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Uma Mulher em Leilão

“Fate is remarkable”
Betty Neels

A proposta de casamento de Hugo era inacreditável, ela jogava com o futuro


de Sarah como se a sua vida fosse uma mercadoria em leilão. Sarah jamais
imaginara que pudesse haver casamento sem amor! Ela relutou muito antes
de aceitar, mas acabou cedendo, pois precisava esquecer Steven, que a
trocara por uma mulher que lhe daria fama e fortuna. Hugo, por sua vez,
também precisava esquecer a volúvel Janet, acostumada a trocar amor por
jóias e presentes. Sarah e Hugo uniram-se, cada um tentando apagar as
cicatrizes das ilusões perdidas. Mas que futuro poderia haver nesta união de
dois seres que não queriam amar, mas esquecer velhos e sofridos amores?

Digitado: Valéria
Corrigido: Andréia
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

CAPITULO I

O consultório estava em silêncio, não fosse a respiração difícil e


entrecortada da paciente. Por trás da porta fechada ouvia-se o murmúrio
constante e abafado de um grande número de pessoas, interrompido a
cada momento pela voz da enfermeira chamando o próximo da fila. A
irmã Sarah Ann Dunn permanecia parada, mantendo uma toalha branca
em volta dos ombros da paciente, de maneira que o dr. van Elven
pudesse examiná-la à vontade. Era um homem grande e muito alto e a
paciente era gorda. Ele curvou-se e sua bela cabeça grisalha
aproximou-se do avental engomado de Sarah. Seus olhos pareciam não
ver nada enquanto ele ouvia e apalpava e em seguida tornava a ouvir.
Em seguida, endireitou-se com a firmeza que caracterizava todos os
seus movimentos e disse: "Obrigado, irmã". Deu-lhe as costas, como de
hábito, enquanto ela guardava o estetoscópio. A irmã abotoou a blusa da
paciente, deu-lhe um tapinha tranquilizador e um sorriso amigo, dizendo:
"A sra. Brown está pronta, doutor". Uma de suas qualidades era que ela
jamais esquecia o nome das pessoas, por mais apressada que
estivesse. Os pacientes ainda eram gente para ela, e portanto mereciam
ser tratados como tal. 0 dr. van Elven deixou de lado as radiografias que
examinava, lançou-lhe um olhar rápido e assentiu. Era sinal de que ela
devia deixá-lo a sós com a paciente por alguns momentos — o que a ela
convinha perfeitamente, pois lhe daria tempo de espiar a sala de espera
e ver se tudo corria sem maiores atropelos.
A sala ainda estava cheia de gente. Naquele dia ela fora escalada
para atender à clínica ortopédica e ginecológica, bem como à de
doenças respiratórias. Todas as enfermeiras estavam extremamente
ocupadas e ela conseguiu localizar somente uma estagiária. Passou por
entre as cadeiras apinhadas e seguiu pelo corredor estreito que levava
até a copa. Lá estavam duas enfermeiras em uma conversa tão
animada que por alguns segundos nem notaram sua presença. Quando
perceberam, pararam no meio da frase, com os olhos pregados nela.
Notou que tinham a mesma expressão que ela quando fora
surpreendida em uma situação semelhante, nos seus tempos de estu-
dante. Observou, com um ligeiro sorriso:
— Se vocês não executarem suas tarefas, todos nós nos atrasare-
mos e isto não faz muito sentido, não é? Se não têm nada a fazer por
aqui, apresentem-se, por favor, à enfermeira Moore.

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Não esperou para ouvir suas desculpas, acenou-lhes ligeiramente


e refez o caminho, desta vez um pouco mais depressa, pois o dr. van
Elven poderia estar esperando. Mesmo assim, parou para trocar uma ou
duas palavras com alguns dos pacientes na sala de espera, pois tinha
um relacionamento bastante amistoso com alguns deles após três anos
de prática.
A sra. Brown já estava para sair quando ela entrou no consultório e
o doutor disse imediatamente:
— Sugeri à sra. Brown que ela deve passar alguns dias aqui, para
que eu possa ficar observando seu pulmão. Será que a senhorita pode
providenciar um leito? Digamos, dentro de três ou quatro dias; assim ela
terá tempo de deixar sua casa em ordem.
Ele a olhava fixamente enquanto falava e ela respondeu imediata-
mente:
— Sim, doutor, claro. Vou mandar alguém indicar à sra. Brown
que dia ela poderá vir. — Sorriu para a mulherzinha rechonchuda
sentada diante da mesa do médico, mas a sra. Brown não retribuiu a
amabilidade.
— E o meu gato? — indagou. — Quem vai tomar conta dele en-
quanto eu estiver aqui? — Permaneceu em silêncio por alguns mo-
mentos e prosseguiu:.— Não sei como é que vou poder dar jeito. ..
— Quem sabe uma pensão para animais? — sugeriu Sarah gentil-
mente.
A sra. Brown fez um gesto de recusa:
— Nem pensar. Desculpe, doutor, o senhor tem sido tão bom. ..
Ele recostou-se na cadeira com o ar de alguém que tinha todo o
dia diante de si e nada para fazer. — E se a senhora permitir que eu...
que eu tome conta de seu gato enquanto a senhora estiver no hospital?
A senhora confia em que eu possa cuidar bem dele?
O queixo duplo da sra. Brown tremeu enquanto ela procurava o
que dizer. Parecia-lhe tão insólito que um cavalheiro tão importante
quanto um especialista se importasse com o que pudesse acontecer
com o seu Timmy. .. Ainda estava escolhendo as palavras quando ele
prosseguiu: — A senhora estaria me fazendo um grande favor. Minha
governanta acaba de perder um gato, depois de alguns anos, e está
inconsolável. Talvez o fato de tomar conta de seu Timmy por uma
semana ou mais poderá torná-la mais resignada.
A velha ficou toda animada. — Bem, assim é diferente, doutor. Se
ela fica feliz e não lhe dá trabalho. . .
Levantou-se, e o médico também, — Trabalho algum. Providen-
ciarei para que apanhem o gato pouco antes de a senhora se
internar. Está bem assim?

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Sarah acompanhou-a até a porta, solicitamente, mas sem se


apressar, colocou a ficha do próximo paciente sobre a mesa do médico,
separou as radiografias e esperou. Ele terminou de escrever, fechou a
pasta e disse em seu inglês um tanto pedante:
— É uma lástima que a sra. Brown não tenha sido encaminhada a
mim antes. Sinto muito, mas não há quase nada que se possa fazer.
Bronquite crónica, enfisema, o coração está afetado, isto tudo sem falar
de uma dieta errada há não sei quantos anos. — Pegou a próxima ficha,
franzindo o cenho: — Se as condições de sua casa não fossem tão más,
eu até que poderia cuidar dela o suficiente para que ela ainda pudesse
passar um tempo lá...
A enfermeira Sarah não disse nada, pois sabia que não tinha sido
solicitada para tal. Trabalhava com o dr. van Elven havia alguns anos;
era um homem um tanto taciturno, bondoso para com os pacientes,
gentil para com a equipe do hospital e em certas ocasiões demonstrava
um senso inesperado de humor. Ela sabia perfeitamente que ele, na
verdade, não estava se dirigindo a ela, apenas expunha seus
pensamentos em voz alta. Permaneceu portanto em silêncio, esperando
pacientemente que ele desviasse sua atenção da sra. Brown. Aquela
pequena pausa na rotina de trabalho não a molestava em absoluto; ao
contrário, oferecia-lhe a oportunidade de decidir qual o vestido que
usaria naquela noite, quando fosse jantar com Steven: o traje novo, de
chiffon negro, seria apropriado, mas ela fazia questão de parecer jovem
e alegre. Tinha de ser novamente o vestido de crepe turquesa. Steven já
o tinha visto algumas vezes, mas a roupa caía-lhe bem e achou que ele
iria gostar. Além disso, ao usá-la ela parecia muito mais jovem do que
seus vinte e oito anos.. . Por alguns momentos pareceu um pouco
preocupada, mas sem a menor necessidade, pois de qualquer modo
parecia muito mais moça e possuía uma beleza serena que manteria por
toda a vida.
Seu rosto era belo, sua voz, calma e agradável. Todos que a
conheciam ou lhe eram apresentados punham-se a imaginar como ela
chegara até aquela idade sem se casar. Algumas vezes ela também se
espantava; talvez porque estivera à espera de alguém como Steven. Já
se conheciam há três anos e há dois ela aceitava tacitamente a ideia de
que algum dia ele a pediria em casamento. Só que isto não acontecera.
Sabia que ele estava à espera de uma promoção e ultimamente falava
em se associar a alguém. Na última vez que se encontraram ele
comentou que não fazia o menor sentido casar-se enquanto não
gozasse de uma situação sólida. Ela franziu o cenho, lembrando-se de
que o fato tinha ocorrido há pouco mais de uma
semana. Desde então ele tinha telefonado duas vezes para
cancelar os encontros que ambos haviam combinado. Ele trabalhava no

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setor de atendimento do Hospital de St. Edwin e ela sempre aceitara o


fato de que seu trabalho vinha em primeiro lugar. Devido a isto, jamais
tentara importuná-lo no hospital. Hoje à noite, porém, daria tudo certo.
Esperava que fossem àquele restaurante na rua Mon-mouth, onde a
comida era gostosa e o ambiente agradável. Sentiu subitamente o
desejo de se divertir.
Saiu de seus devaneios e estremeceu ao notar que o dr. van Elven
a fitava com seus olhos cinza e pensativos. Sorriu.
— Desculpe — disse — posso fazer entrar o próximo paciente? É
o velho senhor Gregor.
— Sim. Examinei as radiografias dele e li duas vezes sua ficha.
Ela ficou ligeiramente ruborizada. Gostava muito do dr. van Elven;
davam-se muito bem, apesar de que ela sentia de vez em quando que
não o conhecia nem um pouco. Murmurava-se no hospital que ele era
solteiro, que tivera um caso infeliz de amor na juventude e que agora,
aos quarenta, era um prémio que qualquer mulher gostaria de ganhar.
Dizia-se que tinha muito dinheiro, uma clínica florescente na rua Harley
e uma linda casa em Richmond. Sarah dizia com seus botões que a
razão pela qual se davam tão bem é que não tinham o menor interesse
romântico um pelo outro. Mas naquele . momento ela o tinha deixado
aborrecido.
— Desculpe-me, doutor — disse com uma humildade sincera,
pois seu tempo era precioso e ela o estivera desperdiçando. — Eu
estava pensando...
— Deu para notar. Se a senhorita adiasse seus pensamentos, aca-
baríamos logo e a senhorita ficaria livre para se divertir hoje à noite.
O rubor em seu rosto se acentuou. — Como é que o senhor sabe
que eu vou sair? — perguntou.
— Não sei — respondeu ele com delicadeza. — Estava lendo seus
pensamentos. Por favor, mande o sr. Gregor entrar.
O resto da tarde correu tranquilamente. O último paciente foi
encaminhado para as radiografias e os exames de laboratorio .
O dr. van Elven colocou desordenadamente sua papelada na
pasta e levantou-se. Estava quase junto a porta quando Sarah
perguntou:
— 0 senhor vai mesmo tomar conta do gato da sra. Brown, doutor?
— Duvida de minha palavra?
Ela ficou chocada. — Claro que não. Só que o senhor não tem
jeito de quem gosta de gatos.. . — Deteve-se, sem saber o que fazer
com as fichas em suas mãos.
Ele disse, surpreendido: — A senhorita já me estudou o suficiente
para formar tal opinião a meu respeito? — Deu um sorriso divertido e ela
se sentiu à vontade para rir também.

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— O senhor parece que gosta muito mais de cachorros —


observou
bem-humorada.
— Pois acertou. Tenho dois cães. Minha governanta é que é fà de
gatos. Mas meus cachorros são suficientemente bem educados para
tolerar o gato da senhora Brown. — Deu-lhe as costas. — Boa noite.
Espero que se divirta bastante.
Suas observações levaram-na a pensamentos agradáveis. Apres-
sou-se em terminar o trabalho, dispensou as enfermeiras e fechou o
consultório. Amanhã estariam novamente muito ocupados, mas agora
estava livre. Cruzou apressadamente o pátio em direção à residência
das enfermeiras e afastou-se a fim de permitir que o carro do dr. van
Elven a ultrapassasse. O automóvel era tão elegante quanto seu
condutor, que levantou uma mão enluvada em sinal de saudação. Ela o
viu atravessar o portão de batente duplo e pela milésima vez pôs a
imaginar por que o médico precisava de um carro tão possante quanto
aquele para conduzi-lo ao trabalho. Talvez ele fizesse viagens distantes
nos fins de semana. Subitamente sentiu-se um tanto pesarosa por ele,
pois estava feliz com a perspectiva de passar a noite na companhia de
Steven, enquanto ao dr. van Elven restava somente uma governanta
para recebê-lo quando chegasse em casa.
Meia hora mais tarde, ao descer para o vestíbulo da residência das
enfermeiras, viu o carro de Steven a sua espera. Usava o vestido de
crepe azul e se abrigara com um casaco de lã branca para se proteger
do vento frio de março. Aproximou-se do automóvel, intrigada por
perceber que ele não tinha se aproximado da residência, como de
costume. No momento em que ele abriu a porta para ela entrar, es-
queceu de tudo que não fosse o prazer de vê-lo novamente. Disse-lhe:
— Aló, Steven —, mas ele retribuiu com um breve sorriso e saudou-a
com parcimõnia ainda maior. Olhou aquele rosto moreno e bem
apessoado e imaginou que ele provavelmente estaria cansado, o que
não deixava de ser uma pena, pois já gozava com antecipação o prazer
de saírem juntos. Ele deu a partida e disse, com uma extroversão que
lhe pareceu um tanto forçada:
— Vamos àquele lugar de que você gosta, na rua Monmouth. —
Antes que ela pudesse responder ele se pôs a fazer um relatório do que
lhe tinha acontecido durante o dia. Quando terminou, ela fez um
comentário simpático e em seguida, achando que isto o divertiria,
contou-lhe do oferecimento do dr. van Elven, de cuidar do gato da sra.
Brown. Ele achou graça, mas não do modo como ela pretendia, pois
explodiu em uma gargalhada e falou para chocá-la:
— Meu Deus, o homem é louco mesmo! Preocupar-se com uma
velha biruta!

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A respiração de Sarah acelerou um tanto. — Não, ele não é louco.


Trata-se apenas de um homem bondoso e a sra. Brown está mal. O gato
é tudo o que ela tem!
Steven olhou-a de relance, impaciente, — Realmente, Sarah que-
rida, você é tão tola quanto seu precioso dr. van Elven. Você não irá
muito longe se começar a ficar sentimental por causa de uma velha.
Concentrou-se em guiar e ela permaneceu em silêncio, controlan-
do-se para não dar a resposta áspera que ele merecia. Já tinham dis-
cutido muitas vezes antes, mas agora era quase como se ele tivesse
tentado deixá-la enraivecida. Steven estacionou o carro e ambos per-
correram a curta distância que levava ao restaurante. Então, conver-
savam, um tanto cautelosamente, de coisas completamente impessoais.
A pequena sala era abafada, porém o ambiente era agradável e bem à
vontade. Durante o tempo todo falaram de tudo e de todos, exceto deles
mesmos. Estavam tomando o café quando Sarah disse:
— Em breve terei uma semana de férias. Irei para casa. Você não
gostaria de me levar até lá e ficar comigo uns dois dias? — Arrependeu-
se no momento em que disse tais palavras, pois no rosto dele
estamparam-se a irritação, o aborrecimento e até mesmo um ligeiro
pânico. Ele respondeu um tanto rápido demais:
— Não posso sair da cidade. — Mas não sustentou o olhar e ela
sentiu uma mão gelada apertando-lhe o coração. Fez-se um silêncio
embaraçoso até que ela o interpelou:
— Steven, fale sem rodeios. Diga-me do que se trata. Foi para isto
que você me trouxe até aqui, não é mesmo? Para me comunicar algo.
não é?
Ele assentiu. — Sinto-me um sujo. . . — principiou, e ficou um
tanto desconcertado no momento em que ela o interrompeu: — Pois
chego até a admitir, mas você não pode esperar minha solidariedade
enquanto eu não souber do que se trata.
Ela parecia calma e um tanto pálida; suas mãos, pousadas no co-
lo, estavam fortemente cerradas. Sabia, com terrível clarividência, que
Steven estava a ponto de abandoná-la. Era uma situação que jamais
encarara. Não, não era verdade, disse a si mesma honestamente.
Steven disse-lhe emburrado: — Vou me casar. É com a filha do
velho Binns. — O sr. Binns era o chefe dele. O lado sensato de Sarah
aplaudiu tal decisão — dinheiro, sociedade na clínica, pacientes bem
situados na vida...
— Parabéns — e sua voz soou firme e bastante controlada. — Há
muito que a conhece?
Ele olhou-a atónito e ela retribuiu o olhar com dignidade calma,
mas as unhas cravavam-se doloridamente nas palmas da mão. Se ele
esperava que ela fizesse uma cena, estava redondamente enganado.

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— Há uns dezoito meses.


— Por que não me contou? Ou preferiu me deixar na reserva?
— Você não compreende, Sarah. Nós dois nos divertimos muito,
não é? Mas você sempre pensou em termos de casamento, não? Você
tem de compreender, você não é nenhuma criança. Se eu quiser ter
sucesso na minha carreira — e quero muito — preciso de algum di-
nheiro e também conhecer as pessoas certas.
— Você a ama? — perguntou Sarah.
Ele gaguejou um pouco. — Gosto muito dela.
Ela abaixou um pouco a cabeça e disse com sinceridade: — Pobre
garota! Agora, por favor, gostaria de voltar para casa. Amanhã tenho um
dia cheio.
A caminho do carro, ele perguntou, com um tom de surpresa na
voz: — Você não se importa?
— Esta é uma pergunta que você não tem o direito de fazer, pois
não lhe afeta em nada. De minha parte, não tenho a menor intenção de
respondê-la.
— Você é incrivelmente calma — respondeu ele com uma súbita
explosão de raiva. — O problema com você é este: a calma e o
puritanismo. Poderíamos ter-nos divertido um bocado, não fosse seu
moralísmo ridículo!
— Nas atuais circunstâncias isto é muito positivo, não é mesmo?
O dia seguinte pareceu-lhe um verdadeiro pesadelo, principal-
mente porque era o dia de atender os pacientes do dr. Binns e Steven
estaria com ele durante a tarde. Foi trabalhar pálida e com olheiras, e
conseguiu convencer a todos que estava com um forte resfriado. Deixou
que o dr. Binns pensasse o mesmo quando ele fez um comentário sobre
sua aparência abatida, ao mesmo tempo que tomava todo cuidado para
evitar o olhar de Steven. Pôs-se a trabalhar com a eficiência habitual e
só falava com Steven quando era necessário, do mesmo modo amistoso
de sempre; aos pacientes que chegavam e partiam, dispensava o
mesmo tratamento atencioso. O dr. Binns era um cirurgião brilhante,
porém um tanto brusco ao explicitar seus diagnósticos. Ninguém gosta
de saber que algum órgão vital precisa ser operado e ela suspeitava que
o dr. Binns enxergava muito mais o paciente do que a pessoa. Algumas
vezes Sarah ficava a imaginar se ele era tão brusco com seus pacientes
particulares e concluía pela negativa. Estudou-o sentado à escrivaninha,
um tanto pomposo, impecavelmente trajado e muito seguro de si.
Passou-lhe pela mente o pensamento sorrateiro de que em vinte anos
Steven seria exatamente como ele. A este pensamento seguiu-se
imediatamente um outro, relativo ao dr. van Elven, que, apesar de tão
seguro de si mesmo e acostumado a vestir-se com apuro ainda maior,

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jamais tinha demonstrado ser pomposo. Seus pacientes, por mais


difíceis que se mostrassem, eram sempre tratados como gente.
O dia finalmente chegou ao fim. Ela foi para a residência, tomou
um banho, trocou de uniforme e encaminhou-se para a sala de estar. No
momento em que entrou fez-se um silêncio súbito, seguido de risinhos
abafados. Ela sorriu contrafeita. Os mexericos já estavam à solta; era
algo que ela teria de encarar mais cedo ou mais tarde. Felizmente,
conhecia muito bem todas as pessoas que se encontravam na sala;
bastava uma só palavra para acabar com aqueles comentários. Cruzou
com o olhar da sua amiga Kate Spencer e disse, descontraída: — Os
mexericos, como sempre, nunca dizem a verdade, mas o fato é que
Steven vai se casar com a filha do dr. Binns. Não é culpa de ninguém,
são coisas que acontecem. Apenas é um pouco inesperado.
Sentou-se em uma das espreguiçadeiras espalhadas pela sala
confortável e esperou em silêncio que alguém dissesse algo. Coube a
Kate falar.
— Claro que a culpa é de Steven. — E prosseguiu, com sua preo-
cupação característica de cercar a verdade: — Aposto que ele não a
ama. Ela é a fílhinha do papai, não é mesmo? No futuro haverá muito
dinheiro e, no presente, uma sociedade.
Kate fez um comentário quase inaudível, indicativo da indignação
de que estava tomada e repetido por todas as enfermeiras que se en-
contravam na sala, pois Sarah era muito querida e Steven tinha agido
deslealmente com ela. Uma garota baixinha e morena, sentada ao lado
da lareira e que até aquele momento não havia dito nada, pôs-se de pé.
— Estrearam um filme novo em Leicester Square. Vamos todas.
Se a gente se apressar ainda há tempo e na volta podemos comer no
Holy Joe. Lá só servem um prato: espaguete.
Uma sugestão tão oportuna foi recebida com um alivio que todas
fizeram questão de disfarçar. Sentiam muita pena de Sarah, mas
conheciam-na o suficiente para saber que a última coisa que ela de-
sejava era piedade. Foram todas para o cinema, carregando Sarah com
elas, e mais tarde tiveram um jantar barulhento no restaurante. Passava
das dez quando cruzavam as ruazinhas estreitas em direçâo ao hospital.
Era uma longa caminhada, mas tinham combinado entre elas mesmas
que seria uma boa ideia deixar Sarah bem cansada, a tal ponto que ela
conseguisse dormir bem e não acordasse com aquela aparência terrível
da véspera.
Mas também naquela noite ela não conseguiu dormir. Ainda estava
muito bela quando foi trabalhar na manhã seguinte, mas a cor lhe fugira
inteiramente e seus olhos estavam cansados. Teria de ver Steven,
trabalhar a seu lado, falar-lhe até a hora do jantar. Era dia de
atendimento do dr. Peppard e Steven naturalmente estaria lá. Claro que

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ela podia pedir a uma das enfermeiras que se encarregasse da clínica, o


que a deixaria livre para se deslocar para qualquer outro setor do
hospital, mas o orgulho não lhe permitiu. Procedeu à inspeção de
sempre, certificando-se de que os pacientes estavam sendo pesados, os
testes estavam em andamento, as radiografias providenciadas e as
culturas de laboratório sendo analisadas. Encaminhou-se para seu
escritório. Até as nove teria tempo de traçar o roteiro das tarefas do
horário noturno. Mal tinha acabado de sentar-se quando Steven entrou.
— Sinto muito, Sarah. Não sabia que você levava tudo tão a sério.
Afinal de contas, nós éramos apenas bons amigos. Nunca disse que me
casaria com você. .. — começou Steven.
— Você não está sendo um tanto presunçoso, Steven? Não, você
nunca me pediu para casar com você. Não acha portanto que está
antecipando minha resposta? Isto é, a resposta que eu teria dado.
Aguas passadas não movem moinhos, não acha? — Ela ficara rubra e
muito a contragosto sentiu que seu lábio tremia. Prosseguiu com
aspereza: — Agora, por favor, retire-se; quero terminar o que estou
fazendo antes que o dr. Peppard chegue.
Ele saiu e ela permaneceu a sós, absorta em seus pensamentos,
esquecida do que estivera fazendo.
Foi almoçar e deixou uma enfermeira cuidando dos pacientes do
dr. Peppard. Os pacientes do dr. van Elven começavam a chegar à uma
e meia. Queria que todos estivessem prontos e à espera quando ele
chegasse e, como o dr. van Elven não gostava de deixar os outros
esperando, Sarah fazia o possível para satisfazê-lo, o que frequente-
mente significava uma corrida louca contra o tempo. Naquele dia,
porém, estava com sorte. Estava pronta para começar. O primeiro
paciente já estava de avental no pequeno vestiário e a enfermeira já se
preparava para ir buscar o segundo. Ainda tinha cinco minutos pela
frente e procurou melhorar a aparência. Ajeitava o cabelo, com a boca
cheia de grampos, quando o dr. van Elven chegou. Ele nunca chegava
antes do horário marcado e ela ficou tão surpreendida que abriu a boca
e todos os grampos se espalharam pelo chão. O médico pousou a
maleta sobre a mesa, abaixou-se, pegou os grampos do chão e com ar
grave entregou-os a ela.
Por algum motivo que escapava a sua compreensão, não queria
que ele soubesse de nada que se referisse a Steven. Claro que com o
passar do tempo ele certamente descobriria, as noticias corriam céleres
naquele ambiente. Ele tinha sido um dos primeiros a saber quando ela
começou a sair com Steven; Sarah recordava-se com dolorosa precisão
do dia em que ele lhe tinha perguntado se ela gostaria de ser a esposa
de um cirurgião. Achou que já não lhe restava mais nenhuma lágrima,
mas subitamente, no momento mais inesperado, sentiu um aperto na

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garganta. Engoliu as lágrimas resolutamente e ouviu a voz calma do


médico pedindo que mandasse o primeiro paciente entrar. Ele levantou
os olhos enquanto falava e dirigiu-lhe um olhar firme. Nesse momento
ela tomou consciência de que ele sabia tudo que estava se passando.
De queixo erguido, foi até a porta buscar o paciente.
O atendimento foi trabalhoso naquela tarde. O técnico de labora-
tório estava de férias; isto significava que um dos médicos do hospital
estava encarregado das amostras de sangue e dos diversos testes que
o dr. van Elven queria ter imediatamente à disposição. Estava nervoso e
portanto um tanto lento; quando pararam durante cinco minutos para
tomar um chá que esfriava no bule, havia ainda um número considerável
de pacientes esperando sua vez. Dois tinham de ser atendidos
imediatamente e muitos foram enviados ao raio-X, o que significava que
o dr. van Elven tinha de esperar pacientemente enquanto a enfermeira
se encarregava das chapas ainda molhadas. Eram seis horas quando
saiu o último paciente. Sarah nunca vira o dr. van Elven ficar até tão
tarde e ele não demonstrava o menor desejo de ir embora. Ficou
sentado escrevendo notas intermináveis e até mesmo algumas cartas,
pois a secretária partira às cinco e meia. Sarah pôs um pouco de ordem
no consultório, dispensou as enfermeiras, percorreu o departamento
trancando as portas, inspecionando os banheiros e certificando-se de
que todos os pacientes tinham ido embora. Ao regressar, notou que ele
aparentemente terminara, pois não havia mais nenhum papel sobre a
mesa e sua maleta estava fechada. Levantou-se enquanto ela entrava
no consultório.
— Creio que a sra. Brown vai se internar depois de amanhã, não é
mesmo?
Sarah respondeu afirmativamente e perguntou se ele tinha ido
buscar o gato.
— Ainda não — respondeu ele seriamente. — Não poderia fazer o
favor de me acompanhar até a casa da sra. Brown? Parece-me uma boa
ideia levá-la até Ríchmond com o gato; ela ficaria conhecendo minha
governanta e de lá viria para o hospital. Se a senhorita pudesse estar lá
também. .. penso que tem as manhãs de domingo livres, não?
Ela estava sempre livre nas manhãs de domingo, mas ficou
curiosa para saber a razão da pergunta, porque após tantos anos ele
com
certeza devia saber disso. Realmente, não tinha o que fazer; a ida
a Richmond preencheria as horas, até que fosse para o hospital, após o
almoço. Então, concordou.
— Certamente, doutor. Devo encontrá-lo lá? — Refletiu um mo-
mento: — A sra. Brown mora na rua Phipps, não é?

Livros Florzinha - 11 -
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O médico assentiu: — Sim, mas eu irei buscá-la na residência.


Está bom às onze horas?
Esperou o tempo suficiente de ela murmurar um "sim" um tanto
surpreendido e partiu, desejando-lhe apressadamente uma boa noite.
Na manhã de domingo ela estava na porta de entrada da residên-
cia exatamente na hora marcada e já o encontrou à espera. O dr. van
Elven desceu do carro e foi abrir a porta para ela, algo que Steven
raramente fazia. Seu ânimo melhorou um pouco e tornou a se abater no
momento em que o automóvel de Steven passou por eles indo na
direção oposta. Por um breve momento ela vislumbrou seu rosto e a
expressão de surpresa que nele se refletia; quando se deu conta, já
estavam em movimento. Então lembrou-se de que Steven costumava
jogar ténis todo domingo e invariavelmente estava de volta às onze
horas. Ficou a imaginar se o homem a seu lado sabia disto e presumiu
que não, mas seu ego lisonjeado sentiu-se um pouco mais gratificado.
Aquele pequeno incidente daria a Steven motivos para pensar.
Subitamente, sentiu-se mais alegre e conseguiu arriscar alguns
comentários banais sobre o tempo, aos quais van Elven respondeu com
cortesia mas em tom displicente.
A rua Phipps era interminável, repleta de casas da época vitoriana.
O dr. van Elven apontou para a casa que estavam procurando e
estacionou o carro entre uma carrocinha de sorvetes e um carro de
entregas, com uma habilidade que a fez ficar admirada. Mal puseram os
pés na calçada e uma pequena multidão juntou-se à sua volta. O médico
sorriu ligeiramente para os rostos curiosos em torno dele e tocou uma
campainha. Apareceram muitos outros rostos em várias janelas e em
pouco tempo uma delas se abriu. Dela surgiu um homem corpulento, de
aparência bem pouco amistosa: — O que querem?
O dr. van Elven respondeu simplesmente: — A sra. Brown.
— O senhor deve ser o médico — observou o homem. — Segundo
andar, nos fundos. Cuidado com os degraus, alguns deles estão soltos.
— Obrigado — respondeu o médico, e entraram no prédio.
Subiram as escadas com certa precaução e o médico colocou a mão em
seu ombro. Ela lembrava-se dos degraus soltos.
Continuaram a subir e ela pôs-se a imaginar por que ele falava
como se tivesse o hábito de frequentar casas daquela espécie em
mas daquele tipo — o que era por demais estranho quando se sabia que
ele vivia em Richmond. tinha um apartamento na rua Harley e um belo
consultório particular.
O segundo andar era menor, mais escuro e cheirava mal. O
médico lançou-lhe um olhar rápido e em seguida, como se fosse incapaz
de se controlar, voltou a olhar e bateu na porta diante deles.

Livros Florzinha - 12 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Uma voz vinda do interior da casa autorizou-os a entrar. A sra.


Brown estava sentada em uma das cadeiras e ao tentar se levantar
disse, com falta de ar: — Mas vejam só que surpresa agradável! Já nem
me lembro mais há quanto tempo não recebo visitas. — Sorriu, radiante,
para ambos. — Que tal um chazinho?
Para grande surpresa de Sarah, o médico aceitou. Puxou uma ca-
deira desconfortável e fez sinal a ela para que se sentasse. Seu olhar
cintilava e estava carregado de intenções. Sarah disse apressadamente:
— Posso ir buscar o chá enquanto o senhor conversa com a sra.
Brown? — Ele acomodou-se na cadeira com o maior cuidado, o que não
impediu o móvel de estalar em protesto contra seu peso um tanto
considerável,
O ato de fazer o chá era um tanto complicado, pois implicava ir até
o corredor do andar e encher a panela com água de uma torneira ali
situada, provavelmente compartilhada por todos os vizinhos. Em
seguida, colocou-a sobre o pequeno fogareiro em um canto do quarto.
O chá ficara pronto e estava denso e saboroso. Sarah sentou-se
na cadeira que o médico desocupara logo após todos se servirem e
perguntou por Timmy.
A sra. Brown pousou a xícara. — Ele já sentiu que eu vou embora.
— Sua voz cansada tremeu e Sarah apressou-se em dizer com toda
gentileza:
— É só por uma semana e alguns dias, e a senhora vai se sentir
tão melhor...
— Talvez sim — replicou a sra. Brown, desanimada. — A única
pessoa que me levaria para um hospital é o doutor aqui. Timmy, venha
cá para o colo de sua mãe.Tímmy saiu de sob a cama. Era um gato
velho e esquisito com as orelhas cobertas de cicatrizes e um vasto
bigode. Pulou no colo da velha senhora, esfregou amistosamente a
cabeça em suas mãos e começou a ronronar,
— Bonito, não acham? — perguntou sua dona. — Somos muito
amigos. Ele bem sabe que eu não quero ir...
O dr. van Elven cessou de contemplar as chaminés das casas vizi-
nhas. Sua voz era gentil:
— Senhora Brown, se a senhora consentir em ir agora para o
hospital e ficar lá durante umas semanas, acredito que o tratamento vai
ajudá-la a melhorar. E o que seria de Timmy? É muito melhor saber que
ele está sendo bem cuidado do que correr o risco de não poder mais
tomar conta dele, não acha? — Apanhou o casaco da velha senhora da
cama. — Vamos indo? Quero lhe mostrar onde ele vai ficar e quem irá
tomar conta dele.
O tom com que ele se exprimia encerrava persuasão, gentileza e
muita segurança do que estava dizendo. A velha senhora levantou-se,

Livros Florzinha - 13 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

permitiu que a ajudassem a enfiar o casaco, pôs o velho chapéu todo


amarfanhado sem se importar com sua aparência e declarou-se pronta
para partir. Quando chegaram à rua a pequena multidão ainda estava lá,
firmemente controlada pelo homem que lhes abrira a porta.
— É o meu senhorio — informou-os a sra. Brown, já sentada no
banco de trás. — É um fingido. Quer me pôr para fora porque atraso o
aluguel. — Recostou-se, com Timmy aninhado no colo, aparentemente
pouco impressionado com o que se passava ao redor. Sarah não olhou
para o médico, mas tinha a sensação de que ambos pensavam a
mesma coisa a respeito do senhorio.
Era evidente que van Elven conhecia Londres na palma da mão.
Logo depois de partirem da rua Phipps, não hesitou um segundo em se
embrenhar por ruas que pareciam rigorosamente iguais, até que Sarah
não sabia mais onde estavam. Foi uma surpresa quando atravessaram
o rio e ela reconheceu a ponte Putney. A casa do médico fazia parte de
uma série de edificações em estilo georgiano, bem afastada da estrada,
com entrada particular e uma linda vista do rio, que estava apenas a
alguns metros de distância. O lugar era surpreendentemente tranquilo.
Sarah desceu do carro e olhou em volta enquanto o médico ajudava a
sra. Brown. Como seria agradável morar em um lugar daqueles, pensou,
a alguns quilómetros de distância do hospital, mas suficientemente
afastado para se ter a impressão de que se vivia em outro planeta. O
médico girou a maçaneta dourada da porta da frente e pôs-se de lado a
fim de que elas entrassem. O hall era bem maior do que ela pudera
imaginar. Abriu-se uma porta no fundo do hall e uma mulher aproximou-
se deles. Era alta, magra e de meia idade, com olhos castanhos e
cabelos da mesma cor. O médico fechou a porta e disse bem à vontade:
— Ah, é você, Alice. — Olhou Sarah e apresentou-as: — Esta é
minha boa amiga e governanta, Alice Miller. Alice, esta é a enfermeira
Sarah Dunn, do hospital, e esta é a sra. Brown, de quem lhe falei. Este é
Timmy. Que tal mostrar para a sra. Brown onde Timmy vai morar e
combinar com ela o que ele vai comer?
Sarah contemplou as duas mulheres caminhando em direção à co-
zinha e encarou van Elven um tanto intimidada.
— Venha ver que vista esplêndida temos da sala de estar — convi-
dou ele, e encaminhou-se para uma das portas que davam para o hall. A
sala ficava nos fundos da casa e a janela dava para uma vista realmente
extraordinária do rio, rodeado por muito verde. Ali já era quase campo e
a ilusão era reforçada pelo pequeno jardim onde cresciam em desordem
prímulas, narcisos e jacintos, em meio a árvores e arbustos. Era um dos
cantos havia uma mesa laqueada de branco e algumas cadeiras; seria
agradável sentar-se lá em uma manhã de verão.

Livros Florzinha - 14 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Sarah ficou curiosa por saber se ele ainda tínha uma família que
lhe escrevesse. Esperava que sim; ele era tão bom.. . O médico ca-
minhara até a porta que dava para o jardim e abríu-a, deixando entrar
dois cães. Eles farejaram-na, abanaram o rabo e sentaram-se ao pé de
seu dono.
Ele disse: — Sente-se, por favor. Vamos dar a eles dez minutos
para que vocês se conheçam melhor. Se quiser fumar, há cigarros aí ao
lado.
Ela abanou a cabeça. — Não, obrigada. Só fumo nas festas, quan-
do não sei o que fazer com as mãos. Ele sorriu
— Não se incomoda se eu acender o cachimbo?.
— Por favor! O que o senhor pretende fazer em relação à sra.
Brown?
— Exatamente o que eu disse: manté-la o quanto possível no hos-
pital e em seguida mandá-la de volta para casa.
Sarah pareceu horrorizada. — De volta à rua Phipps? Ele alçou as
sobrancelhas. — A rua Phipps é seu lar — disse calmamente. — Ela
viveu la durante tanto tempo que seria uma crueldade tirá-la, sobretudo
porque lhe resta somente um pouco de vida. Vou providenciar para que
alguém vá lá diariamente e faça tudo o que for preciso. Acho que
poderíamos convencer o senhorio a limpar o quarto e talvez pintá-lo,
enquanto ela estiver hospitalizada.
Sarah aprovou. — Seria muito bom. Sim, o senhor tem razão, é
claro. Em qualquer outro lugar ela se sentiria perdida.
Ele acendeu o cachimbo e ficou de pé. Disse, sem o menor
sarcasmo: — Fico contente com sua aprovação. Vou buscar a sra.
Brown. Quer esperar aqui? Não demoro.
Quando ele partiu, Sarah levantou-se e começou a inspecionar a
sala. Era confortável e acolhedora, mobiliada com cadeiras de couro e
um enorme divã colocado diante da bela lareira de mármore. O assoalho
era encerado e coberto com um tapete igual ao do hall.
Sarah sentou-se sentindo um alívio e uma calma que não experi-
mentava havia dois dias. Deu-se conta de que há muitas horas não
pensava mais em Steven, Estivera muito ocupada com a sra. Brown e o
ridículo Timmy. Fora mera coincidência, claro, o fato de o dr. van Elven
ter pedido sua ajuda; mesmo assim ela sentia-se grata em relação a ele.
Ele fizera tudo o que pudera para distraí-la de seus pensamentos, ainda
que ela não lhe tivesse contado todo o sucedido. Sua gratidão
transpareceu ao despedir-se dele no hall de entrada do hospital. O dr.
van Elven foi cuidar de seus negócios e Sarah conduziu a sra. Brown
até a ala feminina. Ele, porém, não demonstrou o menor sinal de ter
ficado surpreendido com a franqueza de seus agradecimentos. Somente
mais tarde, em meio à solidão da clínica, é que as dúvidas relativas à

Livros Florzinha - 15 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

atitude solidária do médico infiltraram-se em sua mente. Inicialmente


deixou-as de lado, mas elas persistiam, e o que mais a aborrecia era
não ter certeza se se importava ou não com isto. Não havia também
como descobrir, a menos que perguntasse diretamente ao dr. van Elven,
o que ela não tinha qualquer intenção de fazer. Pois, caso estivesse
enganada, imaginava com antecipação a expressão divertida do rosto
dele. Seria uma expressão bondosa, o que tornaria as coisas piores,
pois significava que ele se compadecia dela, um fato que ela, por uma
razão ou outra, não suportaria encarar.

