes for muito alta, na

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multiplicação das sementes deve-se selecionar prioritariamente as
raras, as com caracterísitcas especiais e as ameaçadas, visando, tam-
bém, a melhorar a consciência e o aumento da demanda por essas
sementes. Também podem ser incluídas as variedades portadoras de
nomes incompatíveis, para avaliar as características morfológicas
distintas e validar os nomes.
Etapa 5: Manter um cartaz de exibição com o objetivo desta
atividade e os nomes das variedades individuais.
Etapa 6: Conduzir um dia do campo no canteiro de diversida-
de com os agricultores interessados e conhecedores, pesquisadores
e grupos de crianças para:
• Promover a troca de conhecimento e reconhecer a variedade
por meio dos descritores dos agricultores.
• Verificar a consistência, entre as comunidades e municípios,
dos nomes da variedade dados pelos agricultores.
• Avaliar a demanda da semente para futuros plantios.
• Coletar as sementes raras e únicas para conservação ex situ.
• Regenerar sementes para o banco comunitário de sementes.
• Identificar plantas para seleção participativa de variedades
ou melhoramento genético participativo.
• Promover agroecotourismo.
Etapa 7: Colher as sementes e armazená-las no banco comuni-
tário de sementes. Distribuir as sementes em excesso para kits de
diversidade, para pesquisa, e aos agricultores interessados que quei-
ram multiplicar e compartilhar as sementes, na próxima safra, com
pelo menos cinco vizinhos. Além disso, manter um canteiro de di-
versidade de cada cultivo como um banco genético de campo para
demonstração, avaliação e aumento da quantidade de sementes para
o ano subseqüente. Isso pode ser sustentável se a comunidade reco-
nhecer o valor do exercício e fizer uma conexão com o banco comu-
nitário de sementes; a comunidade pode promover, além disso, ati-
vidades para produção de sementes.
Etapa 8: Atualizar o banco de dados do registro comunitário
da biodiversidade, incentivar os participantes para a conservação
nas unidades de produção familiares e apoiar o aumento de semen-
tes derivadas de variedades locais.
Lições aprendidas. O canteiro de diversidade tem um grande
potencial de sucesso em áreas com: (i) alta intervenção tecnológica;

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(ii) acesso limitado de informação e germoplasma e (iii) redes de
interação comunitárias fortes. O canteiro de diversidade pode pro-
ver um fornecimento constante de sementes para esses ambientes,
assegurando uma produção relativamente alta até mesmo em áreas
marginais de cultivo. Também é útil fortalecer as redes comunitá-
rias de sementes para permitir interação social e o planejamento para
a produção e comercialização das sementes.
O canteiro de diversidade executado e direcionado pelas co-
munidades rurais é uma ferramenta efetiva de manejo e que contri-
bui para o uso sustentável da agrobiodiversidade. Baseia-se no co-
nhecimento local e é manejado a um baixo custo pela comunidade
local. A capacidade da comunidade precisa ser fortalecida para fo-
calizar os maiores problemas técnicos e financeiros. A comunidade,
contudo, não tem demonstrado problemas no gerenciamento do can-
teiro de diversidade, mesmo na ausência de orientação para diversi-
ficar e aumentar as opções de sustento que usam recursos naturais,
sociais, humanos e financeiros.

Quadro 4.3.2
Ensaios e canteiros de diversidade nos municipios de Novo Horizonte,
São Lourenço e seis outros do Oeste catarinense

Volmir Kist, Adriano Canci, Olavo Guedini,


Alírio Carléssi e Fernando André Risso

No curso em agrobiodiversidade conduzido pelo NEABio e Wageningen


International, sugeriu-se aos participantes implantar experimentos regionais com
variedades de milho como forma de incentivar atividades sobre agrobiodiversida-
de. Os ensaios e os canteiros de diversidade, com variedades de milho crioulo, em
oito municípios do Oeste de Santa Catarina, constituíram-se de 16 variedades
crioulas e 3 de polinização aberta, desenvolvidas pela Epagri.

Ensaios de diversidade
As mesmas variedades foram testadas em dois ensaios, com quatro
reaplicações. Um deles foi implantado em uma estação experimental do Centro
de Pesquisa para a Agricultura Familiar (CEPAF), da Epagri, em Chapecó, e
outro, no estabelecimento da família de um jovem agricultor, membro da equipe
de agrobiodiversidade no município de Novo Horizonte. As unidades foram
implantadas, avaliadas e colhidas pelas equipes de agrobiodiversidade locais e
pelos próprios membros da comunidade. O ensaio na unidade de produção fa-

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miliar, em fase de conversão de sistema convencional para o agroecológico, foi
constituído por 18 variedades de milho, sendo cada uma repetida quatro vezes,
no desenho experimental de blocos ao acaso. Simultaneamente, entre as linhas
do milho foram plantadas sementes de feijão-guando-anão, de feijão-de-porco, de
mucuna-anã, de feijão lab-lab, de crotalárias, de soja preta e de feijão-arroz como
adubação de cobertura. Ele foi avaliado de distintas maneiras pela equipe local e
pelos agricultores do município, sob a orientação dos membros do NEABio em
duas oportunidades, durante o ciclo de desenvolvimento do milho. Na primeira,
conscientizando os agricultores e a equipe local sobre a importância da experi-
mentação para a avaliação do potencial agronômico das variedades de milho. Pos-
teriormente, estimulando a discussão sobre suas características, avaliando e faci-
litando a troca de conhecimentos entre os participantes.

Canteiros de diversidade
Como os estabelecimentos rurais dos agricultores participantes do projeto
distavam bastante entre si, decidiu-se implantar dois canteiros de diversidade nos
municípios de Novo Horizonte e São Lourenço e mais sete nos outros municípios
que participaram do programa. Esses canteiros serviram para que os agricultores
das redondezas tivessem acesso ao conhecimento das diferentes variedades de
milho que estavam sendo cultivadas no ensaio e observassem o comportamento
das características qualitativas.

Avaliação das variedades de milho


A condução do ensaio de variedades de milho permitiu que os agricultores
pudessem avaliar melhor o potencial agronômico e, a partir dessas informações,
adotar estratégias participativas mais adequadas para retomar o cultivo de varie-
dades crioulas e locais. Os técnicos e agricultores avaliaram, na pré-colheita, as
características percentuais de plantas quebradas e tombadas, altura de planta, al-
tura de espiga e número de plantas colhidas por parcela. A avaliação das caracte-
rísticas pós-colheita contemplou o grau de empalhamento e o rendimento de grãos
(kg/ha), com umidade ajustada.

Resultados alcançados
Os ensaios e os canteiros de diversidade do milho foram importantes para
dar início a um processo de aumento da diversidade genética do milho nesses
municípios. As ações devem ser ampliadas, visando a agregar valor ao produto,
como uma estratégia eficiente de incentivar a manutenção da diversidade de espé-
cies e de variedades. Além de estimular o cultivo de variedades locais e crioulas,
a unidade de demonstração de milho também poderá servir de referência para que
trabalhos similares com outras espécies sejam desenvolvidos, incrementando a
diversidade genética no decorrer do tempo.

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FERRAMENTA 3: KITS DE DIVERSIDADE
O acesso à agrobiodiversidade, a sementes e a uma diversida-
de de variedades é vital para a segurança alimentar e para o desen-
volvimento sustentável. Estudos mostram que o acesso inadequado
à agrobiodiversidade, a sementes e ao conhecimento são as princi-
pais dificuldades enfrentadas por agricultores descapitalizados. A
maioria das intervenções de desenvolvimento nessa área enfoca tec-
nicamente a produção, não considerando questões como acesso fá-
cil a sementes e a variedades desejadas, as quais se ajustam no qua-
dro maior da produção de alimentos sustentáveis. A abordagem do
kit de diversidade facilita o processo evolutivo do manejo da agro-
biodiversidade na unidade de produção e contribui para a qualidade
de vida da comunidade rural.
O que é? Kit de diversidade é uma amostra constituída por uma
pequena quantidade de sementes disponíveis dos diferentes cultivos
dos agricultores. Consiste em sementes colhidas nos canteiros ou blo-
cos de diversidade, institutos de pesquisa ou nos campos de cultivos
dos agricultores; são distribuídos entre os agricultores pelas organiza-
ções na comunidade como um programa anual regular.
Metodologia. A disponibilização de kits de diversidade per-
manece como parte integrante do programa de manejo comunitário
da biodiversidade e está conectada às feiras de diversidade, ao re-
gistro comunitário de biodiversidade, ao canteiro da diversidade,
aos bancos comunitários de sementes e à produção de sementes ba-
seada em práticas comunitárias. Essa atividade funciona bem quan-
do um conjunto de ações é executado em um determinado ambiente.
Instituições locais, como grupos de mulheres, clubes, organizações
comunitárias de base e escolas, são incentivados a desenvolverem
os seus próprios kits de diversidade como ferramenta alternativa da
diversidade na sua vizinhança. Para esse tipo de atividade, é dada
preferência a sementes e mudas locais, pois isso gerará renda imedia-
ta aos possuidores de diversidade e ajudará a obter materiais novos
para outros agricultores. A disponibilidade de materiais genéticos,
incluindo variedades locais geneticamente melhoradas, materiais ge-
néticos de melhoramento avançado e materiais do Melhoramento Par-
ticipativo de Cultivos, é extremamente importante para o sucesso do
manejo comunitário da biodiversidade.

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As etapas gerais da diversidade de cultivos locais são as se-
guintes:
• Conduzir feiras de diversidade com intervalo regular de dois
a três anos.
• Identificar a diversidade rara, a útil e a diversidade com carac-
terísticas especiais, aplicando estratégias de diagnóstico rural partici-
pativo ou análise participativa de quatro-células (Capítulo 4.5).
• Plantar variedades locais identificadas em canteiros de diver-
sidade para caracterização e multiplicação de sementes (em caso de
cultivos como arroz ou feijão).
• Verificar a qualidade, testando a germinação, a viabilidade e
a fitossanidade das sementes recém-colhidas.
• Armazenar entre 5 a 10 kg de sementes nos bancos comunitários
e, com o restante, organizar os kits de diversidade, variando de 100g a
2 kg de sementes cada amostra, dependendo da natureza dos cultivos.
• Distribuir para a comunidade kits de diversidade das varieda-
des locais, raras ou com características especiais e registrar os dados
dos agricultores receptores para futuras distribuições, monitoramento
e cultivo dessas variedades.
• Identificar as instituições locais para a distribuição e o moni-
toramento da diversidade, em nível da comunidade, como um com-
ponente integral do plano de trabalho do manejo comunitário da
biodiversidade.
As seguintes etapas precisam ser modificadas para os cultivos
de olerícolas/perenes e espécies forrageiras. As características prin-
cipais dos kits de diversidade são:
• Desenvolvimento do germoplasma local, que tenha semen-
tes/mudas inacessíveis.
• Promover o cultivo de diversos tipos de cultivares, para pos-
sibilitar a oportunidade de seleção.
• Sistema de monitoramento, para a expansão das variedades.
A etapa essencial é o monitoramento dos kits de diversidade,
pois isso permite aos pesquisadores e técnicos entenderem os fato-
res que afetam a tomada de decisão pelos agricultores em relação à
diversidade escolhida. A abordagem do kit de diversidade é uma
boa prática sustentável de manejo da agrobiodiversidade que man-
tém, aumenta e cria diversidade genética de cultivos e assegura a

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sua disponibilidade entre os agricultores e outras entidades envolvi-
das na melhoria da qualidade de vida de população rural.
Lições aprendidas. O método de kits de diversidade é bem pa-
recido com a abordagem de pesquisa informal e desenvolvimento.
Porém, os kits de diversidade objetivam desdobrar cultivares diver-
sos e espécies visando a aumentar a diversidade e reduzir a vulnera-
bilidade a pragas e doenças. Não há um procedimento único para
kits de diversidade, o que o torna uma abordagem bastante fácil. Os
kits de diversidade terão mais êxito se os seguintes temas forem
enfocados:
• Identificação dos recursos genéticos para a alimentação e a
agricultura, valiosos para os agricultores sem recursos.
• Conexão dos kits de diversidade com os grupos comunitários
de produção de sementes, banco comunitário de sementes e cole-
ções de conservação ex-situ.
• Conexão dos kits de diversidade com escolas, associações de
agricultores e os programas de melhoramento participativo de plantas.
• Treinamento dos agricultores para a seleção e a manutenção
dos princípios do melhoramento.
Setores formais são críticos a essa abordagem, pois vêem os
kits de diversidade como uma fonte de novas pragas e doenças para
os campos dos agricultores. Isso parece ser uma preocupação im-
portante, porque, da mesma maneira que se pode difundir a diversi-
dade de cultivos, podem-se disseminar doenças. Então, construir a
capacidade de instituições locais em fitossanidade de sementes e
quarentena local é essencial para o grupo de produção de sementes
da comunidade, minimizando tais riscos dos bancos comunitários
de semente. Freqüentemente, a distribuição de kits de diversidade é
direcionada aos agricultores mais ricos; porém, esse método, se cor-
retamente implementado, pode ser um modo de inclusão social, as-
segurando acesso e igualdade.

O Kit de Diversidade – motivação para usar e conservar variedades crioulas

Adriano Canci, Volmir Kist e Dirceu Cossa

O projeto de resgate da agrobiodiversidade no município de Guaraciaba,


localizado no Oeste catarinense, foi denominado Kit de Diversidade. Surgiu após

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o plano de desenvolvimento da microbacia hidrográfica de Rio Flores, elaborado
pela Associação de Desenvolvimento da Microbacia/ADM, e foi reforçado após
em um encontro, no segundo semestre de 2005, assessorado pelo NEABio12.
Os agricultores familiares, em quatro comunidades pertencentes a duas
microbacias hidrográficas (300 famílias de Rio Flores e Lajeado Ouro Verde),
receberam um kit de diversidade contendo sementes de distintas variedades de
milho, arroz, feijão e legumes (num total de 1500 kg), produzidas na sua maioria
no município de Guaraciaba pelas famílias sócias das duas Microbacias. A com-
posição dos kits foi definida por meio de um processo participativo de tomada de de-
cisão em cada comunidade, motivado pelo relato das experiências do NEABio, em
Anchieta, e pelo trabalho conduzido pelas organizações do próprio município. Em
conseqüência, a composição variou de uma comunidade para a outra e dependeu, tam-
bém, da disponibilidade de variedades, de sementes e/ou de materiais de plantio.
A diversidade genética foi levantada a partir de um questionário aplicado
aos agricultores, de forma oral, perguntando-se, entre outras questões: (i) quais as
espécies vegetais que eram cultivadas por seus antepassados ou em sua unidade
de produção e hoje não são mais produzidas, e por quê?; (ii) dentre as principais
espécies que eram cultivadas pela agricultura familiar, quantas variedades de cada
espécie eram cultivadas?; (iii) por que esse número foi reduzido?; (iv) quais espé-
cies e variedades vocês gostariam que fossem resgatadas?
A união de lideranças, principalmente a diretoria da Associação de desen-
volvimento da Microbacia/ADM e do Grupo de Animação/GAM, de técnicos e
de colaboradores em torno de um denominador comum facilitou a organização de
uma estrutura de funcionamento do projeto. Ele visa à autonomia de gerencia-
mento pelos próprios agricultores sobre as ações que deverão ser desenvolvidas
nos próximos anos e a priorização das variedades e espécies a serem cultivadas,
para poder iniciar o trabalho imediatamente.
O trabalho sobre o Kit de Diversidade visa a contemplar os seguintes aspec-
tos: (i) preservar a diversidade genética de espécies, aumentar o número de varie-
dades e espécies resgatadas, renovar sistematicamente os estoques de sementes,
aumentar a diversidade de espécies dentro das hortas da comunidade e incorporar
o sistema de troca de sementes como uma atividade rotineira; (ii) despertar a
consciência das pessoas para a produção de alimentos sem agrotóxicos; (iii) me-
lhorar a renda e as condições de saúde e de bem-estar das famílias envolvidas no
projeto; (iv) estimular a independência dos agricultores em relação às instituições
envolvidas no projeto.
Para alcançar essas metas, técnicos, prefeitura, sindicato dos trabalhadores
na agricultura familiar e a comunidade estão discutindo a implantação de uma
feira municipal para os agricultores comercializarem os produtos da diversidade
genética, estimulando a adoção de princípios agroecológicos para produzir ali-
mentos, bem como a prática da condução de pequenos ensaios experimentais para
demonstração.

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FERRAMENTA 4: BANCO DE SEMENTES COMUNITÁRIO
O banco de sementes comunitário está surgindo como uma
opção segura para conservação de cultivos locais na unidade de pro-
dução, para auxiliar intervenções de alta tecnologia em sistemas de
agricultura altamente dependentes de insumos e com ambiente mar-
ginal significativo. Os agricultores são vulneráveis a acidentes natu-
rais, tais como seca e inundações, situações nas quais pode ocorrer
rápida erosão genética dos recursos genéticos de plantas. Em um
banco de sementes comunitário são colecionados germoplasmas de
cultivos locais com importantes informações e conhecimentos asso-
ciados, armazenando, regenerando ou multiplicando segundo as de-
mandas. É uma prática inovadora que conserva as sementes locais e
fornece às comunidades de agricultores a continuidade dos proces-
sos evolutivos locais e segurança alimentar. As sementes são redis-
tribuídas aos agricultores para manterem a diversidade agroecológi-
ca na unidade de produção como estratégia de qualidade de vida e
de contribuição para o manejo dos recursos genéticos importantes
localmente.
Apesar de várias limitações, as sementes tradicionais ainda são
cultivadas para satisfazer as exigências de sementes para o ambien-
te diversificado de plantio e para as necessidades alimentícias. Mas
a área de plantio e o número de sementes tradicionais estão dimi-
nuindo de grandes áreas para pequenas e de muitas unidades de pro-
dução para poucas.
O banco comunitário de sementes é mantido e administrado
localmente, promovendo acesso fácil para controlar os materiais para
o plantio. Sendo uma prática da estratégia e conservação nas unida-
des de produção familiares ou in situ, as sementes locais continuam
evoluindo e se adaptando ao seu habitat local. O banco comunitário
de sementes engloba todas as necessidades de um sistema sadio de
sementes. Um sistema saudável de sementes precisa possuir opções
de diversidade, de estabilidade, de resiliência, de eficiência e de dis-
tribuição eqüitativa.
Metodologia. O banco comunitário de sementes é uma abor-
dagem de manejo comunitário que amplia a prática local de uma
unidade de produção para a comunidade. A idéia principal para o
estabelecimento e o sucesso de um banco comunitário de sementes

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está relacionada com o interesse e a consciência da comunidade lo-
cal sobre a importância da agrobiodiversidade. Porém, o cumpri-
mento das etapas seguintes é importante para o efetivo estabeleci-
mento funcional de um banco comunitário de sementes.
Etapa 1: A comunidade precisa perceber a taxa alarmante de
erosão das sementes rústicas e entender a necessidade da sua con-
servação. Isso pode ser verificado por meio do registro comunitário
da biodiversidade.
Etapa 2: Um comitê para o manejo comunitário da biodiversi-
dade (Capítulo 4.2) deve ser formado para cooperar com os agricul-
tores, a fim de incentivá-los para a conservação da biodiversidade e
a se ocuparem com o manejo do banco comunitário de sementes. Os
papéis desse comitê são o planejamento e a implementação de ativi-
dades nas comunidades que apóiam a qualidade de vida e as ações
de conservação da biodiversidade.
Etapa 3: As regras e os regulamentos relativos ao mecanismo
para coleção de sementes, regeneração, controle de qualidade, acesso
ao material genético e repartição de benefícios devem ser formulados
de acordo com os interesses da comunidade. Devem ser definidos
também os papéis e as responsabilidades dos diferentes participantes
do comitê. Para ser localmente sustentável, as decisões devem ser
tomadas em relação ao contexto, costumes e valores locais.
Etapa 4: Materiais disponíveis localmente podem ser usados
para a construção da estrutura de armazenamento de sementes; o
uso de materiais locais e contribuições fazem com que o manejo
seja localmente sustentável.
Etapa 5: A coleção de sementes locais baseada na informação
de registro comunitário da biodiversidade, nas feiras de diversida-
de, na rede de agricultores nodais, nos familiares e nas comunidades
vizinhas são essenciais para promover um treinamento conceitual e
prático que assegure a própria manipulação e armazenamento de
sementes.
Etapa 6: A distribuição das sementes deve ser baseada em regras
e regulamentos que dêem especial ênfase aos agricultores que não
possuem sementes ou não têm possibilidades para comprá-las. Além
disso, deve ser mantido um bloco de diversidade de cada cultivo,
como um banco genético de campo para demonstração, avaliação e

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aumento da quantidade de sementes para os anos subseqüentes. Deve
ser fornecida orientação suficiente para o usuário do banco de semen-
tes, durante a distribuição e antes da colheita, para manter a qualida-
de e assegurar o retorno das sementes. É importante, além disso,
organizar treinamentos para a seleção de sementes de acordo com o
sistema de reprodução dos cultivos, para incentivar os participantes
à conservação de variedades locais na unidade de produção e para
aumentar o resgate e a preservação das variedades locais.
As lições adquiridas. O banco de sementes comunitário, quan-
do utilizado como ferramenta de apoio ao manejo de biodiversida-
de, no Nepal, resultou em um aumento da coesão social, pois tem
sido administrado por ações de grupos da comunidade. Propiciou,
também, maior prioridade ao acesso de sementes pelos grupos de
mulheres e agricultores com poucos recursos para a compra de se-
mentes. Em conseqüência, aumentou a inclusão social e a distribui-
ção eqüitativa dos benefícios econômicos para a comunidade.
Depois da implementação do banco de sementes comunitário,
aumentaram o número de variedades locais e a diversidade em geral,
e as sementes tornaram-se abundantes e acessíveis. Com o aumento
da agrobiodiversidade, a comunidade participante do projeto, no
Nepal, internalizou os valores da biodiversidade. O banco de semen-
tes comunitário também resultou em um sistema sadio de sementes,
sob o ponto de vista agrícola e biológico. Essas mudanças aumenta-
ram a estabilidade e a resiliência do agroecossistema comunitário.
O banco de sementes comunitário é uma propriedade da co-
munidade, e suas atividades de gerenciamento estão centradas nos
esforços integrados com a mobilização de recursos financeiros lo-
cais, a criação de um fundo de conservação, a geração de renda e de
atividades comunitárias de desenvolvimento, as quais são efetivas e
sustentáveis. Os aspectos sociais, institucionais e financeiros são
elementos importantes para a sustentabilidade. O uso do conheci-
mento tradicional ou do agricultor e o manejo de baixo custo reali-
zado pela comunidade local não exigem apoios técnico e financeiro
maiores. Pode fazer falta um orientador de campo para auxiliar na
fase de implementação do banco de sementes comunitário, que é
essencial para a viabilidade imediata e a sustentabilidade de longo
prazo. O esforço inicial dessa abordagem tem mostrado resultados

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encorajadores para a conservação da agrobiodiversidade nas unida-
des de produção familiares. Conseqüentemente, para melhor utili-
zação das sementes de variedades locais dos diversos cultivos locais
é preciso desenvolver (i) um programa de melhoramento de plantas,
(ii) agências de desenvolvimento agrícola e (iii) um banco comuni-
tário de sementes. Mais adiante, serão necessários pesquisas e es-
forços para assegurar a conservação e a utilização da agrobiodiver-
sidade com aumento simultâneo da renda e melhoria da situação
econômica dos agricultores.

Convivendo no semi-árido com as sementes da paixão13

Paula Almeida e Pablo Sidersky

Desde 1995, a Articulação do Semi-Árido Paraibano vem apoiando e articu-


lando a experiência dos bancos de sementes comunitários no estado da Paraíba.
Hoje existe uma rede de 228 bancos de sementes que atende aproximadamente
6.500 famílias, em 61 municípios do estado. É uma região do trópico semi-árido
sob domínio do bioma caatinga. As chuvas anuais variam de 300 a 800 mm,
caracterizando-se, sobretudo, por uma extrema variabilidade no tempo e no espa-
ço, sendo freqüentes as secas prolongadas.
Os sistemas agropecuários familiares da região têm como base o policultivo
e a criação animal e apóiam-se na manutenção e uso da biodiversidade e na cons-
tituição de estoques de recursos (água, sementes, forragem, alimentos) como for-
ma de enfrentar, sobretudo, os desafios colocados pelo clima. O estoque familiar
de sementes, crucial para a renovação do ciclo anual de plantio, é constituído a
partir da produção agrícola do ano anterior com sementes de variedades locais,
conhecidas localmente como sementes da paixão. Porém, as estratégias de con-
servação das sementes da paixão são muito vulneráveis, o que vêm colocando em
risco não só a diversidade biológica das espécies cultivadas, mas também os pró-
prios códigos socioculturais responsáveis pela sua conservação.
A estreiteza das áreas plantadas e, sobretudo, a irregularidade climática fa-
zem com que as colheitas fiquem comprometidas e a família não consiga reconstituir
o seu estoque de sementes. Essas circunstâncias podem levar as famílias a consu-
mirem as sementes simplesmente pela necessidade premente de se alimentarem.
Por outro lado, os programas governamentais disponibilizam sementes certifica-
das, melhoradas em outras regiões e pouco adaptadas às condições locais de solo
e clima e ao sistema de manejo.
O banco de semente comunitário surgiu como forma de enfrentar esses pro-
blemas. Trata-se de um mecanismo por meio do qual a família toma emprestada
uma quantidade de sementes e se compromete a pagar, no momento da colheita, a

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mesma quantidade acrescida de uma percentagem, segundo regras definidas na
própria comunidade. A estocagem, a entrega e a devolução das sementes são to-
das feitas na comunidade, sob a responsabilidade de uma associação ou grupo
informal. Foi assim que agricultores e agricultoras portadores de experiências se
tornaram protagonistas de um processo que tanto qualificou os antigos bancos de
sementes que já existiam desde a década de 1970 e 1990 e os estoques familiares
como vem ampliando sistemas coletivos que assegurem o abastecimento e a di-
versidade de sementes.
A rede de bancos de sementes que se constituiu a partir do ano 2000 na
Articulação do Semi-Árido Paraibano realizou uma série de convênios, de início
com o governo do Estado da Paraíba e, posteriormente, com o Governo Federal,
para o abastecimento dos bancos de sementes. De 2001 a 2005, o governo do
estado e, principalmente, a Conab, por meio do Programa de Aquisição de Ali-
mentos, adquiriram dos próprios agricultores familiares vinculados aos bancos
mais de 165 toneladas de 46 variedades de sementes da paixão para reforçar os
estoques dos bancos existentes e formar novos.
Os componentes da Rede acreditam que os maiores tesouros de agricultores
e agricultoras estão em casa, nos seus estoques familiares. Nesse sentido, a expe-
riência busca reforçar os estoques comunitários e familiares que andam de mãos
dadas para a promoção de uma maior variabilidade. Por exemplo, alguns BSCs
têm estoques “coringa” que emprestam semente para plantar e também grão para
garantir o alimento, evitando que a família se veja obrigada a consumir sua reser-
va de sementes. A gestão do banco de sementes reforça as redes horizontais locais
de troca de material genético e de informações sobre elas. As mulheres e homens
portadores de experiências de conservação desse grande patrimônio genético re-
cebem e fazem visitas. Foi por meio das trocas de experiências e feiras de semen-
tes que muitos conhecimentos foram recuperados e estão vivos hoje nas casas, nas
comunidades e nas organizações de agricultores.
A experiência da Paraíba mostra claramente que os agricultores detêm um
saber tradicional de conservação da agrobiodiversidade valioso e possuem com-
plexas estratégias individuais e coletivas voltadas para a manutenção desse patri-
mônio genético. Desde sua constituição, a Rede vem qualificando técnica e poli-
ticamente essas estratégias.

REFLEXÃO SOBRE O USO DE FERRAMENTAS PRÁTICAS


EM APOIO AO MANEJO COMUNITÁRIO
As práticas apresentadas neste capítulo variam em sua com-
plexidade. Mas todas visam a aumentar o conhecimento nas comu-
nidades para alcançar o “manejo comunitário da biodiversidade”,
enfatizando, em especial, a construção da capacidade comunitária
de tomar decisões a respeito da diversidade local de cultivos e varie-
dades, ou em um contexto mais amplo. Para tanto, conseqüentemen-

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te, o empoderamento dos agricultores familiares e de suas comuni-
dades deve ter papel central na aplicação dessas ferramentas. Os
agentes de extensão e de pesquisa que estiverem facilitando ou esti-
mulando o uso delas devem estar atentos a esse enfoque, evitando
usá-las em um contexto de “Transferência de Tecnologia” ou “de-
monstração da diversidade para estimular a conservação”. O que é
crítico, e similar ao conceito geral apresentado no Capítulo 4.2, é
que a seqüência na utilização das práticas (kit, canteiro, banco de
sementes e outras) deve ser flexível, de acordo com o interesse lo-
cal. Não há um método padrão, ele necessita adaptação contínua ao
contexto local, à história, ao grau local de “consciência de diversi-
dade” e ao nível de organização da comunidade que está tratando
dos temas relacionados à diversidade.
Este capítulo está baseado nas experiências no Nepal, com al-
guns textos complementares de experiências e adaptações no Bra-
sil. O que é importante aprender sobre a utilização no Brasil é que
as ferramentas não são específicas para aquele país asiático. Elas
foram aplicadas no Estado de Santa Catarina, na Paraíba e em outros
locais no mundo. Entretanto, o que permanece crucial é que as fer-
ramentas não devem ser tratadas como receitas, mas sim como uma
inspiração para aumentar a consciência local sobre a biodiversida-
de e desencadear ações com base comunitária para a sua conserva-
ção e uso.

4.4 REGISTRO DA BIODIVERSIDADE COMUNITÁRIA

Abishkar Subedi, Bhuwon Sthapit, Deepak Rijal, Devendra Gauchan,


Madhusudhan P. Upadhayay e Pratap K. Shrestha

O conhecimento tradicional e a experiência dos agricultores e


indígenas podem contribuir significativamente para o desenvolvi-
mento sustentável. A biodiversidade tradicional, fortalecendo a co-
munidade e as instituições locais para registrarem e usarem as infor-

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mações obtidas a partir de seus conhecimentos tradicionais, ajuda a
promover a bioprospecção e a identificar a biopirataria. Vários mé-
todos de registro comunitário, como o registro pessoal da biodiver-
sidade, a inscrição da biodiversidade, o catálogo da biodiversidade
dos agricultores, o banco comunitário de sementes e o sistema de
manejo da informação de agricultores, entre outros, são propostos
na literatura como forma de proteger os interesses das comunidades
locais. Esses métodos de registro da biodiversidade comunitária têm
sido usados por diversos tipos de instituições com diferentes propósi-
tos e, conseqüentemente, as metodologias de registro evoluíram de
diferentes formas. Duas versões distintas de tipologia emergiram: pri-
meiro, o inventário da biodiversidade economicamente valiosa em
nível local; segundo, o fortalecimento da capacidade da comunidade
local para registrar os recursos genéticos importantes e o conheci-
mento tradicional para os planos de desenvolvimento e conservação.

ESTRUTURA CONCEITUAL
O registro da biodiversidade comunitária é um método partici-
pativo desenvolvido pela equipe internacional do projeto in situ do
Bioversity International,7 voltado para uma gama de objetivos:
• A proteção do conhecimento tradicional e dos materiais ge-
néticos contra a biopirataria.
• A promoção da bioprospecção.
• O monitoramento da erosão genética.
• A preparação das unidades de produção familiares para o
desenvolvimento de ações de conservação.

Basicamente, por meio dos processos de registro da biodiver-


sidade comunitária em projetos de conservação nas unidades de pro-
dução familiares, busca-se o fortalecimento das comunidades e ins-
tituições locais para desenvolverem um melhor entendimento dos
seus próprios recursos de biodiversidade e dos seus valores. Portan-
to, as comunidades e as instituições desempenham um papel impor-
tante na pesquisa e no desenvolvimento das estratégias de conserva-
ção em nível local.
Os projetos de conservação da agrobiodiversidade nas unida-
des de produção familiares no Nepal7 visam a fortalecer a capacida-

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de local para a conservação e a utilização sustentável. E isso só será
possível mediante a conscientização pública quanto ao controle, pela
comunidade, das informações, dos materiais e do processo da toma-
da de decisão para o acesso e repartição de benefícios dos recursos
genéticos localmente endêmicos. A proteção contra a biopirataria
externa só é possível se as comunidades locais souberem da impor-
tância da biodiversidade e estiverem dispostas a dedicar parte do
seu tempo para documentar os recursos genéticos e o conhecimento
tradicional associado. Uma das estratégias internamente dirigidas à
comunidade fundamenta-se na documentação da biodiversidade agrí-
cola e no fortalecimento da comunidade e da instituição local no
manejo da sua própria biodiversidade in situ. O fortalecimento da ca-
pacidade local para o manejo do sistema de informação comunitário
da biodiversidade, visando a garantir os benefícios, protegerá a comu-
nidade contra a exploração do conhecimento tradicional associado.
Os recursos genéticos para a agricultura e a alimentação são a
base biológica da nutrição mundial e da segurança alimentar, afe-
tando diretamente o sustento das pessoas. A diversidade genética dá
para uma espécie, ou para uma população, a aptidão de adaptar-se às
variações ambientais. Isso é a base da qual o melhoramento genéti-
co depende para criar novas variedades e tem, então, um valor público
decisivo para a segurança alimentar global. A rápida perda da diver-
sidade genética (erosão genética) é uma preocupação mundial e é
particularmente grave nas variedades locais. O registro da biodi-
versidade comunitária é necessário por três razões principais:
I. Documentar a erosão genética.
II. Proteger contra a biopirataria.
III. Empoderar a comunidade para o desenvolvimento e a con-
servação dos recursos genéticos para agricultura e alimentação, vi-
sando à segurança alimentar global.

A documentação em um registro da biodiversidade comunitá-


ria é efetiva, e seu uso para a conservação dos recursos genéticos
nas unidades de produção familiares ocorre onde os recursos são
valiosos e usados para satisfazer as necessidades das comunidades
locais. Se os recursos genéticos de espécies vegetais são conserva-
dos na unidade de produção, isso deve ocorrer como subsídio às

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atividades produtivas do agricultor, de sua subsistência – o que sig-
nifica que os esforços de registro da biodiversidade comunitária de-
vem ser orientados dentro das necessidades de subsistência do agri-
cultor e devem fornecer benefícios às comunidades locais14 e não só
como proteção de defesa do conhecimento tradicional associado.

METODOLOGIA
O método foi usado por diversos tipos de instituições para dife-
rentes propósitos e, conseqüentemente, as metodologias para registro
da biodiversidade comunitária evoluíram em diferentes variações. Mais
recentemente, o método tem sido discutido, proposto e configurado
de forma diferente em distintas instituições, por diversas razões.
Dois tipos distintos de tipologia estão emergindo: o primeiro
consiste na listagem da biodiversidade economicamente valiosa para
a comunidade, assistida por um grupo de profissionais do governo ou
universitários; no segundo, ocorre o fortalecimento da comunidade
local para documentar recursos genéticos importantes e conhecimen-
to tradicional associado. A Figura 4.4.1 ilustra uma metodologia de
registro da biodiversidade comunitária que combina os objetivos do
registro, assegurando o controle do conhecimento e da informação
para a comunidade local e o governo.

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Figura 4.4.1 - Metodologia participativa de registro
da biodiversidade comunitária.

QUAL É O CONJUNTO MÍNIMO DE DADOS NECESSÁRIO?


O conjunto de dados de registro da biodiversidade comunitá-
ria pode ser feito tanto em nível de unidades de produção como de
comunidade. A exigência do conjunto de dados mínimo também
depende do propósito do programa de registro da biodiversidade
comunitária. O banco de dados deverá responder às seguintes per-
guntas fundamentais:
• O que temos?
• O que é mais valioso para nós?
• Por que precisamos conservar?
• Como usamos?
• A quem pertencem os materiais e o conhecimento tradicional?
• Como transmitir o conhecimento tradicional de geração a ge-
ração?

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O registro da biodiversidade comunitária deve ser mantido em
língua local e com um importante conjunto de dados; ambas as reco-
mendações são necessárias ao objetivo da missão. Considerando que
os registros são mantidos pela comunidade nas condições locais,
este material não deve ser muito longo nem apresentar propósitos de
documentação detalhada. O tamanho dos registros deve ser curto e
manuseável, para que as comunidades possam levá-los de um lugar
para outro. Os seguintes conjuntos de dados foram identificados nas
comunidades de agricultores nos projetos de conservação no Nepal:7
I. Informação de cultivar/espécie/variedades (nomes locais,
científicos e étnicos).
II. História da existência em um determinado local (ano de in-
trodução; endereço da localidade).
III. Lugar de onde a espécie foi introduzida (lugar/fonte origi-
nal de conhecimento e dos materiais).
IV. Natureza das espécies (por exemplo, cultivo anual, perene,
de cobertura, decidual, erva, arbusto, árvore, etc...).
V. Modo de reprodução (por exemplo, são descritos meios de
propagação: semente, clones, rebento, talo, folha).
VI. Habitat natural (definido pelos agricultores).
VII. Extensão e distribuição da diversidade genética: rara, mé-
dia ou cresce naturalmente.
VIII. Técnicas locais e conhecimento tradicional (práticas que
descrevem o processamento de produtos ligados à manutenção de
uma variedade específica).
IX. Usos (bens e serviços do uso direto da cultivar, opção e
exploração de valor).
X. Partes úteis, fases e estação.
XI. Ciclo de vida.
XII. Informação sobre as pessoas que a possuem (endereço e
fotografia digital), e
XIII. Fotografias/desenhos/espécimes de herbário (ilustrando
distintas características e descritores).

MONITORANDO A EROSÃO GENÉTICA


Informações coletadas de famílias de agricultores são úteis para
monitorar as tendências de erosão genética em nível da comunidade
por meio dos seguintes indicadores:

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• Número de nomes atribuídos a variedades de uma mesma
espécie pela comunidade, coletado nas feiras de diversidade.
• Mudanças no número dos nomes atribuídos a variedades de
uma mesma espécie e áreas da variedade em nível da comunidade
(necessidade de série temporal com um intervalo de dois a três anos
a contar do ano-base);
• Número de variedades ameaçadas e raras (avaliadas pela aná-
lise participativa de quatro-células; Capítulo 4.5).

O monitoramento das mudanças dos nomes atribuídos a varie-


dades de uma mesma espécie (riqueza) e do tamanho da população
(abundância) das espécies cultivadas alvo (tamanho do campo culti-
vado por variedade e número de famílias que cultivam uma varieda-
de específica na comunidade) permite à comunidade desenvolver os
seus próprios planos de conservação, com o passar do tempo.7 Essas
informações não são necessárias se o objetivo do registro da biodi-
versidade comunitária for identificar a biopirataria.

