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pesquisa,

alteridade e
experiência:
metodologias minúsculas
Copyright © 2019 Adrianne Ogêda Guedes & Tiago Ribeiro
Copyright © 2019 Ayvu

CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO


Adrianne Ogêda Guedes (UNIRIO)
Alberto Roiphe (UFS)
Aline Dornelles (FURG)
Ana Regina e Souza Campello (INES)
Carmen Sanches Sampaio (UNIRIO)
Carlos Skliar (Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Argentina)
Elizabeth Orofino (UFPA)
Fábio Mariani (IFMT)
Francisco Ramallo (Universidad Nacional de Mar del Plata, Argentina)
Gary Anderson (New York University, EUA)
Ido Carvalho (Universidade de Cabo Verde, Cabo Verde)
Iris Verena Oliveira (UFBA e UNEB)
Jacqueline de Fátima dos Santos Morais (UERJ/FFP)
José Domingo Contreras (Universitat de Barcelona, Espanha)
Leonardo Peluso (Universidad de la Republica, Uruguai)
Neila Ruiz Alfonzo (CPII)
Rafael Marques Gonçalves (UFAC)
Ricardo Janoario (INES)
Valdeney Lima da Costa (UESPI)

PROJETO GRÁFICO DA CAPA


Rafael de Souza
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Rafael de Souza
REVISÃO
Mirna Juliana Fonseca
Tiago Ribeiro

Direitos desta edição reservados à editora Ayvu


Proibida a reprodução total e parcial
ayvu
ayvueditora.com | contato@ayvueditora.com
Esta obra foi avaliada por um pesquisador integrante do Conselho
Editorial Acadêmico da editora e um parecerista Ad hoc.
SUMÁRIO

11 Prefácio
Marisa Vorraber Costa

15 Apresentação
Tiago Ribeiro
Adrianne Ogêda Guedes

Capítulo 1
19 Revelar-se ou ocultar-se?
apontamentos para pensar
a pesquisa educativa
Adrianne Ogêda Guedes
Tiago Ribeiro

Capítulo 2
47 A pesquisa em círculos tecida:
ensaios de metodologia errante
Luciana Esmeralda Ostetto

Capítulo 3
73 Linhas, tramas, cartografias e dobras:
uma outra geografia nos cotidianos
das pesquisas
Eduardo Simonini
Capítulo 4
93 Cartas e conversações:
uma experiência de “pesquisaescrita”
na diferença
Daiana Pilar Andrade de Freitas Silva
Anelice Ribetto

Capítulo 5
113 A pesquisa narrativa:
uma abordagem teórico-metodológica sobre
o silêncio do existir e o mistério da palavra
Iduina Mont’Alverne Chaves
Marcio Mori

Capítulo 6
149 A autoetnografia como modo de habitar
sensibilidades e sentidos da
investigação narrativa
Luis Porta
Jonathan Aguirre

Capítulo 7
187 Infâncias, cidades, (in)visibilidades:
metodologias de pesquisa em construção
Rita Marisa Ribes Pereira
Fernanda de Azevedo Milanez
Juliana Botelho Viegas
Capítulo 8
217 Experienciar o pensar, pensar a experiência:
notas sobre um coletivo de
pesquisa em educação
Walter Kohan
Simone Berle

Capítulo 9
251 Sobre o tempo da pesquisa e a
importância da observação
Ana Angélica Albano

Capítulo 10
263 Por uma escola almada:
o corpo brincante e a educação
para a sensibilidade
Rosane Barbosa Marendino
Tania Marta Costa Nhary

Capítulo 11
277 Caminhar entre a pesquisa e a educação:
um exercício e algumas notas em favor do
caráter acontecimental do pensamento
André Bocchetti
Teresa Gonçalves
ayvu

Prefácio

Marisa Vorraber Costa

O convite para escrever um prefacio traz, junto


com a honraria, uma indagação irresistível sobre sua
motivação. Por que fui distinguida com tão nobre in-
cumbência? Face a isso, um passeio em pensamento
pelo que escrevi, pelas ideias, argumentos e perspec-
tivas que venho debatendo e defendendo ao longo de
minha trajetória acadêmica, levou-me a constatar que
as preocupações metodológicas sempre estiveram
presentes e continuam, até hoje, pautando meu tra-
balho. Talvez daí advenha a justificativa para o cha-
mamento que me fazem os organizadores do presente
livro. Dediquei muitos seminários, produzi artigos e
organizei livros para discutir implicações do gesto
de pesquisar. Que compromissos, finalidades, dese-
jos, paixões, filiações, discordâncias, oposições, lutas
estão envolvidos nessa movimentação em busca de
conhecimentos, de saberes, de sentidos, de significa-
dos? Que forças, que poderes, que interesses vigoram,

11
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

produzem e intentam perscrutar, inventar, dobrar su-


jeitos pelos caminhos investigativos percorridos nas
pesquisas em ciências humanas e sociais (e não ape-
nas nelas)?
É nesse panorama que uma obra lida nas férias
deste último verão – Filósofos na tormenta, de Eliza-
beth Roudinesco (2007) – parece jogar luz sobre tais
indagações e se delineia como um bom mote para
antecipar a leitura dos textos reunidos na presente
coletânea debruçada sobre pesquisa, alteridade, ex-
periência e metodologias minúsculas. No livro men-
cionado de Roudinesco, a autora realiza uma aproxi-
mação magistral entre seis pensadores franceses do
século XX – Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser,
Deleuze e Derrida –, apontando as maneiras peculia-
res e diversificadas como enfrentaram a tormenta de
fazer frente às forças normalizadoras que pautaram
a ordem dominante na travessia empreendida pelo
pensamento ao longo do século em que viveram. Im-
portante neste trabalho de Roudinesco é que elege e
reúne essas eminentes figuras por terem em comum,
inscrito não só em suas obras, mas em suas vidas, o
confronto crítico com questões cruciais de seu tem-
po, particularmente aquelas que dizem respeito ao re-
pudio da norma. Ao invés de se tornarem servidores
de uma normalização da vida humana, suas histórias
pessoais e suas preocupações intelectuais indicaram
sua recusa à submissão, assim como o engajamento,
com rebeldia e insurgência, nas lutas teóricas, políti-
cas e ideológicas do tenso século XX. O que nos inte-
ressa aqui é que cada um, em suas práticas de vida, de
reflexão e também na prática política, com seu pen-
samento inquieto e libertário, engendrou a própria
“travessia da tormenta” em batalhas contra o confor-
mismo, contra o pensamento único, contra a subor-
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pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

dinação, contra aquilo que se interpõe a toda forma


de crítica assentada na análise da complexidade dos
seres humanos, do mundo e das coisas.
Essa tormenta de que fala Roudinesco diz res-
peito à pletora de embates e transformações radicais
que marcaram o século passado e seguem invadindo
o atual, no que nos habituamos a denominar de campo
das humanidades. Arrisco-me a afirmar que tais mo-
vimentações passaram a repercutir em nossas pes-
quisas em educação e áreas correlatas há menos de
trinta anos. Nesse período, vêm gestando um conjun-
to alentado de análises com contribuições marcantes
no sentido de erodir concepções e visões de mundo
cristalizadas e, simultaneamente, propiciando que
outras comecem a se esboçar. O que fazemos hoje dá
continuidade à árdua travessia da tormenta procedi-
da por pensadores que nos antecederam e, a duras pe-
nas, foram abrindo caminho para outras perspectivas
e possibilidades. Aqueles intelectuais analisados por
Roudinesco, e outros tantos, nos legaram ferramen-
tas valiosas, não apenas conceituais, mas também
metodológicas, que tornaram nosso tempo pensável
e equacionável. Olhar para o mundo, as pessoas e
as coisas com novas lentes, sob outros ângulos, com
múltiplas maneiras de aproximação e desvencilhados
de muitas amarras é uma herança que não podemos
negligenciar.
As autoras e autores que apresentam seus tra-
balhos nesta coletânea fazem parte do contingente
crescente de desbravadores que assumiram a tarefa
de prosseguir nessa intrincada travessia. Cada um
dispôs-se a correr os riscos de inventar outras manei-
ras de não apenas olhar para nosso presente, mas de
tentar penetrá-lo cautelosamente, de embrenhar-se
em suas minúcias, em seus segredos, meandros, as-
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adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

sombros e mistérios, de procurar dialogar com singu-


laridades até hoje invisibilizadas, com protagonistas
miúdos e infames. Longe de fórmulas, de roteiros pré-
-fixados, de tudo que é previsível, mensurável e con-
trolável, da pretensão de verdade, certeza e totalidade,
a pesquisa em ciências humanas e sociais torna-se
uma grande aventura aberta ao contingente, à diver-
sidade, às diferenças, ao inesperado. Nosso desafio,
compartilhado e assumido pelos pesquisadores e pes-
quisadoras reunidos nesta coletânea, é desnaturalizar
concepções, subverter regras, deixar que os silêncios
também falem, aceitar a provisoriedade, a errância, os
mistérios, transitar por outras geografias, adentrar as
margens. Tudo isso para que seja possível pensar o
supostamente impensável, inventar outras narrativas
e, sem descuidar das razões e da ética, assumir a pes-
quisa também como um gesto de delicadeza e sensi-
bilidade.

Marisa Vorraber Costa
Porto Alegre, abril de 2018.

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ayvu

Apresentação

Aprendemos, com um determinado tipo de ciên-


cia, um modo peculiar de fazer pesquisa e de pensar o
conhecimento. Alicerçada no método e no cogito ergo
sun cartesiano, tal ciência nos ensinou a necessidade
do passo a passo, da generalização, da objetividade,
do controle e da neutralidade.
Nessa perspectiva, o pesquisador pode ser en-
tendido através da metáfora do sujeito que olha uma
obra de arte sem dela participar: investigar é obser-
var sem fazer parte, situar-se fora, não se deixar afe-
tar pelo cotidiano ou pela experiência investigada.
Pesquisar, nessa perspectiva, exige distância, bem
como um modo de fazer que permita tal postura, daí
que os procedimentos aplicados e aplicáveis devem
coadunar com esse distanciamento neutro e objetivo
para garantir a validade do conhecimento produzido.
Nesse enfoque, acredita-se, ainda, que é pela via do
conhecimento neutro e objetivo, porém generalizável,
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adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

que se poderá alcançar o progresso e solucionar os


problemas que a realidade apresenta.
A questão, entretanto, reside no fato de que esta
ciência não foi capaz de responder aos problemas
que ela mesmo se colocou. Ao isolar a parte julgan-
do-a ser um microcosmo do todo e equivalente a ele,
ignorou toda a complexidade, movimentos sinuosos,
tensões e desvios que a realidade, enquanto produ-
ção humana, impõe. Não à toa, problemáticas sociais,
por sua própria natureza complexa e holística, como
a desigualdade, a fome, a violência etc., não puderam
ser respondidas pelas grandes narrativas e explica-
ções alheias ao local, às singularidades geográfico-
culturais, às historicidades e existências negadas.
Tampouco puderam ser respondidas as questões am-
bientais, as quais também exigem um olhar capaz de
indagar, tencionar, desconfiar das respostas simples e
das soluções mágicas.
Boaventura de Sousa Santos, em seu Um discur-
so sobre as ciências, já nos dizia sobre a impossibili-
dade de uma ciência nos responder tudo, dar conta de
tudo, por mais que se queira universal. Nenhuma for-
ma de conhecimento pode ser capaz de abarcar e ex-
plicar tantas multiplicidades, singularidades e formas
de ser, estar e habitar o mundo! Um olhar Maiúsculo,
lançado de longe, que sobrevoa de cima, perscrutando
o todo como um mapa observável não pode captar os
detalhes, as pequenezas, sentir e se aventurar pelos
caminhos, ainda que dê conta de ver e perceber, do
alto, outras coisas. Nesse caso precisamos, também
e talvez principalmente, de um outro modo de olhar e
sentir, não voando, mas percorrendo o caminho, por-
que apenas no percorrer é possível vivenciar as si-
nuosidades, os detalhes, a surpresa, como nos alerta
Walter Benjamin.
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pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