CAPITULO II

Sarah foi ver a sra. Brown na segunda-feira. A sra. Brown estava


sentada na cama, envolta em uma camisola do hospital grande demais
para ela. Parecia muito asseada e o cabelo era surpreendentemente
branco, depois de ter sido lavado.
— Mas que ótima aparência, sra. Brown! Sarah puxou uma cadeira
e sentou-se, não lhe passando despercebidos os olhares que a sra.
Brown dirigia a suas vizinhas, como se quisesse significar: "Eu não lhes
disse?". Naquele momento Sarah tomou a resolução de vir vê-la sempre
que tivesse um minuto livre, e perguntou pela saúde da velha senhora.
A sra. Brown ignorou a pergunta. — Ele mandou um recado —
disse. — Timmy dormiu muito bem e comeu por dois. — Ela procurou se
ajeitar na cama e os travesseiros caíram; Sarah levantou-se e ajeitou-
os. — Foi um daqueles médicos moços quem me deu o recado hoje de
manhã. — Franziu o cenho, pensativa: — Acho que eles sabem o que
fazem, não é mesmo? Esses médicos jovens?
— Sim, senhora Brown. — Sarah parecia muito categórica. — São
todos médicos muito competentes e estão aqui para satisfazer os
desejos dos paciente.
— Então tudo que fizeram comigo foi por ordem do doutor? Sarah
assentiu.
— É isso mesmo. O que posso fazer pela senhora
enquanto está aqui? Alguém vai arrumar seu quarto para quando a
senhora voltar?
A velha senhora pareceu surpresa. — Acho que não. Quem é que
teria tempo? Se bem que eu acho que alguém talvez vá até lá, arrume
minha cama e faça algumas compras.
Sarah fez um breve comentário evasivo e prometeu a si mesma ir
até a rua Phipps verificar se alguém fora efetivamente colocar um pouco
de ordem no quarto.

Livros Florzinha - 16 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Não voltou a ver Steven novamente até terça-feira pela manhã,


quando o dr. Binns clinicava. Mal acabavam de trocar um "bom dia"
distante quando ele foi chamado à enfermaria e só voltou quando quase
todos os pacientes tinham ido embora. Passava de meio-dia e estavam
atrasados. O dr. van Elven tinha uma vasta clientela a sua espera á uma
e meia.
Steven disse abruptamente ao entrar: — Por onde foi que você an-
dou no domingo com o velho van Elven?
O coração de Sarah disparou. Com que então ele se importava!
Empilhou as fichas cuidadosamente e conferiu a longa lista de pa-
cientes, antes de responder em tom calmo, mal reconhecendo que era
ela mesma quem falava:
— Isto acaso lhe diz respeito? E, se está sé referindo ao dr. van
Elven, saiba que ele absolutamente não é velho.
Ele deu uma risada debochada. — Você é bem fingida! Finge ser
tão puritana e ao mesmo tempo faz papel da mulher ultrajada! Há
quanto tempo você o manobra? Ele é um bom partido!
Ele estava bem próximo a ela. Sarah deu-lhe uma bofetada e
nesse momento viu o dr. van Elven parado ao lado da porta. Entrou na
sala e disse tranquilamente: "Saia". Sua voz soava ameaçadora, apesar
de o rosto manter-se impassivo. Sarah olhou Steven indeciso, com a
mão sobre o rosto avermelhado e ar de indisfarçável surpresa; ele, em
seguida, deu-lhe as costas e saiu.
— Sente-se — ordenou o dr. van Elven com autoridade, e ela o
obedeceu. Tinha ficado muito pálida: em seu rosto transparecia a
humilhação e a cólera. Estremeceu e cruzou as mãos sobre o colo, a fim
de disfarçar o tremor que as possuía. O dr. van Elven caminhou em
direçao à escrivaninha de modo displicente e largou a maleta.
— O senhor sabe o que houve entre Steven e mim.
— Sim, Mas não vejo a menor necessidade de me estender sobre
um assunto que lhe deve ser penoso.
— Estou-me comportando como uma heroína de um romance me-
dieval, não é mesmo? — Subitamente, Sarah lançou-lhe um olhar
penetrante. — Estou furiosa! — Exclamou, como se ele ainda não
tivesse feito o menor comentário a respeito de seus sentimentos. Ele
concordou com um gesto e sorriu-lhe brevemente,debruçando-se sobre
seus papéis e dando-lhe tempo para se recompor. Então comentou:
— Pronto, já está passando. Parece que hoje temos muitos pa-
cientes para atender. Que sorte! Não há nada melhor do que trabalho
pesado para acalmar os nervos. Posso lhe sugerir que vá almoçar?
Gostaria de começar pontualmente.
Ela levantou-se imediatamente, obedecendo inconscientemente à
voz calma e firme dele. — Sim, senhor, claro. Já perdi muito tempo.

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Saiu apressadamente, sentindo que de um modo ou de outro ele


tinha conseguido dar a impressão de que o episódio não merecia tanta
importância assim. Até mesmo conseguiu almoçar, certa de que ele faria
perguntas nesse sentido quando ela voltasse ao consultório. Não houve
tempo, entretanto, para lhe perguntar o que quer que fosse. Quando
voltou, os bancos estavam repletos de pacientes. Sarah entrou
rapidamente no consultório, confirmou se o dr. van Elven já estava
acomodado em sua escrivaninha, ajeitou o avental e disse no tom
sereno de sempre:
— Posso mandar entrar o primeiro paciente, doutor? É o senhor
Jenkins, para um exame geral, após três semanas de internamento.
— Já estudei suas radiografias, mas vou querer um exame de
sangue. Quer entrar em contato com o doutor Coles?
Ela mandou o sr. Jenkins entrar, esperou o suficiente para se
certificar de que sua presença não seria necessária e foi correndo à
procura do médico encarregado do fichário geral. O dr. Coles foi
localizado próximo à recepção, às voltas com resultados de exames do
laboratório de patologia e vários relatórios. Ele levantou os olhos quando
ela entrou e disse, bem-humorado:
— Olá, Sarah. O chefão já chegou? Ainda estou conferindo esta
papelada. — Fez um muxoxo e ela sorriu para ele enternecida. Era um
bom homem, não muito jovem e aparentemente sem ambições, pois
parecia contente em permanecer onde estava, trabalhando no hospital.
Dava-se muito bem com o pessoal das clínicas, era inteiramente
confiável e invariavelmente bem-humorado. Diziam que seu casamento
dera muito certo, era capaz de estender-se longamente quando falava
de seus filhos, dos quais tinha muito orgulho. Levantou-se e seguiu-a
contornando as filas de pacientes. O sr. Jenkins ainda descrevia a dor
horrível que sofria no estômago e o dr. van Elven ouvia-o com o máximo
de atenção. Quando o velho fez uma pausa para respirar, o médico
disse; — Alô, Dick — com um sorriso — O que foi que você fez do
senhor Jenkins enquanto ele estava internado?
Imediatamente os dois se ocuparam com o paciente, deixando-a,
livre para verificar se o próximo a ser atendido já estava preparado e à
espera na saleta de vestir e se tudo aquilo de que o dr. van Elven
necessitaria estava em ordem.
As horas se passavam e o pequeno consultório gradualmente
adquiria a mesma atmosfera que a da sala de espera. Sarah desligou o
aquecedor, que se mostrava inútil para melhorar o ar no consultório. —
Sinto-me envergonhado de ir para casa quente e abrígado pois imagino,
a julgar pela aparência de todos, que um grande número de meus
pacientes sequer dispõe de dinheiro para a passagem de ônibus e,

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mesmo que tiverem, não conseguirão encontrar lugar — disse dr. van
Elven, e continuou: — Vamos tomar um chá?
Assim que o chá foi servido, os dois médicos discutiram o próximo
caso e o dr. Coles falou-lhes de seu filho mais velho, que estava indo
muito bem na escola. Foi quando Sarah estava colocando as xícaras e
os pires em uma bandeja que o dr. van Elven comentou calmamente: —
A senhora Brown contou-me que a senhorita a visita regularmente. É
muita bondade de sua parte.
Sarah passou-lhe as anotações relativas ao próximo paciente e
disse-lhe despretensiosamente: — Acho que ela não tem parentes ou
amigos que venham visitá-la, doutor. E o senhor sabe como é terrível
para um paciente ser o único da enfermaria que não recebe visitas.
— Imagino que deve ser uma experiência muito triste. Ela está
reagindo muito bem, sabe? Devo tomar providências para que ela volte
para casa.
— Como vai Timmy? — perguntou Sarah.
— É um hóspede perfeito. Seus modos, ao contrário de sua apa-
rência, são encantadores.
Finalmente, terminaram. Sarah dispensou as estudantes da enfer-
maria, mandou as atendentes colocarem um pouco de ordem na clínica
de ginecologia do outro lado do departamento e começou a arrumar
suas coisas. O dr. Coles tinha ido atender ao chamado de uma das
enfermeiras e ela estava a sós com o dr. van Elven, que presumi-
velmente estava entregue a seus pensamentos. Percorreu a pequena
sala colocando-a em ordem e empilhando as fichas, a fim de levá-las de
volta para o escritório. Tinha se esquecido completamente do homem
sentado tão tranquilo à escrivaninha. Quando ele falou, ela teve um
sobressalto:
— Fica mais fácil à medida que os dias passam, especialmente se
há muito trabalho a fazer. Boa noite, senhorita.
Sarah ficou parada, boquiaberta. Ele já estava fora do alcance de
sua voz quando ela retribuiu o boa noite.
Quando chegou à residência havia um bilhete para ela, da parte de
Steven, dizendo que precisava vê-la e se ela não poderia esperar por
ele às sete horas. Mas ela não tinha a menor intenção de capitular
diante dele. Trocou de roupa rapidamente, pois tinha uma boa desculpa
para sair, e estava contente por isso. Iria dar uma espiada no quarto da
sra. Brown.
A rua Phipps tinha aparência deprimente; a chuva parara, mas o
vento soprava forte e o céu do final da tarde estava carregado de
nuvens. Sarah bateu na porta da entrada e o mesmo homem abriu-a.
Chegaram ao primeiro andar e ele abriu a porta do quarto da sra.
Brown. Estava desprovido de móveis — aliás, de tudo, ela notou com

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enorme espanto. Dois homens pintavam a parede; um deles voltou-se


quando ela entrou, saudou-a polidamente e perguntou-lhe se ela tinha
vindo escolher o papel de parede. Seus olhos se arregalaram e ela
voltou-se para o senhorio: — O senhor é quem vai decidir, não?
— Deus me livre, senhorita, eu não. Que é que eu sei de papel de
parede? — Deixou escapar uma risada bem-humorada e saiu, fechando
a porta. Sarah olhou em torno de si. O quarto estava sendo reformado
da cabeça aos pés. A tubulação horrorosa que provavelmente tinha
ligação com a torneira do corredor fora embutida; um dos homens
colocava uma persiana na janela que acabara de pintar. Havia diversas
amostras de papel de parede no centro do quarto. Após um momento de
indecisão, Sarah ajoelhou-se e separou algumas. O homem da janela
disse:
— Isso mesmo, a senhorita escolheu bem; assim que a pintura
secar poderemos empapelar.
Contemplava um papel estampado com rosas rubras quando ouviu
alguém subindo as escadas e a porta se abriu, dando passagem ao dr.
van Elven. Ele cumprimentou os dois homens e, se sentiu alguma
surpresa ao ver Sarah, soube disfarçar muito bem quando saudou-a: —
Alô. Mas que alívio vê-la, a senhorita poderá escolher o papel de
parede.
— Parece uma conspiração! Assim que cheguei o senhorio
parecia estar pensando que foi por isso que vim, e o mesmo aconteceu
com estes senhores. Na verdade, passei por aqui para ver se era
preciso limpar alguma coisa antes que a senhora Brown voltasse.
— Não haverá necessidade, pelo menos nestes próximos dez
dias.
— Bem, eu queria afastar-me do hospital. — Voltou-se para as
amostras, decidida a não acrescentar mais nada.
— Ótimo. Já viu alguma coisa de que gostasse?
— A senhora Brown gosta de cor-de-rosa — respondeu vagarosa-
mente, franzindo o cenho. — Já que o senhorio está providenciando
tudo, ele bem que poderia escolher. — Ela o olhou com ar inquisitivo, viu
a expressão surpresa em seu rosto e acrescentou imediatamente: —
Mas então é o senhor que está se encarregando de tudo... doutor...
— Meu nome é Hugo — ele disse, gentil. — Naturalmente sabe
disto. Acho que após três anos de conhecimento podemos dispensar o
doutor e senhorita, a menos que estejamos trabalhando. Concorda?
Ela sentiu-se um tanto insegura e sem saber o que dizer, mas isto
pareceu ter pouca importância, pois ele prosseguiu, sem esperar sua
resposta.
— Muito bem, está resolvido. Vamos escolher o tal papel de pare-
de de uma vez por todas?

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Agachou-se a seu lado enquanto falava, examinaram mais um lote


de amostras e passaram uma agradável meia hora admirando e criti-
cando, bem-humorados, até que finalmente Sarah comentou:
— Acho que a senhora Brown vai gostar das rosas. São bem
grandes e vermelhas e o quarto ficará parecendo ainda menor do que
na verdade é, porém são bonitas, sobretudo para quem passou anos a
fio entre paredes pintadas de um verde deprimente.
— Está bem. Ficam as rosas. Agora, os móveis. Nada muito mo-
derno, acho, porém peças pequenas. Pensei em procurar nessas lojas
que vendem mobiliário de segunda mão. Quem sabe lá a gente encontra
alguma coisa? Talvez você possa vir comigo, Sarah. Ah, e cortinas
também. Não tenho a menor ideia. ..
Ele parecia tão necessitado de ajuda que ela concordou imediata-
mente.
— Para você está bem sábado, às onze da manhã? — ele
perguntou. Ela lançou-lhe um olhar intrigado a que ele retribuiu com
tamanha candura que Sarah no mesmo momento sentiu vergonha de
seus pensamentos. Levantou-se, disse que aquele horário lhe convinha
e esperou enquanto ele conversava com os dois homens. Logo depois
saíram.
Eles chegaram ao térreo; Hugo fez uma pausa e voltou-se
encarando-a. — Minha querida, o fato de ser tímida não tem a menor
importância. Você não sabe disto? É algo que pode ser até mesmo
positivo hoje em dia.
Prosseguiram até o pequeno hall de entrada e Sarah sentiu-se re-
confortada pelas palavras dele; era extraordinário como ele conseguia
colocá-la a vontade, quase como se fossem amigos de longa data. Ficou
parada ao lado da porta enquanto ele, do modo mais amável possível,
comentava com o sr. Ives, o senhorio, sobre a inconveniência de manter
uma escada naquelas condições, que certamente acabaria por causar a
morte de alguém, a de Ives inclusive, a menos que tomasse sérias
providências e sem mais tardar.
Ives acompanhou-os até a calçada e lá ficou, parado, enquanto o
médico abria a porta do carro para Sarah entrar..Foí só quando iam em
direção ao hospital que ela se deu conta que nada tinha sido dito em
relação a essa volta. O médico a fizera entrar no carro e ela tinha
obedecido sem protestar.
Ao chegarem ao hospital, agradeceu-lhe a carona.
"Eu podia muíto bem ter vindo a pé. . .", pensava Sarah ao saltar,
interrompendo no momento em que viu Steven parado diante da porta
de entrada da residência. Hugo também o viu. Saiu do carro em uma
atitude bem displicente e acompanhou-a até a porta, desejando a

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Steven um simpático boa noite enquanto passavam por ele. Abriu a


porta e disse: — Boa noite, Sarah!
Steven não compareceu à clínica no dia seguinte. O dr. Binns foi
assistido por Jimmy Dean, um dos cirurgiões internos; ele e Kate se
amavam, porém Jimmy estava em início de carreira e nenhum dos dois
tinha dinheiro. Jimmy era eficiente em seu trabalho, apesar de um pouco
lento, mas Sarah gostava dele. Vendo-o trabalhar naquela tarde, pensou
que com um pouco de sorte ele acabaria por conseguir o que pretendia.
Steven entrou na companhia do dr. Peppard quando este chegou à
clinica na manhã de quinta-feira, e assim que teve uma oportunidade
perguntou abruptamente:
— Por que você não respondeu ao meu bilhete? Ou eu não devia
saber que você tinha encontro com van Elven?
— Já tinha decidido sair, mas não com o doutor van Elven, como
você supõe. Aliás, que sentido faria encontrar-me com você?
Ela caminhou decididamente em direçào à escrivaninha e ali per-
maneceu, deixando Steven sozinho, pensando na resposta que ouvira.
Sarah tomou cuidado para não dar a Steven a oportunidade de
surpreendê-la novamente, uma resolução aliás facilitada pela ines-
perada ausência da enfermeira que habitualmente se encarregava da
clínica de otorrinolaringologia. Colocou uma estudante de enfermaria em
seu lugar, o que lhe dava uma excelente desculpa para passar a maior
parte da manhã inspecionando o trabalho da jovem. Finalmente, o dr.
Peppard se foi, com Steven em seu encalço. Ao sair, ele lançou-lhe um
olhar de raiva e frustração, o que gratificou o ego de Sarah mas não
atenuou sua infelicidade.
Foi um alívio ver o rosto plácido do dr. van Elven quando regres-
sou do almoço. Seu "boa tarde, senhorita" foi dito com a gravidade de
sempre, mas ela notou um brilho em seu olhar enquanto a cum-
primentava.
O atendimento dos pacientes desenrolou-se como sempre, sem a
menor referência à sra. Brown ou ao seu quarto; era como se nada
daquilo tivesse acontecido. E ele não fez também a menor menção ao
sábado.
Ela ainda experimentava uma sensação de insegurança ao deixar
a residência na manha de sábado. E se o dr. van Elven tivesse esque-
cido? Mas não era o caso, ele estava esperando ao lado de fora. Abriu a
porta para que entrasse no carro e ela acomodou-se na poltrona
superconfortável.
Aquela manhã transcorreu muito bem. Escolheram a mobília da
sra. Brown com todo cuidado, indo de um vendedor a outro, até que só
ficou faltando comprar cortinas e o tapete. Pararam na porta de uma

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lojínha onde Sarah conseguiu comprar por bom preço a cadeira de


balanço que, tinha certeza, seria do agrado da sra. Brown.
— Vamos até o Harrods — disse o médico.
— Harrods? Não sabe que é a loja mais cara de todas? De qual-
quer modo, hoje está fechada. Conheço uma loja na Estrada do Co-
mércio ..
Preocupada com os gastos do médico, comprou um tecido rosado
para as cortinas e, devido ao preço barato, uma toalha de mesa.
Comprou também um tapete cinza, apesar de achá-lo um tanto caro.
Deu sua opinião, mas pelo visto o dr. van Elven fazia questão de que
fosse aquele mesmo. Quando voltaram para o carro ela observou que
ele gastara um bocado de dinheiro.
— Quem fará a cortina? — perguntou van Elven.
— Eu mesma. Posso pedir emprestada a máquina de Kate e den-
tro de mais ou menos uma hora ela ficará pronta. Fica muito caro
mandar fazê-la fora. — Fez uma pausa. — Dr. van Elven.. .
— Hugo!
Ela não disse mais nada, sentindo-se sem jeito, e olhou através da
janela, exclamando surpreendida: — Esta é a rua Newgate, não? Daqui
não podemos voltar para o hospital, não é mesmo?
— Não estamos indo para lá. Acabo de perceber que você não
chegará a tempo para a primeira chamada para o almoço e muito menos
para a segunda. Acho que podemos fazer uma refeição ligeira e logo em
seguida eu levarei você, isto é, se você está de acordo. . .
Ela voltou a sentir-se surpreendida, mas respondeu
controladamente:
— Obrigada, será ótimo. Hoje entro às duas e até lá temos algum
tempo.
Desceram as ruas Holborn e New Oxford, viraram na rua Regent e
pararam no Royal Coffee. Sarah tinha passado frequentemente diante
do Royal curiosa em saber como era por dentro; finalmente teria a
oportunidade de verificar. Entraram e o que viu não a decepcionou; era
muito bonito, sobretudo os espelhos. Estudou o cardápio e ficou a
imaginar o que pediria.
— Algo frio, e rápido — disse com o olho pregado no relógio.
Rápido não era palavra para se usar naquele ambiente, onde o al-
moço era algo que devia ser degustado com todo vagar.
Ergueram um brinde à recuperação da sra. Brown e enquanto be-
biam conversavam sobre a reforma do quarto. Abordaram uma va-
riedade de assuntos, que se prolongaram durante toda a deliciosa
comida e o café, até que Sarah olhou novamente no relógio e se as-
sustou:

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

— Oh, meu Deus! Tenho que ir correndo, o tempo passou tão de-
pressa!
O médico pagou a conta e disse com toda calma: — Não se
preocupe, você não vai se atrasar.
Não falaram muito no caminho de volta para o hospital, mas o
silêncio até que era agradável; ele não era o tipo de homem com quem
se precisava falar sem cessar. Não houve muito tempo para lhe
agradecer ao chegarem ao hospital, mas apesar de necessariamente
rápidas, suas palavras foram sinceras; ela, de fato, se divertira muito.
Ele a ouviu com um meio sorriso e disse: — Fico contente. Eu também
me diverti. Espero não estar abusando de sua boa vontade se lhe pedir
para acompanhar a senhora Brown quando eu a levar de volta para
casa. Sim, bem sei que ela poderia perfeitamente ir de ambulância, mas
tenho de devolver Timmy e posso perfeitamente vir buscá-la. Dez horas
está bem para você? Ah, e por falar nisso, descobri uma ótima
empregada que irá lá todos os dias.
Sarah respondeu que a notícia a deixava contente e que o horário
lhe convinha perfeitamente. Sentiu-se um pouco desapontada, pois uma
vez que a sra. Brown regressasse para casa não haveria mais
necessidade de ela assessorar o dr. van Elven. Pos imediatamente de
lado tais pensamentos; era uma deslealdade em relação a Steven,
apesar de que ela não mais o amava. Despediu-se com sobriedade e
mais tarde, sentada no consultório austero, tentou persuadir-se que
Steven surgiria a qualquer momento para dizer-lhe que tudo não
passara de um equívoco e que ele absolutamente não se casaria com
Anne Binns.
A semana voou. Viu Steven diversas vezes, mas nunca a sós. Pro-
videnciou para que isto não ocorresse, apesar de achar bem plausível
que ele, de sua parte, não quisesse falar com ela. Talvez, pensou es-
perançosa, ele se envergonhasse de si mesmo, apesar de não demons-
trar. Saiu bastante em seus momentos de folga. Suas amigas, aliás,
cuidavam para que isto acontecesse. Sempre havia alguém sugerindo
um cinema ou um jantar no Joe. Ela confeccionou as cortinas e a toalha
de mesa e levou-as consigo na sexta-feira à noite. Hugo não lhe dissera
nada a respeito da sra. Brown ou de seu quarto. De fato, pensando bem,
não conseguia se lembrar dele falando qualquer outra coisa que não se
referisse a seu trabalho.
0 sr. Ives a mandou entrar com um amistoso: "Olá, como vai?".
Sarah respondeu no mesmo tom e ele a precedeu ao subir a escada.
Ela parou no meio do caminho para mirar os consertos que ele havia
feito. Quando chegaram ao andar de cima Ives, com um gesto largo,
abriu a porta do quarto da sra. Brown e sorriu:
— Bem bonito, não é? — comentou satisfeito.

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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Sarah concordou. A despeito das rosas vermelhas, que pareciam


ocupar um espaço exagerado no momento em que ela entrou no quarto,
e da superfluidade do mobiliário, era exatamente tudo o que a sra.
Brown apreciaria. Ela desfez o embrulho e colocou seu conteúdo sobre
a mesa. Então, ajudada por Ives, instalou a cortina.
Ives deu-lhe um amplo sorriso e ela retribuiu. Agora que o conhe-
cia um pouco melhor, gostava dele; além do mais, ele tinha se mostrado
generoso em relação ao aluguel. Ele respirou ruidosamente e
prosseguiu: — O doutor tem muito bom gosto. Eu não conseguiria
escolher melhor.
Ela concordou, pensando na casa graciosa de Richmond, com
suas cores discretas e a linda mobília. Comunicou ao sr. Ives a que
horas pretendiam voltar e ele assentiu, pois já sabia.
— O doutor me falou ontem à noite, quando esteve aqui. Deu-me
uma garrafa de uísque, que só vendo. .. — Percebeu o ar intrigado de
Sarah. — É para eu guardar e de vez em quando dar um pouco para a
senhora Brown, apenas uma colherinha no chá. Também comprou uma
garrafa para mim. Vou vigiar a velha, conforme prometi; tenho o número
do telefone do doutor, caso haja necessidade.
Ele a precedeu na escada e despediu-se, após ter-se oferecido
para acompanhá-la até o hospital. Sarah, um tanto confusa com
tamanha solicitude, agradeceu e dispensou a companhia.
A sra. Brown estava sentada em uma cadeira de rodas na
enfermaria, a sua espera, quando ela foi buscá-la no sábado. Sarah
suspirou aliviada ao pensar que a velha teria uma linda surpresa quando
chegasse em casa. O dr. van Elven cumprimentou-as discretamente na
entrada do hospital, acomodou a sra. Brown no banco de trás do carro,
fez um sinal a Sarah para que se sentasse na frente e soltou Timmy de
sua cesta de vime. Nem Hugo nem Sarah olharam para trás enquanto o
carro seguia para a rua Phipps. A felicidade da sra. Brown era algo muito
íntimo e eles não tinham a menor intenção de bisbilhotar.
Havia vários vizinhos parados diante da casa quando chegaram e
levaram alguns minutos até conseguir entrar. O médico, sem falar uma
só palavra, levantou a velha senhora em seus braços. Ela tremia de
alegria e excitação e ele subiu os degraus da escada com todo cuidado,
imediatamente seguido por Sarah, Tímmy e Ives. Ao chegarem ao
patamar, Hugo fez um sinal a Sarah para que abrisse a porta.
A princípio a sra. Brown ficou sem entender o que tinha aconteci-
do, e ao se dar conta começou a chorar. Era o momento exato para se
preparar o chá. Sarah incumbiu-se da tarefa enquanto a sra. Brown se
controlava e se punha a agradecer, toda atrapalhada, detendo-se
somente quando sentou-se em sua poltrona nova com a xícara e o pires
na mão. Já tinha se acalmado bastante no momento em que a porta se

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abriu e uma senhora de meia-idade, de rosto muito agradável, entrou


toda alegre. Sarah não teve dificuldade em
reconhecê-la como aquela "boa senhora" que o médico descobrira,
e logo tornou-se óbvio que sua escolha fora das mais acertadas; as
duas haveriam de se dar muito bem. Chegou finalmente a hora de ir
embora; o dr. van Elven levou Sarah até o hospital, acompanhou-a até a
porta da residência, agradeceu-lhe com toda delicadeza e partiu.
Viu Steven na segunda-feira. Ele apareceu quando ela terminava o
atendimento dos pacientes da clínica de diabete do dr. MacFees. Este
acabara de sair e a sala estava mais ou menos vazia quando Steven
entrou, pegando-a de surpresa. Ela ficou olhando, esperando que ele
falasse primeiro, e sentiu-se surpreendida ao sentir que vê-lo, apesar de
doloroso, era algo perfeitamente suportável.
— Imagino que você espera que eu lhe peça desculpas — ele
disse finalmente. — Pois bem, não é minha intenção. Tudo que posso
dizer é que fiquei contente por termos acabado antes que eu descobris-
se que espécie de...
Ele percebeu seu olhar agressivo. — Que espécie de quê? — ela
perguntou, imperturbável. — Você devia tomar cuidado com o que diz,
Steven. Eu não hesitaria em esbofeteá-lo novamente!
Ele recuou. — Desejo-lhe muita alegria, é tudo que posso dizer!
gritou, atravessando a sala de espera vazia naquele momento. Ela ficou
olhando enquanto ele se afastava.
A clínica do dr. van Elven estava, como sempre, abarrotada de
gente. Sarah ia de um paciente a outro, pesava-os, levava-os ao labo-
ratório de análises, ao raio-X, ajudava-os a vestir-se e despir-se e no
íntimo desejava que o médico não manifestasse tanto apetite pelo
trabalho. Tivera de mandar duas de suas auxiliares para a enfermaria,
pois metade da equipe estava gripada. De vez em quando, ao ir à sala
de espera buscar mais um paciente, dava uma espiada nas enfermeiras,
todas ocupadíssimas com a clínica de ginecologia.
Dick Coles partiu assim que terminaram as consultas e Sarah co-
meçou a pôr em ordem tudo, apesar da vontade enorme de tomar um
chá. Era tarde demais para ir até a sala de estar das enfermeiras; teria
ela mesma que preparar seu chá quando voltasse para o quarto.
O médico estava sentado à escrivaninha, absorto com alguma coi-
sa. Sarah supôs que ele não tinha a menor pressa de ir para casa, era
óbvio que ele não tinha uma mulher à sua espera. .. Ela finalmente
terminou a organização, pegou a pilha de fichas que pretendia deixar no
escritório ao sair e encaminhou-se em direção à porta. Então disse: —
Boa noite, doutor — e parou imediatamente ao ouvir sua voz: — Volte
aqui, Sarah, e sente-se, Quero lhe falar.

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— Ela agiu conforme ele pedia, pois achava melhor obedecer


quando ele lhe falava naquele tom calmo. Sentou-se na cadeira diante
dele com as fichas no colo; sentia-se cansada, com sede e um pouco
desarrumada, mas seu rosto estava sereno. Olhou-o e sorriu ligei-
ramente, pois nos últimos dias principiara a encará-lo como um amigo.
Ele reclinou-se na cadeira, sustentou seu olhar, mas sem sorrir. E disse,
de repente:
— Sarah, quer casar comigo?

CAPÍTULO III

Suas palavras cortaram-lhe a respiração; ficou boquiaberta até que


ele disse, ligeiramente impaciente: — Por que ficou tão surpreendida?
Ambos combinamos muito. Você perdeu seu coração para Steven; eu...
eu perdi o meu há muitos anos. Ambos precisávamos de companhia e
de raízes. Muitos casamentos dão certo, pois se fundamentam no
respeito mútuo e no afeto. Não peço mais do que isto a você, pelo
menos até que sinta que tem algo a mais a me oferecer.
Ela disse sem maiores rodeios, com a surpresa estampada no
olhar e ainda tomada de espanto: — Você não quer o meu amor?
Mesmo que eu não amasse alguma outra pessoa?
Ele recostou-se na cadeira, com os olhos semicerrados. Ela não ti-
nha a menor ideia do que lhe passava pelo pensamento.
— Quero sua amizade — disse suavemente — gosto de sua com-
panhia; você é repousante, linda e inteligente. Acho que estamos de
acordo no que diz respeito aos aspectos importantes da vida. Se você
me aceitar nestes termos, acho que posso lhe prometer que seremos
felizes. Tenho quarenta anos, Sarah, e estou estabilizado em meu
trabalho. Posso lhe oferecer uma vida confortável, gostaria de com-
partilhá-la com você,. . e você.. . você tem vinte e oito anos. Não se trata
mais de uma menina que se apaixona e que deixa de se apaixonar a
cada dois meses.
Ele levantou-se e deu a volta na escrivaninha, ficando a seu lado.
Ela franziu ligeiramente o cenho, pois era desagradável lhe dizerem que
tinha vinte e oito anos. A contração aumentou. Ele sugerira que ela era
velha demais para se apaixonar!
— Perdoe-me se pareci muito prático, imagino que você não este-
ja com disposição para expandir seus sentimentos. Espero demais que
você diga sim. Devo estar fora na próxima semana, talvez, se não nos
encontrarmos seja mais fácil para você tomar uma decisão.

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Ela levantou-se lentamente e o encarou, esquecendo da papelada


que estava em seu colo.
— Você vai viajar? — Até mesmo a seus próprios ouvidos sua voz
soava desolada. Tentou se dominar e disse com firmeza proposital:
— Vou pensar no assunto. Fiquei um tanto surpresa. Você deve saber
disso, mas prometo que pensarei no assunto.
O mínimo que se poderia dizer é que suas palavras soavam inade-
quadas. Ela o olhou desarvorada e ele deu um passo em sua direção,
olhando a confusão formada por toda aquela papelada no chão.
Era surpreendente o quanto ela sentia falta dele, o que, pensando
bem, era um absurdo, pois raramente o tinha visto mais do que duas ou
três vezes por semana na clínica. Sempre tivera consciência do quanto
o apreciava, mas até agora não tinha se dado conta do quanto este
sentimento era forte. Talvez isto se devesse ao fato de que sempre
sentira que podia ser completamente natural com ele. Naquela primeira
noite ela permaneceu acordada até tarde, lembrando-se de como ele se
pusera de joelhos a seu lado e passado mais de uma hora ajudando-a a
pôr um pouco de ordem naquele caos, sem fazer a menor menção à
conversa precedente. Foi forçada a sorrir, ao recordar-se de tudo aquilo,
e adormeceu com o pensamento agradável de que ele a achava bela.
Teve muito pouco tempo para pensar em seus problemas nos dias
que se seguiram. A clínica recebeu muita gente e ela não se permitiu
divagações. Steven apareceu diversas vezes com o dr. Binns e o dr.
Peppard, e Sarah esforçou-se ao máximo para se mostrar amável e
distante em relação a ele. O dr. Coles, que se encarregou da clínica do
dr. van Elven durante sua ausência, estava naturalmente em outro
plano; ela não sentia a menor necessidade de ficar com um pé atrás em
relação a ele. Ele trabalhava por dois, presumindo que ela manteria seu
ritmo, e ainda assim conseguia falar a respeito de sua família.
— Quantos filhos o senhor tem mesmo? — perguntou. — Paul,
Mary, Sue, Richard. .
— Não se esqueça do menino que vem aí: Mike. Hugo já decidiu
que quer ser o padrinho deste também, como aliás é de todos. Ele
nunca se esquece de seus aniversários e do Natal. Temos de admoestar
as crianças, caso contrário ele sai e compra tudo que elas lhe pedem. É
uma pena que ele não tenha se casado.. . há pelo menos quinze anos
aquela garota o abandonou. Ele merece o que há de melhor e espero
que ele o consiga um dia.
Ela visitou a sra. Brown e achou-a feliz da vida, sentada ao lado do
aquecedor elétrico com Timmy no colo. Sarah preparou chá para as
duas e ouviu enquanto a sra. Brown tecia elogios a sua ajudante diária.
— É uma beleza — declarou — e não me custa um centavo tê-la
comigo.

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Sarah concordou que ela era mesmo providencial e se pôs a pen-


sar. Era surpreendente e ao mesmo tempo intrigante descobrir que
sabia tão pouca coisa a seu respeito... aparentemente até menos do que
sua anfitriã, que revelou ao longo da conversa que ele a visitara e agora
se encontrava na Escócia.
A sra. Brown não se cansou de elogiar van Elven, falando da sua
gentileza. Sarah concordou com um entusiasmo que a surpreendeu
muito mais do que à sra. Brown mas depois de refletir viu-se forçada a
admitir para si mesma que "gentil" era uma palavra totalmente
inadequada para descrever Hugo van Elven. Surpreendeu-se contando
os dias que faltavam para sua volta, que só se daria na sexta-feira. Por
uma ou duas vezes pensou em escrever para sua mãe pedindo-lhe
conselhos, mas como poderia buscar conselhos junto a uma pessoa que
jamais vira Hugo; alguém que, além do mais, ainda pensava que ela
casaria com Steven um dia? Era algo que teria de decidir por si mesma.
Somente na quinta-feira à noite ela admitiu para si mesma que já
havia tomado a decisão. Hugo van Elven representava um porto
tranquilo após a turbulência das últimas semanas; acreditava que tinham
boas probabilidades de serem felizes juntos; sentia-se completamente à
vontade em sua companhia e tinha consciência, sem que nisso
houvesse a menor presunção, de que ele gostava dela. Precisava de
uma esposa que dirigisse seu lar e o ajudasse a receber, que lhe fizesse
companhia. Ela achou que poderia fazer todas essas coisas muito
satisfatoriamente. Preocupava-a o fato de não existir amor entre ambos,
mas Hugo dissera que o companheirismo bastava, e isso parecia ser
tudo que ele desejava. Talvez, mais tarde, o profundo afeto existente
entre ambos poderia se transformar em algo mais profundo.
Foi dormir com este pensamento em mente, e quando acordou na
manhã seguinte sua resolução estava tomada. Ignorou quaisquer dú-
vidas que porventura pairassem dizendo a si mesma com firmeza que
elas careciam de importância.
Certificou-se de que estava certa no momento em que ele entrou.
Ele disse: — Boa tarde, senhorita — em um tom perfeitamente normal e
deu-lhe um breve sorriso. Voltou-se para a pilha de papéis sobre a
escrivaninha e disse resignadamente: — Meu Deus, de onde será que
surge tudo isto?
Sarah estava tirando a caixa do termómetro de dentro do armário.
— É a gripe — disse, e olhou com ternura sua cabeça inclinada. Tinha
ficado nervosa e quase intimidada com a ideia de vê-lo novamente,
tentando imaginar o que diriam, e ele estava tornando tudo mais fácil.
Ela prosseguiu: — Eles continuam no trabalho ou tomam remédio
caseiro porque não gostam de amolar o médico, até que ele finalmente

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é chamado e os pacientes vêm para ca com bronquite. Passou férias


agradáveis?
Ele fez que sim com a cabeça, distraído, sem encará-la.
Ela já estava se preparando para ir embora quando a clínica fe-
chou e nesse momento ele voltou. Ele e Dick tinham saído juntos,
deixando-a fazer a limpeza. Ele não dissera sequer uma palavra! Sentiu-
se decepcionada; não esperava que ele a acumulasse de perguntas no
momento em que se encontraram, pois não era desse tipo de homem,
mas esperava que lhe perguntasse se ela tinha chegado a uma decisão.
Apagou a luz da escrivaninha e o viu parado na porta.
Ele perguntou sem mais rodeios: — Você está cansada? — E
quando ela respondeu que não ele prosseguiu: — Ótimo. Posso con-
vidá-la para jantar? Quis lhe fazer este convite durante toda a tarde; mas
sempre que eu estava a ponto de falar você mandava entrar mais um
paciente ou enfiava uma pilha de fichas debaixo do meu nariz. Vamos
comemorar, Sarah?
Ao ouvir isto ela não pôde deixar de sorrir e aquela sensação de
infelicidade que a penetrara fundo atenuou-se um pouco. Talvez eles
não pudessem dar amor um ao outro, mas havia outras coisas —
compreensão, amizade, um prazer comum pelos mesmos interesses;
ambos tinham muito a oferecer.
— Sim, Hugo, vamos comemorar. A que horas devo ficar pronta?
— Que tal às sete e meia? Use uma roupa bem bonita, vamos ao
Parkes.
Sarah dirigiu-se ao seu quarto e os pensamentos cruzavam sua
mente. O principal deles referia-se a que vestido usar. Estava reme-
xendo o guarda-roupa quando Kate surgiu na porta do quarto. Apoiou-se
à parede, com a touca na mão.
— O que você está fazendo? — indagou Kate. — Você não
pretende passar a noite toda arrumando seus vestidos, não? É uma
pena Que eu não esteja de folga, estão levando um filme maravilhoso e
Jimmy está de plantão até domingo.
Sarah estava tirando o uniforme. — Sim, vou usá-lo hoje à noite.
Sua amiga olhou-a com interesse. Sarah! Você nunca...
— Vou jantar fora com Hugo van Elven e não ouse dizer a nin-
guém, Kate.
Kate parecia admirada. — Juro que não, mas isto é um fato histó-
rico! Ele jamais pousou o olhar em uma criatura do sexo oposto dentro
das paredes deste hospital. — Dirigiu-se com relutância para a porta. —
Estou atrasada. Venha me ver quando voltar. Vou ficar acordada. Divirta-
se! — exclamou, já no corredor.
Sarah estava no último degrau da escada quando subitamente lhe
veio o pensamento de que talvez estivesse cometendo um erro. Estava

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a ponto de dar as costas e voltar para o quarto quando viu Hugo no hall,
muito elegante em seu smoking e parecendo estar bem a vontade.
Estava conversando com a secretária da residência, uma das pessoas
mais fofoqueiras do hospital. Sarah cumprimentou-o rapidamente,
enquanto a mulher os devorava com o olhar.
Ele não lhe deu oportunidade de comentar sobre sua indecisão e
entabulou uma conversa corriqueira que durou até chegarem ao
restaurante. Lá estando puseram-se a decidir o que comeriam.
— Você quer se casar comigo, Sarah? — o tom que falava era
amistoso e ela teve consciência de que ficara desapontada, até que ele
sorriu, um sorriso acolhedor, obrigando-a a sorrir em retribuição. Disse,
um tanto encabulada:
— Sim, Hugo, quero. — Havia firmeza em sua voz, do mesmo
modo que em seu olhar, no momento em que se encararam. Aquela
agradável sensação de calor que ela havia sentido antes voltou e tor-
nou-se mais forte, ao notar a admiração nos olhos de Hugo. Ele le-
vantou o copo para um brinde e pela primeira vez em muitas semanas
ela se sentiu quase feliz. Talvez por isso ela se deu conta, duas horas
mais tarde, que não somente tinha ajudado Hugo a redigir o anúncio de
casamento, como também tinha aceito sua oferta de levá-la até sua
casa quando ela fosse para lá e, mais ainda, tinha-o convidado para
passar o fim de semana com ela. E finalmente concordara em se casar
com ele exatamente dentro de um mês.
Despediram-se diante das escadas da residência e ele a beijou li-
geiramente no rosto antes de abrir a porta para ela. Caminhou até o
quarto, a fim de não acordar Kate e despiu-se às pressas. Já na cama
deu-se conta de que talvez tivesse se excedido no champanhe, pois a
imagem de Steven se apagara o suficiente para que ela pudesse sentir
prazer no beijo de Hugo, mesmo sabendo que ele poderia ter ido um
pouco mais longe.
No entanto, quando ele veio buscá-la na manhã de domingo con-
tentou-se em lhe dizer um bem-humorado: "Olá. como vai?", acomodou
suas malas no porta-bagagens, fez com que ela sentasse a seu lado e
então, acenando para os rostos que os olhavam de várias janelas,
atravessou os portões sem a menor pressa. Ainda era cedo, o relógío
não marcava nove horas. Londres estava relativamente livre de tráfego
e era um dia suave de primavera. Acomodou-se no assento, certa de
que sua aparencia não podia ser melhor e antegozou os feriados que a
esperavam.
Telefonara para sua mãe na noite anterior. Esperava com isso que
a surpresa natural de seus pais fosse temperada por uma acolhida que
não parecesse óbvia demais. Seu pai, um coronel aposentado, era