LIÇÕES APRENDIDAS
A lição mais importante originada nesse processo (e no desen-
volvimento da metodologia do projeto, no Nepal) é que os agriculto-
res notaram que um grande número de variedades locais é conservado
em poucas unidades de produção familiares, sendo, assim, altamente
vulneráveis à erosão genética e a perdas eventuais. Essa percepção
encorajou diversas famílias a se estruturarem para formar uma asso-
ciação de agricultores dentro de um dos municípios onde o projeto
de conservação trabalhou. A associação estabeleceu um banco co-
munitário de sementes, com recursos financeiros do governo local e
com apoio internacional, para armazenar sementes de variedades
locais raras de arroz, de legumes e de outras espécies cultivadas. O
propósito do banco comunitário de sementes é manter o registro da
biodiversidade comunitária, multiplicar as sementes tradicionais lo-
cais para aumentar o acesso e manter pequena quantidade delas em
armazenagem de curto prazo.15 A associação, mais adiante, criou o
comitê de manejo comunitário da biodiversidade para administrar o
banco comunitário de sementes, estabelecendo procedimentos para
a coleta e a distribuição de sementes. Mais recentemente, o comitê

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solicitou ao grupo do projeto in situ no Nepal para treinar o seu
pessoal em armazenagem segura de sementes, movimento de mate-
riais genéticos e desenvolvimento de um plano de trabalho anual,
ações que apóiam a manutenção da agrobiodiversidade. A associa-
ção desenvolveu habilidades para expressar as suas necessidades,
sendo capaz de encontrar fontes de recursos financeiros (capital
financeiro) no governo local e em ONGs de desenvolvimento. É
improvável que o registro da biodiversidade realizado só pelo go-
verno ou por uma instituição local torne-se uma estratégia viável e
sustentável de proteção de conhecimento tradicional associada, a
menos que o processo seja internalizado em benefício da comuni-
dade local.

Registrar as sementes crioulas no Brasil?16

Flávia Londres

Nas últimas duas safras, agricultores familiares que tomaram crédito junto
ao Pronaf17 e que conduziram suas lavouras com sementes crioulas e perderam
suas colheitas, principalmente por problemas de estiagem, tiveram extrema difi-
culdade em acessar o seguro agrícola. As regras do seguro exigem que as semen-
tes utilizadas estejam no Zoneamento Agrícola de Risco Climático do MAPA
(Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), mas as variedades criou-
las não são registradas no Registro Nacional de Cultivares (RNC)18 e, conseqüen-
temente, estão fora do Zoneamento.
Nos últimos anos o Proagro acabou sendo pago por medidas excepcionais.
No entanto, o CMN – Conselho Monetário Nacional (o Proagro é vinculado ao
Banco Central) – tem insistido que seja pleiteado o cadastramento das variedades
crioulas no RNC, assim como sua inclusão no Zoneamento Agrícola, para que o
seguro possa ser acessado nas próximas safras.
Técnicos do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), do MAPA (li-
gados ao RNC e ao Zoneamento Agrícola) e o Grupo de Trabalho sobre Biodiver-
sidade da ANA (Articulação Nacional de Agroecologia) tentaram encontrar uma
fórmula para enquadrar as sementes crioulas no RNC e, posteriormente, incluí-las
no Zoneamento. Mas por diversas razões, de ordem técnica e política, essas nego-
ciações não avançaram e, atualmente, a viabilidade e a pertinência dessa proposta
são seriamente questionadas pelas organizações da agricultura familiar.
Questões técnicas: (i) as cultivares crioulas não se enquadram nos critérios a
serem preenchidos, em formulário, para a caracterização de cultivares no RNC.
Os critérios são altamente variáveis nas sementes crioulas, em oposição ao que
ocorre nas convencionais; (ii) em se considerando possível preencher esses cam-
pos do formulário, essas informações não estão facilmente disponíveis, tendo em

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vista a quantidade e a diversidade de variedades crioulas existentes no país sobre
as quais há poucas informações catalogadas. Esse trabalho demandaria das orga-
nizações da agricultura familiar um esforço tremendo e de médio prazo; (iii) dife-
rentes variedades podem ter o mesmo nome em regiões distintas; (iv) determinar
definitivamente as características de cada variedade crioula significaria congelar
sua evolução; (v) para que as variedades possam permanecer no RNC há necessi-
dade de um mantenedor, responsável por manter estoques mínimos do material,
conservando suas características de “identidade genética e pureza varietal”. As
organizações da agricultura familiar não possuem a capacidade técnica e estrutu-
ral exigida pelo MAPA para tornarem-se mantenedoras. Além disso, manter va-
riedades é uma atividade que envolve custos.
Questões políticas: (i) como lidar com a simbologia de se atribuir um dono a
algo que sempre foi tido como um bem comum?;(ii) muitas variedades são plan-
tadas por comunidades e até regiões distintas, e não seria simples decidir quem
faria o registro; (iii) o RNC é visto pelas organizações da agricultura familiar
como um instrumento político de dominação do capital privado, elaborado com
com o propósito de viabilizar a propriedade intelectual dos recursos genéticos e a
privatização da biodiversidade.
Dadas essas dificuldades, em 2006 o MDA somou forças com o GT-Biodi-
versidade da ANA na busca de uma solução que permita que as sementes crioulas
sejam contempladas pelo seguro agrícola sem a necessidade do registro no RNC.
A criação do “cadastro nacional de entidades que atuam na agricultura familiar
que desenvolvem trabalho reconhecido com resgate, manejo e/ou conservação de
cultivares locais, tradicionais ou crioulas”, criado pela Portaria 58/06 do MDA,
foi um primeiro passo nesse sentido.
O fato de a exigência do registro ter surgido unicamente em função de o
Seguro da Agricultura Familiar exigir o Zoneamento Agrícola só reforça a tese de
que, em vez de registrar as sementes crioulas, o mais adequado será priorizar
caminhos que possibilitem mudanças diretas nas regras do seguro.

4.5 ANÁLISE PARTICIPATIVA DE


AGROBIODIVERSIDADE QUATRO-CÉLULAS

Bhuwon Sthapit e Ram B. Rana

A análise participativa quatro-células é um método para:


• Identificar os recursos biológicos que têm papel importante
na segurança alimentar local.

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• Facilitar uma análise sistemática da extensão e da distribui-
ção de diversidade dos cultivos locais dos agricultores.
• Identificar os recursos de plantas de características únicas, os
raros e os comuns.

É uma abordagem participativa que facilita às comunidades


rurais e aos técnicos tomarem decisões e desenvolverem opções de
estratégias de conservação e de uso sustentável de agrobiodiversi-
dade.

JUSTIFICATIVA
Entender a quantidade e a distribuição da diversidade de cul-
tivos locais em nível de comunidade é uma informação básica ne-
cessária para o manejo da agrobiodiversidade pelos agricultores.
São escassas as metodologias participativas adequadas que aju-
dam os pesquisadores e os agricultores a entenderem os padrões
de distribuição da diversidade de cultivos agrícolas locais e as ra-
zões para tal distribuição. Antes de implementar uma estratégia
de conservação para cultivos agrícolas, espécies ou variedades, é
importante entender os potenciais riscos atuais e as potenciais
ameaças das espécies ou variedades. O nível de risco para a per-
da de diversidade genética pode ser avaliado por meio da análise
da área ocupada pelas plantas e pelo número de famílias de agri-
cultores que as mantêm. As razões que determinam o tamanho da
área plantada e o número de famílias que cultivam determinadas
espécies ou variedade são valiosas para formular um plano de con-
servação orientado para uma espécie ou variedade, em uma de-
terminada comunidade.

CONCEITO
O método de análise participativa quatro-células (APQC) de-
senvolvido pela equipe do projeto in situ,7 no Nepal, busca determi-
nar as razões e o risco da perda de diversidade genética de algumas
espécies ou variedades. O método para caracterizar a quantidade e a
distribuição foi desenvolvido no Nepal baseado na área média e no
número de famílias que plantam cada cultivo.19, 20 A APQC pode ser
usada de diferentes modos para entender a quantidade e a distribui-

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ção de diversidade de cultivos locais em uma comunidade, ou mes-
mo em nível de paisagem. A APQC considera a abordagem de gené-
tica de população, para ter amostras de alelos durante a coleta de
germoplasma, semelhante ao proposto por cientistas de conserva-
ção que apoiaram no desenho do projeto in situ.21 Eles indicaram a
divergência nas populações de acordo com a freqüência e a distri-
buição de alelos, o que resulta em quatro tipos diferentes, e sugerem
que populações com alelos locais em comum sejam alvos principais
para coleta e conservação. É provável que alelos comuns, ampla-
mente dispersos, sejam achados onde quer que a cultura seja culti-
vada; é improvável, entretanto, que os raros sejam capturados. No
contexto do manejo de diversidade de cultivos locais na unidade de
produção familiar, é difícil para os agricultores e comunidades arti-
cularem esse conceito.

APLICAÇÃO E METODOLOGIA
Os objetivos dos métodos de APQC são:
• Identificar variedades: de espécies cultivadas raras, de carac-
terísticas únicas e de características comuns.
• Documentar as razões por que as espécies cultivadas/varie-
dades são encontradas em um estado dinâmico na comunidade.
• Identificar o nível e as intervenções necessárias para a con-
servação de espécies cultivadas/variedades em uma determinada co-
munidade.

A APQC tem quatro aplicações principais:


• Classificar variedades de acordo com a composição e a estru-
tura genética da população.
• Identificar alelos comuns e raros, para ações de conservação.
• Entender as razões socioeconômicas e o valor de uso.
• Como ferramenta para tomadas de decisão em estratégias de
conservação pelos agricultores.

Uma tabela é desenhada no chão (ou em uma folha grande de


papel). As seguintes perguntas são feitas para os participantes:
• Quais são as variedades cultivadas em grandes áreas por mui-
tas famílias?

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• Quais são as variedades cultivadas em grandes áreas por pou-
cas famílias?
• Quais são as variedades cultivadas em pequenas áreas por
muitas famílias?
• Quais são as variedades cultivadas em pequenas áreas por
poucas famílias?

A seguir, colocam-se os símbolos, as sementes ou as amostras


de plantas na matriz (de acordo com a Figura 4.5.1).

Figura 4.5.1 – Análise participativa de quatro-células da abundância e da


distribuição da diversidade local de espécies e variedades.

Grandes áreas

A B
Muitas Poucas
famílias famílias
C D
Pequenas áreas

SEQÜÊNCIA DE PROCEDIMENTOS
Etapa 1: Elaboração de uma lista das variedades (locais e mo-
dernas) dos agricultores, do cultivo selecionado, por meio de:
• Realizar uma caminhada rápida por uma comunidade, em
transecto, para observação direta de informantes fundamentais (ho-
mens/mulheres), antes do grupo-foco de discussão.
• Inventariar os cultivos/variedades, listando todas as varieda-
des locais, e validar sua disponibilidade pela coleta de amostras.
• Listar as variedades obtidas durante a caminhada, a qual será
revisada no grupo-foco de discussão, pedindo-se aos participantes
que adicionem as variedades não-citadas.

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Etapa 2: Análise sobre a distribuição da diversidade de culti-
vos locais:
• Selecionar participantes-chave (de seis a doze) para o grupo-
foco de discussão, sem distinção de gênero, faixa etária, posses e
localização. Esse é um passo muito importante para assegurar a qua-
lidade. Para tanto, é necessária uma boa preparação prévia, com apoio
de pessoal de campo ou da comunidade local.
• Iniciar, nesse ponto, a montagem das quatro células. Primei-
ro, no chão ou em uma folha grande de papel, desenhar dois eixos
perpendiculares para as áreas (de grande para pequeno) e o número
de famílias (muitas e poucas), finalizando os quatro quadrantes. Caso
realizado no chão, as linhas podem ser desenhadas com um pau ou
podem-se usar duas varas longas (ver Figura 4.5.1).
• Ter um acordo comum sobre a terminologia a ser usada é
crucial para o método. O facilitador deve incentivar a discussão dos
participantes de forma que haja consenso sobre quando uma área
será considerada grande ou pequena e quando serão consideradas
muitas ou poucas famílias. Essa avaliação dos participantes é muito
subjetiva. Informações secundárias são necessárias antes do exercí-
cio e há necessidade de validá-las com a comunidade. Esse trabalho
deve ser feito de forma rigorosa, com as pessoas-chave, pois a aná-
lise básica está fundamentada nesses dois parâmetros. Pela discus-
são com o grupo se chegará ao consenso do que podem ser conside-
radas áreas grandes ou pequenas.
• Se houver dificuldade para definir áreas, perguntar se a varie-
dade é cultivada pela família em uma área grande ou pequena. O que
é uma área grande ou pequena, se necessário, deve ser determinado
questionando o participante sobre a quantidade total de terra cultivada
por ele e a proporção que está ocupada pela variedade específica.
• Selecionar o nome de uma variedade da lista e deixar que os
agricultores discutam em qual quadrante ela deveria ser colocada.
Posteriormente, esse exercício deve ser realizado para todas as va-
riedades listadas.
• Se notar que a abordagem está sendo difícil, perguntar quantos
deles cultivam uma determinada variedade na comunidade. Então,
pegar cada variedade local ou crioula da lista e colocá-la no quadrante
adequado. Se a maioria ou só uma minoria cultiva a variedade, então

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perguntar se isso é típico ou não para a comunidade inteira, a fim de
determinar em qual célula a variedade deve ser colocada. Desse modo,
os informantes-chave determinam se a variedade é cultivada por mui-
tas ou algumas famílias e se em grande ou pequena escala. Também
verificar se o padrão da análise quatro-células segue ou não o da
comunidade.
• Quando se determina a área (grande ou pequena) e o número
de famílias (muitas ou poucas), a variedade pode ser colocada nos
quadrantes da análise quatro-células.

Etapa 3: Explorar o valor de uso das variedades locais em


cada célula:
• Depois de concluído, perguntar aos agricultores por que eles
colocaram cada planta/cultivo/variedades específicas na célula A,
B, C ou D (Figura 4.5.1). As razões são anotadas durante uma dis-
cussão em grupo, chegando-se ao consenso dentro do grupo-foco.
Para a total interação com os agricultores, um equipamento de gra-
vação é essencial para o registro, pois assim a conversação pode ser
decodificada depois.
• Nessa etapa, o facilitador deve discutir e extrair dos partici-
pantes as razões para colocar variedades locais em uma área grande
ou pequena. Da mesma forma, outras razões também aparecem nes-
se ponto, devido à discussão de grupo; por exemplo, por que uma
variedade é mantida por poucas ou por muitas famílias.
• Registrar o valor de uso de cada variedade local, em cada
categoria das quatro-células, entendendo, assim, em maior profun-
didade, as razões dos agricultores.

Etapa 4: Análise participativa dos resultados:


• Confirmar as razões do manejo de cultivares em nível de
famílias. Variedades que ocupam as quatro-células possuem distin-
tas razões socioeconômicas e ecológicas. Por exemplo:
a) variedades cultivadas para segurança alimentar, ou para o
mercado, ou com valor pelo múltiplo uso tendem a ser cultivadas
em grandes áreas por muitas famílias;
b) variedades crioulas cultivadas por propósitos socioculturais
(tradições, rituais religiosos, comida local) são cultivadas em pe-
quenas áreas por muitas famílias;

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c) variedades com características específicas de adaptação
(como cultivares adaptados a terras encharcadas, baixa fertilida-
de, seca, sombra, etc.) são cultivadas em áreas grandes por poucas
famílias;
d) variedades com uso específico ou valor de uso limitado para
determinadas famílias são cultivadas em áreas pequenas por poucas
famílias.
• Em geral, esse padrão comum é atrelado a razões econômi-
cas; também ocorrem algumas variações devido a circunstâncias do-
mésticas específicas. O valor de diversidade para cada familia é re-
flexo da proporção do tamanho de população da variedade alocada
no total da área cultivada para aquela espécie.

Etapa 5: Uso da informação para diversificação alimentar e


ações de conservação para a comunidade:
• A discussão dos resultados da análise ajuda a identificar ti-
pos raros e comuns de diversidade dentro da comunidade e facilita a
elaboração de planos de conservação e de desenvolvimento. As va-
riedades nas células A, B e C são adequadas para conservação nas
unidades de produção familiares, enquanto as variedades alocadas
nas células D são raras e requerem esforços de conservação ex situ
(figura 4.5.2).
• Discutir os resultados com a comunidade e perguntar como
ela pensa em manter as variedades raras. Se ninguém quer cultivar a
variedade, então esta deveria ser enviada para conservação ex situ
(Figura 4.5.2).
• O facilitador deve buscar indicação, a partir da discussão, de
estratégias para aumentar os cultivos das variedades crioulas plan-
tadas em área pequena por muitas famílias. O pesquisador e a comu-
nidade podem desenvolver atividades estimulando o uso de diversi-
dade como forma de intervenção para conservação.
• Cultivares plantados por poucas famílias em pequenas ou
grandes áreas são vulneráveis à erosão genética, tornando-se neces-
sária uma gama de intervenções, tais como melhoramento de plan-
tas, adição de valor, reconhecimento e conexão com mercado para a
continuidade de sua manutenção.

199

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Figura 4.5.2 – A análise participativa de quatro-células em uma comunidade
envolvida em ações para conservação nas unidades de produção familiares.

LIÇÕES APRENDIDAS E ASSUNTOS QUE EMERGIRAM


O método de APQC faz uso de indicadores cientificamente
determinados para avaliação da agrobiodiversidade (adotando ta-
manho de área e número de famílias que plantam as espécies). Ex-
periências desse método em pré-testes mostraram aos facilitadores
que nem sempre é apropriado iniciar projetos com os indicadores
científicos já predeterminados.
Em Sarawak, na Malásia, esse método foi testado em um ecos-
sistema de arroz de sequeiro em que os agricultores tiveram difi-
culdade para definir área grande ou pequena. Depois de uma longa
discussão e debates, estabeleu-se como medida a quantidade de
sementes usada para plantio (medida por dois tamanhos distintos
de latas de biscoito como indicadores de área grande e pequena).
O exercício ajudou os facilitadores a entenderem que muitas famí-
lias cultivam pequenas quantidades de sementes para conservar as

200

Biodiversidade 0204.P65 200 5/4/2007, 10:48


variedades de arroz de sequeiro por serem herança familiar, e não
pelo valor de uso. Essas variedades são tipos raros, mas não desa-
parecerão por serem herança cultural. O valor do método é que ele
ajuda a entender o contexto local, e a comunidade pode desenvolver
suas próprias ações de conservação para os seus cultivares. A outra
lição aprendida no teste em Sarawak é que os indicadores são me-
lhor determinados pela própria comunidade. Em Uganda, na África,
esse método foi também adotado para identificar variedades locais
raras de banana. No Vietnã e na Malásia a metodologia necessitou
de ajustes, por se tratar de espécies frutíferas cultivadas em quintais
da família. Para espécies perenes, notou-se ser mais apropriado usar
o número de árvores em vez da área.

Análise participativa de quatro-células praticada no programa de


agrobiodiversidade na comunidade de Rio da Prata,
Anitápolis, Santa Catarina (2005-2006)

Fabiana Thomé da Cruz, Ana Maria Batista,


Fernando Monteiro, Franciele Rieg,
Jorge da Silva, Thiago Heinzen, Lucio Schmidt

A Figura 4.5.3 mostra a utilização da APQC baseada em dados coletados


durante o diagnóstico rural participativo que foi implementado na comunidade de
Rio da Prata, município de Anitápolis, no programa de agrobiodiversidade, em
Santa Catarina.22 Essa aplicação mostra como, baseada em uma matriz que identi-
fica cultivos e variedades em uma comunidade, seguida de um exercício de mapea-
mento que ilustra a distribuição de cultivos e variedades nas famílias, a APQC pode,
rapidamente e em um formato simples, ilustrar a abundância e a distribuição da
diversidade de cultivos e de variedades locais. Com base nessa análise, a comuni-
dade, apoiada pela equipe de facilitação, decidiu iniciar o plantio de canteiros de
diversidade com variedades locais de milho e de batata. Da mesma forma, foi or-
ganizado um curso de treinamento para apoiar a capacidade dos agricultores de
produzir sementes de variedades locais de milho, mantendo as características da
variedade. Um exercício similar foi conduzido na comunidade de Rio da Prata com
plantas medicinais. Com base na análise, a comunidade decidiu plantar canteiros
de espécies medicinais em duas unidades de produção localizadas centralmente, a
fim de estimular a conscientização das famílias sobre o uso potencial e apoiar o
acesso delas a esses importantes recursos biológicos. As várias experiências, incluindo
as realizadas em Santa Catarina, mostram que, com ajustes locais, a APQC pode ser
uma poderosa ferramenta para que pessoas externas à comunidade consigam enten-
der as razões pelas quais os agricultores fazem o que fazem e como poderiam ser
auxiliados a diversificar e aumentar as opções alimentares.

201

Biodiversidade 0204.P65 201 5/4/2007, 10:48


Figura 4.5.3 – A análise participativa quatro-células conduzida com
alguns cultivos agrícolas e variedades na comunidade de Rio de Prata,
Anitápolis-SC.

202

Biodiversidade 0204.P65 202 5/4/2007, 10:48


4.6 ANÁLISE PARTICIPATIVA DE REDES SOCIAIS DE SEMENTES

Anil Subedi, Bhuwon Sthapit, Ram B. Rana, Bimal Baniya,


Diwakar Paudel, Deepa Singh e Pitamber Shrestha

Comunidades de agricultores dos países em desenvolvimento


continuam usando fontes tradicionais ou informais de materiais de
plantio para satisfazer suas necessidades de sementes e mudas. Eles
guardam suas próprias sementes ou as obtêm de seus vizinhos, de
parentes ou em mercados locais, independentemente do setor formal
de sementes certificadas. A maioria dos membros da comunidade plan-
ta distintas variedades, mas os agricultores nodais ocupam uma posi-
ção relativamente central na rede informal de sementes do manejo da
agrobiodiversidade. Agricultores nodais tendem a ter a diversidade
sempre presente em suas mentes. Eles mantêm uma rica biodiversida-
de e se dispõem a compartilhar o conhecimento e os materiais genéti-
cos dentro ou fora de suas comunidades. Os sistemas sociais de se-
mentes têm uma clara e importante função na manutenção da diversi-
dade genética de cultivos em nível de unidade produtiva. As redes
sociais de sementes são mecanismos para administrar a vulnerabilida-
de, a incerteza, os choques e as tensões. Conseqüentemente, o acesso
e o controle dos recursos são aspectos políticos importantes.

HISTÓRICO
As comunidades de agricultores mantêm números relativamente
grandes de variedades locais e tradicionais que contribuem com os
modos de vida em unidades de produção com menos recursos. Essas
variedades locais possuem quantidades significantes de variação
genética. Sistemas informais desempenham um papel central no for-
necimento de materiais para plantios (sementes, mudas, etc.). Parti-
cularmente, esse é o caso do Nepal, na Ásia, onde menos de 3% das
sementes de arroz (o cultivo principal do país) foram comprados do
setor formal em 1999-2000. Os agricultores familiares não apenas
manejam os plantios, mas também são os responsáveis pela manu-
tenção dos processos dinâmicos da diversidade de cultivos nas uni-
dades de produção. As redes de sementes de agricultores familiares
são um dos componentes principais do sistema informal, por meio

203

Biodiversidade 0204.P65 203 5/4/2007, 10:48


do qual sementes e outros materiais genéticos são trocados entre os
membros da comunidade de agricultores (Capítulo 2.5). Dentro des-
sas redes, determinados membros parecem desempenhar um papel
principal no manejo do processo de fluxo genético e da diversidade
de cultivos. Junto com o fluxo de materiais também se dissemina o
conhecimento, de agricultor a agricultor, por meio de redes seme-
lhantes. Esse sistema social de sementes é reconhecido como um
processo vital para a manutenção da diversidade local de cultivos. A
maioria das sementes é mantida e guardada por agricultores familia-
res individuais, de safra para safra, mas também podem ocorrer tro-
cas significativas entre vizinhos e parentes.

METODOLOGIA
A fonte mais comum para obter dados sobre uma rede é uma
pesquisa sociométrica que consegue dados relacionais entre indivídu-
os em um sistema social. Diferentes técnicas de amostragem podem
ser usadas, tais como o mapa da comunidade (sem amostragem), a
amostragem representativa com a comunidade ou a amostragem de
bola de neve. Esta última é a mais comum. Nesse método, os entrevis-
tados são solicitados a indicar o nome de indivíduos das suas redes
sociais. Esse tipo de informação pode ser obtido no grupo-foco de
discussão, pedindo-se aos membros do grupo que listem os nomes de
agricultores localmente ativos e reconhecidos por seu conhecimento.
O propósito desse exercício deve ser definido no início do
mesmo. As seguintes etapas do processo podem ser usadas para en-
tender o contexto social de um sistema sadio de sementes:

Etapa 1: Identificar os agricultores nodais; aos entrevistados,


perguntar quem são os agricultores que eles percebem possuir o maior
conhecimento, na comunidade, sobre os assuntos relacionados à di-
versidade, à produção e à seleção de sementes e à ecologia da produ-
ção e dos usos de diferentes cultivares. Eles devem ter características
de pesquisadores e de diversidade, bem como querer compartilhar
conhecimento e materiais com os outros agricultores.

Etapa 2: Essa etapa envolve a amostragem de um grupo inici-


al a ser entrevistado, que fornecerá dados sobre as conexões socio-

204

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métricas. Algumas perguntas-chave precisam ser feitas sobre o flu-
xo de materiais genéticos. São elas:
• Em geral, de quem você obtém sementes/mudas e o conheci-
mento a elas associado?
• Nesta safra, de quem você obteve variedades/sementes/mate-
riais de plantio?
• A quem você normalmente fornece sementes e informações?
• Na safra anterior, a quem você deu sementes/mudas e infor-
mações?
• Quem normalmente vem pedir sementes/mudas e informa-
ções a você?

Etapa 3: Os agricultores levantados na pesquisa sociométrica


serão os entrevistados da segunda fase. A eles serão feitas as mes-
mas perguntas listadas na Etapa 2. Esse segundo nível de entrevista-
dos origina os da terceira fase, e assim por diante. Essa pesquisa de
múltiplos estágios ajuda a determinar as conexões sociais entre in-
divíduos dentro e fora da comunidade.

Etapa 4: Desenhar o mapa da rede com os dados relacionais da


pesquisa. Desenhar as linhas de relação entre famílias/instituições.
Nessa etapa, a análise de redes sociais de sementes poderia ser conec-
tada à ferramenta participativa do Diagrama de Venn. Setas que apon-
tam em ambas as direções indicam troca mútua de materiais e de
conhecimento. Os mapas podem ser desenhados manualmente ou
usando-se o software NetDraw 1.41, de distribuição gratuita.

Etapa 5: Identificar os agricultores nodais das redes sociais.


Agricultores nodais são pontos (nós) que fornecem e recebem se-
mentes/conhecimentos dentro e fora de comunidades, sendo consi-
derados instituições locais, como bancos de conservação e de uso
das sementes. Os agricultores nodais não são necessariamente os
agricultores líderes ou os chefes da comunidade, mas os que fre-
qüentemente pesquisam, selecionam, conservam, trocam materiais
genéticos e os conhecimentos associados àqueles.

Etapa 6: Esses agricultores nodais podem ser usados para for-


talecer a conservação em unidades de produção familiar, aumentar a

205

Biodiversidade 0204.P65 205 5/4/2007, 10:48


diversidade, fortalecer o sistema de fornecimento de sementes, trei-
nar outros agricultores e disseminar novas informações.

Etapa 7: Se o estudo em questão deseja entender como os agri-


cultores mantêm in situ a diversidade de cultivos locais, então é ne-
cessário fazer as seguintes perguntas aos entrevistados primários,
secundários e terciários:
• Quando você obteve as sementes, como as conseguiu? (Pos-
síveis respostas: compra, troca, presentes e empréstimo.)
• Quando você entregou as sementes, você as vendeu, trocou
ou presenteou?

Etapa 8: Repetir a pesquisa, com os mesmos entrevistados,


depois de determinados intervalos de anos, pelo menos por três ve-
zes, para monitorar se a rede social de sementes é um sistema está-
vel. Também é necessário avaliar se é desejável um maior dinamis-
mo para fazer evoluir o processo de conservação pelos agricultores
nas unidades de produção.

COMO TRABALHAM AS REDES SOCIAIS DE SEMENTES?


A conservação na unidade de produção pelos agricultores fa-
miliares é descrito como o processo pelo qual os agricultores man-
têm as variedades locais de cultivos que desenvolveram e continuam
a manejá-las e a melhorá-las. As formas pelos quais os agricultores
produzem, selecionam, guardam e adquirem sementes moldam a
diversidade genética dos cultivos e podem ser consideradas os siste-
mas de sementes. Os sistemas de sementes dos agricultores também
são meios de proporcionar a eles sementes viáveis e sadias da varie-
dade desejada, no momento adequado, em condições razoáveis e a
preço justo. Mundialmente, cerca de 80 a 97% dos principais culti-
vos são obtidos pelo sistema informal de sementes, e essa proporção
é muito mais alta se forem espécies cultivadas localmente ou varie-
dades negligenciadas. O sistema informal é considerado vantajoso
porque possui características de diversidade, resiliência, adaptabili-
dade, estabilidade, eficiência e eqüidade.
Além das características mencionadas, é considerado um sis-
tema vantajoso também por possuir mais os seguintes componentes:

206

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• Base de germoplasma (diversidade, flexibilidade, seleção).
• Produção de semente e qualidade (germinação, problemas de
doença, quantidade).
• Disponibilidade e distribuição de sementes (fontes de semente,
redes, mercados).
• Conhecimento e informação (métodos de cultivo, usos, co-
nhecimento de novos materiais).
Como resultado, o sistema de sementes de agricultores ou a
diversidade de cultivos é um dos poucos meios disponíveis para as-
segurar a produção sustentável e os modos de vida para agricultores
com poucos recursos.

EXEMPLOS DE REDES SOCIAIS DE SEMENTES NO NEPAL


Nas figuras 4.6.1 e 4.6.2 estão ilustrados os resultados da aná-
lise participativa de redes sociais de sementes em duas localidades
do Nepal.23 A Figura 4.6.1 mostra uma rede bem desenvolvida de
sementes de arroz em uma comunidade das terras altas. O fato de
todos os agricultores nessa rede estarem conectados é considerado
uma qualidade da rede de sementes. Para cientistas de conservação
e fitomelhoristas isso significa que variedades específicas, mas tam-
bém variedades melhoradas, fluem através do sistema informal de
sementes entre as unidades de produção e os grupos sociais da co-
munidade.
A figura 4.6.2 ilustra a vizualização da rede de sementes nas
terras baixas. Nessa localidade, as trocas e os vínculos dos agricul-
tores são considerados fracos. Os agricultores trocam e vendem se-
mentes de variedades em grupos que, de certo modo, estão isolados
da comunidade. Essa rede social de semente, maldesenvolvida, tem
conseqüências para quaisquer ações de apoio a atividades de melho-
ramento de plantas ou de manejo comunitário de variedades locais.
Isso significa que a organização facilitadora necessita se aproximar
de muito mais agricultores numa comunidade com a rede fraca do
que numa com uma rede forte. Variedades que são escassas numa
comunidade com uma rede fraca são também consideradas mais frá-
geis, por causa das interações limitadas. Para o melhoramento parti-
cipativo de cultivos, uma rede social de sementes fracamente desen-
volvida significa que mais agricultores precisam ser aproximados
para disseminar e testar variedades. Isso contrasta com uma comu-
207

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nidade com uma rede forte, onde uma vez que a variedade é testada
para ter bom desempenho, rapidamente será disseminada entre os
agricultores. Os dois desenhos mostram claramente que, se a análise
participativa das redes sociais de sementes é bem aplicada, será fá-
cil conduzir análise participativa a quatro-células. A distribuição e a
abundância de variedades podem ser facilmente medidas, e o fluxo
de materiais pode auxiliar em montar estratégias para conservar va-
riedades raras ou estimular o seu uso.

Figura 4.6.1 – Uma rede social de sementes bem-desenvolvida: intercâmbio


de variedades de arroz no município de Begna (terras altas), Nepal.22

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Figura 4.6.2 – Uma rede social de sementes maldesenvolvida: intercâmbio
de variedades de arroz em Terrai (terras baixas), Nepal.22

IMPACTOS
Beneficiando a conservação: A importância das redes sociais
e das trocas na manutenção de variedade em comunidades de agri-
cultores familiares ou tradicionais, combinada com o fato de a maioria
dos agricultores, em qualquer ano, manter as suas próprias semen-
tes/mudas e considerar a troca de sementes/mudas como uma opção
secundária, levanta importantes questionamentos sobre como se apre-
cia e se mantém a identidade da variedade. Essas redes de agriculto-
res nodais são consideradas instituições locais para o manejo de
recursos genéticos de plantas e têm sido usadas para a troca de se-
mentes/mudas de comunidade. Elas podem desempenhar um papel
significativo nos esforços de conservação já que manejam a maioria
dos recursos genéticos presentes na comunidade.
Enfrentando a vulnerabilidade genética: A diversidade ge-
nética encontrada nos cultivos individuais também é importante tanto
para assegurar possibilidades quanto pelo valor da produção. Em-

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bora a diversidade genética seja necessária para prover matéria-pri-
ma para agricultores e melhoristas produzirem novas variedades em
contextos variáveis, tal diversidade dentro de cultivos é essencial
para maximizar rendimentos e opções de uso. Como vêm mostrando
os nossos resultados, programas de melhoramento de plantas serão
mais efetivos se houver maior utilização de materiais locais resis-
tentes e novos métodos para reduzir a vulnerabilidade de cultivos
provocada pela sua uniformidade.
Contribuindo para a segurança alimentar: Levantamentos
comparativos, no Nepal, revelaram que a contribuição de sementes
locais tem importância significativa para a segurança alimentar.1 A
dependência de variedades locais para a segurança alimentar é sig-
nificativamente mais alta em ambientes marginais (100%) compa-
rada aos sistemas de produção de alto potencial (17%). Identifi-
cou-se que as redes sociais de sementes são uma fonte segura de
sementes de variedades localmente adaptadas e, portanto, que es-
sas sementes são recursos cruciais disponíveis para agricultores
não-capitalizados. Elas podem auxiliar famílias de agricultores com
poucos recursos a manejar a vulnerabilidade, as incertezas, os cho-
ques e os estresses.
Gerando interdependência social: Em muitos contextos cul-
turais, o sistema de sementes de agricultores familiares faz parte da
cultura e da tradição, o que aumenta a coesão social, já que é mane-
jado por meio das relações individuais. O fortalecimento de inter-
venções, tais como feiras e kits de diversidade e banco comunitário
de sementes de variedades locais (Capítulo 4.3), deve priorizar o
acesso de grupos de mulheres e de famílias carentes da comunidade,
que não conseguem conservar ou comprar sementes. Isso aumenta a
inclusão e a igualdade social dentro da comunidade e, também, pode
trazer benefícios econômicos para seus membros.

LIÇÕES APRENDIDAS
Redes e análises de redes têm pouco valor de prognóstico a
menos que haja um certo grau de estabilidade no sistema. Redes de
semente estáveis e a presença de agricultores nodais respeitados
mudam ao longo do tempo. Se não houver estabilidade, o local não
será muito útil para conservação nas unidades de produção familia-

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res. Assim, dados temporais de rede são necessários para determinar
os efeitos de certas intervenções e suas conseqüências em um siste-
ma.
Projetos de conservação nas unidades de produção familiares
tendem a focar na persuasão dos agricultores para continuarem a
plantar variedades locais. Desistir de algumas variedades é conside-
rado um perigo. Mas quando isso ocorre a variação genética está
sendo continuamente renovada, já que não é estática. A análise de
redes sociais de sementes leva em conta a interação social e apóia a
tendência crescente de ver as populações de variedades como meta
populações de campos interconectados por troca varietal. Um traba-
lho que foca nas redes de troca, que disponibilizam variedades para
agricultores, sugere que se deve dar maior atenção no apoio aos sis-
temas locais de troca existentes.
A realização de feiras de diversidade ou o estabelecimento de
bancos comunitários de sementes (Capítulo 4.3) podem ser inova-
ções valiosas, mas eles poderiam enfraquecer os sistemas locais exis-
tentes, os quais unem pessoas que confiam no julgamento umas das
outras e trocam sementes junto com outras formas de mercadorias,
de apoio e de informação. Deve-se priorizar entender como a diver-
sidade local se sustenta, de forma que introduções modernas não
ameacem os sistemas locais. A ênfase deve estar tanto no que as
pessoas fazem quanto nas plantas.

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NOTAS

1. Esse tipo de pesquisa deve muito ao trabalho e à inspiração de Paulo Freire,


principalmente às idéias expressas em Freire, P. Pedagogia do oprimido. Nova
York: Herder and Herder, 1970.
2. Essa metodologia foi desenvolvida por Conway e os seus colegas na Tailândia,
desde 1978.
Conway, G.R. Agroecosystem analysis for research and development. Bangkok:
Winrock International Institute, 1986.
3. Rhoades. The art of informal agricultural survey. Lima: International Potato
Center, 1982.
4. Pretty, J.N. Alternative systems of inquiry for sustainable agriculture. IDS Bulletin
25 (2), pp. 37-48, 1994.
5. Geilfus, F. Octienta herramientas para el Desarrollo Participativo: diagnóstico,
planificación, monitoreo, evaluación. San Salvador, El Salvador: Prochalate-IICA,
1997.
6. Adaptação e tradução Canci, I.J. Relações do conhecimento formal e informal no
manejo da agrobiodiversidade no Oeste de Santa Catarina. Florianópolis-SC:
Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina (Dissertação
de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Recursos Genéticos Vegetais), 2006.
7. O projeto do Bioversity International, “Reforçar a base científica de conservação
in situ de biodiversidade agrícola nas unidades de produção familiares”, foi execu-
tado em nove países. No Nepal, os parceiros principais foram o instituto governa-
mental Conselho Nacional para Pesquisa Agropecuária (NARC) e a organização
não-governamental Iniciativas Locais para Biodiversidade, Desenvolvimento Ru-
ral e Pesquisa (LI-BIRD).
8. Este capítulo tem contribuições dos seguintes autores do Nepal: Anu Adhikari,
Bal Krisha, Joshi Pitambar Shresth, Jwala Bajracharya, Krishna Baral, Madhusudan
P. Upadhaya, Pashupati Chaudhar, Pitamber Shrestha, Radhakrishna Tiwari, Ram
Baran Yadav, Ram Rana, Saja Sthapit, Sanjay Gyawali e Shalikram Gupta.
9. Baseado no texto “Programa de Resgate da Agrobiodiversidade em Anchieta”,
de Adriano Canci, Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto e Ivan José Canci. In: Juliana
Bernardi Ogliari, Antônio Carlos Alves, Walter Simon De Boef & Adriano Canci
(editores). Manejo agroecológico da diversidade genética de variedades locais de
milho: Princípios e Experiências participativas. Florianópolis-SC: Editora da UFSC,
no prelo). Os promotores foram agricultores, representantes do Sintraf e da ASSO
do município e técnicos (engenheiro agrônomo Claudinei Chalito da Silva e técni-
co agrícola José Nicolau). Mais tarde, o Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor
(CAPA) e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) também foram convida-
dos como promotores. A inclusão do MPA permitiu que esse movimento, ainda
embrionário, tivesse maior visibilidade e um lugar de destaque compatível com sua
importância enquanto movimento social para o Brasil e para o mundo.