De que forma, pois, pesquisar experiências vivi-


das e experiências de vida? De que modo investigar o
cotidiano escolar, as relações humanas, as interações,
a prática pedagógica, a experiência educativa e/ou so-
cial? Seriam os preceitos de objetividade, neutralida-
de e distanciamento coerentes com a pesquisa daqui-
lo que nos toca, faz parte de nós, nos afeta? É possível
uma ação investigativa do cotidiano e das relações
humanas sem um olhar que possa captar os silêncios,
as invisibilidades, os detalhes que tanto falam em sua
algazarra muda?
Ora, se, no que tange à experiência e ao cotidia-
no, a beleza e a riqueza estão nos detalhes, se as mi-
nimezas escondem tanta vitalidade, potência e força,
como lançar mão de metodologias que nos cegam
para isso? E o que é metodologia: uma série de proce-
dimentos aprioristicamente aplicáveis ou um proces-
so dialógico, ético, estético e político através do qual
se torna possível construir conhecimento a serviço do
assombro, da dúvida, da indagação?
Por compreender que pesquisa e metodologia
são inseparáveis e que mantêm entre si uma relação
de retroalimentação, de modo que o percurso de uma
vai interferindo no curso da outra, apostamos na ne-
cessidade de um conhecimento sensível e aberto, ca-
paz de desconfiar de si mesmo e, nesse processo, se
refazer... Porque pesquisar é estar com outros e entre
outros, não pode prescindir do diálogo, da escuta, da
atenção – aos refugos, às minúcias considerados sem
importância, às pequenas e esquecidas preciosidades
cotidianas (gestos, palavras, silêncios, expressões...).
Pesquisar a experiência educativa é também um
exercício de alteridade, na alteridade! Requer coerên-
cia, responsividade, compromisso! Um compromisso
ético e político com existências negadas, com vozes
17
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

silenciadas, com histórias invisibilizadas. Por isso a


importância de metodologias minúsculas, as quais
possam captar as poéticas dos cotidianos, as vitali-
dades das histórias de vida, as riquezas das experiên-
cias vividas.
Metodologias minúsculas: aquelas que rompem
com a normativa do método enquanto condição de
cientificidade, que reforçam a importância das mul-
tiplicidades, das diferenças, da polifonia, do diálogo.
Uma metodologia com letra minúscula, compromis-
sada com as singularidades, com o diferir, com o sa-
bor e o saber criado e vivenciado na pesquisa.
Os textos que compõem este livro são um convite
a que possamos pensar e sentir sobre estas questões,
colocando em discussão modos de praticar e com-
preender a pesquisa em ciências humanas e sociais.
Pensar e sentir sobre possibilidades outras de pes-
quisa, tão importantes quanto necessárias nos dias
atuais, em que pululam movimentos de resistência e
reconhecimento de minorias, legitimidade de vozes,
positividade de existências historicamente negadas.
Textos que trazem a narrativa, a singularidade, o mer-
gulho na experiência – contingente e formativa – do
fazer investigativo. Vamos juntos?

Tiago Ribeiro e Adrianne Ogêda Guedes


Buenos Aires e Rio de Janeiro, março de 2018

18
ayvu

Revelar-se ou ocultar-se?
apontamentos para pensar
uma pesquisa educativa

Adrianne Ogêda Guedes1


Tiago Ribeiro2

Caminhante, são tuas pegadas o caminho


e nada mais; caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar.
– Antonio Machado.

Palavras iniciais: ensaiando uma introdução


Uma caminhada começa com o primeiro passo.
E, no caso da pesquisa em ciências humanas, esse
1
Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da UNI-
RIO. Doutora em Educação (UFF). Coordenadora do Grupo de Pes-
quisa Formação e ressignificação do educador: saberes, trocas, arte
e sentidos (FRESTAS/UNIRIO), integrante dos Grupos FIAR - Círcu-
lo de Estudo e Pesquisa Formação de professores, Infância e Arte/
UFF, Infância, Tradições Ancestrais e Cultura Ambiental/ UNIRIO e
Cultura, Imaginário, Memória, Narrativa, e Educação (CIMNE)/UFF.
2
Professor do Departamento de Educação Básica do Instituto Na-
cional de Educação de Surdos. Doutor em Educação (UNIRIO). Lí-
der do Grupo de Pesquisa ArteGestoAção/ INES e integrante do
Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores
(GPPF)/ UNIRIO. Membro da Rede de Formação Docente: Narrati-
vas e Experiências (Rede Formad).
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adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

primeiro passo dá início a uma jornada em que não se


sabe – e o sabor parece estar aí –, aonde exatamente
se vai chegar. Resta, pois, a experiência do caminhar,
de enveredar-se por trilhas, experimentá-las, expe-
rienciá-las; perder-se, quiçá, para já, se encontrando,
tomar outros caminhos, fazer outros caminhos no ato
mesmo de caminhar, como nos diz o poeta, na epígra-
fe deste texto.
É sobre esse sabor e esse não saber o ponto de
chegada que pretendemos versar. Todavia, não dese-
jamos traçar palavras definitivas, demarcar catego-
rias ou uma definição de pesquisa deste ou daquele
tipo. Longe disso, queremos pensar a partir de nossa
experiência em pesquisa, a partir do que temos vivido
e nos desafiado, enquanto pesquisadores em ciências
humanas, em torno da pesquisa educativa. Não temos
a mínima pretensão, insistimos, de uma assertiva de-
finitiva ou de uma narrativa que reclame para si o lu-
gar de verdade, porque acreditamos na mobilidade, no
movimento e no estar com outros, transformando-se
com outros como uma força vital que nos força a se-
guir pensando(-nos), estranhando(-nos), fazendo-nos
outros.
Assim, nos anima, neste texto, indagar uma de-
terminada concepção de ciência – e de pesquisa – que
se quer como verdade única, inabalável, indubitável,
quase como uma dogmática de métodos e procedi-
mentos apriorísticos e infalíveis. Uma concepção de-
vedora de uma perspectiva simplista, a qual acredita
na linearidade do tempo, no todo como soma de par-
tes autônomas, na história como uma linha evolutiva
que teria chegado ao seu apogeu com o capitalismo e
na neutralidade e objetividade da ciência (NAJMANO-
VICH, 2008). Desconfiamos dos lugares cristalizados,
das clausuras, das obrigatoriedades, das naturaliza-
20
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

ções, seja no campo da vida cotidiana, da arte ou da


ciência. Preferimos – ou apostamos – nas vacuidades,
nos desvios, nas possibilidades. Nesse sentido, inten-
tamos, neste capítulo, pensar a pesquisa educativa
como um dispositivo de formação e desobediência...
Um gesto perigoso que pode interromper o fluxo da
normalidade, do “assim” das coisas e perscrutar ou-
tros possíveis.
Sim, talvez do que se trate seja, em alguma medi-
da e de alguma maneira, de uma pesquisa desobedien-
te; aquela que, em vez de fazer honrarias e oferendas
às normas, aos cânones, deslize e deslinde atalhos,
ruelas, becos, sarjetas. Uma pesquisa que possa ela
mesma forçar caminhos, apontar estradas, pontes, bi-
furcações, encruzilhadas... e que convide ao se aven-
turar por eles, experimentá-los, senti-los, aprender.
Mas que pesquisa, que princípios, que concepções?
Maffesoli provoca a pensar nos alicerces, na se-
gurança proporcionada por um sólido cajado (2004).
Considerar, desse modo, alicerces que suleiam3 os ca-
minhos da pesquisa nos convida a pensar numa pes-
quisa educativa outra, que não prescinde do estabe-
lecimento de princípios e concepções que lhes são
constitutivas, mas que engloba, nesses mesmos prin-
cípios, a compreensão de que precisa se manter aberta
ao contingente, ao fluxo próprio que o ato de pesqui-
sar encerra, ao pequeno, ao mínimo, ao corriqueiro, ao
que é comumente refugado, sob a acusação de desim-
portante. O olhar curioso anseia pelo desimportante,

3
Afirmamos, ensinados pelo mestre Paulo Freire, que nosso norte
é o sul. Tal assertiva se alinha às discussões dos estudos decolo-
niais latino-americanos e das epistemologias do Sul (Santos, 2013),
que põem em questão o Norte como metáfora bem como sua reifi-
cação como lugar de saber e poder em detrimento de tantas outras
formas de ser, estar, habitar e conhecer no mundo e com o mundo.
21
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

porque é na ordinariedade que se escondem e revelam


as potências transformativas entre sujeitos: como não
prestar atenção naquilo que acontece entre nós?
E por que a importância do prestar atenção no
que se dá entre? Porque é neste exato espaço – de dis-
tância e proximidade, de separação e aproximação –
que a vida acontece (Molina, 2014). É aí onde podemos
devir outro, encontrar com o outro, estranharmo-nos
no outro, transformarmo-nos com ele. Mas entende-
mos com não como sinônimo de estar junto, mas de
estar aberto a, de estar disponível a. Com como sinôni-
mo de disponibilidade, abertura e atenção; princípios
éticos, políticos e estéticos para uma pesquisa educa-
tiva, uma investigação que se ocupa da relação edu-
cativa, disso que acontece entre sujeitos. O que muda
ao pensarmos a pesquisa a partir deste lugar? Muda?

Revelar-se ou ocultar-se na pesquisa: sobre rigor,


neutralidade e nome próprio
As provocações apresentadas até aqui nos for-
çam a lembrar de uma pequena passagem vivida re-
centemente, a qual evoca questões que instigam a
prosseguir nas reflexões sobre o que é fazer pesquisa
em ciências humanas e, em especial, em Educação.
Outro dia, uma das pesquisadoras do grupo ao
qual um dos autores deste texto pertence; pesquisa-
dora que está em seu primeiro ano de mestrado e com
quem estava4 escrevendo um artigo atendendo a uma
chamada para publicação, mandou uma mensagem.
Ela escrevera:
– Disseram-me hoje no grupo do mestrado que as
revistas não costumam aceitar artigos em que o pes-

4
Mantemos na primeira pessoa do singular pelo fato de a experi-
ência se referir a apenas um dos autores do texto.
22
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

quisador se revele. Devemos então retirar as passa-


gens em que falamos de nossos percursos e formação?
Estávamos mobilizadas com a feitura delicada
das tramas de um texto sobre o Corpo e a Educação
Infantil, cuidando da pescaria das palavras que bem
dissessem sobre as ideias e questões que queríamos
explorar. Ela estava preocupada. Iríamos enviar para
uma revista. Falávamos de nossa formação nesse ar-
tigo. Deveríamos, sob pena de termos nosso artigo
rejeitado, ocultarmo-nos?! Então deveríamos lançar
mão de uma escrita “neutra”, sem nome próprio, ros-
to e assinatura de quem a escreve? Uma escrita sem
rosto, voz e corpo? Não seria essa uma escriturística
consoante com gramáticas normatizantes, sintaxes
limitadoras e categorizantes? Uma escrita albergada
sob as definições que delimitam o que pode ou não
pode ser ciência, pesquisa, investigação?
Afirmei – não sem uma pausa para reflexão –
que não, que nosso texto partia e se nutria de nossas
experiências, que as revelar era dar a ver os caminhos
da pesquisa, as “pegadas” de nossa caminhada, os ras-
tros singulares, os percursos e emaranhados; nossos
passos e nossas trilhas, não trilhos5! Não que eu tam-
bém não tenha minhas preocupações. Também nos
interessa divulgar o que pesquisamos, pois acredita-
mos que pesquisar é uma tarefa social. Sendo assim,
precisa ser compartilhada, convidar outros atores a
terem suas curiosidades instigadas, contribuir – esse
é o desejo mais premente – com o campo da educação
e da pesquisa. Mas... até onde esta preocupação com
as expectativas formais leva o pesquisador? O que en
tendemos como “contribuir”? E, mais do que isso, até
5
Agradecemos à Tania Chalhub, professora do Núcleo de Educação
Online (NEO) do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES),
por nos chamar a atenção para a metáfora das trilhas e dos trilhos
no que tange à pesquisa.
23
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

onde existem formalidades diversas que se assentam


em concepções de pesquisa também diversas?
No bojo dessas indagações, a questão trazida
pela pesquisadora, no relato anterior, aponta para a in-
dagação sobre o revelar-se ou ocultar-se... Ideias que
trazem concepções do que é pesquisa muito próprias.
Ocultar-se almeja uma pretensa neutralidade do pes-
quisador, pautada na concepção de ciência cunhada
na Modernidade em que a assepsia seria capaz de
produzir um conhecimento “verdadeiro”. Neutralida-
de, verdade, assepsia, controle. Ideias que não podem
ser compreendidas sem que se faça a pergunta: de que
ciência estamos falando?
Ora! Ensina-nos o positivismo moderno que o
fazer ciência exige um rigor capaz de garantir padro-
nização e controle aos experimentos. Rigor expresso
através de métodos que devem ser seguidos à risca,
sob a pena de os resultados alcançados não condize-
rem com a realidade observada/ investigada. Também
é esta mesma ciência quem nos ensina, através de um
incansável trabalho de subjetivação - por mais que se
queira neutra e objetiva –, que apenas através da ra-
zão podemos conhecer, pois a partir desta é possível
pesquisar e explicar a realidade, sem interferências
do “eu”. A ciência, enquanto metódica e exata, é neu-
tra, motivo pelo qual se deve expurgar os sentimentos,
sensações e emoções.
A Modernidade, que hegemoniza essa concep-
ção científica, caracteriza-se pela vigência de convic-
ções cuja enunciação pode ser tributada à intuição do
cogito formulada por René Decartes, no século XVII, e
que influenciará todo o século XVIII, conhecido como
o “Século das Luzes” (Iluminismo). Luzes advindas da
razão, que passa a ser a forma exclusiva para o conhe-
cimento da “verdade”, pondo em suspeita todo conhe-
24
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