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inclinado à mordacidade e dono de uma franqueza rude. Sua mãe era


uma mulher amável e um tanto distraída.
— Espero que você goste de meu pai e de minha mãe, Hugo.
— Não vejo porque não... é até muito mais provável que eles não
gostem de mim. Afinal de contas, sou um usurpador... — Olhou-a e
prosseguiu resolutamente. — Eles deveriam estar imaginando que você
e Steven se casariam.
Sarah respondeu cautelosamente, sem encará-lo: — Acho que
sim, apesar de nunca termos discutido o assunto. Eles. .. eles algumas
vezes tocam no assunto. Estiveram com ele somente duas vezes,
quando me levou até lá, porém em nenhuma dessas ocasiões ficou para
o fim de semana. Ontem, meus pais ficaram surpreendidos quando eu
lhes falei a nosso respeito, mas não sou nenhuma adolescente que age
irrefletidamente.
Ele concordou com ela gravemente e sem encará-la, o que não lhe
permitiu notar o brilho em seus olhos.
— Não, eu não diria que você age sem reflexão. Mas você é uma
linda mulher, Sarah. Sentirei muito orgulho de minha esposa.
— Espero que tenha sempre razões para isso. — Acrescentou
com toda espontaneidade: — Você também é muito bonito.
Hugo ultrapassou três carros vagarosos e prosseguiu pela estrada
quase vazia. Guiava com toda a calma, diminuía a velocidade do carro
nos cruzamentos.
Ele falava muito à vontade e Sarah sentia-se um pouco tensa, mas
antes que tivesse tempo de aprofundar esta impressão ele prosseguiu:
— Mais uma coisa. Tenho uma casinha nas montanhas, em Wester
Ross. Queria saber se você gostaria de ir para lá por uma ou duas
semanas após nosso casamento. É muito afastado e tranquilo e a
paisagem é magnífica.
— Sim, gostaria muito. Parece que é um lugar esplêndido.
Já estavam deixando para trás aquela imensa cidade que era Lon-
dres. Não faltava muito tempo para chegarem a Basingstôke.
— Hugo, não quero parecer bisbilhoteira, mas se você... se você
quiser falar a respeito dela, a respeito da moça a quem você amou, eu
não me incomodo; é um alívio falar a respeito destas coisas e eu sei
como você se sente.
Havia um ligeiro tremor em sua voz quando ele respondeu; ela
achou que isso se devia à emoção. — Obrigado, Sarah. Talvez eu lhe
fale a respeito dela, mas prefiro esperar que estejamos casados Por
algum tempo e que haja uma compreensão maior entre nós.
Não se tratava de uma rejeição, mas mesmo assim ela corou um
pouco, porque havia outras perguntas que ela desejaria fazer, e talvez

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ele fosse um homem que não apreciava ser interrogado. Perguntou em


tom hesitante:
— Não quer me falar a respeito de sua família? Minha mãe é in-
clinada a fazer perguntas. .. —hesitou. — Claro que sei dos mexericos
que dizem a seu respeito, mas não se deve dar crédito a estas coisas.
— Acho que não, mas creio que você sabe que não sou inglês.
Isto pelo menos é verdade. — Ele a olhou de relance e ela concordou.
— Meus pais vivem na Holanda, ao norte de Arnhem. Meu pai é um
médico aposentado. Tenho três irmãs, são dez anos mais jovens do que
eu. Todas são casadas e tem filhos. Duas delas vivem na Holanda e a
mais nova na França.
— Você não quer morar na Holanda?
— No momento não. Talvez, quando me aposentar, voltaria para
lá, mas isto vai depender também de sua vontade. Meu pai veio para a
Inglaterra na década de vinte. Era formado pela Universidade de Leiden
e também obteve um título em Cambridge. Foi lá que ele conheceu
minha mãe. Casaram-se e regressaram à Holanda, onde nasci. Meu pai
mandou todos nós para Richmond no começo de 1940, mas após a
guerra voltei para casa e segui os caminhos do meu velho: Leiden e em
seguida Cambridge. Foi lá que conheci Janet e decidi ficar na Inglaterra.
Eu tinha herdado a casa de Richmond e para mim já era um segundo
lar. Mesmo quando não havia mais nenhuma razão para eu permanecer
lá, tinha meu trabalho e meus amigos na Inglaterra e a Holanda fica
suficientemente próxima par eu ir quando bem quiser. Você gostaria de
saber de mais alguma coisa?
Ela sentiu-se tocada pelo tom com que ele falava e respondeu: —
Não. Obrigada por ter me contado tudo isto. Por favor, compreenda que
eu não tive a intenção de ser indiscreta, mas se vou casar com você
preciso saber dos fatos básicos de sua vida. Posso lhe assegurar —
prosseguiu, sentindo-se cada vez mais tensa — que não o incomodarei
com perguntas desnecessárias.
Ele não respondeu, mas para sua grande surpresa parou o carro
no acostamento da estrada. Parecia estar muito sério, mas ela sus-
peitava que interiormente ele estava zombando dela. Hugo vasculhou
seus bolsos e tirou uma pequena caixa. Havia um anel dentro, era um
diamante magnífico e o engaste era bem antigo. Levantou a mão
esquerda de Sarah e enfiou o anel em seu dedo.
— Pronto — disse ele — agora você tem a prova de minha firme
intenção de me casar com você.
— É extraordinário como ele me serve. E muito antigo?
— Está na minha família há mais ou menos duzentos anos. Não é
de se surpreender que sirva tão bem. Há uma lenda que diz que este

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anel só servirá no dedo da mulher destinada a ser esposa de um van


Elven.
Sarah levantou o dedo para admirar melhor o anel.
— Sinto-me como Cinderela. Muito obrigada, Hugo. Eu o usarei
com orgulho.
Ele inclinou-se e beijou-a no rosto, em uma carícia amistosa que
não exigia resposta. Pós novamente o carro em movimento.
Sarah achou o resto da viagem delicioso; sempre pensara que Hu-
go era taciturno, mas agora, afastado do trabalho, revelava-se uma
outra pessoa. Ele era divertido, respeitoso e carinhoso.
A pequena aldeia estava escondida entre as encostas das colinas.
Nela havia uma igreja grande, um pequeno restaurante, uma mansão,
um grupo de chalés vizinhos uns dos outros e belas residências
afastadas umas das outras. Tiveram de atravessar a aldeia até chegar à
casa de Sarah. Ela ficava longe da rua e suas pedras cinza con-
trastavam com as flores de primavera que povoavam o jardim. Hugo
entrou pelo portão escancarado e estacionou o carro diante da porta de
entrada, que foi imediatamente aberta pela mãe de Sarah, uma mulher
de uns cinquenta anos e que ainda tinha traços de beleza tão
esplêndidos quanto os de sua filha. Estava muito composta e bem
vestida. Nas mãos tinha uma faca e uma couve-flor. Sarah beijou-a
afetuosamente, tirou-lhe a faca e a couve-flor das mãos, com o ar de
quem já tinha feito isso antes e apresentou Hugo. A sra. Dunn apertou-
lhe a mão, estudando-o de uma maneira que poderia ter abalado um
homem menos seguro e então disse afetuosamente:
— Ele é tão melhor do que Steven, querida. — Sorriu para ambos.
— Entrem, meus queridos. Seu pai encontra-se na sala de estar.
Eles seguiram-na e Sarah sentiu a pressão da mão de Hugo na
dela. Era surpreendente, mas tinha certeza de que ele estava mais à
vontade do que ela. Seu pai estava sentado, lendo jornal, que ele pós de
lado no momento em que entraram. Beijou-a afetuosamente e encarou
Hugo enquanto ela o apresentava.
Aparentemente gostou do que viu, pois em seguida a uma série de
perguntas polidas, porém cautelosas, respondidas com idêntica
simpatia, sentiu-se à vontade para servir um licor.
À medida que o dia passava, tornava-se óbvio para Sarah que
seus pais achavam Hugo um futuro marido aceitável. Era uma pena que
ela não tivesse a oportunidade de se encontrar uns minutos a sós com
ele, a fim de descobrir o que achava dos velhos.
Sarah foi a primeira a descer e já havia feito o chá quando ele
apareceu. Sentaram-se na mesa ao lado da janela, enquanto os cães
ganiam impacientemente. Era uma bela manhã, o céu estava muito azul
e quase não ventava.

Livros Florzinha - 34 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

— Você está muito bonita, Sarah. Gosto do modo como você se


veste, até mesmo o uniforme de enfermeira você usa com elegância. —
Em seguida, indagou Hugo, com certa alegria: — Quem será que vou
colocar em seu lugar?
Sarah sentiu uma súbita surpresa ao perceber que não tinha abso-
lutamente pensado no assunto. A ideia de uma outra pessoa substi-
tuindo-a na clínica de Hugo desagradava-a inteiramente.
Saíram pela porta dos fundos, logo depois de terminarem o café.
Atravessaram o jardim atrás da cozinha, abriram uma portinha no muro
e seguiram um atalho que dava em uma estradinha, a qual por sua vez
levava até a colina diante deles. Ao chegarem lá em cima fizeram uma
pausa para admirar a vista.
— Magnífica, não é?—observou Sarah. — Às vezes, quando me
sinto infeliz, penso nesta vista.
— E você já se sentiu infeliz, Sarah?
— Você sabe que sim. Não foi somente nestas últimas semanas.
Acho que dentro de mim eu sabia que Steven não se casaria comigo,
mas eu fingia o contrário. Agora sei que fingi durante quase três anos.
Penso que superarei esta situação, talvez eu não o ame como você
amou sua Janet, pois acredito que tudo se resolverá, e você jamais
acreditou, não é?
— Acho que aquelas mexeriqueiras do hospital mantêm você
muito bem informada — foi tudo o que ele disse.
Ao voltarem, ele segurou sua mão, enquanto andavam, e contou
um pouco a respeito de seu trabalho. Era um homem ocupado; ao que
tudo indicava, ela o veria muito pouco durante a semana. Ele disse
essas palavras em tom pesaroso, como querendo indicar claramente
que passariam a maior parte das noites juntos e que os fins de semana
habitualmente eram livres.
Começaram a caminhar novamente. — O que você vai fazer com
a senhora Brown? — perguntou Sarah.
— Deixá-la ficar onde está o máximo de tempo possíyel. Na ver-
dade, acho que ela preferia morrer lá do que ir para o hospital.Acho que
lhe restam apenas uns dois meses, talvez até menos.
— Você não se incomoda se eu for visitá-la algumas vezes? Será
que encontraremos alguém que fique com Timmy?
Ele respondeu imediatamente: — Claro que você pode ir vê-la
quando quiser. Tenho de visitá-la quando voltarmos. Quanto a Timmy ,
ele poderá morar conosco. Alice ficará encantada.
Ele indagou suavemente: — Você teria usado véu e grinalda se
fosse casar com Steven?
Ela respondeu com toda lealdade: — Sim. Eu costumava pensar
nisto algumas vezes, como todas as moças. Mas não é esta a razão

Livros Florzinha - 35 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

pela qual quero um casamento bem íntimo. Parece uma tolice, pois não
tenho certeza de meus motivos; mas quando tiver, eu lhe direi.
Ela ficou sentida ao vê-lo partir à noitinha, no final de um dia que
lhe parecera curto demais. Tinham ido falar com o vigário a respeito do
casamento, e ao voltar para casa sentaram-se sobre o tronco caído de
uma árvore, ao calor do sol, e conversaram como velhos amigos.
Separaram-se também como velhos amigos, apesar de ele não a ter
beijado. Ao invés, tomou sua mão e disse de modo bem convencional:
— Voltarei no fim de semana, Sarah. Aproveite suas férias.
E partiu, deixando-a com o sentimento de que gostaria de ter ido
junto com ele.
A semana passou rapidamente. Sua mãe, mostrando um lado
inesperadamente prático de sua personalidade, levou-a a Salisbury para
comprar roupas, uma iniciativa aliás muito facilitada pela importância do
cheque que seu pai lhe presenteara. E o que era melhor, morava na
cidadezinha uma costureira incrivelmente competente. Sarah passava
uma boa parte do dia às voltas com aquela importante personalidade,
ouvindo-a com seu saboroso sotaque a discutir tecidos e figurinos, e,
mais tarde, submetendo-se pacientemente às provas intermináveis.
Se seus pais pensavam em Steven, exteriormente não davam a
menor demonstração. Ela ficou contente ao constatar que eles não
falavam incessantemente a respeito de Hugo. Ao que parecia, tinham-no
aceitado e estavam contentes. Do mesmo modo como ela ficaria
contente, dizia a si mesma com incómoda frequência, uma vez que
esquecesse Steven.
Sua mãe recebeu flores durante a semana, acompanhadas de um
cartão muito polido de Hugo e de uma carta para ela — uma carta
breve, escrita com sua letra pequena e quase ilegível. Ela a leu por
diversas vezes, mas nenhum vôo de imaginação conseguiria alterar seu
conteúdo. Suspirou sem se dar conta e a guardou na mesma caixa
perfumada com saches onde estavam seus lenços, dizendo-se que na
realidade era exatamente isto o que ela queria: ele prometera ser um
amigo e companheiro, que talvez, com a passagem dos anos, sentisse
afeto por ela, do mesmo modo que ela por ele, uma vez que Steven
estivesse fora de suas cogitações.
Ele dissera que chegaria a tempo de almoçar no sábado. A manhã
estava quente e linda; mesmo após ter tomado algumas providências na
casa, arrumado as flores e improvisado um penteado, ainda assim tinha
algumas horas pela frente. Assoviou para os cães e saiu com eles,
subindo a colina atrás da casa. Estava deitada no gramado, sem se
importar com o penteado que lhe dera tanto trabalho, quando Hugo
sentou-se a seu lado. Sarah levantou-se no mesmo momento.

Livros Florzinha - 36 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

— Hugo! Eu já estava para descer e ficar a sua espera. — Tentou


pôr um pouco de ordem nos cabelos. — Estou toda desarrumada.
Ele a estudou atentamente. — É assim que eu gosto. Passou uma
semana agradável? Ela respondeu que sim. — E você?
— Ocupado demais. O trabalho aumentou, sem você lá para me
dar sua preciosa ajuda.
Sarah fez uma pausa, desistindo de arrumar o cabelo. — Oh, Hu-
go, que gentileza de sua parte dizer isso.
— Não fui somente eu que senti falta, mas Peppard e Binns tam-
bém. Queriam saber se você continuaria a trabalhar depois de nos
casarmos.
Surgiu uma interrogação em seus olhos cinzas. — O que foi que
você disse?
— Um "não" enfático. Minha querida, você não precisa trabalhar.
— Sim, claro. Mas eu trabalharia com a maior boa vontade se
você alguma vez precisasse de ajuda.. . quero dizer, de ajuda financeira.
— Ela olhou-o de relance, mas seu rosto era inescrutável.
— Obrigado, Sarah. Você falou como uma verdadeira amiga. Para
falar a verdade, eu queria conversar com você a respeito de dinheiro.
Não me faz falta. Ganho bastante bem com minha clínica e herdei o
suficiente para me tornar independente. Mais tarde, quando nos
casarmos, eu a levarei até o velho Simms, meu advogado, e definiremos
tudo por escrito. Até lá você receberá a cada três meses uma mesada,
que começará a ser paga no dia de nosso casamento.
Ele mencionou uma soma que a deixou quase sem fôlego.
— Tudo isso? Para mím? Somente por três meses? É o suficiente
para um ano! — Subitamente ocorreu-lhe um pensamento. — Claro, isto
é também para a manutenção da casa.
— Não, não é. Você vai dirigir a casa como achar melhor e no fim
do mês me apresenta as contas. Se você estiver gastando demais eu
lhe direi. E se alguma vez precisar de dinheiro, Sarah, é só me pedir.
Ela respondeu obedientemente: — Sim, Hugo — apesar de não
ver como seria possível gastar todo aquele dinheiro. Sua voz devia ter
revelado suas dúvidas.
— Deixe que eu me preocupo com isto, Sarah, Recebi cartas de
meu pai e de minha mãe para você. Quer lê-las agora?
Ele acomodou-se a seu lado enquanto ela as lia. Eram cartas amá-
veis, talvez um pouco formais, porém eles jamais a tinham visto. Afinal
de contas, Hugo era seu filho e eles deviam saber a respeito de Janet.
Teve curiosidade em saber como eles eram na realidade. Claro que
ficaria sabendo, no dia do casamento.
Aproximavam-se do muro que cercava o jardim de trás quando ele
parou. — Sarah, tenho um presente de noivado para você.

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Pós uma pequena caixa em sua mão e ela abriu-a, feliz por ele ter
pensado nisso, e prendeu a respiração ao ver o par de brincos de
pérolas e brilhantes.
Ela disse com tremor na voz: — Hugo, você é bom demais para
mim. — Ficou na ponta dos pés e beijou-o no rosto.
A viagem de volta correu bem, apesar de Sarah inicialmente ter
dado uma marcha a ré mal executada e ter, em várias ocasiões, mudado
de marcha um tanto bruscamente, o que a fez ficar um tanto
encabulada. Hugo, entretanto, ignorou aquelas pequenas imperícias e
continuou a conversar como se nada tivesse acontecido, o que res-
taurou sua confiança em si mesma.
Sarah ficou rubra de prazer; teria ficado muito incomodada se ele a
tivesse criticado, apesar de ter plena consciência de que merecia. De
certa forma, a opinião que ele tinha a seu respeito importava-lhe muito.
Foi portanto em um clima de contentamento que ela o acompanhou até
a casa, para provar o jantar delicioso que Alice tinha preparado para
eles. Logo em seguida inspecionaram seu futuro lar. Percorreram os
quartos, muito contentes com a companhia um do outro. Era uma linda
casa; o mobiliário, apesar de antigo, tinha aspecto agradável; as
cadeiras eram confortáveis e as cores dos estofamentos, discretas. Ela
aprovou tudo o que viu e declarou que não tinha o menor desejo de
alterar o que quer que fosse. Foram até o andar de cima e ela olhou
com uma certa preocupação para o lindo quarto que lhe era destinado.
Ficava nos fundos da casa e tinha um pequeno balcão que dava para o
jardim.
O quarto de Hugo era menor, e apesar de a mobília ser igualmente
bela, ele parecia um tanto frio. Sarah decidiu providenciar para que
sempre houvesse flores lá. Havia outros quartos, todos igualmente
encantadores; até mesmo o pequeno sótão tinha sido mobiliado com
capricho. Ao descerem as escadas, ela parou ao lado de uma grande
porta dando para o patamar; tinha notado sua existência quando
subiram, porém Hugo passara por ela sem se deter.
— Para onde dá esta porta? — quis saber, e sentiu-se desaponta-
da, quando ele disse: — Para nenhum lugar em particular.
— O que, na realidade, não fazia o menor sentido. Simplesmente
ele não queria que ela soubesse. Ela prometeu-se a si mesma que
descobriria assim que pudesse.
Ele a precedeu na escada e Sarah seguiu-o, ruminando o
pensamento desagradável que provavelmente ele havia feito tudo aquilo
para Janet. Um tanto deprimida, sugeriu que talvez já estivesse na hora
de voltar para o hospital.
Parecia-lhe estranho usar novamente o uniforme e ver Hugo reas-
sumir a clínica. Ele se dirigia a ela com sua habitual formalidade e

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depois que o primeiro paciente foi atendido saiu em companhia de Dick,


para voltar após dez minutos.
— E uma sorte que esta situação se prolongue por pouco mais de
uma semana — observou da porta — pois acho ridículo e difícil chamá-
la de senhorita.
— Pensei que você já tivesse saído — disse Sarah, sentindo-se
um tanto aliviada. — Sei que é uma bobagem, mas você. .. você aqui é
diferente, sabe? Parece que nada disso é verdade. — Pegou uma pilha
de papéis e preparou-se para sair.
— Neste caso, é melhor partirmos para a realidade, não é mesmo,
Sarah? — Ele tinha se aproximado dela. — Quando tempo você leva
para se trocar?
— Dez minutos; não, quinze. — Ela o encarou com um brilho no
olhar. Subitamente desejou que ele a beijasse. E foi o que ele fez. Seus
lábios tocaram ligeiramente os dela.
— Eu a espero diante da residência. Não é preciso se vestir bem.
Iremos visitar a senhora Brown e em seguida procuraremos um lugar
tranquilo para comer — disse Hugo, afastando-se.
Esta foi a primeira de muitas noites que se seguiram. Algumas
vezes iam até Richmond, comiam na sala de jantar tão silenciosa e em
seguida conversavam. Tinham tanta coisa a dizer e Sarah achava o
tempo tão curto. Por duas vezes foram ao teatro, pois Hugo achava que
ela deveria ter a oportunidade de distração.
Um dia foram ao quarto rosado da sra. Brown, onde lhes foi servi-
do um chá muito forte e Sarah ganhou uma toalha de presente de
casamento.
Também ganhara um presente de casamento das colegas do
hospital e passou sua última noite indo de enfermaria em enfermaria,
despedindo-se de todos. Quando se encaminhava para o setor de cirur-
gia a fim de falar com as enfermeiras de plantão encontrou-se com
Steven. Por ela, teria passado rente, mas ele a deteve, estendendo a
mão.
— Imagino que você espera que eu lhe deseje felicidades, Sarah.
Pois não espere, não; você é uma tola. Van Elven não é homem para
você. Ele ainda está envolvido com seu primeiro amor, e você ainda não
me esqueceu.. .
Sarah libertou-se com um repelão e disse furiosa: — É mentira! —
Enraivecida, tentou deter as lágrimas que lhe vinham aos olhos. A voz
de Hugo, tranquila como sempre, mas carregada de ameaças, soou
atrás dela:
— Meu amigo, ao que parece tenho de lhe pedir mais uma vez
para se afastar. Em seu lugar eu o faria, caso contrário me verei obri-
gado e lançar mão da persuasão.

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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Steven deu as costas e ela começou a chorar. Quando se deu


conta, estava nos braços de Hugo, procurando ser reconfortada. Após
alguns momentos levantou o rosto banhado de lágrimas e disse furiosa:
— Tenho tanta vergonha de mim, Hugo. Não estou chorando por-
que me sinto feliz. É que estou tão zangada.. .
Limpou os olhos com o dorso da mão, como uma criança, e
aceitou seu lenço. Em seguida deu-lhe um sorriso triste. — O que você
estará pensando de mim?
— Quem sabe um dia eu lhe digo... Onde é que você vai? Sei que
tínhamos combinado não sair hoje à noite, mas quando cheguei em
casa mudei de ideia e vim saber se você não gostaria de mudar de
planos. Vê como já me habituei a sua companhia? Podemos ir jantar em
algum lugar.
— Gostaria muito. Eu também senti falta de você. Ainda preciso
me despedir de algumas colegas. Posso acabar de arrumar minhas
coisas amanhã. Não viajaremos antes das dez, não é mesmo? Você não
quer vir comigo?
Ele não respondeu; simplesmente tomou-a pelo braço e acompa-
nhou-a ao longo do corredor comprido e deserto. Esperou enquanto ela
se despedia e voltou com ela para a residência.
Estava pensativa, sentada no carro ao lado de Hugo, em plena via-
gem de núpcias. Ele era bom e lhe dava todo apoio; era como se tivesse
sabido da incerteza que se apoderou dela nos últimos momentos. Tinha
se levantado cedo e levado os cães para dar um passeio, e a meio
caminho da colina Hugo estava a sua espera.
— Quem nos visse neste estado jamais imaginaria que dentro de
uma hora vamos nos casar. — Foi tudo o que ele disse, e em seguida
começou a abordar diversos outros assuntos. Quando regressaram à
casa, o ato de se casar com ele parecia a Sarah algo extremamente
sensato e simples.
Gostou dos pais de Hugo. Tinham sido muito bons e se mostraram
encantadores para com os pais dela. Se tinham sentido alguma dúvida
em relação ao casamento do filho, não deram a menor demonstraçao.
Seu vestido fizera muito sucesso, e apesar de Hugo não ter tido tempo
de lhe dizer qualquer coisa nesse sentido, ela sabia que ele gostara
muito. Ela fitou a aliança de ouro em seu dedo e olhou de relance para a
mão de Hugo no volante. Hesitara em lhe perguntar se ela também
podia lhe dar um anel de presente, e ficara surpresa quando ele
concordou e sorriu. Ela retribuiu o sorriso e acomodou-se no assento,
enquanto percorriam a primeira parte de sua jornada em direção a casa
de Wester Ross

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CAPÍTULO IV

Era pouco mais de uma e meia da tarde e eles haviam se casado


às dez e meia da manhã. O dia estava ensolarado e quente e o campo
se apresentava verdejante, Hugo lhe dissera que deveriam passar a
noite em Windermere, o que representava uma viagem de uns trezentos
quilómetros.
— Você também gostou do casamento, Sarah? — perguntou Hu-
go.
Após breve reflexão, ela descobriu, surpresa, que sim. Suas
amigas casadas haviam lhe contado que mal haviam se dado conta de
que estavam se casando, preocupadas com o véu, as damas de compa-
nhia e em saber se o padrinho não esquecera a aliança. Mas ela não
usara véu, não tivera damas de companhia e o padrinho, um primo de
Hugo que viera da Holanda especialmente para a cerimonia, não
demonstrou o menor nervosismo durante a cerimónia; tinha se mantido
tão calmo quanto o noivo, que se mostrara muito tranquilo. Ela se
sentira livre para mergulhar em seus próprios pensamentos, sabendo
que tudo que precisasse ser providenciado por Hugo seria executado
sem confusões. Respondeu pensativa:
— Gostei, sim, e muito.
— Meus pais gostaram de você. Prometi que iremos visitá-los an-
tes do verão acabar. Assim vocês poderão se conhecer melhor. Apro-
veitaremos a viagem e eu lhe mostrarei um pouco da Holanda.
— Fale-me a respeito deles e da Holanda também.
Ela sentiu-se feliz, ouvindo sua voz profunda, admirada por ter tido
a tola ideia de que ele era taciturno. Quando ele se punha a falar
mostrava um humor requintado, desprovido de malícia, e uma maneira
divertida de descrever as coisas e as pessoas. Deixou-a intrigada o fato
de, mesmo tendo o coração partido, apreciar tanto a companhia de
Hugo. Chegaram a Tewkesbury sem que ela tivesse decifrado o enigma.
— A viagem é monótona, mas estamos andando depressa — foi o
comentário de Hugo no momento em que acelerou o carro a quase cem
quilómetros por hora. Mas a viagem não era absolutamente monótona.
Sarah esqueceu todos os seus problemas. Sentia-se feliz, contente e
encantada com seu companheiro. Era como estar com um amigo de
muitos anos, a quem ela podia confiar todos os seus pensamentos.
Corrigiu-se a tempo: quase todos. Tinham conversado com toda
franqueza a respeito do futuro e Hugo deixara claro, do modo mais gentil
possível, que estava disposto a esperar indefinidamente, até o momento
em que ela sentisse que Steven já não importava tanto. Ele fizera esta
declaração de uma tal maneira que ela ficou com a impressão de que

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ele não se importava muito e sentiu-se um tanto magoada. Refletindo


melhor, considerou-se uma tola, pois se Hugo lhe tivesse dito que a
amava, ela o repeliria imediatamente. Desposar alguém apaixonado por
você quando você ama outra pessoa parecia-lhe o máximo de fraqueza.
Na realidade, ela e Hugo tinham uma grande consideração um pelo
outro e nada mais, e era nessas bases que eles haviam construído seu
casamento.
— Você não se sentiu nem um pouco nervoso, não é, Hugo? Ou
excitado? — Disse Sarah repentinamente. — Claro, não é exatamente
como. . . como.., Bem, acho que a gente sente de modo diferente
quando está apaixonada por alguém.
— Imagino que sim, mas eu não sou nervoso ou excitável por na-
tureza.
A manhã seguinte estava ainda mais bela do que a anterior. Per-
correram um caminho novo e conversaram a respeito do prazer de se
levantar cedo, algo a que já estavam acostumados, pois seu trabalho a
isto os obrigava. O sol estava forte, apesar de o dia estar se iniciando.
Pararam para almoçar em Crianlarich, com os montes Ben More e
Ben Lui levantando-se majestosos a sua frente, e chegaram a Inverness
atravessando paisagens que deixaram Sarah extática e sem fala. A
grandeza de tudo aquilo, entretanto, de forma alguma tirou-lhe a
disposição para o chá. Ela tinha tantos comentários a fazer que Hugo
teve de pressioná-la para aceitar uma segunda fatia de bolo de frutas.
— Ha quantos anos você tem o chalé?
— Cínco, não, seís. Vou lá duas vezes por ano e sempre que
posso, três.
— Nós viremos... isto é, eu virei com você?
Ele levantou as sobrancelhas, em sinal de surpresa. — Minha
querida, claro, a menos que você prefira fazer algo diferente.
Sarah sacudiu a cabeça. — Mal posso esperar a hora de chegar
lá.
— Estamos quase chegando — disse ele e ela conseguiu sentir a
felicidade em sua voz.
— É belo, solitário e tudo o mais fica parecendo irreal. — Ela es-
tendeu o pescoço, a fim de poder alcançar com a vista o máximo de
toda aquela grandeza em torno deles.
O lago Duich parecia mais belo do que nunca à luz do poente. As
montanhas de Kintail elevavam-se a uma distância próxima, como se
fossem um anteparo esplêndido e gigantesco para um cenário natural
de incrível beleza. Após percorrerem por alguns quilómetros a beira do
lago, Hugo tomou uma pequena estrada sinuosa, que parecia não levar
a lugar algum, mas que na verdade passava por um pequeno
agrupamento de chalés, erguidos na encosta da colina. Ele parou diante

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do último chalé, desceu e bateu à porta. Dissera a Sarah que a sra.


MacFee era uma das mulheres mais notáveis que havia conhecido, e
quando ela perguntou por que, respondeu:
— Ela tem quarenta anos, cabelos cor de palha, um rosto muito
franco e é bela. Seus filhos parecem uns anjos e o marido é o melhor
pastor da região. Está contentíssima com a vida que leva, e ele também.
Cada vez que estou com eles fico em paz comigo mesmo.
Sarah imediatamente compreendeu o que ele queria dizer quando
a porta se abriu e a sra. MacFee apareceu. Ela era desprovida de
beleza, e ainda assim parecia linda. Caminhou diretamente até o carro e
dirigiu-se a Sarah falando com aquele seu sotaque gostoso das
montanhas. Entregou a Hugo uma chave enorme e antiga e ficou
acenando para eles, enquanto começavam a subir a colina.
— Costumo deixar a chave no oco de uma árvore, ao lado do
chalé — explicou Hugo — e a senhora MacFee também, mas hoje a
chave estava em seu poder. — Lançou-lhe um olhar malicioso. — Todo
mundo gosta de uma recém-casada, até mesmo em um lugar como
este.
— Você se engana. As pessoas gostam é de ver a noiva
chegando na igreja, toda vestida de branco.
— Falando nisso, Sarah, seu vestido era perfeito e o mesmo digo
daquele chapeuzinho. Você estava linda.
— Obrigada, Hugo — respondeu um tanto emocionada, e prosse-
guiu: — A senhora MacFee é exatamente como você a descreveu, e
percebo o que você quis dizer. Como é que você faz com a comida?
— Depois de tantos anos desenvolvemos um sistema que
funciona muito bem. Quando vou embora, a senhora MacFee sobe até o
chalé, compra tudo o que é preciso para a casa, arruma as camas,
varre, faz uma limpeza a fundo e deixa tudo na mais perfeita ordem e de
tal modo que, se eu chegasse repentinamente, poderia passar pelo
menos um mês no maior conforto. MacFee cultiva uma horta ao lado do
chalé.
Os últimos metros eram bem acidentados e ele diminuiu ainda
mais a marcha do carro. Já se via o chalé, era todo pintado de
branco, o teto era de ardósia esverdeada e havia pequenas janelas de
cada lado da porta. Erguia-se solitário no fim de uma alameda, mas Sa-
rah não teve a sensação de isolamento ao percorrê-lo. Era sólido,
acolhedor e parecia ter surgido das montanhas que o rodeavam. A porta
da frente abria-se para um hall minúsculo, do qual passava-se para a
sala de estar, agradavelmente mobiliada: cadeiras confortáveis, algumas
mesinhas, uma estante cheia de livros dos dois lados da lareira e uma
variedade de pequenos adornos, tão bem dispostos que a pequena sala
parecia muito maior do que era na verdade.

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— Vamos primeiro desarrumar as malas e em seguida


desceremos até Dornie, a fim de jantar. Lá existe um hotelzinho
esplêndido — disse Hugo, depois de mostrar toda a casa para Sarah.
Sarah ficou desapontada; era tão boa cozinheira quanto enfermei-
ra e estava ansiosa para exibir seus talentos, porém não disse nada.
Afinal de contas, ficariam no chalé pelo menos por duas semanas,
tempo mais do que suficiente para ela demonstrar sua habilidade na
cozinha.
O tempo continuava esplêndido e os dias transcorriam longos; pa-
reciam ainda maiores pelo fato de eles se levantarem cedo. Era um
novo Hugo, que Sarah ainda estava começando a conhecer, que se
levantava pouco depois das seis, fazia chá e trazia-o para ela na cama.
Quando descia para o café da manhã já o encontrava vestido, mexendo
no jardim, cortando lenha, arrancando o mato ou aparando a cerca viva.
Ele era dono de uma energia incomum, da qual ela jamais suspeitara.
Cada dia eles faziam algo diferente. De vez em quando passavam
horas pescando, um esporte no qual Hugo era insuperável, mas do qual
Sarah não gostava muito, pois tinha implicância em tirar o peixe do
anzol. No entanto, mantinha-se no mais absoluto silêncio enquanto ele
se empenhava em apanhar uma truta. Ele levou-a até Livemess um dia,
e ela comprou uma boa quantidade de lã, a fim de tricotar um suéter
para ele. Isto, justamente com alguns livros trazidos do chalé,
mantinham-na ocupada enquanto Hugo pescava. Eles podiam ficar sem
falar durante uma hora, o que absolutamente não importava, pois seu
senso de companheirismo tinha se aprofundado com a passagem dos
dias. Não havia necessidade de conversar, mas era agradável
contemplá-lo de vez em quando e vê-lo com o cachimbo na boca, muito
parado e enorme em suas botas de cano alto, concentrado no ato de
pescar. _
Mas não havia somente a pesca. Foram a Skye e passaram a
noite em Portree, levando o carro a fim de que Sarah tivesse
oportunidade
de ver o máximo possível da ilha. Foram também ao lago Garve e
Sarah contemplou boquiaberta as cataratas de Rogie. Ficou muda
diante de tanta beleza e segurou a mão de Hugo. Após um momento,
ele passou os braços em torno de seu ombro e puxou-a para junto de si.
Apesar de o gesto ser um tanto casual, Sarah sentiu-se um pouco
perturbada, mas a emoção se dissipou no instante em que ele a trouxe
de volta à terra, mencionando dados e cifras bem prosaicas.
Regressaram finalmente ao chalé. Depois do jantar sentavam-se na
pequena sala de estar, ainda iluminada pelos reflexos do sol de uma
tarde de verão. Mais tarde, quando estava deitada, Sarah não conseguiu
se lembrar do que tinham conversado. Pensava unicamente nas coisas

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intermináveis que tinham para dizer um ao outro. Por um brevíssimo


momento pensou em Steven e ficou a imaginar se Hugo também
pensava em Janet. Já meio adormecida, desejou que isto não
acontecesse. Bocejou, ouvindo Hugo descer as escadas, fechar as
portas e janelas, e embalada por estes sons familiares adormeceu.
Ficaram no chalé durante duas semanas, e quando finalmente
trancaram a porta e colocaram a chave no oco da árvore no jardim,
Sarah sentiu-se como se tivesse virado a última página de um livro
particularmente agradável. Tinham se despedido da sra. MacFee na
véspera, mas mesmo assim ela estava na porta de seu chalé acenando
para eles, quando passaram por lá de manhã bem cedo.
Chegaram a Richmond na noitinha do dia seguinte e ao sair do
carro Sarah mais uma vez admirou aquela casa. Haviam rosas no jardim
da frente e as flores rosadas de uma trepadeira davam um toque alegre
à fachada da casa. Foram acolhidos pela ternura discreta de Alice, que
lhes serviu ao jantar uma esplêndida lagosta à Ther-midor e morangos
com creme, à luz dos candelabros. Em seguida passaram para o
escritório de Hugo, onde uma pilha de correspondência o aguardava.
Sarah devorou as poucas cartas que havia para ela e ficou sentada,
sem fazer absolutamente nada. Havia uma carta de Kate, escrita às
pressas, contando animada que Jimmy conseguira o lugar de Steven,
pois este iria se demitir após seu casamento com Anne Binns. Esta
notícia vinha sublinhada, com pontos de exclamação, mas se perdia
entre as dezenas de detalhes dos planos de casamento de Kate. Sarah
pós a carta de lado, decidida a convidar Kate para passar o dia com ela.
Seria simpático ouvir todas as novidades, apesar de que a vida do
hospital nunca lhe parecera tão remota. Havia também cartas de seu pai
e de sua mãe, bem como de seu irmão, que viera de seu regimento na
Alemanha para o casamento.
A voz de Hugo interrompeu seus pensamentos: — Algo de impor-
tante em suas cartas? — indagou preguiçosamente.
Contou-lhe a respeito de Kate e também a respeito de Steven e
ele disse:
— Ah, sim. Fico contente que Jim tenha conseguido o emprego,
troquei umas palavras com Binns a respeito dele.
Ela exclamou, comovida: — Mas quanta bondade, Hugo, você é
tão generoso!
Estava sentada em uma poltrona de couro, iluminada pelo reflexo
vermelho de um abajur. Sorriu para ele, sem se dar conta do quanto
estava bela naquele momento. Ele levantou o olhar rapidamente e
voltou a ler sua correspondência. Quando falou era á respeito de um
assunto inteiramente diferente.

Livros Florzinha - 45 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

— Fomos convidados para comemorar o noivado de Anne Binns.