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10. Os promotores foram o Sintraf, a Paróquia Santa Lúcia, ASSO, Epagri, Arca
FM (Rádio Comunitária), CAPA, Prefeitura Municipal e MPA.
11. Além dos anteriores, contou com a promoção da Via Campesina e da Assessoria
e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA).
12. Resumido de: Almeida, P.; Sidersky, P. Conservação e uso da biodiversidade.
Caderno temático do II Encontro Nacional de Agroecologia 2007. No prelo.
13. Sthapit, B.R.; Jarvis, D. The process of effective implementation of in situ
conservation of agrobiodiversity on-farm: Experience from Nepal and Vietnam. In:
Sthapit, B.R., et al. (eds). On-farm management of agricultural biodiversity in Nepal.
Proceedings of a national workshop, 24-26 April 2001, Lumle, Nepal. Kathmandu,
Pokhara e Roma: NARC, LIBIRD e IPGRI, 2003.
14. Shresta, P., et al. Enhancing local seed security and on-farm conservation through
a community seed bank in Barra district of Nepal. In: Sthapit, B.R., et al. (eds). On-
farm conservations of agricultural biodiversity in Nepal. Volume II. Managing
diversity and promoting its benefits. Proceedings of the Second National Workshop,
25-27 August 2004, Ngarkot, Nepal. Roma: IPGRI, pp. 70-76, 2005.
15. Londres, Flávia. A nova legislação de sementes e mudas no Brasil e seus im-
pactos sobre a agricultura familiar. Grupo de Trabalho sobre Biodiversidade da
Articulação Nacional de Agroecologia: p. 16-19, 2006.
16. Para um agricultor liberar recursos de custeio de uma lavoura, o Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) torna obrigatória a
adesão ao Seguro da Agricultura Familiar (SEAF).
17. O Art. 11, § 6º da Lei 10.711/03 (Lei de Sementes e Mudas) estabelece que as
variedades crioulas são isentas da inscrição no Registro Nacional de Cultivares (RNC).
18. Sthapit, B.R., et al. Participatory plant breeding: Setting breeeding goals and
choosing parents for on-farm conservation. In: Bellon, M.R.; Reeves, J. (eds).
Quantitative analysis of data from participatory methods in plant breeding. Méxi-
co: CIMMYT, 2002.
19. Sthapit B, Rana RB, Subedi A, Gyawali S, Bajracharya J, Chaudhary P, Joshi
BK, Sthapit S, Joshi KD, Upadhyay MP. Participatory four cell analysis (FCA) for
local crop diversity. In: Sthapit, B.R.; Shrestha P.K.; Upadhyay, M.P. Good practices:
On-farm management of agricultural biodiversity in Nepal. Kathmandu: NARC,
LI-BIRD, IPGRI e IDRC, 2006.
20. Marshall, D.R.; Brown, A.H.D. Optimum sampling strategies in genetic
conservation. In: Frankel, O.M.; Hawkes, J.G. (eds). Crop genetic resource for
today and tomorrow. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 53-80, 1975.
Brown, A.H.D. The genetic structure of crop landraces and the challenge to conser-
ve them in situ on-farm. In: Brush, S.B. (ed). Genes in the field: on-farm conservation
of crop diversity. Boca Raton FL: Lewis, pp. 29-48, 2000.
21. Thomé de Cruz, F., et al. Estratégias participativas de manejo da agrobiodiver-
sidade no município de Anitápolis. Resgate de milho crioulo na comunidade do
Rio da Prata. In: Kist, V.; Santos, K.L. dos (eds.). Estratégias participativas de
manejo da agrobiodiversidade. Relatórios municipais. Florianópolis-SC: NEABio,
pp. 53-64, 2006.

213

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22. Subedi, A., et al. Who Maintains Crop Genetic Diversity and How: Implications
for On-farm Conservation and Utilization. Culture & Agriculture 25(2), pp. 41-50,
2003.
23. Rana, R.B., et al. Factors influencing farmers’ decision on management of local
diversity on-farm and theri policy implications. In: Gauchan, D.; Sthapit, B.R.;
Jarvis, D.I. (eds). Agrobiodiversity conservation on-farm: Nepal’s contribution to
a scientific basis for policy recommendations. Roma: IPGRI, 2003.

214

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5
POLÍTICAS DE RECURSOS
GENÉTICOS RELEVANTES PARA
O MANEJO COMUNITÁRIO
DA AGROBIODIVERSIDADE

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5.1 ASPECTOS POLÍTICOS E LEGAIS INTERNACIONAIS
COM IMPACTO LOCAL

Walter Simon de Boef

Há diversos aspectos políticos e legais relevantes ao melhoramen-


to participativo e ao uso da diversidade local. No cenário internacional,
nas últimas décadas, ocorreram algumas mudanças importantes no que
se refere à biodiversidade e a recursos genéticos de plantas. O proces-
so de erosão genética continua em taxas alarmantes. Simultaneamen-
te, tecnologias que desenvolvem e usam esses mesmos recursos gené-
ticos ultrapassam a capacidade das leis e da sociedade de conhecê-las
e de conviver com elas. Avanços tecnológicos favorecem o aumento do
valor econômico de recursos genéticos, e o desenvolvimento beneficia-
se do rápido processo de globalização. Em relação aos recursos bioló-
gicos, surge uma interdependência que conecta todos os níveis de con-
servação, de manejo e de uso dos recursos genéticos, em um mundo que
parece cada vez menor. A mudança do cenário político resultou no au-
mento de conflitos sobre os direitos e as responsabilidades em relação
a esses recursos. As leis e políticas nacionais e internacionais estão res-
pondendo a essas mudanças de formas diferentes, com conseqüências
diretas na conservação, no manejo e no controle dos recursos fitogené-
ticos.1 Este texto introduz alguns fóruns internacionais que têm distin-
tos impactos no manejo de agrobiodiversidade.
Desde os anos 80, o ambiente político, em relação aos recur-
sos genéticos, foi bastante modificado devido a mudanças na legis-
lação e nas políticas internacionais e nacionais. Quatro acordos in-
ternacionais tiveram um impacto significativo nas políticas de agro-
biodiversidade tanto dentro dos países quanto internacionalmente.
As políticas resultantes mudaram dramaticamente o acesso, o con-
trole e a propriedade da agrobiodiversidade pelas comunidades, con-
tribuindo, desse modo, para mudanças no âmbito em que o recurso é

217

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manejado, conforme apresentado na Tabela 5.1.1 Freqüentemente,
essas mudanças subestimam e estão em conflito com os padrões in-
dígenas e tradicionais dos direitos aos recursos genéticos de plantas,
os quais se desenvolveram ao longo dos séculos.2 Ao mesmo tempo,
criou-se um ambiente político no qual o status das instituições de
conservação, suas coleções e a divisão do trabalho e responsabilida-
des em relação à conservação são modificados no sentido de uma
maior rigidez, em níveis nacionais e global. Por causa dessas insti-
tuições mais altas, o ambiente político repercute diretamente nas
oportunidades para o desenvolvimento de estratégias de conserva-
ção diferentes e, em especial, locais (in situ e nas unidades de pro-
dução, pelos agricultores).

Tabela 5.1.1 – Caracterização das mudanças, no âmbito político,


dos recursos fitogenéticos.3

ANTES DE 1992 APÓS 1992


Patrimônio da humanidade Soberania nacional
Pouco uso da propriedade intelectual Aumento do uso da propriedade
em recursos genéticos intelectual
Setor público é o principal atuante Setor privado é o principal atuante
no fitomelhoramento genético no fitomelhoramento genético
Política com estruturas internacionais Política com estruturas nacionais
FAO – Compromisso Internacional CBD, TI, WTO, Cartagena, etc.

Quatro acordos internacionais são relevantes para o manejo


local da agrobiodiversidade:
• Tratado Internacional sobre Recursos Genéticos de Plantas
para a Alimentação e a Agricultura (TI-RGPAA), no âmbito da Or-
ganização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).
• Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB).
• Aspectos Relacionados aos Direitos de Propriedade Intelec-
tual (TRIPS) como elemento das negociações da Organização Mun-
dial de Comércio (OMC).
• União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de
Plantas (UPOV).

218

Biodiversidade 0204.P65 218 5/4/2007, 10:48


A CONVENÇÃO DE DIVERSIDADE BIOLÓGICA
A CDB é um dos dois acordos legalmente assinados no Rio de
Janeiro, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (CNUMAD), em 1992. São seus signatários 168
países, e, no total, 188 já a ratificaram. Os pilares da CDB podem
ser classificados em três categorias, correspondentes aos seus três
grandes objetivos:
• Conservação da biodiversidade. A preocupação dos conser-
vacionistas era a legislação internacional existente para a proteção
da vida selvagem, um mosaico que cobria somente temas, áreas e
espécies selecionadas. Fazia-se necessário um acordo mais geral que
abarcasse um conceito mais amplo da conservação da natureza, do
seu valor (cobrindo os três níveis de biodiversidade), e protegesse
os elementos não cobertos pelas leis existentes.
• Uso sustentável. Um movimento que visa a incorporar o ob-
jetivo do uso sustentável dos recursos biológicos à política de con-
servação, reconhecendo a necessidade do desenvolvimento susten-
tável para os povos locais que vivem da biodiversidade. E, além
disso, para mobilizar apoio para a conservação por meio de benefí-
cios locais (o componente de uso tem relevância direta para a agro-
biodiversidade).
• Repartição de benefícios justa e eqüitativa. Inclui, nos trata-
dos e acordos, obrigações em relação à troca e à repartição de bene-
fícios dos recursos genéticos de plantas para o uso na agricultura.
No entanto, aspectos-chave relacionados à agrobiodiversidade foram
deixados de lado. Contudo, as discussões do TI-RGPAA estão tra-
tando com mais atenção dos assuntos relacionados a Recursos Ge-
néticos de Plantas (RGP).
Para a conservação e o uso sustentável, a CDB estabelece uma
escala de obrigações gerais, flexíveis, que enfatizam a ação nacional
dentro de sua jurisdição. A CDB instaura um marco de princípios
gerais para estruturar a troca internacional de recursos genéticos,
tendo como premissa a soberania nacional de cada país sobre os re-
cursos genéticos que têm origem sob sua jurisdição. Nesse marco, a
CDB enfatiza explicitamente a implementação de ambas as estraté-
gias de conservação da biodiversidade – in situ e ex situ. A CDB pode
ser considerada uma tentativa ambiciosa de integrar objetivos polí-

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Biodiversidade 0204.P65 219 5/4/2007, 10:48


ticos anteriormente distintos. Desde 1993, sua implementação tem
sido lenta devido às tensões em relação aos seus três grandes objeti-
vos. Diferentes governos selecionam distintas prioridades do amplo
rol de iniciativas possíveis no âmbito da CDB. Os países signatários
desenvolveram leis nacionais de acesso que disciplinam a troca e a
transferência de recursos genéticos entre e dentro dos países. Um
componente da CDB é que o acesso aos recursos genéticos está regu-
lado por acordos bilaterais que facultam o acesso e facilitam a repar-
tição justa e eqüitativa dos benefícios. Entretanto, na prática, em
muitos países em que essas leis de acesso foram criadas, o resultado
é uma diminuição ou paralisação do fluxo de germoplasma.

O TRATADO INTERNACIONAL
O Tratado Internacional da FAO (TI-RGPAA) ou “Tratado de
Sementes” é um acordo intergovernamental para promover a con-
servação, o intercâmbio e o uso de recursos genéticos de plantas. O
TI foi acordado em 2001. Importante nesse tratado é que ele modifi-
cou o anterior, da FAO, sobre fluxos de recursos genéticos (Com-
promisso Internacional), tornando-o consistente com a CDB. Os prin-
cipais objetivos são similares aos da CDB:
• conservação e uso sustentável de RGPAA e
• repartição eqüitativa dos benefícios de RGPAA.

O sistema multilateral do TI caracteriza uma diferença básica


com a CDB, a qual fornece um sistema bilateral para organizar o
acesso e a transferência de recursos fitogenéticos. O TI cobre os re-
cursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura. Durante as
negociações entre os países membros, foi montada uma lista (referi-
da como Anexo 1 – ver também Quadro 5.3.3, Capítulo 5.3) com 35
cultivos alimentares e oitenta espécies forrageiras. As principais
exclusões foram: soja, amendoim, tomate, muitos parentes silvestres
de espécies cultivadas, e espécies forrageiras, industriais e commo-
dities tropicais, tais como borracha, babaçu, chá, café e cacau. O
acordo estabelece o sistema multilateral para o manejo e controle
pelas partes dos materiais incluídos na lista do Anexo 1. As coleções
dentro de instituições do Conselho Internacional de Pesquisa Agro-
pecuário (CGIAR) e as coleções de outros potenciais possuidores

220

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dentro do domínio público/internacional são contempladas pelo Tra-
tado Internacional. Basicamente, a transferência e o intercâmbio de
germoplasma são organizados por meio dos Termos de Transferên-
cia de Material (TTM). Atualmente, os membros do Tratado acor-
daram um TTM padronizado para o germoplasma dentro dos siste-
mas multilaterais. O sistema multilateral e o TTM, associados, as-
seguram:
• O acesso ao germoplasma para a pesquisa e melhoramento
de cultivos para alimentação e agricultura.
• Nenhum direito à propriedade intelectual dos materiais que
limite o acesso a suas partes ou componentes genéticos.
• O não-acesso a materiais em desenvolvimento.

Aspectos relacionados aos direitos de propriedade intelectual


O TRIPS é um dos acordos da OMC, adotado em 1994. Entrou
em vigor em 1995, simultaneamente com a inauguração da OMC. O
TRIPS, bem como outros acordos da OMC, deve, obrigatoriamente,
ser incluído nas leis nacionais de todos os países membros. O TRIPS
é um acordo inovador de comércio da propriedade intelectual. Ele
estabelece que os membros podem excluir da patenteabilidade “plan-
tas e animais, à exceção dos microrganismos, e essencialmente os
processos biológicos para a produção de plantas ou animais, com
exceção de processos não-biológicos e microbiológicos. Entretan-
to, os membros fornecerão a proteção das variedades de plantas
por patentes ou por um eficaz sistema sui generis ou por alguma
combinação deles”. A exigência da proteção da propriedade inte-
lectual para variedades de plantas (na forma de patentes ou de um
sistema sui generis) também requer mudanças legislativas em diver-
sos países membros da OMC. Essas mudanças podem causar im-
pacto direto no desenvolvimento de estratégias de conservação que
tratam do manejo local de recursos genéticos.

TRIPS E UPOV: PROTEÇÃO DE NOVAS VARIEDADES DE PLANTAS


A abordagem sui generis do TRIPS não faz nenhuma referên-
cia específica à UPOV. O Brasil é membro da UPOV, uma organiza-
ção intergovernamental criada em 1961. Até 1997, a UPOV tinha 32
membros, principalmente países desenvolvidos. A Lei de Proteção

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Biodiversidade 0204.P65 221 5/4/2007, 10:48


de Cultivares do Brasil (Lei nº 9.456, de abril de 1997) é o instru-
mento de implementação, em nível nacional, da UPOV.
A UPOV incentiva a adoção sui generis de leis para proteger as
novas variedades de plantas, criando o seu próprio sistema, distinto
da lei de patentes. Diferentemente das versões existentes, requer que
a variedade de planta seja nova, distinta, uniforme e estável a fim de
se tornar elegível para a proteção. O critério da uniformidade exclui
a possibilidade de proteger as variedades locais, devido à sua natureza
dinâmica e freqüentemente heterogênea. Um aspecto crítico da
UPOV é que requer de seus membros a aplicação de uma única lei
geral, englobando todos os cultivos. É importante se dar conta que,
enquanto todos os cultivos são abrangidos pela UPOV (como no
Quênia, um Estado membro), as companhias requerem proteção
apenas para variedades de cultivos comerciais (flores, verduras, ali-
mentos e cultivos comerciais importantes).
Uma tendência geral emergiu na UPOV para fortalecer os di-
reitos concedidos. O crescimento da biotecnologia e a possibilidade
formal de patentear exerceram pressão sobre a UPOV que, em 1991,
mudou seu direcionamento. Estendeu os direitos dos detentores para
além do material reprodutivo, ampliando-os para o material colhido
e os produtos obtidos por meio do uso ilegal do material de propaga-
ção, permitindo aos membros a opção legal para a patente ou a pro-
teção sob as regras da UPOV; por outro lado, estendeu a cobertura
para abarcar todos os gêneros e espécies de plantas. Estender os
direitos dos detentores aos materiais colhidos tem implicações sig-
nificativas sobre os direitos dos agricultores de conservarem as se-
mentes para replantio. Mais do que assumir esse direito, a UPOV
1991 concedeu aos membros o direito de permitir aos agricultores a
opção para conservarem as sementes para uso próprio. Sem a ação
positiva dos membros da UPOV perde-se o direito dos agricultores.
Além disso, também há a necessidade de autorização do detentor
dos direitos para o uso do material das variedades que, essencial-
mente, derivaram-se das variedades protegidas. Os usos para os quais
as permissões são necessárias incluem a produção ou a reprodução,
condicionando quando a finalidade é para propagação, marketing,
venda, exportação ou importação e estocagem para qualquer destas
finalidades.

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O acordo TRIPS requer que as partes forneçam proteção das
variedades de plantas por patentes ou por um sistema eficaz sui
generis, ou por alguma combinação desses instrumentos. O texto
não menciona especificamente a UPOV apesar de ela ser o instru-
mento mais significativo de proteção sui generis. A omissão no
TRIPS foi feita para permitir às partes um grau de flexibilidade no
desenho de um sistema de proteção das variedades de plantas. Esses
sistemas, mais flexíveis e menos restritivos para a proteção da varie-
dade de plantas, existem. Muitos deles incluem isenções aos mate-
riais para pesquisa e aos dos agricultores. Há vários países (lidera-
dos pela Índia) que desenvolveram sistemas mais flexíveis, nos quais
se reconhecem os direitos dos produtores como iguais aos dos
melhoristas, estabelecendo padrões flexíveis para as variedades de-
senvolvidas e as sementes produzidas pelos agricultores. Uma outra
flexibilidade é aplicar o tipo UPOV de proteção varietal de plantas
em cultivos para os quais existe um sistema comercial de melhora-
mento ou cujo acesso a materiais melhorados (flores, indústria vege-
tal) é necessário; e/ou um sistema mais flexível que trate de cultivos
alimentares, ou outros, no qual organizações públicas de melhora-
mento são o alvo.

REFLEXÃO SOBRE ACESSO E PROPRIEDADE INTELECTUAL


Os direitos dos melhoristas de plantas e os de propriedade in-
telectual sobre as variedades têm uso muito limitado ou ainda não
existem no mundo não-industrializado. Aplicar o controle sobre o
uso de materiais “intelectualmente protegidos” seria mais dispendioso
do que recompensador. Os agricultores podem ser considerados
experimentadores criativos, que usam os produtos das sementes e
da indústria de melhoramento para seu próprio benefício. Os agri-
cultores e os seus sistemas informais de produção de sementes e de
desenvolvimento de cultivos locais são muito mais dinâmicos e cria-
tivos do que os clientes distantes e os usuários de tecnologia da in-
dústria de sementes e de melhoramento. Essa capacidade de inova-
ção é, por um lado, exatamente o aspecto considerado na estratégia
de conservação nas unidades de produção agrícola e, por outro, pa-
rece absolutamente alheia às organizações globais de propriedade
de recursos genéticos.

223

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Sobre essa abordagem, nos anos de 1990, o diretor do Centro
de Recursos Genéticos dos Países Baixos4 se manifesta: “Por meio
do TRIPS os países se tornam obrigados a implementar uma legisla-
ção sui generis similar, para dar proteção às variedades comerciais.
Reforçar uma estrutura legal do tipo da UPOV, pressionada forte-
mente por países industrializados por meio da OMC, funciona de
forma totalmente contrária ao forte papel dos agricultores no me-
lhoramento e na produção de sementes. Isso nega a essência dos
sistemas de produção de sementes na maioria dos países em desen-
volvimento, que são dependentes das sementes produzidas por agri-
cultores e das variedades crioulas. É um fenômeno curioso pois,
enquanto os regimes de proteção intelectual são basicamente um
contrato entre a sociedade e os inventores para benefício mútuo, em
sua evolução, e nas mãos de advogados, esses regimes, passo a pas-
so, tornaram-se completamente distorcidos na sua proteção aos inte-
resses dos inventores e da indústria privada. A menos que a equidade
seja restaurada – o que talvez seja possível com novas formas sui
generis de proteção – a biodiversidade pode ser atingida nos cam-
pos dos agricultores e no acesso, de fato, às sementes adequadas.
Isso representa ser um sério problema”.
Os fóruns mundiais resultaram em acordos internacionais que
orientam os países a estabelecerem sistemas legais reguladores do
acesso, do controle, da transferência e da propriedade dos recursos
genéticos das plantas. Os debates nesses acordos internacionais são
dominados pelo interesse econômico e, por isso, podem colocar em
desvantagem os países economicamente mais frágeis e os agriculto-
res com poucos recursos.
Nos países industrializados, os direitos dos melhoristas de plan-
tas são assegurados desde 1930 para estimular o investimento priva-
do no melhoramento de plantas. Eles são considerados não-confli-
tantes com os princípios de patrimônio comum da humanidade, já
que não restringem o uso das variedades protegidas como uma fonte
livre para o melhoramento adicional. No início dos anos 90, a CDB
e os TRIPS resultaram numa situação diferente da que foi elaborada
originalmente pela FAO e nas versões preliminares da UPOV. A
modesta proposta original da FAO que acomodava o manejo tradi-
cional de recursos genéticos e o livre intercâmbio foi revogada e

224

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substituída por uma versão chamada de uma aproximação indus-
trial, que vê os recursos genéticos como uma commodity econômica
sujeita à soberania nacional e a regimes da propriedade intelectual.
O acesso, o controle, a transferência e a propriedade dos recursos
genéticos tornaram-se um assunto da política global, de Norte-Sul,
de “tem que ou não tem que”. A proteção dos direitos dos melhoristas
de plantas fortaleceu-se nas negociações da UPOV, em 1991, limi-
tando formalmente os agricultores na multiplicação das suas pró-
prias sementes de variedades protegidas e no uso de variedades pro-
tegidas para melhoramento futuro. O Tratado Internacional em
RGPAA desenvolveu um sistema para permitir a troca de RGP de
cultivos alimentares importantes.

REFLEXÃO EM UM CONTEXTO DE DESENVOLVIMENTO LOCAL


No contexto do melhoramento participativo de plantas, em
muitos países, os agricultores e o desenvolvimento de cultivos locais
[ainda] não foram varridos pela abordagem industrial. Em muitas re-
giões do mundo, particularmente as marginais e pobres, os agriculto-
res mantêm sua capacidade inovadora e de adaptação, respondendo
às mudanças ecológicas e sociais. Tais situações são dominantes no
que pode ser considerado “uma periferia” no mundo não-industriali-
zado. Um dos principais argumentos por trás do manejo nas unida-
des de produção como estratégia de conservação é que os agriculto-
res nessa “periferia” pouco se beneficiaram dos avanços na pesquisa
e no desenvolvimento agrícola.5 Mediante atividades do sistema
institucional na conservação in situ e nas unidades de produção, o
manejo local da diversidade genética por agricultores pode ser for-
talecido (um objetivo claro de desenvolvimento), tendo como re-
sultado mais do que apenas a conservação de germoplasma. O ob-
jetivo do melhoramento participativo de cultivos deve estar asso-
ciado ao sistema de melhoramento de cultivos e de conservação de
RGP. As leis e os regulamentos de acesso afetam tais interações.
Deve-se discutir a extensão da propriedade intelectual e quais leis
de proteção de variedades influenciam as oportunidades para o me-
lhoramento participativo de cultivos e o manejo comunitário da
agrobiodiversidade.

225

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5.2 ASPECTOS ESPECÍFICOS DO ACESSO AO PATRIMÔNIO
GENÉTICO E DO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO À
BIODIVERSIDADE

Nivaldo Peroni, Tatiana Miranda e Natalia Hanazaki

Estratégias participativas utilizadas em projetos que envolvem


comunidades tradicionais e indígenas pressupõem uma intensa tro-
ca de conhecimentos, tanto locais como científicos. No contexto
acadêmico, já na década de 1980, discutia-se o caráter ético de se
expor e de se apropriar de conhecimentos sobre o uso de plantas e de
animais e de funções ecológicas desenvolvidas ao longo do tempo
pela experiência empírica de populações tradicionais e indígenas.6
Por outro lado, principalmente quanto à categoria plantas medici-
nais, motivou-se um amplo debate sobre a apropriação, por parte de
empresas farmacêuticas, de princípios ativos que poderiam ser en-
contrados mais rapidamente utilizando-se do conhecimento tradi-
cional.7 Tal preocupação justifica-se quando se sabe que 75% dos
120 princípios ativos atualmente isolados de plantas superiores e
largamente utilizados na medicina moderna têm utilidades que foram
identificadas por sistemas tradicionais.8 Junto com a apropriação de
recursos já se debatia, não só no meio acadêmico mas também no
âmbito da sociedade civil, a necessidade da repartição eqüitativa de
benefícios advindos da comercialização de produtos e processos re-
sultantes do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradi-
cional associado.9 Em meados de 2000, algumas ações de empresas
transnacionais na Amazônia brasileira culminaram em reações go-
vernamentais para evitar o desequilíbrio na repartição de benefícios
não só para “comunidades tradicionais” específicas, como também
para a nação como um todo.
A atual legislação brasileira define, na forma de Medida Pro-
visória (MP), as regras para acesso ao patrimônio genético. Está em
fase de discussão uma lei específica que regulamente esse acesso,
como também o acesso ao conhecimento tradicional associado à bio-
diversidade. O histórico dessas regulamentações está diretamente
relacionado à necessidade de se resguardar o patrimônio genético e

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cultural associado de cada país. O que até a década de 80 era consi-
derado “patrimônio da humanidade” passa a ser considerado como
recurso, sujeito a restrições de acesso. Os fatores que originaram
essa mudança de perspectiva são diversos, porém, em termos de re-
gulamentação, a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) re-
presenta o seu ponto de origem.
O Brasil ratificou a CDB em 1994, mas o processo da imple-
mentação plena ainda não conta com uma lei específica que regula-
mente definitivamente o acesso e o uso do patrimônio genético do
país. Parte de sua regulamentação deu-se pela MP nº 2.186-16 (23/
08/2001), que “dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a
proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a re-
partição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de
tecnologia para sua conservação e utilização”. Os fundamentos da
legislação de acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos
tradicionais associados são:
• Estabelecer a base legal para controle do acesso.
• Garantir a repartição eqüitativa de benefícios.
• Estabelecer a base legal dos acordos.
• Garantir os direitos dos detentores de conhecimentos tradi-
cionais associados.

As atividades regulamentadas pela MP são:


• Pesquisa Científica.
• Bioprospecção.
• Desenvolvimento Tecnológico.

A MP, regulamentada pelo Decreto nº 3.945, de 2001 (modifi-


cado pelo Decreto nº 4.946/03), dispõe que o acesso e a remessa do
patrimônio genético, bem como o acesso ao Conhecimento Tradi-
cional Associado existente no país, passaram a depender de autori-
zação do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN).10
Esse conselho está vinculado ao Ministério do Meio Ambiente
(MMA) e é um órgão de caráter deliberativo e normativo, constituí-
do por diversos ministérios, por órgãos e entidades da administra-
ção pública federal e por representantes da sociedade civil, com
direito a voz, mas não a voto. Esse conselho passou a deliberar sobre

227

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processos que envolvem acesso ao patrimônio genético para fins de
bioprospecção e desenvolvimento tecnológico, acesso ao conheci-
mento tradicional associado para quaisquer finalidades e credencia-
mento de instituição fiel depositária de amostras do patrimônio ge-
nético. A seguir, são apresentadas algumas definições específicas
para melhor compreensão dos termos, das regras e das condicionantes
que o CGEN propõe. Como atualmente a regulamentação encontra-
se em fase de constante mudança e adequação à realidade brasileira,
recomenda-se consultar informações atualizadas no próprio site do
CGEN11 e acessando as “Regras para o Acesso Legal ao Patrimônio
Genético e Conhecimento Tradicional Associado”, do MMA.10

SOBRE CONCEITOS E DEFINIÇÕES LEGAIS


No debate sobre acesso a recursos genéticos é importante ter
em mente como alguns conceitos são tratados dentro da esfera legal
no Brasil. Para melhor entendimento, apresentamos a visão institu-
cional e legal e a visão científica de alguns desses temas e concei-
tos. Cabe lembrar que foram escolhidos apenas os temas/conceitos
que melhor ilustram a situação específica frente ao assunto.

Biodiversidade
• Institucionalmente, segundo o Sistema Nacional de Unida-
des de Conservação (SNUC),12 biodiversidade é definida como sendo
“a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreen-
dendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros
ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem
parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre
espécies e de ecossistemas”.
• Na área de conhecimento das ciências biológicas, especifica-
mente na ecologia, essa definição considera também que “diversi-
dade” é “a variedade e abundância de espécies em uma definida área
de estudo”.13

Patrimônio genético
• A definição legal de patrimônio genético diz que é a “informa-
ção de origem genética contida em amostras do todo ou de parte de
espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de molé-

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culas e substâncias provenientes do metabolismo desses seres vivos
e de extratos obtidos desses organismos vivos ou mortos, encontra-
dos em condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos em
condições ex situ, desde que coletados in situ no território nacional,
na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva”.
• Já a definição legal de acesso ao patrimônio genético diz que
é “Qualquer atividade que vise à obtenção de amostra de componen-
te do patrimônio genético, isto é, atividades que objetivem isolar,
identificar ou utilizar informação de origem genética, em moléculas
ou substâncias provenientes do metabolismo dos seres vivos, extra-
tos obtidos desses organismos, com a finalidade de pesquisa cientí-
fica, desenvolvimento tecnológico ou bioprospecção, visando a sua
aplicação industrial ou de outra natureza”. Assim, segundo o CGEN,
coleta é diferente de acesso.

Conhecimento tradicional
• A definição legal atualmente utilizada no Brasil, na Medida
Provisória, conceitua o conhecimento tradicional associado como a
“informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indíge-
na ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao
patrimônio genético”, incluindo-se técnicas de manejo de recursos
naturais, métodos de caça e pesca, conhecimentos sobre os diversos
ecossistemas e sobre propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrí-
colas de espécies e as próprias categorizações e classificações de
espécies da flora e fauna, utilizadas por populações tradicionais.8
• Outras definições são: “Conhecimento ecológico local é o con-
junto de conhecimentos, de práticas e de crenças acumulados, que
evoluem por meio de processos adaptativos, passando por gerações
através da transmissão cultural, sobre as relações entre seres vivos e
entre esses e seu ambiente”14; o Conhecimento tradicional resulta de
atividades e práticas coletivamente desenvolvidas na floresta14; e “o
conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e so-
brenatural, transmitido oralmente, de geração em geração”.15
• Como definição legal de acesso a conhecimento tradicional
associado tem-se: “É a obtenção de informação sobre o conheci-
mento ou prática individual ou coletiva, associada ao patrimônio
genético, de comunidade indígena ou de comunidade local, para fins

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de pesquisa científica, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico,
visando a sua aplicação industrial ou de outra natureza”. Cabe desta-
car que é considerada provedor do conhecimento tradicional asso-
ciado a comunidade indígena ou local (ribeirinhos, quilombolas,
dentre outros) que detém o conhecimento ou a prática individual ou
coletiva associados ao patrimônio genético e os disponibiliza para
terceiros mediante anuência prévia.
• Intrinsecamente relacionado ao conceito de conhecimento tra-
dicional, uma comunidade local é definida como “grupo humano,
incluindo remanescentes de comunidades de quilombos, distinto por
suas condições culturais, que se organiza, tradicionalmente, por ge-
rações sucessivas e costumes próprios e que conserva suas institui-
ções sociais e econômicas”10.

SOLICITAÇÃO LEGAL DE ACESSO


A solicitação de acesso e/ou de remessa de patrimônio genéti-
co e conhecimento tradicional associado deve ser feita por pessoa
jurídica. Quando instituições estrangeiras estão incluídas em pes-
quisas, elas devem estar sob coordenação de instituição nacional
pública, a qual deverá solicitar autorização à autoridade competente
– Orientação Técnica nº 3 do CGEN16. Cabe lembrar que o CNPq/
MCT tem a competência legal para autorizar a presença de estran-
geiros no Brasil para a realização dessas atividades.
Os requisitos básicos para a solicitação de autorização de acesso
são: instituição nacional, pública ou privada, com atividades de
pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas ou afins; qualifica-
ção técnica; projeto de pesquisa; anuência prévia do titular da área/
detentor do conhecimento tradicional associado; se houver acesso a
patrimônio genético: estrutura disponível; depósito de subamostra;
destino das amostras; contrato de repartição de benefícios.17 Consi-
derando que todas estas discussões acontecem num cenário recente
e dinâmico, recomenda-se que o site do CGEN18 seja consultado
para esclarecimentos sobre os detalhes técnicos das solicitações,
especialmente o manual com regras para o acesso legal ao patrimô-
nio genético e conhecimento tradicional associado.
A não-observância das prerrogativas da MP nº 2.186-16 está
regulamentada pelo Decreto nº 5.459 (07/06/2005), que disciplina

230

Biodiversidade 0204.P65 230 5/4/2007, 10:48


as sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao patrimônio
genético ou ao conhecimento tradicional associado. Toda ação ou
omissão que violem as normas da MP nº 2.186-16 são consideradas
infrações administrativas contra o patrimônio genético ou o conhe-
cimento tradicional associado, no Brasil. As seguintes sanções po-
dem ser aplicadas às pessoas físicas ou jurídicas: advertência; mul-
ta; apreensão de amostras; apreensão de produtos; suspensão de venda
de produtos; embargo de atividades; interdição do estabelecimento;
cancelamento e/ou suspensão do registro, da patente, da licença ou
da autorização; perda ou restrição de incentivos fiscais; intervenção
no estabelecimento e proibição de contratar com a administração
pública por período de até cinco anos. As multas variavam, em 2006,
de 100 a 200 mil reais, quando se tratar de pessoa física, e de 10 mil
a 50 milhões de reais, quando for pessoa jurídica.
As experiências práticas da execução dessas regulamentações
têm se mostrado desafiadoras para a maioria dos pesquisadores não
acostumados ao trâmite excessivamente burocrático. Entende-se o
momento atual como um período de transição e que muitas das exi-
gências ainda carecem de adequação à realidade dos pesquisadores
e das comunidades tradicionais. Como já dito, a MP transformou
todo cientista em um biopirata potencial.19
Os problemas são diversos e em diferentes esferas. Por exem-
plo, muitas pesquisas no âmbito de cursos de pós-graduação têm
encontrado dificuldade em compatibilizar os prazos de execução de
teses com as exigências legais. Algumas pesquisas são inviabilizadas,
pois alunos ingressantes precisam se deslocar para os locais de estu-
do para obter as anuências antes do início do projeto, não dispondo
de recursos institucionais para essa etapa prévia ao projeto. Além
disso, para o morador local ou indígena, muitas vezes não faz senti-
do a exigência de uma declaração assinada sobre o uso das informa-
ções que serão repassadas para o pesquisador, uma vez que a anuência
verbal já foi estabelecida. Em alguns casos, a anuência prévia tem
gerado desconfiança e um retrocesso nas relações entre pesquisador
e população local e na construção do rapport.20
Na prática, as solicitações devem ser feitas por intermédio do
dirigente da instituição, e, para casos de pesquisas de curta duração,
isso implica a previsão de um tempo maior entre a elaboração e a

231

Biodiversidade 0204.P65 231 5/4/2007, 10:48


realização de um projeto. Implica também a previsão de recursos
prévios à elaboração de um projeto de pesquisa, para que os conta-
tos iniciais com os moradores sejam estabelecidos, os propósitos e
resultados esperados da pesquisa sejam discutidos e as anuências
sejam obtidas.
A título de exemplo, um projeto de mestrado com finalidade
de pesquisa científica que deveria ser executado num período de
dois anos levou cerca de dez meses, entre a entrada na Secretaria
Executiva do CGEN e o parecer final do órgão. Antes de o projeto
ser enviado, o processo de contatos prévios e solicitação de anuências
informais levou cerca de oito meses e consumiu parte dos recursos
previstos para a pesquisa. Esse projeto previa o acesso ao conheci-
mento associado à biodiversidade de moradores de uma área de con-
servação. No entanto, a presença de moradores dentro dessa área de
conservação não era aceita pelas instituições governamentais res-
ponsáveis pelo gerenciamento da área, já que se tratava de uma uni-
dade de conservação de uso indireto. Criou-se, então, uma situação
contraditória, na qual os moradores deveriam ser signatários de um
documento (termo de anuência prévia) que os atestava como ocu-
pantes ilegais, deslocando o foco de discussão para a pertinência
daquela categoria de conservação para a área e para a legalidade na
ocupação da terra, que não eram objetivos do projeto e tampouco
questões solucionáveis por um estudante de mestrado. Os termos de
anuência prévia foram discutidos com os moradores e apenas dois
dentre 41 concordaram em assiná-lo, embora todos os outros 39 ti-
vessem concordado com a pesquisa, fornecendo seus nomes com-
pletos. Nesse caso, se o direcionamento ético do pesquisador é o de
respeitar as normas locais, a assinatura de um documento contradiz
o entendimento local sobre o que é a anuência para a pesquisa.
No caso de comunidades locais ou tradicionais que reconhe-
çam um líder, essa pessoa pode ser a responsável pela assinatura de
um único termo de anuência prévia. Entretanto, não é em todas as
comunidades que o sistema institucional local reconhece a figura de
um líder comunitário. Muitas vezes, há diferentes pessoas reco-
nhecidas como lideranças, que podem, inclusive, ser lideranças
opostas. Outras vezes, há diferentes pessoas reconhecidas como
lideranças dependendo do universo de conhecimentos tratado (por

232

Biodiversidade 0204.P65 232 5/4/2007, 10:48


exemplo, o líder político, a líder do clube de mães, o agente de
saúde, o ancião, o líder religioso, dentre outros).
Uma última questão se refere à diversidade cultural existente no
país. Esta diversidade cultural se expressa sob diferentes etnias e sob
diferentes hábitos, costumes, crenças e conhecimentos construídos a
partir da relação entre diversidade cultural e diversidade biológica. A
tentativa de regulamentar o acesso ao conhecimento tradicional as-
sociado à biodiversidade vem na direção de cumprir normas interna-
cionais e de proteger o capital cultural e tecnológico, entendendo-se
tecnologia como o conjunto de conhecimentos que se aplicam a um
determinado ramo de atividades. Apesar da necessidade de estabele-
cer regulamentação ao conhecimento tradicional e à biodiversidade,
e apesar das tentativas de se criarem normatizações com alguma fle-
xibilidade, essas tentativas sempre ocorrerão de maneira homoge-
neizadora para uma heterogeneidade de situações.
O que se espera, neste momento, é compatibilizar o acesso a
esses recursos com a devida repartição de benefícios. Entretanto,
também se espera desenvolver mecanismos que não descaracterizem
e inviabilizem os elementos fundamentais que permitiram e permi-
tem que se produzam novos conhecimentos tradicionais. Baseados,
em parte, na livre circulação de recursos e de conhecimentos através
de trocas e de relações de reciprocidade, estas são características
fundamentais das populações tradicionais e indígenas do Brasil, que
podem estar sendo seriamente comprometidas21.