cimento que provenha da fé, da intuição, da tradição


(Costa, 2007). Essa perspectiva aspira a que todos os
conhecimentos sejam traduzíveis em fórmulas físi-
co-matemáticas compreensíveis, dotadas da máxima
objetividade e descartando a subjetividade por consi-
derar que ela seria distante do real, “a louca da casa”
(Monteiro, 2004); real que seria, esse sim, comum a
todos os homens: A concepção de que o real é não só
matematizável, mas também comprovável experi-
mentalmente segundo métodos rigorosos.
No seio dessa concepção, está a ideia do conhe-
cimento como alheio à complexidade do real (que é
sempre complexo e múltiplo) e do sujeito como sepa-
rado do mundo agora objetificado. Ademais, àquele
(ao sujeito) compete, por meio da razão, a explicação,
a descrição, enfim, um conhecimento global sobre o
mundo; conhecimento este que seria capaz de levar
ao progresso, à civilização e à resolução dos proble-
mas da humanidade. Amém! A ciência, senão a cria-
dora, a salvadora do mundo!
No entanto, na contemporaneidade, esse con-
junto de certezas que constituíram os pilares do pen-
samento moderno entraria em crise paradigmáti-
ca (Santos, 2010), tendo em vista as transformações
culturais e políticas dos séculos XX e XXI que, dentre
outras questões, problematizam a pretensa distin-
ção entre verdades permanentes da razão e verdades
temporárias dos fatos, entre a própria aspiração ao
controle da “realidade” para melhor conhecê-la e até
mesmo a impossibilidade de se chegar a Uma verdade
que dê conta dessa realidade tão vasta, dada a sua já
mencionada complexidade.
A impossibilidade de lidar com problemas holís-
ticos, que conjuram múltiplas dimensões e demandam
olhares transdisciplinares, como a questão ambiental,
25
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

a desigualdade social, a violência e tantas outras pro-


blemáticas atuais, bem como a imposição de outras
lógicas de relação, acesso e produção do conhecimen-
to, alimentada pelas ciências da complexidade, os
sistemas dinâmicos e a teoria do caos (Najmanovich,
2008) impingiram à ciência moderna a perda do es-
tatuto de verdade e a convivência com outros modos
de pensar, de criar conhecimento, outras estéticas de
pensamento e mapas cognitivos. Não existe uma teo-
ria geral que dê conta de explicar o mundo, denuncia
Santos (2010). Não existe perspectiva teórica que não
seja, ela mesma, uma visão limitada e limitante, por
isso passível de indagação e superação, por mais que
a ciência clássica tenha se pressuposto uma narrati-
va universal.
No contexto de teorias e concepções que recla-
mam para si o estatuto de verdade e a condição de
neutras, rigor tem sido uma palavra bastante empre-
gada ao definirmos o que é fundamental garantir para
o exercício da pesquisa. Como as palavras – tal qual
o existir! – não são neutras, mas veiculam sentidos e
valores, vale examinar o sentido dicionarizado desta
em especial.
No dicionário “Priberam” online, “rigor” aparece
definido como: Força, fortaleza, rijeza, dureza. Rigidez,
tensão demasiada, inflexibilidade. Grande severidade
(de princípios, de moral etc.); austeridade, intransi-
gência. Exatidão extremada, demasiado escrúpulo: os
rigores da legislação. Qualidade do que é penoso: os
rigores do inverno. Vale lembrar, também, que os ri-
gores eram o objeto do trabalho dos agrimensores na
Roma antiga: graças à gruma (ou groma) os agrimen-
sores podiam traçar as linhas retas (rigores), as quais
tinham como utilidade demarcar os territórios e seus
limites (Abamben, 2014).
26
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Todavia, se concebemos a pesquisa educati-


va como ato de criação, aberto e flexível à mudança,
jornada em que não se sabe exatamente aonde se vai
chegar, tais definições e imagens em torno do rigor
não ressoam, não definem o caráter não rígido, não
inflexível, não exato que a pesquisa pode assumir.
Se pensamos em uma metodologia que vai sendo es-
culpida no desenvolvimento mesmo da pesquisa, ao
longo de seu acontecer e caminhar, então estamos fa-
lando de uma metodologia singular. Metodologias que
não se repetem nem se podem copiar; vivem-se, como
experiência. E uma pesquisa educativa reclama por
uma metodologia da singularidade, algo como pes-
soalmente irrepetível, por isso apenas retrospectivo:
como saber de antemão os movimentos e passos ex-
perimentados, percorridos? Investigar a experiência
educativa (Domingo; Ferré, 2010) é da ordem do acon-
tecimental. Se aceitamos que a experiência é aquilo
que passa, que atravessa e modifica o sujeito (Larrosa,
2011), então a experiência da pesquisa também tem a
ver com o acontecer, a travessia, a transformação.
Portanto, trata-se de uma aposta em uma forma
outra de se portar na pesquisa, mais aberta às idios-
sincrasias do pesquisar, aos detalhes, sinais e intui-
ção de investigadorx, ao contingente, próprio das re-
lações e processos educativos. Ou seja, aposta em um
rigor flexível (Ginzburg, 1989)!
Ao aproximar rigor e flexibilidade, modificando
aquele pela qualidade do que é flexível, isto é, do que
é capaz de dobrar-se, arquear-se, mover-se, Ginzburg
tira do rigor positivista sua força, sua “substância”,
sublinhando um caminhar, um movimentar-se que é
deslocamento, invenção, sensibilidade, atenção, pos-
sibilidade de reconfiguração do caminho e revisão dos
passos. No lugar da exatidão, da retidão, da precisão, a
27
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

abertura, o incerto, o possível, o contingente – e toda a


pluralidade e multiplicidade que implica –, transfor-
mando o rigor já em outra coisa (ou ampliando nosso
modo de compreender a própria ideia de rigor).
Ao dialogar com a ideia de rigor flexível de Ginz-
burg (1989) para pensar a investigação educativa, afir-
mamos um certo modo de fazer pesquisa que afronta
o pensamento em sua radicalidade, salientando que
a singularidade e a flexibilidade do pesquisar não o
furtam de uma série de preocupações em torno dessa
ação: compromisso, responsabilidade, coerência, res-
ponsividade, presença, escuta, conversa.
Estamos falando, portanto, de uma pesquisa que
possa ser escrita e vivenciada em primeira pessoa,
que possa dizer algo do eu que investiga, ser revestida
e investida da palavra própria, do percurso singular.
Sim, uma ação investigativa que nos é e no qual nós
somos, com face, sangue, corpo e ossos: experimen-
tação, sensibilidade, presença, atenção, escuta, acom-
panhamento e uma sorte de gestos que conformam
uma pesquisa em primeira pessoa, isto é, uma pes-
quisa que tenha, ela mesma, a autoria como marca e
modo de caminhada, de habitar o fazer investigação.
Quiçá, neste ponto, valha a pena indagar: qual o
preço de uma investigação sem o eu? Que honorários
paga o investigador cego pela cientificidade, pela ri-
gorosidade, pela objetividade? O que diz ou pode di-
zer uma ação investigativa na qual o rosto de quem
escreve se esconde na impessoalidade das linhas e
parágrafos que buscam assepticamente uma suposta
neutralidade? Há mais validade no texto que aposta
na ausência daquele que o produz e no apagamento
de suas marcas?
Para nós, não. Perseguimos o gosto de uma pes-
quisa viva, o amargo de seus caminhos ruminados
28
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

tantas e tantas vezes, o desafio da nudez do nosso es-


tar sendo nos desvios que perfazem as rotas, redese-
nham as trilhas. Estamos cientes de que as impres-
sões, os resultados provisórios trazidos por meio da
escrita a qual, neste momento, gotejamos sobre a fo-
lha, amanhã pode não mais corresponder à face com
a qual a encaramos, a fitamos, a vivemos. É o risco da
pesquisa, a condenação de quem investiga, de quem
compartilha por meio da escrita suas descobertas:
amanhã tua escrita não será a mesma, ou não dirá o
mesmo, porque tu já não serás o mesmo, não a senti-
rás do mesmo modo. Tantas e tantas vezes é o próprio
processo de pesquisar que vai apurando o olhar, deli-
neando mais claramente, afinal, o que é mesmo que
estamos buscando.
Tal proposição nos aproxima de uma pesquisa
que escapole, escorrega... Bem distante das oferendas
aos métodos, ao passo a passo; bem distante das hon-
rarias aos procedimentos ritualmente alinhavados
por uma gramática (ou dogmática!) da metodologia
como tribunal inquisitório da pesquisa científica e da
escrita acadêmica como uma escriturística objetiva
e neutra. Uma pesquisa que busca escutar e prestar
atenção como forma de estar presente, de colocar em
questão o próprio caminho percorrido e a percorrer,
uma abertura a que algo nos aconteça, a que possa-
mos enxergar o que tão facilmente escapa: o riso, o
olhar apaixonado, o corpo inquieto, o sussurro insis-
tente, os bilhetes trocados, a palavra não dita, o silên-
cio que grita, a palavra que dissimula, o abraço que
acolhe, a brincadeira que aproxima, o sentimento que
afasta, a merenda compartilhada, o desejo inexpresso,
a força interrompida...
E escutar e prestar atenção não conformam os
manuais e receituários da pesquisa como reprodução,
29
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

como aplicação de métodos ou realização de passos a


priori. Muito pelo contrário, perseguindo a natureza
viva e móvel das relações entre sujeitos, dizem de um
traço singular, de uma assinatura, um nome próprio,
uma forma de estar presente, de fazer-se presente, de
buscar novas perguntas, de habitar corporal e poeti-
camente um espaço onde se possa pensar com o ou-
tro, onde seja possível revelar-se, um percurso único,
irrepetível, próprio:

Por muitos caminhos diferentes e de múltiplos


modos cheguei eu à minha verdade; não por uma
única escada subi até a altura onde meus olhos
percorrem o mundo. E nunca gostei de perguntar
por caminhos, - isso, ao meu ver, sempre repugna!
Preferiria perguntar e submeter à prova os pró-
prios caminhos. Um ensaiar e perguntar foi todo
o meu caminhar – e, na verdade, também se tem
de aprender a responder a tal perguntar! Este é o
meu gosto: não um bom gosto, não um mau gosto,
mas meu gosto, do qual já não me envergonho nem
o escondo. “Este – é meu caminho, - onde está o
vosso?”, assim respondia eu aos que me pergunta-
vam “pelo caminho”. O caminho, na verdade, não
existe! (Nietzsche, 2011, p. 272).

O caminho, na verdade, não existe. Existe o ca-


minhar, o fazer e habitar o caminho, experimentá-lo,
experienciá-lo, fazê-lo no processo da caminhada.
Esse caráter pessoal do percurso tem a ver com o re-
velar-se, mostrar-se na ação investigativa. Revelar-se
não é utilizar-se do espaço da pesquisa para um e-
xercício narcísico que a faz girar em torno do pes-
quisador sem indicar conexões possíveis, contribui-
ções que ampliem formas de ver, pensar, saber, intuir,
sentir. As histórias dos sujeitos, em suas miudezas e
acontecimentos, permitem conhecer e compreender

30
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

uma gama de fenômenos; histórias singulares que


não se deixam sumariar, docilizadas por manuais me-
todológicos ou métodos objetificantes. Não são pou-
cos os autores e as perspectivas metodológicas que
abraçam e valorizam o singular, os percursos de vida,
indicando que há potência nos estudos dos cotidia-
nos, das biografias, autobiografias, histórias de vida
e nas cartografias dos espaços escolares (Clandinin;
Connelly, 2015; Garcia, 2003; Passegi, 2016; Ribeiro;
Sampaio; Souza, 2016).
Talvez disto se trate: da tentativa de colocar em
uma língua singular ou uma língua própria o pesqui-
sar. Não uma investigação que deite oferendas e sa-
crifícios aos cânones científicos, aos tribunais anor-
malizadores e estigmatizadores dos textos prenhes
de subjetividade ou de experiências. Por que não uma
escrita acadêmica outra? Por que não investir em ou-
tras formas de escrever as pesquisas em educação?
(Callai; Ribetto, 2016, p. 12).
Sim, parece-nos que um pesquisar tal e qual é
também gesto. Gesto como algo que sustenta e pro-
fana (Olarieta, 2016) o ato mesmo de pesquisar, que
almeja desbotar os contornos da reta certa e tão bem
desenhada do investigar canônico, rasgar o manual
metodológico do fazer rigorosamente estruturado,
alargar a ideia de uma escrita acadêmica. Uma pes-
quisa-escrita que se ocupa dos restos, rastros, marcas
e minúcias, que nasce da inquietude e nela se renova.
Por isso procura – por aquilo que se inventa no ato
mesmo de procurar, isto é, se produz à medida que se
lhe atribui sentido; escuta – possibilidade de enxer-
gar nos refugos, nas coisas ínfimas (tão fatigadas pela
sua aparente inutilidade investigativa) a potência, a
riqueza e a beleza daquilo que irrompe e interrompe
nosso pensamento do mesmo modo como estamos
31
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

habituados a experimentá-lo; abertura – a que a sur-


presa e o acontecimento transformem ou inquietem
nosso olhar, nossos sentidos; e atenção – ao outro, à
sua presença, ao pequeno, ao mínimo, ao que nos re-
tira do lugar de onde estamos (geográfico e conceptu-
al): uma fala, um silêncio, um silenciar, uma presença,
uma ausência, um dito, um não dito... Enfim, uma pes-
quisa que nos provoque a que nos revelemos, que mos-
tremos nossas faces e nomes próprios, que estejamos
inteiros, com nossos corpos, pensares, sensibilidades,
existências e que, como nos provoca Ginzburg, possa-
mos fazer dela outra coisa, inclusive transformando
os sentidos tão comumente atribuídos às ideias que
já trazemos, muitas vezes, cristalizadas.