Será na próxima semana. Você quer ir?
Ela o olhou ansiosamente. — Se fosse sozinho, isto é, se você
tivesse recebido este convite antes do nosso casamento, você teria ido,
não é mesmo? Muito bem, iremos mas não me deixe sozinha, Hugo.
Ele pôs as cartas de lado e recostou-se na poltrona. — Não, isto
não acontecerá, Sarah, Mas é uma boa ideia mergulhar até o fundo, por
mais fria que esteja a água.
Levantou-se e puxou uma cadeira, sentado a seu lado. — Ainda
não abri essas cartas. Com certeza haverá outros convites. Vamos abri-
las juntos e decidir o que faremos? Há também cartas de minha mãe e
de minhas irmãs. — Jogou algo ao seu colo. — E isto aqui.
Era um cartão-postal. Nele se via um par de noivos incríveis, sor-
rindo um para o outro sob um arco feito de ferraduras. Todo o espaço
disponível era preenchido por querubins e rosas em botão.
— A senhora Brown! — disse Sarah no mesmo instante. — Deus
a abençoe!
No verso havia umas quadrinhas absolutamente inacreditáveis e
ao pé delas a sra. Brown havia escrito, com letra bem caprichada:
"Ao querido doutor e à enfermeira, sabendo que serão muito feli-
zes."
Sarah evitou o olhar do marido. — Acho que ela não pensa em nós
como marido e mulher. .
— E você? — Sua pergunta foi inesperada.
Ela respondeu, um tanto confusa. — Não sei... Gostaria de fazer-
lhe uma visita dentro em breve.
— Nada mais fácil. Venha comigo para a cidade logo de manhã.
Eu a deixo em algum lugar, você faz compras e nos encontramos para o
almoço. Enquanto eu estiver na clínica você pode tomar chá com ela.
De qualquer modo, gostaria de dar uma olhada nela.
O sol da manha estava uma glória. Sarah aproveitou para estrear
um vestido novo, de linho cinza-prata, todo pregueado. Hugo deixou-a
diante de uma grande loja. Ela ficou a olhá-lo enquanto ele se afastava,
sentindo-se um tanto perdida, e em seguida voltou-se para examinar as
vitrines tentadoras. Ele havia se despedido alegremente e a insitara a
comprar o que quer que lhe agradasse e pusesse em sua conta.
Quando ela observou que ninguém na loja a conhecia, ele informou-a
tranquilamente que já havia tomado providências em relação ao
assunto. Mal passava das nove e meia. Sarah vagou pela seção de
roupas e em seguida foi até a seção de ma-quilagem, onde passou uma
agradável meia hora escolhendo novos batons. Não custavam muito
caro e ela tinha algumas libras na bolsa. Quando abriu-a encontrou um
pequeno maço de notas enroladas e presas por um elástico, juntamente

Livros Florzinha - 46 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

com um bilhetinho de Hugo, escrito com aquela sua letra quase


indecifrável, dizendo que era um adiantamento de sua mesada.
Ele estava a sua espera, apesar de ela ter feito o possível para ser
pontual, e levou-a até o bar, onde ela admirou a vista enquanto to-
mavam uísque e ele não falava de nada em particular, daquele seu jeito
tão característico. Sarah olhou a sua volta enquanto bebericava, e
sentiu-se contente por estar usando aquele vestido e o chapéu de palha
branco com uma fita cinza: era um chapeuzinho bem elegante e a fita
combinava com seus olhos, bem como o vestido.
Hugo deixou Sarah na rua Phipps, esperando pacientemente no
carro até que o sr. Ives abrisse a porta e a fizesse entrar no hall escuro.
Ela se voltou para acenar e ele retribuiu com gesto casual, afastando-se.
A sra. Brown ficou encantada em vê-la, mas seu prazer não escon-
dia o fato de que ela não estava bem. Seu rosto mostrava-se muito
pálido e vincado; Sarah notou que os tornozelos estavam muito in-
chados. Estivera por duas vezes no hospital, informou a Sarah, levada
até lá por alguém a quem ela descreveu como . .. "um sujeito gozado,
com um chapéu ainda mais engraçado", a quem Sarah reconheceu
como um dos enfermeiros destacados para servir na ambulância. O dr.
Coles a examinara e sugerira que ela devia voltar para o hospital, porém
recusara. Comeu um bombom dos que Sarah lhe trouxera e perguntou a
respeito da lua-de-mel. Equanto tomavam chá, Sarah lhe falou á
respeito do chalé e quando a sra. Bròwn comentou, um tanto simplória,
que pela descrição parecia um dos parques de Londres, ela sentiu que
estava a ponto de chorar.. . A sra. Brown, no entanto, a despeito de não
estar fazendo progresso algum, parecia feliz. Deu as boas-vindas a
Hugo quando ele chegou, submeteu-se de boa vontade a um exame
detalhado e sentou-se, com Timmy ao colo, respondendo a muitas
perguntas. Quando ele finalmente terminou, ela disse tranquilamente: —
Não estou nada bem, doutor, e não adianta o senhor me dizer para ir de
novo para o hospital; prefiro ficar aqui com o Timmy.
Hugo estava sentado ao lado da cama e o estetoscópio pendia-lhe
de uma mão. Disse bondosamente: — Pois então a senhora ficará aqui.
Seu médico, o dr. Bright, não é este o nome? já está de volta. Vou pedir
a ele que venha visitá-la.
Sorriu e levantou-se. Sarah, que o observava em silêncio, sentiu
que se alguma vez ficasse doente haveria de querer que Hugo cuidasse
dela e mais ninguém. Ele a olhou de relance; ela levantou-se e se
despediu. A sra. Brown olhava de um para outro.
— E tão bom vê-los felizes! — disse a senhora. — Volte novamen-
te, minha querida, e o senhor também, doutor.
A caminho de casa Sarah perguntou: — A senhora Brown vai mor-
rer logo?

Livros Florzinha - 47 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

— Sim, dentro de poucas semanas. Poderíamos prolongar um


pouco mais sua vida no hospital, mas ela detestaria aquele lugar.
Ela indagou, cautelosa: — Gostaria de ir vê-la mais vezes. Você
não se importa?
— Minha querida, por que deveria me opor? Sou seu marido, não
seu guardião. Divertiu-se com as compras?
Ela sentiu-se esnobada e não sabia por que; talvez ele não
gostasse que ela fizesse demasiadas perguntas a respeito da sra.
Brown, mas afinal fazia mais de um ano que conhecia a velha.
Respondeu que sim, que a tarde fora muito agradável, e lembrou-se do
dinheiro que tinha encontrado na bolsa. Não parecia o melhor momento
para falar a respeito do assunto. Aquela noite ficaram em casa,
conversando a respeito de vários assuntos da maneira mais casual,
Sarah iniciou seu bordado e sentou-se ao lado da janela aberta. A
conversa desviou-se para a casa e os assuntos corriqueiros do dia-a-
dia, a tal ponto que ela sentiu-se como uma verdadeira esposa.
Os dias passavam rápida e suavemente. Sarah embarcou em uma
rotina tranquila e descobriu que aquilo lhe dava muito prazer. Achara
que sentiria falta da vida ocupada do hospital, mas tal não se dera. Alice
tinha se revelado uma jóia de criatura, tomando a si todos os encargos
da casa, mas sem deixar de recorrer a suas opiniões, de maneira que
dentro de uma semana começou a sentir onde estava pondo os pés. Ela
se encarregou de providenciar as flores para a casa, tirar o pó dos
móveis, inspecionar gavetas e armários e duas vezes, quando Alice
estava de folga, cozinhar.
Ela guiou o carro por diversas vezes e descobriu que não ficava
tão nervosa como esperava. Num ímpeto de ousadia, certo dia guiou até
o hospital e trouxe Kate para Richmond. Sua amiga tinha muito o que
contar a respeito de todos do hospital, com exceção de Steven. Quando
Sarah perguntou, sem demonstrar a menor emoção, quando ele ia
embora, Kate encarou-a surpreendida. — Sarah, você não está... você
ainda não.. . — surpreendendo olhar de Sarah. — Não. Não é possível.
Seu Hugo é maravilhoso, você faz inveja a todas as mulheres daquele
hospital. Você é feliz?
— Muito — disse Sarah rapidamente, sem se dar tempo para
pensar no assunto. — Só perguntei porque Hugo e eu vamos ao noi-
vado de Steven e Anne na semana que vem.
Kate era toda ouvidos. — O que você vai usar? — quis saber. Era
um tópico interessantíssimo de ser abordado e ocupou-as até que
chegou a hora de ela ir ao encontro de seu Jimmy. Sarah conduziu-a até
o hospital com muito cuidado, sobretudo porque era a hora em que o
comércio fechava, e ao regressar para casa estava tão entregue a seus
pensamentos que seu medo de guiar atenuou-se consideravelmente.

Livros Florzinha - 48 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Hugo não viria jantar em casa e ela não tinha necessidade de apressar-
se. Hugo também não viera jantar na terça-feira; disse que tinha muito
trabalho para fazer. Ela se pôs a imaginar que trabalho seria este, e
constatou que, apesar de serem tão bons amigos, ela não gostava de
lhe fazer perguntas. Imaginou que quando uma pessoa era casada —
casada de verdade, amando seu par — não havia necessidade de
perguntar o que o outro estava fazendo, pois a vida de qualquer modo
seria compartilhada.

CAPÍTULO V

Ela dormiu até muito tarde, na manhã seguinte. Era sábado e Hu-
go estava livre durante todo o dia. Alice a tinha chamado, pois a bandeja
com o chá estava no lugar de sempre, ao lado da cama. Devia ter
voltado a dormir. Quando desceu, Hugo estava no jardim, lendo o jornal.
Levantou os olhos e disse bem-humorado: — Bom dia, Sarah.
Dorminhoca! Não deviam ser nem onze horas, quando cheguei, ontem à
noite, e você já devia estar dormindo quando a chamei. — Seus olhos
cinza subitamente a fitaram. — Ou talvez não estivesse?
Ela evitou dar uma resposta direta. — Eu devia estar cansada.
Acho que foi o resultado de guiar duas vezes até o hospital no mesmo
dia.
— É mesmo? Muito bem! Em compensação, eu a levarei ao teatro
e mais tarde jantaremos em um restaurante no Mirabelle. Tenho
entradas para aquele show no Comedy. — Estendeu um braço para ela.
— Venha tomar o café da manhã, estou morrendo de fome.
Sarah, depois de vestida, mirou-se no grande espelho do quarto e
ficou muito satisfeita com o que viu. Comprara o vestido em Salisbury,
com uma parte do cheque de seu pai, e agora ficara contente por tê-lo
feito.
— Você parece uma princesa de contos de fada. Espero que não
desapareça durante a noite — disse Hugo, ao entrar no quarto, e des-
cruzou as mãos; e ela então viu o estojo de veludo. — Eu devia ter-lhe
dado isto quando nos casamos, mas é que não tive oportunidade de ir
até o banco. Era de minha avó. Foi um presente de meu avô quando
eles estavam noivos.
Dentro havia um colar de pérolas, de fileira dupla, com fecho de
diamantes. Ela o segurou e disse, mal podendo respirar de tanta ex-
citação: — São lindíssimas! Fabulosas! — Lançou-lhe um olhar pro-
longado, tentando ler a expressão de seu rosto. A tarefa revelou-se das

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Sabrina no. 39

mais difíceis. Ela desistiu após um breve momento e disse timidamente:


— Obrigada, Hugo. Você quer pô-lo no meu pescoço, por favor?
Ela sentiu seus dedos mornos no seu pescoço. Em seguida, com
as mãos tocando-lhe ligeiramente os ombros, ele fez com que ela o
encarasse novamente. Pós um dedo sob seu queixo e ficou parado,
olhando-a. Finalmente soltou-a e disse; — Já está pronta? Não vai
precisar de um abrigo? A noite está fresca.
Ela respondeu, sem se dar conta do que dizia; por um momento
pensou que ele ia beijá-la, o que não aconteceu. E ela ficou desapon-
tada.
A noite transcorreu mágica. A peça era excelente, e o Mirabelle,
um cenário mais do que apropriado para suas pérolas. Ela mal prestou
atenção ao que comeu e dançaram sem falar. Voltaram para casa às
três da manhã. Ele a beijou ligeiramente no rosto e disse: — É hora de ir
para cama.
Sarah tornou-se subitamente petulante. Não era mais nenhuma
meníninha, a quem se mandava para cama! — Estou sem sono — disse
lentamente.
Ele acabou de trancar a porta. — Bem, eu estou! — Ela deu as
costas sem mais uma palavra e subiu para o quarto, parando diante da
porta para dizer: — Obrigada por tudo, Hugo. Eu me diverti muito. —
Esperou um momento, esperançosa, mas tudo o que ele disse foi: —
Bom. Durma bem.
Deitou-se, possuída por uma raiva que não conseguiu compreen-
der, e o último pensamento que lhe veio à mente, antes de adormecer,
foi que nunca, nunca mais usaria o vestido de organza rosa. Não
saberia dizer com precisão qual o motivo desta decisão momentânea e
subitamente sentiu-se sonolenta demais para se importar com tudo
aquilo.
Na terça-feira Hugo comunicou-lhe novamente, no momento em
que saía, que voltaria somente depois das nove, indagando se ela não
se incomodava de ficar sozinha. Antes que Sarah pudesse enunciar a
observação áspera que lhe veio aos lábios, ele já tinha saído. Ela
observou o carro se afastar com uma ligeira irritação, mas tentou não
pensar no assunto. No entanto, passou o dia inteiro refletindo o que
acontecera. Talvez ele fosse ao clube ou visitasse algum velho amigo.
Uma voz fria e cerebral perguntava dentro dela que espécie de amigo
era esse, e ela decidiu opor-se a estes pensamentos perigosos. Um dia,
quando a ocasião fosse apropriada, ela faria menção de tais coisas.
Tinha muitos outros assuntos com que ocupar a sua mente, disse a si
mesma com firmeza. A sra. Brown ficou contente em vê-la. Ela estava
bem pior, mas evitava tocar no assunto. Arfante, pediu a Sarah, com a
voz enfraquecida, que preparasse um chá para ambas. Sarah comprara

Livros Florzinha - 50 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

para ela um penhoar, coisinha frívola cor-de-rosa e cheio de babados.


Admiraram-no juntas e tomaram o chá. Em seguida Sarah, sob pretexto
de conversar com o sr. Ives, foi a procura da sra. Crews combinar com
aquela boa alma que a prevenisse imediatamente se a sra. Brown
piorasse. Voltou ao quarto da sra. Brown e ficou ainda uma meia hora.
Ainda eram quatro horas. Foi para casa, levou os cachorros para dar um
passeio e deitou-se cedo, após uma conversa prolongada com sua mãe
ao telefone, durante a qual ela lhe fez um relato um tanto impreciso de
sua vida em Richmond, em um tom de voz um tanto alegre demais para
ser natural.
Ficou contente com o vestido novo, ao chegarem a festa do sr,
Bínns, em uma casa espléndida em Hampstead, mobiliada de alto a
baixo por um decorador muito conhecido
As salas estavam repletas, mas ela conhecia muitos dos
presentes. Lá se encontravam a enfermeira-chefe, os clínicos, membros
da direção do hospital, etc. Ela os conhecia a todos. Havia também
numerosos jovens de ambos os sexos, amigos de Anne Binns, ela
imaginou. Sarah disse coisas apropriadas e convencionais a Anne e ela
lhe pareceu graciosa, apesar de um tanto tímida. Encontrar Steven não
foi tão terrível como ela imaginara; talvez fosse o ambiente ou a leve
pressão da mão de Hugo em seu cotovelo o que lhe possibilitou cum-
primentá-lo com tanta desenvoltura e dar-lhe os parabéns demonstrando
a maior sinceridade. Ela achara que a dor de encontrá-lo novamente em
tais circunstâncias seria insuportável, mas não sentiu absolutamente
nada, a não ser um embaraço muito bem disfarçado. Talves ela
estivesse apenas amortecida pela dor; provavelmente, mais tarde se
sentiria terrivelmente mal. Percorreu a sala cumprimentando as pessoas
a quem conhecia e recebendo em troca muitas gentilezas. Foi
provavelmente uma coincidência o fato de Steven juntar-se ao grupo
com o qual ela estava. Não conhecia muito bem as pessoas que ali se
encontravam e a algumas mal tinha sido apresentada. Afastaram-se
uma após outra, deixando-a a sós com Steven.
Ele disse rapidamente: — Quero falar com você, Sarah.
— Mas eu não quero falar com você. — respondeu friamente.
Olhou em volta, na sala, enquanto falava; não conseguia ver Hugo, a
menos que ele estivesse atrás dela, e simplesmente não poderia dar as
costas e espiar.
— Você não o ama — disse Steven abruptamente — casou-se
com ele apenas para me desfeitear. — Seu olhar pousou sobre as
pérolas e ele deu uma risadinha irónica. Sarah sentiu uma onda de raiva
nascendo dentro dela. Ficou pálida, dominou-se e disse calmamente:
— Que ousadia! Você é insuportavelmente convencido! — Desta
vez ela deu as costas.

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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Hugo estava na outra extremidade da sala, conversando com a


enfermeira-chefe. Com o ar mais casual do mundo, ele percorreu a dis-
tância que os separava, trazendo com ele sua interlocutora. Ignorou
Steven e disse, muito à vontade: — Querida, estava dizendo à senhorita
Good que você é uma cozinheira fenomenal. — Seus modos eram
tranquilos, mas ela detectou o brilho de seus olhos, enquanto ele lhe
sorria. Não parou para pensar na significação daquele brilho, mas
retribuiu seu sorriso, aliviada, e disse, alegre: — Oh, Hugo, você está
fazendo propaganda de mim?
A enfermeira-chefe então disse, muito bem-humorada: — E por
que não? E tem mais, seu marido convidou-me para jantar, a fim de que
eu comprove o que ele está dizendo.
Ela não tinha certeza de como isto acontecera com exatídão, mas
de alguma maneira Hugo conseguira interpor-se entre ela e Steven.
Ficara junto a ela, tomara suas mãos nas dele e perguntara a Steven,
em tom polido, que disfarçava o desapreço que sentia por ele, quais
eram seus planos para o futuro. Sarah imaginou que tais planos deviam
se encaixar em um quadro de mais perfeita felicidade conjugal, mas o
brilho de satisfação que o pensamento provocara inicialmente em
Steven logo foi substituído por uma expressão mal disfarçada de vazio e
tédio. Marcou o jantar com a enfermeira-chefe e, quando o sr. Peppard
veio ao encontro deles, respondeu às suas brincadeiras com a
necessária presença de espírito. Em seguida, despediu-se da anfitriã
com a maior delicadeza, e foi para casa com Hugo.
Ele mal falou, durante o caminho, a não ser algumas observações
triviais sobre a festa, mas quando chegaram em casa indagou:
— O que Steven disse que a deixou tão zangada, Sarah? Ela
hesitou e em seguida respondeu:
— Ele me ofendeu.
— Eu percebi que ele não estava sendo gentil. Pensei até que
você ia esbofeteá-lo. — Deu um ligeiro sorriso e fitou-a insistentemente.
— 0 que foi que ele disse, Sarah?
Ela respondeu, sentindo-se infeliz: — Não importa, não é mesmo?
— Nem um pouco. Por isso mesmo não vejo qual é a razão para
você não me contar.
Sarah o olhou fixamente, um tanto aborrecida com sua insistência,
e disse sem hesitação: — Ele falou, sem maiores rodeios, que eu não o
amava e que eu me casei com você para desfeiteá-lo.
Jamais poderia imaginar qual seria sua resposta, apenas percebeu
que ele fora atingido, quando disse secamente: — Que tolo e que pre-
sunçoso! A propósito, Sarah, amanhã à noite não estarei em casa.
Talvez você gostaria de convidar Kate ou alguma outra amiga para vir
jantar e passar uma ou duas horas em sua companhia.

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Falou com uma certa dose de violência: — Não, não convido nin-
guém! Você,.. todas as terças e sextas, você vem para casa tarde da
noite!
Ele arqueou as sobrancelhas e havia a sombra de um sorriso nos
cantos da boca. — Venho mesmo, não é? — concordou, imperturba-
velmente. Sarah esperou que ele dissesse alguma coisa, qualquer coi-
sa, o que não aconteceu. Era como se fechassem delicadamente uma
porta em seu rosto.
Ela saiu correndo para seu quarto, onde, para sua grande surpre-
sa, começou a chorar. Logo após sentiu-se melhor. Provavelmente era o
resultado de ter voltado a ver Steven. Pensou nele e ficou surpreendida
ao sentir que aquilo, antes de mais nada, a aborrecia. Após algum
tempo desistiu, tomou um banho e deitou-se. Ouviu Hugo sair com os
cachorros e em seguida trancar a porta da frente, porém ele ficou no
andar térreo. Imaginou que ele tivesse ido ao seu escritório. Passava da
meia-noite quando ouviu seus passos ligeiros diante de sua porta,
atravessando o corredor em direção ao quarto.
Sentiu-se tola e culpada quando acordou, na manhã seguinte, mas
ao descer as escadas encontrou Hugo à sua espera, como se nada de
mais tivesse acontecido. O dia estava abafado, o sol vez por outra era
visto entre as nuvens carregadas e as águas do rio refletiam aquele
horizonte opressivo. Caminharam até a beira da água e ela falou,
desordenadamente, tudo o que lhe vinha à mente, mudando de um
assunto para o outro sem se importar muito com o contexto. Quando
finalmente parou para respirar, Hugo indagou: — Você vai visitar a sra.
Brown hoje?
Ela não tinha pensado no assunto, mas agora que ele lhe fizera a
sugestão, respondeu que sim, que bem poderia ir ate lá.
— Posso sugerir que você não vá de carro? Acho que vai cair um
temporal, e guiar em meio à chuva pode ser um tanto desagradável.
Tome um táxi, após o almoço.
Voltaram para dentro de casa e ela respondeu docilmente: — Mui-
to bem, Hugo — secretamente aliviada, pois no íntimo detestava
temporais. Então lembrou-se de que Alice sairia aquela noite e esperou
que o mau tempo tivesse passado quando chegasse a hora de voltar
para casa. Comunicou seus pensamentos a Hugo e então sentiu-se
extremamente ruborizada, pois parecia que ela o estava recriminando
pelo fato de ele não se encontrar em casa. Ele não respondeu e, após
alguns minutos, ela concluiu que ele não estivera prestando atenção ao
que dizia.
A chuva caía, quando ela chegou à rua Phipps. O chofer do táxi
olhou-a intrigado, enquanto ela lhe pagava, diante daquela casa de
aspecto acanhado, e quando íves apareceu, todo carrancudo, Sarah

Livros Florzinha - 53 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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apressou-se em assegurá-lo de que não havia a menor necessidade de


esperar por ela. Tranquilizou o sr. Ives, que se mostrava muito
preocupado com a sra. Brown. Subiu para o seu quarto a fim de desejar-
lhe uma boa tarde e arrumar as flores que trouxera em um vaso de
muito mau gosto, no qual se lia, em letras douradas, a inscrição:
"Lembranças de Londres". Era um dos tesouros da sra. Brown e, ao
contemplá-lo, a velha senhora começou a desfiar uma série de re-
miniscências dos seus dias de mocidade.
Sarah não tivera a intenção de ficar tanto tempo, mas a sra. Crews
viria às cinco e ela sentia pena em deixar a sra. Brown inteiramente só.
Durante mais de uma hora ouvira-se a trovoada; de vez em quando os
relâmpagos riscavam o céu; sentiu-se inquieta, imaginando se seria fácil
conseguir um táxi. Estava lavando as xícaras de chá quando Hugo
entrou. Sorriu, acenou para sua paciente e dirigiu-se a Sarah: — Eu já
contava com que você ficasse aqui até a chegada da sra. Crews. —
Logo em seguida pôs-se a examinar a sra. Brown, inteiramente à
vontade. Ainda não tinha terminado quando a sra. Crews chegou. Sem
levantar os olhos, ele disse calmamente: — Não vá embora, Sarah. —
Ela assim o fez, pondo-se de costas para a janela, a fím de não ver os
relâmpagos. Hugo deu algumas instruções a sra. Crews, esperou
enquanto Sarah fazia suas despedidas e seguiu-a até o térreo, onde o
Sr. Ives os esperava. Ela ficou parada enquanto os dois conversavam,
ouvindo pela metade, mas finalmente, quando saíram na calçada, ela
permaneceu teimosamente onde estava.
— Entre — disse Hugo, bem-humorado, porém Sarah não arredou
o pé. — Tomarei um táxi, obrigada — disse, com uma pitada de orgulho,
mas cujo efeito foi estragado pelo ribombar de um trovão. O olhar de
Hugo percorreu a rua vazia.
— Não seja teimosa, Sarah. Os táxis dificilmente passam por esta
rua, você bem sabe disto.
— Se você pensa que precisa me acompanhar, até em casa, só
porque eu disse que não gosto de temporais, está dispensado. Eu
estava brincando disse Sarah.
— Você é mesmo uma mentirosa, Sarah. — Ele riu discretamente.
— De qualquer modo, não ia levá-la para casa. Quero lhe mostrar algo.
Ela o encarou com insegurança. Ele parecia bastante sério. — En-
tre, menina. Agora não tenho tempo de explicar nada. Já estou atrasado.
Ao ouvir isto, ela entrou, e Hugo pôs-se a guiar sem acrescentar
mais nada. O trajeto foi percorrido em pouco tempo; ele se embrenhou
por aquele labirinto de ruas que mal se distinguiam umas das outras e
finalmente entrou em uma rua de aspecto miserável, impropriamente
chamada rua da Rosa, detendo-se diante de uma casa de dois andares,
igual a dezenas que haviam por lá. Diferenciava-se das casas vizinhas

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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pelo fato de que as janelas do térreo estavam pintadas de branco, com


as palavras: "Clínica Dr. John Bright", escritas em letras negras. Sarah
voltou-se intrigada para Hugo, mas ele disse rapidamente:
— Vamos entrar, Sarah.
Ela fez o que lhe era pedido, seguindo-o submissa através da
porta toda desconjuntada que dava diretamente para uma sala de
espera atupetada de gente, falando o mais alto que podiam. Pararam no
momento em que Hugo entrou e um tanto desordenadamente disseram
em coro; — Boa noite, doutor — encarando Sarah. Hugo atravessou a
sala em direção a uma das portas nos fundos, levando-a consigo. —
Minha esposa — disse aos pacientes. — E enfermeira diplomada e veio
nos ajudar hoje á noite. — Ouviu-se um murmúrio de interesse e Sarah
sorriu insegura, ficando ruborizada quando uma voz disse: — Muito
bem, doutor, o senhor até que soube escolher!
Todos deram uma risada bem-humorada, à qual Hugo não se fur-
tou. Em seguida tomou-a pelo braço e levou-a a um dos quartos dos
fundos. Lá se encontrava um homem de certa idade, calvo e de ombros
encurvados. Tinha traços bem marcados e olhos brilhantes e escuros;
estes estudaram o rosto de Sarah, no momento em que ela entrou.
Endireitou-se, e Hugo disse muito à vontade; — Alô, John. Trouxe minha
esposa, Sarah. Apresento-lhe John Bright, que está a frente deste
consultório. Ele foi suficientemente gentil para permitir que eu viesse
duas vezes por semana a fim de ajudá-lo.
O sorriso que ele lhe endereçou foi dos mais amistosos, o que não
contribuiu em nada para atenuar seu sentimento de culpa. Ela havia
pensado... só Deus sabe o que ela havia pensado...
Perturbada, procurou o olhar de Hugo, mas o dr. Bright estava
falando.
— Muito prazer em conhecê-la, senhora van Elven. Hugo já falou
muito a seu respeito. Não acredite em nada do que ele diz. Ele é que é a
alma disto aqui. Nunca consegui dar conta disto aqui sozinho e ele sabe
muito bem disto. — Fez uma pausa. — Aqui ao lado há uma sala onde
fica nossa secretária. Gostaria de ficar lá com ela?
Sarah pôs as luvas e a bolsa sobre uma mesinha de aspecto lasti-
mável. — Gostaria de ajudar — disse com simplicidade. Encarava Hugo
enquanto falava.
— Por que não? Só Deus sabe o quanto precisamos, não é
mesmo, John? Venha conhecer Sandra. Talvez ela possa providenciar
um avental branco. — Disse Hugo.
Sandra era jovem, loura, usava minissaia e não disfarçava seu
contentamento por ver um rosto novo. Entregou a Sarah um avental
excessivamente engomado e muito largo. Confidenciou que toda vez

Livros Florzinha - 55 -
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Sabrina no. 39

que via sangue passava mal, e que agora as coisas ficariam mais fáceis,
pois eram quatro mãos trabalhando.
Quando a noite chegou ao fim, Sarah sentiu-se intrigada, sem sa-
ber como os três tinham podido, até então, dar conta de tantas tarefas:
despiu bebês, lutou com crianças pequenas que usavam roupas
apertadas demais e portanto difíceis de se tirar; recolheu urina, tomou a
temperatura, removeu a sujeira de mãos, pés e rostos, a sujeira de
trabalhadores que lhe confessaram, sem maiores rodeios, não ter tido
tempo de se limpar antes de virem para o consultório. O último paciente
se foi após as nove horas, e Sandra seguiu-o, dizendo a todos um
alegre "até logo". Os médicos acenderam os cachimbos e puseram-se a
examinar suas anotações. Sarah fez uma limpeza geral, desligou o
antiquado esterilizador e sentou-se na cadeira de pau, de assento duro,
no consultório de Hugo. Ele levantou os olhos rapidamente, sorriu e
continuou a escrever. Ela sentou-se em silêncio, contemplando-o, até
que o dr. Bright apareceu na soleira da porta e disse:
— Que tal irmos tomar café em meu apartamento?
Ele parecia aguardar sua resposta com ansiedade. Sarah olhou
Hugo de relance e disse imediatamente: — É só o que estou querendo.
Fiquei exausta, depois de tanto trabalho!
Sorriu para o dr. Bright, mas, para uma pessoa exausta, parecia
extraordinariamente bonita e cheia de vida. Hugo não levantara os
olhos, mas ela sentiu que ele estava contente com sua resposta; talvez
eles sempre tomassem café depois que o consultório fechava.
O dr. Bright vivia sozinho, no segundo andar. Explicou a Sarah que
tinha uma diarista que cozinhava e fazia limpeza. Acrescentou
brevemente que sua mulher morrera havia muitos anos e seu filho dirigia
um hospital em Mombaça. Conduziu-os ate uma sala de estar
confortável, atulhada de livros e papéis; removeu uma pilha deles de
uma poltrona desajeitada, porém enorme, e convidou-a para sentar-se.
O dr. Bright olhou-a por cima das lentes espessas dos óculos, logo
após o café:
— Minha cara senhora van Elven, claro que vai poder nos ajudar
muito. Precisamos desesperadamente de alguém, porém não tenho
dinheiro para pagar uma assistente e não posso permitir que Hugo seja
mais generoso do que tem se mostrado.
No carro, a caminho de Richmond, Sarah disse com certo ar de
desafio:
— Eu disse ao dr. Bright que viria sempre com você para ajudar.
Acrescentou apressadamente, sem querer parecer que estava se
impondo: — Isto é, se você não se importar. Seria tão bom ter um
emprego... Não é que eu esteja me aborrecendo. Sempre há muito o

Livros Florzinha - 56 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

que fazer, em casa e, além disso, há também o jardim e os cachorros;


mas sempre sobra um tempo...
— Você não precisa apresentar desculpas — replicou Hugo
brevemente. — Ficaremos contentes com sua ajuda. É um consultório
muito movimentado, John e eu nos conhecemos há muitos anos. — Foi
tudo o que ele disse. Após um breve silêncio, ela se pós a falar, um tanto
fora de propósito, a respeito do tempo, mal reparando em que ele fazia
apenas comentários polidos de vez em quando, pois estava perdido em
seus próprios pensamentos.
Já em casa, ele disse, quase abruptamente:
— Acho que você deve ter ficado cansada. Vou lhe desejar boa
noite, pois ainda tenho que ler alguns papéis. — Apanhou alguns maços
de cartas de uma mesinha de tampo de mármore, afastou-se dela e
dirigiu-se para o escritório. Sarah começou a subir a escada, porém
cada vez com mais lentidão, até que na metade do caminho parou, deu
meia volta, refez o caminho, entrando no estúdio antes que mudasse de
ideia. Hugo estava de costas para ela, olhando através da janela aberta,
com os cães a seu lado, mas voltou-se no momento em que ela entrou e
deu alguns passos em sua direção, dizendo: — Sarah, aconteceu
alguma coisa?
Ela ficou parada ao lado da porta. — Aconteceu, sim. Não me
competia dizer ao dr. Bright que eu trabalharia para vocês, sem
consultá-lo antes. — Procurava as palavras. — Achei que você ficaria
contente, mas você não ficou. Eu... me intrometi num assunto particular
e que não me diz respeito. Escreverei ao dr. Bright e apresentarei
alguma desculpa. ..
Voltou-se para sair e deteve-se ao ouvi-lo dizer: — Só um minuto,
Sarah. — Encarou-o e ele prosseguiu: — Se você se der ao trabalho de
lembrar, fui eu que... que lhe deu a ideia de visitar a sra. Brown. Também
sugeri que você não deveria usar o Rover. E eu contava que você,
sendo quem é, faria companhia a sra. Brown até as cinco horas, quando
a sra. Crews chegaria. Sabia que, se deixasse dois ou três pacientes
para Coles atender, ainda a encontraria na rua Phipps. — Fez uma
pausa, encarando-a. — Naquele momento, eu a poderia ter trazido para
casa, se quisesse.
— Você não se importou que eu fosse à rua da Rosa... — A voz
de Sarah alterou-se um pouco: — Você queria que eu... — Franziu o
cenho, mas não desenvolveu seu pensamento. — Mas por que você
não me disse, simplesmente?
— Eu preferiria que você... que você gostasse de mim por mim
mesmo, não por aquilo que faço.
Sarah digeriu esta observação em silêncio, compreendendo muito
bem o que ele queria dizer com isso. Era romântico e até mesmo

Livros Florzinha - 57 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

dramático que um especialista bem-sucedido, apresentando de si


mesmo uma imagem imaculada ao mundo em que vivia, decidisse
colocar seus préstimos a serviço de uma pequena clínica num bairro
pobre. Tal fato impressionaria qualquer garota menos sensata do que
ela. Girou o anel de casamento no dedo, reconhecendo perante si
mesma que, sensata ou não, ela também ficara impressionada. Le-
vantou o olhar e deparou-se com seus olhos cinzas pregados nela.
— Vejo que você me compreende — Observou ele com
delicadeza.
— Oh, sim. Mas você não precisava ter feito segredo em torno dis-
so, porque eu gosto de você, e não consigo imaginá-lo fazendo qualquer
coisa que pudesse alterar este sentimento. Mesmo que eu ainda não o
conheça tão bem. — Parecia desamparada, mas foi somente por um
breve segundo, pois prosseguiu corajosamente: — Por que você estava
zangado, quando voltamos para casa?
— Não estava zangado — respondeu ele, corrigindo-a paciente-
mente. — Simplesmente não tinha certeza sobre se havia agido
corretamente. A rua da Rosa significa trabalho árduo, sujeira, mau
cheiro. É muito mais duro que a clínica do hospital. Compreendi que
talvez eu estivesse levando você a encarar um trabalho muito mais
penoso do que aquele que você exercia, antes de nos casarmos.
Seu mau humor e sua insegurança evaporaram-se. Ela deu aquele
amplo sorriso e perguntou: — Mas era só isso? Pois eu vou gostar
muito, vou gostar de verdade, e è somente duas vezes por semana. —
Acrescentou com inconsciente ingenuidade: — E também estarei em
sua companhia.
Não havia a menor expressão em seu rosto ou em sua voz.
— Sim.. . sim, pois sim. Não me ocorreu que você tivesse ficado
intrigada em saber aonde eu ia.
— Hugo, como você é ridículo! — ela comentou, sem maiores ro-
deios. — É claro que fiquei intrigada! Cheguei até mesmo a pensar que
você. .. que você queria se afastar de mim, ou qualquer coisa do
género...
Ele disse, muito sério: — Garanto que isso nunca acontecerá, Sa-
rah! — Sua voz soava estranha, mas ela não podia distinguir seu rosto
com clareza, porque ele estava de costas para a luz.
Alguns dias mais tarde, a sra. Crews telefonou. Sarah acabara de
arrumar um vaso de flores. O som do telefone interrompeu seus de-
vaneios e ela foi até a sala de estar para atender. Dez minutos mais
tarde estava no carro, aliviada ao ver que o tráfego não estava tão
congestionado, enquanto guiava apressadamente em direção à rua
Phipps.

Livros Florzinha - 58 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

A sra. Brown estava na cama, e a palidez impressionante de seu


pequeno rosto macerado fazia um contraste cruel com o penhoar cor-
de-rosa.
Sarah sorriu afetuosamente para ela. — Veja só que coincidência
— observou bem-humorada — eu disse ao doutor que viria visitá-la hoje
e ele falou que daria um pulo aqui, mais tarde, e a examinaria, antes que
fôssemos para casa.
A sra. Crews estava junto ao pequeno fogareiro, preparando uma
refeição que a sra. Brown não iria comer. Sarah deparou com seu olhar.
— Se quiser fazer compras, sra. Crews, ficarei aqui pelo menos
por uma hora. — Trocaram um olhar de cumplicidade. — Vou descer até
o carro com a senhora, deixei um pacote lá. — Saíram juntas e ao
chegarem à portaria, Sarah disse: — Não tive tempo de avisar meu
marido... A senhora mandou um recado para o dr. Bright?
— Sim, antes de telefonar para a senhora. Ele foi atender a um
parto. Sandra disse que se trata de gémeos.
Sarah vasculhou a bolsa, escreveu um número numa folha da ca-
derneta e entregou-a à sra. Crews. — O dr. van Elvan está no hospital
St. Edwin; começa a clinicar às duas horas. Quer ligar para este número
e lhe dar o recado de minha parte? Diga que a senhora Brown está
passando muito mal e que ele, por favor, venha para cá assim que
terminar o atendimento. — Fez uma pausa, franzindo o cenho. — Não
há mais nada que se possa fazer. A senhora Brown não quer ir para o
hospital e não se pode fazer mais nada por ela. Não vou precisar de
nada, portanto não se apresse muito.
— A senhora vai ficar sozinha com ela até as quatro — disse a
sra. Crews, hesitante. — Virei por volta das três para ver como as coisas
estão — Não é certo a senhora ficar sem ninguém.
Afastou-se e Sarah subiu a escada, carregando com cuidado algo
que tinha tirado do carro. Colocou o misterioso invólucro sobre a
mesinha-de-cabeceira, desembrulhou-o e viu o rosto da sra. Brown ilu-
minar-se. Não tivera tempo de colher flores no jardim. Assim sendo,
trouxera aquele arranjo de flores feito com tanto capricho, com vaso e
tudo.
Sarah preparou o chá e elas o beberam juntas. A sra. Brown falou
um bocado a respeito de vários assuntos, num tom de voz que se
tornava cada vez mais fraco, até que disse: — Acho que vou tirar uma
soneca.
Assim que ela adormeceu, Sarah tomou seu pulso. Quase já não
se sentia mais e a respiração diminuía. A fisionomia da velha senhora
irradiava uma expressão de tranquilidade. Sarah consultou o relógio.
Eram pouco mais de três horas, nunca uma tarde lhe parecera tão
longa. Pensou em Hugo e desejou que estivesse lá.

Livros Florzinha - 59 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

A sra. Brown abriu os olhos quando a sra. Crews entrou devagari-


nho no quarto. Voltaram a tomar chá, só que desta vez a sra. Brown
suportou apenas um ou dois goles. Sarah ajeitara cuidadosamente seus
travesseiros e disse com voz tranquilizadora:
— O doutor está para chegar. — Não precisou acrescentar mais
nada, porque a sra. Brown voltara a dormir. A sra, Crews indicou, por
gestos, que voltaria novamente, e partiu.
A velha ainda dormia quando Hugo entrou silenciosamente no
quarto. Ficou parado ao lado da porta e fitou Sarah antes de concentrar
sua atenção na paciente. Colocou a maleta sobre a mesa, tirou o
estetoscópio e perguntou em voz baixa: — Onde está John Bright?
Sarah ainda estava sentada ao lado da cama, com a mão da sra.
Brown entre as suas. Encarou Hugo e seus olhos brilhavam, aliviados.
Ele parecia encher o quarto; ela tinha plena consciência da segurança,
da calma e da gentileza que trouxera consigo. Por um breve momento,
seu lábio tremeu, mas sua voz manteve-se firme.
— A senhora Crews tentou entrar em contato com ele. Ele foi
atender um caso complicado de parto gemelar.
Hugo assentiu, inclinou-se e colocou sua mão morna sobre a da
sra. Brown e a de Sarah. Seu toque foi muito tranquilizador, porém
breve. Aprumou-se e olhou para ela, mostrando em seu belo rosto uma
expressão preocupada, mas de quem estava em pleno controle da
situação. Ela indagou, ansiosa:
— Fiz bem? Deveria ter chamado uma ambulância?
Ele balançou a cabeça. — Fez muito bem, minha cara. De nada
adiantaria. — Seu olhar desviou-se do dela e estudou a sra. Brown, que
abriu os olhos com a impulsividade de uma criança pequena.
Ele se inclinou, aproximando seu rosto do dela: — Alô, senhora
Brown disse, franzindo o cenho e fingindo que estava zangado. — Que
reinação a senhora andou fazendo na minha ausência?
Ela conseguiu dar uma pequena risada. — Não passe pito em
mim, querido doutor. — Fez uma pausa, a fim de respirar. — Não
adianta, eu sei que o senhor é bonzinho. — Fechou os olhos e tornou a
abri-los. — Obrigada por tudo o que o senhor fez, e ela também. Estas
flores...
Seu olhar convidou Hugo a admirá-las, o que ele fez, disfarçando
sua surpresa ao ver aquele vaso caríssimo, uma verdadeira raridade, è
cabeceira da sra. Brown.
Ela suspirou e voltou a dormir. Daí a pouco acordou e encarou
Sarah com um olhar fatigado: — Meu nome é Rosemary. É um nome
bonito para uma menina.
Sarah, sabendo a que ela se referia, disse alegremente: — É um
lindo nome. Quando. .. quando tivermos uma filhinha, ela terá seu nome.