5.3 BIODIVERSIDADE CERCADA: QUEM É DONO?

Ângela Cordeiro

Nas últimas duas décadas, ocorreu uma série de mudanças no


marco legal que rege a propriedade intelectual e o acesso à biodiver-
sidade, silvestre e cultivada, trazendo sérias implicações para todas
as atividades que envolvem o uso e manejo dos recursos biológicos.
Por um lado, a Organização Mundial do Comércio (OMC) impul-

233

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sionou a “harmonização” da legislação de propriedade intelectual
entre os países membros, exigindo a extensão de direitos de “prote-
ção” sobre plantas, sementes, genes e substâncias derivadas, seja
por meio de patentes ou de mecanismos sui generis. Ao mesmo tem-
po, a entrada em vigor da Convenção sobre Diversidade Biológica
(CDB) reconheceu o direito soberano dos Estados sobre os seus re-
cursos biológicos e propôs a adoção de mecanismos para garantir a
repartição justa e eqüitativa de benefícios resultantes da exploração
econômica da biodiversidade (ver também Capítulo 5.1).

LEIS RELEVANTES À PROPRIEDADE INTELECTUAL


O Brasil, país rico em biodiversidade e conhecimento tradicio-
nal, fez boa parte da lição de casa, particularmente no campo da
propriedade intelectual (ver Quadro 5.3.1). A partir de meados da
década de 1990, aprovou mudanças na Lei de Propriedade Indus-
trial, estendendo o direito de patentes para microrganismos geneti-
camente modificados. No mesmo período, aprovou a Lei de Culti-
vares, reconhecendo o direito de proteção de variedades de plantas
utilizadas na agricultura. A Lei de Biossegurança, indiretamente re-
lacionada com o tema, foi aprovada e posteriormente modificada
para acomodar os interesses das indústrias produtoras de organis-
mos geneticamente modificados. A Lei de Sementes, cuja última
versão era de 1977, foi revista e atualizada com o intuito de promo-
ver o uso de sementes de variedades comerciais e eliminar/reduzir o
uso de sementes produzidas pelos próprios agricultores. A nova ver-
são da Lei de Sementes incluiu um capítulo exclusivo para mudas
de espécies florestais e medicinais, prevendo condições ainda mais
restritas para a produção e a comercialização de mudas.

Quadro 5.3.1 – Legislação relevante em vigor no Brasil

Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.79, de 15/05/96): Regula os direitos


e obrigações referentes à propriedade industrial, incluindo patentes, desenho indus-
trial, marcas e indicação geográfica. Não permite o patenteamento do todo ou parte
de seres vivos, mas autoriza o patenteamento de microrganismos geneticamente mo-
dificados que atendam os requisitos de inventividade, atividade inventiva e aplica-
ção industrial. O projeto de lei tramitou durante sete anos no Congresso, gerando
grande mobilização da sociedade civil. Na época, mais de 150 organizações, in-

234

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cluindo entidades representativas do setor industrial nacional e acadêmico, reuni-
ram-se no Fórum pelo Uso da Liberdade do Conhecimento para reagir ao projeto
de lei que propunha a extensão de patentes a formas de vida. Desde a aprovação da
lei, projetos de leis (PLs) foram apresentados buscando ampliar os direitos de
patentes sobre formas de vida.
Lei de Cultivares (Lei nº 9.456, de 28/04/97): Essa lei instituiu o Serviço Na-
cional de Proteção de Cultivares (SNPC), ligado ao Ministério da Agricultura. As
instituições de pesquisa pública ou privada que desenvolvem novas variedades fazem
o registro da nova variedade no SNPC. Para isso, a variedade tem que atender aos re-
quisitos de ser uniforme, estável e distinta. Por pressão de setores organizados da
sociedade civil, ficou mantido o direito de os pequenos agricultores reproduzirem
sementes de variedades registradas para uso próprio ou troca (Artigo 10).
Lei de Sementes (Lei nº 10.711, de 05/11/2003, e Decreto nº 5.153, de 23/
07/2004): Dispõe sobre o Sistema Nacional de Sementes e Mudas. A primeira
versão dessa lei, enviada pelo Executivo para discussão no Congresso em julho
de 1998, praticamente proibia que os pequenos agricultores produzissem semente
própria. A mobilização de setores organizados da sociedade civil possibilitou al-
terar o texto original e incluir artigos reconhecendo as crioulas (Artigo 2o-XVI) e
o direito de agricultores familiares, povos indígenas e assentados de reforma agrária
produzirem, trocarem e comercializarem entre si sementes de variedades crioulas
(Artigo 8o e artigo 11o). A lei prevê, ainda, que não pode haver obstáculos para o
uso de sementes crioulas em programas governamentais (Artigo 48o). Durante a
aprovação do decreto que regulamentou a lei, novas mobilizações foram necessá-
rias para manter as exceções aprovadas nela. No entanto, o capítulo XII, que trata
das espécies florestais, nativas ou exóticas e das de interesse medicinal ou am-
biental, definiu normas bem restritivas à produção e à comercialização de mudas,
colocando limitações a agroecossistemas de base florestal.
Medida Provisória de Acesso (MP nº 2.186-16, de 23/08/2001): Dispõe sobre
o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicio-
nal associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de
tecnologia (ver também Capítulo 5.2). Essa MP, editada pelo Poder Executivo,
atropelou outros projetos de lei que tramitavam no Congresso, o primeiro deles
apresentado em 1995 pela então senadora Marina Silva. Em 2003, o Governo
empossado retomou a elaboração de um PL específico para encaminhar ao Congres-
so. A proposta, discutida inclusive com alguns setores da sociedade civil, ficou
estacionada na Casa Civil por falta de consenso no âmbito do próprio governo.
Crimes de Biopirataria (Decreto nº 5.459, de 07/06/2005): Define penalida-
des aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao patrimônio genético ou ao co-
nhecimento tradicional associado. As infrações previstas no decreto incluem, en-
tre outros, acessar o conhecimento tradicional para fins de pesquisa e bioprospecção
e/ou difundi-lo sem autorização do órgão competente; acessar o patrimônio gené-
tico para fins de pesquisa e bioprospecção sem autorização do órgão competente;
remeter componente do patrimônio genético para o exterior sem autorização; não
cumprir as regras de repartição de benefícios. As penalidades incluem multas, não
excluindo a possibilidade de aplicação de sanções do Código Penal.

235

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LEIS RELEVANTES AO ACESSO
Em relação aos compromissos assumidos na CDB, o país foi
menos eficiente. As regras para equacionar o acesso ao patrimônio
genético e conhecimento tradicional associado e repartição de bene-
fícios foram definidas por meio de MP e, até o final de 2006, o
governo e o Congresso não haviam sido capazes de discutir e apro-
var uma lei específica para tratar a questão. De qualquer maneira, a
MP nº 2.186-16 (23/08/2001) definiu, para a pesquisa e para a in-
dústria, novas normas de conduta frente ao patrimônio genético e
conhecimento tradicional associado. Qualquer atividade que envol-
va acesso e remessa do patrimônio genético e acesso ao conheci-
mento tradicional associado tem que ser autorizada pelo Conselho
de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). A obtenção do docu-
mento de anuência prévia junto à comunidade local é condição para
que o CGEN autorize o acesso ao conhecimento tradicional. O Ca-
pítulo 5.2 explica em detalhes a MP de acesso.

NOVOS CONCEITOS E IMPLICAÇÕES SOBRE PROPRIEDADE E ACESSO


Esse emaranhado de regras e normas, envolvendo tanto o cam-
po da propriedade intelectual como a conservação da biodiversidade,
afeta instituições de pesquisa, universidades, órgãos governamentais,
empresas privadas, organizações não-governamentais, povos indíge-
nas, comunidades locais e agricultores. Em todos os casos, as regras
criam barreiras ao livre acesso aos recursos biológicos. As leis de
propriedade intelectual facultam ao obtentor, por um determinado
período, o direito exclusivo de decidir sobre o uso do recurso prote-
gido, ou seja, quem pode explorá-lo economicamente e sob quais
condições. As normas propostas pela CDB, como aquelas definidas
na MP de acesso, conferem aos detentores do patrimônio genético e/
ou conhecimento associado a prerrogativa de autorizar o acesso e de
negociar contratos para a repartição de benefícios com a parte inte-
ressada em explorar o recurso e/ou o conhecimento em questão.
Desta forma, assume-se a existência de um “dono” (ou donos) dos
componentes da biodiversidade e do conhecimento associado. As re-
gras de propriedade intelectual reconhecem esse direito à indústria, à
universidade ou à empresa de pesquisa que patenteou o princípio ati-
vo da planta “x”, bem como o direito da empresa, pública ou privada,

236

Biodiversidade 0204.P65 236 5/4/2007, 10:48


que registrou a semente da variedade “y”, transgênica ou não. As regras
de acesso propostas pela CDB não negam os direitos de proteção via
patentes ou outros mecanismos, mas exigem que seja feito um contra-
to de repartição de benefícios com o “dono original” do recurso.
É notório que a disputa em relação ao controle do acesso aos
recursos biológicos é fato antigo na história da humanidade e práti-
ca comum no período colonial. Tampouco cabe afirmar que antes da
CDB o conhecimento tradicional era, por natureza, de livre acesso.
Na América Latina há inúmeros exemplos de que, desde o período
pré-colonial, os povos indígenas dispõem de sistemas jurídicos pró-
prios que regulam a apropriação e uso do conhecimento e territó-
rio,22 fato também observado em comunidades tradicionais da Áfri-
ca23 e da Ásia24. Em diferentes culturas é possível verificar que o
conhecimento tradicional, embora de usufruto coletivo, possui dife-
rentes categorias de acesso, apresentando um gradiente que vai do
domínio coletivo até aqueles classificados como sagrados, e que são
de domínio exclusivo de determinados membros da comunidade.25
Todavia, as regras em vigor atualmente não encontram parale-
lo em outros períodos da história e em outras culturas. Os mecanis-
mos de propriedade intelectual e de acesso subordinam bens vitais a
uma lógica mercantil, tratando-os como simples mercadoria. Para
utilizar a semente da variedade “protegida” se paga uma taxa de
royalty, mantendo-se a proibição de reprodução da semente por quem
pagou pelo direito de uso. O conhecimento tradicional, inclusive o
sagrado, pode ser negociado por meio de contratos, os quais geral-
mente contêm cláusulas de exclusividade restringindo o acesso de
outras partes não-envolvidas na negociação.
Essa abordagem mercantil é bastante sedutora, criando a ilu-
são de que os contratos sobre a biodiversidade podem resultar em
grandes lucros e corrigir injustiças da biopirataria. Os governos dos
países megadiversos vêem os contratos de repartição de benefícios
e a inclusão de cláusulas sobre conhecimento tradicional em acor-
dos comerciais bilaterais26 como oportunidades para obter dividen-
dos sobre sua biodiversidade, imaginando poder usufruir da pro-
priedade intelectual da mesma forma que os países industrializados.
Essa percepção não é exclusiva de governos e tecnocratas governa-
mentais obrigados a desenvolver normas para se adequar ao jogo,
mas também está presente no discurso de várias organizações não-

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governamentais e de lideranças de comunidades locais detentoras
de conhecimento tradicional.
A biopirataria nos países megadiversos e a expropriação histó-
rica de conhecimento e recursos biológicos das comunidades locais
são argumentos fortes para justificar a crença de que normas rígidas
de acesso vinculado à repartição monetária de benefícios podem re-
solver injustiças históricas. Mas isso não elimina questões-chaves
sobre a aplicabilidade destas soluções:
• Quem é o dono do benefício?
• Quem é o dono de uma planta e/ou do conhecimento utiliza-
do por mais de um povo?
• Como ficam as demais comunidades que compartilham o co-
nhecimento e que ficam fora do acordo?

A situação atual permite fazer um paralelo com o que ocorreu


na Europa no século XIV, quando territórios tradicionalmente de
uso comunal foram cercados e apropriados em caráter privado, ex-
cluindo milhares de pessoas do direito de acesso e uso da terra.27 A
aplicação de mecanismos de propriedade intelectual sobre formas
de vida e a normas “mercantis” de acesso à biodiversidade são “cer-
cas modernas” que eliminam o direito de agricultores produzirem
sua semente, de países pesquisarem sua flora para desenvolver no-
vos medicamentos e, mais grave, introduzem uma ideologia mer-
cantil na gestão do conhecimento tradicional, com grande potencial
de geração de conflito entre as próprias comunidades.

IMPLICAÇÕES SOBRE OS RECURSOS GENÉTICOS AGRÍCOLAS


Se é difícil pensar mecanismos de repartição de benefícios para
componentes da biodiversidade silvestre, a situação ainda é mais com-
plexa quando se trata de espécies cultivadas. Desde o período colonial,
as espécies agrícolas viajaram do seu centro de origem para outros con-
tinentes, modificando radicalmente a dieta dos povos.28 Portanto, atual-
mente, as nações são interdependentes de recursos genéticos, existin-
do pouco espaço para sistemas restritivos de acesso.
No caso das comunidades locais, os recursos e o conhecimen-
to tradicional associado estão ainda mais difusos, dificultando iden-
tificar quem é o dono de determinada variedade. Soma-se a isso o

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aspecto dinâmico de gestão das variedades locais29 com o fluxo con-
tínuo de entrada e saída de genes,30 fatos que tornam impossível
qualquer tipo de “enquadramento estático” como aquele utilizado
para o registro de cultivares comerciais, assentado em critérios de
uniformidade, estabilidade e distinguibilidade.
Não tratado de forma clara pela CDB, o acesso aos recursos
genéticos de espécies agrícolas conta, desde novembro de 2001, com
um instrumento internacional aprovado no âmbito da FAO denomi-
nado Tratado Internacional de Recursos Fitogenéticos para a Agri-
cultura e Alimentação31 (ver também Capítulo 5.1 e Quadro 5.3.2).
Esse acordo é o resultado de um processo de 22 anos de discussão e
de sete anos de negociação formal, tendo sido adotado por consen-
so, com abstenção apenas do Japão e dos Estados Unidos, durante a
XXXI Conferência da FAO. Depois de receber a 40ª ratificação, o
tratado entrou em vigor em junho de 2004. O Brasil assinou em
junho de 2002 e ratificou, em abril de 2006, por meio do Decreto
Legislativo nº 70, fato que obriga o país a aprovar uma lei nacional
específica em conformidade com o compromisso assumido.

Quadro 5.3.2 – Principais definições do Tratado Internacional


sobre Recursos Fitogenéticos da FAO31, 32

Quais os objetivos do tratado? O tratado tem como objetivo a conservação e


uso sustentável dos recursos genéticos utilizados na agricultura e alimentação e a
repartição justa e eqüitativa de benefícios por meio de um Sistema Multilateral.
O que o Sistema Multilateral abrange? Ele cobre uma lista de espécies ali-
mentícias e forrageiras, mantidas em coleções ex situ de domínio público e mantidas
por governos.
O que está fora do Sistema Multilateral? (i) Coleções privadas mantidas por
empresas, ONGs, agricultores, cooperativas, etc.; (ii) Variedades mantidas in situ
e on farm; (iii) Materiais “em desenvolvimento”, ou seja, sob processo de melho-
ramento.
Quem pode ter acesso às coleções reguladas pelo tratado? Todo mundo, in-
clusive empresas. De acordo com decisões tomadas em 2006, na primeira reunião
do Órgão Gestor do Tratado, essa decisão poderá ser revista na terceira reunião do
órgão, prevista para 2010.
Quais as condições para ter o acesso? O acesso é concedido apenas para
atividades de conservação, pesquisa ou melhoramento. Não se pode fazer uso
direto da semente, ou seja, plantar para multiplicar com finalidade de uso comer-
cial do material sem passar por uma seleção massal prévia, por exemplo. Para
acessar o material, basta preencher o Termo de Transferência de Material (TTM).

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É possível patentear produtos obtidos por meio de materiais acessados no
âmbito do tratado? Não e sim. O texto do tratado é ambíguo. Por um lado, afirma
que patentes não são permitidas nos materiais na “forma recebida” por meio do
Sistema Multilateral. Há quem interprete que se o gene do material acessado for
levemente modificado, o novo produto poderá ser patenteado, uma vez que não se
encontrará mais na “forma recebida”. A ausência de mecanismos claros para re-
solver disputas é um outro limitante. Esse é um dos temas de maior ambigüidade
no tratado e não solucionado no TTM aprovado em 2006.
Qual o mecanismo de “repartição de benefícios” previsto? O tratado prevê
mecanismos monetários e não-monetários. A primeira reunião do Órgão Gestor
do Tratado, realizada em junho de 2006 em Madri, Espanha, aprovou uma taxa de
1,1% sobre as vendas de sementes de variedades que incorporem características
de materiais obtidos por meio do Sistema Multilateral. É previsto um desconto de
30%, o que pode baixar essa taxa para 0,77%. O pagamento é obrigatório se a
variedade em questão não estiver disponível para utilização em outros programas
de melhoramento. É voluntário, caso o material esteja disponível. Os valores po-
dem ser revistos em 2009, cinco anos após a entrada em vigor do tratado. Os
mecanismos não-monetários incluem intercâmbio de informações, apoio ao forta-
lecimento da capacidade institucional para a pesquisa científica e transferência de
tecnologia.
O que é feito com o dinheiro levatando por meio da repartição de benefícios?
O tratado prevê que os recursos devem ir para um fundo comum para apoiar
atividades de conservação desenvolvidas por agricultores em todos os países, es-
pecialmente naqueles em desenvolvimento. Como os recursos levantados por meio
desse mecanismo são pequenos, não dá para ter grandes expectativas.
Como ficam os “Direitos dos Agricultores”? O tratado reconhece a impor-
tante contribuição dos agricultores à conservação dos recursos genéticos utiliza-
dos na agricultura e na alimentação, mas não define o escopo desses direitos. A
responsabilidade de implementar e definir em mais detalhes foi delegada à legis-
lação nacional a ser implementada por cada governo, como bem lhe prouver.

O Tratado de Recursos Fitogenéticos para a Agricultura e Ali-


mentação da FAO, ou “Tratado de Sementes”, como é chamado numa
forma mais popular, reconhece a soberania dos países sobre os recur-
sos genéticos, propondo a facilitação do acesso mediante a implemen-
tação de um Sistema Multilateral envolvendo as partes contratantes.
Todos os recursos genéticos utilizados na agricultura e na alimenta-
ção estão sujeitos às normas gerais do tratado, em particular aquelas
relacionadas à conservação e uso sustentável. Todavia, o Sistema
Multilateral de acesso e repartição de benefícios abrange apenas um
grupo de espécies alimentícias e forrageiras consideradas relevantes
para a segurança alimentar, definido em um árduo processo de nego-
ciação (Quadro 5.3.3). Como a CDB não regula as coleções ex situ

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mantidas em bancos de germoplasma, o tratado é apontado como o
principal instrumento legal internacional para reger o acesso e repar-
tição de benefícios de recursos genéticos agrícolas.33

Quadro 5.3.3 – Tratado de Sementes da FAO: Nome comum do cultivo e


gênero das espécies alimentícias e relação de gêneros e número de
espécies de forrageiras incluídas no Sistema Multilateral de Acesso e
Repartição de Benefícios.34

Aipim/Mandioca (Manihot) Ervilha (Pisum)


Aspargo (Asparagus) Fava (Vicia)
Arroz (Oryza) Feijão (Phaseolus)
Aveia (Avena) Feijão Caupí (Vigna)
Banana Musa exceto Musa textilis Fruta-Pão (Artocarpus)
Batata (Solanum) Girassol (Helianthus)
Batata-doce (Ipomoea) Grão-de-bico (Cicer)
Beringela (Solanum) Guandú (Cajanus)
Beterraba (Beta) Taro, Mangarito, Taioba dos
Carás e Inhames (Dioscorea) gêneros Colocasia e Xanthosoma
Cenoura (Daucus) Lentilha (Lens)
Centeio (Secale) Maçã (Malus)
Cevada (Hordeu) Milheto (Pennisetum)
Chincho (Lathyrus) Milheto Africano (Eleusine)
Citrus em geral (Citrus) Milho (Zea)
Coco (Cocos) Morango (Fragaria)
Complexo Brassica, incluindo os Sorgo (Sorghum)
diversos gêneros. Inclui sementes Trigo (Triticum)
oleaginosas e hortaliças cultivadas, Triticale (Triticosecale)
como a couve, colza, mostarda,
nabo e rábano
Forrageiras Leguminosas: Astralagus (3), Canavalia (1), Coronilla (1),
Hedysarum (1), Lathyrus (6), Lespedeza (3), Lotus (3), Lupinus (3), Medicago
(6), Melilotus (2), Onobrychis(1), Ornithopus (1), Proposis (5), Pueraria(1),
Trifolium (15).
Forrageiras Gramíneas: Andropogon (1), Agropyron (2), Agrostis (2),
Alopecurus (1), Arrhenatherum (1), Dactylis (1), Festuca (6), Lolium (5), Phalaris
(2), Phleum (1), Poa (3), Tripsacum (1).
Outras Forrageiras: Atriplex (2), Salsola (1).

Em conformidade com a CDB, o Artigo 9 do tratado, sobre o


“Direito dos Agricultores”, reconhece a “enorme contribuição que as
comunidades locais e indígenas e os agricultores de todas as regiões do
mundo” fizeram para a conservação e desenvolvimento dos recursos

241

Biodiversidade 0204.P65 241 5/4/2007, 10:48


fitogenéticos. O conceito do “Direito dos Agricultores”, termo cunha-
do na década de 1980 e objeto de uma resolução da FAO editada em
1989, ficou enfraquecido e bem diferente do texto proposto no docu-
mento preliminar colocado para negociação, na qual se definia como:
“o direito de usar, trocar e, no caso de variedades locais e variedades
que caíram dos registros nacionais, produzir a própria semente”.35 Na
versão final, a implementação do “Direito dos Agricultores” foi dele-
gada aos governos nacionais (Art. 9.2), de acordo com “as suas neces-
sidades e prioridades”, sugerindo como possíveis medidas: proteção do
conhecimento tradicional; direito de participar na repartição de bene-
fícios; e direito de participar na tomada de decisões em nível nacional.
A primeira reunião do Órgão Gestor do Tratado teve como prin-
cipal resultado a aprovação do texto modelo do TTM.36 Uma das difi-
culdades para a repartição de benefícios é atribuir valores para os
genes. Não existe uma prática comercial padrão em torno do uso dos
recursos genéticos que possa ser considerada como referência.37 Após
intensos debates, os participantes aprovaram uma taxa de 1,1% sobre
a comercialização de sementes de variedades que incorporem carac-
terísticas de materiais acessados através do Sistema Multilateral. O
pagamento pode ser obrigatório ou voluntário (Quadro 5.3.2).
Tomando por base o valor atual do mercado mundial de se-
mentes, algo em torno de 30 bilhões de dólares, estimativas feitas
sugerem que a arrecadação prevista no tratado não superará 2,3 mi-
lhões de dólares, valor insuficiente para sustentar as funções admi-
nistrativas do tratado, quanto mais para beneficiar agricultores e/ou
comunidades que mantêm os recursos genéticos.38
Quanto à propriedade intelectual, o Artigo 12.3-d afirma que o
receptor de recursos genéticos não pode exigir qualquer tipo de direito
que limite o acesso ao material obtido ou sobre suas partes e compo-
nentes genéticos na “forma recebida” por meio do Sistema Multila-
teral. A expressão na “forma recebida” abre espaço para interpreta-
ções ambíguas de que a patente é possível caso o produto final tenha
uma forma diferente da recebida.
O Sistema Multilateral proposto pelo tratado é, sem dúvida,
melhor do que acordos bilaterais sugeridos pelas legislações nacio-
nais de acesso que vêm sendo implementadas para cumprir com os
compromissos da CDB. No entanto, algumas análises sugerem que

242

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as ambigüidades envolvendo o conceito de direito dos agricultores,
de propriedade intelectual e de mecanismos de repartição de benefí-
cios fazem do tratado um instrumento muito mais útil para as indús-
trias,39 que terão garantido o livre acesso às coleções públicas, ne-
nhuma obrigação de disponibilizar os seus materiais e nenhum im-
pedimento de continuar utilizando patentes e outros instrumentos
de propriedade intelectual para restringir o acesso aos cultivares
derivados de materiais acessados por meio do Sistema Multilateral.

PERSPECTIVAS FUTURAS
É legítima a preocupação de governos em deter a biopirataria,
buscando ter normas que estabeleçam uma relação mais justa e eqüi-
tativa entre quem abriga a biodiversidade e quem a explora econo-
micamente. É também legítimo o interesse de comunidades locais
de decidir sobre o uso e o acesso ao conhecimento tradicional asso-
ciado ao patrimônio genético. Mas isso não altera o fato de que a
opção por caminhos que legitimam o avanço da propriedade intelec-
tual sobre formas de vida, a extensão desse conceito para a “prote-
ção” do conhecimento tradicional e a repartição de benefícios como
simples negociações monetárias bilaterais empurram a sociedade
moderna para um beco sem saída.
Ao contrário do que foi preconizado, cada vez mais surgem
evidências de que a prescrição de normas restritivas de propriedade
intelectual como mecanismo universal para a difusão de inovação e
desenvolvimento econômico não pode ser generalizada, surgindo a
necessidade de flexibilizar as diretrizes propostas pela OMC, para
evitar o aprofundamento da desigualdade entre os países.40 Crescem
as controvérsias sobre a eficácia das patentes como principal indutor
do desenvolvimento tecnológico e econômico.41, 42 No Brasil, estudo
sobre documentos de patentes envolvendo 278 espécies de plantas
demonstra que 94,2% das patentes estão em mãos de detentores es-
trangeiros.43 Na Europa, embora seja crescente o número de paten-
tes obtidas por universidades, há poucas evidências de benefícios
monetários para as instituições de pesquisa, existindo, inclusive, a
possibilidade de as patentes exacerbarem as diferenças entre as uni-
versidades, prejudicando a produção científica.44
Em relação às espécies agrícolas, a situação atual revela elevada
concentração do mercado de sementes, processo acelerado a partir da

243

Biodiversidade 0204.P65 243 5/4/2007, 10:48


aprovação da legislação de proteção de cultivares. Entre 1998 e 2002,
mais de dez empresas nacionais de sementes foram adquiridas por
quatro empresas multinacionais.45 Em 2000, apenas quatro empresas
concentravam 94% do mercado de sementes de algodão, 72% das
sementes de milho e 95% das sementes de soja.46 Não satisfeitas com
a eficácia dos mecanismos legais, as empresas transnacionais que
dominam o setor trabalham em tecnologias de restrição do uso gené-
tico (GURTs)47 para produzir sementes estéreis e, assim, inviabilizar
de vez o direito de agricultores reproduzirem sementes protegidas.
Analisando os certificados concedidos pelo Sistema Nacional
de Proteção de Cultivares,48 observa-se que, entre janeiro de 1998 e
novembro de 2006, foram emitidos 925 certificados, para quarenta
espécies de plantas, incluindo as alimentícias, produtoras de fibras,
ornamentais, forrageiras e florestais (Tabela 5.3.1). Apenas a soja
foi objeto de 362 registros, ou 39,1% do total, dos quais 151 obtidos
pela Monsoy, empresa do grupo Monsanto. Oito cultivos agrícolas
concentraram 78% do total de registros (Tabela 5.3.2).
Tabela 5.3.1 – Distribuição dos registros de cultivares concedidos
no Brasil entre janeiro de 1998 e novembro de 2006.48
Grupo de espécies % do total de cultivares concedidos
Alimentícias 81%
Fibras 6%
Forrageiras 1%
Ornamentais 11%
Florestais 1%

Tabela 5.3.2 – Participação de diferentes espécies (%) no total de


certificados emitidos pelo Sistema Nacional de Proteção de Cultivares
(jan/1998 a nov/2006)48
ESPÉCIES % ESPÉCIES %
Soja 39 Roseiro 5
Trigo 9 Arroz 5
Cana 6 Milho 4
Batata 6 Feijão 3
Algodão 6

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No caso das regras de acesso e repartição de benefícios, o tema
suscita ainda mais dúvidas. As negociações conduzidas nas oito con-
ferências das partes da CDB sequer conseguiram chegar a um con-
senso sobre um regime internacional de repartição de benefícios,
postergando essa decisão para 2010. A implementação de legisla-
ções de acesso em âmbito nacional é um processo ainda incipiente,
existindo poucos países com leis implementadas e com tempo de
vigência suficiente para aferir resultados.
Todavia, as primeiras evidências demonstram que há mais di-
ficuldades do que facilidades para implementar as regras e alcançar
o sonhado benefício monetário. No período de 1991 a 2000, o retor-
no financeiro das atividades de bioprospecção na Costa Rica, país
megadiverso e o primeiro a implementar legislação de acesso, foi de
apenas 2,7 milhões de dólares.49 Até 2005, não havia ainda nenhum
produto lançado no mercado resultante dos contratos de bioprospec-
ção e, portanto, nenhum retorno de royalties. Tampouco o país
conseguiu monitorar e impedir patentes ilegais sobre os materiais
coletados. A existência de uma série de conflitos entre os interes-
ses comerciais, de pesquisa e de outros atores sociais e a dificulda-
de de delimitar o ponto de equilíbrio entre a restrição e facilitação
do acesso são alguns dos desafios apontados em estudo sobre con-
tratos implementados no Brasil, na Colômbia e nas Filipinas.50
Esses fatos sugerem a necessidade de repensar o caminho toma-
do na última década. É necessário ampliar o debate sobre os impactos
socioeconômicos, ambientais e culturais da tendência privatizante e
mercantilista que tomou conta das discussões sobre a biodiversidade
e conhecimento tradicional. A Lei Modelo para a Proteção dos Direi-
tos das Comunidades Locais, Agricultores, Melhoristas e para a Re-
gulamentação do Acesso à Biodiversidade, aprovada em 1998 pelo
Conselho de Ministros da Organização da União Africana, dá algu-
mas pistas de possibilidades de inovação no campo da legislação. A
proposta africana desafia as normas dominantes impostas pela OMC,
subordinando o direito dos melhoristas ao direito dos agricultores,
reconhecendo o papel da mulher na gestão da biodiversidade e não
admitindo patentes sobre formas de vida.51
Além do caminho da legislação é necessário situar o debate
sobre direitos e benefícios sobre a biodiversidade em um contexto

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mais amplo. Considerando o importante papel das comunidades lo-
cais, indígenas e camponesas, a discussão de direitos não pode omi-
tir o direito ao território. Historicamente, a distribuição da terra no
Brasil não é justa nem eqüitativa. Atualmente, as formas de ocupação
do território na modalidade de grandes projetos “desenvolvimentis-
tas” e agronegócio têm-se mostrado ainda mais agressivas, não faltan-
do exemplos de desrespeito a terras indígenas e comunidades campo-
nesas. Expandem-se os monocultivos florestais na Mata Atlântica, a
soja no Cerrado e na Amazônia, a carcinocultura nos manguezais.
As políticas públicas, em particular os instrumentos aplicados
na agricultura, necessitam ser repensadas de maneira a contribuir
para a conservação e o uso sustentável da agrobiodiversidade. Não é
possível perpetuar políticas e programas que vêem a agricultura bra-
sileira apenas através das lentes do agronegócio e da realidade das
regiões Sul e Sudeste. Instrumentos de crédito, seguro agrícola e
acesso a mercado, pesquisa e assessoria técnica têm que incorporar
e reconhecer a diversidade sócio-ambiental do país.
A lista de possibilidades é grande e esses são apenas alguns
dos pontos que necessitam ser considerados. É inegável que este
debate é difícil e às vezes indigesto, necessitando de um amplo
engajamento dos diversos setores da sociedade, para ir além das crí-
ticas e chegar a soluções justas e democráticas. Enquanto os espa-
ços de discussão e decisão estiverem ocupados apenas pelos setores
que se beneficiam da situação atual ou de “pragmáticos” que não
vislumbram possibilidades de mudança, a chance de alcançar essas
soluções é limitada.
Enquanto isso o tempo urge. É preciso resistir ao “canto da
sereia” da mercantilização da vida e buscar soluções criativas que
libertem o presente das “cercas” que ameaçam a conservação e o
uso sustentável da biodiversidade.

246

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NOTAS

1. Bragdon, S. International policies related to the management and use of genetic


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The conservation and development of plant genetic resources. Londres: Intermediate
Technology Publications, pp. 285-293, 2000.
2. Gadgil, M.; Berkes, F.; Folke, C. Indigenous knowledge for biodiversity
conservation. Ambio 22, pp. 151-156, 1993.
Berkes, F.; Folke, C.; Colding, J. (eds.). Linking social and ecological systems.
Management practices and social mechanisms. Cambridge: Cambridge University
Press, 1998.
3. Baseado em Michael Halewood, Biodiversity Internacional, não-publicado.
4 . Jaap Hardon, não-publicado.
5. Hardon, J.J.; De Boef, W.S. Linking farmers and plant breeders in local crop
development. In: De Boef, W.S., et al. (eds). Cultivating knowledge, genetic diversity,
farmer experimentation and crop research. Londres: Intermediate Technology
Publications, pp. 64-71, 1993.
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2, Belém-PA: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1990.
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benefícios no contexto de inovação tecnológica. In: Hanazaki, N. (ed). Anais do I
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Ming, L.C., et al. (eds). Direitos de recursos tradicionais: formas de proteção e
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para a construção de um regime jurídico sui generis de proteção. In: Platiau, A.F.B.;
Varella, M.D. (eds.). Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo
Horizonte-MG: Del Rey, pp. 341-369, 2004.
9. Instituto Sócio-Ambiental. Biodiversidade e proteção do conhecimento de co-
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10. Ministério do Meio Ambiente. Regras para acesso legal ao patrimônio genéti-
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DF, Brasil: p. 21, 2005. Disponível em www.mma.gov.br/port/cgen (acessado em
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11. http://www.mma.gov.br/port/cgen/index.cfm
12. Sistema Nacional de Unidades de Conservação: lei nº 9.985, de 18 de julho de
2000. Brasília: MMA/SBF, 2000.
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Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2001.
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27/11/2006)
17. Azevedo, C.M.A. A Regulamentação do acesso aos recursos genéticos e aos
conhecimentos tradicionais associados no Brasil. Biota Neotropica 5 (1), 2005.
18. http://www.mma.gov.br/estruturas/sbf_dpg/_arquivos/cartilha.pdf
19. João Paulo Capobianco, Secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério
do Meio Ambiente, Jornal Folha de São Paulo, Caderno Ciência, 07/11/05.
20. Rapport é uma relação de equilíbrio em um diálogo, de ouvir e escutar, em um
processo de mão-dupla.
21. Cunha, M.C. Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológi-
ca. Estudos avançados 13(36): pp. 147-163, 1999.
22. Valencia, M.P. Fundamentos jurídicos de los derechos inlectuales colectivos.
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23. Communauté Villageoise Zaipobly. La gestion durable et communautaire de la
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24. Pheng, N.; Ouen, N.S. The roles of the pagoda and the community in the natural
resources conservation and management in Cambodia. In: Anais “Workshop Inter-
nacional sobre Manejo Local da Agrobiodiversidade”, Rio Branco, 9 a 19 de maio
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25. Posey, D. A. Commodification of the sacred through intellectual property rights.
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27. Runge, C. F.; Defrancesco, E. Exclusion, inclusion, and enclosure: historical
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29. Zeven, A.C. The traditional inexplicable replacement of seed and seed ware of
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34. Para a lista completa incluindo as exceções consultar o Anexo 1 do tratado
disponível em ftp://ftp.fao.org/ag/cgrfa/it/ITPGRe.pdf.
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37. Smolders, W. Commercial practice in the use of plant genetic resources for food
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38. Meienberg, F. Access and benefit-sharing under the FAO Seed Treaty, Berne
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39. GRAIN. Re-situating the benefits from biodiversity a perspective on the CBD
regime on access and benefit-sharing. Seedling (April 2005), pp, 5-12, 2005.
40. Lall, S. Indicators of the relative importance of IPRs in developing countries.
Research Policy 32(9), pp. 1657-1680, 2003.
41. Dosi, G.; Marengo, L.;Pasquali, C. How much should society fuel the greed of
innovators? Research Policy 35(8), pp. 1110-1121, 2006.
42. Halbert, D. Intellectual property law, technology, and our probable future.
Technological forecasting and social change 52, pp. 147-160, 1996.
43. Moreira, A.C. et al. Pharmaceutical patents on plant derived materials in Brazil:
Policy, law and statistics. World Patent Information 28(1), pp. 34-42, 2006.
44. Geunaa, A.; Nesta, L. J. J. University patenting and its effects on academic
research: The emerging European evidence. Research policy 35, pp. 790–807, 2005.
45. Sato, G.S.; Moori, R.G. Impacto da biotecnologia na indústria de sementes no
Brasil. Informações econômicas 33(9), pp. 44-53, 2003.
46. Collares, A.M.P. Implicações do aumento da concentração no mercado brasi-
leiro de sementes. Dissertação de Mestrado. Viçosa-MG: Universidade Federal de
Viçosa, 2002.
47. Popularmente conhecida como “Tecnologia Terminator”.
48. SNPC/MAPA. 2006. Certificados de proteção concedidos, disponíveis em http:/
/www.agricultura.gov.br/ (consulta em janeiro de 2007).
49. Richerzhagen, C.; Holm-Mueller, K. The effectiveness of access and benefit
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economics 53(4), pp. 445-460, 2005.
50. Davalos, l.M., et al. Regulating access to genetic resources under the Convention
on Biological Diversity: an analysis of selected case studies. Biodiversity and
Conservation 12: pp. 1511–1524, 2003.
51. Zerbe, N. Biodiversity, ownership, and indigenous knowledge: Exploring legal
frameworks for community, farmers, and intellectual. Ecological economics 53(4),
pp. 493-506, 2005.