Uma pesquisa-vida? Sobre indagação, vitalidade


e coerência
As proposições e reflexões trazidas até aqui nos
impulsionam também num movimento retrospecti-
vo, no sentido de pensar um pouco sobre essa ação
que é pesquisar em ciências humanas e, sobretudo,
no campo da educação, campo no qual atuamos e mi-
litamos. Aventurar-se a pesquisar em educação é, de
certo modo, se confrontar com as concepções de ci-
ência que nos habitam e que, no caso específico dos
temas referentes à formação docente e às práticas
pedagógicas – focos de nossas pesquisas –, trazem
o desafio de tomar as experiências dos sujeitos como
aquilo que força o pensamento. Tal movimento entra
em confronto com as concepções de ciência moder-
na arraigada ainda em nossa forma de compreender
o ato de pesquisar. Esse é um embate que se faz pre-
sente na atividade do pesquisador e no diálogo entre
ele e seus pares. Esse é um embate que se faz presente

32
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

para nós, herdeiros que somos do penso, logo existo,


de Descartes.
E é justamente desse lugar que queremos nos
afastar, como já sublinhamos neste ensaio. Que pos-
samos escapar das concepções e perspectivas que
afirmam o conhecimento em detrimento do sentir!
Conhecer não pode ser pensado, para nós, fora da re-
lação entre pensar e sentir. Somos seres completos,
de razão, sim; mas de relação, de emoção, de senti-
mentos. O que implica uma forma de pensar e viver a
pesquisa que afirme o sujeito como ser integral, isto é,
que não pode ser decomposto entre corpo e mente, ra-
cionalidade e subjetividade? O que implica um modo
de fazer pesquisa que, em vez de afirmar a inflexibili-
dade, insiste na atenção, no estar presente, na escuta?
Sim, pesquisar exige interrogar-se. Marisa Vor-
raber, em seu artigo Uma agenda para jovens pesqui-
sadores (2007), expõe, como pano de fundo de suas re-
flexões sobre fazer pesquisa em ciências humanas, o
diálogo que essa atividade pressupõe entre ciência e
mundo, propondo uma agenda para jovens pesquisa-
dores. Entre os pontos que destaca, sublinha a neces-
sidade de que a pesquisa tenha coerência e uma ló-
gica interna quanto aos caminhos tomados, mas que
esse percurso pode (e arriscamos a dizer que deve)
ser inventado. Ressalta, também, que pesquisar é um
processo de criação e não de mera constatação. A ori-
ginalidade, afirma, está no olhar, sempre singular, que
cada sujeito lança aos objetos do mundo. Para isso, o
pesquisador precisa necessariamente ter uma mente
indagadora, a qual problematize algo de forma a cons-
tituí-lo em objeto de investigação, não para chegar a
respostas definitivas, mas para que as respostas en-
contradas/criadas sejam, elas mesmas, aberturas a
outras perguntas.
33
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Obviamente, não estamos aqui a dizer que pes-


quisar é uma ação desvinculada de escolhas, afilia-
ções, regimes de crenças, modos de ver e compreender
o conhecimento e a própria investigação. Não pode-
mos negar que nos formamos pesquisadores com ou-
tros, na relação com outros, nas trocas com outros. É
no corpo a corpo com nossos pares, nos agenciamen-
tos, nas tessituras cotidianas, diálogos, encontros,
discussões e conversas... enfim, é nos emaranhados
nos quais nos enovelamos com outros que nos torna-
mos sujeitos, nos tornamos quem somos, por mais que
esse “quem somos” seja transitório, móbil, inacabado.
Assim, a própria maneira como pensamos a pesquisa
e a praticamos não resulta individualmente de nós.
Nossos mapas cognitivos, nossas estéticas de pensa-
mento, nossas verdades, nossos gostos, grupos... tudo
isso resulta da nossa existência singular num espaço
de tensão/convivência/presença com outras existên-
cias singulares, tal qual nos ensina a teoria histórico-
cultural.
Sendo assim, não inauguramos perspectiva al-
guma. Tampouco o queremos! As ideias que aqui pen-
samos e expressamos estão aí antes de nós e conti-
nuarão depois, não se encerram numa perspectiva
metodológica com este ou aquele nome, mas plurali-
zam-se em diferentes abordagens e modos de viver
o investigativo; foram-nos dadas como herança, para
que possamos continuá-las, trai-las. Seguimos ras-
tros, pistas e sinais deixados por outros, palavras de
provocação, ensinamentos. Pensamos o que pensa-
mos porque fazemos parte de uma rede de sujeitos,
ideias, conceitos, livros e histórias que nos instigam a
pensar, a existir e a habitar o mundo do modo singular
como o fazemos, este sim peculiar – nossa assinatu-

34
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

ra, nosso nome próprio. Pisamos em um solo fértil de


perspectivas heréticas, profanas, que retiraram da ci-
ência positivista a sua hegemonia sagrada; perspecti-
vas que habitam o espaço do jogo científico, das bata-
lhas por legitimidade, das lutas paradigmáticas, como
há muito destaca Kuhn (2000) sobre a ciência: espaço
de disputa, de conflito entre diferentes concepções e
paradigmas.
Mas... é importante assinalar: não estamos pro-
pondo um novo campo de pesquisa nem uma nova
concepção teórica; não se trata de uma perspectiva
distinta, única. O que estamos afirmando, aqui, não é
uma nova teoria acerca da pesquisa, mas a necessi-
dade de colocar os saberes, conhecimentos, teorias e
concepções existentes em suspeição, de indagá-las,
estranhá-las no próprio movimento de pesquisar. Es-
tamos cientes, também, de que esse movimento só é
possível pelas trincheiras já frequentadas e enfren-
tadas por concepções e perspectivas que lutaram –
ou que seguem lutando pelo reconhecimento e pela
legitimidade ao lado de modos clássicos de pensar e
conceber o mundo, as ciências, abrindo o espaço ad-
missional do que pode ou não ser considerado como
ciência, como pesquisa. E vale ressaltar: também estas
concepções precisam ser postas em questão; parece-
nos que uma estética de pensamento baseada na per-
gunta, na inquietude, no estranhamento pode nos pro-
vocar a abandonar a sacralização do conhecimento.
Assim, chegamos a um primeiro princípio que
rege a ideia de uma pesquisa educativa: a indagação.
Compreendemo-la, aqui, como uma força capaz de
nos sacar de nossos lugares tão aconchegantemente
conhecidos, de abalar nossos alicerces cognitivos. E
indagação não apenas do que estamos investigando,

35
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

observando, dos “dados” da pesquisa, mas também – e


principalmente – da própria ação de investigar, dos
próprios caminhos trilhados.
Esse princípio, ainda de que forma intuitiva ou
não declarada, esteve presente na constituição do que
hoje chamamos de campo (auto)biográfico. As abor-
dagens (auto)biográficas surgem em razão da insatis-
fação das ciências sociais em relação ao tipo de sa-
ber produzido e da necessidade de renovar os modos
de conhecimento científico. Valem-se do exame das
histórias de vida, das memórias e das narrativas dos
sujeitos como possibilidade de produção do conheci-
mento mais próximo das realidades educativas e do
cotidiano desses sujeitos, como professores e a esco-
la, por exemplo. Um modo de pensar a vida, a pesquisa
e o conhecimento como aquilo que acontece entre su-
jeitos, na relação, na interação, na comunicação, mar-
cando a biografia dos sujeitos.
Do mesmo modo, poderíamos falar dos estudos
com os cotidianos (Garcia, 2003) ou de uma sorte de
outras possibilidades de pensar teórica, metodológi-
ca, epistêmica e politicamente o investigar: pesquisa
narrativa (Clandinin; Connelly, 2015), pesquisa forma-
tiva (Masschelein; Simons, 2014), pesquisa-experiên-
cia (Fernandes, 2011), conversa como metodologia de
pesquisa (Ribeiro; Souza; Sampaio, 2018), entre tantas
outras formas possíveis de ser, estar e caminhar na
pesquisa. Trata-se de redefinir o foco e abrir os sen-
tidos, deitando a atenção também no pequeno, no
corriqueiro, no miúdo, na narrativa; perspectivas te-
órico-epistemológicas que não aceitam a ideia de um
mundo como constituído homogeneamente, mas pela
pluralidade, pela multiplicidade e pela singularidade.
Não à toa, a aposta na narrativa, a atenção pela
narrativa, a vitalidade da narrativa. Narrar é uma di-
36
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

mensão fundamental da comunicação humana. Diz


respeito à própria atribuição de significado ao mundo.
Por meio das narrativas revela-se o sujeito em relação
com a história de seu tempo, permitindo-nos encarar
a intersecção da história de vida com a história da so-
ciedade (Goodson, 2000). A centralidade das experiên-
cias pessoais na constituição dos saberes necessários
à vida profissional está fortemente evidenciada. Para
Souza (1997), a história de vida é considerada uma op-
ção metodológica que possibilita uma (...) apropriação
da realidade dos sujeitos ao relatarem a sua experiên-
cia, à medida que, a partir das próprias narrativas, es-
ses sujeitos representam seu referencial de vida. Sou-
za também pondera que, ao narrarem suas histórias,
os sujeitos têm, também, a possibilidade de reelaborar
a própria cultura corporal.
A discussão sobre Pesquisa Autobiográfica, as
Histórias de vida e a própria História da Educação
tem possibilitado ampliar as questões teórico-meto-
dológicas e, especialmente, as relacionadas à produ-
ção, visibilidade de outras fontes e perspectivas de
pesquisas, por entender que, no âmbito da História da
Educação e de outros campos do conhecimento edu-
cacional, as pesquisas com fontes menos tradicionais
e mais recorrentes começam a adquirir novo estatuto
metodológico e apresentam novos esforços para uma
compreensão das práticas educativas e escolares
(Souza; Menezes, 2006, p. 146).
Os estudos de Catani, Chamlian, Bueno e Sousa
(2003), em sintonia com os da francesa Marie-Christi-
ne Josso (2004), dentre outros, ajudam a compreender
a relevância das práticas autobiográficas e biográficas
na formação de professores. Catani, Chamlian, Bueno
e Sousa (2003) afirmam que, no imaginário social, as
professoras não têm história porque repetem. Repe-
37
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

tem o que aprenderam, repetem cursos, programas,


conhecimentos, práticas durante as décadas de sua
carreira profissional. Para as autoras, tal perspecti-
va faz com que as professoras não sejam, em geral,
sujeitos de memória. Portanto, considerar a voz dos
professores nas pesquisas narrativas, biográficas e
autobiográficas é possibilitar a evocação da própria
história, valorizando a experiência humana e reco-
nhecendo aí uma inestimável riqueza para o conheci-
mento. Contar histórias é uma possibilidade de dar-se
a ler e de ouvir e ser ouvido. Contar histórias é deixar
soar uma voz comumente reprimida na nossa escola,
seja de nível básico ou superior: a voz do sujeito pra-
ticante, aquele que vive o cotidiano da escola, que o
produz na tessitura com outros. Escutar e afirmar as
vozes pulsantes nas nossas experiências e saberes é,
portanto, agir no sentido de valorizar nossas trajetó-
rias, compreender nossos percursos.
Neste ponto, chegamos a mais um princípio que
se avizinha da ideia de uma pesquisa educativa: a vi-
talidade. Vitalidade como aquilo que alimenta o ato
mesmo de investigar, que dá sustentação à pergunta,
ao assombro. Que a pesquisa possa ser a expressão
de uma forma de vida, de uma maneira de se portar e
se questionar diante do mundo! Que interesse mais à
pesquisa o pensar que o responder, o questionar que
o resolver, conforme provocam Masschelein e Simons
(2014), em torno da pesquisa educativa.
Ao pensar sobre isso, somos novamente leva-
dos à Marisa Vorraber Costa (2007). A autora destaca
um trecho do trabalho de um orientando de Iniciação
Científica, ganhador do Prêmio Jovem Pesquisador
da área de Ciências Humanas. Ele era um jovem estu-
dante de filosofia que se iniciava nas lides da pesqui-
sa acadêmica. O trabalho premiado consistia no relato
38
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

analítico da experiência que vivenciara como auxiliar


de pesquisa. O início do trabalho que a pesquisadora
evidencia traz o foco da problematização deste ensaio.
Em sua experiência, relata que suas preconcepções
iniciais do que seria trabalhar em pesquisa e da pró-
pria natureza da pesquisa ruíram ou foram abaladas:

Tinha eu um ideal asséptico, inodorizado e inaba-


lável da atividade de pesquisa que, guardada sob
o braço forte da ciência, apaziguaria nossas titâ-
nicas interrogações. Bastaria que aliássemos à
competência do pesquisador um tema fértil e uma
boa metodologia e estaríamos na senda da certeza.
Qual não foi minha surpresa quando me deparei
com um universo onde a maior certeza era a de
que não tínhamos muita certeza de aonde o nos-
so trabalho iria nos levar. Ocasionalmente, eu era
surpreendido por algumas frases proferidas pela
orientadora em momentos de fadiga e extenuação,
como “Estamos mergulhados nesse projeto que se-
quer eu sei ao certo onde vai dar”. (...) Comecei a
suspeitar que algo mais profundo estava em jogo,
pois, se do ponto de vista puramente intelectual eu
já sabia que a contingência tinha um papel impor-
tante na pesquisa científica, então por que, mesmo
assim, alimentava uma representação de ciência
onde esta se apresentava como inabalável e certa?
(Grun apud Vorraber, 2007, p. 141).

Filhos e filhas da modernidade, as concepções


da ciência moderna enraízam-se na forma como
compreendemos o que é pesquisar e o que é ciência.
A expectativa de um caminho seguro a ser trilhado,
de uma orientação precisa parece nos acompanhar.
Tendemos a perceber as incertezas como uma “falha
no sistema”, algo que precisa ser reparado com a me-
todologia adequada, a orientação certeira, o método
correspondente. Algo a ser subtraído da experiên-
39
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

cia de pesquisar e substituído por processos claros,


organizados, sistematizados. O jovem pesquisador,
em seu depoimento, enfrenta a própria ambiguidade
e contradição com que ele - mesmo sendo leitor ex-
periente de filosofia e mesmo tendo pensado sobre a
contingência e compreendido sua inevitabilidade - se
deparou diante da prática da pesquisa, com toda a re-
presentação de ciência que tinha internalizado.
O “rigor”, a linha delineada como limite, os con-
tornos bem definidos nos forjaram e forjaram nosso
modo de pensar. Somos feitos de certeza, sob o pesa-
do ferrete que nos queimou a todos. Escapar de seus
tentáculos, de suas marcas tão bem gravadas requer
indisciplina e inventividade metodológica e desobe-
diência teórica. A senda de uma pesquisa educativa,
assim pensada, é feita de inquietação, polifonia, hete-
rogeneidade, partilhas, coletivos, encontros, conver-
sas... enfim, vitalidade.
Mais do que certeza, “a prioris”, linearidade, re-
ceita, passo a passo, há indagação, atenção, escuta,
conversa, vitalidade, coerência, encontro, diálogo.
Trata-se de um modo de se portar e de se colocar na
pesquisa que deita a atenção sobre detalhes, curvas,
ocos, ausências, linhas abertas, resíduos... Em outras
palavras: uma pesquisa que mantém os sentidos afia-
dos: olfato, tato, paladar, audição e visão para buscar
tornar visível o que está, até então, invisível, silen-
ciado, esquecido. Uma investigação que busca parar,
prestar atenção e enxergar o que esteve sempre ali,
à nossa vista, faiscando, brilhando em sua preciosi-
dade minúscula e cotidiana, corriqueira e que talvez,
por isso mesmo, nos passem imperceptível... Por essa
razão, falamos de uma investigação que cobra como
princípio a coerência e a atenção. Mas falamos aqui,
sobretudo, de coerência e atenção éticas, estéticas e
40
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

políticas com as vozes e existências comumente ne-


gadas: a dos sujeitos simples, cotidianos, ordinários.
Que uma pesquisa educativa seja também uma pes-
quisa revolucionária: aquela em que a escuta (inclu-
sive de si!) seja condição inviolável, que o diálogo, a
conversa, a relação sejam o chão comum, a distância
que é também aproximação, relação, entre “investiga-
dores” e “investigados”.
No Brasil, o campo das pesquisas com os coti-
dianos e da pesquisa narrativa (Clandinin; Connelly,
2015; Ribeiro; Sampaio; Souza, 2016) vêm se consti-
tuindo sobre esses preceitos da escuta e do diálogo,
bem como outros campos que têm se desafiado a en-
xergar a narrativa e a experiência como nutrientes
para o pensar, o indagar. O processo de dar sentido/
significado através do narrar-se pode ser visto como
emancipatório, pois consiste em uma forma de dar
expressão à experiência pessoal. Mont’Alverne Cha-
ves (1999) explicita o sentido desse tipo de pesquisa.
A autora afirma que as histórias de professores, de
sujeitos em relação têm um lugar especial no estudo
do ensino e da formação/educação dos mestres, pois
uma vez contada uma história, ela se torna peça da
história, uma peça aberta à interpretação.
Especificamente no campo das pesquisas com
os cotidianos, Nilda Alves (2008) nos desafia no senti-
do de literaturizar as ciências, isto é, de compreender
a pesquisa como uma ação atravessada por uma di-
mensão científica sim, mas também constituída por
uma dimensão literária, poética, ética, política. Isto
porque uma pesquisa em primeira pessoa, com assi-
natura e nome próprios, há que ter face, cheiro, pre-
sença. E isso não se alcança, talvez, sob a égide das
bíblias das sagradas escrituras metodológicas ou dos
sermões acadêmicos do método.
41
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Palavras em aberto para uma conversa que con-


tinua...
Chegamos ao fim pelo início: reafirmamos que
uma caminhada se inicia com o primeiro passo. E
passo após passo o caminho se desenha, se percor-
re, se experimenta. Este ensaio é um caminhar nes-
se sentido: dar pequenos, breves e tímidos passos na
direção de uma inquietação que nos alimenta e nos
força apensar e dizer, a buscar interlocutores para
continuar essa conversação em torno de uma pesqui-
sa educativa.
Uma pesquisa tal e qual não se justifica pelos re-
sultados que pode gerar, porque, como aponta Agam-
ben (2007), sua riqueza e força estão mais no processo,
no meio, do que no fim. Menos do que as respostas que
pode trazer, importa mais, muito mais, as verdades
que põe em questão, os discursos que põe em dúvida e
os espaços que abre à pergunta. Importa mais o movi-
mento que emprega: os deslocamentos, as aberturas,
suas formas de vibrar, de produzir sussurros, resso-
nâncias, ecos, vazios, espaços – para que se dê espa-
ço ao pensar, ao escutar, ao estranhar. Não persegue
um resultado, mas performa um ato – o ato mesmo da
pesquisa, pois este é, também, (trans)formação.

As crianças sentem um prazer especial em se es-


conder. E não para serem descobertas no final. Há,
no próprio fato de ficarem escondidas, no ato de se
refugiarem na cesta de roupa ou no fundo de um
armário, no de se encolherem num canto do sótão
até quase desaparecer, uma alegria incomparável,
uma palpitação especial, a que não estão dispos-
tas a renunciar por nenhum motivo. [...] De fato, o
poeta celebra seu triunfo no não reconhecimento,
exatamente como a criança que se descobre tre-

42
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

pidando como o genius loci de seu esconderijo.


(Agamben, 2007, p. 19. Grifos do autor).

Como na ação de esconder-se das crianças, o va-


lor de uma pesquisa educativa está na própria ação de
pesquisar, no modo de se colocar em relação, de deitar
atenção, de estar presente. Desconfiamos de que uma
investigação que não se alimente do acontecimento,
da experiência, das histórias vividas e tecidas, não
pode provocar deslocamentos, pois segue ratificando
o mesmo, o já sabido, o já pensado no que tange às
vidas vividas no cotidiano da escola e nos processos
educativos, em diferentes espaços. Como saber o que
vamos encontrar nas narrativas sem nos entregarmos
a elas? Como saber que questões vão surgir sem expe-
rimentar, percorrer, sentir o caminho, com suas im-
perfeições, atalhos, desvios e bifurcações?
Assim, a potência de uma pesquisa dessa ordem,
sua vitalidade, sua intempestiva importância, sua
força está em se lançar ao encontro de vozes, falas e
acontecimentos comumente esquecidos, refugados,
renegados; sua vitalidade está no fato de que poten-
cia a escuta para as narrativas e histórias dos sujeitos
como aquilo que mantém viva a memória e a história
cotidianas da escola, da vida, das relações. Talvez esta
maneira não de pesquisar, mas de se colocar e estar
na pesquisa, esse modo de pensá-la – portanto, essa
estética de pensamento -, valha a pena porque, jus-
tamente ao abdicar da explicação e da categorização,
pode aprender, pensar e transformar o próprio olhar
sobre a escola, as relações humanas e o que tem a nos
ensinar, oferecer, dizer aqueles que fazem a vida edu-
cativa acontecer no seu “sendo”.
E, então, vale perguntar: por que não?

43
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

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46
ayvu

A pesquisa em círculos tecida


ensaios de metodologia errante

Luciana Esmeralda Ostetto1

No círculo, como imagem espelhada do


universo, as contradições estão suprimidas e
toda potência está contida. Início e fim
coincidem nele, seu centro é o colo do mundo.
– Maria-Gabriele Wosien.

A narrativa que compartilho conta sobre o traça-


do de um itinerário de pesquisa que, para pensar a for-
mação de professores, atravessou os campos da edu-
cação e da arte. Fala de encontros e imagens. Revela
caminhos percorridos pelos quais sensação, intuição,
sentimento e pensamento foram ativados. Por entre
veredas e passagens insuspeitadas, justo na aventura

1
Professora da Universidade Federal Fluminense e do Programa de
Pós-graduação em Educação da mesma universidade. Doutora em
Educação pela Unicamp. Coordenadora do FIAR - Círculo de estudos
e pesquisa formação de professores, infância e arte (Faculdade de
Educação UFF).
47
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

da travessia, o desenho de uma metodologia errante


ganhou forma.
Contribuindo não apenas para a produção dos
dados da pesquisa, mas também para a afirmação da
pessoa-pesquisadora que se constituía pelo caminho,
o que estou chamando de “metodologia errante” diz
respeito a um processo de investigação profundamen-
te marcado pelo encontro, pela escuta, pela espera e
pela utilização de outras linguagens além da palavra,
envolto em busca e mistério, imerso em experiências
estéticas. Por meio de uma espécie de circumambu-
latio (para utilizar a conhecida expressão junguiana),
movimentando-se em torno do que não se mostra
inteiramente, atenta a indícios, sinais, símbolos que
aparecem no percurso, a pesquisa vai ganhando for-
ma, entre avessos e errâncias, para revelar os achados
que só podem ser encontrados porque procurados sob
o compasso de Kairós, o tempo oportuno.

Pesquisar, sair em busca (de si, do outro, dos ou-


tros...)
Falar do processo de uma pesquisa é falar de his-
tórias de buscas, confrontos, encontros e travessias.
Como e quando tudo começa? Questões de origens se-
rão sempre imprecisas no processo de criação. No meu
caso, tênues fios de lembranças me reportam a uma
gênese possível: inquietações e incômodos vivencia-
dos na prática de professora formando professores. A
memória se alarga no processo mesmo de relembrar, e
tudo parece ficar mais claro: sim, foram provocações,
perplexidades, perguntas nascidas do ofício docente
exercido no curso de Pedagogia, que me conduziram
ao movimento de sair em busca.
Na relação direta com os estudantes, ano após
ano, interagindo com diferentes turmas e grupos, eu
48
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

percebia o aprisionamento, ou mesmo repressão, da


dimensão inventiva dos universitários. Pensando so-
bre o que testemunhava, escrevi sobre essa dimen-
são criadora roubada dos adultos na contemporanei-
dade:

Comumente, deparava-me com repertórios empo-


brecidos e tímidos, que revelavam, por sua vez, o
desenho perdido, a brincadeira esquecida, o mo-
vimento contido, as cantigas silenciadas através
dos anos. Igualmente visível: a sensibilidade e o
olhar tornavam-se embotados pelo árido cotidiano
massificado. (Ostetto, 2004, p. 122).