Livros Florzinha - 60 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

— Não olhou para Hugo enquanto falava, mas achou que ele não se
importaria por ela dizer isto; obviamente era o que a velha senhora
gostaria de ouvir. Tratava-se de uma mentira tão inócua que não feria
ninguém. Mas isto não era verdade, Tinha consciência do quanto ficara
magoada, mesmo enquanto sorria para a sra. Brown, que esboçou um
brevíssimo sorriso e fechou os olhos, para não abri-los mais.
Havia muitas coisas a fazer, claro, e precisamente naquele mo-
mento a sra. Crews voltou. Hugo disse: — Vamos, Sarah! — e ela se
encontrou no corredor com ele. Pairava no ar um cheiro forte de peixe,
batatas e vinagre, e a torneira da pia, num dos cantos, não parava de
pingar. Ela deixou escapar um soluço que tentara reprimir e, quando se
deu conta, já estava nos braços de Hugo, chorando de encontro a seu
peito.
— Agora me sinto melhor, obrigada. Que tolice da minha parte!
Ele continuava a mantê-la em seus braços. — Não! — disse com
ternura. — Você não é tola. Sinto muito não ter podido deixar a clínica e
vir para cá, logo que recebi seu recado.
Ela o olhou, espantada. — Mas é claro que você não podia, com
toda aquela gente esperando...
Ele parecia estar prestes a responder a este comentário, mas, em
vez disto, inclinou-se e beijou-a ternamente. Em seguida acompanhou-a
até a entrada do prédio. O sr Ives já estava esperando, parado diante da
porta. Hugo manteve o seu braço em torno dela enquanto falava
rapidamente com o senhorio. Ela permaneceu em silêncio, sentindo-se
amparada e mal prestando atenção ao que era dito.
Quando voltaram para a rua Phipps ele mandou que ela entrasse
no carro e disse em tom decidido: — Fique aqui, Sarah, não vou me
demorar. — E entrou em seguida no prédio. Daí a pouco voltou, com o
precioso vaso num dos braços e Timmy no outro.
Já estavam quase chegando em casa quando ela finalmente
conseguiu falar. Olhou para Timmy, sentado em seu colo, e perguntou:
— Quem é que vai providenciar o...
— Já combinei tudo com Ives e a sra. Crews. Não se preocupe ,
com isto, Sarah.
Sua voz era calma e bondosa; ela constatou que parara de se
preocupar pela simples razão de que ele lhe ordenara não fazê-lo. Che-
gando em casa, foi entregar Timmy a Alice e voltou ao hall, a tempo de
deparar com Hugo, que vinha carregando o vaso de porcelana. Seguiu-o
até a sala de jantar e viu-o colocando o vaso no lugar de sempre.
— Espero que você não tenha ficado aborrecido, Hugo. Não havia
tempo de levar mais nada. Estava com pressa e tinha acabado de
fazer um arranjo floral, que aliás ficou lindo. — Ela parou, surpreendida
ao constatar que sua voz tremia.

Livros Florzinha - 61 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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Ele falou a respeito da sra. Brown, durante o jantar, com toda a


ternura de que era capaz, e em seguida desviou a conversa para outros
assuntos.
— Acho — disse, enquanto tomava café —, que poderíamos
oferecer um jantar a algumas pessoas, não lhe parece? Aliás, já temos
de retribuir um ou dois convites, não? Vamos começar por Coles, Kate e
Jim, e mais tarde fazer convites mais ambiciosos, incluindo os Binns, os
Peppards e a enfermeira-chefe?
— Será um jantar informal? — perguntou Sarah, ansiosa.
— Oh, creio que sim, não lhe parece? Você terá a oportunidade
de usar seus lindos vestidos.. . aquele cor-de-rosa cai tão bem... E o
jardim está repleto de rosas que combinarão com ele...
Ela concordou, confusa, sem saber se ele estava caçoando ou
não; certificou-se disto quando ele perguntou:
— Ficou receosa? Pois não devia. Afinal de contas, você é filha de
um coronel...
Ela se levantou e disse, empolgada: — Não sou mais filha de um
coronel, e sim, a esposa de um médico, do que, aliás, me sinto muito
orgulhosa!
Suas palavras a surpreenderam; não tinha a menor ideia de que
iria pronunciá-las. Para disfarçar sua confusão, sentou-se ao piano e
começou a tocar. Tocava bem, mas sem a menor concentração, pois
seus pensamentos estavam confusos e precisavam se ordenar. Após
um momento, levantou-se e disse:
— Acho que vou para a cama. — Ainda não eram nove horas, po-
rém Hugo levantou-se da cadeira e acompanhou-a até a porta, sem
mencionar o fato. Encarou-o enquanto se diziam boa noite, tentando
decifrar não sabia o que em seu rosto sorridente, plácido e gentil. Foi
para cima, sentindo-se muito confusa.

CAPITULO VI

Ao longo das semanas que se seguiram, Sarah surpreendeu-se


refletindo sobre seus próprios sentimentos. Durante alguns dias e dentro
de certos limites, a morte da sra. Brown havia ocupado seus pen-
samentos. Tinha ido ao enterro com Hugo e o dr. Bright, além de um
número considerável de moradores da rua Phípps.
Ela gostava da clínica da rua da Rosa. Trouxe alguns uniformes
que lhe serviram, chamava Hugo de "doutor" diante dos pacientes e era
uma raridade se trocavam uma dúzia de palavras de natureza mais
pessoal, durante a noite. No entanto, estavam juntos, e ela sentia que
pelo menos estava compartilhando parte da vida de Hugo, mesmo que
fosse uma pequena parte. Sabia muito pouco a respeito de seu

Livros Florzinha - 62 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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consultório na rua Harley e certo dia, quando ela sugeriu ir ao seu


encontro lá, ele a desencorajou, apesar de fazê-lo do modo mais gentil
possível.
Saíam juntos frequentemente e ela tinha tudo o que pudesse dese-
jar. Ele era generoso, porém dentro de certos limites. Por exemplo,
levara-a para passar um domingo em companhia de seus pais, e ela
ficou a espera de que ele sugerisse um passeio a pé; ele, entretanto,
não o fez, preferindo discutir política com seu pai. No entanto, ele tinha
se mostrado muito agradável, durante toda a viagem, se bem que, num
segundo exame, sua conversa lhe parecera bastante impessoal. A ideia
traiçoeira de que ele estava começando a se arrepender por ter casado
atravessou seus pensamentos, mas ela imediatamente a pós de lado,
achando-a indigna dele. No entanto, tal ideia permaneceu, surgindo nos
momentos mais inesperados. De vez em quando, ao acordar durante a
noite, imaginava se ele ainda gostava de Janet. Em um rompante de
ousadia, tentava introduzir o nome dela, ao longo de uma conversa,
porém encontrava a resistência firme de Hugo, que logo abordava
outros assuntos.
Foi durante o primeiro jantar que ofereceram que ela descobriu
algo de muito interessante a respeito de si mesma. Tinham convidado a
enfermeira-chefe, John Bright, bem como os Coles, Kate e Jimimy Dean.
Sentou-se do lado oposto a Hugo, muito satisfeita com a mesa tão bem
arranjada, com as pratarias, os cristais e o serviço de porcelana antiga.
Sarah foi desviada de seus pensamentos por Kate, que lhe
perguntou se acaso sabia que Steven deveria se casar com Anne Binns,
em outubro. Sarah fitou-a, muito surpreendida ao tomar subitamente
consciência de sua total falta de interesse por Steven. Não havia
pensado nele durante dias, até mesmo semanas; não via a menor razão
para voltar a pensar nele, um dia. Ficou olhando Kate um tanto
vagamente, até que a voz de Hugo interrompeu aquela pausa, que
começava a tornar-se um tanto embaraçosa.
— Querida, esse casamento lhe dá ocasião de você comprar um
belo chapéu!
Desviou seus belos olhos dos dele, ainda atónita com sua
descoberta, e respondeu, feliz: — Sim, Hugo. — Sentia-se maravilhada
por ele a ter chamado de querida, apesar de isto se dever unicamente
ao fato de que tinham convidados.
Quando o último convidado partiu, ela voltou para a sala de visitas
e começou a arrumar as almofadas, enquanto Hugo, que abrira a porta
a fim de deixar os cães darem um passeio pelo jardim, pousava seu
olhar sobre ela.
— Parabéns, Sarah. O jantar foi um sucesso. Ao que parece,
tenho uma mulher que é uma anfitriã de primeira e uma linda mulher.

Livros Florzinha - 63 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Ela sorriu e começou a arranjar novamente as flores no vaso. Ele


certamente mencionaria o casamento de Steven e ficaria mais fácil tocar
no assunto. Voltou a arrumar as almofadas, mas ele, meio sorridente,
lhe perguntou: — Você queria me dizer alguma coisa, Sarah?
Ela respondeu imediatamente, altiva: — Não, não queria.
Imediatamente ela foi deitar-se e se pôs a chorar, sem saber preci-
samente por quê. Despertou no meio da noite e teve naquele momento
plena consciência de que lhe era impossível contar a Hugo que não
amava mais Steven. Isto lhe criaria uma situação difícil: viver com o
homem a quem amava e que amava uma outra mulher, mesmo se esta
mulher era apenas uma lembrança. Só por um milagre, se ele deixasse
de amar a sua Janet, ela poderia lhe revelar o que se passava. Sentou-
se na cama, agora possuída de uma consciência total do que estivera
pensando: não fora Steven o homem a quem ela amara, e sim, Hugo.
Tinha sido sempre Hugo, e ela estivera inteiramente cega perante este
fato. E agora que sabia, que atitude iria tomar! Era impossível confessar.
Deitou-se novamente, dizendo a si mesma que devia sentir-se grata,
pois ele pelo menos gostava dela o suficiente para tê-la desposado.
Talvez com o tempo viesse a amá-la. Adormeceu pensando nisto.
Ele estava no hall quando ela desceu, na manha seguinte. Estava
de costas para ela, debruçado sobre o jornal da manhã. A luz do sol
incidia sobre seus cabelos grisalhos; ele tinha um ar distinto e elegante.
Voltou a cabeça, sorriu-lhe, e o coração dela palpitou com uma
intensidade jamais sentida. Parou nos degraus, lutando contra o desejo
imperioso de atirar-se em seus braços. Forçou-se a atravessar o hall em
sua direção e a desejar-lhe um bom-dia com o tom de voz habitual.
Tinha a sensação esquisita de que seus pés mal tocavam o solo.
Quando saíram de casa e ele a pegou pelo braço, com a mesma
amizade de sempre, Sarah estremeceu de excitação e de felicidade, a
tal ponto que ele, um tanto admirado, perguntou se ela estava sentindo
frio. Na verdade, a manhã estava bem fresca, mas não o suficiente para
causar arrepios.
Ela não percebeu o olhar penetrante de Hugo; somente quando
levantou os olhos é que percebeu o quanto ele parecia feliz. Tinham
atravessado o rio e passeavam ao longo da outra margem. Os cachor-
ros corriam diante deles, brincalhões como sempre.
— Acho que poderíamos viajar para a Holanda dentro de uma se-
mana e pouco — observou Hugo. — Setembro é um mês ideal para
férias, não lhe parece? Penso que poderíamos sair nos últimos dez dias.
Se o tempo continuar firme, vai ser esplêndido. Levaremos o carro; a
Holanda é um país pequeno e posso lhe mostrar muita coisa em pouco
tempo. Também podemos visitar minha família, mas é preferível
ficarmos a sós, não?

Livros Florzinha - 64 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Sarah concordou entusiasmada. Ele devia ter pensado previamen-


te no assunto; ninguém faria um plano tão minucioso sem reflexão
anterior.
Já se aproximavam de casa. Ela caminhou à frente, em direção ao
portão, deliciada com a possibilidade de ter Hugo só para ela durante
duas semanas.
Depois que ele se foi, ela passeou pelo jardim e voltou novamente
para casa, onde tirou um pouco o pó dos móveis e organizou uma lista
de compras com Alice. Ela gostava de ir à mercearia e do tempo que ali
passava, escolhendo legumes e frutas. Também gostava que a
chamassem de sra. van Elven. Vagueava pelas ruas, saboreando o fato
de que levava o nome de Hugo. Estranho que até aquele momento não
tivesse pensado nisto, mas agora, porque o amava, tudo era diferente.
Foi somente depois do almoço, enquanto estava sentada preguiço-
samente no jardim, que o bom senso mais uma vez se apoderou dela,
fazendo-a constatar que tinha vivido num mundo de sonhos durante
toda a manhã, e no qual Hugo, muito convenientemente, se apaixonava
por ela. Tinha plena consciência do quanto tais pensamentos eram tolos,
mas pôs esta consciência de lado, pois ao mesmo tempo eles lhe
davam grande prazer. Sentou-se no gramado e decidiu deixar para trás
tais devaneios. De nada adiantaria permitir que eles se expandissem.
Deveria ficar permanentemente em guarda com Hugo, de maneira que
ele não percebesse nada. Até agora tinham sido felizes; ela tinha feito o
possível para corresponder à imagem da esposa que ele supostamente
queria, e esperava que tais esforços tivessem sido bem-sucedidos. Ao
mesmo tempo, vinha-lhe a sensação incómoda de que não havia
conseguido penetrar em sua profunda reserva. E talvez jamais
conseguisse. Possivelmente Janet fora a única que o conseguira.
Foi de óníbus até a rua Harley e encontrou Hugo à sua espera no
carro. A infelicidade, o amor, o prazer de vê-lo novamente deram-lhe
uma aparência tão indefinível que ele lhe perguntou, pela segunda vez
naquele dia, se ela estava se sentindo bem. No momento em que ela
entrava no carro, ele a contemplou com uma expressão que ela foi
incapaz de decifrar, porém, lembrando-se de suas boas resoluções,
respondeu que se sentia maravilhosamente bem, contou-lhe como
passara o dia e indagou, com uma desenvoltura um tanto exagerada, se
ele tiver; um dia muito ocupado. Com o cenho carregado, ele lhe lançou
um olhar pensativo, antes de responder, e começou a narrar, um tanto
abruptamente, o encontro casual que tivera com um velho colega.
A rua da Rosa parecia triste e abandonada, apesar das crianças
que brincavam nas calçadas, dos cachorros que corriam em volta de
alguns passantes que paravam para dois dedos de prosa e da gente
apressada, ansiosa por chegar em casa ou ir até o bar da esquina. A

Livros Florzinha - 65 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

sala de espera estava repleta. Sarah disse alô ao dr. Bright e foi vestir o
uniforme no cubículo onde Sandra trabalhava. Em seguida, armada com
um lápis e um bloco de anotações, começou a organizar o atendimento.
Havia mais pacientes do que de costume, para Hugo, naquela noite, e
muitos vinham pela primeira vez.
Aos poucos a sala de espera ia se esvaziando; havia ainda umas
doze pessoas para serem atendidas, quando três jovens entraram e
sentaram-se ao lado um do outro. Não trocaram uma palavra, mas
puseram-se a olhar os demais pacientes, que os encaravam rapida-
mente e em seguida olhavam em outra direção. Sarah saiu da sala do
dr. Bright e sentiu alguma coisa no ar; percebeu também que fumavam.
— É proibido fumar aqui dentro. Se quiserem acabar de fumar, por
favor vão lá fora. Ainda não está na hora de serem atendidos e eu os
chamarei, — Sorriu para eles. — Seus nomes?
O rapaz do meio falou. — Não queremos esperar, vamos ser os
próximos.
Ela o encarou sem perder a calma. — As pessoas aqui têm sua
vez — explicou pacientemente. — E jogue fora esse cigarro.
Eles riram, soltaram uma baforada em seu rosto e ficaram
desconcertados ao ver que ela não tomava conhecimento, perguntando
simplesmente: — Qual de vocês é o paciente?
Eles não responderam. Sarah colocou o bloco de anotações no
bolso e disse, procurando controlar uma irritação crescente: — Acho
melhor vocês irem embora. Estão me fazendo perder tempo. — Antes
que pudesse acrescentar algo mais, o rapaz agarrou-a pelo pulso. Não
sentiu dor, mas teve de lutar para desvencilhar-se. Ficou sem se mover,
irritada, mas não especialmente assustada. Os rapazes eram jovens,
tolos e dispostos a provocar confusão. Com o canto do olho viu o
paciente sentado ao lado da porta da sala de Hugo levantar-se e entrar.
Era um homem velho e movia-se com lentidão, porém os rapazes não
notaram. Segundos mais tarde a porta abriu-se e Hugo, parecendo
maior do que era na verdade, caminhou em sua direção com andar
decidido.
Passou o braço em redor de seus ombros e o rapaz largou seu
pulso, como se aquilo o estivesse queimando. Hugo falou sem levantar
a voz, mas ela ressoava como uma chicotada.
— Se você puser um dedo sequer em minha esposa, acabo com
vocês três! — Ele os olhou de cima a baixo, enquanto sua mão exercia
uma pressão reconfortante sobre os ombros de Sarah. Os rapazes
agruparam-se. Jogaram os cigarros no chão, se recompuseram, en-
quanto o mais jovem e o mais limpo de todos disse, precipitadamente;
— Olhe, doutor, não sabíamos que ela era sua mulher, juro que
não. — Seus companheiros começaram a falar ao mesmo tempo. —

Livros Florzinha - 66 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Era só uma brincadeira, nós não íamos fazer nada e não fizemos
por mal.
— É verdade — concordou Sarah, ainda indignada, mas cujo
senso de justiça era profundo. Ela olhou de relance para Hugo. Seu
rosto estava tenso e havia um brilho em seus olhos que prenunciava o
pior. Sarah acrescentou apressadamente: — Aceitarei suas desculpas,
se eles as oferecerem.
Surpreendeu um brilho irónico e inesperado no olhar de Hugo, mas
o que ele tinha a intenção de dizer foi interrompido por uma profusão de
desculpas, tais como "Perdão, dona" ou "Não queira mal à gente, dona".
Os três já caminhavam de fininho em direção à porta e estavam para
sair quando Hugo disse:
— Esperem! Por que foi que vocês vieram aqui? E não adianta
querer me despistar com mentiras.. .
Eles arrastaram os pés, deram de ombros e fitaram-no sem saber
o que dizer. Muito contra a vontade, abanaram a cabeça, assentindo, e o
rapaz que agarrara o pulso de Sarah sorriu desajeitadamente para ela.
— Vocês não valem nada — observou Hugo —, e acho que nem
sabem o significado da palavra trabalho. Venham na próxima semana.
Talvez a gente até precise da ajuda de vocês, mas não esperem receber
pagamento! — Eles pareciam surpresos, cheios de suspeita e, de certo
modo, agradecidos, quando ele completou: — Agora, rua! em um tom
que não admitia contestações. Eles se foram. Assim que saíram, ele
olhou Sarah. — Desculpe, Sarah. Eles a assustaram? — Falava com
tanta ternura que ela imediatamente ficou comovida. Secretamente
ficara um pouco alarmada, mas agora, por nada deste mundo, o
confessaria.
Ele pelo menos poderia ter perguntado se ela ficara preocupada,
indisposta ou qualquer coisa no género. Em vez disto, Hugo disse
brevemente: — É, imagino que não! — Retirou o braço dos ombros dela
e voltou para sua sala sem dizer mais nada, deixando-a um tanto
decepcionada.
Minutos mais tarde ele a solicitou para colocar uma atadura num
dedo machucado que acabara de lancetar. Ela executou sua tarefa com
uma calma plena de eficiência, contornando os protestos de dor do
paciente, e estava a ponto de sair da sala quando Hugo se inclinou,
tomou-a pelo braço e disse calmamente:
— Eu não devia ter trazido você para cá.
Suas preocupações no mesmo instante dissolveram-se numa onda
de felicidade. Ele, em absoluto, não estava zangado com ela; apenas
com ele mesmo.
— É que até há pouco pensei que você estava zangado comigo, e
depois achei que estava tudo bem, pois, na realidade, estava zangado

Livros Florzinha - 67 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

com você mesmo, e agora está novamente zangado comigo. — Fez


uma pausa. — E não sei qual a razão.
— Oh, minha querida... — Beijou-a bruscamente na boca. Afas-
tou-se dela quase que imediatamente. — Isto não deve acontecer de
novo. — Voltava a falar com sua voz de sempre, calma, controlada.
Pensou que ele estivesse se referindo aos três rapazes e tentou não
pensar no beijo, pois achou que ele tinha sido dado à guisa de descul-
pas.
Dez dias mais tarde ofereceram seu segundo jantar. Sarah, que
tinha apreciado intensamente o primeiro, não se sentia tão segura em
relação ao subsequente. Ainda mais que não conhecia muito as pessoas
que viriam e que eram um bocado mais velhas do que ela. Todos,
porém, eram colegas de Hugo, e alguns até mesmo amigos chegados.
Compreendeu que era necessária uma certa disposição de ânimo.
Começava a descobrir que ele era muito relacionado com jovens casais,
gente casada havia alguns anos e que já tinha filhos na escola; outros
eram pessoas com profissões um tanto vagas, mas que,
surpreendentemente, combinavam com todo mundo. Estava também
começando a compreender que ele agira com muita consideração,
introduzindo-a gradualmente em sua vida, de tal modo que ela, em
momento algum ficou surpreendida com o número de pessoas que
integravam o círculo de suas amizades. Agora começavam a aparecer
informalmente, de tempos em tempos, para um drinque à noite,
ocasionalmente para um jantar improvisado, e ela e Hugo retribuíam as
visitas. Seus amigos colocavam-na muito à vontade e a vida transcorria
agradavelmente. Que ela pudesse ser consideravelmente mais
agradável era algo a que ela fechava os olhos, apesar de ter suficiente
sensatez para saber que, mais cedo ou mais tarde, ela fraquejaria, ou,
pior ainda, explodiria, jogando tudo na cara de Hugo.
Sarah estava percorrendo as passagens mais expressivas de uma
sonata de Beethoven quando Hugo veio a seu encontro, enquanto
esperávamos convidados.
— Você estava tocando como se estivesse fugindo de algo,
Sarah. Está nervosa em relação a hoje à noite? Não há a menor
necessidade, saiba disto. Vai ser o maior sucesso. — Ela não respondeu
e ele prosseguiu: — Já comprei as passagens. Vamos tomar o navio que
sai ao meio-dia para a Holanda.
— Que bom, Hugo! Estou ansiosa para que chegue o dia. — Sor-
riu, levantou-se e abriu a porta do jardim, deixando Timmy e os ca-
chorros entrarem. Permaneceu lá, contemplando as flores. Sentia-se
muito só, apesar de Hugo estar no outro lado da sala, alto, elegante;
pleno de autoconfiança. Subitamente ele já não estava mais no lado
oposto da sala, mas junto a ela, e antes que ela pudesse respirar, ele já

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

a apertava em seus braços, sorrindo, com um olhar que fez o coração


de Sarah disparar loucamente.
— Sarah, há algo que eu .. — Foi interrompido pelo som da
campainha da porta de entrada. Soltou-a imediatamente, murmurou algo
confuso e então falou: — Acho que são nossos convidados.
Eram os Sopers, um casal muito agradável, de uns trinta anos, que
vivia nas proximidades. John Soper trabalhava na Bolsa de Valores e
conhecia Hugo havia anos. Os Peppards chegaram imediatamente após
e em seguida os Binns. Sarah cumprimentou-os a todos com uma
serenidade que mascarava muito bem a preocupação que sentia. O que
Hugo iria dizer exatamente? Achou que jamais saberia, pois na verdade
ele não tivera intenção de falar; as palavras lhe haviam escapado, sem
nenhuma premeditação. Esforçou-se por não pensar mais naquilo e
concentrou-se em seu papel de anfitriã com tamanho sucesso que, após
o jantar, as senhoras retiraram-se para
a sala de estar, elogiando sua habilidade em receber, deixando os
homens a conversarem em torno da mesa de jantar.
Alice trouxera a bandeja de café e Sarah estava ocupada com os
pires e xícaras. Foi tomada de surpresa, no momento em que todos os
homens vieram para a sala, ficando no maior embaraço quando o sr.
Peppard disse em voz alta:
— Não vi o menor sentido em ficar discutindo sobre política, anti-
bióticos e coisas desse género quando na verdade poderia estar com
você aqui, Sarah. Vou me sentar a seu lado e você me contará o que
achou da Escócia. — Puxou uma cadeira e prosseguiu: — Há uma
vantagem em ser mais velho, minha cara. A gente pode fazer o que bem
quiser e é considerado excêntrico, em vez de mal-educado.
Sarah serviu o café, em meio às risadas que se seguiram, e
obedecendo ao desejo do sr. Peppard, distraiu-o com seu relato sobre a
Escócia. Aos poucos a conversa generalizou-se e ela sentiu-se mais
livre para olhar à sua volta. Hugo estava no outro lado da sala, con-
versando com Margery Soper, quando a sra. Binns tirou vantagem de
uma pausa para comentar maliciosamente:
— Imagino que esta casa contenha alguns quartos de criança es-
plêndidos no primeiro andar. Foi construída num período em que as
famílias grandes eram a regra. — Olhou Sarah. — Você pretende usá-
los?
Com admirável compostura, Sarah encarou a indiscreta convidada.
Sabia muito bem que Hugo, como todos os demais, estava ouvindo.
Disse, sem alterar a voz:
— Para falar a verdade, há alguns quartos de criança excelentes
no primeiro andar.

Livros Florzinha - 69 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

A voz de Hugo se fez ouvir através da sala: — Tenho boas


recordações desses quartos. São virtualmente à prova de som. Minhas
irmãs e eu brigávamos aos brados, enquanto a criada, desnorteada, não
sabia o que fazer.. . Minha avó era um tanto surda, e minha mãe ficava
num estado de apreensão permanente, sem saber o que iríamos
aprontar em seguida.
Margery Soper falou rapidamente, como se estivesse querendo
aproveitar a oportunidade:
— Diga uma coisa: você ainda briga com suas irmãs? Não
consigo imaginá-lo fazendo isso, com quem quer que seja!
Todos riram, mas a sra. Binns ainda queria saber mais a respeito
dos quartos das crianças. Ela sabia, como de resto os demais presen-
tes, que Sarah e Steven tinham estado apaixonados um pelo outro. Fora
providencial o fato de Hugo ter-se casado com ela, deixando o caminho
livre para a querida Anne. E apesar de não haver dúvidas de que Sarah
era feliz, não havia como negar a evidência de que ela era uma bela
mulher e que atraía os homens.
O último hóspede se foi por volta das onze horas. A noite
transcorrera muito bem, pelo menos Sarah assim achava. Ouviu a voz
de Hugo:
— Não me recordo de ter contado aquela história de minha
infància, quando lhe mostrei a casa. — Sua voz era terna, e apesar de
não se tratar de uma pergunta, ela sabia muito bem que ele esperava
uma resposta.
— Não — respondeu Sarah, tentando manter um tom bem casual
— você, de fato, não contou. Foi Alice quem me contou, pois andei
indagando. Você. ., não queria que eu soubesse, não é? — Voltou-se e
encarou-o. — Mas gosto muito desta casa. Queria percorrê-la inteíra,
portanto perguntei a Alice. Você não se importa?
Sua resposta foi concisa.
— Teria preferido que você me perguntasse.
— Achei que, como você não tinha feito referência ao assunto.
— Tinha esquecido o quanto você é discreta, Sarah.
Ela não respondeu, pois não havia nada a ser dito, nada que pu-
desse penetrar naquela sua fria reserva. Ele a precedeu, caminhando
em direção à sala de estar, apagando as últimas chamas que ainda
crepitavam na lareira. Falou por cima do ombro:
— Gostaria de ir visitar seus pais no domingo? Vai ser um pouco
em cima da hora, mas talvez eles gostem de que vamos almoçar lá.
— Eu bem que gostaria, e mamãe naturalmente não se importará.
Devo telefonar para ela amanhã?

Livros Florzinha - 70 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Ele enfiou as mãos nos bolsos e respondeu: — Sim, por favor. —


Sorriu, numa apreciação muda do temperamento de Sarah, sempre
elegante, encantadora e bem-humorada.
O coração de Sarah disparou, porque ele estava muito próximo
dela e ao mesmo tempo ela sentiu a cólera prestes a explodir. Fez um
esforço e disse: — Não estava sendo discreta, estava apenas sendo
delicada, ou pelo menos julguei. Deve ser penoso, para você, falar do
quarto das crianças; talvez ele abrigasse, um dia, seus filhos e os de
Janet,
Deparou com o olhar atónito de Hugo: — Boa noite!
Passou diante dele e começou a subir as escadas. No momento
em que chegou ao quarto tinha se arrependido de cada palavra que pro-
nunciara.
Podia ter pedido desculpas na manhã seguinte, mas ele não lhe
deu a menor oportunidade. Não havia nada em sua maneira de agir que
traísse seus sentimentos. Hugo abordou o assunto das férias que se
aproximavam e quis saber se ela teria tempo de ir até a rua da Rosa
naquela noite. Em seguida foi para o consultório, deixando-a na dúvida
sobre se realmente tinha ouvido o que ela lhe dissera na véspera.
Sarah chegou um pouco mais cedo ao Hospital St. Edwin e sen-
tou-se no carro, à espera de Hugo. Quando apareceu, tinha a seu lado
Dick Coles e Jimmy. Estavam entretidos numa discussão e subitamente
inclinaram a cabeça, examinando os papéis na mão de Hugo. Ao vê-lo,
Sarah sentiu-se imediatamente perturbada. No entanto isto não
transpareceu em sua fisionomia e ela cumprimentou os três tão à
vontade que de modo algum traía o que se passava dentro dela.
Foi um alívio chegar à rua da Rosa e mergulhar no burburinho da
sala de espera. Sandra tinha saído de férias, mas Sarah tinha a ajuda
ocasional dos três rapazes que respondiam pelos apelidos de Baixinho,
Canhoto e Tom que, cumprindo sua promessa, tinham-se tornado
auxiliares eficientes no consultório. Na primeira noite em que eles
apareceram ela ficara desanimada com sua falta de jeito, mas agora
haviam-se passado vários dias e eles começavam a se tornar eficientes.
Pediu-lhes que anotassem os nomes dos pacientes, de modo que
pudesse localizar as fichas individuais. No entanto, muitas fichas teriam
de ser refeitas e era também necessário colher muito material para
exames de laboratório.
Naquela noite restavam somente dois pacientes quando a porta
abriu-se com violência e uma mulher ainda jovem, carregando um
pequeno volume, entrou. Colocou-o nas mãos de Sarah; estava pálida
como um defunto e procurava desesperadamente se exprimir, incapaz
de articular qualquer som. Na verdade, ela nem precisava falar: o
volume era um bebê pequeno. A criança estava toda queimada; vivia,

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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porém. Sarah agradeceu aos Céus ao ouvir sua vozinha fraca, apesar
de horrorizada com a dor que a criança devia estar sentindo. Caminhou
direto para o consultório de Hugo, pôs o bebê sobre um divã, indicou a
mãe e mergulhou uma toalha em solução salina. No momento em que
Hugo solicitava: — Quer providenciar. . . — a toalha já estava pronta e
ela embrulhava cuidadosamente o bebê. Hugo disse: — Já para o
hospital!
Ela sentou-se a seu lado, com aquele fardo patético nos braços,
enquanto ele guiava pelas ruas apinhadas de veículos. Era a primeira
vez que ela o via com a mão na buzina.
Encontraram enfermeiras já à sua espera, pois John Bright telefo-
nara. Sarah entregou o pequeno paciente para uma atendente, levou a
mulher para uma das saletas e deu-lhe chá, enquanto solicitava dela
todas as informações de que o hospital necessitava. Parecia que tinham
ficado lá por uma eternidade, apesar de que não se tinha passado nem
uma hora. Finalmente, a enfermeira de plantão veio dizer que a criança
tinha boas possibilidades de se salvar e que a mãe poderia passar a
noite no hospital, se quisesse. A mulher acompanhou-a e seu rosto,
devido ao choque, não tinha a menor expressão.
O silêncio no setor infantil era quase total, não fora a atividade
febril na pequena sala do fundo do corredor. Através da divisória de
vidro Sarah notou a maca no meio da salinha, bem como o aparelho de
soro, manipulado pela enfermeira da noite. Hugo falava com o médico
de plantão; lá estavam também mais uma enfermeira e a mãe da
criança. Esta, ao vê-los chegar, saiu correndo ao seu encontro,
esquecendo-se até mesmo de tirar o avental branco que lhe tinham
dado. Ao chegar até eles, atirou-se desesperada nos braços do marido,
que chegara com o dr. Bright. Ele a apertou de encontro a si e, apesar
do susto, procurou reconfortá-la. Beijou-a na boca, e Sarah desviou o
olhar, chocada ao perceber que sentia inveja da moça. Invejar uma
mulher tão infeliz, só porque seu marido a amava! Fechou os olhos por
um segundo e, quando voltou e abri-los, Hugo também estava no
corredor e a observava. Ela deu as costas e foi para a recepção; não
havia mais nada a fazer, a não ser esperar por ele. Daí a pouco ele
apareceu e disse calmamente:
— Sinto muito fazê-la esperar, Sarah.
Falaram muito pouco no caminho de volta para Richmond. Sarah
sentia vontade de dizer-lhe o quanto estava arrependida, mas sim-
plesmente não conseguia encontrar as palavras apropriadas.
No domingo, após o almoço com os pais, decidiu levar os
cachorros para dar uma volta. Hugo juntou-se a ela inesperadamente e
Sarah nesse momento resolveu lançar mão de toda sua coragem.

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Tinham chegado ao topo do morro e fizeram uma pausa para admirar a


paisagem à sua volta. Ela falou rapidamente, antes de mudar de ideia:
— Desculpe ter sido tão brusca naquela noite, Hugo. Jamais de-
veria ter dito aquilo. Peço-lhe perdão, e se Janet estivesse aqui, pediria
perdão a ela também.
— Se Janet estivesse aqui, aquelas suas palavras jamais teriam
sido pronunciadas.
Ela ficou surpreendida com sua risada, até compreender que ele
estava escondendo seus verdadeiros sentimentos. Deparou-se com seu
olhar zombeteiro, enquanto ele observava: — Sabe, Sarah, não creio
que tenha ficado magoado. Deveria ficar?
Sarah ficou toda ruborizada. — Por favor, não caçoe, Hugo. Antes
de nos casarmos, você falou como se sentia a respeito de Janet...
Ele parou de sorrir e fitou-a sem a menor expressão no rosto.
Disse finalmente: — Querida, desculpe. Não imaginei que você se
preocupasse tanto com minha felicidade. Estamos quites?
Deu-lhe um beijo rápido e ela conseguiu esboçar um sorriso bas-
tante convincente. Imediatamente puseram-se a falar sobre as próximas
férias, e Sarah conseguiu ignorar a dor que sentia.

CAPITULO VII

Chegaram a Amsterdam quando o sol se punha. O tempo estava


muito agradável quando desceram em Zeebrugge. Seguiram a estrada
litorânea até Le Zoute, tomaram chá e em seguida pegaram o ferry-boat
em Vlissingen. Havia uma fila imensa de caminhões enormes,
bloqueando-os por todos os lados. Sarah ficara muito admirada ao ouvir
Hugo conversando em holandês com um dos choferes. Quando
estavam apoiados na amurada, olhando as águas cinzas do Scheldt, ela
disse:
— Sabe, quase havia esquecido que você é holandês. Seu inglês
é tão perfeito! Isto é, quase perfeito.
Ele sorriu displicentemente. — Meu Deus, será que cometo erros
de concordância?
— Não seja tolo! Não estou me referindo à gramática. Falo apenas
de seu sotaque, que aparece só de vez em quando. — Franziu a testa.
— Como gostaria de saber falar holandês, nem que fosse algumas
palavras. Você não pode me ensinar um pouco?
— Talvez, uma ou outra palavra, as que forem mais necessárias.
Minha família fala inglês e, por esse lado, você não terá a menor
dificuldade.

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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Não tocaram mais no assunto, pois já estava na hora de


desembarcar. Mais tarde, ao atravessarem a planície em direção a
Bergen-op-Zoom, conversaram a respeito da paisagem local. A estrada
era muito boa e atravessava campos intermináveis, ladeada por
numerosas aldeias e torres de igrejas, sob um céu muito vasto, cuja
imensidão azul começava a ser povoada por nuvens. Passaram por
Breda, uma visão impressionante de igrejas e campanários, vistos de
relance, e finalmente atravessaram a ponte de Moordijk sobre o
Hollandsche Diep, o que valeu de Hugo uma longa explicação.
Rotterdam pareceu a Sarah um emaranhado de viadutos, pontes e
tráfego fluindo por todo lado. Ainda não se habituara totalmente a
trafegar na mão direita, o que não parecia em absoluto preocupar Hugo.
Ele dirigia sem a menor hesitação, comentando os aspectos
interessantes da cidade. Sentiu certo alívio ao deixar o centro da cidade
para trás. Estava começando a chuviscar, mas o campo era muito
bonito, povoado de pequenas aldeias, cujas casas pareciam, saídas de
uma tela de Rembrandt. Enquanto diminuíam a marcha; para atravessar
Alpen-aander-Rijn, Hugo falou-lhe a respeito do Parque Internacional de
Pássaros: — Se você quiser, viremos jantar aqui uma noite dessas. Há
um restaurante excelente, e acho que você vai gostar.
Sarah replicou entusiasmada: — Oh, por favor, quero sim. Vou
gostar muito. Como tudo isto é interessante!
Aliás, mais do que interessante. Ela estava começando a se dar
conta de que ficariam juntos por duas semanas ou mais. Custava a crer
que era verdade; a ideia era tão empolgante que seu coração começou
a bater mais forte. Nem percebeu que estava sorrindo, até que Hugo
pousou as mãos sobre as dela.
— Por que está sorrindo desse jeito? — ele perguntou
calmamente. — Sente-se feliz?
Ele retirara a mão, mas ela ainda sentia seu calor. Hugo jamais
indagara se ela era feliz. Ela então respondeu: — Sim, sou. E nunca fui
tão feliz. .. — Fez uma pausa, pois estivera a ponto de dizer que sentia
assim desde o momento em que descobrira que não amava Steven;
mas estava claro que ela não se exporia tanto. — Há muito tempo que
isto não acontecia; — acrescentou sem muita convicção, e continuou: —
Ao dizer isto, até parece que não sou feliz, o que não é verdade. Gosto
do meu casamento. — O comentário parecia um tanto ingénuo, mas era
verdade; pelo menos, era o máximo que ela conseguia lhe dizer.
Ele disse, pensativo: — Obrigado, Sarah. Acho que nós dois. ..
hum. .. combinamos admiravelmente um com o outro.
Depois disso, mergulharam em um silêncio cúmplice, até que ele
sugeriu que Sarah talvez gostasse de examinar o mapa, já que se
aproximavam de Amsterdam.