249

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6
EXPERIÊNCIAS LOCAIS
DE MANEJO COMUNITÁRIO
DA AGROBIODIVERSIDADE NO
BRASIL

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6.1 METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E A GERAÇÃO DE
BIOTECNOLOGIAS APROPRIADAS PARA O
DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL

Fábio Kessler Dal Soglio, Juliana Bernardi Ogliari,


Altair Toledo Machado, Jalcione Almeida e Walter Simon de Boef

A agricultura é um fator de desenvolvimento importante para


o Brasil, considerando-se que é um dos maiores países do mundo. O
desenvolvimento de biotecnologias, de técnicas de produção e de
sistemas de gestão adequados aos agricultores familiares que levem
em conta aspectos sociais, culturais, ambientais e econômicos é es-
sencial para a sustentabilidade da agricultura brasileira e do meio de
vida rural. Eles podem ter um papel significativo na segurança ali-
mentar da população brasileira, sustentar o meio de vida rural e apoiar
o superávit de que o Brasil precisa para equilibrar sua economia. O
desenvolvimento de abordagens alternativas precisa levar em consi-
deração a sustentabilidade ecológica, o conhecimento local e a or-
ganização social e o desenvolvimento endógeno.
Há, no Brasil, muitas experiências que lidam com o desenvol-
vimento de abordagens alternativas em apoio ao meio de vida rural,
objetivando a reassociação de agricultores familiares e pescadores
artesanais ao ambiente, à segurança alimentar e da saúde e ao desen-
volvimento local. Para uma análise adequada das várias experiên-
cias brasileiras apresentadas neste livro, este capítulo inicia por uma
visão geral da crise agrícola e rural brasileira e de como ela está
relacionada ao desenvolvimento e à adoção de tecnologias, inclusi-
ve biotecnologias, estimuladas por um modelo de desenvolvimento
nacional fundamentado em uma agricultura industrializada. Tam-
bém identifica as razões para a adoção de um paradigma baseado
numa abordagem sistêmica e de processo para o desenvolvimento e
a inovação rural, em oposição ao método científico cartesiano e à

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abordagem que segue a transferência de tecnologia e o paradigma
de processo.

A CRISE DA AGRICULTURA FAMILIAR BRASILEIRA: UMA VISÃO GERAL


Para melhor entender os esforços de instituições em reassociar
agricultores familiares ao meio ambiente, à segurança alimentar e
da saúde e ao desenvolvimento local, é importante ter uma idéia
geral da política pública brasileira para o desenvolvimento agrícola
nas últimas décadas. Desde os anos 50, a agricultura brasileira foi
submetida a um processo de modernização que, embora tenha oca-
sionado um aumento de produtividade, foi responsável por uma cri-
se profunda na sociedade rural.
A modernização da agricultura no Brasil foi baseada em sua
industrialização, visando, sobretudo, a apoiar a exportação, princi-
palmente de soja, café e laranja, e direcionada, basicamente, aos
grandes produtores. A estratégia forçou o abandono de metodologias
agrícolas tradicionais que eram mais adaptadas ao meio ambiente e
a adoção de uma tecnologia de uso intensivo de insumos, baseada
em fertilizantes químicos e agrotóxicos. A modernização da agri-
cultura foi caracterizada pela expansão descontrolada das fronteiras
agrícolas, especialmente no cerrado brasileiro e na floresta tropical
amazônica, com impacto significativo no meio ambiente. Como con-
seqüência, a concentração da propriedade da terra, o desemprego
rural e as desigualdades sociais aumentaram.1
Esse processo marginalizou a agricultura familiar – um tipo de
sistema de gestão agrícola posto em prática sobretudo por pequenos
produtores rurais –, a mais importante força de trabalho da agricul-
tura e a principal responsável pela segurança alimentar da popula-
ção brasileira. A crise da agricultura familiar no Brasil provocou um
aumento da pobreza e a migração da população rural para os centros
urbanos. Ao mesmo tempo, comunidades de indígenas nativos, ori-
ginários de áreas ocupadas pela agricultura intensiva durante a ex-
pansão da fronteira agrícola, especialmente nos estados brasileiros
das regiões norte e centro-oeste, foram deslocadas de seu habitat.
Esse processo foi seguido por um declínio extremo na diversi-
dade cultural e biológica, em continuidade ao que foi feito pelos
conquistadores portugueses desde o século XVII e pelos coloniza-

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dores europeus nos séculos XIX e XX.1 Essa visão geral explica, de
certo modo, a crise social rural no Brasil de hoje e o conflito san-
grento instalado em todo o país. De um lado, tem-se o sistema agrí-
cola industrializado, apoiado por políticos, grandes proprietários e
investidores; de outro, há um número grande de agricultores fami-
liares tradicionais e comunidades indígenas nativas. Deslocados de
suas terras e de seus ambientes culturais, alguns deles estão organi-
zados em movimentos sociais, a fim de reivindicar uma política ade-
quada para a ocupação da terra, justiça social e oportunidades iguais.
A origem, a estrutura e o pano de fundo cultural dos agricultores
familiares são extremamente diversos, resultado do processo histórico
de ocupação da terra desde a chegada dos portugueses e espanhóis,
incluindo um longo período de escravidão e uma mais recente imigra-
ção de europeus e asiáticos. A mistura inter-racial desses povos levou
à diversidade étnica, social e cultural de nossa população e a enormes
diferenças regionais dentro do Brasil. Ao longo dos séculos, o desen-
volvimento da agricultura brasileira esteve baseado em grandes pro-
priedades, enquanto as comunidades de agricultores familiares eram
mantidas como um estoque de força de trabalho barata, inicialmente
para a agricultura e, mais recentemente, para o desenvolvimento in-
dustrial. Ao final do século XX, os pequenos agricultores familiares,
componente principal da agricultura familiar, representavam mais de
85% do número total de proprietários de terras, embora possuíssem
somente 30% das áreas agrícolas.2 Ao mesmo tempo, embora a agri-
cultura familiar ainda seja responsável por quase 40% do valor líquido
total da produção, os agricultores familiares contraem somente 25%
dos empréstimos destinados à agricultura e menos de 30% deles re-
cebem assistência técnica.2 A diversidade regional socioeconômica
extrema também existe entre os agricultores familiares; estende-se
desde a agricultura familiar mais desenvolvida e socialmente inclu-
ída nos estados do Sul até a pobreza extrema das famílias rurais nos
estados do Nordeste. Nesse segmento, tanto o estresse ambiental
quanto os baixos recursos econômicos costumam ser observados.

PESQUISA AGRÍCOLA E EXTENSÃO: DE FERRAMENTAS A ARMADILHAS


A pesquisa agrícola e a extensão foram instrumentos impor-
tantes para o estabelecimento do padrão de desenvolvimento agrí-

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cola adotado, junto com o crédito subsidiado para sua adoção. Esse
“tripé de modernização” (pesquisa, extensão e crédito) mereceu um
investimento público alto que incluiu a formação de infra-estrutura
de pesquisa e de recursos humanos. Foi dirigido fortemente para o
desenvolvimento de perfis de alta produtividade agrícola, com pou-
ca preocupação quanto a aspectos sociais, culturais ou ecológicos.
Nos últimos quarenta anos, o Brasil construiu uma forte rede
de instituições de pesquisa agrícola, incluindo institutos federais e
estaduais, universidades e fundações, com a liderança da Embrapa.
Fundada em 1973, a Embrapa é subordinada ao Ministério da Agri-
cultura e possui 37 centros de pesquisa distribuídos em quase todos
os estados brasileiros. A Embrapa coordena o Sistema Nacional de
Pesquisa Agropecuária (SNPA), que inclui ela própria, universida-
des federais e regionais e mais de quinze institutos de pesquisa fi-
nanciados pelo Estado. O SNPA desenvolve pesquisa agrícola em
diferentes campos de conhecimento em praticamente todo o Brasil.
Além da existência de tal infra-estrutura, o modelo centralizado de
tomada de decisão e a designação da maioria das bolsas de pesquisa
para o desenvolvimento de uma agricultura industrial impediram
que as necessidades regionais da agricultura familiar fossem leva-
das em consideração pelos cientistas agrícolas até recentemente.
Junto com a organização do SNPA, uma rede nacional para o
serviço de extensão agrícola foi organizada. Ela foi estabelecida para
fazer a conexão entre os pesquisadores e os produtores. Com base
na aplicação de “pacotes tecnológicos”, o serviço de extensão tam-
bém foi importante para firmar a modernização da agricultura brasi-
leira. O sistema foi apoiado por fundos públicos, principalmente
oriundos dos orçamentos estaduais e federal, mas também das mu-
nicipalidades, num esforço para preservar um pouco de controle lo-
cal sobre a extensão e a pesquisa. No entanto, por causa do controle
político sobre os objetivos do serviço de extensão e da forte influên-
cia dos grandes proprietários sobre os governos, na maior parte do
tempo esse serviço foi dirigido à agricultura industrializada. Nova-
mente os interesses dos agricultores familiares e das comunidades
indígenas, a maioria da população rural, foram negligenciados.
Com forte inspiração na “Revolução Verde”, os programas de
pesquisa e extensão oficiais brasileiros limitaram-se ao desenvolvi-

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mento de pacotes tecnológicos destinados a um número pequeno de
culturas e restritos a poucas regiões do país e a um número pequeno
de produtores. Sem saber da importância da diversidade observada
na agricultura familiar, tanto no nível de produção quanto no socio-
cultural, o foco da pesquisa brasileira e da extensão rural na agricul-
tura industrializada promoveu uma mudança profunda no modelo
de produção dos agricultores familiares.3 Essas tecnologias prova-
ram ser inadequadas às necessidades das comunidades rurais, que
hoje quase não têm qualquer alternativa. Em geral, é para esse con-
texto agrícola que biotecnologias aplicadas à agricultura brasileira
têm sido desenvolvidas nos últimos anos. Programas de pesquisa
desenvolvidos por institutos de pesquisa, assim como por universi-
dades, são direcionados para o desenvolvimento de biotecnologias
que aumentem a produtividade de algumas culturas de renda. Essas
biotecnologias visam, principalmente, a ajustar a biologia às neces-
sidades das inovações químicas e mecânicas desenvolvidas para a
agricultura industrializada em geral monopolizada por empresas de
capital transnacional. Um exemplo típico é o melhoramento genéti-
co de plantas visando ao desenvolvimento de variedades e híbridos
mais bem adaptados à mecanização e mais responsivos a fertilizan-
tes químicos.
Como resultado, a maioria dos recursos financeiros e humanos
para a pesquisa agrícola foi direcionada ao desenvolvimento de uma
agricultura que faz uso intensivo de insumos, dependente de insumos
externos, e caracterizada por pouca biodiversidade, o que levou à
acumulação de capital e ao aumento do lucro de setores industriais.
Esse modelo também promoveu um aumento da dívida financeira
dos agricultores familiares e danos aos recursos naturais, especial-
mente ao solo, à água e à biodiversidade. Ele afetou negativamente
a qualidade de vida da sociedade rural brasileira, gerando exclusão,
problemas de saúde e mudanças significativas em sua cultura. O uso
de biotecnologias que promovem uma redução da agrobiodiversida-
de não contribuiu para a sustentabilidade de agroecossistemas e não
foi adequado para a agricultura familiar. Enquanto o fluxo principal
de investimentos para a modernização da agricultura esteve baseado
em sua intensificação e industrialização, um movimento de resistên-
cia baseado em métodos agrícolas alternativos contrapôs-se a isso.

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Esse movimento teve como objetivo principal ajudar a desenvolver
soluções tanto para a crise da agricultura familiar quanto para os
problemas ambientais e de saúde causados pelo uso de fertilizantes
químicos e agrotóxicos. Ele foi apoiado especialmente por organi-
zações não-governamentais (ONGs), mas também teve alguns sim-
patizantes dentro dos institutos de pesquisa governamentais, servi-
ços de extensão e universidades.

OS MOVIMENTOS CONCORRENTES DOS ANOS 70: REAGINDO À CRISE


O movimento concorrente na agricultura brasileira, sobretudo
nos anos 70, foi construído em cima da idéia do esgotamento do
padrão industrial dos processos agrícolas. Nas últimas quatro déca-
das, muitas evidências técnico-produtivas (limites de produtividade
impostos pela degradação dos recursos naturais), econômicas (redu-
ção de preços e restrições de mercado) e sociopolíticas (êxodo rural,
perda de autonomia dos produtores) sugerem esse colapso. Os agen-
tes e grupos sociais, no movimento concorrente e em suas diferentes
configurações e expressões, são motivados, em sua reação, pelas
diferentes crises que se estabeleceram na sociedade e agricultura
brasileiras. Essas crises trouxeram à tona a fraqueza da idéia de que
a modernidade possui um valor ontológico que corrige de maneira
natural qualquer desequilíbrio social ou natural.4
A crise organizacional brasileira tem demonstrado, de um modo
dramático, que a futura forma de escapar dos cálculos da relação
custo e benefício pode estar muito distante da racionalidade instru-
mental imposta pela modernização. Alguns agentes sociais começa-
ram a acreditar que o sistema não depende somente de uma simples
orientação econômica em que o cálculo dos custos e lucros de certos
empreendimentos de interesse econômico seja o único objetivo a
ser perseguido. Para esses agentes contestadores e grupos sociais,
os indivíduos também buscam solidariedade, identidade, autonomia,
democracia, bem como valores ecológicos, valores sociopolíticos e
socioambientais que, em oposição aos valores econômicos, não po-
dem ser calculados ou mensurados.
O movimento agrícola concorrente passou a ter visibilidade a
partir da década de 70, influenciado pela onda política e social con-
testadora na Europa e nos Estados Unidos (antiguerra, antinuclear,

258

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hippie e outros). Esse movimento se orienta para a reforma agrária,
ao apoio a comunidades de agricultores familiares, à crítica da polí-
tica nacional para a agricultura e à busca de novas tecnologias feitas
sob medida para a agricultura familiar, numa experimentação e
extensão mais ou menos sistematizadamente democrática e partici-
pativa. ONGs estão fortemente associadas a esse movimento, por
meio de técnicos e de liderança, e seu trabalho está situado entre o
apoio tecnológico e o ativismo. Esse trabalho, com a colaboração de
sindicatos de trabalhadores rurais, alguns partidos políticos de um
campo conhecido como “popular e democrático”, organizações de
agricultores familiares, alguns setores das igrejas luterana e católica
e alguns técnicos de instituições oficiais de pesquisa e extensão agrí-
cola permitem certa generalização do conhecimento. Eles também
permitem um fluxo de informação e uma ação pedagógica que cria
uma melhor perspectiva para a organização social dos grupos apoia-
dos, os quais se tornaram mais eficientes em suas solicitações e no
desenvolvimento de novos processos produtivos.
Vale mencionar que a maior parte dos fundamentos das tecno-
logias agrícolas utilizadas pelos movimentos rebeldes se baseia em
diferentes “escolas” de agriculturas orgânicas, desenvolvidas na pri-
meira metade século XX. Ao mesmo tempo, a maioria dos técnicos
é muito crítica em relação à academia (incluindo universidades e
institutos de pesquisa), a qual ainda é muito diretamente ligada à
agricultura convencional. Ao mesmo tempo, os pesquisadores tam-
bém estão ligados ao desenvolvimento de biotecnologias inadequa-
das, que são caras ou põem o meio ambiente em risco. Como conse-
qüência, as biotecnologias estão geralmente relacionadas à agricul-
tura convencional, a serviço da agricultura industrializada, e as pes-
quisas feitas por acadêmicos não são bem-vindas pelo movimento
concorrente de agricultura. No entanto, como algumas experiências
sobre a possibilidade de se adequar biotecnologias a agricultores fami-
liares por meio de métodos participativos alcançaram bons resultados,
o espaço para se debater sobre biotecnologias e seu uso na agricultura
familiar no Brasil tem aumentado e se mostrado promissor.

TEMPO DE DEBATES: EM BUSCA DE UM PARADIGMA ADEQUADO


O padrão de desenvolvimento adotado pelo Brasil, baseado na
competitividade da agroindústria, tem sido alvo de críticas nos últimos

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anos. Uma alternativa a esse padrão excludente seria a expansão das
economias locais, baseadas na diversificação, visando a criar oportuni-
dades para o desenvolvimento humano. Os debates estão centrados
principalmente no conceito de sustentabilidade, em que o desenvol-
vimento e o crescimento econômico devem considerar os interesses
presentes de nossa sociedade sem comprometer as necessidades das
gerações futuras. Fundada nesses debates, a necessidade de integrar
as dimensões social e ecológica (sustentabilidade, igualdade, justiça
e democracia) nos planos do desenvolvimento é proposta dentro des-
sas abordagens alternativas; isso contrasta com a abordagem atual,
que é primeiramente baseada somente no crescimento econômico.5,6
Junto a essa nova abordagem para a definição de estratégias
para um desenvolvimento sustentável, é também necessário levar
em consideração o debate mundial a respeito do uso de biotecnologias
na agricultura. Esse debate foi especialmente intenso no Brasil e é
paralelo ao aumento da pressão social pela redução ou eliminação
de produtos químicos na agricultura, devido a problemas de saúde
nos agricultores e consumidores e em relação aos efeitos indesejados
no meio ambiente. Nesse novo debate, o foco principal é a seguran-
ça de organismos geneticamente modificados (OGMs) por meio das
tecnologias de recombinação de DNA. O lobby internacional e os
interesses de alguns grupos privados brasileiros fizeram com que
muitos políticos e cientistas se posicionassem a favor dessas tecno-
logias. Eles defendem o desenvolvimento de OGMs ao mostrar as
vantagens econômicas da agricultura industrializada, sem levar em
consideração preocupações sociais ou ecológicas.
Uma oposição forte para a adoção dessas tecnologias surgiu
das organizações sociais e ONGs, e até mesmo de setores impor-
tantes da comunidade científica brasileira, como a Sociedade Bra-
sileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Eles indicam restri-
ções sérias ao uso de OGMs, incluindo o impacto negativo no meio
ambiente, especialmente na manutenção da biodiversidade, na fal-
ta de informação sobre os riscos para a saúde e para a segurança
alimentar e quanto ao aumento da dependência dos produtores de
tecnologias dominadas por oligopólios. A manutenção de áreas li-
vre de OGMs também é identificada como uma vantagem competi-
tiva nos mercados nacional e internacional de alimentos livres de

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transgênicos (GMO free foods), assim como em mercados de produ-
tos cultivados organicamente.
Nos últimos vinte anos, alguns pesquisadores brasileiros têm
desenvolvido tecnologias relevantes para a agricultura familiar, ini-
cialmente em decorrência da pressão conferida por alguns segmen-
tos da sociedade brasileira, das ONGs e das entidades representati-
vas de agricultores familiares e, mais recentemente, pelos políticos
estaduais e municipais e com o presente governo federal. No entan-
to, os projetos de pesquisa desenvolvidos até agora constituem prin-
cipalmente iniciativas individuais de pesquisadores que possuem
escassos recursos a sua disposição, utilizando métodos científicos
convencionais e basicamente isolando processos biológicos dos
sistemas onde eles ocorrem. Por meio desse método, muito pouco
progresso tem sido alcançado, e muitas vezes os resultados são
ajustados somente a situações muito específicas, beneficiando um
número reduzido de agricultores familiares. O padrão científico
convencional, que é compartimentado e reducionista e também
oriundo dos ideais da “Revolução Verde”, provocou a acumulação
de conhecimento científico e tecnológico, assim como avanços na
produtividade ao longo de áreas agrícolas diferentes5.

PESQUISA PARTICIPATIVA COMO SUPORTE À


AGROBIODIVERSIDADE E À AGRICULTURA FAMILIAR
A abordagem científica e de “Transferência de Tecnologia”
provou ser insuficiente e limitada para determinar as causas e iden-
tificar as alternativas para se superar os problemas relacionados à
produção naquelas áreas, que apresentavam limitações ambientais.
Agricultores familiares são predominantes nessas áreas, e os impac-
tos negativos gerados nesse setor nos níveis econômico, social e
ambiental preponderam.7 Esse público específico não foi beneficia-
do pelo sucesso e pelo progresso gerados por meio da reprodução
convencional de plantas, que tem seus pacotes tecnológicos basea-
dos em cultivares de alto rendimento, que produzem bem em solos
férteis e meio ambiente estável para os quais eles foram desenvolvi-
dos. Para garantir a segurança alimentar, a conservação de recursos
naturais e genéticos em áreas ambientalmente limitadas, onde as
comunidades de agricultores familiares são predominantes, um novo

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paradigma científico deve ser desenvolvido. Esse novo paradigma
deve associar o conhecimento agronômico específico com o conhe-
cimento sistêmico de tal modo que permita a integração dos vários
componentes de um agroecossistema e a adoção de perspectivas
interdisciplinares e integrativas.6
Uma das propostas mais inovadoras para o desenvolvimento
de biotecnologias adequadas à agricultura familiar, visando ao de-
senvolvimento endógeno, é a pesquisa participativa. Esse método
de pesquisa integra todos os agentes envolvidos no desenvolvimento
e na aplicação das biotecnologias. Nessa proposta, todos os passos
para a resolução de problemas por meio de biotecnologias e a pesquisa
e o desenvolvimento de produtos biotecnológicos resultam da
integração dos conhecimentos científico e local, aplicados de acordo
com as necessidades de cada localidade. O sucesso, conseqüentemen-
te, depende da habilidade de se entender todo o sistema, observando
os seus componentes individuais, assim como as interações entre eles
e as propriedades emergentes que resultam dessas interações.
Numa abordagem conceitual, a biotecnologia pode ser definida,
em sentido amplo, como a tecnologia de utilização de organismos vi-
vos para a obtenção de produtos e processos, visando a uma aplicação
prática na agricultura, na produção de alimentos, na saúde, no manejo
do ambiente e na produção econômica. Com base nesse conceito am-
plo pode-se dizer que a biotecnologia foi utilizada durante milênios.
Dentro da atividade científica contemporânea, que analisa somente a
atividade agrícola, as biotecnologias tradicionais, apoiadas por algumas
atividades, seguem um fluxo quase completamente linear, em termos
de seus estágios, que vão desde sua descoberta até o desenvolvimento
tecnológico, à seleção de melhores variedades de plantas ou microrga-
nismos, ao teste experimental e, então, à produção em larga escala.8 Por
outro lado, a Nova Biotecnologia é essencialmente interdisciplinar, ou
transdisciplinar, e envolve pesquisa básica em biologia molecular, bio-
química, microbiologia e genética e busca as potencialidades de micror-
ganismos, de animais e de plantas, trabalhando, basicamente, com
quatro técnicas complementares: fermentação, engenharia genética,
engenharia enzimática e cultura in vitro.8
Ao mudar o padrão de pesquisa convencional de um modelo
reducionista para um holístico, é possível devolver à sociedade a

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liberdade de escolher as biotecnologias que entende como aquelas
que lhe são apropriadas, baseadas em princípios éticos e culturais, e
tendo a sustentabilidade como fator de decisão importante. A pro-
posta participativa não é uma ação intervencionista, mesmo quando
baseada na “abordagem de baixo para cima”, quando mantém a
indução e o controle do processo num nível externo (desenvolvi-
mento exógeno). As metodologias participativas são baseadas na
construção de um processo social endógeno, por meio de uma abor-
dagem construtivista, envolvendo conceitos tais como: conhecimento,
informação, desenvolvimento e poder local.9 Também é de grande
importância levar em consideração as discussões sobre as garan-
tias para a reprodução social, as mudanças culturais que são ne-
cessárias para a conservação de recursos naturais e a perspectiva
de gênero para comunidades com panos de fundo culturais muito
diversos.
Comparável à necessidade de mudanças nas metodologias para
o desenvolvimento de biotecnologias ajustadas à agricultura familiar
e ao desenvolvimento endógeno, é importante também promover mu-
danças no treinamento e na educação formal. Aumentar a capacida-
de da sociedade, tanto em nível local como global, de questionar sobre
suas condições de vida e sobre as implicações sociais, econômicas e
ecológicas de todas as alternativas tecnológicas é condição necessá-
ria para se exercitar integralmente a liberdade de opção em meio a mo-
delos diferentes de desenvolvimento e, por conseguinte, entre diferen-
tes ferramentas, inclusive as biotecnológicas. A adoção de métodos
participativos requer uma mudança profunda nos programas educa-
cionais de escolas técnicas e universidades e requer técnicos e cien-
tistas, de todas as áreas de conhecimento, capazes de interagir de um
modo transdisciplinar. Os agricultores também devem ter acesso
integral à informação, de modo a se aproveitarem da liberdade de
escolha, associando os conhecimentos local e acadêmico. As expe-
riências de cientistas, de trabalhadores do desenvolvimento e de
comunidades de agricultores mostram o significado da união dos
agentes implicados no processo, como também o respeito pelo conhe-
cimento ambiental, social e local, adquirido, muitas vezes, ao longo
de centenas de anos. Entre essas experiências é possível distinguir
programas envolvendo a reprodução de plantas, cultura de tecidos,

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controle biológico, microbiologia do solo e gestão de fertilidade,
melhoria e reprodução animal e processamento de alimentos.

6.2 RESGATE, USO E PRODUÇÃO DE SEMENTES


CRIOULAS DE MILHO EM ANCHIETA

Adriano Canci e Ivan José Canci

O Oeste catarinense foi intensamente colonizado a partir do


início do século XX, principalmente por filhos e netos de imigrantes
europeus advindos do Rio Grande do Sul. Em sua maioria, eram
agricultores familiares que estavam em busca de terra para instalar-
se com suas famílias, ou onde tivessem condições de constituí-las. Até
esse período, os solos férteis de relevo ondulado e acidentado que
predominam na região eram cobertos por densas matas naturais, em
sua maioria, e por campos e matas de araucária, em menor extensão.
No período imediatamente anterior à colonização oficial, nas
cercanias do rio Uruguai e nas áreas de planalto, os indígenas do grupo
Caingangue, mesmo já em avançado processo de exclusão e extermí-
nio, ainda manejavam de forma própria a sua agrobiodiversidade.
Dessa forma, mantinham o cultivo do milho, feijão, batata-doce,
mandioca e abóbora agregado à sua cultura. Também mantinham a
tradição de tecer sua indumentária e construir abrigos mediante a
utilização de fibras nativas, dentre as quais as extraídas de uma espé-
cie de urtiga, do caraguatá (Bromelia), de taquara e palmeiras, além,
é claro, da coleta de frutos nativos e da caça abundante.
Atualmente, a região compreende aproximadamente 25% da área
e 15% da população de Santa Catarina. Cerca de 40% dessa popula-
ção residem na área rural. Por influência da forma de colonização, a
região ainda é caracterizada por minifúndios, onde cerca de 70% dos
75 mil estabelecimentos rurais possuem área inferior a 20 ha e 94%
inferior a 50. Por serem montanhosas, apenas cerca de um terço das
suas terras são consideradas aptas para cultivos anuais.

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Os pequenos agricultores familiares foram limitados às áreas
mais acidentadas, enquanto os médios e grandes empreendimentos
rurais ocupam a maior parte das terras mais favoráveis, sobretudo pelo
aspecto do relevo. Mais recentemente, esses latifundiários avançaram
sobre as áreas de relevo acidentado, destruindo os últimos repositórios
de mata nativa e convertendo minifúndios em sistemas extensivos de
criação de bovinos de corte ou de agricultura convencional.10
Anchieta é um pequeno município dessa região, com 229 km²,
localizado próximo à fronteira com a Argentina. Em função do im-
pacto negativo das políticas da chamada Revolução Verde, dos mais
de 13 mil habitantes da década de 80, o município possui, atualmen-
te, pouco mais de 6 mil, dos quais cerca de 60% são agricultores
familiares. Dentro desse processo de transformação rural, a agro-
biodiversidade agrícola e a animal sofreram grande erosão ao longo
das últimas décadas. Nesse período, em especial, as variedades lo-
cais de milho foram as mais impactadas, ao mesmo tempo em que
houve um empobrecimento econômico dos agricultores familiares.
O presente capítulo trata do início da recuperação genética e
cultural das variedades locais (ou crioulas) no município e na região.
Parte dos marcos organizacionais que definiram essa retomada para,
em seguida, concentrar no Programa de Resgate das Sementes Criou-
las, foi desenvolvido em Anchieta, que enfocou a cultura do milho.

A AGROBIODIVERSIDADE CRIOULA RECUPERA ESPAÇO


A maior parte dos agricultores da região nunca abandonou to-
talmente as variedades da maioria das espécies cultivadas no local.
No caso do milho, no entanto, o impacto foi arrasador, uma vez que
poucas famílias conservaram as suas variedades tradicionais. Vá-
rias ONGs, a partir de meados da década de 1980, empreenderam
uma articulação em nível nacional para revalorizar e conservar as
variedades locais de milho. Esse trabalho, entre outras ONGs, teve a
Assessoria a Serviços e Projetos em Tecnologia Alternativa (AS-
PTA) como articulador nacional. Na região Sul do país, destacaram-
se, nesse trabalho, principalmente o Centro Vianei de Educação Po-
pular (Centro Vianei), a Associação dos Pequenos Agricultores do
Oeste Catarinense (APACO), o Centro de Desenvolvimento de
Tecnologias Alternativas Populares (CETAP) e o Centro Ecológico

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(CE/Ipê). Essas ONGs traziam a discussão das sementes junto com
o debate da então nascente agroecologia.
Em decorrência desse processo, em 1991 foram organizadas
diversas áreas para a produção de sementes de milho, em vários
municípios de Santa Catarina, dentre os quais Chapecó, no oeste do
Estado.11 Em seguida, a Associação dos Pequenos Agricultores do
Oeste Catarinense (APACO) organizou áreas de produção de semen-
tes de variedades locais de milho em outros municípios da região.
Esse movimento nacional estimulou o programa de Anchieta. Já em
meados da década de 1990, três grandes seminários regionais12 rea-
lizados em Anchieta e em outros dois municípios próximos enfocaram
a autonomia nas sementes e na agroecologia.
Aos poucos, essa proposta de recuperação das sementes foi sendo
mais encampada pelos movimentos sociais ligados ao campo, articu-
lados atualmente na Via Campesina. O projeto de Anchieta e os de-
senvolvidos no Paraná e na Paraíba, apoiados pela AS-PTA, articula-
dos com os movimentos sociais e outras organizações de agricultores,
foram importantes na ampliação desse trabalho em todo o país.
Em Anchieta, o apoio às sementes crioulas passa a acontecer a
partir do Planejamento Estratégico Participativo do Meio Rural do
município, organizado em 1997. À frente do Programa de Resgate
das Sementes Crioulas estava o Sindicato dos Trabalhadores na
Agricultura Familiar (Sintraf). Mesmo tendo como marco orientador
a construção de outro modelo de desenvolvimento rural, pela sua
importância socioeconômica e nível de erosão genética, o programa
priorizou atividades com o milho.

EVOLUÇÃO DAS VARIEDADES CRIOULAS DE MILHO


NO OESTE CATARINENSE
No ano de 2002, foi organizado em Anchieta um diagnóstico
da agrobiodiversidade em uso pelos agricultores. Foram entrevista-
das mais de duzentas famílias e, dentre outras perguntas, procurou-
se saber em que período elas haviam abandonado e retomado a con-
servação das variedades locais. Nesse sentido, estima-se que até
meados da década de 1960, os cultivos baseavam-se somente em
sementes do sistema informal, ou seja, não havia híbridos. A partir
desse período (Revolução Verde), as variedades locais passaram a

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ser combatidas e desvalorizadas até próximo à extinção, fazendo
com que, em 1994, apenas cerca de 2% dos agricultores ainda con-
servassem sementes crioulas de milho. Por conta dos trabalhos de
fomento, a partir dos anos 1990, inicia-se uma retomada no plantio
de variedades locais de milho, que se acentua até os dias de hoje.

CONSERVAÇÃO DAS SEMENTES CRIOULAS


A conservação das variedades locais é um processo feito
milenarmente pelas famílias de agricultores. Com a utilização de
técnicas informais, as famílias têm conservado as suas sementes de
uma safra para outra. A conservação se dá principalmente pela troca
de sementes com vizinhos e/ou familiares, garantindo dessa forma
menor vulnerabilidade da variedade.10 O plantio anual garante se-
mentes saudáveis e com vigor. De uma safra até outra, as sementes
são armazenadas, principalmente em embalagens plásticas semi-her-
méticas com reutilização de embalagens de refrigerantes ou bombo-
nas de plástico.
Por que os agricultores e agricultoras conservam as semen-
tes? No diagnóstico sobre a agrobiodiversidade de Anchieta, os agri-
cultores familiares indicaram que conservam as sementes crioulas pe-
las seguintes questões motivadoras: segurança alimentar e alimenta-
ção saudável, cultura e tradição familiar, cuidado com o meio ambien-
te, adaptabilidade às condições locais, como parte da agroecologia e
porque são mais econômicas e têm boa capacidade produtiva.13
A participação das mulheres. Mesmo realizando diariamen-
te os afazeres domésticos, as mulheres são responsáveis pelo cultivo
e pela conservação de cerca de 70% das espécies manejadas e de
praticamente todas as olerícolas.13 Esse esforço das mulheres visa a
garantir uma alimentação de qualidade às suas famílias. As cerca de
cinqüenta espécies cultivadas em hortas e pequenas roças, pelas
mulheres agricultoras, muitas vezes são tidas como inferiores, até
mesmo dentro das próprias famílias. Na verdade, têm grande valor,
principalmente pelo valor econômico agregado, na transformação
das hortaliças em conservas, frutas e doces ou pelo fornecimento de
energia, sais minerais, vitaminas, essências e outros benefícios às
famílias. Essas espécies, em sua grande maioria, são cultivadas or-
ganicamente.

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Os homens cuidam das culturas comerciais. De forma ge-
ral, os homens são responsáveis pelas espécies comerciais, as cha-
madas grandes culturas. Essas espécies geram renda direta, ocupan-
do a maior parte da força de trabalho familiar e da área de terra das
unidades de produção, sendo assim mais visíveis e, portanto, apre-
sentadas como superiores.
Programas de resgate dirigidos às mulheres: uma propos-
ta. Historicamente, as políticas públicas de pesquisa, de extensão e
de assistência técnica rural na região têm sido dirigidas, majoritari-
amente, ao público masculino. No que se refere ao processo de apoio
recente à conservação da agrobiodiversidade, isso se deve à partici-
pação maior dos homens nos momentos de encontros e também pelo
fato de os assessores técnicos direcionarem-se a esse público. No
entanto, percebe-se que as mulheres estão mais motivadas a partici-
par de programas relacionados ao resgate de variedades locais. Des-
sa forma, surge a necessidade de se construir políticas específicas
com as mulheres agricultoras, pois políticas gerais – “para todos”–
terão apenas a participação dos homens.

ESTRATÉGIAS DE MANEJO E SELEÇÃO DAS SEMENTES CRIOULAS


A conservação deve se dar principalmente pela garantia de re-
produção das redes informais de intercâmbio presentes nas comuni-
dades. Dentro dessas redes, o fortalecimento do sistema de usos tem
se mostrado muito importante. O apoio de outras instituições, so-
bretudo das públicas, deve ser nesse sentido. Para o manejo, deve-se
priorizar projetos e ações coletivas, de modo a envolver comunida-
des inteiras ou grupo de famílias dentro dessas comunidades ou
municípios. A experiência local demonstra que quando o trabalho é
desenvolvido em grupos, os resultados tendem a ser melhores, pois
se valorizam e fortalecem as relações de troca de sementes e de co-
nhecimentos. Em relação especificamente à seleção de variedades
locais, são duas as estratégias principais:
Seleção no paiol. Logo depois de colhidas, as espigas são ar-
mazenadas num paiol, que geralmente se trata de uma construção de
madeira, pouco protegida contra a ação de roedores e insetos. Nesse
local, as espigas ficam depositadas, sendo retiradas rotineiramente
para a alimentação dos animais, para a comercialização, para a fa-

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bricação de farinha nos moinhos locais ou então como semente para
o próximo plantio. Nesse sistema, as melhores espigas (maior tama-
nho, empalhamento, espessura do sabugo e sanidade) são escolhi-
das para posterior retirada das sementes. Esse processo de seleção
costuma ocorrer próximo à data de plantio, quando as espigas já
estão armazenadas há vários meses.
Quando da debulha, são preferidos os grãos do centro da espi-
ga, já que são mais uniformes (facilitam o plantio), têm maior sani-
dade e reserva de energia que os grãos das extremidades. A colora-
ção e o tipo das sementes são escolhidos de acordo com o gosto de
cada agricultor. Quando o objetivo principal é a comercialização, os
grãos do “tipo duro” são os preferidos; por outro lado, quando se
destinam ao consumo interno (animais e familiares), os grãos moles
são priorizados. É sempre um conjunto de características visuais,
baseadas na experiência cotidiana, que determina quais (ou qual) as
variedades ou espigas que serão priorizadas para o próximo plantio.10
Seleção na lavoura pelo método massal estratificado. Sele-
ção massal estratificada é o método que permite um maior controle
da heterogeneidade do solo. Trata-se, basicamente, de dividir a área
de colheita das sementes em estratos ou partes iguais, geralmente de
5 ou 10 m, em linha, escolhendo as melhores plantas em cada estra-
to, de forma independente. Essa seleção é denominada “massal” por-
que é realizada mediante a observação e a avaliação do aspecto ge-
ral de todas as plantas do estrato, de forma que todas as plantas
selecionadas contribuam com sementes para a próxima geração. Com
esse método, os agricultores vão à lavoura e, em uma área mínima
de 800 m², ou seja, cerca de três mil plantas – que é o mínimo para
garantir a reprodução da espécie sem perda de variabilidade –, esco-
lhem as melhores plantas, de acordo com seu gosto e necessidade.
A colheita da semente genética também é feita sobre essa área
estratificada de 800 m², de tal forma que permita a obtenção de qua-
trocentas espigas. Nesse exemplo, serão quatrocentos estratos, ou
seja, cada estrato terá dois metros em linha onde será colhida uma
espiga. Predominantemente, são observadas, de forma conjunta, ca-
racterísticas como altura de planta e de espiga, plantas competitivas,
decumbência da espiga, diâmetro do colmo, doenças, pragas nas es-
pigas, tamanho do pendão, empalhamento da espiga, entre outros. A

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colheita da semente genética é feita quando o milho tem de 28 a
35% de umidade, pois nesse estágio apresenta maior vigor. Como os
agricultores não dispõem de um medidor de umidade, observam a
camada marrom ou negra na base da semente, o que é feito escarifi-
cando-se com a unha. Quando essa camada estiver presente signifi-
ca que a espiga já pode ser retirada da planta-mãe. Outra maneira
prática de saber o ponto de colheita, é fazê-lo quando o milho apre-
senta apenas algumas folhas ainda verdes.
Seleção em casa: Após a colheita das espigas no campo, o se-
gundo passo é a seleção em casa, visando à produção da semente
genética. Nessa ocasião, é efetuada nova seleção, agora sobre as
quatrocentas espigas pré-selecionadas na lavoura, observando-se
critérios da variedade como tipo de grão, aspecto geral da espiga,
aparência saudável, cor, peso da espiga, entre outros. Nessa etapa, o
agricultor seleciona apenas 200 espigas.
Secagem em espigas: Depois desse segundo momento de sele-
ção, as 200 espigas selecionadas são amarradas de duas em duas (ou
mais) com parte da própria palha e penduradas em ambiente arejado
e inacessível a roedores, à sombra, geralmente sob um telhado de
galpão. Nesse local, permanecem por cerca de 45 dias, até estarem
prontas para a debulha. A secagem é necessária para garantir o ar-
mazenamento das sementes com qualidade por meses, ou até anos.
Debulha: A melhor forma de debulha é a manual, pois não dani-
fica as sementes. Retira-se o mesmo número de grãos por espiga. Em
termos práticos, apenas nas primeiras espigas os grãos são contados
para calibrar a mão de quem está debulhando. No exemplo colocado,
de cada uma das 200 espigas retiram-se 18 grãos. Considerando-se
uma germinação de 85%, teremos 3.060 plantas no campo no ano
seguinte. É importante fazer duas retiradas de dois lotes iguais de se-
mentes, deixando uma armazenada para ser utilizada somente em caso
de um fator climático adverso impedir a colheita do primeiro lote. A
colheita da semente feita dessa forma permite ao agricultor conservar
a(s) sua(s) variedade(s) sem erosão genética, devido ao número míni-
mo adotado de 200 espigas; permite também escolher e manter as
características agronômicas desejadas ou descartar as indesejadas.
Beneficiamento e armazenagem das sementes. Na armaze-
nagem das sementes, o uso de produtos químicos é condenável, de-

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Biodiversidade 0204.P65 270 5/4/2007, 10:48


saconselhável e desnecessário. As embalagens como garrafas,
“litrões” plásticos descartáveis, bombonas de 20 ou 200 litros e ou-
tras embalagens que permitam vedação para impedir a entrada de ar
são eficientes para conservação, desde que bem cheias e as semen-
tes bem secas. Em Anchieta e região, têm sido utilizadas bombonas
de 20 litros e embalagens de refrigerantes – os “litrões” de 2 litros.
No beneficiamento, retiram-se todas as impurezas. Uma limpeza e
pré-seleção bem-feitas são a principal garantia do bom armazena-
mento das sementes. Não esquecer, porém, que uma boa secagem é
um fator fundamental para garantir a qualidade das sementes arma-
zenadas. Nesse sentido, a umidade não deve estar acima de 13%,
caso contrário, provocará a formação de gases no interior das emba-
lagens vedadas, inviabilizando as sementes para plantio e consumo.
Utilizando-se as bombonas de 20 litros, uma pessoa armazena cerca
de 1.600 kg de sementes de milho por dia; com embalagens de 2
litros, cerca de 380 kg diários.