Reparava que uma queixa-denúncia era recor-


rente entre os estudantes-educadores: “Não vou ao
museu porque não entendo de arte”. Também perce-
bia: na universidade a arte está praticamente ausente,
e o tempo para a fruição desaparece, em meio a tantas
tarefas dirigidas à apreensão de um saber conceitual,
marcado pela supremacia do pensamento, da objeti-
vidade. Ficava intrigada: mas, o que é conhecer arte?
O que é entender de arte? Na formação de pedagogos:
para que a arte? Percepções, intuições, desconfianças,
rede de intrigas formada. Acaso não haveria muito
mais a ser pensado e proposto na formação de pro-
fessores que a direção apontada desde os anos 1980,
configurada na disputa entre visões que privilegia-
vam ora o compromisso político, ora a competência
técnica? Faltava algum termo. Onde estavam a sensi-
bilidade, a poesia e a beleza? (Ostetto, 2006).
Há tempos andava [...] à procura do univer-
so em que habita o ser da poesia presente-escondi-
do no adulto-educador. Universo que, em regra, tem
sido banido da sua vida pessoal e profissional, marca-
da pela falta de experiências estéticas, de fruição da
49
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

arte. (Ostetto, 2004, p. 121). Poderia a arte lançar luzes


para uma prática educativa que provocasse o retorno
ao ser criativo, deixado à margem da história de cada
um, por um modelo de educação reducionista?
Ao querer o ser da poesia dos educadores (aque-
la porção certamente existente em todos nós e da
mesma forma negada; aquela dimensão essencial da
vida, cuja força nos conduz à criação), perguntava-me:
como ele pode ser alimentado nos cruzados caminhos
de um curso de formação de professores? Inquieta, en-
trevia uma pista: seguir pelas trilhas da arte, na dire-
ção de provocar linguagens e expressões esquecidas;
estabelecer novas conversas, ampliar diálogos com
campos de conhecimento que alimentassem novas
possibilidades para a formação de professores, além
dos territórios prescritivos da Pedagogia (com seus
fundamentos teóricos e práticos).
Foi assim que cheguei ao doutorado em Educa-
ção da Unicamp, onde pude me lançar à aventura de
pesquisar a formação de educadores reinventando e
descobrindo caminhos, acolhendo enredos insuspei-
tados. Pretendendo investigar os repertórios artís-
tico-culturais dos professores da Educação Básica,
comecei a percorrer um espaço não familiar. Vivi a
estranheza diante de novos conteúdos enunciados no
curso, distintos dos referenciais já constituídos em
mim. Se, por um lado, pensava em continuar a estudar
Vygotsky e seus colaboradores, na bibliografia apre-
sentada nas primeiras disciplinas cursadas, ligadas à
linha de pesquisa para a qual ingressara, outros eram
os referenciais. Distante do território conceitual já
apropriado por mim, fui tomada pelo espanto: eu não
pensara em Jung, Hillman, Nise da Silveira, autores
da Psicologia analítica, como interlocutores! Todavia,
começar por eles fez toda a diferença.
50
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Diante do novo, reconheço o medo. Porém, além


do medo, havia o mundo, já me dissera Clarice. Estu-
dava. Lia. Dialogava. Experimentava. Procurava sen-
tidos. Desalojava certezas. Aos poucos me desapega-
va de referenciais já instituídos, colocava-me mais
disponível e tomava contato com outros aspectos da
existência, dentro e fora de mim, dentro e fora dos mu-
ros da universidade. Rompia fronteiras. Afinal, se nos
deixamos envolver pelo inexplicável e nos liberamos
do controle, então podemos ouvir outros chamados.
Vivi um longo processo de aprendizagem, que
me conduziu a rever meus propósitos e redefinir o per-
curso de pesquisa. Como acolher o novo se estamos
saturados? Como buscar se não sentimos falta? Con-
templando novas paisagens, externas e internas, cul-
tivando o tempo no tempo, conhecia lugares, temas,
textos, autores, artistas, obras, imagens que, constitu-
ídos o outro da interlocução, me ofereciam passagem
para continuar.
No “inventário dos outros” que conversaram co-
migo, às vezes por dentro, às vezes por fora do progra-
ma instituído, até formular a questão (ou reconhecer
a pergunta originária, como diria Amnéris Maroni,
2008) e divisar um mapa da pesquisa, identifico: José
Saramago (O conto da ilha desconhecida); James Hill-
man (A repressão da beleza);
Rainer Maria Rilke (Cartas sobre Cèzanne);
Tarkovski (Esculpir o tempo); Doris Lessing (O car-
nê dourado; A tentação de Jack Orkney); C. G. Jung
(sobretudo Memórias, sonhos, reflexão; O espírito
na arte e na ciência); Manoel de Barros (Livro sobre
nada); Tracy Chevalier (Moça com brinco de pérola);
Roberto Gambini (Sonhos na escola); Lygia Bojunga
(Feito à mão; Livro: um encontro com Lygia Bojunga);
Marguerite Yourcenar (Como Wang-Fô foi salvo); Jens
51
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Peter Jacobsen (Niels Lyhne); Juan Rulfo (Pedro Pára-


mo); Hermann Hesse (Narciso e Goldmund); José Luis
Sampedro (O sorriso etrusco); Elisabeth Reynaud (Te-
resa de Ávila ou o divino prazer); João Guimarães Rosa
(Primeiras estórias); Edgar Morin (Amor Poesia Sabe-
doria); Yasunary Kawabata (Beleza e tristeza); Herman
Melville (Bartleby, o escriturário); Fiodór Dostoievski
(Memórias do subsolo); Nikos Kazantzakis (Zorba, o
grego); Konstantinos Kaváfis (“Ítaca”); Antônio Abu-
jamra (Provocações nº. 63); Paula Almozara (Cadernos
da artista); Milton da Costa (Figura sentada); Bernini
(O êxtase de Santa Teresa); Vermeer; Giotto; Robert
Rauschenberg; Alexander Calder; Martin Chambi; Vê-
nus de Milo; Shiva Nataraja; Mandalas; Roda da Vida;
Labirintos; Oroboro.
Encontrar-me com esses outros (à margem dos
referenciais teóricos) me levou lá onde eu não imagi-
nara ir, transportou-me das prisões do racionalismo a
recônditos e lugares esquecidos-habitados dentro de
mim. Outros saberes, outras verdades começavam a
fazer sentido em mim, para mim; alimentavam meu
desejo provocando o ensaio de novos olhares. Outros
mais chegariam e, não sem riscos, acolhia-os. Cora-
gem. Sem risco não há criação! Em um programa de
formação-pesquisa, assim como na vida, cultivar a
dúvida, suspeitar, questionar as certezas e arriscar
são atitudes necessárias.
Justo nessa direção, da dúvida essencial, no ca-
minho da pesquisa encontrei a manifestação do di-
retor de teatro e ator Antônio Abujamra. Em suas pa-
lavras ouvi uma crítica explícita aos pedagogos (mas
seus comentários podem ser aplicados também a ou-
tras áreas e a certas tendências de pesquisas e perfis
de pesquisadores...): Como me irritam as pedagogas,
como elas me incomodam as pedagogas, porque são
52
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

de uma provocação constante. Elas acham que estão


sempre com a razão; não são capazes de idolatrar a
dúvida. (Abujamara apud Ostetto, 2006, p. 41). Na con-
tinuidade, como que estabelecendo o contexto da crí-
tica, contou sobre um tempo em que, trabalhando na
produção de um programa infantil na televisão, pre-
cisava se reunir com as pedagogas da equipe. Tarefa
delicada e provocativa, como ele testemunha:

Essas senhoras me levaram à loucura! Porque elas


falavam tanta barbaridade sobre o que é o ensino,
com as certezas do que é uma infância, que um dia
eu falei assim:
– Eu não vou mais discutir com a senhora.
– Por que não?
– Porque se eu trouxer para a senhora a Vênus de
Milo, a senhora vai me mandar colocar os braços
nela.
E ela respondeu: – Mando mesmo! (Abujamara
apud Ostetto, p. 41).

Além de metáfora potente, a história contada


ajuda-nos a perceber com maior clareza a necessida-
de de seguir cultivando diálogos com a incompletude
que possam fecundar espaços de aprendizado da dú-
vida no processo de conhecimento, e não de respostas
formatadas, tantas vezes estéreis, que enquadram, re-
produzem, pretendem o ponto final. Questionar certe-
zas é fundamental para o nascimento/criação de no-
vos tempos, em que aspectos negligenciados da vida
(como intuição e sentimento) sejam integrados e ofe-
reçam outras possibilidades para a formação do pes-
quisador.
Que poder tem uma imagem! A Vênus de Milo, a
escultura do Museu do Louvre referida por Abujamra,
faz-me lembrar do mito, da divindade Afrodite – um
contraponto às certezas e prescrições acadêmicas.
53
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Na minha imaginação, a deusa do amor, da fertilida-


de e da beleza coloca-se no caminho como inspiração,
indicação de novos ares para olhares e sentires e pen-
sares revigorados. Afrodite nos direciona à criação, à
fecundação dos campos educacionais, do ensino e da
pesquisa. Não é simples sentir e perceber seu toque.
Tal como para apreciar uma obra de arte, requer aber-
tura e disponibilidade.

No encontro com a arte, movimentos para dentro


e para fora
Lembro-me daquele dia. Entrei no Museu de Arte
Moderna de São Paulo. Em meio a um significativo e
incrível acervo de arte brasileira, lá estava a pintura
de uma figura, sentada. Pelo traçado das linhas, entre
porções de brancos, rosas e cinzas-azulados compon-
do um mosaico, sou capturada. Faz uma pose a figura?
Quiçá pensa na vida. Abandona-se? Quem sabe viaja
na solidão... De sua cadeira, olha para mim. De onde
estou, olho para ela. Sigo as cores, linhas, formas.
Componho intrigas: menina ou mulher, de frente ou
de lado, presente ou passado, sonho ou tristeza, reve-
lada ou escondida, achada ou perdida? Parada, procu-
ro – quero os olhos! – e me vejo. No silêncio, pergunto
– quero as vozes! E ouço o poeta: Mundo, mundo, vas-
to mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma
rima, não seria uma solução. Digo então: mundo, mun-
do, paro não! E vou. Meu olhar, de razão e emoção, jun-
ta pedaços, convida a figura para dançar, com prazer,
ao sabor da contemplação. E vamos. Mãos dadas. Len-
tamente. Inventando passos. Misturando cores. Con-
fundindo linhas. Desfazendo normas. Recompondo
formas. Recriando poses. Através de olhares viajan-
tes, a figura segue comigo, dançando a vida. Criação e
sonho, depois da provocação do olhar (Ostetto, 2006).
54
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

No tempo do depois, pensei: ao contemplar aque-


le quadro, ao conversar com a figura-imagem-pintura
(Figura sentada, 1951, de Milton Dacosta), ouvi o que
ela tinha a me dizer e tomei contato com pontos dis-
tanciados da minha experiência sensível. Certo ar de
divagação, certa atitude de pensar na vida, buscando
algo além da inércia da posição sentada, certa melan-
colia, traços e características identificadas na pintura
fizeram-me olhar para mim mesma. Passei em revista
minhas figuras internas. Nada definido ou claro. Mis-
turas. Pedaços. Fragmentos. Sombras. Um fundo: lu-
zes de lembranças, memórias.
Contemplar aquela Figura sentada me impelia
ao movimento, dentro e fora de mim.
Busca.
Para onde vais? O que fazes aí? Por que a triste-
za? Vai! Reinventa-te! – ao olhar a pintura, pergun-
tas existenciais ressoavam do fundo do meu existir.
Aquela imagem refletiu-me e revelou indícios de um
caminho que eu viria a percorrer, na pesquisa de meu
doutoramento e na vida acadêmica de um modo geral:
no encontro com a arte, anunciava-se a possibilida-
de de um reencontro comigo, de reinvenção da minha
vida, integrando outras dimensões até então secun-
darizadas ou negadas.
A experiência será sempre muito maior que a
explicação e, talvez, as palavras possam empobrecer
a experiência, mas diante daquela pintura algo em
mim se levantou, fez-se movimento. Entre um olhar e
outro e mais outro, pude ouvir um chamado (gosto de
pensar que fora o toque de Afrodite). O estático mo-
mento do olhar fez-se um redemoinho, puxando para
fora o dentro-de-mim. Ouvi música. Convidei a Figu-
ra para dançar. Aquela Figura sentada me conduzira,
enfim, ao meu passado dançante, redefinindo toda a
55
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