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Estavam novamente na estrada principal, cruzando Schípol. Ela


contemplou a paisagem tanto quanto pôde e, em seguida, examinou
detidamente o mapa de Amsterdam.
— Parece uma teia de aranha — disse, recebendo em resposta a
observação de que ela era uma pessoa inteligente, pois Amsterdam se
apresentava exatamente assim.
Ele ultrapassou um caminhão e se meteu no meio do tráfego pesa-
do que se encaminhava para o coração da cidade. — Nosso hotel é no
centro de Amsterdam — ele explicou, — E uma pena que não fiquemos
mais tempo, mas da próxima vez passaremos uma semana aqui ou
então podemos vir de avião para um fim de semana.
Agora estavam em plena cidade. Sarah contemplou as casas altas
é estreitas e a infinidade de lojas, bem como os canais onipresentes,
pensando com seus botões como seria agradável passar de vez em
quando o fim de semana numa viagem daquelas, toda vez que se
tivesse vontade. Sua família não era pobre, porém mais do que uma
viagem de férias por ano prejudicaria as finanças. Ao que parecia, Hugo
não exagerara ao lhe dizer para não se preocupar com dinheiro. Era
uma pensamento agradável.
— Pelo que vejo, temos de dar uma olhada em tudo isto antes de
viajarmos amanhã. Aliás, para falar a verdade, não temos necessidade
de chegar a Vierhouten antes da tarde, e portanto podemos passar o dia
inteiro aqui.
Ela acrescentou apressadamente:
— Oh, não me importo nem um pouco. Só que tudo isto para mim
é tão estranho, tão novo, e eu morro de curiosidade.
— Bem, estamos quase chegando. Aqui é o Munttoren: o hotel é
do outro lado da ponte.
O hotel estava lindamente situado díante de um canal, e interior-
mente era tranquilo e confortável. Hugo já se hospedara lá e ainda
lembrava-se dele. Sarah, a seu lado, enquanto ele assinava as fichas,
desejou poder compreender pelo menos um pouco do que estava sendo
dito.
Seu quarto era bonito, muito confortável e tinha uma vista linda
sobre o canal. Ficou olhando pela ampla janela por alguns minutos,
atravessou o banheiro comum e entrou no quarto de Hugo. Ele levantou
os olhos no momento em que ela apareceu.
— Que tal jantarmos dentro de meia hora? Pode usar o banheiro
primeiro.
Ela assentiu. Gostaria muito de desfazer a mala dele e conversar,
mas sentiu uma certa reserva que a impediu de dar a sugestão. Voltou
para o quarto e pôs um vestido de jérsei de seda estampada em rosa e
creme. Desceram para o jantar: sua aparência atraiu numerosos olhares

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de admiração, mas ela nem se importou. Mais significativo para ela foi o
cumprimento de Hugo: — Você está encantadora. Sarah!
Ela jantou com excelente apetite, sentindo-se muito contente, e
quando terminaram a refeição acompanhou-o para um passeio pelas
ruas da vizinhança. A rua Rokin tinha alguns antiquários de dar água na
boca, e apesar de ela não ser muito entendida nesses assuntos,
conhecia o suficiente para apreciar os tesouros que ele lhe apontava. O
que lhe chamou especialmente a atenção foi um belo serviço de prata e
uma coleção de cálices dourados que provavelmente constituíam parte
do enxoval da filha de algum rico fazendeiro, há mais de duzentos anos,
segundo explicou Hugo.
Voltaram para o hotel. Ele foi ler jornais e ela se deitou, munida
com um guia de Amaterdam e a última edição parisiense da VOgue. Ao
folheá-la, ela tomou consciência de que uma das muitas razões pelas
quais ela amava Hugo se devia ao fato de que ele vivia cobrindo-a de
gentilezas, sem nunca chamar atenção sobre o fato.
Estava ocupada em se pentear na manhã seguinte quando ele
bateu à porta. Com a boca cheia de grampos, murmurou um abafado:
"Entre". Ele abriu a porta apenas alguns centímetros, perguntou se ela
tinha dormido bem e se conseguiria chegar sozinha até o restaurante,
onde ele estaria à sua espera para o café da manhã.
Hugo estava à sua espera sentado à mesa, lendo um jornal.
Levantou os olhos quando ela se aproximou e exclamou, enchendo-a de
prazer: — É novo. Gosto muito!
Ela sentou-se, Ligeiramente ruborizada pelo elogio à sua roupa, e
no mesmo momento percebeu o pequeno embrulho ao lado do prato.
Fitou Hugo, que no mesmo instante lhe disse: — Vamos, abra! Ê seu,
Sarah.
Era uma antiga corrente relógio que ela admirara na noite anterior,
comentando que daria uma pulseira sensacional. Retirou-a da caixa,
exclamando: — Oh, Hugo, que linda! Quanta bondade de sua parte!
Muito obrigada! — Observou seu rosto, na esperança de poder ver
estampado nele algo mais do que a calma expressão de sempre, o que
não aconteceu.
— Algo que lhe recorde Amsterdam — ele observou, tirando a cor-
rente de suas mãos e enrolando-a em torno de seu pulso. — Que bom
que você gostou. — Ele então sorriu, o mesmo tipo de sorriso que seu
irmão poderia lhe ter dado, ela disse a si mesma desesperançada:
afetuoso e bem-humorado.
Já estavam quase terminando quando Hugo foi saudado por um
homem que acabara de entrar. Encaminhou-se rapidamente em direção
à mesa e Sarah teve tempo de observar que era tão alto quanto Hugo,

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apesar de um pouco mais forte e quase de sua idade. Hugo estendeu a


mão.
— Jan, mas que prazer! O que você está fazendo aqui? Quero lhe
apresentar minha esposa. — Olhou Sarah. — Sarah, quero que você
conheça um de meus mais antigos amigos na Holanda. Estudamos no
mesmo colégio. Jan Denekamp.
Ela estendeu a mão e sorriu deliciada quando o recém-chegado
disse:
— Há muito que quero conhecê-la, Sarah. Posso chamá-la por seu
nome? Ouvimos falar tanto da mulher de Hugo. . . Tudo o que se disse
estava abaixo das expectativas!
O amigo sentou-se imediatamente, mas não aceitou seu ofereci-
mento para tomar café. — Já tomei há muito tempo. Vi vocês dois lá da
rua. Estou indo encontrar Jacoba e as crianças. — Voltou-se para
Sarah. — Você precisa conhecer minha esposa e também meus seis
filhos. — Ele mal deu tempo a ela de dizer que sim e prosseguiu. — O
que está achando de Amsterdam? Vão ficar muito tempo? Imagino que
devem visitar a família de Hugo.
Sarah falou rapidamente, antes que ele a interrompesse: — Che-
gamos ontem à noite...
— E partimos hoje — acrescentou Hugo. — Quero mostrar um
pouco da Holanda a Sarah e planejamos visitar Gemina.
Jan levantou a sobrancelha. — Que bela viagem! Garanto que vo-
cê trouxe aquele seu carro estupendo. Você gosta de correr, Sarah?
— Com Hugo, sim, gosto — ela respondeu, sendo recompensada
pela expressão no rosto de Hugo. Jan Denekamp comentou, bem-
humorado. — É assim que uma boa esposa fala! Mas você também tem
um bom marido, a menos que ele tenha mudado recentemente.
Mais alguns minutos e ele se despediu, voltando a convidá-los pa-
ra uma visita quando tivessem a oportunidade. — Da próxima vez que
vierem, está certo? Agora não seria justo insistir, pois não faz muito
tempo que estão casados e querem estar a sós.
Durante a manhã ela perguntou a Hugo se Jan também era médi-
co, uma indagação que o fez rir muito. — Deus me livre! — ele repicou.
— Trabalha com a Marinha Mercante. Gostou dele?
— Sim, muito. Ele nunca vem à Inglaterra? Gostaria de conhecer
sua mulher.
— Costumam sempre vir alguns dias antes do Natal. Poderíamos
convidá-los para ficar conosco. Você gostará de Jacoba.
— E as seis crianças?
— Você gostara delas também. Acho que conseguiremos acomo-
dá-los todos, não é mesmo? Jan e Jacoba são muito dedicados um ao
outro.

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Ela comentou, pensativa: — Sim, acho que são mesmo. Isto é, no-
ta-se ... o modo como ele disse seu nome. — Fez uma pausa, — Sim, é
evidente — reiterou, como se ele a estivesse contradizendo, o que aliás
não acontecera.
Comeram no De Borderij. Pediram frango no espeto e um excelen-
te vinho borgonha, que ela achou um tanto forte. Sarah pediu como
sobremesa um delicioso bolo de amêndoas recheado com creme, co-
mentando feliz que era uma sorte tais coisas não afetarem em nada seu
peso.
Após o almoço Hugo levou-a para conhecer a Nova Spiegel-straat.
Sarah comentou que ela não era absolutamente nova, pois as
casas todas tinham uns duzentos anos e quase todas tinham se tornado
lojas de antiguidades. Percorreram-na inteira, e Hugo, sempre genltil,
comprou-lhe um koekeplank esculpido, pois ela tinha achado que a peça
ficaria muito bem na cozinha de Richmond. De lá, as lojas da rua Síngel
eram um pulo. Numa delas Sarah ficou entusiasmada com uma gravura
antiga avte Hugo comprou.
Deixaram o hotel após o chá. Vierhouten era a uns oitenta
quilômetros, mas a tarde que caia estava agradável e não havia pressa.
Hugo deixou a rodovia principal assim que saíram de Amsterda e tomou
a estrada de Hílversum e Weesp. Tomou em seguida uma das estradas
secundárias que parecia conhecer tão bem. A região era muito
arborizada e as pequenas cidades pareciam prósperas, com casas de
veraneio em meio a jardins. Aqui e ali erguiam-se sólidas casas
quadradas, bem afastadas da estrada, e escondidas em meio às
árvores. Hugo, atencioso como sempre, deu uma parada em Soestdíjk,
a fim de que Sarah pudesse apreciar o palácio real, traçando ao mesmo
tempo uma história sucinta da Dinastia de Orange. Tomou novamente as
pequenas estradas que cortavam o campo, na região de Veluwe, até
chegarem ao hotel. Estava deliciosamente situado no meio de um
bosque. Talvez não fosse muito imponente, mas era confortável, a ponto
de chegar quase ao luxo. Sarah mudou de vestido e olhou em torno do
quarto. Hugo, na verdade, era um homem que esperava e obtinha as
melhores coisas da vida.
Mais tarde, enquanto sentavam-se para o jantar, ele indagou: —
Espero que goste deste lugar, ouviu, Sarah? Sempre o achei muito
agradável. Foi reaberto há uns dois anos, mas é confortável e a comida
é boa.
Ela como entrada, comia enguia defumada.
— É muito bonito. Diga-me, Hugo, você conhece os melhores ho-
téis da Europa?

Livros Florzinha - 78 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

— Oh, minha querida, você me dá muito crédito — ele respondeu


displicentemente. — E, para ser honesto, jamais encontrei nada melhor
do que o meu próprio, aliás, do que nosso lar.
— O chalé? — ela perguntou, e viu um brilho divertido em seus
olhos.
— Ah, o chalé. .. meu esconderijo, não é? Ou melhor, nosso
esconderijo .. . Cada vez que vou lá tenho a sensação de que vai
acontecer algo maravilhoso.
— Talvez aconteça mesmo — disse Sarah, um tanto intencional,
Seus olhos cinza fitaram os dele e ela ficou momentaneamente perdida
em um mundo de sonhos, que englobava ela, Hugo e o chalé. — Você
não se sente assim em mais nenhum lugar? — Havia certa ansiedade
na voz dela e ele a olhou de relance antes de responder:
— Agora que você menciona o assunto, experimentei recentemen-
te este sentimento, aliás em mais de uma ocasião. E, ainda mais, não
tenho a menor dúvida de que mais cedo ou mais tarde este mesmo
sentimento vai se tornar algo mais substancial.
Sarah ficou em silêncio. Estaria ele esperando encontrar Janet no-
vamente, após tantos anos? Ela abriu a boca, disposta a interrogá-lo,
quando ele disse apressadamente: — Você estava me perguntando a
respeito de Veluwe. Deixe-me explicar. . .
A explicação durou todo o tempo do jantar e prosseguiu até um
pouco mais tarde, enquanto davam um breve, passeio. Em seguida
Sarah foi dormir, com a cabeça cheia de informações.
Passaram o dia seguinte sem fazer nada, porque Hugo dissera
que ela precisava de um dia tranquilo antes de entrar em uma ronda de
visitas. Andaram pelo campo na parte da manhã, e à tarde jogaram
ténis. Sarah, que se orgulhava de ser boa jogadora, perdeu feio, mas
sentiu-se consolada ao pensar que Hugo não fizera a menor concessão
ao jogar. Sentiu-se ainda mais consolada quando, à noite, ele levou-a
para jantar no De Ouwe Stee, um restaurante situado em uma fazenda
do século dezoito. Seu interior era exatamente o que Sarah esperava de
uma velha casa holandesa, e ela quase esqueceu o propósito que a
trouxera ali enquanto olhava à sua volta, fazendo muitas perguntas, às
quais Hugo respondeu concisamente, revelando mais uma vez seus
sólidos conhecimentos. Finalmente ele disse rindo: — Minha querida,
prometo trazer você aqui novamente. Agora vamos jantar?
Ela deu um sorriso encantador, mostrando uma covinha que ele
ainda não havia notado, Deu-lhe uma resposta impertinente, tomada
subitamente pelo desejo de provocá-lo. Sabia que estava bela; usava
novamente o vestido de jérsei estampado, e a iluminação indireta a
favorecia demais. Sorriu e mais uma vez a covinha apareceu. Indagou
displicentemente:

Livros Florzinha - 79 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

— Você já esteve aqui antes?


— Oh, sim, muitas vezes, com Jan.
— Só vocês dois? — ela quis saber.
Ele se pos a sorrir. — Naturalmente que Jacoba estava com Jan;
já não lhe disse que eles são inseparáveis?
Sarah estudou o brilhante de seu anel de casamento, como se so-
mente naquele momento reconhecesse sua magnificência. — Oh? Três
é um número tão esquisito. ..
— Concordo com você — ele respondeu, com um leve tom de irri-
tação na voz. — Mas é que éramos quatro.
Ela se pôs a destrinchar o poulet grand'mère desejando de todo
coração jamais ter iniciado aquela conversa, tão tola. Como se ela
se importasse com quem ele tinha estado! E se ele pretendia fazer
segredo a respeito do assunto, ela pouco se importava. , .
Hugo riu.
— Pergunte! incitou.
Ela dirigiu-lhe um olhar furioso. — Perguntar o quê? indagou.
— Não quer ficar sabendo a respeito das mulheres que eu trouxe
aqui?
Ela arqueou as sobrancelhas, com uma expressão que julgava ser
de surpresa e dignidade, mas não pôde evitar encontrar seu olhar
divertido.
— Pouco se me dá — disse um tanto asperamente, mas ficou ató-
nita quando ele replicou no mesmo momento e com toda paciência de
que era capaz:
— Claro, Sarah, você não se importa e tem toda razão. Por isso
mesmo nosso casamento é tão.. . racional. Afinal de contas, somos duas
pessoas maduras, que tèm a cabeça no lugar; já não somos mais dois
adolescentes, cuja sensatez é afogada pela emoção. Sorriu des-
contraído, e ela desejou interiormente não passar de uma adolescente.
Não queria ser aquela mulher madura, cujas emoções não pareciam
levar a idade em consideração. Ouviu-o dizer:
— Recomendo o pudim daqui. Quer que eu peça?
— Ela disse: — Não, obrigada. Quero só café. — O tom com que
se exprimia era polido, porém mal disfarçava a curiosidade, a raiva e a
frustração. Ele pareceu não ter notado; chamou o garçom, pediu o café
e continuou falando como se ela jamais o tivesse interrompido.
— A primeira vez que vim aqui trouxe uma. . . Deíxe-me ver... Ah,
sim, ela era loura, alta e bonita. — Franziu o cenho,.procurando se
lembrar de algo. — Não consigo recordar o nome dela. Bem, não
importa. Ela era um bom garfo. Não, não me olhe assim, Sarah. Você
gosta de comida, como você gosta de tudo mais na vida. Ela não; nada
mais lhe interessava. — Suspirou. — Era mesmo um caso perdido.

Livros Florzinha - 80 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Sarah reprimiu uma risada e manteve um ar de severidade, porém


ele prosseguiu, imperturbável: — Voltamos novamente, passado um
ano. Desta vez trouxe Elsa, uma ruiva encantadora, baixinha e cheia de
não-me-toques; imagine que ela estava fazendo regime. Não comeu
quase nada e nós tivemos de acompanhá-la. Lembro-me de que quando
a levei para casa voltei a encontrar Jan e Jacoba e fomos para um café
em uma aldeia. Lá comemos kaas brodjes e patat frit, tudo regado a
Pila. Jacoba mostrou-se encantadora, porém isto faz parte de sua
natureza.
Sarah mexeu o café e observou: — Que falta de sorte você tinha
com suas companhias... as
Ele assentiu, divertido. — Não é mesmo? Mas da terceira vez tive
muita sorte. Foi perfeito, minha cara Sarah. Ela tinha a estatura ideal,
um corpo perfeito, era linda, inteligente; uma voz encantadora, apetite
normal.. .
— Que bom para você! — replicou Sarah. asperamente, lançando
um olhar furioso. Ele estava recostado à cadeira, com toda displicência;
surgiu um brilho em seu olhar que a fez corar. Sarah exclamou, um tanto
sem jeito: — Oh! — Como não conseguia disfarçar por muito tempo,
acrescentou: — Você está se referindo a mim?
Ele respondeu com muita ternura: — Estou, sim, Sarah. Acho que
você não se opõe a que um marido, por mais racional que seja, elogie
sua mulher?
Seu coração batia furiosamente, e ela tentou se dominar, antes de
responder: — Claro que não. Obrigada. Eu não mereço, depois de ter
feito tantas perguntas indiscretas.
O coração ainda batia forte. Talvez fosse uma boa ideia mudar de
assunto. Indagou: — A que horas viajamos amanhã? Estamos sendo
esperados para o almoço?
Ele não pareceu estar muito inclinado a abordar outros temas e ela
não soube dizer se isto a deixou contente ou aborrecida.
Antes de dormir naquela noite, Sarah prometeu a si mesma que
nunca mais se abandonaria ao impulso infantil de saber mais a respeito
da vida de Hugo antes de terem se conhecido, pois mesmo tendo sua
curiosidade satisfeita, sua paz de espírito ficava abalada.
A casa dos pais de Hugo era uma residência de bom tamanho, de
teto muito inclinado e que ficava em meio a um parque, bem afastada da
estrada. A aldeia ficava a mais ou menos dois quilómetros, talvez até
menos, mas toda aquela região, coberta de bosques espessos, fazia a
casa parecer mais isolada do que na verdade era. Estava rodeada por
grades de ferro; um muro baixo de pedra delimitava o jardim em frente à
casa e um portão imponente, de batente duplo, ficava permanentemente
aberto.

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Hugo não disse nada enquanto subiam a escada em direçào à por-


ta de entrada, e Sarah ficou um tanto desapontada com a casa. Foram
recebidos por uma criada de certa idade, que prorrompeu em
exclamações de boas vindas ao ver Hugo, e indubitavelmente teria feito
o mesmo com Sarah se elas pudessem se compreender. Mesmo assim,
pronunciou um pequeno discurso em sua própria língua e apertou a mão
de Sarah.
Mien parecia ter gostado e, muito gentil, abriu a porta de par em
par. Sarah, completamente tomada pela surpresa, parou, exclamando:
— Oh! — Tinha se enganado redondamente. A casa não era, em
absoluto, vitoriana, e sim decorada no mais puro estilo holandês antigo,
com ladrilhos brancos e pretos, a escada toda esculpida, paredes
rebocadas de branco, com lambris de madeira.
— Não esperava por isto, não é? — perguntou Hugo. — O
antepassado que construiu esta casa tinha uma frota de navios que
comerciavam com as Índias Orientais e fez fortuna. Foi acumulando o
mobiliário ao longo dos anos, porém recusava desfazer-se da mobília
que havia herdado. Esta casa, portanto, é uma espécie de museu,
porém muito confortável. Quando se nasce aqui, como eu, acaba-se por
amá-la. Espero que isto aconteça com você um dia.
Atravessaram o hall, enquanto ele falava, Mien abriu a porta para
um aposento que Sarah imaginou ser a sala de visitas. Hugo tomou-a
pelo braço e a fez caminhar em direção à lareira de mármore, ladeada
por duas poltronas enormes e numerosas cadeiras de balanço, das
quais Mijnheer e Mevrouw van Elven levantaram-se para acolhê-los com
um calor que deixou Sarah inteiramente à vontade em poucos minutos.
Depois do almoço, Hugo e seu pai retiraram-se para o escritório, a
fim de discutir o que sua mãe denominava "assuntos de família". Isto,
porém, informou a senhora, enquanto levava Sarah para conhecer
melhor a casa, seria liquidado em alguns minutos, e eles em seguida
poderiam entabular uma longa conversa sobre o assunto de sua
predileção: medicina. Enquanto subiam as escadas, sua sogra disse
bondosamente:
— Ficamos tão contentes por você ter entrado na família, Sarah.
Você é a mulher ideal para Hugo; compreende seu trabalho e será de
muita valia para ele. Ele nos contou que você o ajuda na clínica da rua
da Rosa. Como ele deve ficar contente com isto, e como você deve se
sentir satisfeita por trabalhar em sua companhia! É um trabalho tão
meritório.. . Claro que, quando as crianças nascerem, não será tão fácil
para você.
Sarah deu uma resposta apropriada, e imaginou um punhado de
crianças, todas muito parecidas com Hugo, subindo atropeladamente as
escadas, à procura da querida vovó holandesa. No entanto, era-lhe

Livros Florzinha - 82 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

difícil pensar nisso. Concentrou-se em observar os retratos pendurados


ao longo das paredes do corredor que atravessavam. Dominou-se o
suficiente, procurando se interessar pelos aposentos que percorriam,
enquanto Mevrouw van Elven continuava proseando.
Voltaram à sala de visita, e logo depois o chá foi servido. Termina-
vam o chá e preparavam-se para partir quando o pai de Hugo levantou-
se da cadeira e veio sentar-se ao lado de Sarah. Olhou de uma forma
muito parecida com a do filho, e disse:
— Sarah, nós queremos lhe dar algo. Não foi possível levá-lo
conosco, no dia do casamento, e você deve nos desculpar, mas agora
você vai levá-lo, pois Hugo sabe como fazer com a alfândega. —
Pôs uma pequena caixa de veludo em suas mãos. — É antigo, tem du-
zentos anos, e agora que você é da família queremos que fique para
você. Quando Hugo herdar, você, é claro, ficará com todas as jóias, pois
elas de direito lhe pertencerão. Isto aqui é apenas uma lembrancinha.
Sarah abriu a caixa. A "lembrancinha" era um broche de diamantes
em forma de lua crescente, e de um tal esplendor que somente poderia
ser comparado com seu anel e os brincos.
Ela disse baixinho, quase sem fôlego diante de tamanha surpresa:
— É belíssimo! Obrigada a ambos! Vou guardá-lo como um tesou-
ro, mas também vou usá-lo, pois é lindo demais para ficar escondido em
uma gaveta.
Debruçou-se e beijou-o no rosto, em seguida beijou sua sogra,
sentindo-se um pouco embaraçada. Sentiu-se grata a Hugo quando ele
a tomou pela mão e a fez sentar-se a seu lado. — Iremos a algum lugar
muito especial, onde você possa usá-lo — prometeu. — Agora pegue
suas coisas, minha querida. Já está na hora de jantar.. .
Voltaram à casa dos pais de Hugo durante a semana e repetiram a
visita, pois a sra. van Elven oferecia um jantar. No meio do caminho
Sarah disse:
— Que sorte eu tenho! Seu pai e sua mãe poderiam não ter gosta-
do de mim.
Hugo dirigia lentamente, bastante à vontade na direção. — Não
acho nada estranho. Você é minha esposa, Sarah, e sendo uma família
eles e eu compartilhamos os mesmos gostos e opiniões a respeito das
coisas mais importantes da vida.
Seu coração começou a pulsar loucamente. — Sou importante?
— perguntou. Ele fitou-a com um brilho no olhar.
— Claro; tenho idade suficiente para ver a esposa como parte vital
e permanente na vida de um homem.
Ela engoliu em seco. Talvez aquele fosse o momento exato para
tentar dizer o que sentia. Respirou fundo, mas, antes que pudesse falar,

Livros Florzinha - 83 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

ele comentou: — Foi um dia bem agradável, não acha? Você gosta de
minha casa?
Resignada, ela dominou o desapontamento que sentia. — Muito,
só que eu não imaginava que ela fosse tão.. . tão suntuosa.
Ele a olhou, admirado. — Não parece suntuosa para nenhum de
nós, e muito menos para você, quando a conhecer melhor. Voltaremos
lá com frequência. Quando meu pai morrer e eu herdar a casa, mas
espero que isto ainda demore muitos anos, você gostaria de morar lá?
Sarah não pensou duas vezes. Disse imediatamente: — Oh, sim,
claro! Gostaria muito. Você acha que eu diria não?
— Não. Acho que conheço suas preferências e suas
idiossincrasias, Sarah, mas se a ídéia não lhe agradasse, nós a
deixaríamos inteiramente de lado.
Ela ruminou essas palavras em silêncio. — Você me considera de-
mais, Hugo. Não espero que você altere toda sua vida só para me
agradar.
Ela sentiu um tom galhofeiro em sua voz, quando ele respondeu:
— Minha querida Sarah, permita que eu seja o árbitro disto.
Fizeram muitas coisas durante a semana que se seguiu. Explora-
ram o Veluwe em profundidade; jantaram, conforme Hugo havia
prometido, no restaurante da Avifauna; visitaram Arnhem, onde Sarah
passou horas empolgantes no museu ao ar livre e comprou presentes
para seus pais; voltaram a Amsterdam, a fim de que ela pudesse dar um
passeio de barco pelos canais e visse um pouco dos museus.
Foram também a Hasselt passar o dia com a irmã dele, Joanna. O
sol de setembro brilhava sobre a pequena cidade, em parte medieval,
tranquila e antiquada, inesperadamente próxima à estrada principal.
Joanna vivia nos arredores da cidade com seu marido, o médico do
lugar, e seus quatro filhos. Sua casa era um tanto parecida com a de
seus pais, mas não tão grande, e estava cheia de bicicletas, varas de
pescar e uma infinidade de cães. As crianças caíram em cima do tio,
depois de saudarem Sarah com muita educação, e imediatamente
levaram Hugo para ver o barco que tinham acabado de comprar. Logo
mais chegou o cunhado. Era um homem silencioso, que obviamente
adorava sua mulher. Os três sentaram-se para tomar café, e Sarah logo
descobriu que gostava imensamente do casal. Quando Hugo voltou com
as crianças, ela estava num agradável bate-papo com Joanna. Ao
perceber o olhar astuto de Hugo, Sarah imediatamente deduziu que ele
tinha se afastado de propósito.
Ele fez o mesmo em Wassenaar, indo brincar bem-humorado com
seus dois sobrinhos pequenos, enquanto sua irmã Catherina e Sarah
travavam conhecimento. Catherina era mais jovem do que Joanna e
bem bonita, com os olhos cinza de Hugo e um jeito muito calmo. Tentou

Livros Florzinha - 84 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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fazer com que Hugo falasse a respeito das crianças, quando voltaram
para o hotel, pois ele parecia tão dedicado aos sobrinhos, mas ele, com
muito jeito, mudou de assunto. Ela foi para seu quarto, pensando, quase
em pânico, que a vida de modo algum era tão simples quanto imaginara
quando se casou. Mas é que então ela não o amava.
Passaram o dia no Polder de Noordoost, porque Hugo disse que
aquela obra era um milagre de recuperação. Sarah achou-o
desinteressante e monótono, mesmo apreciando a grandeza da tarefa
executada pelos holandeses. Ouviu com interesse enquanto ele
explicava o que tinha sido feito.
— Passamos nossa vida tentando evitar que nosso país deslize
para o mar — ele concluiu.
Sarah fitou-o e disse, após uma pausa: — É estranho, na Inglater-
ra eu só pensava em você como sendo inglês. Oh, sei que de vez em
quando seu sotaque o trai, mas aqui você é todo holandês, mesmo
quando fala inglês comigo.
Ele começou a rir. — Sabe, Sarah, estou começando a pensar se
você refletiu seriamente antes de casar comigo. — Ele ainda estava
rindo, porém, seus olhos a estudaram atentamente, até que ela corou e
disse apressada:
— Oh, refleti, sim. .. Pelo menos no início eu não tinha tanta cer-
teza. Foi. .. isto é.. . — Ela gaguejou um pouco diante daquele seu olhar
fixo, mas ele tomou-a pelo braço e disse, com aquele seu jeito calmo de
sempre:
— Pobre Sarah! Estou brincando com você. Vamos almoçar em
Kampen; em seguida iremos visitar minha mãe.
O resto do dia foi perfeito. Os pais de Hugo cobriram-na de genti-
lezas durante o chá. Conversaram a respeito da casa de Richmond, da
Escócia e da possibilidade de uma visita a Londres no futuro.
— Venham para o Natal — convidou Hugo — e talvez a gente
consiga convencer o pai e a mãe de Sarah a vir na mesma época. Você
gostaria, Sarah? — Voltou-se e sorriu para ela, mais insinuante do que
nunca. Só de olhar para ele Sarah começou a sonhar de olhos abertos,
imaginando que ele, súbita e irresistivelmente se apaixonaria por ela.
Quando ele disse "querida", com voz cheia de ternura, pareceu-lhe, por
um momento, que o sonho, de alguma forma, tinha se tornado realidade.
Dois dias após estavam de volta para jantar. Sarah pôs o vestido
de crepe cor de mel, pois os diamantes exigiam algo muito simples.
Estava com o colar de pérolas na mão quando Hugo entrou.
— Não vou ficar muito espalhafatosa? — perguntou, preocupada.
— Por mim, usaria todas as jóias que tenho.
Ele a estudou cuidadosamente. — O vestido é muito simples e a
cor é linda; você não parecerá nem um pouco exagerada.

Livros Florzinha - 85 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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Pegou o colar, fechou-o em seu pescoço e segurou-a pelos


ombros, fazendo com que ela o encarasse. — Você está muito linda,
Sarah
— disse. Ela pensou que ele fosse beijá-la, mas ele retirou as
mãos de seus ombros e disse em tom ligeiro: — Vamos indo? Não
podemos ficar até muito tarde. Se sairmos às nove da manhã
chegaremos a Nevers a tempo de jantar.
Foram os últimos a chegar, apesar de não estarem atrasados, e
imediatamente a família os absorveu. Sarah pôs-se a conversar com o
marido de Catherína, Franz, e descobriu que seu rosto impassível
ocultava um senso de humor bastante inesperado. Sentou-se ao lado de
Huib, marido de Joanna, durante o jantar, e achou-o também boa
pessoa. Nenhum dos dois, porém, chegava aos pés de Hugo. Ele estava
lá do lado oposto da mesa e, apesar de ele de vez em quando lhe sorrir,
não tinham como se falar. Quando passaram para a sala de estar, ele foi
sentar-se ao lado de sua mãe, aparentemente contente por ver Sarah
conversando com Joanna. Ela sentiu-se negligenciada e ressentida, e
apesar de saber que estava se comportando como uma tola, forçou-se a
lhe dar as costas. O que de resto foi uma pena, pois ele ficou de olhos
pregados nela durante toda a noite. Quando chegou a hora de voltarem
para o hotel, Sarah havia recuperado o bom humor. Conversaram a
respeito da reunião e da família, até que ela comentou: — Hugo, pensei
que o nome de sua irmã fosse Joanna, porém Huib chamou-a por um
nome completamente diferente. Parecia algo como Shot.
Ela ouviu sua risada, na penumbra do carro; — Acho que você
quer dizer Schctt. É um termo afetuoso, muito usado entre mães e filhos,
maridos e mulheres.
— É a única palavra que se usa para se dizer "querido"?
— Não usamos a palavra "querido" como se faz na Inglaterra. Lá
todo mundo é querido, não é mesmo? Vá a qualquer festa em Londres e
é a palavra mais pronunciada. Dizemos Ueveling, mas raramente
empregamos esta palavra em público. Dizemos também amorzinho:
liefje. Talvez a gente não empregue esses termos afetuosos tanto
quanto. .. sei lá? Mas o que garanto é que quando dizemos tais palavras
estamos sendo sinceros.
Chegaram ao hotel, o que desagradou a Sarah, pois a conversa
prometia. Esperou enquanto ele estacionava o carro, pensando poder
continuar. Hugo, no entanto, achou que não havia nada mais a ser dito
sobre aquele assunto tão interessante. Lembrou-a gentilmente de que
ela deveria levantar-se bem cedo e desejou-lhe uma boa noite. Saíram
na hora combinada. Sarah, que passara algum tempo examinando um
mapa antes do café da manha, ficou espantada com a distância que
Hugo pretendia percorrer. O carro era rápido e extremamente

Livros Florzinha - 86 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

confortável, mas, segundo calculou, a distância era de quase quinhentos


quilómetros. Durante o café ela mencionou o fato a Hugo. Ele passou a
xícara, pedindo que a enchesse novamente e indagou em tom
ligeiramente irritado:
— Está nervosa, Sarah?
— Não — ela retrucou no ato — não estou. Você não vai ficar
cansado?
Ele levantou a sobrancelha. — Não, eu dificilmente me canso
guiando. Conheço a estrada, e o carro aguenta muito bem. Além disso,
há várias retas onde não existe limite de velocidade. — Pegou uma
torrada e cobriu-a de manteiga. — No entanto — prosseguiu —,
podemos, sem o menor problema, esticar a viagem por mais um dia e
dormir em algum lugar. — O tom com que se expressava era gentil e
zombeteiro. Sarah quase engasgou.
— Olhe — ela disse, esforçando-se para parecer sensata — eu
disse a seu amigo Jan que com você não me importo de correr. Com
meu pai ou com qualquer outra pessoa eu ainda hesitaria, talvez até
mesmo tivesse medo, mas com você, não. E eu realmente estou preo-
cupada com o fato de que você possa se cansar. — Acrescentou, ligei-
ramente irritada: — Você acha que eu estava fingindo quando falei
aquilo a Jan? — Franziu o cenho, aborrecida. Estava linda nesse
momento.
Hugo contemplou-a por alguns momentos e disse subitamente: —
Fantástica, é esta a palavra que me ocorre.
Ela encarou-o, boquiaberta. — O que quer dizer com isso? — per-
guntou. — Você estava prestando atenção no que eu dizia?
— Você é fantástica — ele prosseguiu, intencional — decidida-
mente fantástica, apesar de teimosa como ninguém. . . e ouvi tudo o que
você disse.
Sarah pousou a xícara e lutou para manter a dignidade. — Vou
buscar meu casaco — começou a dizer, mas não foi até o fim, caindo na
risada. — Que conversa mais tola! — observou, novamente bem-
humorada. Prendeu a respiração, no momento que ele estendeu o braço
e segurou-lhe a mão.
— Não posso chamar minha mulher de fantástica, se quiser? —
perguntou. Havia algo em sua voz que fez com que ela o olhasse. Ele
estava sorrindo, mas desta vez não havia zombaria, e seus olhos
brilhavam. Por um breve momento pensou ter visto algo em seu rosto
que jamais esperara ver, mas aquilo logo se dissolveu. Provavelmente
era apenas uma projeção sua, pensou, entregando-se novamente à
sensatez. Mesmo assim, quando subiu para buscar a bagagem, o
coração pulsava de felicidade. ..

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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Almoçaram um pouco tarde em Arras e partiram em direção a Pa-


ris, no Sul. Em Bapaume pegaram uma estrada de alta velocidade e,
apôs meia hora, Sarah comentou: — Sempre quis saber por que você
gosta tanto deste carro; agora sei.
Ele mantinha o olhar fixo na estrada. — Você pensava em mim,
Sarah? Sempre tive a impressão de que, apesar de sermos bons
amigos, você mal sabia qual era minha aparência.
Ela riu. — Não diga bobagens, Hugo! Afinal de contas, você é um
dos médicos mais comentados do hospital St. Edwin.
— Agora, não mais. Você se esquece que sou um homem casado.
E, por falar nisto, preciso mandar um cartão postal para o pessoal da
clínica. Vamos parar em Fontainebleau para tomar um chá e de lá
escreverei.
Continuou a dirigir em silêncio, até que disse: — Abra o mapa, por
favor, Sarah. Tenho de tomar uma outra estrada. Procure a N186,
através dela damos a volta por Paris e pegamos a N7.
Tomaram o chá em Fontainebleau, como ele sugeriu, e, como ele
havia previsto, pararam diante do hotel em Nevers, no momento em que
caía a tarde de setembro. Partiram na manhã seguinte, depois de
tomarem café e comer alguns croissants deliciosos. Hugo informou que
faltavam apenas uns duzentos e cinquenta quilómetros, e Sarah,
hipnotizada pela velocidade da véspera, concordou alegremente que
estariam em Avignon na hora do chá. Ficariam lá o tempo suficiente de
ela visitar a cidade velha e ir até Nímes conhecer Gemina. Hugo deixou
a N7 em Lyon, pegando uma estrada menos movimentada mais ou
menos paralela à primeira e, ao passar por Valence, mudou mais uma
vez de estrada, a fim de almoçar em Privas.
Avignon, com suas muralhas medievais, encantou-a. Durante o
chá no hotel, ela indagou timidamente se haveria tempo de visitar o
Palácio Papal.
— Mas claro que sim — replicou Hugo no mesmo instante. — Va-
mos também ver a Ponte de Avignon. — Sorriu ternamente para ela. —
Podemos fazer tudo isso amanhã, antes de visitar Gemina. Ela só nos
espera por volta de meío-dia. Agora vamos dar uma volta pela cidade.
Ela sentia-se quase feliz. Andaram de braços dados, olhando as
vitrines. Depois de algum tempo sentaram-se em um dos cafés ao ar
livre, na praça, e beberam Pernod. — Ê a bebida que tomamos a
primeira vez que saímos — comentou Hugo, enquanto fazia o pedido ao
garçom. Ao voltarem para o hotel perguntou pela segunda vez, desde
que tinham começado a viagem: — Você está feliz, Sarah?
Ela parou na rua estreita e olhou para ele. — Sim, Hugo. Feliz e
também muito mimada. Não levantei um dedo desde que começamos a

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

viajar. Estivemos em lugares lindos. Você me deu de presente o


bracelete, as gravuras e.. .
Ele interrompeu-a: — Você não é absolutamente mimada, e eu
estou me divertindo tanto quanto você.
— Fico contente; e é tão bom a gente estar junto... — Assim que
disse isto ficou vermelha, pois não tivera a intenção de parecer tão
entusiasmada; ele, porém, não pareceu ter percebido. Ela, então,
prosseguiu rapidamente, a fim de disfarçar sua ligeira perturbação:
— Sou uma tola. Imagine, não consigo me lembrar do nome de nosso
hotel. Devo estar sonhando.
Ele lhe deu um olhar carregado de intenções. — É, talvez esteja.
Chama-se Europa, um nome fácil de lembrar se você acaso se perder.
Mas não há a menor possibilidade de que isto aconteça, pois não
pretendo perder você de vista.
O céu estava encoberto na manhã seguinte, mas havia luz sufi-
ciente para que Sarah pudesse contemplar os contrafortes dos Alpes,
muito além do rio Ródano.
A irmã de Hugo vivia em uma das velhas casas à beira da estrada
que ia de Nimes a seus famosos jardins, e a Tour Magne. Foram re-
cebidos em um pequeno hall e, em seguida, passaram, para um
aposento não muito grande. A porta se abriu e Gemma precipitou-se
através dela, jogando-se nos braços de Hugo e apertando-o impulsi-
vamente; em seguida abraçou Sarah com a mesma espontaneidade.
— Há muito que quero conhecê-la, Sarah. Hugo me disse que vo-
cê era linda, mas você é muito mais bonita do que ele descreveu. Fico
tão contente de ter você na família.
Enquanto falava, levou-os para cima, em direção a um aposento
grande e confortável, nos fundos da casa, com grandes janelas que
davam para um jardim. Havia um bebê deitado de bruços em um
cercado no centro do tapete e um menino bem pequeno rolando no chão
com um cachorro.
Gemma interrompeu a brincadeira. — Hugo, está é sua nova so-
brinha, Simone. Pierre, venha dizer alô para seu tio Hugo.
Começaram a conversar. A criança, de olhos enormes, sentou-se
no colo de Sarah, enquanto Pierre subia nos joelhos de Hugo para
examinar-lhe o relógio, as abotoaduras e os botões do paletó, enquanto
seu tio, imperturbável, bebia Sherry. O marido de Gemma chegou. Era
alto, esguio, moreno e falava inglês muito bem. Sarah já não mais ficou
surpresa ao saber que ele também era médico.
As crianças foram afastadas e eles almoçaram em meio a uma at-
mosfera cada vez mais amistosa. As duas moças foram em seguida
para o jardim, deixando os homens conversando, enquanto tomavam

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Sabrina no. 39

café. Sarah sentou-se ao lado da anfitriã, conversando a respeito de


roupas, crianças e tarefas domésticas. Gemma então disse:
— Hugo é um bom marido.
Sarah deu um largo sorriso. — Maravilhoso. Não há ninguém co-
mo ele.
Gemma assentiu. — É ótimo. Você sabe a respeito de Janet, claro.
Ele jamais teria casado sem contar.
Sarah respondeu, muito compenetrada: — Sim, sei de tudo.
Gemina prosseguiu: — Então não precisamos falar deste assunto
cansativo, não é mesmo? Sabe, eu era apenas uma menina e não podia
compreender como ele se sentia. Claro que ele não me disse nada.. .
Venha, vamos dar uma volta pelo jardim enquanto as crianças dormem
e os homens conversam. — Levantou-se. — Médicos! — falou,
pretensamente indignada. — Quando eles se juntam! Não precisam de
nos para nada.
Partiram após o chá, com a promessa de que Gemina e Pierre jan-
tariam com eles no dia seguinte no hotel de Avignon. Sarah passou os
dez primeiros minutos da viagem de volta decidindo que roupa usaria.
Gemina se vestia muito bem; sem dúvida era muito observadora.
Voltaram ao hotel depois que Hugo lhe comprou mais um vestido.
Ela pendurou o vestido novo com o maior cuidado. Foi ao encontro de
Hugo no carro e, após algum tempo, chegaram ao aqueduto romano,
onde ela ficou maravilhada.
Esperaram por Gemma e Pierre no bar do hotel e, quando chega-
ram, Sarah ficou contente por estar usando o vestido rosa, pois com-
petia com muito sucesso com o vestido verde-claro de Gemma. Elas se
elogiaram mutuamente e, muito contentes, puseram-se a beber, cientes
de que eram alvo da atenção de muitos dos homens presentes. Gemma,
sentada ao lado de Sarah, jogou um beijo para seu irmão e disse,
maliciosa: — Ficamos bonitas uma ao lado da outra? Espero que os
maridos saibam dar o devido valor ao que eles têm. Todos se divertiram
muito. A noite, após aquele jantar tão agradável, passou rápida demais.
Dançaram e, em um dado momento, Pierre perguntou:
— Quer dançar comigo, Sarah? Sei que sou um pobre substituto
para Hugo, mas. ..
— Sarah apressou-se a desmenti-lo, mas secretamente não pôde
deixar de concordar com ele. Hugo dançava com Gemma; esta parecia
ter muito o que dizer, e Hugo prestava bastante atenção. Pierre
acompanhou seu olhar.
— Acho que minha querida Gemma está dizendo a Hugo que es-
posa maravilhosa ele descobriu. Penso que ele já sabe disto!
Tomaram um último drinque e, depois que Gemma e Pierre parti-
ram, Hugo sugeriu: — "Mais uma dança, está bem?" Tomou Sarah em

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Sabrina no. 39

seus braços e dançaram por mais uns cinco minutos, durante os quais
não havia passado ou futuro, somente aquele presente fantástico.
Partiram muito cedo na manhã seguinte, pelo caminho de Le Puy.
parando para almoçar em um pequeno restaurante de aldeia, a alguns
quilómetros de Clermont-Ferrand. Tinham ainda uns duzentos
quilómetros pela frente, pois ele pretendia passar a noite em Tours,
mas ela achou que a distância era pouca. Havia tanta coisa para se
conversar que ela, de repente, percebeu que gostaria que a distância
fosse duas vezes maior e que Hugo guiasse mais devagar.. .
Queria que o dia se prolongasse para todo o sempre. Chegaram a
Tours rápido demais; amanhã estariam de volta à Inglaterra, de volta
àqueles breves momentos pela manhã, quando ela estava com Hugo
antes de ele ir para o consultório ou para o hospital. Havia também a rua
da Rosa, claro, e ela agradeceu aos céus por isto. Isto sem falar nos fins
de semana, mas ela desconfiava que com a aproximação do inverno
receberiam e seriam recebidos com maior frequência. Isto significava
menos tempo juntos e uma consequente diminuição da intimidade de
que gozaram durante as férias. Se pelo menos conseguisse ter
paciência até que chegasse a hora de viajar para o chalé na
primavera. .. Foi dormir, com este pensamento em mente.
CAPÍTULO VIII

Poucos dias após a volta, quando estavam sentados tomando o


café da manhã, Hugo perguntou:
— Não quer se encontrar comigo na cidade agora de manhã,
Sarah? Estou livre após as onze e meia, na clínica, poderíamos almoçar
juntos.
Sarah levantou os olhos da carta que estava lendo e viu que ele a
contemplava fixamente. Pôs a carta sobre a mesa e replicou
imediatamente, feliz: — Ah, sim, como não! Vou ao seu consultório?
Mas para seu grande desapontamento, ele disse, como sempre: — Não,
acho que não. Podemos nos encontrar em Bond Street, ou em algum
outro lugar onde a gente não se perca um do outro? Que tal no
Asprey's? Tome um táxi. Se você não sentir vontade de ir até o hospital
St. Edwin, irei buscá-la.
— Não há a menor necessidade disto. — Ela parecia um tanto
chocada. — Estarei lá como de hábito e esperarei no carro. O dr. Bright
disse ao telefone que esperava uma verdadeira multidão hoje à noite, e
você naturalmente não há de querer se atrasar. Tem certeza de que não
quer que eu vá à rua Harley?
De nada adiantou; ele respondeu à sua solicitação com um sorriso,
que no entanto era tão definitivo como se tivesse dito um claro "não".