A PARTICIPAÇÃO COMO ASPECTO FUNDAMENTAL DO TRABALHO


No caso de Anchieta, os agricultores e as comunidades apropri-
aram-se do programa, já que participaram do trabalho desde o início,
por meio do Planejamento Rural Estratégico e Participativo e de ações
baseadas em metodologias participativas grupais. Em função disso,
as estratégias de seleção de sementes para o plantio e para a produção
de semente genética são de domínio dos agricultores, que as têm com-
binadas com os seus conhecimentos tradicionais, inclusive na criação
de novas variedades compostas de milho e de outras espécies.10
Nesse sentido, no trabalho de resgate da agrobiodiversidade deve-
se priorizar metodologias participativas, apropriadas a grupos e co-
munidades. Essa forma de trabalhar apresenta como vantagens: maior
equidade, transparência, efetividade e agilidade no processo; partici-
pação de um maior número de famílias; maior nível de eficiência na
conservação e seleção. Por outro lado, evita mal-entendidos e facilita
o estabelecimento de metas e prazos; aumenta a responsabilidade e o
compromisso de cada participante em implementar aquilo que é deci-
dido no coletivo. Assim, as informações são mais bem debatidas pela
comunidade e, conseqüentemente, a burocracia diminui.

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Biodiversidade 0204.P65 271 5/4/2007, 10:48


A RESILIÊNCIA DOS SISTEMAS INFORMAIS DE INTERCÂMBIOS
Praticamente sem apoio algum e sendo colocada na “contra-
mão da história oficial” e da lógica dominante na agricultura, a agri-
cultura familiar resistiu na conservação de muitas espécies, raças e
variedades.10 A maioria das espécies locais cultivadas e variedades
crioulas tem resistido à extinção, graças aos intercâmbios informais
de sementes. Esses intercâmbios significam, além da perpetuação
das variedades, maior segurança na alimentação das famílias e da
vida cultural das populações rurais. Em Anchieta, as variedades lo-
cais de milho, amendoim, batata-doce e feijão são, na sua maioria,
reproduzidas a partir de uma troca com vizinhos ou familiares.13

AGROBIODIVERSIDADE: PRESENTE PARA O FUTURO


O catarinense Leonardo Boff14, considerado um dos maiores in-
telectuais da atualidade, tem ressignificado uma palavra que retrata a
nossa responsabilidade para com tudo que forma o planeta: cuidar.
Caberá à atual geração, neste momento, tomar as rédeas do cuidado,
organizar-se local e globalmente, pressionar governos no desenvolvi-
mento de políticas públicas de conservação da água, de fontes limpas
de energia, de promoção da proposta agroecológica, de conservação
da biodiversidade e de outros temas importantes e interligados. De
acordo com Paulo Freire, o maior educador da segunda metade do
século XX, compete à atual geração também romper com a falsa
superioridade de conhecimento científico sobre o informal ou popu-
lar, valorizando a contribuição de igual para igual de todas os siste-
mas de conhecimentos.15 Em concordância com a acepção de Capra,16
não podemos mais ver o universo como um sistema mecânico e a
vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência, e
acreditarmos no progresso material ilimitado, a ser alcançado por
meio do crescimento econômico e tecnológico. À medida que se
articula em redes, mesmo aquele trabalho localizado, comunitário e
em prol da conservação da agrobiodiversidade estará forjando a cons-
trução de um novo modelo de agricultura e de sociedade.

272

Biodiversidade 0204.P65 272 5/4/2007, 10:48


6.3 MANEJO E USO DE VARIEDADES DE MILHO
COMO ESTRATÉGIA DE CONSERVAÇÃO EM ANCHIETA

Juliana Bernardi Ogliari e Antônio Carlos Alves

O panorama em relação à agrobiodiversidade é alarmante, so-


bretudo em conseqüência do gradual processo de erosão genética,
constatado durante o século XX, nos diversos agroecossistemas de
várias regiões do mundo. Esse cenário começou a se tornar particu-
larmente grave a partir do novo modelo de produção agrícola, inici-
ado no período pós-guerra, conhecido como “Revolução Verde”. A
difusão dos cultivares melhorados precoces, uniformes, responsivos
e dependentes de insumos viabilizou a inserção de produtos agroin-
dustriais no mercado, até atingir a escala necessária para a transfor-
mação da agricultura em agronegócio.
Essas transformações tecnológicas radicais ocorridas nos sis-
temas produtivos contribuíram efetivamente para o aumento da pro-
dutividade de culturas como o milho, o trigo e o arroz. Contudo,
também foram marcadas pelo início de um drástico processo de ero-
são genética e pela perda da autonomia dos agricultores sobre o pro-
cesso de cultivo, incluindo a questão do controle sobre as sementes
e sobre o pacote tecnológico a elas associado.
A erosão do conhecimento local presente em comunidades indí-
genas e de agricultores familiares ocorreu paralelamente à erosão ge-
nética e também contribuiu para limitar o número de novas espécies de
uso potencial pelo homem. A erosão genética e a do conhecimento tra-
dicional concorreram para um comprometimento da produção mundial
de alimentos e são duas ameaças à própria sobrevivência da espécie
humana. No Oeste de Santa Catarina, por exemplo, a situação socioe-
conômica da unidade de produção agrícola familiar é alarmante, denun-
ciada pelo grande êxodo rural e pelo quadro de pobreza agudo.17 Em
parte, isso se deve à erosão genética dos recursos locais e do conheci-
mento tradicional.13
Mesmo dianse deste cenário, um considerável estoque de agro-
biodiversidade, representado pelas variedades locais e crioulas, ain-
da foi conservado, usado e selecionado pelos agricultores familiares
de todo o planeta. Quando manejados por agricultores familiares, em

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ambientes particulares, ao longo de muitos anos, tornam-se fontes de
genes e de combinações gênicas valiosas, servindo como reservató-
rio genético e matéria-prima essencial, capaz de oferecer aos cultiva-
res melhorados valores de uso medicinal, nutricional, profilático,
artesanal, energético e ornamental, bem como diversas possibilidades
de respostas adaptativas frente a fatores bióticos e abióticos.
Não tardou para que técnicos e cientistas ligados a segmentos
da produção agrícola constatassem o desaparecimento da diversida-
de genética associado ao cultivo de variedades tradicionais e a pró-
pria vulnerabilidade dos cultivares modernos frente às condições
diversas e adversas de ambiente. E que isso levaria ao comprometi-
mento do modelo de produção difundido pela Revolução Verde.
Os impactos danosos causados pela erosão genética e pela
erosão do conhecimento tradicional levaram à emergência de vá-
rios grupos de pesquisa preocupados com a busca de alternativas
voltadas para a manutenção do homem no campo, vinculadas à
conservação e ao uso sustentável da agrobiodiversidade. Contudo,
para que tais alternativas sejam viáveis, pressupõe-se que, ao mes-
mo tempo em que promovam a sustentabilidade dos sistemas, tam-
bém sejam capazes de viabilizar o desenvolvimento das comuni-
dades locais.
É com esse foco que o Núcleo de Estudos em Agrobiodiversi-
dade (NEABio), na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
tem trabalhado. O tema nuclear tratado pelos membros desse grupo
envolve questões relacionadas à conservação, ao manejo e ao uso da
agrobiodiversidade em comunidades de agricultores familiares de
Santa Catarina. Por entender que a manutenção do homem integra-
do ao seu meio natural é a melhor forma de preservar e conservar os
recursos biológicos e não-biológicos ainda disponíveis na terra é
que a pesquisa participativa tem sido a principal ferramenta de tra-
balho desse grupo.
Este capítulo foi elaborado com a finalidade de relacionar as
principais atividades desenvolvidas pelo NEABio, entre os anos de
2002 a 2006, em comunidades de agricultores do município de
Anchieta, a partir de ações de pesquisa e de capacitação promotoras
da conservação, manejo e uso dos recursos fitogenéticos locais.

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Biodiversidade 0204.P65 274 5/4/2007, 10:48


ANCHIETA: HISTÓRIA DE UM TRABALHO FOCADO NO MILHO CRIOULO
Na região Sul do Brasil, particularmente no Extremo Oeste de
Santa Catarina, o sistema de produção agrícola está baseado na agri-
cultura familiar, onde ainda é possível encontrar muitos agricultores
que mantêm e cultivam variedades locais ou crioulas de várias espé-
cies, em especial de milho.18
É reconhecida a função social do milho para as pequenas uni-
dades de produção catarinenses. Particularmente, no caso das varie-
dades locais e crioulas, além do milho ser usado na alimentação
animal, na forma de silagem, forragem e grãos, também tem sido
consumido na alimentação humana, na forma de farinha, fubá, ami-
do, melado, milho-pipoca, milho-verde (pamonha e cremes) ou de
grãos secos (canjica).19 Como medicamento, tem sido usado em in-
fusões feitas a partir dos estiletes de algumas variedades de milhos
roxos, atuando principalmente como diurético, no alívio a dores,
nos processos inflamatórios e infecciosos da vesícula, dos rins e da
bexiga, bem como no combate a cálculos renais, ao ácido úrico, à
pressão alta e alergias. Finalmente, no artesanato local, o milho tem
sido usado pela grande diversidade de cores apresentada por grãos e
palha e também pela maciez da palha de certas variedades.
A dificuldade de acesso aos pacotes tecnológicos difundidos
pela Revolução Verde e a postura crítica dos agricultores frente a esse
modelo conduziram muitas dessas famílias rurais a uma forma dife-
rente de manejar a agrobiodiversidade. Em decorrência disso, houve
uma recente disjunção dessas comunidades com relação ao sistema
de produção agrícola convencional, ligado à rede agroindustrial, glo-
balmente organizado. Como conseqüência disso, parte desses produ-
tores procurou ajustar seu sistema de produção em direção ao mode-
lo agroecológico a partir do cultivo orgânico de variedades crioulas,
adaptadas a esses agroecossistemas particulares.20
É relevante destacar que dentre as unidades de produção
usuárias de milho crioulo da região Oeste do Estado, 68% passaram
a cultivá-lo nos últimos dez anos, em geral para ser consumido no
próprio estabelecimento.19 Esse retorno ao cultivo de variedades
antigas sugere que os cultivares modernos não têm atendido, ao
menos em parte, às necessidades de uso e de cultivo desses sistemas
de produção particulares. Por essa razão, esta tem sido considerada
uma região modelo para o desenvolvimento de trabalhos relaciona-

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dos à análise do potencial da diversidade do germoplasma local,
como proposta alternativa ao sistema de produção vigente.
Em Anchieta, o Sintraf tem oferecido assessoria aos agriculto-
res do município para a produção agroecológica de grãos de milho
desde 1998. A busca de alternativas ao sistema de produção conven-
cional foi uma importante iniciativa desses agricultores, uma vez
que possibilitou a autonomia no processo de produção de sementes.
Na safra 2001/2002, das 1.096 famílias de agricultores de Anchieta,
539 produziram 24 toneladas de sementes crioulas de milho, sendo
que 96% foram produzidas pelas famílias, em suas unidades de pro-
dução.11, 13 Alguns desses produtores produziram tais sementes sob
orientação de técnicos do Sintraf do município, segundo a estratégia
da seleção massal estratificada de plantas.
Embora seja muito clara a necessidade de melhorar a prática de
produção de sementes, a redescoberta das variedades locais foi um
marco importante para esses agricultores voltarem a valorizar a biodi-
versidade agrícola disponível, não apenas do ponto de vista ecológico,
mas como fator de segurança e estabilidade do sistema de produção.
Paralelamente à produção própria de sementes, o Sintraf, de
Anchieta, o Centro de Apoio aos Pequenos Agricultores (CAPA), de
Maravilha, e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), de São
Miguel D’Oeste, efetuaram um levantamento das variedades crioulas
de milho cultivadas em Anchieta e arredores. Durante o período com-
preendido entre os anos de 1998 a 2002, foram identificadas 33 varie-
dades crioulas de milho, das quais sete estão sendo manejadas nesses
locais há mais de quinze anos (quinze a quarenta anos) e duas há mais
de cem anos.11 Atualmente, mais de quarenta variedades já foram iden-
tificadas para uso na alimentação animal e humana, no artesanato lo-
cal e também para fins terapêuticos. No entanto, até poucos anos atrás
ainda faltava o compromisso de qualquer organização externa no sen-
tido de oferecer assessoria para o desenvolvimento de trabalhos de
análise dos recursos genéticos locais de uso real e potencial visando
ao desenvolvimento sustentável destas propriedades.

O TRABALHO PARTICIPATIVO DO NEABIO E PARCEIROS DE ANCHIETA


Desde sua fundação, o NEABio reuniu pesquisadores, profes-
sores e estudantes voltados para o desenvolvimento de uma rede

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Biodiversidade 0204.P65 276 5/4/2007, 10:48


integrada de pesquisa, extensão e ensino, visando a contribuir com
trabalhos de significativa função social para Santa Catarina, inclusi-
ve para atender às demandas priorizadas pelas políticas sociais do
governo. Dentro de uma perspectiva socioecológica, o NEABio pro-
põe-se a estudar sistemas agroecológicos que apóiem o manejo da
agrobiodiversidade. A partir disso, o grupo busca estimular o debate
e estudar as implicações sociais, políticas e jurídicas do manejo da
agrobiodiversidade; estudar o germoplasma local em uso ou com
potencial de uso humano, em apoio ao manejo da agrobiodiversida-
de; estimular a formação de redes formais e informais de trabalho
que apóiem o manejo da agrobiodiversidade.
Diagnóstico de agrobiodiversidade e manejo. A primeira ação
desse grupo no Extremo Oeste de Santa Catarina aconteceu em 2002.
Esse trabalho inicial permitiu conhecer os agricultores que conser-
vavam variedades tradicionais de milho na região.20 Posteriormente,
um diagnóstico sociocultural, econômico e biológico mais detalha-
do foi conduzido em Anchieta, focado principalmente nos agricul-
tores que conservam variedades locais e crioulas de várias espé-
cies,13 inclusive de milho.21 Esse trabalho, conduzido com apoio do
Sintraf de Anchieta e do NEABio, evidenciou a existência de uma
grande diversidade de variedades locais e crioulas de várias espé-
cies vegetais (Tabela 6.3.1) e possibilitou a identificação de agricul-
tores nodais bem como a riqueza e abundância dessa diversidade.
Essas informações foram fundamentais para a realização dos traba-
lhos subseqüentes conduzidos pelo grupo.

Tabela 6.3.1 – Porcentagem de famílias de agricultores de Anchieta


que cultivam variedades crioulas de diferentes espécies13

CULTURA AGRICULTORES CULTURA AGRICULTORES


(%) (%)
Abóbora 59 Feijão 77
Alface 21 Feijão-de-vagem 58
Alho 84 Mandioca 98
Amendoim 78 Medicinais 91
Arroz 54 Melancia 25
Aveia 13 Milho 41

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Batata-doce 88 Milho-pipoca 67
Batata 18 Plantas de cobertura 30
Cana 80 Salsa 58
Cebola 5 Soja 3
Cebola-de-família 49 Tomate 34
Ervilha 30 Trigo 13

Avaliação participativa do potencial agronômico. Após o


trabalho de diagnóstico, buscou-se efetuar uma análise das poten-
cialidades de algumas das variedades de milho resgatadas pelo Sintraf
de 1998 a 2002. A partir de experimentos conduzidos nas safras
2002/2003 e 2003/2004, foi possível caracterizar grande parte des-
sas variedades quanto à diversidade/similaridade genética, aspectos
morfológicos, fenológicos e agronômicos, bem como quanto ao va-
lor adaptativo frente a agentes fitopatogênicos, ao valor nutricional
e medicinal.13, 18, 19, 22
Nos experimentos a campo, conduzidos no sistema orgânico,
em unidades de produção de agricultores de Anchieta e de Canoinhas,
quatro dessas variedades apresentaram rendimentos satisfatórios,
variando de 6,1 a 6,9 t/ha de grãos na safra 2002/200322. Outras sete
apresentaram uma amplitude de variação de 6,81 a 7,98 t/ha de grãos
t/ha na safra 2003/2004.23 Deve ser destacado que, nessas mesmas
safras, a produtividade média de Santa Catarina foi de 4,99 (safra
2002/2003) e 4,10 (safra 2003/2004) t/ha de grãos, respectivamen-
te23. A reação a campo de sete dessas variedades frente a doenças do
milho também tem sido muito promissora – é significativa a resis-
tência quantitativa a Exserohilum turcicum,20 especialmente daque-
las variedades portadoras de palha de coloração roxa. Atualmente,
outros experimentos estão sendo conduzidos em Canoinhas e Cam-
pos Novos com a finalidade de estabelecer o manejo mais adequado
para uma dessas variedades crioulas de milho.
Análises químicas dos grãos de milho crioulo. Em adição aos
experimentos de campo, foram conduzidas análises químicas dos
grãos, folhas e estiletes, as quais permitiram a identificação prelimi-
nar do potencial de uso desses recursos locais quanto ao valor alimen-

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Biodiversidade 0204.P65 278 5/4/2007, 10:48


tar, nutricional24 e medicinal25. Algumas dessas variedades devem,
além disso, ser destacadas pela elevada concentração de componen-
tes com atividade antitumoral e antioxidante,25 que contribuem para
a redução de alguns tipos de câncer e de degeneração macular. Com
base nessas informações, foi possível observar que, além da rica di-
versidade disponível, muitas dessas variedades de Anchieta e da re-
gião também agregam valores com potencial para uso comercial ime-
diato na indústria alimentícia e farmacêutica.
Melhoramento genético da população composta local
MPA01. A partir das demandas apontadas pela ASSO e pelo Sintraf
de Anchieta, também foi identificada a necessidade de dar início a um
programa de melhoramento genético de milho, visando ao desenvol-
vimento de variedade melhorada, adaptada ao sistema orgânico e às
condições locais de ambiente e manejo. Na safra 2004/2005, o
NEABio deu início ao primeiro ciclo de seleção recorrente participa-
tiva de famílias de meios-irmãos de milho, a partir de uma população
composta.26 Esse trabalho contempla estratégias de melhoramento,
normalmente conduzidas pelo sistema formal de pesquisa e desenvol-
vimento. Contudo, é inovador pelo fato de as etapas de avaliação
experimental e de produção de semente genética terem sido condu-
zidas nas próprias unidades de produção dos agricultores, descentrali-
zando das estações experimentais. Adicionalmente, o processo de
avaliação foi monitorado pelos critérios de seleção estabelecidos com
base na necessidade e no conhecimento dos agricultores locais.10, 27
Os dados obtidos a partir desse programa participativo têm
apontado que a seleção de famílias de meios-irmãos, efetuada com
base em métodos de análise científica, tem coincidido em muitos
aspectos com a percepção de escolha dos agricultores ou são, ao
menos, complementares a ela.10, 29 A partir disso, um modelo dinâ-
mico de conservação e manejo local de variedades de milho está
sendo proposto, incluindo aspectos técnicos de produção de semen-
te de qualidade genética, física e fisiológica, associados a procedi-
mentos de seleção, efetuados com base no conhecimento formal e
informal. Esse modelo, mais eficiente do que a seleção massal
estratificada e menos complexo que os métodos convencionais de
seleção recorrente, poderá ser aplicado em comunidades de agricul-
tores imbuídas da conservação, melhoramento e produção própria

279

Biodiversidade 0204.P65 279 5/4/2007, 10:48


de sementes de milho. A partir disso, será possível viabilizar a cada
ciclo de produção de sementes tanto a obtenção de variedades gene-
ticamente melhores como a conservação dos recursos locais.
Capacitação de técnicos e agricultores. Para levar a termo as
ações participativas de pesquisa, capacitação e extensão, o NEABio
também tem aplicado estratégias de diagnóstico rural participativo e
promovido a capacitação teórico-prática de técnicos e agricultores
locais sobre os temas relacionados à conservação, uso e manejo da
agrobiodiversidade. Até então, foram ministrados minicursos sobre
os temas; (i) produção e seleção de semente na unidade de produ-
ção; (ii) qualidade genética da semente; (iii) qualidade fisiológica,
física e fitossanitária de semente; (iv) experimentação aplicada à
seleção de variedades e ao melhoramento de milho; (v) conservação
da agrobiodiversidade, dentre outros.
Os resultados obtidos em Anchieta têm motivado os pesquisa-
dores do NEABio a ampliar suas ações em relação aos limites e po-
tencialidades do germoplasma disponível na região. A necessidade
da continuidade deste trabalho e de sua ampliação para municípios
vizinhos ficou evidente no II Encontro de Formação de Técnicos e
Agricultores em “Conservação e Manejo da Agrobiodiversidade”,
realizado na UFSC, com o apoio financeiro do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Funda-
ção de Apoio à Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado de San-
ta Catarina (FAPESC), em maio de 2005. Dos 38 agricultores e téc-
nicos participantes deste evento, dezoito eram procedentes de
Anchieta e vinte procedentes de municípios vizinhos do Extremo
Oeste do Estado, como Guaraciaba, São Lourenço do Oeste, Ban-
deirante e Novo Horizonte.

FUTUROS PROJETOS EM APOIO À CONSERVAÇÃO E


AO MANEJO DE MILHO CRIOULO
O conjunto de ações de pesquisa e desenvolvimento promovi-
do por grupos imbuídos da conservação, manejo e uso da agrobiodi-
versidade, associado a políticas públicas apoiadoras, pode refletir
de forma eficiente e dinâmica na conservação da diversidade genéti-
ca ainda disponível nessa espécie. O próprio desenvolvimento de
atividades lucrativas a partir do manejo dos recursos locais pode ser

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Biodiversidade 0204.P65 280 5/4/2007, 10:48


um grande estímulo para o aumento das áreas de cultivo com milho
crioulo, desde que essa prática vincule o sistema de produção dos
agricultores familiares de forma integrada à comercialização.
A pesquisa institucional ou acadêmica, quando capaz de pro-
mover o desenvolvimento local, pode ser o caminho mais eficiente
para reintegrar os agricultores familiares à atividade da conservação
e uso desses valiosos recursos genéticos. Essa tem sido uma cons-
tante preocupação do NEABio. Atualmente, trabalhos dessa nature-
za têm sido conduzidos pelos membros do NEABio, com apoio fi-
nanceiro do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), com
vistas a viabilizar o trabalho de pesquisa, de produção, de comercia-
lização e de processamento a partir do cultivo de variedades locais e
crioulas de milho com valor agregado de manejo e uso.
O programa de melhoramento participativo de milho, iniciado em
Anchieta, Santa Catarina, a partir de recursos do CNPq e, atualmente,
conduzido com apoio do MDA, também está inserido nessa perspec-
tiva de pesquisa integrada ao desenvolvimento local. Alguns resulta-
dos obtidos pelo Laboratório de Morfogênese e Bioquímica Vegetal da
UFSC têm mostrado a presença de uma maior concentração de
metabólitos secundários de interesse para a indústria alimentícia e para
a saúde humana em algumas populações locais de milho de Anchieta,
comparativamente aos valores observados em variedades de milho
desenvolvidas em programas de melhoramento genético convencionais.
A presença de altos teores de compostos com atividade antioxidante e
anticancerígena corrobora o aumento do valor nutricional dos alimen-
tos derivados dessa variedade, contribuindo para a prevenção de doen-
ças degenerativas relacionadas ao envelhecimento.
A partir de então, o processo de melhoramento participativo
conduzido em Anchieta também tem se preocupado com esses com-
ponentes bioativos de valor nutricional, funcional e terapêutico, além
dos critérios de seleção já indicados pelos agricultores locais. A ob-
tenção de produtos alimentícios diferenciados será uma grande con-
tribuição desse programa de pesquisa e desenvolvimento coordena-
do pelo Laboratório de Pesquisas em Agrobiodiversidade da UFSC,
à medida que permitirá agregação de valor e rotulagem específica a
partir do cultivo de variedades locais de milho dos agricultores de
Anchieta.

281

Biodiversidade 0204.P65 281 5/4/2007, 10:48


Outra possibilidade interessante que se vislumbra, nesse contex-
to, vem a ser a obtenção da certificação participativa da Rede Ecovida
de Agroecologia. As elevadas concentrações de componentes bioa-
tivos e nutricionais associadas ao manejo ecológico praticado pelos
agricultores do município de Anchieta apontam para o grande poten-
cial comercial desses recursos locais para uso humano em mercados
diferenciados. Esse trabalho vem de encontro ao crescente interesse
pela melhoria da qualidade de vida das populações humanas, sejam
rurais ou urbanas, à medida que busca associar a agregação de valor
às matérias-primas como uma forma de minimizar o êxodo rural e au-
mentar o consumo de alimentos mais saudáveis para as populações
urbanas.
Outro aspecto promissor do trabalho do NEABio está associa-
do à autonomia dos agricultores no processo de produção de semen-
tes. O cultivo de sementes produzidas pelos próprios agricultores, a
partir de variedades locais e crioulas, tem sido uma das estratégias
usadas por muitas comunidades rurais para reduzir os elevados cus-
tos de implantação das lavouras de milho. Essa prática também tem
proporcionado a independência dos agricultores familiares em rela-
ção às empresas privadas produtoras de sementes de cultivares hí-
bridos de milho.

6.4 MANEJO E DOMESTICAÇÃO DE MANDIOCA


POR CAIÇARAS DA MATA ATLÂNTICA E
RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA
Nivaldo Peroni

Quando consideradas as relações entre manejo local e agro-


biodiversidade, é explícito que muitas atividades de populações
humanas tradicionais proporcionam conservação de variedades de
espécies cultivadas em diversos graus de domesticação. Assim, em
diferentes partes do mundo, inclusive no Brasil, tem-se relatado o
papel de populações indígenas, tradicionais e locais em manter um
número significativo de variedades locais.28, 29, 30 Diversas são as

282

Biodiversidade 0204.P65 282 5/4/2007, 10:48


implicações relacionadas a esse fato. Uma das principais conse-
qüências é que, sob cultivo, as espécies podem continuar a experi-
mentar mudanças em sua estrutura genética decorrentes do mane-
jo, do uso e também das mudanças no ambiente, que permitem sua
evolução continuada. Assim, além de os agricultores manterem suas
variedades, já tradicionalmente cultivadas, eles podem favorecer o
surgimento de novas características nas variedades já existentes, ou
mesmo de novas variedades cada vez mais adaptadas às condições
locais. Por meio da continuidade do manejo, assim como da conser-
vação das variedades, é possível manter em funcionamento a evolu-
ção dos cultivos nos campos dos agricultores e para os agricultores.
A partir da década de 70, foram reforçadas as diferenças en-
tre estratégias de conservação que mantivessem as espécies ex-
postas a eventos evolutivos, como seleção natural, seleção incons-
ciente e consciente, em oposição a estratégias de conservação que
congelassem esses eventos, como ocorre, por exemplo, na con-
servação ex situ.28 Apesar de terem se passado mais de trinta anos
desde as primeiras discussões sobre evolução in situ de espécies
cultivadas, agricultores locais ainda são vistos como “curadores”,
ou “guardiões” de variedades locais, o que pode conferir uma no-
ção estática às suas atividades. A noção de que agricultores locais
permitem evolução continuada em seus campos de cultivo foi to-
mada como uma premissa, mas pouco se tem estudado sobre os
processos dinâmicos decorrentes do manejo local executado por
agricultores locais. É importante ressaltar que sua função como
mantenedores, ou “curadores”, por si só já é de extremada rele-
vância para a conservação de recursos genéticos. Porém, o papel
dos agricultores é muito maior, no sentido de poderem gerar novos
recursos e conhecimentos associados a esses recursos. Um aprofun-
damento nessa questão permite explicitar como ocorre a conserva-
ção e também como podem acontecer eventos complexos que, além
de conservar, amplificam a diversidade dentro de cultivos. Assim,
o objetivo deste capítulo é discutir alguns conceitos e apresentar
um exemplo que procura responder à seguinte questão: Como e por
que o manejo por agricultores locais pode amplificar a diversidade
intra-específica de uma espécie?

283

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Para responder a esse tipo de questão é necessário lançar mão
de uma abordagem interdisciplinar, uma vez que se procura entender
o que os agricultores conhecem e executam a respeito de manejo e
quais são as conseqüências disso. Como esse tipo de abordagem
envolve aspectos complexos, temos que usar um determinado conjun-
to de ferramentas que nos permitam responder questões relacionadas
ao conhecimento tradicional e também possam nos ajudar a integrar
informações de outra natureza, como as ecológicas e genéticas da(s)
espécie(s) de interesse.

DOMESTICAÇÃO E CONHECIMENTO LOCAL ASSOCIADO


De forma geral, as modificações genéticas causadas pelo ho-
mem, que levam as populações das espécies a serem cada vez mais
adaptadas ao modo de cultivo e ao ambiente no qual a espécie é
cultivada, levam o nome de domesticação. Alguns autores têm en-
tendido esse processo como um aumento da dependência de uma
espécie em relação às ações humanas e que essa dependência, e tam-
bém as alterações na estrutura genética, são graduais. Dessa forma,
entendemos que há diversos tipos de modificações que ocorreram e
estão ocorrendo em diferentes espécies e que essas modificações
causam maior ou menor grau de dependência dos indivíduos de uma
espécie para sobreviver, reproduzir-se e dispersar-se.29 Assim, algu-
mas espécies dependem mais e outras menos da ação humana para
sobreviver e deixar descendentes.
Um fator que emerge das relações entre pessoas e plantas é o
conhecimento acumulado, ao longo de gerações, a respeito de uma
determinada espécie. Esse conhecimento engloba desde caracterís-
ticas agronômicas, ecológicas, ou sobre especificidades reprodutivas,
até os usos e os significados culturais das espécies e variedades.
Nesse sentido, o estudo de domesticação é incrementado quando
acessamos os conhecimentos tradicionalmente desenvolvidos pelos
agricultores e agricultoras que cultivam ou manejam uma determi-
nada espécie. Da complexidade deste tipo de abordagem surge a
necessidade de se compreender, então, as relações entre pessoas e as
plantas e os ambientes dessas plantas de maneira mais integral, bus-
cando explicações do motivo por que as espécies são o que são e o
que as levou a se tornarem o que são.

284

Biodiversidade 0204.P65 284 5/4/2007, 10:48


QUESTÕES E FERRAMENTAS CIENTÍFICAS USADAS
NO CONTEXTO DE MANEJO DE BIODIVERSIDADE
Existe uma ampla gama de ferramentas úteis que refletem a
complexidade das questões que se têm procurado responder quan-
do ações humanas estão envolvidas no manejo de espécies e de am-
bientes.
No contexto brasileiro, a complexidade das questões é grande
por ser um país altamente diverso tanto do ponto de vista biológico
como cultural, o que é especialmente salutar para o contexto de do-
mesticação de plantas, pois aqui se tem espécies com características
muito particulares. No contexto da domesticação de plantas neotro-
picais, por exemplo, como explicar a existência de aproximadamen-
te sete mil variedades de mandioca (Manihot esculenta ssp. esculenta
Crantz), se ela foi domesticada como uma espécie de propagação
vegetativa?
• Que fatores do manejo podem estar relacionados e influen-
ciar componentes da história de vida dessa espécie? Ou seja, como o
manejo pode ter alterado a maneira como essa espécie dispersa suas
sementes ou influenciado a dormência das suas sementes?
• Por que o homem manteve, e mantém, variedades tóxicas
dessa espécie quando também há variedades pouco tóxicas, cultiva-
das em simpatria (umas juntas das outras)?
• Que fatores se relacionam com a conservação e com as per-
das de diversidade nos campos de cultivo? Serão estes fatores de
natureza biológica? Socioeconômica? Cultural?
• Esses fatores são dinâmicos no tempo e no espaço? Que con-
dições os agricultores e agricultoras possuem para reproduzir e pro-
duzir novos conhecimentos?
• E, ainda, que fatores do conhecimento e do manejo dessa
espécie podem agir como amplificadores de diversidade genética?
Serão os cultivadores tradicionais de mandioca apenas clonadores
de variedades?

Todas essas (e muitas outras) questões poderiam ser aplicadas


a diversas outras espécies domesticadas nas regiões tropicais e neo-
tropicais além da mandioca. A mandioca tem sido usada como um
modelo para espécies de propagação vegetativa, das quais se utilizam

285

Biodiversidade 0204.P65 285 5/4/2007, 10:48


as raízes e tubérculos como alimento.31 No Brasil, diversos grupos
indígenas, assim como populações tradicionais, como os caiçaras,
caboclos, ribeirinhos amazônicos, entre outros, têm sido estudados
por manterem, em geral, uma alta diversidade de variedades de man-
dioca em suas roças e também por manterem um conhecimento com-
plexo sobre a forma de manejar e usar essa diversidade.32,33, 34
A seguir estão listadas algumas ferramentas da ecologia e da
genética associadas às ferramentas da etnoecologia e etnobotânica:35
• No contexto ecológico e genético: caracterização participati-
va da morfologia das variedades in situ, ou na unidade de produção;
análise da diversidade baseada no uso de marcadores moleculares
do tipo microssatélite ou de marcadores isoenzimáticos; análise da
distribuição geográfica, em diversas escalas, com uso de imagens de
satélite; análise demográfica das variedades cultivadas.
• No contexto da diversidade cultural: documentação do
etnoconhecimento (entrevistas estruturadas e semi-estruturadas, me-
todologias de pesquisa participativa como etnomapeamentos, história
de vida e linha de tempo); levantamento das origens das variedades
locais, seus usos e banco de sementes e de memória;36 etnografia das
populações humanas envolvidas; análise quantitativa, diversidade de
citações, índice de saliência cultural e matrizes de ranking.

Em que consiste o manejo sob a perspectiva de se estudar a


dinâmica evolutiva de espécies cultivadas? Dentre as diversas defi-
nições de manejo, aqui serão consideradas duas perspectivas. Uma,
que define algumas características comuns às diversas formas de
manejo existentes37 como:
• Conversão quase completa de uma paisagem em outra.
• Extração de alguns produtos, sem grande perturbação no am-
biente.
• Preservação total de um local para a conservação da diversi-
dade biológica.

Essa perspectiva nos auxilia a entender que grau de alteração pode


existir numa unidade de paisagem que foi ou está sendo manejada.
Uma segunda perspectiva, originada da ecologia histórica, de-
fine manejo como “uma atividade humana de manipulação de
componentes orgânicos ou inorgânicos que acarreta uma diversida-

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Biodiversidade 0204.P65 286 5/4/2007, 10:48


de maior que em condições naturais sem a presença humana”.38 Essa
definição encontra um paralelo estreito com a perspectiva de estu-
dar-se a dinâmica evolutiva de cultivos agrícolas, uma vez que pro-
cura explicitar características de atividades e de ações humanas que
propiciaram amplificação da diversidade intra-específica das espé-
cies. Além disso, em ambientes tropicais, as atividades relacionadas
ao manejo das paisagens florestais têm sido discutidas em sua com-
plementaridade a ações humanas relacionadas à domesticação de
plantas.29 Porém, os estudos que consideram o manejo como fator
amplificador de diversidade ou que enfatizam o manejo influenciando
a estruturação populacional, seja ecológica ou genética, de popula-
ções de espécies cultivadas ainda são restritos.

MANDIOCA, CAIÇARAS DA MATA ATLÂNTICA


E RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA
Para exemplificar um tipo de manejo local, os estudos que têm
sido conduzidos no litoral do Estado de São Paulo e na Amazônia
junto a populações caiçara e ribeirinha (caboclos), respectivamente,
fornecem subsídios para uma discussão de fatores que influem no
manejo local da mandioca, no sentido de compreender as causas da
perda, da manutenção e da amplificação de diversidade genética.
Para analisar esses fatores foi usada uma abordagem multiescala no
litoral paulista, a partir de um modelo apresentado por Martins (2001).
Nesse modelo, integra-se o conceito de escala local e regional, onde
espaço e tempo são fatores importantes. Assim, esse modelo foi
empregado35 considerando-se:
• A unidade regional (unidade biofísica), como uma escala de
análise das mudanças na paisagem (roçados em áreas em sucessão
secundária), manejada no período de 1975 a 2002.
• A unidade em nível das comunidades humanas (unidade cul-
tural), para análise de relações de troca e fluxo de variedades entre
comunidades.
• A unidade local (unidade ecológica/evolutiva), ou as roças
das famílias caiçaras, onde eventos de dinâmica evolutiva operam.