possibilidade de um caminho futuro na minha inves-


tigação; aquela experiência estética me reaproximou
das Danças Circulares Sagradas, há tempos pratica-
das por mim e de certa forma esquecidas no percurso
acadêmico.
As danças circulares sagradas, como o próprio
nome indica, são praticadas em roda, em grupo, ge-
ralmente de mãos dadas, ao som de músicas tradicio-
nais (ou contemporâneas) de diferentes culturas (Gré-
cia, Albânia, Romênia, Armênia, Bulgária,
Hungria, Macedônia, Israel, Escócia, Irlanda,
Rússia, Índia, Brasil, Povos Celtas, Incas, Indígenas,
entre outros), seguindo coreografias que descrevem
formas variadas no espaço. A principal e mais co-
mum é a formação em círculo, que pode abrir-se ou
fechar-se, desenhando linhas, espirais, meandros na
sua movimentação. As danças de pares são também
bastante comuns e lembram diretamente as tradi-
cionais danças de roda festivas (Ostetto, 2006). As
danças circulares sagradas trazem em suas raízes a
ancestralidade da dança dos povos, de caráter comu-
nitário e gregário. Relembram um tempo em que dan-
çar era participação, encontro e reafirmação dos ci-
clos da vida; reencontram e recuperam a dança como
celebração e comunhão, pois, como destaca Garaudy
(1980), desde tempos longínquos os homens dança-
ram todos os momentos importantes da vida: a guerra
e a paz, o casamento e os funerais, a plantação e a
colheita, os ciclos observados na mudança das esta-
ções.
Confissão: a Dança Circular estava em mim há
tempos, mas deixei-a fora do projeto que pretendia
desenvolver no doutorado. Meu interesse estava vol-
tado para a investigação e análise dos repertórios
artístico-culturais dos educadores, mas em nenhum
56
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

momento cruzava com o meu repertório vivencial que


incluía as danças circulares. Afinal, dizia meu rígido e
equivocado pensamento, as danças circulares perten-
ciam ao distante mundo do cotidiano, da vida vivida
que corre para além do território acadêmico; impossí-
vel pensá-las no universo da pesquisa em educação.
Compreendi depois: pertenciam a uma parte dissocia-
da da professora que eu era.
Dádiva: entre o chamado da Figura sentada e
meu universo dançante esquecido, houve um outro
significativo – minha orientadora – que soube olhar
com sensibilidade minha história, e enxergou além.
Foi determinante sua forma peculiar de orientar.
Como ela diz:

A atitude que adoto nas minhas orientações apren-


di com Jung. Proponho que, ao invés de precipitar-
mo-nos sobre um objeto de estudo, armados com
algum conhecimento preestabelecido, devemos
dar, primeiramente, um tempo de pausa, tão longo
quanto necessário. Para, então, deixar que apareça
o que interiormente nos atrai naquele objeto. Dei-
xarmo-nos impressionar pelo objeto, circundá-lo
livremente, observando-o a partir de diferentes
ângulos, para melhor reconhecê-lo e avaliá-lo. O
conhecimento virá, portanto, da observação das
coisas, das coisas do mundo visível e do invisível
que nos atraem a conhecê-las. (Albano, 2014, p. 13).

Tal peculiaridade permitiu que o tempo oportu-


no fosse acolhido, iluminando a dança do meu cami-
nho feito e me ajudando a ver a dança no caminho por
fazer. No itinerário da pesquisa pude ouvir, baixinho,
a voz de Afrodite que me chamava ao retorno, a inte-
grar em mim a vida e o trabalho acadêmico, na roda
da dança. Cultivar a atitude de abertura aos meus de-
sígnios e contar com a intermediação da particular e
57
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

atenciosa atitude de orientação, adotada pela orienta-


dora, ajudaram-me à escuta.
A interação com a orientadora foi como um lim-
par de sentidos, da percepção, do que me impedia de
vislumbrar o infinito, na tensão entre o visível e o in-
visível em mim. A pausa proposta, o tempo cultivado
na espera da observação calma, conduziu-me ao re-
torno. Iluminando minha história lançou luzes tam-
bém sobre o meu trabalho de pesquisa. Como diz o
poeta: Se as portas da percepção fossem limpas, tudo
apareceria ao homem como é: infinito (Blake apud Os-
tetto, 2006, p. 52).

Ensaios de metodologia errante


É preciso também estar disposto a se perder,
pelo menos temporariamente, a nada entender,
e aceitar, portanto, que se extingam as luzes
que até então haviam marcado o caminho a seguir.
[...] Não basta saber. É preciso vivê-lo.
E aprender a vivê-lo.
– Gaillard.

Depois do encontro com a pintura de Milton Da-


costa, tendo redefinido os rumos do projeto, fui para
a roda dançar e pesquisar. Ao mesmo tempo em que,
como aprendiz, procurava aprofundar minhas vivên-
cias com as danças circulares (participando de cur-
sos, treinamentos e eventos com diferentes mestres-
-focalizadores), fui entrando no círculo da dança com
professoras, como pesquisadora-focalizadora, a bus-
car saberes e fazeres sensíveis. Meus e delas. Colo-
cava-me na fronteira, para utilizar a bela imagem da
dança de Martha Graham:

Perguntaram-me: “Por que chama essa dança de


“Frontier”? A fronteira é a barreira do meu país.
58
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Não é algo grande ou dilatável. Quando se chega


à fronteira, chega-se a uma barreira”. Em minha
mente havia a ideia de Frontier como uma fron-
teira de exploração, uma fronteira de descoberta,
e não uma fronteira de limitação. (Graham apud
Ostetto, 2006, p. 98).

Posicionando-me na fronteira de exploração e


descobertas no percurso da pesquisa, tal qual a dança
circular, realizada em roda, desenhando linhas sinuo-
sas, labirintos, meandros, a metodologia assumida na
pesquisa foi se configurando também como circular: a
cada volta no encontro com as educadoras participan-
tes da aventura, perguntas eram formuladas, questões
eram redefinidas, configurando um movimento de in-
tegração de dados – achados, suposições, intuições.
Que tipo de formação temos feito no Curso de
Pedagogia, que separa arte e vida, corpo e mente (e
não se fala em alma)? Se a arte não está presente na
educação, na formação de professores, poderia a dan-
ça circular ser um canal para reaproximar a educação
da arte? Seria possível, dançando na roda, provocar
travessias no Curso de Pedagogia, reafirmando a alma
como lugar da poesia, do pulso, da criação? Poderia a
dança circular ter lugar na universidade, fazer parte
de um programa de formação? Se as perguntas ga-
nhavam visibilidade no percurso e ofereciam norte
para a continuidade, era no encontro com as educa-
doras, sujeitos-interlocutores da pesquisa, ensaian-
do passos, que desenhávamos caminhos, tal como a
criação de uma coreografia, articulando tempos e es-
paços – dentro e fora, passado e presente, formação e
experiência.
Círculos. Espirais de vida. Mistérios. A cada en-
contro para dançar iniciávamos a sessão sentadas, ao
redor de um centro especialmente preparado. Nesse
59
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

momento inicial configurava-se a roda para conver-


sas, trocas, debates, informações. Assim, antes de
começarmos a dançar, abríamos o círculo para com-
partilhar a memória da experiência passada. Nessa
hora, fazia anotações do conteúdo revelado no cole-
tivo, constituindo matéria para o detalhamento pos-
terior em meu caderno de campo. Alguns encontros
também foram filmados, sobretudo capturando os
testemunhos das educadoras, na roda de conversa,
os quais me permitiram rever e ampliar as anotações
já realizadas, tecendo meu registro diário. Por fim, as
participantes produziram um memorial, descrevendo
e analisando a experiência, considerando seus apren-
dizados e a possível contribuição das danças circula-
res para sua formação.
Os dados recolhidos no encontro com as educa-
doras foram organizados e sistematizados compondo
um quadro analítico espiralado, resultado de uma es-
pécie de “circulação”, “aproximar-se circundando” ou
circumambulatio, para utilizar a conhecida expressão
alquímica empregada por Jung (2001). A ideia de cir-
culação compreende o movimento em torno do que
não se mostra totalmente, onde a ação converte-se em
não ação; tudo que é periférico é subordinado à ordem
que provém do centro (Jung, 2001, p. 41).
Christian Gaillard, analista junguiano e profes-
sor de Psicanálise da Arte, falando da forma e do mé-
todo segundo o qual Jung analisava uma obra de arte,
afirma que o mesmo não o fazia com o conhecimento
já constituído sobre ela; ao contrário, parava, obser-
vava, olhava atenta e escrupulosamente o que estava
diante dele; contornando-a, abordando-a de diferen-
tes ângulos, abria espaço na percepção e consciência,
deixando acontecer.

60
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

[Jung] tem uma palavra para esse primeiro tem-


po da análise de uma obra, essa primeira etapa
de seu método: ele usa o verbo dual alemão ges-
chehen lassen – em francês se diz laisser advenir;
em inglês, to let happen – deixar acontecer. “Dei-
xar acontecer” implica também deixar-se impres-
sionar, permitir que a obra se apresente diante de
você e em você, dar-lhe espaço e, então, abrir sua
percepção e sua consciência para que as impres-
sões, as sensações e os sentimentos venham, gra-
dualmente, à superfície [...]. (Gaillard, 2010, p. 125).

No nosso caso, “deixar acontecer” o processo da


pesquisa no movimento circular é que conduz à des-
coberta do que é a pesquisa (o centro): cultivando ati-
tudes de abertura e receptividade em relação ao “obje-
to” pode-se, então, desenhar o método. Trata-se de um
processo profundamente marcado pela escuta, pela
espera e pela utilização de outras linguagens, envol-
to em busca e mistério, justamente características da
experiência estética.
O caminho foi sendo tecido no avesso, na errân-
cia – do latim errantiae, desvio, afastamento; deriva-
ção do verbo errare, vagar, andar sem destino, perder-
se ou desviar do caminho (HOUAISS, 2015). Assumir
esse tipo de percurso para a realização de uma pesqui-
sa implica disponibilidade para explorar novos terri-
tórios, dentro de nós e ao nosso redor, arriscando olha-
res renovados. Neste sentido, não há o método correto,
único, pois não depende tanto do caminho, mas dos
modos de caminhar. Tal como diz um provérbio chi-
nês: Se o homem errado usar o meio correto, o meio
correto atuará de modo errado (apud Jung, 2001, p. 25).
Assim, para uma pesquisa desenhada com os
traços de uma metodologia errante, que se desvia do
instituído, é da maior importância ir lá onde não se
conhece, não recuar diante da forma única reinante,
61
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

da uniformidade que embota a visão e impede a cria-


ção. É fundamental não temer para experimentar no-
vos modos de ver, desalojando conteúdos ou posições
confortavelmente já fixadas e aceitas. Ah, o espanto
é essencial na jornada! O espanto é um desinstalar-
-se de posições fixas e de hábitos cristalizados; por
isso gera níveis de questionamento que exigem uma
transformação em nosso modo de ser (Unger apud Os-
tetto, 2006).
Provocar o desejo, que faz mover a busca, implica
tempo de espera. Não se dá instantaneamente. Talvez
por isso a escassez de pesquisas que, ao falarem de
arte, utilizam as linguagens da arte, múltiplas expres-
sões: o tempo e o espaço acadêmicos não foram e não
estão pensados e planejados para acolher a arte que,
em regra, obedece à espécie de tempo-espera. É pre-
ciso tempo para deixar as coisas acontecerem, para
recebê-las, para acolhê-las. Sem isso seremos apenas
conquistadores impondo ritmos, enquadrando, limi-
tando experiências, estabelecendo a força da determi-
nação cronológica, reino em que o mistério, que impul-
siona a procura, está fora de cogitação (Maroni, 2008).
Do tecido da pesquisa, prestando atenção em
seus nós, direitos e avessos, arremato pontos como ca-
racterísticas dos desenhos experimentados: a espera,
o acolhimento, o cultivo da beleza são qualidades da
errância na pesquisa; compreendo, também, que três
grupos de saberes – aos quais chamaria de referen-
ciais, vivenciais e práticos –, se colocam em diálogo
no percurso da investigação, constituindo ou amplian-
do a trama de significados. Há os saberes referenciais
(teóricos) – que ajudam a traçar formas de ver; os sa-
beres vivenciais (autobiográficos) – que aparecem no
exercício de rememorar e apropriar-se do vivido antes
e durante a pesquisa; e aqueles práticos (relação ínti-
62
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

ma, próxima, direta, com os sujeitos e/ou objetos da


pesquisa) – relacionados ao experimentar-se, impli-
cados no colocar-se à disposição do encontro com o
mistério, chegando perto, na calma, circulando, sem
apressar passos ou aprisionar sentidos.
Atentando para e acolhendo os conteúdos de
tais saberes, a metodologia foi sendo tecida (e se apre-
sentando) no processo de maneira errática. Por isso
é apropriado falar de uma “metodologia errante” que
se faz ao fazer-se, como os processos criadores artís-
ticos... Marcada pela circularidade: abertura, escuta,
acolhimento, interlocução, desenhada em movimen-
tos mandálicos. Círculos, espirais, labirintos são ima-
gens que definem a dinâmica da metodologia forjada
na experimentação, na qual o pesquisador se entrega
às possibilidades de transformação, negando as cer-
tezas da ortodoxia científico-acadêmica estabeleci-
das a priori.
Sobre a potente imagem do labirinto, Jean Shi-
noda Bolen afirma que, no momento em que nele en-
tramos,

[...] as noções comuns de tempo e distância se des-


materializam, e ficamos no meio de um ritual e de
uma viagem em que a transformação é possível.
Antes de chegarmos ao centro, não sabemos se es-
tamos perto ou longe dele, onde a significação pode
ser encontrada. O caminho de volta não é evidente.
E, ao emergirmos, não temos como saber como ou
quando aplicaremos no mundo cotidiano a experi-
ência adquirida, o que só descobrimos no momento
que a aplicamos (Bolen apud Ostetto, p. 151).