Livros Florzinha - 91 -
Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Levantou-se para sair, deixando-a à mesa, entregue a pensamentos


negativos, um dos quais era a possibilidade de que sua recepcionista
fosse alguma bela loura cheia de curvas provocantes. Ficou a pensar
nisto durante alguns minutos e, finalmente, tendo se decidido, foi à
procura de Alice, antes que mudasse de ideia.
Chegou à rua Harley por volta das onze horas. O consultório de
Hugo era no primeiro andar, segundo a placa que reluzia sobre a porta
de entrada. A porta estava aberta. Sarah entrou, subiu as escadas e
penetrou por uma outra porta. A sala era discretamente confortável e
muito repousante. Estava vazia, a não ser pela presença de uma mulher
sentada atrás de uma mesa de recepção, a um canto. Era uma pessoa
gorda e bonachona, com um rosto muito terno.
— Desculpe-me por ter entrado. Sou a sra. van Elven. A senhora
deve ser a recepcionista de meu marido. É um prazer conhecê-la.—
estendeu-lhe a mão. — É a srta. Trevor, se não me engano?
A srta. Trevor levantou-se, com os olhos brilhando de prazer. —
muita satisfação em conhecê-la, sra. van Elven. Vou avisar o doutor que
a senhora está aqui. Deve atender mais uma paciente. Ela telefonou
para avisar que estaria um pouco atrasada. . .
— Não diga para o doutor que estou aqui, quero surpreendê-lo.
Hugo estava sentado à sua mesa, escrevendo. Era uma mesa
grande e, para um médico, muito organizada. Levantou-se ao vê-la e
disse com a mesma calma de sempre: — Sarah, mas que surpresa. —
No entanto, ele não parecia absolutamente surpreso; era porém um
mestre em esconder seus sentimentos. Era impossível, ao vê-lo, ter a
menor ideia de como reagira à sua súbita aparição; provavelmente ficara
aborrecido.
— Eu me adiantei. — Explicou Sarah. — Não se incomoda se eu
esperar aqui? A srta. Trevor disse que você tem mais uma paciente.
Poderia sentar na sala de espera, se você não se importar.
Ele levantou-se, apoiou-se à mesa, com as mãos nos bolsos, fitan-
do-a. — Não, não me importo.
Ele ainda estava apoiado à mesa, escondendo algo que ela vira no
momento em que entrara. Seus olhos pousaram sobre aquele objeto
mais uma vez, apesar de ele ser muito pouco visível. Era uma moldura
de retrato, um tanto antiquada, pensou, e provavelmente de prata. Era
uma pena que não pudesse vê-la; Hugo, provavelmente, não queria.
Seu coração começou a bater forte. Talvez fosse por isso que ele jamais
a encorajara a ir até lá; talvez o retrato de Janet estava sobre sua mesa.
Afinal, ele não poderia tê-lo em casa... Impelida por um sehtimento
muito forte ela não se deteve para analisar e andou em direção à mesa,
para dar uma espiada. Acertara, em relação à moldura, era de prata com
uma profusão de querubins e rosas esculpidas. Enquadrava duas

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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fotografias, porém, Sarah se enganou redondamente: era ela a


retratada! Uma, era um instantâneo colorido que seu irmão havia tirado
no verão anterior. Ela estava no jardim com o cabelo caindo pelos
ombros, rindo; a outra era um retrato que ela tirara para agradar sua
mãe. Aparecia muito séria no uniforme da irmã. Olhou para as fotos,
desconcertada, e disse num fio de voz:
— Oh, sou eu!
Hugo não estava mais encostado na mesa. Perguntou, com a
maior delicadeza: — Por que ficou surpresa? Quem você esperava ver,
Sarah?
Por um momento ela ficou sem saber o que dizer, e, mesmo que
tivesse lhe ocorrido algo, não teria conseguido falar, pois o ar lhe faltava.
Hugo riu e deu um passo em direção a ela. Deteve-se no momento em
que soou a campainha na mesa. Parou no ato e disse: -. Minha
paciente!
Sarah, que não tinha a menor certeza sobre o que ela estava a
ponto de fazer, disse no mesmo instante: — Bem, vou saindo, — en-
quanto ele a acompanhava até a porta. Uma velha senhora conversava
com a srta. Trevor. Mediu Sarah da cabeça aos pés e caminhou em
direçao ao consultório, onde Hugo estava à sua espera. Imediatamente
pôs-se a falar, mas, para grande decepção de Sarah, a porta, fechou-se.
Gostaria de ficar um pouco em silêncio para refletir sobre o que se
passara, mas a srta. Trevor achava evidentemente que era seu dever
entreter a esposa do patrão. Pôs-se a conversar com ela, e Sarah,
atenciosa demais, limitou-se a ouvi-la, por mais corriqueiros que fossem
os temas abordados. A velha senhora saiu após uns dez minutos e foi
acompanhada até a porta por Hugo. Este disse: — Mais cinco minutos,
Sarah —, e desapareceu no consultório. Demorou menos do que
anunciara, e Sarah não teve tempo de organizar seus pensamentos. Ele
parecia disposto a manter-se em silêncio, e ela sentiu-se na obrigação
de falar, apesar de ter pouca ideia do que estava dizendo.
Voltavam da rua da Rosa, após uma noite muito atarefada, quando
Hugo lhe disse que viajaria para os Estados Unidos. Atravessavam a
ponte de Putney e Sarah olhou as luzes que se refletiam na água, como
se jamais as tivesse visto. Finalmente conseguiu dizer:
— Que bom. E para onde. precisamente?
Ele respondeu com displicência: — Filadélfia, Boston, Baltimore,
Washington, não nesta ordem, é claro, e mais uma infinidade de cidades
pequenas.
— Vai ficar fora muito tempo? — Sarah perguntou. Ficou contente
ao perceber que sua voz demonstrava apenas um interesse polido e
nada mais.

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Quando ele disse laconicamente: — Três semanas, nem um dia a


mais, nem um dia a menos.
— Não foi uma decisão um tanto inesperada?
Ele parou diante da casa e pôs-se a olhá-la, na penumbra do
carro.
— Não! — respondeu calmamente — há alguns meses planejei
esta viagem.
Esperou que ele acrescentasse algo mais; ao que tudo indicava!
Ele achou que isso era o suficiente. Ela entrou antes na casa e vagueou
sem objetivo pelas salas, ajeitando as flores nos vasos, até que ele
entrou, depois de ter guardado o carro.
— Por que foi que você não me disse? — ela perguntou no ato.
Nem notou que estava ocasionando um verdadeiro caos no vaso de
crisântemos.
— Minha querida, não vi a menor necessidade, já que você não
vai comigo. ..
Ela tentou novamente. — Por que não?
— De que adiantaria? — Havia uma certa frieza no seu tom. —
Acabamos de sair de férias, não é mesmo? E eu vou lá dar conferên-
cias.
— Você não me quer?
— Prefiro dizer que não há muito sentido em você viajar comigo.
— Agora surgira uma ponta de amargura em sua voz.
Ele fechou a porta da entrada com um gesto firme e abriu a porta
do estúdio. — Preciso telefonar para o hospital. Que tal se nos dermos
boa noite?
Ele sorriu para ela muito gentilmente e de tal modo que Sarah
sentiu ter cometido um erro.
Ao entrar no quarto sentou-se para pensar. Alguma coisa não tinha
dado certo. Naquele dia, em seu consultório, pensara por um momento
que ele ia lhe dizer algo, mas não tinha certeza do que se tratava. Talvez
ele a amasse um pouco. Ela lhe diria o mesmo e tudo recomeçaria como
antes. Era como se ele quisesse afastar-se dela, mas, se era assim,
porque ele se dava ao trabalho de ter seu retrato sobre a mesa,
olhando-a durante o dia todo? Talvez houvesse uma moda que
ordenasse que os médicos deviam ter o retrato da esposa sobre a
mesa. .. e, quanto aos presentes, poderia estar ligados ao fato de que a
sra. van Elven, a mulher de um médico muito bem-su-cedido, deveria,
por uma questão de prestígio, usar nada mais nada menos do que
aquilo. Este pensamento era indigno de Hugo, mas ela nem tomou
conhecimento. Sentou-se, tensa, enquanto as mesmas ideias voltavam
à sua cabeça dolorida. Finalmente foi para a cama, pois sentia frio. Lá
ficou tremendo, infeliz, irada.

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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Hugo cumprimentou-a na manhã seguinte com seu modo calmo de


sempre. Nem percebeu que ele pousou sobre ela um olhar penetrante,
enquanto sua cabeça estava inclinada sobre a xícara. Sarah tivera muito
trabalho em ocultar a palidez e achava que estava com a mesma
aparência de sempre. Ficou surpresa quando ele disse que pretendia ir
à rua Harley como de hábito. Pelo fato de a América do Norte ser tão
longe, ela imaginou que os preparativos de viagem tomariam tempo,
mas Hugo viajava somente com uma mala, a qual, ele informou, já
eatava arrumada.
Ela indagou delicadamente: — Quer jantar mais cedo?
— Não, obrigado, Sarah. Devo partir às sete. Levarei o carro e o
deixarei no aeroporto. Voltarei para casa logo depois das três.
Ele levantou-se para sair logo em seguida, desejando que ela
tivesse um dia agradável.
Ela respondeu, séria: — Oh, sim. Vou levar os cães para dar uma
volta. — Lembrou-se de perguntar: — Você não se importa se eu for à
rua da Rosa na sua ausência?
Ele parou ao lado da porta. — Por que não? Não sou seu dono
Sarah. Você é livre para fazer o que bem entender.
O dia parecia não terminar mais. Às três horas ela foi à cozinha e
pegou a bandeja de chá, pois Alice folgava naquela tarde. Fez um bolo
de frutas, do jeito que Hugo gostava. Sarah colocou aquelas guloseimas
sobre uma mesinha diante da lareira. Eram quase quatro quando ouviu
a chave girar na porta da entrada. Correu até a cozinha, e estava pondo
a água para ferver quando ele entrou. Disse — Alô, Sarah. — Em
seguida indagou casualmente: — O que você fará quando eu viajar?
Ela estava preparada para responder, pois achava que Hugo lhe
faria tal pergunta. Falou: — O chá fica pronto daqui há pouco. Visitarei
meus pais e talvez fique com eles um ou dois dias. Kate quer que eu a
acompanhe às compras, e há várias semanas os Coles vêm me
convidando para visitá-los. Mary queria que eu passasse um dia em sua
compahia. Ela não está muito bem, como você bem sabe. Além disso
tudo, pretendo fazer umas compras para mim.. .
Ele disse, meio rindo: — Pare! Minha querida, acho melhor
prolongar minha viagem, para que você tenha tempo suficiente de fazer
tudo o que deseja.
Retirou a bandeja de chá de suas mãos e ela o precedeu em
direção à sala de estar, feliz por perceber que suas exageradas meias
mentiras tivessem soado tão plausíveis. Ajoelhou-se em frente à lareira,
enquanto ele sentou-se em sua grande poltrona, lendo o jornal com ar
relaxado, como alguém que não tem nada de melhor a fazer durante
todo o resto do dia. Era difícil imaginar que dentro de duas horas ele
estaria começando uma viagem de milhares de quílômetros. Ela

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entregou-se momentaneamente a um devaneio, no qual o


acompanhava até o último minuto, mas foi chamada de volta à realidade
quando Hugo lhe informou que as torradas estavam a ponto de virar
carvão.
Desta vez prestou atenção, as torradas ficaram prontas e tomaram
o chá. Já estavam quase no fim quando Hugo disse: — Providenciei
para que o banco lhe forneça tudo de que precisar, Sarah, e Sims está
a par de tudo.
Ela tomou o chá que ainda restava. — Oh! E do que ele deve estar
a par?
— De meus negócios. Falava com certa impaciência. — O bolo
está excelente, Alice desta vez caprichou.
Sarah respondeu, ainda pensando no que ele dissera: — Fui eu
que fiz. .. Você vai andar sempre de avião nos Estados Unidos? Não
poderia usar o trem?
— Claro que não. Se usasse, teria de ficar lá por muitos meses.
Minha combinação com Sims não passa de rotina. Você pode entrar em
contacto com ele se precisar saber de alguma coisa. O que foi que você
pós neste bolo?
Ela informou, com ar distraído, enquanto sua imaginação pintava
cenas vívidas de desastres aéreos, com Hugo ferido ou, o que era pior,
morto, a milhares de quilómetros. Encarou-o sem vê-lo, até que ele
disse: — Não fique assim, Sarah. Sempre considerei-a uma mulher
muito sensata.
Seu tom ligeiramente zombeteiro, mais do que suas palavras, cau-
saram o efeito desejado. Ela estava agindo como uma tola. Fez um
esforço e controlou-se, fazendo alguns comentários não muito brilhantes
sobre as viagens nos Estados Unidos. Continuou a falar um tanto
desordenadamente, e com muito brilho, sobre uma variedade de
assuntos sem importância, até que Hugo levantou-se, dizendo
laconicamente que iria trocar de roupa. Desceu logo depois, enquanto o
relógio sobre a lareira recordava-lhes, com sua voz de prata, que eram
sete horas. Ele encaminhou-se para o automóvel com a mala na mão.
Sarah tinha ido até o hall, porém ele a ignorou. Parecia que ele não
queria nem desejava nada mais do que a mais prosaica das despedidas.
Voltou até o hall e enfiou o casaco, o que lhe deu um ar imensamente
elegante. Sarah ficou a imaginar, com um súbito acesso de ciúme,
quantas mulheres ele conheceria, quantas o admirariam como ela o
admirava naquele momento. Aproximou-se um pouco mais, com um
sorriso nos lábios bem delineados, sentindo um grande frio interior. Ele
encostou ligeiramente a mão em seu ombro e disse: — Bem, minha
querida Sarah, eu lhe darei notícias.

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Ele beijou-a com a frieza de um homem de negócios, endireitou-


se, beijou-a novamente, mas desta vez na boca. — Um beijo íntimo e
apaixonado. Saiu porta afora antes que ela tivesse tempo de dizer-lhe
adeus.
Na manhã seguinte, Sarah estava tomando café, muito solitária,
quando o telefone tocou. Já se levantara havia algum tempo, e levara os
cães para dar uma volta, pois não conseguira dormir muito bem,
pensando no beijo de Hugo. Ficou de pé e atravessou o hall, dizendo a
Alice para não se incomodar, pois ela mesma atenderia. Levantou o
gancho, e a voz de Hugo, muito próxima a seu ouvido, disse: — Alô,
Sarah. — Ela ficou em silêncio durante tanto tempo que ele voltou a
dizer: — Sarah? — Desta vez ela conseguiu dizer:
— Alô, Hugo. Fiquei um tanto. . . surpresa. Nao esperava por isto.
Fez boa viagem?
— Sim, apesar de um tanto aborrecida. Dormi a maior parte do
tempo. O que você está fazendo?
— Tomando o café da manhã. Já levei os cachorros para dar uma
volta. — Parou, porque sua voz estava oscilando descontroladamente.
— Por que está chorando, Sarah?
Ela fungou e disse logo em seguida, como uma criança infeliz: —
Oh, Hugo, sinto tanta falta de você e você está tão longe!
No momento em que disse isto uma parte dela preveniu-a de que
ela ia se arrepender por ter pronunciado tais palavras. .. mas ela já não
se importava mais. Ouviu-o suspirar, de alívio ou de triunfo? Ficou sem
saber, até que ele disse: — Espero que sinta, mesmo. Sabe por que eu
vim para cá, Sarah? Por que a deixei aí? Eu lhe direi, quando voltar para
casa.
Seu coração bateu mais rápido. — Não pode me dizer agora, Hu-
go? — Não,
pois não posso ver seu rosto. Agora tenho de ir, minha. querida. Adeus.
Ele telefonava todos os dias, e na quarta ou quinta vez ela se
arriscou a dizer: — Olhe, Hugo, se você está ocupado. ., eu agora estou
bem. E esplêndido falar com você todos os dias, mas deve estar lhe
custando uma fortuna.
Mas tais palavras não eram muito satisfatórias, mas aparente-
mente ele compreendeu, pois disse com ternura: — Eu também me
sinto só, Sarah, e não consigo pensar em uma maneira melhor de
gastar meu dinheiro. E como está a rua da Rosa?
Depois disso, ela adquiriu o hábito de reservar uma porção de notí-
cias para lhe contar acada dia: o terrível resfriado de Alice, os pre-
parativos de Natal, as belas botas que havia comprado, o simpático
casaco que ela pretendia dar de presente para a srta. Trevor. Ao que
tudo indicava, ele não queria falar a respeito de si mesmo, apesar de

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que algumas vezes fazia breves referências à viagem. Um dia ele


confessou que estava um pouco cansado e ela ficou preocupada: —
Hugo, por favor, cuide-se! Ele
replicou, rindo: — O que você receia? Festas demais, uma inflação de
garotas bonitas?
— Tudo isso! — ela respondeu de imediato. — Há muitas garotas
bonitas?
— Devo lhe dizer que nem notei. Você acha que eu notaria? Ela
disse cuidadosamente.
— Bem, se eu fosse você, acho que sim, pois você é o tipo do
homem que as mulheres olham.
— Querida Sarah. Que cabecinha tão confusa esta sua. Seus
telefonemas tornaram-se o momento culminante de cada dia. Ela
voltava correndo para casa, apavorada ao pensar que não estaria em
casa quando ele chamasse, apesar de ele telefonar bem cedo todos os
dias. Foi em uma dessas manhãs que ele disse: — Chegarei amanhã,
Sarah, por volta das oito da noite.
Nunca um dia passou tão rápido e nunca ela teve tanto o que fa-
zer. Sarah estava ocupada e feliz. Fez algumas compras extras, foi ao
cabeleireiro, providenciou flores e, naturalmente, planejou cuida-
dosamente um jantar que não se estragasse, no caso de Hugo chegar
mais tarde do que prevenira. Naquela noite foi deitar cansada e muito
feliz.
Ela mudou de ideia pelo menos três vezes durante o dia seguinte,
sem saber o que usar para esperá-lo. Queria que Hugo a achasse linda.
Todas as dúvidas e temores que ela havia experimentado antes que ele
se fosse pareciam ter desaparecido; sentia-se quase segura de que ele
estava começando a amá-la. Janet tornara-se apenas uma lembrança,
em um passado lentamente esquecido. Finalmente decidiu-se por um
vestido vermelho de crepe de lã. Ela ficou pronta bem cedo. Percorreu
toda a casa mais uma vez a fim de certificar-se de que tudo estava na
mais perfeita ordem e então foi para a sala de estar. Sentou-se ao pé da
lareira e abriu um romance — tinha pelo menos uma hora pela frente.
Leu a mesma página durante alguns minutos e pôs o livro de lado,
pondo-se a tricotar, mas não conseguiu fazer mais do que duas fileiras.
O tricô teve o mesmo destino do livro, e nem quinze minutos haviam
transcorrido. Seus olhos inquietos pousaram sobre o piano e logo em
seguida a música ecoou na sala, tocada um tanto canhestramente e alta
demais. Os cães dormiam junto à lareira e subitamente despertaram,
olhando em direção à porta. Ela parou de tocar e disse-lhes que
sossegassem, pois havia pelo menos meia hora de espera. Eles nem
prestaram atenção e foram correndo até a porta, atropelando-se para
ver qual deles chegava primeiro. Ela levantou-se, seu coração começou

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a palpitar cada vez mais forte até que a porta se abriu e Hugo surgiu.
Ele acariciou os animais e disse calmamente: — Alô, Sarah.
Sarah foi ao seu encontro, com o rosto brilhando de felicidade e
sem se importar que ele estivesse notando. Tinha dado talvez uns três
passos quando ele voltou a falar. — Trouxe alguém comigo, você jamais
adivinharia de quem se trata.
Ela deteve-se, com a súbita convicção de que seria perfeitamente
capaz de saber quem era. A felicidade em seu rosto deu lugar a uma
expressão de polidez enquanto ele se punha de lado, para dar passa-
gem a uma mulher alta e morena.
Sarah disse do modo mais cortês possível, em um tom de voz que
não oscilava nem um pouco: — Mas eu acho que sei, sim. Você é Janet,
não é mesmo?
Ela olhou para Hugo e então, sorrindo um pouco, suas
sobrancelhas arquearam-se interrogativamente. Sentiu-se de certo
modo satisfeita ao notar como ele ficara desconcertado. Hugo disse: —
Sim, esta é Janet. Como é que você sabia, Sarah?
Ela deu uma risada alegre ao ouvi-la, pensou que na verdade
deveria ter seguido uma carreira de atriz. Antes que ele pudesse
acrescentar qualquer coisa, ela deu a mão para Janet e disse sorridente:
— Que prazer conhecê-la, Janet. Você é exatamente como eu havia
imaginado. Fico tão contente por Hugo tê-la trazido com ele!
Janet sorriu. Não era precisamente bonita, mas havia algo nela
que chamava a atenção. Os olhos eram castanhos e também sorriam.
Sarah sentiu-se confusa ao descobrir que gostava dela.
— Eu não queria vir desse jeito, porém, Hugo convenceu-me. —
Olhou para Hugo, que fitava Sarah.
— Encontrei-me com Janet no avião — ele explicou — e insisti
para que ela viesse tomar um drinque conosco.
Sarah respondeu no mesmo instante: — Claro. .. e vai ficar para o
jantar. Alice e eu preparamos um jantar especial, e você tem que nos
fazer companhia. — Caminhou em direção à lareira e fez com que Janet
se sentasse a seu lado, no grande divã. — Você precisa ver Alice, poís
ela me disse que a conheceu, por ocasião de sua última estada na
Inglaterra. Você voltou para morar aqui?
Sarah aceitou a bebida de Hugo com um sorriso um tanto
desprovido de expressão e segurou o copo com as duas mãos, pois
estava tremendo.
— Tenho um emprego aqui — disse Janet. — Supervisiono a
recepção no Hospital St. Kit. É um contrato de seis meses, mas que me
dará tempo de organizar o futuro.
Sarah tomou um grande gole da bebida. Provavelmente uísque ou
brandy cairiam melhor, mas o sherry resolvia a situação, no momento.

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Sentia frio por dentro; isto a impedia de pensar, o que talvez fosse boa
coisa. Seu futuro iria ser decidido com Janet?
Colocou o copo sobre a mesinha e olhou para Hugo, encostado
em um dos cantos da lareira. — Você fez boa viagem, Hugo? Gostou?
— Tentou pôr um pouco de calor na voz, mas sem muito sucesso. Ele
nem sequer a saudara ou lhe perguntara como ia.
Respondeu calmamente: — Acho que tudo deu certo. Não posso
dizer que tenha gostado muito. Você está bem, espero?
Sarah respondeu que sim, que tudo estava ótimo, e pediu licença
enquanto ia falar com Alice. Precipitou-se para a cozinha, lutando
contra um forte impulso de voltar para a sala de estar e ver o que eles
estavam fazendo.
Eram quase onze horas quando Janet levantou-se com certa relu-
tância, dizendo que teria de ir embora. Sarah, possuída por um desejo
negativo de ferir-se ainda mais, convidou-a para passar a noite com
eles, mas ao que parecia ela tinha reservado um quarto em um hotel e
deixado a bagagem lá. Hugo também levantou-se. — Vou levá-la de
volta, — disse, muito gentil, e quando Janet recusou, interrompeu-a: —
Mas que bobagem, não vai levar muito tempo, o tráfego a esta hora flui
muito bem. Além do mais, se não fosse por insistência minha, você a
estas horas já estaria na cama.. .
Sarah acompanhou-os até a porta e desejou um caloroso boa-
noite a Janet. Voltou para a sala de estar, à espera de Hugo. Passou-se
uma hora e então ela subiu para deitar. Permaneceu acordada até que
finalmente ouviu os passos de Hugo, que subia a escada. Quando ele
fechou a porta do quarto, ela acendeu o abajur de cabeceira e olhou a
hora. Eram bem mais de três da manhã.
Ela o ouviu descer bem cedo, antes das sete da manhã, e sair com
os cães. Provavelmente leria a correspondência antes do café. Quando
desceu, ele saía do escritório, com um punhado de cartas na mão.
Cumprimentaram-se como duas pessoas civilizadas e conversaram
durante o café como dois estranhos bem-educados que se encontram à
mesma mesa. Tinham quase terminado quando Sarah referiu-se ao
casamento de Anne Binns, dentro de uma semana, seguindo-se, após
alguns dias, o de Kate. O de Anne seria celebrado com grande pompa
em uma igreja de Knighstbridge, e Hugo, franzindo o cenho, disse: —
Meu Deus, tinha esquecido completamente. Suponho que terei de usar
fraque. Que foi que compramos para eles?
— Talheres para peixe em um estojo magnífico — replicou Sarah.
Ele riu e perguntou o porquê da escolha. Ela respondeu: — Eu real-
mente agi contra minha natureza.

Livros Florzinha - 100 -


Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Ele a olhou, surpreendido e ao mesmo tempo divertido. — Minha


querida, você está sendo muito maliciosa. .. Sempre pensei em você
como o símbolo da bondade.
Ela abanou a cabeça. — Então vai ter que mudar sua opinião a
meu respeito. Em caso de necessidade, posso me revelar mesquinha e
maldosa.
— Não havia absolutamente a menor necessidade de convidar Ja-
net para jantar, ontem à noite. — Havia ternura na voz de Hugo.
Ela o fitou com ar inocente. — Mas, Hugo, Janet é uma velha
amiga; aliás, mais do que uma amiga. Teria sido impensável deixá-la ir
embora após um drinque. Além disso, você gostou de conversar com
ela. Você... precisava recuperar o tempo perdido. Pensei até em
convidá-la novamente para jantar. Talvez num fim de semana...
Ele ficara zangado e bastava olhá-lo de relance para confirmar o
fato. No entanto nada disso transpareceu em sua voz quando ele falou:
— Você não se incomoda que ela venha aqui?
Ela consentiu que uma expressão de pasmo surgisse em seu
rosto. — Você mesmo disse que somos equilibrados e maduros. —
Pegou uma torrada e partiu-a em pequenos pedaços. — Incrível que
vocês tivessem se encontrado novamente, não? O destino pode muito!
Ele disse um tanto irritado, enquanto se levantava: — Fico
contente que você leve as coisas por este lado; não preciso me sentir
culpado quando a vejo. — Saiu da sala sem se lembrar de dizer até
logo, deixando-a pálida como cera.
Não tocou na conversa quando voltou para casa naquela noite, e
em seus modos não havia nada que indicasse que tudo aquilo tivesse
acontecido. Aparentemente tinham voltado às antigas relações e esse
clima permaneceu durante algum tempo. Janet nunca era mencionada,
mas os telefonemas diários, enquanto ele estivera fora, também não.
Sarah surpreendeu-se a pensar se Janet estivera com| Hugo nos
momentos em que ele telefonava, apesar de ter certeza, no mais íntimo
de si mesma, que ele jamais faria uma coisa dessas. Seria tão mais fácil
suportar tudo aquilo, se ao menos ela pudesse pensar em Hugo como
um vilão sem caráter!
Foram juntos para a rua da Rosa, como sempre tinham feito. Havia
muito o que fazer para que tivessem tempo de conversar, e mais tarde,
no apartamento do dr. Bright, ela fingiu estar ocupada na cozinha, pois,
assim não precisava tomar parte da conversa. Somente quando
estavam a ponto de partir, John Bright olhou-a firmemente e disse:
— Você não é a mesma de sempre, Sarah. Este trabalho a deixa
cansada?

Livros Florzinha - 101 -


Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Ela respondeu apressadamente: — Claro que não! Sinto-me muito


bem. Talvez seja um resfriado incubado. — Sorriu para ele. — Espero
que não seja o caso, pois você sabe como eu gosto de vir aqui.
No dia seguinte era o casamento de Anne Binns. Isto lhes forneceu
assunto, enquanto voltavam para Ríchmond, mas ela percebia muito
bem que os pensamentos de Hugo estavam longe.
O casamento até certo ponto foi um suplício, apesar do prazer de
usar o casaco de mink e um chapéu deslumbrante, além do fato de ser
acompanhada por Hugo. A noiva estava quase bonita em seu vestido
branco de cetim e rendas, e o noivo. . . Sarah estudou-o, enquanto ele
saía, levando a noiva pelo braço. Steven sorria, porém o sorriso
disfarçava sua indiferença e havia traços de irritação que punham uma
nota dissonante em seu rosto. Desviou o olhar dele e olhou Hugo
instintivamente. Nesse momento notou que seus olhos cinza a fitavam
com tamanha fixação que ela ruborizou-se e olhou em outra direção.
Ficaram separados durante a recepção. Sarah coonseguia vê-lo,
pois sua estatura sobressaía entre todos os presentes. Conversava
animado e parecia estar se divertindo muito. Ela andou de grupo em
grupo e, assim que conseguiu escapar, refugíou-se em um canto com
Kate, que obviamente estava morrendo de vontade de conversar.
Sentaram-se, tomando o champanhe da sra. Binns, aliás excelente, e
Sarah disse: — Você está morrendo de vontade de me dizer algo, Kate.
Por favor, minha querida, seja rápida, pois estou vendo que
conseguiremos ficar a sós unicamente por alguns minutos.
Sua amiga olhou-a hesitante. — Não sei se devo lhe contar ou
não, mas acho melhor, apesar de saber que isto não lhe importa mais,
agora que você está casada com Hugo. Sua antiga namorada, acho que
o nome dela é Janet, voltou para Londres.
Sarah disse calmamente: — Sim, já sei. Foi jantar conosco e é
uma simpatia. Não é propriamente bonita, mas é atraente.
Kate, porém, não era uma pessoa que se deixasse despistar tão
facilmente. — Hugo foi diversas vezes ao Hospital St. Kit conversar com
ela. É ela quem chefia o atendimento lá.
Sarah disse, meio zombeteira: — Oh, quanta fofoca!
Kate prosseguiu: — Sarah, minha querida, isto não é fofoca. Foi
Jimmy quem me contou. Sarah... Que diabos, por que ela tinha de
voltar?
— Também andei pensando nisto — comentou Sarah, com tal
exagero no tom de voz que Kate disse:
— Você se importa, sim, e muito, não é mesmo? Posso ajudá-la
em alguma coisa? Agora que você está casada com Hugo, ela certa-
mente não deve ter tanta importância assim. Talvez seja apenas uma
coisa passageira.

Livros Florzinha - 102 -


Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

— Depois de quinze anos? — perguntou Sarah, amargurada. Kate


lançou-lhe um olhar em que a dúvida, a suspeita e a piedade
se misturavam em doses iguais. — Sarah — principiou a dizer,
sendo interrompida pela voz de Hugo às suas costas:
— Vocês duas parecem estar conspirando para matar alguém.
Kate levantou-se.
— Não sei a respeito de Sarah, — disse muito calma — mas era
exatamente isto o que eu tinha em mente. — Afastou-se sem dizer mais
nada.
Hugo sentou-se no lugar dela, tirou o copo das mãos de Sarah e
observou: — É uma garota encantadora, mas às vezes acho que ela
avança um pouco o sinal. Não acha que já justificamos suficientemente
nossa presença aqui? Agora o casal feliz está a ponto de ir embora,
iniciando a lua-de-mel. Acho que bem poderíamos cair fora assim que
eles partirem.
Eram ainda três e meia da tarde, porém, o crepúsculo de novem-
bro principiava a se fazer notar, enquanto eles se dirigiam para casa. Ao
chegarem, Sarah disse: — Alice só volta lá pelas seis horas. Vou fazer
um pouco de chá.
Hugo consultou o relógio. — Não se incomode por mim, Sarah.
Vou mudar de roupa. Tenho um encontro às cinco e meia e não quero
chegar atrasado. — Começou a subir as escadas e ela perguntou do
hall, olhando suas costas largas: — Na rua Harley? — sabendo que a
resposta viria.
— Não... se eu não estiver de volta até as sete e meia não me
espere para jantar.
Sarah pôs de lado o casaco e o chapéu e foi para a cozinha. Não
tinha comido muito na recepção; pensando bem, não se lembrava de ter
comido nada além de um pedaço do bolo de noiva. De qualquer modo,
não sentia fome. Pôs a chaleira para ferver e ficou à espera, com o bule
na mão. Uma mulher corajosa e que se respeitasse sem dúvida subiria e
faria algumas perguntas bem diretas, mas, mesmo que ela o fizesse,
ainda assim obteria respostas diretas?
A água da chaleira fervia, mas ela não tomou conhecimento, en-
quanto abria a porta dos fundos para deixar Timmy entrar. Ele a fitava
porque ela não tinha acudido assim que ele se pusera a miar. Pegou-o
no colo, perguntando: — Timmy, o que é que vou fazer?
— Como assim? — Hugo voltara à cozinha. Desligou o fogo sem
o menor comentário, atravessou a cozinha, pegou o bule de sua mão e
preparou o chá. Disse em seguida: — E então? — Olhou-a fixamente e
prosseguiu: — Se você ficar aí nessa corrente de ar, acaba pegando um
resfriado.