Essa estrutura permitiu quantificar a diversidade genética de


variedades de mandioca em níveis hierárquicos de análise, assim
como analisar as mudanças no manejo em nível da paisagem.

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Os principais resultados mostraram que, analisando as intera-
ções de manejo da paisagem com o manejo local da diversidade, é
possível acompanhar um processo de retração da atividade agrícola
entre os caiçaras, seguido da perda de aproximadamente trinta va-
riedades em cerca de 25 anos.30 Apesar disso, entre os caiçaras da
região Sul de São Paulo, foram identificados 58 nomes locais para
as variedades ainda cultivadas, correspondendo tanto a variedades
com nomes iguais mas com genótipos diferentes como de genótipos
iguais mas com nomes diferentes.
É importante lembrar que a mandioca tem propagação vegetati-
va (clones) – ao serem analisados diversos indivíduos de uma mesma
variedade, espera-se que eles sejam todos iguais geneticamente. Exis-
tem, porém, variações que não são levadas em conta na hora de se no-
mear e agrupar um conjunto de indivíduos como uma variedade. Peque-
nas variações de morfologia podem existir, mas os agricultores podem
deixá-las de lado em relação a características mais marcantes, que iden-
tificam uma variedade. Assim, é relativamente comum encontrar varie-
dades que são, na verdade, famílias de genótipos com algum grau de
diferenciação genética, mas com alto grau de semelhança morfológica.
Para melhor avaliar as diferenças entre 147 indivíduos de 58
variedades (em termos de nomes populares), distribuídas em dezoi-
to roças, nove marcadores moleculares do tipo microssatélite (SSR)
foram utilizados.35 Nessa amostra, foram identificados em média 8,1
genótipos por roça e, ao todo, 95 genótipos diferentes. Analisando
como a diversidade genética é distribuída, foi encontrado que existe
mais diversidade dentro das roças que entre elas, ou seja, que cada
agricultor mantém uma boa representação da diversidade total em
cada uma de suas roças, e essa diversidade não se diferencia muito
da dos outros agricultores em sua região. O fato de os agricultores
residirem mais ou menos perto uns dos outros também não tem grande
influência nas diferenças genéticas entre as roças, pois existem mui-
tas trocas entre parentes e vizinhos. A pesquisa genética mostra que
agricultores que moram mais longe uns dos outros podem manter
variedades mais diversas, provavelmente por não terem facilidade,
ou mesmo contato, para trocas. Ou, então, por cultivarem em locais
com ambientes bem diferentes, onde também necessitam de varie-
dades distintas.

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Esses resultados, em conjunto com os resultados gerados pelo
estudo etnobotânico e etnoecológico, mostram que o fluxo de varie-
dades entre agricultores é intenso e as perdas locais são compensa-
das por reposições de variedades existentes nas proximidades de
cada agricultor. Ações de trocas intencionais e não-intencionais de
variedades, em nível regional, têm criado um efeito tampão às per-
das locais. A estrutura da diversidade pode ser compreendida como
uma analogia ao modelo de metapopulações para explicar a dinâmi-
ca das trocas de variedades entre agricultores. Com uma taxa de
emigração de variedades estimada em 10%, o conjunto de unidades
evolutivas (roças) avaliadas favorece a conservação de recursos ge-
néticos no contexto macrorregional, no qual o homem age como um
componente de dispersão entre unidades locais. Agricultores inter-
dependentes, que trocam material genético entre si, têm maiores
chances de sucesso nos cultivos, mantendo e compartilhando maior
diversidade dentro das roças.

RELAÇÕES ENTRE MANEJO E DINÂMICA DA ESPÉCIE


Na Tabela 6.4.2 estão relacionados os possíveis eventos resul-
tantes das etapas do manejo observados nas roças estudadas.32, 35
Foram discriminados como forma de modelar e sugerir hipóteses
sobre processos de interação entre o manejo agrícola tradicional e
eventos da dinâmica evolutiva das espécies cultivadas. De forma
geral, os fatores apresentados explicitam como a interação do agri-
cultor com espécies de propagação vegetativa, como a mandioca,
pode favorecer a diversidade e, em muitos casos, amplificá-la.

Tabela 6.4.2 – Resumo das relações entre manejo tradicional e eventos de


dinâmica evolutiva de espécies cultivadas por propagação vegetativa.30

MANEJO EVENTO
Abertura da roça Perturbação estimulando a colonização
Plantio da roça definido Estabelecimento de população
(unidade evolutiva) com limites
Plantio de diferentes espécies Habilidade de combinação ecológica
Plantio de diferentes Favorecimento de intercruzamento
variedades (hibridação)

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Controle brando Hibridação introgressiva
de colonizadores
Ausência de colheita Dispersão natural e formação de banco
de sementes de sementes
Retorno às áreas Germinação de sementes do banco
de roça antiga Fluxo gênico temporal e espacial
Propagação vegetativa Manutenção dos genótipos originais,
fixação de mutantes

A diversidade intra-específica ou o número de variedades po-


dem ser ampliados por migração, ou seja, pode haver introdução
de novas variedades por meio de trocas, como um fator cultural.
Esse é um fator muito importante, uma vez que muitos agriculto-
res são ávidos por experimentar novas variedades e as trocas fa-
vorecem a diversidade. As trocas são importantes no contexto de
qualquer espécie, especialmente no caso da mandioca, pois no-
vas variedades cultivadas juntas podem influenciar um outro fator,
que é o cruzamento natural. Cabe lembrar que em qualquer roça
de mandioca quase todos os indivíduos serão clones e, devido à
grande proximidade genética entre indivíduos que são clones, a
chance de que um cruzamento seja malsucedido é muito alta. Quan-
do existem indivíduos de variedades diferentes, a chance de su-
cesso aumenta, pois aumenta a possibilidade de cruzamentos en-
tre indivíduos que não são tão aparentados como são os clones.
Os agricultores, ao longo da história da domesticação da mandio-
ca, não alteraram fortemente as estruturas reprodutivas da espécie,
pois se fixaram principalmente nos órgãos subterrâneos. Quando o
agricultor troca variedades coloca, conjuntamente, materiais que
podem ser bem diferentes e, assim, favorece o sucesso de possí-
veis cruzamentos naturais. Tecnicamente, os agricultores irão fa-
vorecer a hibridação e a recombinação.
Um outro fator importante é a ocorrência de mutações, e, tendo
em vista que a propagação é vegetativa, variações genéticas que apa-
recem podem ser fixadas imediatamente. Mais uma vez, o manejo
interage de modo direto com a diversidade, pois é a observação
criteriosa do agricultor que torna esse processo efetivo. A falta de

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observação criteriosa no manejo resulta na não-observância de ocor-
rência de novidades, pois elas raramente ocorrem.
Entre tantas características de história vital que foram modi-
ficadas pelas ações de domesticação, a dormência das sementes e
a capacidade de dispersão foram profundamente alteradas pelo ho-
mem, na maioria das espécies cultivadas. No caso da mandioca, as
modificações desses dois componentes não foram tão drásticas. A
espécie ainda pode formar banco de sementes no solo, constituin-
do, portanto, uma reserva de genótipos dessa espécie. As implica-
ções dessa característica são muito importantes, uma vez que pres-
supõem certa independência da espécie em relação ao homem, para
sobreviver e se reproduzir. A espécie, dessa forma, pode explorar
tanto uma variação espacial como temporal: um banco de semen-
tes no solo representa um estoque de genes que pode se expressar
quando as condições ecológicas forem favoráveis. O manejo, nes-
se sentido, pode proporcionar essas condições e, novamente, o ho-
mem interage com este componente da história de vida da espécie
de uma maneira muito intrincada.
As sementes armazenadas no banco de sementes do solo po-
dem germinar devido a diversos fatores de manejo como, por exem-
plo, o fogo, e dar origem a indivíduos adultos.39 Estes, eventualmen-
te, são incorporados ao conjunto de variedades já existentes. Nesse
processo, os agricultores podem simplesmente incorporar um indi-
víduo de semente, sem distingui-lo, ou podem dar um novo nome
para distinguir dos nomes que suas variedades já possuem. Tudo vai
depender das diferenças morfológicas que os indivíduos originados
de sementes apresentarem. Um indivíduo de semente que apresentar
discrepâncias morfológicas muito fortes certamente vai ser nomea-
do com um novo nome, dando origem a uma nova variedade. No-
meando ou não indivíduos que germinaram de sementes, os agricul-
tores estão incorporando diversidade em suas roças. Assim, entra
em ação tanto a seleção natural como também a seleção e o manejo
executados pelos agricultores.33 Esses eventos exemplificam como
os agricultores foram e continuam sendo hábeis em usar a propaga-
ção vegetativa para fixar novidades (novas variedades, diversida-
de), ao mesmo tempo em que permitem que essas novidades conti-
nuem a surgir.

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Os riscos de que esses eventos não tenham continuidade são
altos e, no caso dos locais aqui estudados, algumas características
são marcantes quanto à erosão genética e também a cultural. Diver-
sos fatores são responsáveis pela redução das atividades agrícolas e
perda de diversidade cultivada. Entre eles, o já histórico problema
fundiário, assim como inadequações de políticas públicas voltadas
exclusivamente para a conservação da Mata Atlântica.30 Em função
da estrita relação dos ciclos itinerantes com a amplificação da diver-
sidade, a redução da atividade agrícola tende a reduzir a freqüência
de incorporação de diversidade genética resultante desses cruzamen-
tos e de mutações aleatórias.

A FUNÇÃO DE AGRICULTORES TRADICIONAIS NA CONSERVAÇÃO


Pouco ou quase nada tem sido discutido no Brasil sobre
como podem ser integradas estratégias de conservação de áreas
protegidas, ou unidades de conservação, com estratégias que be-
neficiem agricultores tradicionais que conservam espécies, varie-
dades, conhecimento e processos de manejo. Mesmo entre espe-
cialistas de conservação de recursos genéticos (conservação nas
unidades de produção, ou in situ, na roça), os processos de ma-
nejo têm sido abordados timidamente e se tem dado maior ênfase
“às variedades”.
Os eventos aqui discutidos representam um modelo geral das
possíveis implicações do manejo e do conhecimento tradicional
de agricultores no favorecimento de diversidade. Os resultados de
pesquisas com a mandioca são úteis para se pensar de maneira
mais ampla sobre as implicações de ações e de atividades huma-
nas que acontecem diariamente em diferentes locais do Brasil e
do mundo. Os eventos apresentados permitem compreender com
maior profundidade como os agricultores podem ser fundamen-
tais na conservação de variedades. Mas, além disso, como podem
ser hábeis em manejar as espécies de forma a possibilitar a am-
plificação e o surgimento de novas variedades. O desafio conti-
nua sendo o de conservar a diversidade genética, mas também o
de melhorar as condições dos agricultores para que estes possam
dar continuidade à produção de suas novidades genéticas e de seus
conhecimentos.

292

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6.5 EDUCAÇÃO TEMÁTICA E PARTICIPATIVA:
A AGROBIODIVERSIDADE COMO TEMA NA ESCOLA

Daniel Habib, Gilson Gugel e Elivane Sechi

Educar é expansão consciente de limites.


É como se estivéssemos alargando as nossas
fronteiras, expandindo o nosso tempo e o nosso
espaço. Isso é ser educado.
Jorge Ponciano Ribeiro,
em Educação Holística

Este é o relato da experiência em educação temática e partici-


pativa tendo a agrobiodiversidade como tema, na escola Aluíno
Knapp, na Linha Diamantina, zona rural da região Norte do municí-
pio de Palmitos, no Oeste de Santa Catarina. Palmitos situa-se na
margem norte do rio Uruguai, que divide os estados do Rio Grande
do Sul e de Santa Catarina.

INTRODUÇÃO
Pode-se iniciar um texto com uma pergunta? Essa pergunta
no início do texto já é a própria resposta, é de se supor. Mas para
que essa pergunta, ou qualquer outra, seja respondida, antes preci-
samos saber se você, leitor/leitora, entendeu a pergunta, não é? A
apresentação de um texto muitas vezes procura envolver você na-
quilo que será contado a seguir, de modo que você possa chegar às
conclusões acompanhando a linha de raciocínio. Procura-se fazer
o mesmo aqui. Essa conversa inicia dessa maneira porque teremos
um tema em comum: o conteúdo que você estará lendo agora e lerá
a seguir. O tema da educação transparece a presença de alguém a
ser educado, de um conteúdo educacional e de algum educador ou
educadora. Falando sobre agrobiodiversidade isso não é diferente.
De alguma forma, todos participamos deste grande tema: educação
para a agrobiodiversidade. Participamos como consumidores, con-
sultores, estudantes, professores, técnicos, pesquisadores, comer-
ciantes ou agricultores. Todos, de alguma forma, estamos mistura-

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dos na educação, por comunicadores que somos. Afinal, para viver
é preciso se comunicar.
A experiência da escola Aluíno Knapp possui uma rara união
de características comuns: alunos e alunas, educadores, salas de
aula, materiais didáticos, merenda escolar, pessoas e materiais. Há
na escola também algo mais, sensivelmente diferente do que se
costuma encontrar em outras escolas, rurais ou urbanas. Lá exis-
tem motivação e sensibilidade para esse trabalho, requisitos fun-
damentais para o nosso tema da educação. A participação na esco-
la, durante a leitura, é resumida à informação que o texto traz. Mas
agora, neste momento mesmo, há inúmeras conseqüências do tra-
balho lá realizado. O envolvimento de educandos e de suas famí-
lias nas atividades decididas e realizadas na própria escola, e na
própria comunidade, produz um motor que não se resume à infor-
mação teórica aos alunos, denominada “ensino”. Mas traz efeitos
que se encadeiam na transformação do modo de perceber e atuar
no mundo daquela comunidade, um mundo comunitário do qual
também somos parte agora.
A responsabilidade é o grande lucro da ação participativa. E a
educação, baseada em temas decididos e desenvolvidos com a parti-
cipação das pessoas, presentes e interessadas, é ela própria permeada
de comprometimentos: com os temas, com as vontades e com os
futuros das pessoas envolvidas.
Temas são direções. Quando, juntos, apontamos para a mes-
ma direção, temos um motivo para seguir até lá, seja onde for este
“lá”. O percurso envolve nossa curiosidade, nossa investigação ri-
gorosa e paciente. Esse percurso, de perseguir o tema, nos envolve
não só com ele, o tema, mas conosco mesmos, porque em certa al-
tura já não podemos diferenciar nossos pensamentos e vontades do
tema. Nós nos apropriamos dele. Nós o temos. Somos o próprio
tema que perseguimos. O tema da agrobiodiversidade é assim, como
outros temas, mas com algo especial para a experiência que aqui
relatamos, da qual você participa agora também. O tema da agro-
biodiversidade foi o tema apropriado para ser trabalhado nessa es-
cola. A comunidade apropriou-se do tema e, por isso, agora educa
a si própria, porque participa do tema, da educação: educação te-
mática e participativa em agrobiodiversidade.

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Em Palmitos, como em toda a região Oeste, apesar da predomi-
nância de pequenos estabelecimentos familiares, introduziu-se um
modelo produtivo e tecnológico inconseqüente, que vem contribuin-
do, ao longo de mais de quarenta anos, para a exclusão dos agricul-
tores e a substituição de espécies e variedades crioulas por outras
melhoradas, provenientes de empresas públicas e privadas. Os agri-
cultores familiares vêem desaparecer sua identidade cultural e suas
condições de permanência no lugar onde vivem. Os alimentos bási-
cos da unidade produtiva vêm sendo substituídos por industrializados,
já que nos últimos trinta anos a produção para subsistência vem ce-
dendo lugar à produção para comercialização. A alimentação, que
antes era produzida pela família, agora é comprada no comércio, pro-
veniente de complexos agroindustriais. Produzidos de forma anônima,
sem identidade cultural ou responsabilidade social ou ambiental, os
alimentos são trazidos de longe e não passam de uma dezena de espé-
cies, em decorrência de homogeneização mundial da alimentação.
Durante décadas, havia a pretensão de implantar tecnologias
que proporcionassem melhorias na qualidade de vida nas famílias
do meio rural, por meio de imposições provenientes de empresas e
outras organizações privadas e pelas instituições do Estado. Tais
atitudes provocaram um empobrecimento dos agricultores e a eva-
são das famílias rumo às cidades. Como conseqüência, a população
do município, que em 2002 era de 16.034 habitantes, foi reduzida
para 14.960, em 2005, devido à migração para centros urbanos maio-
res, situação encontrada em praticamente todos os pequenos muni-
cípios da região Sul do Brasil.
Na década de 90, ocorreu o processo de nucleação das escolas
no município. O Núcleo Escolar Municipal Aluíno Knapp (NEMAK)
passou a ser a escola-núcleo de dez comunidades, cujos alunos foram
transferidos de escolas locais para lá. A nucleação das escolas é
considerada um dos fatos históricos que marcaram a vida das comu-
nidades rurais, já que muitas das escolas locais haviam sido cons-
truídas de forma coletiva pelas famílias da comunidade.
Em 2005, tentando elucidar a percepção de professores, técni-
cos e agricultores sobre o contexto local, a escola realizou um le-
vantamento sobre agrobiodiversidade junto às famílias da região de
abrangência do NEMAK. A partir dele foi possível elaborar um pro-

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jeto pedagógico chamado, pelos participantes, de “Projeto Qualida-
de de Vida”. Em 2006, o projeto abordou os temas “Alternativas de
produção para renda e subsistência”, “Resgate Cultural” e “Planeja-
mento da Propriedade”.

A ESCOLA COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DE


PROCESSOS PARTICIPATIVOS
As atividades do NEMAK originaram-se do diagnóstico rea-
lizado em conjunto com diversos parceiros – o Movimento dos
Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Mulheres Cam-
ponesas (MMC), a Prefeitura Municipal (Secretarias Municipais
de Educação e de Agricultura), o Projeto Microbacias 2, a Epagri,
o Centro de Estudos e Assessoria ao Desenvolvimento Territorial
(CEADES), o NEABio, Wageningen Internacional e com entida-
des comunitárias. O “Projeto Qualidade de Vida” voltou-se para
as questões econômicas, sociais, políticas e culturais dessas comu-
nidades, tendo a agrobiodiversidade como tema eixo de discussão
e de desenvolvimento. Para o diagnóstico, foram realizadas visitas
a todas as 408 famílias das dez comunidades que compõem a re-
gião do núcleo escolar.
O diagnóstico foi elaborado iniciando pelo levantamento de
hipóteses, a partir de observações feitas pela coordenação, profes-
sores, poder público, movimentos sociais e lideranças comunitárias
da região, seguido da formulação de um questionário, empregado na
realização das entrevistas durante as visitas. Como resultado, foram
produzidos relatórios e gráficos contendo informações quantitativas
e qualitativas sobre aspectos históricos, sociais, culturais, econômi-
cos e ambientais de cada uma das famílias entrevistadas. A sistema-
tização dos dados propiciou um planejamento participativo com o
conjunto dos parceiros.
A partir dessa primeira etapa do planejamento, que teve a
escola como aglutinadora das ações, desenvolveram-se várias ati-
vidades, entre elas, oficinas e seminários para discussão e desen-
volvimento dos temas de relevância para a comunidade. Coube
aos participantes a caracterização coletiva dos sistemas agrários e
dos meios de produção, da história da região e de aspectos técni-
cos, ambientais e culturais relativos à agrobiodiversidade.

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Constatou-se que a vegetação é formada por capoeiras e reflo-
restamento – este, constituído basicamente de eucaliptos, fato que
se deve à falta de mão-de-obra nos estabelecimentos rurais. O rele-
vo é acidentado, com declividades acima de 25% na quase totalida-
de do território, o que contribui para a inviabilidade de atividades de
mecanização agrícola. Os solos são predominantemente pedregosos
e argilosos, com fertilidade natural mediana e em avançado proces-
so de erosão, apresentando forte escassez de água, à qual se associa
contaminação por agrotóxicos.
As atividades agrícolas em maior escala são a produção de
leite, de milho, de fumo e de feijão. Este último é o único praticado
com variedades crioulas, que vêm sendo cultivadas há vários anos
nessa região. Quanto aos aspectos econômicos, considerando a clas-
sificação proposta pela FAO, cerca de 80% das famílias da comuni-
dade situam-se na faixa considerada como periféricos, ou seja, de-
senvolvem atividades agrícolas exclusivamente de subsistência. As
demais se encontram na faixa de transição, ou seja, desenvolvem
atividades que lhes conferem renda econômica, e a maioria está vin-
culada a sistemas cooperativados, principalmente para a produção
de leite.
O êxodo rural permanece intenso, sobretudo com a saída dos
jovens que recém concluíram o ensino fundamental. Foi evidencia-
do um acentuado envelhecimento da população, considerando o ele-
vado percentual de adultos e aposentados que vivem no município.
Ressalta-se, ainda, o fato de que todas as crianças em idade escolar
estão freqüentando regularmente a escola, em contraponto a uma
alta taxa de analfabetismo nas faixas etárias dos adultos e idosos.
Com base nesses dados, a realização do planejamento orientou
as ações, a partir da definição de temas geradores. Entre esses, foram
destacados o resgate da cultura da população, a produção de ali-
mentos de subsistência e a diversidade genética, o meio ambiente,
a conservação e a regeneração dos solos, a compostagem, a sepa-
ração e triagem do lixo inorgânico e de embalagens de agrotóxi-
cos, o associativismo, o planejamento da propriedade e dos siste-
mas de produção, a juventude rural e o conhecimento popular. Com
o uso de ferramentas participativas, foram priorizados alguns dos
temas: alternativas de produção e renda, resgate da cultura e pla-

297

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nejamento da propriedade, componentes agregados na elaboração
do Projeto Qualidade de Vida. O planejamento das atividades foi
dividido em duas estratégias simultâneas de ação: (i) ações integra-
das, que visaram ao desenvolvimento de atividades em conjunto com
os parceiros para a melhoria da qualidade de vida e aumento da di-
versidade por meio dos temas geradores recém-descritos; (ii) ações
internas, que envolvem atividades realizadas somente pela escola,
mantendo o vínculo com os temas geradores por meio da confecção
do informativo escolar, da criação de grupo ambiental, da instalação
de hortas, de gincanas temáticas, da instalação de museu e de jogos
de interação, entre outros.

FERRAMENTAS UTILIZADAS E ATIVIDADES REALIZADAS


As ferramentas participativas utilizadas para a realização do
diagnóstico foram: entrevistas semi-estruturadas, mapas, calendá-
rios e reuniões com a comunidade, linha do tempo e FOFA (fortale-
zas, oportunidades, fraquezas e ameaças). A seguir, os resultados do
trabalho desenvolvido sobre a linha do tempo (Figura 6.5.1, a se-
guir) e FOFA (Figura 6.5.2). O uso, em conjunto, das ferramentas
mapas, linha do tempo e análise de ambiente possibilitou perceber
os fatos apontados como os mais marcantes para a comunidade ao
longo de sua história, propiciando um amplo debate sobre as condi-
ções de vida das famílias, estimulando reflexões sobre a prática e
motivando a construção de ações coletivas em nível comunitário e
institucional. Assim, pela percepção do contexto, chegou-se a uma
síntese entre as pessoas envolvidas, com a visualização dos princi-
pais problemas e potencialidades das comunidades, indicando pos-
sibilidades de caminhos a serem percorridos.

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Figura 6.5.1 – Ferramenta participativa linha do tempo, em Palmitos,
utilizada no programa de agrobiodiversidade em Santa Catarina.

299

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Figura 6.5.2 – Ferramenta participativa de análise de fortalezas, oportuni-
dades, fraquezas e ameaças, em Palmitos, utilizada no programa de
agrobiodiversidade em Santa Catarina (2005-2006).

O processo participativo de diagnóstico e de planejamento de-


sencadeou a realização de distintas atividades, orientadas a partir dos
temas geradores, conforme apresentadas no Quadro 6.5.1, a seguir.

300

Biodiversidade 0204.P65 300 5/4/2007, 10:48


Quadro 6.5.1 – Atividades realizadas a partir do planejamento

• Identificação, cadastramento e acompanhamento de 35 alunos (para experi-


mentos de inovações no manejo da agrobiodiversidade e de possíveis alternativas
de renda futura nas propriedades onde vivem) e de agricultores (para experiências
de recuperação da capacidade produtiva do solo e de alternativas agroecológicas
para aumentar a renda familiar).
• Implantação, na área demonstrativa da escola, de cultivo e amostragem de
variedades crioulas; e desenvolvimento de experimentos com milho crioulo, pas-
tagens perenes e cobertura de solo de verão.
• Identificação e recuperação de áreas ambientais devastadas (mata ciliar, cabe-
ceiras de nascentes de rios, fontes e poços diversos); coleta de sementes e plantio de
árvores nativas e frutíferas nas respectivas áreas, pelos alunos e comunidade.
• Visitas à Trilha Ecológica das Bromélias, pelo Grupo de Estudo Ambiental
do NEMAK.
• Capacitação da comunidade: (i) participação de professores e alunos do
NEMAK, de técnicos agrícolas e de agricultores desse município, no seminário
“Estratégias Integradas e Participativas no Manejo e Uso da Agrobiodiversidade”;
(ii) realização de cursos para agricultores e alunos – teoria e prática na produção de
sementes de milho crioulo; implantação de um banco de sementes na região de
abrangência do NEMAK; teoria e prática na formação de um sistema agroflorestal.
• Desenvolvimento de atividades educativas enfocando os temas geradores
(o grupo ambiental elabora textos para serem trabalhados em sala de aula; peças
de teatro; gincanas; vídeos; etc.).
• Realização da 1ª Noite do Lampião (como forma do resgate cultural), da 1ª
Noite Cultural (inauguração do museu e exposição de atividades desenvolvidas
pela escola através dos temas geradores) e de atividades comemorativas ao Dia
Sete de Setembro (voltadas aos temas geradores).
• Visitas, como forma de estudo, ao assentamento do MST, no município de
Dionísio Cerqueira, e a agricultores no município de Santa Rosa de Lima.

RESULTADOS E PERSPECTIVAS
Por meio da pesquisa, de estudos, de práticas e de demonstra-
ções, alternativas vêm sendo proporcionadas para a recuperação da
agrobiodiversidade e, conseqüentemente, para melhorias no meio
ambiente e na realidade econômica, social e cultural dos agriculto-
res familiares das comunidades envolvidas.
Os espaços de discussão criados demonstraram a importância
do resgate da agrobiodiversidade da região como alternativa de pre-
servação ambiental e de produção e renda para a agricultura campo-
nesa, despertando o interesse para a recuperação das espécies e va-

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riedades crioulas, em especial a do milho, integrando-se a ativida-
des semelhantes em outros municípios do Oeste de Santa Catarina.
A partir do envolvimento com a escola, foi fomentada a cria-
ção de um grupo ambiental que proporciona a discussão na sala de
aula em conjunto com os professores e viabiliza maior quantidade
de sementes e de mudas para a recuperação de áreas degradadas
pela ação humana.
As diversas atividades de capacitação de multiplicadores em
agrobiodiversidade, junto com o grupo ambiental de estudantes do
NEMAK, entidades comunitárias, ONGs e movimentos sociais, vêm
promovendo inovações no debate, a partir da interação dos proces-
sos políticos e de organização da comunidade. Simultaneamente, há
uma ação de contenção da erosão do conhecimento tradicional asso-
ciado à agrobiodiversidade.
Associado ao resgate da agrobiodiversidade e ao conhecimen-
to tradicional, está sendo promovido um processo de geração e adap-
tação de tecnologias agroecológicas, conduzido pelo NEMAK em
unidades demonstrativas, junto a uma área cedida à escola e em es-
tabelecimentos rurais.
Em 2005 e 2006, foram desenvolvidas diversas etapas do pro-
cesso de formação que envolveu agricultores, professores e inte-
grantes do Grupo Ambiental do NEMAK. Destacam-se os cursos
“Produção de Sementes de Milho Crioulo”, ministrado por um téc-
nico do Instituto Porerekan, com cinqüenta participantes, e “Reali-
dade e Perspectiva para a Agricultura Camponesa”, realizado em
três etapas. Em relação às ações para incremento da agrobiodiversi-
dade, é significativo o resultado obtido por meio do conjunto de
ações realizadas, as quais vêm possibilitando a apropriação do co-
nhecimento por parte dos grupos da comunidade e a retomada de
iniciativas comunitárias para tornar o seu espaço em um lugar bom
para se viver.
No entanto, as iniciativas ainda são incipientes e requerem tem-
po maior para serem incorporadas pelas comunidades locais. As
possíveis mudanças nas diretrizes do núcleo educacional do Distrito
da Diamantina, bem como a migração de professores, também são
fatores que poderão influenciar na continuidade desse processo par-
ticipativo, já que as ações ainda estão sendo animadas pelo NEMAK.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao identificar elementos que contribuem para o entendimento
de um certo contexto, inevitavelmente nos tornamos parte desse con-
texto, ainda que somente como observadores. Mas, mesmo em uma
simples observação, é inviável imaginar que não seja parcial, envol-
vida, pertencente. Nossos pensamentos, imaginações e sentidos se
direcionam para a observação. Nossa constituição física, emocional
e psíquica contribui diretamente para que a observação em curso
ganhe sentidos e significados e, enfim, possamos fazer uma interpre-
tação da “realidade”. Somos a realidade que interpreta, porque par-
ticipamos dela enquanto a interpretamos. Nosso olhar, portanto, con-
diciona aquilo que está sendo visto, porque participamos na visão.
Nossa educação é resultado da nossa história, e nossa história condi-
ciona nosso futuro. Condiciona porque dá as condições. Somos todos
os dias o resultado de um processo que não se encerra, mas que vem
continuando até aqui, até agora. Somos a síntese de todos os temas
com os quais lidamos até o presente momento. Como comunicadores
que somos, nossa atuação no mundo é permanentemente de educado-
res e educandos. Estamos, como pessoas, dos dois lados dessa via,
desse fluxo. Tanto produzimos e emitimos conteúdos quanto os rece-
bemos. Como na cultura, não há isoladamente quem a cultive e quem
a colha, somos todos pertencentes a ela e ela a nós. Agrobiodiversi-
dade e agricultura são temas de educação participativa, pois partici-
pamos delas diariamente, onde quer que estejamos.
O texto que há pouco você lia e que agora continua já em suas
considerações finais, não é apenas um texto, isolado de você. É tam-
bém um contexto, porque com ele estão as pessoas sobre as quais foi
feita esta narrativa, esta história. Um contexto porque com você,
agora, a participação se expande e os temas ganham sentido, imagens,
entendimentos, interpretações. Os resultados obtidos nesse contexto
e o caminho para a obtenção desses resultados orientam nossa percep-
ção da educação temática e participativa, tema deste contexto.
De forma geral, o diagnóstico realizado na região Norte de Palmi-
tos demonstra a importância de promover ações para o uso e incremento
da diversidade das espécies e variedade crioulas ainda existentes e
ameaçadas de abandono, como aquelas que vêm sendo conservadas e
multiplicadas de forma marginal e alheia às políticas públicas, susten-

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tando a matriz alimentar da família. Com base nesse patrimônio, o pro-
jeto em curso visa a potencializar e a dar visibilidade a essas iniciativas,
socializando e multiplicando os conhecimentos acumulados por essas
famílias, na perspectiva de contribuir com novas iniciativas de seguran-
ça alimentar, mediante a preservação da diversidade.

6.6 MANEJO E CONSERVAÇÃO DA AGROBIODIVERSIDADE


PELOS ÍNDIOS GUARANI MBYÁ

Jean Carlos de Andrade Medeiros e Maria Dorothea Post Darella

CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL E AGROBIODIVERSIDADE


Estudos e debates a respeito de conhecimento ecológico tradi-
cional e conhecimento indígena vêm sendo realizados por cientistas
e estudiosos de grupos indígenas, em diferentes regiões do mundo,
desde a década de 1980. Pesquisas em etnoecologia apontam a rele-
vância do conhecimento ecológico tradicional e das práticas no uso
e na conservação de ecossistemas nativos.40 O conhecimento ecoló-
gico tradicional, somente difundido na década mencionada, ancora-
se em práticas tão antigas quanto as culturas de povos caçadores e
coletores.41 Desse modo, o conhecimento ecológico tradicional re-
presenta experiência acumulada a partir de milhares de anos do con-
tato humano direto com o ambiente. Muitas das pesquisas iniciais
foram concebidas a partir das taxonomias de Folke.42 Vários tipos
de conhecimentos ambientais indígenas podem ser acolhidos e usa-
dos pelas experiências científicas, nas mais diversas áreas.43 Neste
texto, torna-se pertinente apontar essa discussão para a agrobiodi-
versidade, em especial sobre o povo Guarani Mbyá.
Os índios Guarani44 humanizam a natureza e a essa dinâmica
incorporam-se crenças e práticas religiosas.45 A humanização das
plantas projeta-se nas práticas agrícolas desses indígenas, que asso-
ciam o manejo da natureza à sua cosmovisão. No caso dos cultivos
anuais, a germinação e o desenvolvimento supõem a prática de ri-
tuais, em alguns dos quais participa toda a comunidade. Dentre es-

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ses rituais, destaca-se o Ñimongaraí, que é um dos eventos mais
importantes da cultura guarani mbyá e geralmente ocorre no mês de
janeiro. Nele são realizadas as bênçãos dos milhos e demais cultiva-
res colhidos durante a safra anterior, preparando-se para um novo
ciclo agrícola. Nessa cerimônia também se concretiza a revelação
dos nomes-alma das crianças, o que equivale a um batismo.
Este capítulo trata da descrição da agrobiodiversidade dentro
do agroecossistema Guarani, reconhecendo seu caráter dinâmico.
Enfoca na administração dessa agrobiodiversidade na aldeia indíge-
na Yakã Porã46, localizada em Garuva, no litoral norte de Santa
Catarina, inserida no bioma Mata Atlântica.47
O termo agrobiodiversidade envolve a parte da biodiversidade
da qual o ser humano depende para obter alimentos, combustíveis e
fibras, incluindo plantas, animais e outros organismos que têm impor-
tância para a produção agrícola, podendo ser de dois tipos: planifica-
da ou intencional e não-planejada ou associada. A agrobiodiversidade
abrange diversos níveis, desde as espécies, variedades e raças até os
agroecossistemas, incluindo-se a ação humana com os seus conheci-
mentos e a cultura de modo geral, da mesma forma que o conjunto de
relações que ocorrem entre espécies/variedades e entre agroecossis-
temas.48

O CONHECIMENTO TRADICIONAL GUARANI E O MANEJO DA AGROBIODI-


VERSIDADE
Os Guarani, sucessivamente, habitaram áreas florestadas com
presença de bacias hidrográficas e várzeas, em um movimento de
circularidade pelo território de ocupação e mobilidade tradicional.49
Antes da chegada dos europeus, os Guarani integravam a grande
nação conhecida com o nome de Tupi-Guarani e habitavam grande
parte dos atuais territórios do Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai,
dentre outros da América do Sul. O núcleo Guarani propriamente
dito centrava-se entre os rios Paraná e Paraguai, com certas pro-
longações.
Exerciam o domínio de amplos territórios (guará), contendo
várias aldeias (tekoá), com agricultura em roças itinerantes. O co-
nhecimento quanto aos aspectos ecológicos é fruto de um fortaleci-
do processo de domesticação no qual a agricultura não era exclusiva

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Biodiversidade 0204.P65 305 5/4/2007, 10:48


das roças em rotação, de multiuso e longo prazo, mas também prati-
cada em trilhas (entre aldeias, aldeias-roças-trilhas), bordas de mata
e alagadiços, com espécies alimentares, medicinais e matérias pri-
mas para confecção de itens de uso doméstico.50 É farta, na biblio-
grafia, a menção da importância da agricultura para os Guarani, tan-
to no século XVI quanto hoje. Relatos e estudos realizados por ar-
queólogos, historiadores, antropólogos e agrônomos mencionam não
somente a importância da agricultura para o grupo, mas também
descortinam suas habilidades no trato com a terra. Além disso, é
fato que a agricultura Guarani está conectada com a organização
social, a cosmologia, os rituais, etc.
Não é possível precisar quão drástica foi a perda da diversida-
de de plantas cultiváveis por esse grupo, a partir do contato com os
colonizadores, tendo em vista que a produção de informações, no
período, ocorreu de forma despretensiosa, por viajantes explorado-
res e jesuítas que possuíam outros interesses do que registrar dados
quanto aos aspectos agronômicos do material vegetal cultivado pelos
Guarani. Há algumas exceções como, por exemplo, na elaboração
do primeiro dicionário da língua Guarani pelo missionário jesuíta
Antônio Ruiz de Montoya, no século XVI.
No início do século XX, Franz Müller51 produziu etnografia,
com base em seus trabalhos com os Guarani, no Paraguai e na Argen-
tina, na região do Alto Paraná, fazendo uma descrição interessante dos
cultivares tradicionais. O autor, estudando os pratos tradicionais
consumidos, aponta, por exemplo, a diversidade de milho encontra-
da nas aldeias: Avatí pichingá (milho pipoca), Avatí tacuá (milho-
bambu), Avatí poñy (milho-anão), Avati apuá (milho de espiga redon-
da), bem como de batata-doce (djetý) e amendoim (manduvi).
O naturalista Bertoni,52 preocupado com a sustentabilidade da
agricultura no início do século XX e um dos pioneiros da discussão
na América do Sul sobre cobertura verde do solo, cita algumas legu-
minosas, principalmente alguns “feijões”, cultivados pelos Guarani
em seus arranjos como: Kumandá–ingá, Kumandá-kavará,
Kumandá-tupí ou Kumandáávatí, Kumandá-chaí, Kumandá-ñú e
Kumandá-yuiyú’o. Até a metade do século XX, segue-se um perío-
do de poucas referências quanto à agricultura Guarani, sobretudo
pelo acirramento das questões agrícolas no campo e a indisponibili-

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dade de terras para cultivo, o que de fato pode ter afetado duramente
a diversidade de material vegetal cultivado pelo grupo.
Ainda assim, pesquisas realizadas entre os Guarani, na década
de 40, com três aldeias do interior paulista, Rio Branco, Bananal e
Itarari, constatam que a agricultura é de grande importância para
esse povo, apontando as iniciativas empregadas de policultivos e
confirmando a importância que o milho assume na cultura Guarani.53
As atividades de manejo das plantas anuais e perenes afirmam que a
postura dos índios Guarani frente ao ambiente não era passiva, e sim
baseada no profundo conhecimento dos meios bióticos e abióticos.50
As classificações florísticas dos Guarani possuíam dez categorias
supragenéricas: ka’a – ervas; ywyra – árvores; ysypo – cipós; kapi’i
– capins; karagwata – caraguatás e bromeliáceas; yvyra rehegwa –
parasitas e orquídeas; pohã – remédios; porã – plantas sagradas cria-
das pelos seres sobrenaturais; yvy rehegwa – musgos; e temity –
plantas da roça. Este texto relaciona-se à categoria temity.
Nas últimas décadas, a lógica de ocupação do espaço e de uso
dos recursos naturais, que se caracterizava pelo movimento da
circularidade em territórios de domínio relativamente contínuos, e o
movimento da expansão pela procura de ecossistemas em sua máxi-
ma capacidade de fertilidade dos solos começam a ser alteradas. Os
Guarani passam de uma expansão para uma dispersão, em ritmo mais
acelerado, deparando-se, aos poucos, com barreiras adaptativas que
os impedem de exercer plenamente seu modo de ser tradicional, em
termos socioambientais.54

OS GUARANI, TERRITÓRIO E AGROBIODIVERSIDADE


É pertinente refletir sobre a situação atual dos grupos Guarani
quanto ao aspecto ocupacional e quanto às concretas possibilidades
de vivência do seu modo de ser, já que o território assume uma dimen-
são essencial para esse entendimento. Os Guarani não conseguem mais
migrar, ocupar o ambiente tradicional e utilizar os recursos naturais
como outrora, tornando-se cada vez mais difícil a manutenção do co-
nhecimento tradicional, repassado de geração a geração. Essa perda
de conhecimento vem em prejuízo de práticas, de espécies cultiva-
das, de raças e de ferramentas nativas.55 A partir da década de 1980,
começou o reconhecimento oficial de áreas Guarani no litoral bra-

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sileiro, não sem resistência dos próprios Guarani, uma vez que as
demarcações significavam confinamento e também o retalhamento
de um território ancestral. No entanto, as solicitações por terra ga-
nharam fôlego. Os Guarani perceberam a premência da demarcação
de áreas e essa é, atualmente, a única alternativa de terem espaços
garantidos para usufruto em nome da própria etnia.56
As áreas ocupadas pelos Guarani tornam-se a cada dia mais
exíguas, em virtude das pressões históricas pós-1500. Também as
demarcações passam por um processo de problematização mais in-
tenso. Em conseqüência, amplia-se o tempo para as definições
fundiárias, restando, para os índios, na maioria das vezes, as meno-
res e piores terras. Portanto, surge a preocupação em fornecer subsí-
dios para entender as relações etnoecológicas que compõem atual-
mente o quadro nas áreas ocupadas. A dinâmica de subsistência dos
Guarani aporta em uma imbricada relação entre agricultura, caça,
coleta, pesca e manejo, na qual a família exerce uma função central
nos aspectos de produção e de consumo. Por sua vez, essas ativida-
des são praticadas em maior ou menor escala, em função das poten-
cialidades e restrições do ambiente local e regional onde as famílias
estão localizadas e, sobretudo, sobre a própria forma em que o gru-
po indígena se estrutura socialmente.57 Há exemplos concretos de-
monstrando que as práticas de manejo mbyá estão relacionadas à
própria organização sociocultural desse grupo e expressam dois as-
pectos fundamentais que não podem ser ignorados: sua forte depen-
dência do ambiente natural e os vários esforços, por eles emprega-
dos, para o acesso e conservação dos recursos contidos nos locais
que ocupam.58 O estudo de sociedades na periferia do capitalismo,
em que sobressaem regimes de troca pautados no altruísmo e na
reciprocidade, como é o caso Guarani, pode fornecer elementos fun-
damentais para se repensar os processos ecológicos, econômicos e
políticos da sociedade moderna. Ao mesmo tempo, possibilita apontar
para uma intervenção cada vez mais coerente com as particularida-
des existenciais do grupo, no que diz respeito às suas estratégias de
conservação da agrobiodiversidade. A agrobiodiversidade tem cará-
ter dinâmico – desde os primórdios da domesticação muita foi gera-
da, transformada, amplificada e também descartada, de acordo com
as necessidades e os conhecimentos dos agricultores e com as trans-
formações ambientais e culturais.30

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CULTIVANDO AGROBIODIVERSIDADE
Atualmente, os Guarani reorganizam-se nos espaços possíveis,
em determinadas ocasiões reinventando seus modelos de gestão de
recursos, incorporando elementos novos e nos fornecendo evidên-
cias de que necessitam de espaços maiores e melhores para viverem,
em plenitude, seu modo de ser tradicional, que, sabemos, é dinâmi-
co. Objetivam o usufruto de espaços que possibilitem a concretiza-
ção de atividades fundamentais como: agricultura, caça, pesca, co-
leta de matérias-primas, manejo florestal e confecção de artesanato.
Um dos principais elementos da unidade funcional do agroecos-
sistema Guarani é a população vegetal cultivada – as sementes verdadei-
ras59, que ocupam um nicho especial no sistema e exercem um papel
importante no fluxo de energia e na ciclagem de nutrientes, ainda que a
biodiversidade associada assuma também importância-chave. Na aldeia
Yakã Porã, além da existência de sementes verdadeiras foi observada a
introdução de outras espécies vegetais cultivadas, como: abacaxi, me-
lancia, pepino e taiá, oriundos de trocas com agricultores da comunidade
rural vizinha, denominada Urubuquara. Essa dinâmica vem demonstrar
uma reorganização do espaço produtivo, em virtude das potencialidades
locais e possibilidades concretas de desenvolver a agricultura.
Os Guarani incorporam elementos externos que se coadunam
com os cultivares tradicionais. Demonstram um tempo peculiar, no
qual a agricultura é fruto de uma circunstância em que a dinâmica e
os elementos de pressão externa paradoxalmente contribuem para
um rearranjo estrutural singular e não menos importante, conforme
podemos verificar na Tabela 6.6.1. A bibliografia existente aponta
que os Guarani são hábeis em incorporar elementos externos e
“guaranizar” tais elementos a partir de sua visão de mundo.
Na aldeia Yakã Porá observa-se um total de treze espécies cul-
tivadas, pertencentes a nove famílias botânicas, com vinte denomi-
nações na língua Guarani, comportando 24 cultivares (Tabela 6.6.1).
A partir das falas dos informantes, foi possível constatar que a maioria
dos materiais cultivados na atualidade, pelos Guarani dessa aldeia,
tem como origem a Província de Misiones, na Argentina, e que ao
longo do percurso do grupo pelos diferentes locais de ocupação,
tanto na Argentina como no Brasil, foram sendo cultivados e multi-
plicados com o objetivo de consumo e de preservação.

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Tabela 6.6.1 – Total de espécies cultivadas na aldeia Yakã Porã.
NOME NOME FAMÍLIA NOME NC**
CIENTÍFICO COMUM GUARANI
Manihot Mandioca Euphorbiaceae Mandió 2
esculenta * –Mandioca
não-índia
Phaseolus Feijão Fabaceae Kumanda Chai 1
vulgaris
Musa sp.* Banana Musaceae Pakova 1
Saccharum Cana-de- Poaceae Takua re’½ 2
officinarum * açúcar Cana não-índia
Ipomoea Batata-doce Convolvulaceae Jety Ju 5
batatas* Jety Mandió
Jety Pitã
Jety Karã
Jety Tí
Zea mays Milho Poaceae Avaxi Pará 6
Avaxi ti
Avaxi Jú
Avaxi Pita
Avaxi Mirim
Avaxi Tove
Cucumis Pepino Cucurbitaceae - 1
sativus
Xanthosoma Taiá Araceae - 1
sagittifolium * (taioba)
Ananas Abacaxi Bromeliaceae Karaguata’i 1
comosus *
Citrullus Melancia Cucurbitaceae Xãnjau 1
lanatus
Coix lacryma- Lágrima-de Poaceae Kapi’i 1
joby -nossa-senhora
Arachis Amendoim Leguminosae Manduvi 1
hypogaea
Lagenaria Porongo, Cucurbitaceae Ta’jy’a 1
vulgaris cabaça
Total 13 9 20 24
* – Espécies de propagação vegetativa
**Nc – Número de cultivares

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A espécie que apresenta o maior número de cultivares é o mi-
lho avaxi ete – milho verdadeiro. Na aldeia Yakã Porã, em especial,
foram verificados seis cultivares, o que vem corroborar a relevância
que a cultura desempenha dentro do grupo, como alimento e como
elemento religioso e cultural.53, 57, 60 Os diferentes cultivares de avaxi
ete foram plantados dentro de esquemas que privilegiam os policul-
tivos (Figura 6.6.1), observando-se também o plantio separado (em
roças distintas), com objetivo de impedir a fecundação cruzada. Ve-
rifica-se que a organização das áreas de roças em policultivos, efeti-
vada pelos Guarani, está diretamente relacionada com o aumento da
eficiência no uso da terra, uma vez que são sempre roças pequenas
de até 1,5 ha – “O Guarani faz roça pequena porque é mais fácil de
cuidar e já é tradição. Nós sempre fazemos desse jeitinho, plantando
tudo misturado, tendo de tudo um pouco”.61
Com o objetivo de checar as principais características utiliza-
das pelos Guarani na diferenciação dos cultivares de milho, utili-
zou-se a tabela de descritores extraída do trabalho do IBPGR.62 Foram
escolhidas três espigas de cada cultivar. Nessa escolha aleatória, efe-
tivada em conjunto com a liderança local, analisaram-se: disposição
das fileiras dos grãos, cor dos grãos, tamanho da espiga, forma da
superfície dos grãos, cor do endosperma e número médio de fileiras
de grãos. As principais características apontadas pelos Guarani para
diferenciação dos cultivares de milho foram cor dos grãos, tamanho
da espiga e cor do endosperma.

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Figura 6.6.1 – Configurações esquemáticas das áreas
das duas roças na aldeia Yakã Porã.(Endnotes)

Os cultivares de milho apresentam a seguinte descrição quan-


to à cor dos grãos: o avaxi ti (grãos de coloração branca), avaxi ju e
avaxi mirim (grãos de cor amarela), avaxi pytã (grãos de cor verme-
lha), avaxi tove (grãos mesclados de amarelo e vermelho) e o avaxi
pará (grãos pretos, brancos e amarelos). Quanto à característica ta-
manho da espiga, foram assim organizadas: avaxi mirim (pequena,
menor que 10 cm), avaxi pará e avaxi ti (média, entre 10 a 16 cm) e
avaxi ju, avaxi pytã e avaxi tove (espiga grande, maior que 16 cm).
Quanto à característica cor do endosperma, observa-se que a
cor branca está presente nos seguintes cultivares: avaxi pará, avaxi

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pytã, avaxi ti, avaxi mirim e avaxi tove, diferenciando-se do avaxi
ju, de coloração amarela. Dessa forma, poder-se inferir que, prova-
velmente, na aldeia existam dois grupos raciais, haja visto que a
uniformidade do caráter de núcleo do milho é a característica princi-
pal de um grupo racial.63
A seleção das espigas para plantio no ano seguinte ocorre em
função de características morfológicas, como coloração dos grãos e
tamanho. As espigas verdes, escolhidas para multiplicação no ano
posterior, são dispostas ao sol para secagem e posteriormente são
armazenadas no teto da cozinha, em cima do fogo de chão. O fume-
gamento funciona como repelente, segundo os Guarani, pois evita o
ataque de insetos e roedores.
As espigas são agrupadas (amarradas) e armazenadas a partir de
suas características morfológicas e dos possíveis cruzamentos efeti-
vados. Por exemplo, o milho avaxi ju é sempre agrupado com espigas
de mesmo grupo, assim como o avaxi ti. Já o mesmo não se verifica
com o avaxi pará, considerado uma mistura de três tipos pelos Guarani,
sendo agrupado com espigas que apresentam essa mesma segregação.
Os Guarani identificam a segregação do milho pelo termo “casamen-
to”, portanto, “o avaxi pará é casado com outros três tipos”64.
Algumas das espécies encontradas nas áreas de roça, princi-
palmente as de propagação vegetativa (batata-doce, mandioca) foram
mantidas em “cercado” próximo às casas da aldeia, uma construção
de 50 x 12,5m, feita com taquaras (Merostachys sp.) amarradas com
cipó imbé (Philodendron bipinattifidun). O espaço funciona como
banco de germoplasma, ocorrendo transferência posterior desses
materiais para as áreas de roça, bem como conservação desses mate-
riais para os próximos plantios, em ano posterior. Esse espaço se
constitui também um local de experimentação, observação e descar-
te de materiais. Essa estratégia evidencia-se como um elemento im-
portante para se interpretar os diferentes aportes efetivados pelos
Guarani quanto ao enriquecimento, manejo e conservação de seus
ambientes de cultivo.
Em relação à batata-doce, nota-se que existe uma heterogenei-
dade quanto às características morfológicas, desde o formato de fo-
lhas até a cor da polpa. Essa última tem amplo espectro de coloração
entre si, sendo jety ju, de coloração amarela, jety mandió e jety pytã,

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de cor branca, e jety karã, de cor roxa. Para o plantio da batata-doce,
os Guarani selecionam as ramas apicais das plantas – ramas mais
jovens, com aproximadamente 20 a 30 cm, contendo de cinco a dez
gemas, que são transferidas para as áreas de roça, plantadas em
matumbos65 e/ou leiras, onde são enterradas em torno de três a qua-
tro gemas por rama, cada cova comportando duas ramas. Os propá-
gulos de batata-doce são escolhidos do cercado de multiplicação de
cultivares e dos arredores das residências.
Quanto ao manejo da mandioca-doce para plantio, verifica-se que
os Guarani têm um cuidado especial com a cultivar tradicional – mandió
i. Os ramos mais grossos são escolhidos, separados e deixados à som-
bra para secar por três a sete dias; posteriormente são cortados em
estacas de aproximadamente 10 a 15 cm, com cinco a sete gemas. As
covas são abertas, depositando-se duas estacas por cova, onde são
enterrados aproximadamente dois terços de seu tamanho. Uma carac-
terística interessante na cultivar Guarani é o seu porte baixo.
As observações efetivadas em campo mostram que, apesar das
dificuldades atuais de acesso e manejo no ambiente que ocupa, o
grupo desempenha um papel importante no incremento da biodiver-
sidade local, caracterizando-se por apresentar acentuada diversida-
de inter e intra-específica, que pode ser encontrada na composição
de seus ambientes de plantio (roças e quintais), bem como na postu-
ra quanto à conservação de variáveis ambientais como a água, os
solos e a vegetação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observa-se que as práticas agrícolas dos Guarani Mbyá contri-
buem na manutenção in situ de várias espécies importantes para a
agricultura atual, garantindo a diversidade nesses ambientes. Infe-
lizmente, pela exigüidade da terra hoje ocupada pela comunidade de
Yakã Porã, seguida da impossibilidade de manejar áreas maiores, a
soberania alimentar desse grupo encontra-se comprometida. Assim,
verifica-se que o esforço maior dos Guarani, na aldeia, reside sobre-
tudo na manutenção e na preservação dessa agrobiodiversidade.
Também se observa que o manejo tradicional Guarani se en-
contra vivo nos espaços e na conformação atual da aldeia Yakã Porã,
como uma característica vibrante de sua cultura, sustentáculo de uma

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postura coerente com os espaços de ocupação – uma resposta incisi-
va à sociedade nacional.
As sementes verdadeiras cultivadas na aldeia Yakã Porã nos
dão conta de um tempo passado. Muitas delas foram apontadas em
trabalhos etnográficos datados do início do século XX, em diferen-
tes regiões do território Guarani, corroborando com as afirmações
de que, efetivamente, o grupo se caracteriza como agricultor. Essa
agrobiodiversidade faz parte do arcabouço estrutural dos Guarani e
referenda-se como importante elemento de manejo agroecológico
nos espaços da aldeia.
Com base no exposto, é possível reafirmar o quão importantes
são as “sementes verdadeiras” para os Guarani, uma vez que nos
longos percursos efetivados sempre as trazem consigo, dentro de
bornal66 amarrado junto ao corpo ou em cabaças e porongos. As
sementes trazidas e multiplicadas nas aldeias ocorrem sempre em
pequena quantidade, contudo embebidas de sentido cosmológico.
Apesar da inexistência de lugares adequados para armazenagem, as
sementes são guardadas como preciosos tesouros de um passado rico
e significativo, constituem resposta contundente a um presente de
muitas dificuldades e concretizam esperanças no futuro.

6.7 RECUPERAÇÃO, PRODUÇÃO E MELHORAMENTO


DE SEMENTES CRIOULAS DE HORTALIÇAS EM SANTA
CATARINA

Carmen Munarini e Ivete Margarida Andrioli Mendes

HISTÓRICO DE LUTAS E CONQUISTAS


O Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA/SC), hoje
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC/SC), iniciou suas ativi-
dades há 22 anos. As mulheres camponesas organizaram-se, e conti-
nuam organizadas, lutando contra a exploração em que vivem. Esta se
manifesta por meio do endividamento bancário, dos preços baixos pa-
gos aos produtos agrícolas comercializados pelas(os) camponesas (es),

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pela falta de política agrícola para a agricultura camponesa, pela assis-
tência técnica que incentiva a “modernização” da agricultura voltada
aos agrotóxicos, às sementes híbridas e/ou transgênicas e aos fertili-
zantes, bem como pela concentração de terra nas mãos de poucos e, na
grande maioria das vezes, de quem não produz alimentos. A explo-
ração de que se fala é resultado do modelo capitalista que, para au-
mentar o lucro do latifúndio, impôs o “pacote de modernização” da
agricultura.
Assim, intensificou-se o êxodo rural, desenvolveu-se uma cul-
tura de abandono da produção de sementes crioulas e introduziu-se
a prática do uso de agrotóxicos, de fertilizantes de síntese química e
do plantio de sementes híbridas e/ou transgênicas, além de reafir-
mar a idéia de que o lugar da mulher é dentro de casa. Nessa lógica,
a tarefa da mulher é, principalmente, cozinhar, limpar, servir ao
marido e cuidar dos filhos.
O Estado montou uma estratégia para garantir a implementa-
ção do pacote de modernização, ministrando inúmeros cursos para
as mulheres, como: panificação, doces, salgados, hortas e conser-
vas. São repassadas as receitas baseadas nos produtos industriali-
zados, levando para dentro das casas das(os) camponesas(es) a mo-
dificação dos costumes. A margarina, a mortadela e os “sucos”
artificiais são colocados no lugar da alimentação natural, além dos
meios de comunicação social fazerem belíssimas propagandas para
vender esses produtos. Pouco a pouco, por meio do Movimento, as
mulheres camponesas começaram a questionar e a pensar no signifi-
cado da vida.
Inicialmente, a preocupação era com a situação financeira da
família. Entretanto, nas Comunidades Eclesiais de Base, as mulheres
refletiam sobre a atuação das mulheres na Bíblia, o que fez com que
pensassem em suas próprias vidas. Começaram participando das lu-
tas pela oposição sindical e não demorou muito para perceberem a
discriminação de gênero que se combinava, e que ainda hoje se com-
bina, com a exploração de classe. As mulheres levantaram a cabeça,
firmaram o pé na luta e criaram uma organização autônoma. Também
assumiram junto à família a luta contra o endividamento nos bancos,
por melhores preços dos produtos agrícolas comercializados pelos(as)
camponeses(as), por um sindicalismo autêntico, pelo fim da discrimi-

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nação da mulher e pela igualdade de direitos. As mulheres campone-
sas participaram das mobilizações de enfrentamento nos bancos, nos
fechamentos dos trevos de estradas, nas vigílias e audiências com os
governos. Lutam por direitos da mulher como a sindicalização, a
documentação, a aposentadoria e o salário-maternidade, entre outros.
No início dos anos 80, combinando a luta de gênero e de clas-
se, no interior de Chapecó, na comunidade de Nova Itaberaba, hoje
município, foi criado o Movimento de Mulheres Agricultoras com o
objetivo de lutar pela igualdade humana e pela transformação da
sociedade. Mediante o processo de organização, de luta e de forma-
ção, o movimento desenvolveu ações constituindo sua identidade:
“Somos Mulheres Camponesas. Somos Trabalhadoras Rurais”.
A luta pela previdência pública, universal e solidária e pela
garantia da condição de seguradas especiais veio combinada com a
ampla campanha pela documentação que teve como lema: “Nenhuma
agricultora sem documentos”. A conquista de ter os próprios docu-
mentos foi um grande avanço nas lutas do Movimento. Entretanto,
provocou conflitos familiares, conflitos com lideranças de outras en-
tidades e entre as próprias mulheres. Isso contribuiu para se pensar
melhor e se aprofundar o “ser mulher” e “ser trabalhadora rural”. A
ação concreta das mulheres camponesas permitiu que fossem ocupa-
dos espaços na sociedade e conquistados direitos. O salário-materni-
dade foi conquistado em 1994. Atualmente, dentro do movimento, o
debate sobre a relação da mulher com a produção de alimentos é for-
talecido e colocado em evidência. O mérito dessa conquista é o reco-
nhecimento político de que a mulher trabalha na produção, mesmo no
período do parto; portanto, precisa cuidar quase que exclusivamente
da reprodução. Aí está uma conquista que sinaliza para a luta de gê-
nero e de classe. Para que o salário maternidade tenha de fato a fun-
ção de proteção à maternidade, é preciso que as mulheres conquistem
direitos que melhorem as condições de vida das(os) trabalhadoras(es)
rurais, tais como: terra para quem trabalha nela, crédito subsidiado
para custeio e investimento, melhoria de preços aos produtos agríco-
las comercializados pelas(os) camponesas(es), assistência à saúde,
entre outros.
Periodicamente são realizados debates, reuniões, seminários,
audiências, lutas, mobilizações e celebrações, deixando a marca como

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um novo ator social que faz parte da história. O movimento apresen-
ta à sociedade uma outra perspectiva de pensar o processo da igual-
dade humana, onde mulher e homem são constituídos de valores e
de dignidade. Construímos símbolos, entre eles a bandeira com o
lema “Da luta não fujo”, e o hino, que reflete a utopia das lutas.
Buscou-se criar novas relações entre a mulher camponesa e a terra,
a natureza, o trabalho na produção, a busca de dignidade para gerar
e cuidar da vida e construir um novo projeto popular de agricultura:
“...produz alimento e também gera vida. Mulher agricultora, tu ja-
mais serás vencida, levas a vida trabalhando, fazendo o progresso...
mas também queremos mais justiça nesta terra...”.

O MOVIMENTO E A AGROECOLOGIA, PARA SOBERANIA E VIDA


O espaço do movimento possibilitou às mulheres camponesas
fazer uma releitura das histórias de vida de suas antepassadas. Ali,
foram encontrados valores e muitas experiências centradas na pro-
teção, na preservação e no cuidado da vida e da natureza. Foram
descobertos elementos indispensáveis para pensar um projeto de
agricultura camponesa, desenvolvido com base nos princípios da
agroecologia. Por ocasião da realização da oitava Assembléia Esta-
dual, em Concórdia (17 a 19/11/2001), foi constatado que se fazia
necessário “Debater, aprofundar, definir estratégias para a constru-
ção de um novo projeto de agricultura voltada para a transformação
da sociedade capaz de garantir condições de vida para todos”.
Nessa assembléia foram expostas experiências alternativas,
desenvolvidas nas unidades de produção das mulheres camponesas
integrantes do MMC/SC, entre as quais, produção de sementes de
batatinha crioula, fermento caseiro de pão, iogurte e produção de
mel de abelha jataí. Percebeu-se que era possível e viável desenvol-
ver práticas dentro dos princípios da agroecologia.
É preciso romper com a cultura do individualismo, do consumis-
mo dos industrializados, do “produto pronto e/ou fácil de preparar”.
Isso está sendo feito pelas mulheres. No lugar do refrigerante está
sendo incentivado o consumo do suco natural; no lugar dos enlatados,
os doces caseiros; no lugar das sementes híbridas e/ou transgênicas,
a produção de sementes crioulas; e, no lugar dos medicamentos indus-
trializados, a fitoterapia. Esse debate foi orientado também no senti-

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do de se pensar e se criar ações em defesa e no cuidado da terra, das
plantas, dos animais, da biodiversidade, da água e do ar. É preciso
aprofundar a contribuição das mulheres na construção do projeto de
agricultura camponesa, no qual a produção é voltada, em primeiro lugar,
para o auto-sustento das famílias, sendo capaz de garantir sua perma-
nência no campo, vivendo com dignidade.
Entendemos que o projeto de agricultura camponesa requer
políticas públicas, envolvendo o acesso aos meios de produção, a
distribuição da terra e da renda e políticas agrícolas, tais como: cré-
dito subsidiado, crédito especial para as mulheres, preços justos aos
produtos agrícolas comercializados pelos(as) camponeses(as), se-
guro agrícola, assessoria técnica voltada para a produção com bases
agroecológicas, moradia, lazer, além de outros. As práticas de recu-
perar as sementes crioulas e raças rústicas de animais, a diversidade
de alimentos e das plantas medicinais, a valorização da sabedoria
popular e os significados da experiência herdada de nossas antepas-
sadas são alguns elementos do projeto de agricultura camponesa em
construção.
Isso exige das mulheres camponesas um processo de busca e
de resgate do conhecimento, de reeducação e de uma nova postura
de produção para a sociedade. Somos aquilo de que nos alimenta-
mos. Por isso, se a terra, a água, a biodiversidade e as relações so-
ciais forem saudáveis, o ser humano terá vida em plenitude. Essa
reflexão sobre a necessidade de assegurar uma alimentação saudá-
vel também faz parte de uma discussão de várias entidades mundiais
ligadas ao campo.
Entende-se que é papel do movimento a luta em defesa da so-
berania alimentar com base na preservação das próprias sementes
crioulas, patrimônio da humanidade. Durante a realização do plane-
jamento das atividades do MMC/SC para 2002, foi decidido desen-
volver um programa de recuperação, produção e melhoramento de
sementes crioulas de hortaliças. A partir dessa definição, foi esco-
lhida uma equipe para elaborar a proposta inicial do programa. Pos-
teriormente, houve nova discussão na direção estadual, envolvendo
um grupo de técnicos identificados com e pelo MMC/SC, que vinha
trabalhando com uma concepção fundamentada na agroecologia.
Após a apresentação e discussão do programa, buscou-se firmar os

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apoios e fazer os encaminhamentos necessários. O objetivo geral é
construir, com as mulheres camponesas, a experiência prática e teó-
rica de recuperação, produção e melhoramento de sementes crioulas
de hortaliças. Os objetivos específicos do programa são: (i) traba-
lhar as novas relações de gênero e uma consciência mais aprofundada
do ambiente como um todo, num processo de recuperação da sabe-
doria popular, no que diz respeito à produção de alimentos e à ree-
ducação alimentar; (ii) oportunizar às mulheres camponesas o aper-
feiçoamento técnico na recuperação, produção e uso de sementes
crioulas de hortaliças, a partir das práticas acumuladas por elas; (iii)
contribuir para que a mulher camponesa desenvolva, na sua unidade
de produção ou no seu grupo, as práticas de produzir sementes criou-
las de hortaliças, cultivando o sentimento de novos valores a serem
compartilhados com as gerações atuais e repassados para as gera-
ções futuras; (iv) denunciar e alertar sobre as conseqüências dos
alimentos transgênicos e das tecnologias que destroem a vida; (v)
desenvolver, entre as mulheres participantes, hábitos de cuidar da
terra, da água e do ambiente, intensificando o trabalho de cons-
cientização e valorização da produção de sementes crioulas de hor-
taliças, oferecendo para a sociedade melhores condições de saúde
e de vida; (vi) elevar a auto-estima e valorização da profissão de
trabalhadora rural capaz de produzir, criar e recriar, participando
ativamente na produção e reprodução da vida; (vii) criar as condi-
ções para que as mulheres camponesas participem das oficinas e
sejam agentes de um novo projeto baseado em novas relações e sen-
timentos.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
As práticas de sementes crioulas de hortaliças destinam-se às
mulheres camponesas dos grupos de base do MMC/SC que desejam
estudar e desenvolver as experiências em suas unidades de produ-
ção e grupos.
As práticas de recuperação, produção e melhoramento de se-
mentes crioulas de hortaliças desenvolvem-se por meio de oficinas,
observando os princípios da educação popular, onde se “aprende a
fazer fazendo”. O estudo político e técnico parte do conhecimento
de cada mulher presente. As coordenadoras municipais fazem a ins-

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crição das mulheres camponesas que desejam iniciar as experiên-
cias. Em 2002, foram realizadas treze oficinas, com três etapas, nas
regionais do MMC/SC de Descanso, Lages, Região Sul, Chapecó,
Xanxerê, São José do Cedro, Quilombo, Irineópolis, Joaçaba, Con-
córdia, Pinhalzinho, Maravilha e Campo Erê.
Na primeira oficina, a coordenadora do movimento apresenta
a proposta da qual constam os objetivos, o conteúdo político e técni-
co, bem como os critérios: disposição para realizar as mudanças,
continuidade, persistência, espírito de troca, partilha e compromis-
so de cada uma fazer a prática em casa ou em grupo. As oficinas são
desenvolvidas com acompanhamento da coordenação do MMC e de
técnicas(os) que prestam assessoria e aprofundamento técnico das
experiências. O Quadro 6.7.1 mostra os temas trabalhados durante
as oficinas. Após a realização das oficinas regionais, num primeiro
momento do programa, aconteceram seminários com a participação
de técnicas(os) e a coordenação estadual para avaliação, aprofunda-
mento e sugestões para a continuidade do trabalho; foi feita, tam-
bém, a agenda de trabalho.
O seminário estadual, em Curitibanos (5 a 8/03/2003), contou
com a participação de 852 mulheres. Elas apresentaram suas expe-
riências, prepararam sementes para trocar, pensaram o desenho/marca
das experiências, criaram músicas e poesias, entre outras produções.
O lema escolhido foi “filhas da terra produzindo sementes crioulas
de hortaliças, alimentando sonhos de libertação”. Durante a realiza-
ção desse seminário foi deliberada a continuidade, a ampliação e a
qualificação das práticas de recuperação, produção e melhoramento
de sementes crioulas de hortaliças em outros municípios nos quais
ainda não existia a experiência.
A mulher camponesa que decide desenvolver a experiência
assume como tarefa a escolha de um cultivar de hortaliças. O objeti-
vo é multiplicar e melhorar, partilhando com as demais companhei-
ras e com o movimento. Atualmente, as mulheres camponesas estão
produzindo 27 espécies de hortaliças: cenoura, tomate, alface, cebo-
la, pepino, radiche, feijão-de-vagem, melão, melancia, pimentão,
orégano, salsa, batatinha, chicória, rúcula, mostarda, quiabo, chuchu,
couve, alho, morango, gila, melancia-de-porco, ervilha, gengibre,
fava e batata-cará.

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Quadro 6.7.1 – Temas trabalhados nas oficinas de
sementes crioulas de hortaliças do MMC/SC.

• Apresentação do Programa de Recuperação, Produção e Melhoramento de


Sementes Crioulas de Hortaliças desenvolvido pelo MMC/ SC.
• Recuperação da cultura popular presente na experiência de produção que
as mulheres camponesas já desenvolvem.
• Conhecer o processo de formação do solo e a microvida, e a função das
plantas indicadoras.
• Estudar o surgimento da agricultura.
• Estudar o modelo de agricultura chamado Revolução Verde: adubação quí-
mica, venenos, bem como suas conseqüências para a vida.
• Estudar os princípios da agricultura agroecológica.
• Recuperar e estudar os processos de produção e reprodução das sementes.
• Fazer visitas às hortas que já iniciaram o desenvolvimento da experiência.
• Motivar e sensibilizar para troca de sementes.
• Avaliar a experiência desenvolvida na horta ou no grupo.
• Estudar o processo de colheita, secagem e armazenamento das sementes
crioulas de hortaliças.
• Avaliar as mudanças ocorridas na família após a participação no programa.
• Estudar a relação “terra e alimentação – fonte de vida e saúde”.
• Conhecer os valores nutritivos e terapêuticos das verduras, cereais e outros
grãos.
• Orientar para uma boa alimentação.
• Construir e partilhar cardápios saudáveis.
• Discutir a alimentação natural a partir da cultura regional.
• Organizar os ingredientes e receitas para o almoço típico da região.
• Discutir o crédito especial para as mulheres camponesas e a importância de
participar da luta para conquistar os direitos.
• Planejar, no grupo, ações para a continuidade das práticas e recuperação,
produção e melhoramento de sementes crioulas de hortaliças.

O MMC/SC, nesse programa, conta com grupos organizados


em 59 municípios, envolvendo 977 mulheres camponesas. As ofici-
nas nos municípios são realizadas com o apoio da coordenadora ge-
ral; além disso, investe na preparação de um grupo de dirigentes
monitoras, com conhecimento técnico e político, para desenvolver o
programa. O movimento trabalha para consolidar um grupo de mu-
lheres camponesas que realizam a experiência de recuperação, pro-
dução e melhoramento das sementes crioulas de hortaliças para que
este se constitua como referência do programa.

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NOTAS

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and folk strategies. Advances in Economic Botany 7. New York: The New York
Botanical Garden, 1989.
41. Berkes, F. Sacred ecology. Philadelphia: Taylor and Francis, p. 3, 1999.
42. Um dos métodos empregados pelos antropólogos para analisar seus dados é a
etnossemântica, que é o significado atribuído por um povo a categorias de realida-
des (taxonomias de folk). Supõe-se que as categorias que recebem designação numa
dada língua indicam os objetos ou eventos de maior relevância para a respectiva
sociedade.
Ribeiro, B.G. O índio na cultura brasileira. Rio de Janeiro: UNIBRADE/UNESCO,
p. 11, 1987.
43. Segundo Berkes, F. Sacred ecology. Philadelphia: Taylor and Francis, p. 4,
1999.
44. O termo Guarani, quando se refere ao grupo em questão, é sempre iniciado com
maiúscula e no singular, por se tratar de etnônimo.
45. De acordo com Fogel, R. El conocimiento tradicional. In: Fogel, R. (Ed.). Mbyá
Recové, La resistência de um pueblo indomito. Ceri, Université Nacional de Pilar,
pp. 27-28, 1998.
46. Yakã Porã, em língua Guarani, significa Rio Bonito. A grafia adotada para as
palavras guaranis, neste trabalho, advém de Dooley, R.A. Vocabulário do Guarani.
Brasília: Summer Institute of Linguistics, 1982.
47. Este artigo baseia-se no trabalho de Medeiros, J.C. de A. Reestabelecendo um
Tekoá pelos índios Guarani Mbyá – Um estudo de caso da aldeia Yakã Porã –
Garuva/SC. Florianópolis-SC: Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal

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de Santa Catarina (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em
Agroecosistemas), 2006.
Os dados coletados advêm de observação direta a campo, de entrevistas semi-
estruturadas com os mais velhos e as lideranças político-religiosas da comunidade,
durante os anos de 2004 a 2006.
48. Almekinders, C.J.M.; De Boef, W.S. El reto de la colaboración en el manejo de
la agrobiodiversidad genética de los cultivos. Boletín de ILEIA 15 (3-4): pp. 5-7,
2000.
49. Antes da chegada dos europeus, os Guarani integravam a grande nação conhe-
cida com o nome de Tupi-Guarani e habitavam grande parte dos atuais territórios
do Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai, dentre outros da América do Sul. O nú-
cleo Guarani propriamente dito centrava-se entre os rios Paraná e Paraguai, com
certas prolongações.
Saguier apud Ladeira, M.I. “O caminhar sob a luz” - O território Mbyá à beira do
oceano. São Paulo-SP: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação
de Mestrado em Ciências Sociais): pp. 45, 1992
50. Noelli, F.S. Sem Tekohá não há Tekó (Em busca de um modelo etnoarqueológico
da aldeia e da subsistência Guarani e sua aplicação a uma área de domínio no
delta do Rio Jacuí – RS). Porto Alegre-RS: Instituto de Filosofia e Ciências Huma-
nas, Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul (Dissertação de Mestrado
– Programa de Pós-Graduação em História), 1993.
51. Müller, F. Etnografia de los Guarani del Alto Paraná: a los 100 años de la
obra apostólica de la congregación de los misioneros del verbo divino (S.V.D) en
la Argentina. Alemania Federal: Steyker Missionswissenschaftliche Institut/
Societatis Verbi Divini, [1908] 1989.
52. Bertoni, M.S. Agenda y mentor agrícola. 4a Edición Ampliada de la 3a encargada
por el Congreso Nacional Paraguayo. Puerto Bertoni: Imprenta y edición ‘Ex Sylvis’,
pp.433- 467, 1927.
53. Schaden, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, p. 190, 1974.
54. Bertho, A.M.M. Os Guarani e a Mata Atlântica – Entre o protecionismo e o
conservacionismo: A etnoconservação? Texto apresentado no 51º Congresso Inter-
nacional de Americanistas, Santiago de Chile, de 14 a 18 de Julho 2003.
55. Reijntjes, C.; Haverkort, B.; Waters-Bayer, A. Agricultura para o futuro: uma
introdução à agricultura sustentável e de baixo uso de insumos externos. Rio de
Janeiro: AS-PTA, p. 66, 1994
56. O processo demarcatório é de responsabilidade do governo federal, por meio da
Fundação Nacional do Índio (Funai). As terras indígenas, no Brasil, são da União,
mas de usufruto exclusivo das populações indígenas. As providências administrati-
vas e legais para a regularização de terras indígenas dos Guarani, em Santa Catarina,
datam apenas da década de 1990. Para aprofundamento desse tema ver:
Darella, M.D.P.D. Ore roipota yvy porã. “Nós queremos terra boa.” Territorializa-
ção Guarani no litoral de Santa Catarina – Brasil. São Paulo-SP: Pontifícia Uni-

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Piracicaba-SP: ESALQ (Dissertação para obtenção do título de Mestre em Ciên-
cias), 2001.
58. Felipim, A.P. Práticas agrícolas e manejo do ambiente entre os Guarani Mbyá.
In: Ricardo, F. (Ed.). Terras indígenas & Unidades de Conservação da natureza: o
desafio das sobreposições. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004.
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In: Ricardo, F. (Ed.). Terras indígenas & Unidades de Conservação da natureza: o
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59. Sementes verdadeiras é como os Guarani denominam suas sementes tradicio-
nais.
60. Ikuta, A.R.Y. O desafio do resgate de práticas fitotécnicas de uma comunidade
tradicional indígena Mbyá-Guarani. Porto Alegre-RS: Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Faculdade de Agronomia (Tese de Doutorado em Fitotecnia),
2002.
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2001.
61. Conforme aponta a Guarani, sra. Lídia Timóteo, em 18 de janeiro de 2006.
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63. Conforme Brieger, F.G., et al. Races of Maize in Brazil and Other Eastern
South American Countries. Washington D.C.: National Academy of Sciences –
National Research Council. Publication 593, pp.142-149, 1958.
64. Conforme aponta o cacique da aldeia Tarumã, sr. Aristides da Silva.
65. A terra é revolvida e formam-se montes.
66. Saco de pano utilizado para provisões.

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