Livros Florzinha - 103 -


Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Ela entrou e fechou a porte. — Estava perguntando a Timmy se ele


quer tomar o chá agora ou mais tarde — ela disse. Não o encarou
porque não sabia mentir e também porque não tinha certeza de há
quanto tempo ele estava na cozinha. Pôs Timmy no chão e ele foi para a
sala, juntar-se aos cães ao pé da lareira. Sarah pegou a bandeja e
seguiu o gato; nela havia somente uma xícara e um pires, pois não
pretendia voltar a chamar Hugo.
Ele a seguiu até a sala e perguntou, olhando a bandeja: — Você
não vai comer nada? — Estava colocando o casaco enquanto falava.
— Depois daquela comida deliciosa na casa dos Binns? — ela
respondeu com desenvoltura.
— Você comeu apenas um mísero pedaço de bolo. — Seus olhos
pareciam com os de uma águia, por trás daquelas pálpebras semi-
cerradas.
Ela replicou com firmeza: — Não tinha fome.
Ele devia ter achado tal comentário indigno de uma resposta; sim-
plesmente caminhou em díreção à porta e, ao chegar ali, disse: — Acho
melhor dizer logo de uma vez que não virei jantar, Sarah. Nós nos
veremos mais tarde.
Levantou a mão, esboçando um vago gesto de adeus, deixando-a
com sua solitária xícara de chá e o pensamento de que não a veria mais
tarde. Ela foi deitar-se bem cedo, depois de prevenir Alice de que o
doutor tinha um compromisso importante e que ela estava exausta com
aquela recepção de casamento. Alice ouviu e assentiu e, quando Sarah
já estava deitada, ela apareceu com um copo de água e um analgésico.
Sarah tomou-o, vigiada por seu olhar maternal, sabendo de antemão
que precisaria de muito mais do que aquilo para conciliar o sono.
Bocejou, a fim de dar a Alice a satisfação de constatar que seu remédio
estava fazendo efeito, e pediu-lhe que apagasse a luz ao sair. Era pouco
mais de oito e meia, e a noite prometia ser longa. Ouviu Hugo chegar
por volta das dez e repeliu com firmeza o quadro vívido dele e de Janet
jantando em algum lugar tranquilo, onde provavelmente não seriam
vistos. Sentou-se na cama, abraçando os joelhos e tentando decidir qual
seria a melhor atitude a tomar. Deveria chegar até ele e dizer: "Olhe,
Hugo, você quer se divorciar?" Franziu o cenho, tentando lembrar se
havia uma lei relativa à concessão do divórcio antes de decorrido um
certo tempo; mas quanto tempo seria? Ignorava. Talvez fosse por isso
que Hugo nada dissera; talvez estivesse à espera de que ela dissesse
algo. Lembrou-se de como ele a tinha beijado quando partira para os
Estados Unidos, e da frequência com que tinha telefonado, mas tudo
isto acontecera, é claro, antes de ele ter voltado a encontrar Janet.
Pairava um grande silêncio na casa. Hugo ainda estava no térreo,
pois ouvira a porta da frente abrir e fechar e os cães ganirem no hall e,

Livros Florzinha - 104 -


Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
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um pouco mais tarde, o miado baixo de Tímmy à sua porta. Ele


costumava dormir com Alice, mas seria gostoso ter companhia. Deixou-o
entrar e voltou para a cama, apertando o corpo peludo do gato de
encontro ao seu. Logo ele se pôs a ronronar e finalmente adormeceu.
Só mais tarde, muito mais tarde, Sarah conseguiu finalmente conciliar o
sono.
Dormiu até muito tarde na manhã seguinte. No momento em que
desceu Hugo já levara os cães para passear e tomava o café da manhã.
Deu-lhe bom dia e ela ficou admirada ao constatar o quanto ele estava
pálido e preocupado. Disse: — Hugo! — sem conseguir se controlar,
mas parou, pois sua expressão não lhe permitia perguntar nada mais. E
não havia necessidade, pois ela sabia como ele devia se sentir.
Encontrar novamente a mulher que ele tinha amado por tantos anos e
não ser livre para desposá-la. .. Devia ser terrível para Janet também.
Tomou um gole de café e ele disse: — Você está comendo muito pouco,
Sarah. Alice me disse que você não jantou. Você se sente bem?
Ela respondeu, brusca: — Sim, claro. Foi apenas uma dor de
cabeça. Um passeio com os cães há de me curar.
Depois que ele se foi, ela sentou-se à escrivaninha em frente à ja-
nela e começou a fazer a lista de compras. Primeiro iria ao supermer-
cado, em seguida levaria os cães a passear. Deste modo, parte de seu
dia seria preenchido. Foi ao guarda-roupa buscar um vestido para levar
à lavanderia e lembrou-se de que um terno de Hugo também estava
precisando ser lavado. Dirigiu-se ao quarto dele e achou-o em cima da
cama. Começou a revistar os bolsos, muito embora não esperasse
encontrar nada. Ele não era dado a guardar papéis ou bilhetes de
ônibus. No momento em que dobrava o paletó lembrou-se do bolso de
dentro e, só para constar, vasculhou-o. Encontrou uma pequena caixa
de veludo vermelho. Olhou-o durante um bom momento e finalmente
abriu-a. Havia um anel dentro; era de ouro e pedras preciosas. Sarah
franziu o cenho, pois elas estavam engastadas um tanto
desordenadamente. Tirou-o e ficou a contemplá-lo.
De repente viu um papel dobrado que caíra do bolso no mesmo
momento em que encontrara o anel. Ergueu-o do chão, olhou-o por um
bom momento e muito lentamente abriu-o. A letra era de Hugo, não
havia endereço nem data. Dobrou-o, mas imediatamente mudou de
idéía, abriu-o e começou a ler:
— "Minha querida.
Parece estranho escrever-lhe, pois já se passou muito tempo
desde que o fiz, e devo revê-la muito em breve. Talvez até lá este anel
lhe diga um pouco do que sinto. .. "
Sarah não leu o resto, mas dobrou o bilhete, colocou-o cuidadosa-
mente no bolso, juntamente com a caixinha, e pendurou o terno no

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

armário. Desempenhou todos estes gestos mecanicamente, refletindo


que fora merecidamente castigada por ter procedido com tanta
mesquinharia. Quando pós tudo em ordem desceu para a cozinha, onde
Alice preparava um bolo. Interrompeu sua tarefa ao ver Sarah e
perguntou ansiosamente:
— A senhora está se sentindo bem? Está pálida como um
defunto.
— É apenas uma dor de cabeça, Alice. Um passeio me fará bem.
ia levar alguma roupa para a lavanderia. Já separei um vestido,
mas ainda falta aquele terno cinza do doutor. Quer pegá-lo e levar tudo
para a lavanderia? Pretendia fazer algumas compras, mas mudei de
ideia. Vou levar os cães para dar um passeio e almoçarei fora. Pode
folgar hoje à tarde, Alice.
Sarah andou até ficar exausta, e até mesmo os cães denotavam
cansaço. No entanto, sentiu-se melhor com o exercício e, ao voltar para
casa, sentiu-se contente ao constatar que lhe viera um pouco de cor ao
rosto. Alice ainda não chegara; Sarah tomou chá e subiu para mudar de
roupa. Quando desceu e estava na cozinha com Alice, Hugo chegou.
Adquirira o hábito de ir para o hall a fim de encontrá-lo, mas agora ficou
onde estava, pois era como se ali ela se sentisse protegida. Assim que
ele entrou limitou-se a dizer:
— Olá; Hmmm, mas que cheiro bom. — Aceitou a fatia de bolo que
ela lhe deu e foi sentar-se a mesa da cozinha para comê-lo. Já tinha
comido quase tudo quando perguntou: — Meu terno cinza foi para a
lavanderia? — Ao mesmo tempo lançou-lhe um olhar tão penetrante que
ela quase lhe contou a respeito do anel e da carta. Naquele momento
notou seu ar preocupado e a tensão em torno de seus lábios. Devolveu
seu olhar, aparentando ar de inocência. Disse: — Sim, hoje.
Ele ainda a encarava. — Havia algo nos bolsos?
Foi salva do perjúrio por Alice, que respondeu em seu lugar.
— Havia, sim, doutor. Está na primeira gaveta de sua escrivani-
nha. É uma caixinha.
— Muito bem, obrigado, Alice. — Ele levantou-se, foi até a porta e
abriu-a. — Venha tomar um drinque — convidou Sarah, com o olhar
ainda preso ao seu. Ela seguiu-o e sentou-se perto da lareira, enquanto
ele preparava as bebidas antes de vir sentar-se a seu lado. Estava mais
ou menos preparada quando ele comentou: — Sempre achei que você
costumava revistar minha roupa antes de mandá-la para a lavanderia,
Sarah.
Ela respondeu com um sàngue-frio que interiormente a deixou
muito contente: — Sim, de fato. Mas esta manhã decidi sair com os
cachorros. Estava com muita dor de cabeça e pedi a Alice que o fizesse
por mim.. Você não se importou? Havia algo de valor?

Livros Florzinha - 106 -


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Sabrina no. 39

Ele disse calmamente: — Sim.. . mas somente para mim. Não me


incomodo com que Alice faça tais coisas; afinal, por que deveria? Ela
sempre fez, antes de nos casarmos. Você passou um dia agradável?
Ela teve alguma dificuldade em mentir. Quando terminou ele não
fez comentário algum, mas disse:
— Há muito tempo que não saímos, não é mesmo? Que tal
levarmos Janet à rua da Rosa uma dessas noites e sairmos para jantar,
mais tarde?
Ela concordou imediatamente, pois que mais lhe restava fazer? —
Que tal amanhã? O casamento de Kate é depois de amanhã.. e vamos
à casa dos Coles na próxima semana . Ou será que Janet precisaria ser
avisada com mais antecedência?
— Acho que não — ele respondeu displicentemente. — Falei com
ela a esse respeito outro dia e ela achou que era uma boa ideia. — Ele
voltou a fítá-la e esperava que ela fizesse algum comentário. Ela disse
animada:
— Pois então está decidido, certo? Janet está feliz no hospital?
Espero que tenha feito alguns amigos. Por que não a convidamos para
jantar uma dessas noites? Talvez no sábado. Ela estará livre?
— Claro que sim — disse Hugo — se você quiser. ..
— Você a convidará quando estiver com ela?
— Sim, claro. Mas o que leva você a crer que eu vou estar com
ela?
Ela ficou ruborizada e evitou seu olhar; estavam pisando
novamente em terreno perigoso. — Bem, você sabe. Os mexericos, as
pessoas ...
— Ah, sim, os mexericos — ele disse, sem alterar a voz. — E as
pessoas. .. Você acredita em tudo o que ouve, Sarah?
Ela balançou a cabeça. — Não! — Foi tomada de surpresa no
momento em que ele lhe perguntou: — Ainda ama Steven, Sarah?
Levantou-se, completamente sem jeito. Não sabia o que dizer, pois
qualquer resposta seria mal interpretada. Optou por não responder.—
Vou ver se o jantar está pronto— disse, quase sem fôlego, e saiu da
sala.
No dia seguinte foi ao encontro de Hugo, como sempre, e mais
tarde passaram pelo hospital a fim de pegar Janet. Sarah, sentada no
banco de trás, não podia deixar de notar como Hugo e Janet com-
binavam um com o outro, pois Janet também era alta. Faziam um belo
par. Falou com Sarah por cima dos ombros enquanto iam para a rua da
Rosa, mas conversou bastante com Hugo, com a desenvoltura de uma
velha amiga, e ele respondeu com a mesma disposição. Sarah sentiu-se
aliviada quando chegaram à clínica do dr. Bright; foi até a pequena sala
de Sandra, pôs o avental e mergulhou no trabalho. Imaginou que Janet

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fosse ficar com Hugo e disse a si mesma que não se importava nem um
pouco. Janet, no entanto, ficou o tempo todo com John Bríght e preferiu
sentar-se a seu lado, no banco de trás, quando foram jantar mais tarde.
Foram a um restaurante nas proximidades da igreja de São Paulo.
Comeram um bife delicioso e creme de fígado, que Sarah, aliás, foi
incapaz de apreciar. Hugo começou a relatar um caso interessante
de septicemia que lhe tinham trazido naquela tarde e, apesar de tomar
parte na conversa, eles de vez em quando se esqueciam de sua
presença e ela se via completamente excluída da profundidade dos
temas abordados. Após um certo tempo em seu rosto surgiu uma ex-
pressão de interesse meramente convencional. Quando o dr. Bright
voltou-se para ela e disse: — Sarah, como você está quieta — foi-lhe
um esforço sorrir.
Ela respondeu tão baixo que somente ele conseguiu ouvi-la. — Ê
mesmo? Bem, o que vocês estão dizendo escapa um pouco a meu
entendimento.
Ele lançou-lhe um olhar penetrante e para sua consternação disse
em voz alta:
— Não sei quanto a vocês, mas preciso ir para casa.
Suas palavras tiveram o efeito de interromper o jantar, e, apesar
de ele não voltar a lhe dirigir a palavra a caminho de casa, ela ficou
surpreendida e tocada quando ele inclinou-se e beijou-a, antes de sair
do carro. Aquele simples gesto a fez sentir-se um tanto arrependida de
sua atitude. Foi talvez por isso que se mostrou tão amável com Janet,
quando chegaram ao hospital.
— Você precisa vir jantar em casa. Hugo irá buscá-la. Nunca fa-
zemos nada aos sábados à noite. — O que era uma mentira: logo que
se casaram, sempre saíam para um jantar ou para o teatro. — Venha
tomar chá e fique para jantar. — Sarah disse a Janet quando se
despediram.
No dia seguinte foi o casamento de Kate. Comparado com a impo-
nente cerimónia de Anne Binns, foi uma festa pequena, mas muito mais
divertida, pois havia somente a família, alguns amigos íntimos e todo
mundo se conhecia. Kate estava tão linda que Sarah se sentiu
comovida; não ousou olhar para Hugo de medo que seus sentimentos a
traíssem. Felizmente havia tantas pessoas presentes à recepção que
ela não teve tempo de pensar. O casamento fora às duas horas, mas
passava das cinco quando eles deixaram a casa agradável em Finchley,
onde os pais de Kate moravam. Quando chegaram a Marylebone Road,
Hugo virou à direita. Ela esperou durante alguns momentos que ele
dissesse o porquê e perguntou: — Estamos indo para o hospital?
— Não. Preciso passar no consultório. Não vou demorar muito.
Deixou-a à sua espera no carro. Ela o viu atravessar a rua e entrar,

Livros Florzinha - 108 -


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alto, elegante, distinto, parecendo mais do que nunca um estranho.


Deveria creditar tudo isto ao reaparecimento de Janet em sua vida. Ele
estava de volta dentro de alguns minutos e enquanto se sentava a seu
lado. ela disse, sem conseguir se controlar: — Imagino que você
telefonou para Janet.
Ficou horrorizada consigo mesma no momento em que falou, mas
ele respondeu, calmo! — Sim. Esqueci de dar-lhe seu recado.
Ela não disse nada. Dominou a raiva, normalizou a respiração e
perguntou com doçura: — Finalmente ela conseguiu manejar os ho-
rários?
Hugo olhou-a de soslaio: — Sim.
Sarah preparou o jantar com muito capricho. Hugo fora buscar
Janet, aparentemente muito contente em fazê-lo, e tomaram chá ao pé
da lareira. Janet se mostrou muito amável. Em outras circunstâncias,
Sarah teria gostado muito dela. Foi até a cozinha a fim de ver se tudo
estava em ordem. Voltou para a sala de estar, satisfeita por ver que a
comida pelo menos seria um sucesso. Surpreendeu Janet e Hugo
conversando animadamente. Ambos ficaram em silêncio no momento
em que ela entrou.
O jantar foi o sucesso que ela havia antecipado, bem como o resto
da noitada. Talvez isto se devesse ao excelente vinho que Hugo abrira
para comemorar — segundo suas palavras — "uma ocasião tào
agradável". Ou, então, porque ele se aplicara em se mostrar encantador
e divertido, e era impossível não reagir. Às dez horas Janet fez menção
de ir embora, mas Hugo disse imediatamente:
— Ainda não. Janet. Há um artigo numa revista desta semana que
eu quero lhe mostrar. Há algo nele com que não concordo.
Levantou-se e ela também. Sarah viu-os sair, lado a lado, em
direção ao escritório. Ao chegar à porta da sala de estar ele voltou-se e
disse, muito simpático: — Você não se importa, Sarah? Não vamos
demorar muito. Não é assunto para uma sala de estar.
Ela assentiu, sorrindo, morrendo de vontade de dizer-lhe que ao
longo de sua carreira de enfermeira ouvira muitos assuntos que não
eram decididamente apropriados para uma sala de estar, e que
aprendera a não se mostrar susceptível em relação a eles. Lembrava-se
especialmente de alguns temas particularmente desagradáveis que ele
abordara com ela há poucos meses atrás.
Quando eles voltaram, parecia que havia transcorrido um século,
apesar de não haverem se passado nem dez minutos. Ela disse ime-
diatamente: — Vou buscar mais café. — Passou mais meia hora antes
que Janet finalmente dissesse até logo, e somente depois Sarah insistiu
para que ela passasse a noite com eles. Ficou parada nos degraus da
entrada, tremendo de frio e acenando para Janet. Hugo também lhe

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dera boa noite, da mesma forma que Janet. Provavelmente voltaria


muito tarde, ou, pensou ela com uma risadinha amarga, muito cedo.
O dia amanhecera feio e, seguindo a sugestão de Hugo, não o
acompanhou durante o passeio usual, apesar de que nunca permitira
que o mau tempo a fizesse permanecer dentro de casa. Iam jantar
com alguns amigos naquela noite, o que lhe permitia passar a tarde na
companhia um do outro. Ficaram na sala de estar, lendo os jornais de
domingo ao pé da lareira e comentando as notícias com uma
camaradagem que lhes custava um certo esforço. Sarah, de sua parte,
gostou que a coisa caminhasse por aí, pois no fundo acalentava a idéia
de que, se o relacionamento voltasse a ser como antes, seria mais fácil
conversar com ele a respeito de Janet. Tinha muita vontade de lhe
perguntar o que ele quisera dizer quando lhe telefonara dos Estados
Unidos, ao se referir à causa de sua viagem. Teria sido para se
encontrar com Janet? No entanto Sarah não conseguia acreditar nesta
hipótese. Aquele era um dos acidentes que o destino proporciona de
tempos em tempos. Um tanto ou quanto estouvadamente fez uma ou
duas tentativas de abordagem, deparando-se com uma resistência tão
eficaz quanto um muro de pedra.
No dia seguinte o frio aumentou muito. Sarah não pretendia sair,
mas o dia parecia esticar-se interminavelmente e Hugo dissera que
poderia voltar tarde. Pós o casaco e um pequeno gorro de veludo;
decidira ir comprar presentes de Natal. Na verdade não se sentia
disposta a encarar uma ocupação tão agradável, mas assim preencheria
seu dia até a hora do chá. Estava em um bar da moda tomando café
quando Janet e Hugo entraram. Não a viram, pois ela ocupava uma
mesinha meio escondida no canto da sala, e de qualquer modo estavam
entretidos demais a conversar e sentaram-se a uma mesa na outra
extremidade. Ela se pôs a contemplá-los, incapaz de desviar o olhar.
Hugo falava com veemência; sua atitude exprimia preocupação e
quando estendeu a mão e tomou a de Janet, Sarah cerrou os olhos por
um momento, sabendo que não conseguiria suportar por mais tempo. Já
tinha pago a conta e levantou-se muito em silêncio, contente por sua
mesa ser tão próxima à porta. Atravessou-a cegamente e começou a
descer a escada, quase se chocando com um homem que subia na
maior pressa. Ele parou, pediu-lhe desculpas com um forte sotaque
americano, tirou o chapéu e sorriu muito simpaticamente antes de
prosseguir, deixando a impressão de uma excitação mal controlada.
Esqueceu-o no momento em que voltou a descer apressadamente a
escada, e já na rua chamou um táxi. Durante todo o trajeto seu rosto
exprimia uma funda concentração. Ao parar diante de casa tinha
chegado a uma decisão e sabia exatamente o que ia fazer.

Livros Florzinha - 110 -


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Sabrina no. 39

Primeiramente foi até a cozinha dizer a Alice que não voltaria até a
noitinha e que não haveria necessidade de ela se preocupar, caso
houvesse atraso. Em seguida subiu para o quarto, recusando a oferta de
Alice de lhe levar algo para comer. Não tinha tempo a perder.
Pendurou cuidadosamente o casaco e pôs uma saia de tweed e
um suéter. Encheu a mala de roupas, mais suéteres, calças compridas,
um vestido de lã, roupas de baixo. Enfiou o capote pesado que usava
quando levava os cães para passear. Isto feito, abriu a gaveta da pen-
teadeira e tirou o broche de diamante, o colar de pérolas e, após um
momento de hesitação, a aliança, antes de levá-los para o quarto de
Hugo e trancá-los na gaveta do criado-mudo. Finalmente sentou-se e
contou seu dinheiro. Estivera no banco aquela manhã e ainda tinha
algumas libras de sua pensão, mais do que suficientes para suas
necessidades. Faltava somente a carta que ela iria escrever. Gostaria de
ter saído da casa e da vida de Hugo sem uma palavra, mas isto seria
injusto. Levou um certo tempo e gastou algumas folhas de papel antes
que ficasse satisfeita. A carta saiu finalmente com a seguinte redacão:
"Querido Hugo:
"Vou embora, a fim de que você consiga o divórcio e possa se
casar com Janet. Tentei conversar a respeito disso tudo, porém, você
não permitiu. Quando os vi juntos no café hoje, compreendi que não su-
portaria mais. Tome as providências que achar necessárias; concordarei
com qualquer coisa, contanto que você possa ser novamente feliz.
Estou levando o carro. Espero que não se importe, mas deixei as jóias
que me deu na gaveta do seu criado-mudo. Tenho dinheiro suficiente e
tudo irá bem, pois conseguirei um emprego com toda facilidade. Mais
tarde avisarei o advogado, comunicando-lhe meu endereço."
Assinou "Sarah" e leu a carta mais uma vez. Era um pouco árida e
distante, apesar de que interiormente sentia uma vontade imensa de
confessar o quanto o amava. Se bem que isto de nada adiantaria...
Ouvia Alice lidando na cozinha; pegou a mala e desceu a escada
sem fazer o menor barulho. Pôs a carta sobre a escrivaninha de Hugo
no escritório e saiu de casa, esforçando-se por não voltar a cabeça.
Havia gasolina suficiente no tanque. Sarah pôs a mala no assento
de trás e tirou cuidadosamente o carro da garagem. O mapa rodoviário
estava aberto no assento ao lado dela; já o havia estudado minu-
ciosamente em seu quarto. Tão logo estivesse na estrada se lembraria
de tudo. Sabia que teria de dormir em um hotel duas noites durante o
percurso, talvez até mesmo três. Em outra oportunidade ficaria
horrorizada com a ideia de enfrentar uma estrada de alta velocidade,
mas agora não se importava. Os detalhes da viagem não a
incomodavam; seu único desejo era chegar ao chalé em Wester Ross e

Livros Florzinha - 111 -


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Sabrina no. 39

esconder-se até que aquela dor dilacerante tivesse se amainado um


pouco.

Hugo chegou em casa mais tarde do que pretendia. Alice espera-


va-o ansiosamente no hall e disse-lhe, sem maiores preâmbulos:
— Estou preocupada com a senhora van Elven, doutor. Chegou
em casa ao meio-dia e parecia não estar nada bem. Disse-me que ia
sair e que eu não devia me preocupar se ela não voltasse para o chá.
Só que agora são oito horas e não há o menor sinal dela. Não é de seu
feitio deixar de telefonar. Ela é sempre tão atenciosa!
Hugo empalideceu um tanto, porém, exteriormente manteve a
calma de sempre. — Não se preocupe, Alice, deve ser por causa do
trânsito. Ela levou o carro?
— Não sei. Ela não disse onde ia.
— Então ela deve estar visitando alguém. Vou fazer alguns telefo-
nemas e ver se consigo localizá-la. Talvez o carro tenha quebrado.
Jogou o casaco em uma cadeira e foi até o escritório. Imediata-
mente viu o envelope sobre a escrivaninha. Ficou parado, contem-
plando-o por um bom momento, sem a menor expressão no rosto. Abriu-
o lentamente e leu a carta de Sarah. Voltou a lê-la, antes de dobrá-la
cuidadosamente e pô-la no bolso. Em seguida subiu às pressas para o
quarto de Sarah. Olhou-o com uma espécie de desespero mudo e abriu
o guarda-roupa. Sarah, porém, tinha muitas roupas e era difícil perceber
quais ela tinha levado. Ele teve quase certeza de que a maior parte de
suas coisas havia ficado lá. Isto significava que ela havia levado o
suficiente para passar somente alguns dias fora. Possivelmente estaria
na casa de seus pais. Ao descer novamente a escada, fez uma lista das
pessoas com quem ela poderia estar.
Mas naquela noite Sarah não voltou.

CAPITULO IX

Os primeiros flocos de neve estavam caindo no momento em que


Sarah pegou a chave no esconderijo e a introduziu na porta do chalé.
Dentro fazia muito frio, mas não havia a menor umidade. Acendeu um
lampião e a lareira a querosene, que a prestativa sra. MacFee deixara
preparada. Tírou as malas do carro, antes de guardá-lo na garagem.
Quando finalmente entrou, estava tremendo de frio e de cansaço, além
da tensão de ter guiado centenas de quilómetros. Tais sentimentos eram
superados unicamente pela angústia de saber que Hugo jamais a
amaria, agora que Janet voltara para sua vida.

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Dormiu o sono profundo da exaustão e acordou tarde, na manhã


seguinte, constatando que ainda nevava. A paisagem estava toda
branca e a neve cobria estradas, cercas e muros. Pôs rapidamente uma
calça comprida e um pesado suéter e foi em seguida inspecionar, um
tanto ansiosamente, o armário da despensa. A sra. MacFee tinha
novamente cumprido sua promessa. Sarah suspirou de alívio ao
constatar que a despensa estava repleta. Preparou o café da manhã,
pôs as botas de borracha de cano alto e um velho casaco e foi limpar o
pequeno caminho que levava até a garagem. Levou mais tempo do que
esperava e ainda precisava limpar o jardim dos fundos. Trabalhava com
a pá, sem se importar com a neve pesada que caía e atrapalhava
aquela árdua tarefa. Não tinha importância, disse a si mesma com falsa
alegria, podia recomeçar tudo de novo no dia seguinte e também nos
próximos dias, se fosse necessário. Pelo menos assim teria o que fazer.
Quando finalmente terminou, o céu começava a escurecer e eram quase
três horas da tarde. Com certa dificuldade desenterrou algumas batatas,
deixou a pá de lado e entrou em casa. Depois que acendeu os lampiões
e a lareira, a pequena sala de estar ficou quente e acolhedora. Tomou
um banho e colocou o penhoar quente, aninhando-se perto do fogo.
Comeu uma refeição que era metade almoço e metade chá e ficou a
ouvir o vento zunindo lá fora. Parecia que o tempo ia piorar. Sua
suspeita foi confirmada ao ouvir no rádio a previsão do tempo, que
anunciava neve pesada e vento forte. Sarah desligou o rádio, pois não
tinha certeza se havia pilhas sobressalentes. Procurou algo para fazer e
revistando as prateleiras, encontrou o bordado que principiara quando
tinha estado lá na primavera. Sentou-se com ele no colo, recordando
como tinham sido felizes. Pegou-o e começou a bordar
caprichosamente, mas logo em seguida largou-o, sem conseguir
enxergar o que estava fazendo, pois as lágrimas caíram.
A neve continuava a cair. Ela limpava os caminhos todos os dias,
contente com o trabalho, e em seguida vinha para dentro de casa, a fim
de preparar uma refeição simples ou ler à luz do lampião. Havia
bastante querosene e carvão, mas era impossível descer até a aldeia, e
não sabia quanto duraria o mau tempo. Sarah tinha tentado descer
colina abaixo certa manhã, porém, caíra em um buraco e levara tanto
tempo para sair dele que não tinha ousado tentar novamente. O telefone
estava cortado, o que aliás acontecera no dia seguinte à sua chegada, e
ela achou que ninguém sabia de sua presença no chalé. Não que isso
tivesse importância; tinha o suficiente para muito tempo ainda e sentia-
se muito bem. Quanto mais tempo se afastasse, mais rapidamente Hugo
compreenderia o que ela quisera dizer ao escrever a carta.
Já estava lá havia mais de uma semana e a neve, que parara du-
rante algumas horas, principiou a cair novamente. Tinha visto um

Livros Florzinha - 113 -


Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

limpaneve na estrada que corria paralela ao lago Duich; parecia pe-


queno demais, em meio àquela brancura que cobria os campos soli-
tários. Ao longe sobressaíam as montanhas, na distância gelada. O
limpa-neve desimpediu a estrada e tornou a desaparecer mas, antes
que o tráfego se restabelecesse, o vento tornou-se quase um vendaval e
desmanchou todo aquele trabalho. Esta mesma ventania obrigou-a a
trancar-se em casa, pois levantava turbilhões de neve, diante dos quais
sua pretensão de limpar os caminhos tornava-se uma brincadeira.
Almoçou cedo e passou a tarde arrumando os armários, postos em
ordem irrepreensível pelas mãos cuidadosas da sra. MacFee. Pelo
menos era uma maneira de passar o tempo. Pensava que, uma vez que
estivesse em paz e tranquila no chalé, poderia refletir calmamente no
futuro. Isto, no entanto, a levava a pensar em Hugo, e ela não conseguia
encarar o assunto objetivamente. Pelo menos ainda não.
O vento acalmou logo que nasceu o dia e ela levantou-se cedo,
antes de clarear. Tomou o café da manhã na cozinha apertada, limpou
toda a casa e, como não tivesse a menor pressa, já eram mais de dez
horas quando saiu. A neve não caía mais. Acumulara-se diante da porta
da garagem, quase soterrando o jardim. Removeu a neve que obstruía a
garagem. Não tinha a menor esperança de poder tirar o carro de lá, mas
pelo menos poderia chegar até ele. O jardim já foi tarefa mais árdua;
trabalhou duro até chegar à mureta que o cercava e então parou,
apoiada na pá, contemplando as colinas que se erguiam por detrás da
aldeia, mais abaixo. Não sabia o que a fizera dar a volta, talvez um
ligeiro ruído. Ao se virar Hugo estava quase a seu lado. Levantou a mão
e em um gesto vagaroso retirou os óculos escuros que usava quando
percorria longas distâncias. Notou o quanto ele estava cansado. Havia
rugas que ela jamais vira, fundamente cavadas. Deixou escapar um
pequeno grito, largou a pá e foi a seu encontro. Ficara muito
surpreendida e não sabia que palavras usar. Ao que parecia, o mesmo
acontecia com ele. Disse a primeira coisa que lhe passou pela cabeça.
— Que sorte eu ter removido a neve de frente da garagem. Como
foi que você conseguiu trazer o carro até aqui?
Seus lábios fatigados abriram-se em um sorriso. — Não trouxe,
não. Deixei-o em outro lugar e consegui uma carona.
Ela disse, assombrada: — Você veio andando? Devem ser pelo
menos uns dez quilómetros. ., e a neve está alta demais. Quanto tempo
levou?
Ele consultou o relógio. — Quatro horas. A neve estava bastante
sólida e havia muitos sinaleiros ao longo da estrada.
Eles ficaram se olhando até que ela disse: — Você deve estar can-
sado. — Caminhou na frente dele, em direção ao chalé. — Vou lhe
providenciar uma refeição.

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Uma mulher em leilão (Fate is remarkable) Betty Nells
Sabrina no. 39

Sabia que falava como uma professorinha autoritária, mas antes


isso do que ficarem parados ali.. Além do mais, teria tempo suficiente
para se acalmar e pôr um pouco de ordem em seus pensamentos.
Deixou as botas na porta dos fundos e foi acender a lareira, enquanto
ele tirava suas botas de borracha e livrava-se de seu casaco de pele de
carneiro. Colocou um pacote de leite sobre a mesa. Ao deparar com o
olhar dela, ele disse:
— Achei que você deveria estar cansada de tomar leite em pó.
Ela estava ocupada na cozinha e não olhou. — Foi muito gentil
de sua parte. Deve ter sido uma amolação carregar isto.
Ele respondeu polidamente: — De modo algum. Trouxe também
algumas pilhas para o rádio. — Sentou-se na cadeira ao lado da mesa.
Sarah quebrou dois ovos na frigideira e logo em seguida um terceiro —
Hugo deveria estar com fome. Disse finalmente, com os pensamentos
mais uma vez sob controle:
— Por que você veio, Hugo? Sei que há muitos documentos para
assinar, muita coisa a ser resolvida, mas você deveria ter ido em frente
com as providências necessárias. Já lhe disse que concordaria com
tudo. Você não precisava ter vindo até aqui. — Respirou fundo. — Como
soube que eu estava aqui? — Engraçado, mas somente naquele
momento este pensamento lhe ocorrera. Ele não respondeu sua
pergunta.
— Tinha de ver você, Sarah.
Colocou o toucinho e os ovos no prato e serviu-o. Sem se dar
conta, estava emitindo seus pensamentos em voz alta: — Ninguém
sabia que eu viria para cá. — Pegou o pacote de café. — Acho que é
uma coisa legal, e você não pode tomar nenhuma atitude enquanto eu
não assinar os papéis.
— Preciso lhe dizer algo, Sarah.
Ela serviu o café, estudando seu rosto. Ele estava dormindo em
pé.
— Sim, já sei, Hugo. — Ela falava com autoridade, como se esti-
vesse se dirigindo a um paciente na clínica. — Mas agora você vai
comer e dormir um pouco. Mais tarde conversamos. — Tentou desviar o
assunto. — O telefone não funciona. Acho que com toda esta neve... —
Antes que pudesse se controlar indagou: — Janet sabe que você veio?
— Interrompeu-se e respondeu à própria pergunta, incapaz de controlar
a loquacidade: — Espero que você tenha conseguido telefonar-lhe. Pelo
menos ela ficou sabendo que você chegou bem. Se a neve parar eles
mandarão o limpa-neve até aqui e você conseguirá uma carona até o
carro. Imagino que você mal pode esperar a hora da volta. — Parou
devido ao modo como ele a olhava; se ele não tivesse tão imensamente
cansado ela poderia jurar que ele ria em silêncio.

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— Vim direto para cá. — Sua voz soava áspera, talvez devido ao
fato de ele estar tão exausto.
— Direto até aqui? — ela repetiu, horrorizada. — Com este tempo
horrível! São centenas de quilómetros! — Ela deu-lhe as costas e se
serviu de café, engolindo as lágrimas que lhe cobriam a face. Ele devia
ter achado que tal esforço valia a pena.
Hugo não prestou atenção a este comentário. Tornou a dizer com
toda calma: — Tenho de conversar com você, Sarah.
Ela pousou a xícara tão bruscamente que o café entornou, mas
sua voz estava calma. — Sim, já sei. Mas agora não. — Como poderia
lhe explicar que pretendia protelar aquilo ainda por algumas horas, antes
de ouvir o que ele tinha a lhe dizer? — Você agora está cansado demais
e vou arrumar sua cama. A água está quente. Você encontrará tudo que
precisa no banheiro.
Ao mesmo tempo que falava subia para o andar de cima, contro-
lando firmemente seus pensamentos. Já tinha quase acabado de ar-
ranjar a cama quando ele subiu. Sem lhe dizer nada, entrou no banheiro
e abriu as torneiras.
Ela desceu, limpou a mesa, lavou a louça e começou a preparar
um cozido. Hugo haveria de querer comer quando acordasse. Durante
algum tempo ela conseguiu se manter ocupada com essas tarefas
caseiras e então, esquecida do almoço, foi para a sala de estar e pegou
novamente o bordado. Era um trabalho que a acalmava e ela precisava
estar plenamente controlada quando ele acordasse. Bordava com
aplicação, esperando que a lucidez sobreviesse, de tal forma que
pudesse planejar o que tinha a dizer. . . Isto, porém, não aconteceu; na
verdade seus pensamentos se embaralhavam um com o outro, e cada
qual era mais incoerente. O único que fazia sentido e não perdia sua
clareza era o fato de que ela amava Hugo. Aliás, o único
pensamento que não lhe adiantava de nada, disse a si mesma
desesperançada.
O dia avançava; quando começou a escurecer ela parou de bordar
e acendeu um lampião. Foi dar uma espiada na carne, em seguida
lavou-se e penteou o cabelo. Deu uma olhada no pequeno espelho da
cozinha e achou que sua aparência não era tão má assim. Emagrecera
um pouco e não havia muita cor em seu rosto, mas contanto que se
lembrasse de sorrir.. . Ensaiou um ou dois sorrisos e sentiu-se
encorajada, ao constatar que seu aspecto era muito normal. A piedade
de Hugo era a última coisa que ela desejava.
Agora estava bastante escuro e do andar de cima não vinha som
algum. Sarah sentou-se na sala de estar e serviu-se de chá, mas
deixou-o esfriando na xícara enquanto pensava em Janet. Era absurdo o
quanto gostava dela. Na verdade deveria odiá-la por voltar para a

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Inglaterra e arruinar sua vida. Tais pensamentos levaram-na


inevitavelmente a refietir sobre o futuro. Teria de decidir o que fazer.
Procuraria um emprego e começaria tudo de novo. Anteviu os anos
vazios e estéreis que tinha pela frente e ficou de tal forma mergulhada
em seus pensamentos que não conseguiu ouvir Hugo até que ele se
encontrasse ao pé da escada.
— Acabei de fazer chá — disse com simplicidade. — Espero que
tenha dormido bem. — Sua aparência indicava que sim. As rugas tinham
quase desaparecido; ele tinha se barbeado e seu olhar era o de um
homem bem descansado e disposto a tudo. Pois ela também estava,
pensou.
Sentou-se diante dela. Sarah serviu o chá e entregou-lhe a xícara.
Ele, por sua vez, colocou-a sobre a mesa, fitando-a em meio a um
silêncio tão profundo que ela teve certeza de estar ouvindo seu coração
bater descompassado, Quis disfarçar e perguntou-lhe se ele tinha
dormido bem, esquecida de que já o tinha feito. Quando ele respondeu
que sim ela acrescentou a interessante informação que as camas do
chalé eram muito confortáveis. Tal comentário não pedia resposta,
portanto Sarah tomou um pouco de seu chá frio, pegou o bastidor e
começou a bordar sem pressa. Fazia o possível para que suas mãos
não tremessem e seu belo rosto era iluminado pelos reflexos do
lampião. Esperou pacientemente que ele dissesse o que o motivara a
fazer aquela penosa viagem de centenas de quilómetros, no meio do
inverno. Tinha certeza de que ele explicaria seus motivos do modo mais
gentil possível. Eles tinham sido e ainda eram bons amigos. Agradeceu
aos céus em silêncio pelo fato de nunca ter deixado entrever que o
amava. Mesmo assim, quando ele falou, ela espetou o dedo.
— Levei uma semana até encontrá-la, Sarah — ele disse final-
mente. — Este é o último lugar em que eu pensaria. Você me disse —
está lembrada? — que só em caso de extrema necessidade viria até
aqui sozinha. Não me lembrei disso imediatamente. Perdi dias preciosos
procurando você na casa de sua mãe, no hospital e na rua da Rosa. Fui
até mesmo ver o sr. Ives e dezenas de outras pessoas. Você tem tantos
amigos. . Falei com Kate, Dick Coles, com o banco, até mesmo com o
velho Sims...
— Sinto muito. Não falei com ninguém, pois achava que você não
se importava em saber.
Ele disse, abalado: — Sarah, minha querida Sarah! Eu quase
enlouqueci. 'Eu a amo!' — disse subitamente. — Eu me apaixonei por
você há muitos anos atrás, você naquele tempo trabalhava em outra
enfermaria. Não foi muito difícil persuadir a enfermeira-chefe a transferi-
la para a clínica.

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Ao ouvir isto ela deixou o bordado e olhou-o, boquiaberta. — Oh,


sim — ele prosseguiu. — Mas então descobri que você e o jovem
Steven. .. Esperei durante três anos. E então casei-me com você,
sabendo que teria de esperar enquanto você esquecia Steven; sabendo
que você não estava pronta para meu amor. Foi por isso que deixei que
você continuasse acreditando naquela velha história que envolvia Janet
e eu.
Ao ouvir isto, ela se pôs tensa. — Mas você a amava!
Ele sorriu para ela com tanta ternura e compreensão que ela per-
deu a respiração. Ele disse, calmo: — Talvez, durante um ou dois anos.
— Ela assentiu, lembrando-se de como se posicionava diante de
Steven. Seu coração agora batia descontroladamente; pegou no-
vamente o bordado, como se sua vida dependesse daquilo. A agulha
começou a entrar febrilmente nos buracos errados, em um completo
descaso pelo desenho. Hugo levantou-a e tirou o bastidor de suas
mãos, fê-la levantar-se da cadeira e puxou-a para si, de modo que sua
voz ressoava abafada de encontro a seu peito.
— Hugo! — ela suspirou. — Eu o amei durante muitos e muitos
meses, mesmo sem me dar conta disso!
Aparentemente essa confissão incongruente fez algum sentido pa-
ra Hugo, pois ele segurou-lhe o queixo, olhou-a e beijou-a com certa
timidez. Ela respirou fundo e ele voltou a beijá-la, mas desta vez com
maior ousadia. No momento em que ele afrouxou um pouco seu abraço
ela encostou a mão em seu peito, de maneira que pudesse encará-lo.
— Janet! — exclamou. — Por que foi que você a trouxe para casa
depois de ter se mostrado tão... tão gentil ao telefone? E por que você
foi embora e me deixou?
— Achei que se fosse embora você poderia sentir falta de mim, e
foi o que aconteceu, querida, não é mesmo? E quanto a Janet, meu
bem, você não me deu a menor oportunidade de explicar.
— Ê que você só voltou para casa às três da madrugada — ela o
interrompeu, teimosa.
Tornou a beijá-la antes de responder. — Estacionei o carro e fiquei
lá dentro, pensando como poderia fazer com que você me amasse.
Você era muito irritadiça em relação a mim, meu amor, e comecei a
pensar que você nunca me amaria.
Sarah falou precípitadamente, quase soluçando: — Kate me disse
que você foi ao hospital ver Janet. Você telefonava para ela, eu os
surpreendi no café...
— Ele beijou-a sem dizer nada.
— Querida Sarah — disse Hugo finalmente. — Ouça. Se pelo me-
nos uma vez você tivesse demonstrado que eu era mais do que um bom
amigo, eu teria contado tudo, mas você agiu impulsivamente, impondo a

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presença de Janet. Eu teria contado que ela é casada, infeliz e


abandonou o marido. Foi por isso que nos encontramos no café.
Convenci-a a voltar para ele.
— Devia ser aquele homem que esbarrou comigo na escada —
comentou Sarah, contente ao sentir que toda aquela confusão começara
a se esclarecer.
Hugo arqueou o cenho, intrigado, mas não quis lhe fazer nenhuma
pergunta. Ao invés, disse com firmeza: — E agora pare de falar com
tanta insensatez, minha querida, e nunca mais me abandone.
Puxou-a para junto de si, mas por um momento ela recuou.
— Hugo! Querido Hugo, preciso lhe dizer algo. — Tinha uma
expressão acabrunhada. — Eu... eu encontrei um anel no bolso de seu
terno. Menti para você, mas isto nunca mais acontecerá. Havia também
uma carta e eu... — engoliu em seco. — Eu a li; não a li inteira, somente
uma ou duas linhas, e acreditei que era para Janet.
Tentou segurar as lágrimas, pois se chorasse poderia parecer que
estava pretendendo provocar sua compaixão.
Hugo apertou-a com tal força de encontro a si que suas costas
doeram.
— Que tola! Se tivesse lido toda a carta teria descoberto que você
era a destinatária. Escrevi-a ainda nos Estados Unidos e então decidi
que eu mesmo lhe daria o anel. Claro que não sabia que Janet estaria lá
ou que você a convidaria para jantar.
Sarah estremeceu em seus braços. — Eu preveni você que era
mesmo uma tola — murmurou. Ficou na ponta dos pés e beijou-o. Seu
beijo foi efusivamente retribuído e ela quase perdeu a respiração.
Hugo carregou Sarah em seus braços em direção ao quarto. Na
pequena cozinha o cheiro delicioso do cozido invadia tudo. Lá fora a
neve continuava a cair e dentro em pouco tempo seria primavera.

FIM

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