No âmbito de uma pesquisa, percorrer o labirinto


será buscar a passagem e a ligação entre tantos fios,
pensando a experiência vivida. Entrar e sair do labi-
rinto significará afirmar a experiência em seus me-
63
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

andros, de luzes e de sombras, de clarezas e obscu-


ridades. A figura do labirinto é forte em significados
simbólicos. Comumente representa os vários ciclos
de tempo ou sequências de evolução, em que o cen-
tro indica o ponto de retorno que conecta diferentes
dimensões da existência. O labirinto simboliza os
ciclos, o ser e desvanecer na natureza, o caminho de
vida e morte do homem, a condensação de energia em
matéria e sua dissolução, a dinâmica polar do tempo e
da ausência de tempo (Woisen, 2004, p. 20).
A experiência de percorrer o caminho da pesqui-
sa em labirinto (entrar, entregando-se aos encontros
com sujeitos e objetos investigados, chegar ao centro
e sair), é como percorrer o caminho da vida: alme-
jamos o centro, mas há obstáculos para alcançá-lo.
Para superar as dificuldades que impedem o encontro
com o centro, há sacrifício, que equivale a mudanças
necessárias para prosseguir. Tendo chegado lá pode
acontecer o encontro de transformação e, ao retornar
dele, há a tarefa de renovação, de integração, no movi-
mento de análise dos achados.
Entrar e sair da jornada de pesquisa supõem ati-
tudes múltiplas e amplificadas pelas tramas tecidas
na busca. Tentativas. Persistências. Desistências. En-
contros. Desencontros. Centro. Margem. Esses movi-
mentos transcrevem fluxos pelos quais uma pesquisa
é desenhada e realizada, quais as propriedades conti-
das no símbolo do labirinto: sacrifício, transformação
e renovação, mudança, encontro e integração.
Viver a circulação, aproximando pares de opos-
tos é que poderá provocar a abertura para o novo, para
a criação e recriação – da educação, da arte, da vida.
Só os positivistas (e certos materialistas convictos,
como diria Doris Lessing, 1972) continuam afirmando
que a pesquisa não inclui a vida!
64
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Entre o movimento da busca, o espanto e a es-


pera, conectando-nos com a pergunta iluminada no
caminho, podemos alimentar processos que levem
também à liberação da beleza, retirando a repressão
que a impede de se manifestar, seja na metodologia,
no encontro com o campo de pesquisa, na sistemati-
zação dos dados, na escrita que comunica os achados.

Mobilizados pela nossa pergunta-sem-respos-


ta, pela nossa pergunta-originária, conquistamos
uma escrita poética, pois nos arriscamos cada vez
mais no metafórico e cultivamos cada vez mais a
beleza. A escrita deixa de ser dura, científica, con-
ceitual; essa escrita cultivada no meio científico
torna a feiura sinônimo de cientificidade! É incrí-
vel como ciência e beleza se dissociaram na ciên-
cia moderna. (Maroni, 2008, p. 45).

E nisso há um longo caminho, que passa pelo co-


ração, como anotou James Hillman.

A menos que se abra o coração [...] permanecere-


mos surdos e cegos, reprimindo, ao contrário, nos-
sas melhores intenções, simplesmente porque o
órgão que percebe a beleza, que emite o suspiro,
a resposta estética, não foi mexido. [...] No pensa-
mento do coração, portanto, repousa a chave para
a prática da beleza e o fim da repressão. Assim,
acima de tudo [...] deixemos que o coração seja to-
cado. (Hillman, 1993, p. 140).

Reconhecer a própria voz, liberar-se para a cria-


ção: encontrar-se com o louco
No processo da pesquisa, no retorno às experi-
ências significativas que marcavam minha existência
e se relacionavam com o tema que passei a investigar,
pude rever e ampliar sentidos da minha primeira dan-

65
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

ça circular: Tzadik katamar. Os fios narrativos dessa


história também contribuem para dar visibilidade à
“metodologia errante” praticada.
Tzadik katamar é uma dança de Israel, mais co-
nhecida entre nós como “Dança do sábio e do louco”.
A coreografia está dividida em duas partes: o sábio é
dançado na primeira parte e o louco, na segunda (Bar-
ton, 1995). Jamais esqueci a sensação que o encontro
com tal dança me provocou, quando entrei na roda e
dancei os passos do sábio e os do louco e, mais, quan-
do ouvi falar sobre sua simbologia. Parecia feita para
mim, para o meu momento (de crise com o mundo
acadêmico), sob encomenda para chacoalhar verda-
des estabelecidas.
Fiquei mobilizada e encantada. Dançá-la me re-
portou a um estado outro, transformando um senti-
do interno numa expressão externa. Parece-me que
acordei para o louco, para a necessidade de ser louca
na universidade para, através dele, prosseguir criando
no ofício de ser professora. Adentrar no mundo des-
conhecido do louco exigia coragem e entrega; por sua
vez, dançar o louco pressupunha, inevitavelmente, o
erro. No exercício da reflexão, parte também da pes-
quisa em curso, busquei aproximação com a simbolo-
gia que irrompeu daquela específica dança e ressoou
em mim. Chego ao Tarô, do qual, é preciso dizer, nada
conhecia. Encontro-me com o Louco do Tarô, a emble-
mática carta sem número, podendo ser o zero ou o 22.
Olhando através da simbologia dos arcanos do Tarô, a
simbologia da dança Tzadik katamar alargou-se, es-
tendendo-se pelos vastos territórios dos significados
e sentidos já construídos.
Os trunfos do Tarô são essencialmente imagens
e contam uma história pela imagem, uma canção sem
palavras, que nos acode ao espírito como um velho re-
66
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

frão, evocando lembranças sepultadas (Nichols, 1993,


p. 22). Olhando demoradamente para a imagem do
louco, estampada no Tarô de Marselha, considerado o
mais antigo, vi um andarilho em movimento. Seguin-
do leve, pequena bagagem, sem excessos. Extravagan-
te no trajar. Lembrou-me o bobo da corte, de antigas
histórias. Fisionomia serena, despreocupado. Vai só,
na companhia apenas de um animal, talvez agregado
pelo caminho. Vai em frente, não olha o chão que pisa.
Seus olhos estão elevados. Parece mirar o infinito.
O Louco não tem posição fixa no jogo. Como um
andarilho perambula aqui e acolá, está livre, poden-
do surgir a qualquer instante, inesperadamente, cau-
sando confusão e mudando o curso do jogo (Nichols,
1993). Intrigante.

De todas as imagens do jogo do Tarô, eis a mais


misteriosa, a mais fascinante, portanto, a mais
inquietante. Diferentemente dos outros arcanos
maiores, numerados de um (O Mago) a vinte e um
(O Mundo), O Louco não tem número. Ele se coloca,
portanto, de fora do jogo, isto é, fora da cidade dos
homens, fora dos muros. (Chevalier; Gheerbrant,
1996, p. 560).

A imagem dessa figura, estampada no antigo


baralho, atesta uma natureza multifacetada, cheia de
paradoxos. Caminha para frente, mas olha para trás,
ligando assim a sabedoria do futuro à inocência da
infância. Move-se fora do espaço e do tempo. Habi-
tam-lhe o espírito os ventos da profecia e da poesia.
(Nichols, 1993, p. 42). Acha-se em tão estreito contato
com o seu lado instintual que não precisa olhar para
onde vai no sentido literal: sua natureza animal guia-
-lhe os passos (Nichols, 1993, p. 40). Sua visão é uma
espécie de “introvisão”, sendo capaz de agir utilizan-

67
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

do a sabedoria intuitiva em lugar de qualquer lógica


convencional. Acima de tudo, como acentuado no di-
cionário de Chevalier; Gheerbrant (1996), ele não vaga
errante: ele caminha, avança.
O Louco encerra polos opostos de energia, e é
justamente a ambivalência e a ambiguidade que o
tornam tão criativo. [...] O louco abarca todas as pos-
sibilidades (Nichols, 1993, p. 46). O aspecto criativo
evocado na carta do louco remeteu-me a pensar no
processo vivido. Estava em movimento, buscando ou-
tro lugar, querendo me acompanhar de outras figuras;
e não era externamente, era internamente. Conectei-
me com o meu lado inventivo; embora temerosa com
as rupturas produzidas, sentia-me mais inteira. Sem
dúvida, esse caminho rumo a minha inteireza e à re-
descoberta do prazer de ser educadora na universi-
dade está diretamente ligada ao meu encontro com a
dança.
Na dança Tzadik katamar, ao errarmos os pas-
sos do louco, parece que tomamos contato com sua
essência. Reconhecemos sua presença em nossa “cor-
te interior”, trazemos suas qualidades à consciência.
Depois de admiti-lo,

[...] o Louco pode oferecer-nos ideias frescas e nova


energia. Se quisermos ter o benefício da sua vita-
lidade criativa, precisamos aceitar-lhe o compor-
tamento não-convencional. Sem as observações
bruscas e os sábios epigramas do Louco, a nossa
paisagem interna poderia converter-se num de-
serto estéril. (Nichols, 1993, p. 46-47).

Ser tocada pelo arquétipo do louco significa


olhar para dentro, apropriar-se da loucura interditada
ou reprimida, soltar as amarras para voar e criar, sem
limites. Ouvir a própria voz e acreditar no seu eco e di-

68
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

reção, que podem destoar da multidão, mas em algum


lugar particular ressoa. Afirmar-se indivíduo singular.
Ao tratar da função inferior, nos termos junguia-
nos, Marie-Louise von Franz (2002, p. 19) afirma que
o tolo é uma imagem religiosa arquetípica... Ele im-
plica uma parte da personalidade humana, ou mesmo
da humanidade, que permaneceu para trás e que por
isso ainda tem a totalidade original da natureza.” A
tarefa do autoconhecimento, na jornada pessoal para
a individuação, não pode prescindir do encontro com
ele, o Louco.

O nosso louco interior nos empurra para a vida,


onde a mente reflexiva pode ser supercautelosa. O
que se afigura um precipício visto de longe pode
revelar-se um simples bueirozinho quando enfo-
cado com a volúpia do Louco. Sua energia varre
tudo o que estiver à frente, levando outras criatu-
ras de roldão como folhas impelidas por um vento
forte. Sem a energia do Louco todos seríamos me-
ras cartas de jogar. (Nichols, 1993, p. 40).

Nele, há um tênue limite entre sabedoria e ig-


norância: [...] a espontânea abordagem da vida leva-
da a efeito pelo Louco combina sabedoria, sandice e
desatino; [ele] sabe que o mais alto conhecimento é
admitir a ignorância – condição necessária de todo
saber (Nichols, 1993, p. 40). Tomando por base aquele
modo de ser da figura combinando sandice, desatino,
sabedoria, intuição, invenção, podemos compreender
a proximidade ou, como denominei, o tênue limite en-
tre loucura, sabedoria e ignorância.
Outra referência ligando o Louco à ignorância
que se transforma em sabedoria vem da simbologia
dos números. Encontramos tal referência em Cheva-
lier; Gheerbrant (1996, p. 560):

69
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

O Louco, segundo a simbologia dos números, quer


dizer o limite da palavra, o lado de lá da soma que
não é outra coisa senão o vazio, a presença supera-
da, que se transforma em ausência, o saber último,
que se torna ignorância, disponibilidade: a cultu-
ra, aquilo que fica quando tudo o mais é esquecido,
como se diz.

Conectar-se com o louco é caminho para reco-


nhecer a própria voz, reativando a intuição, reinven-
tando a vida em todas as suas dimensões, pois

[...] quando um ser humano adquire determinado


grau de auto percepção, é capaz de fazer escolhas
diferentes das da multidão e de expressar-se de
um jeito só seu. Tendo contato com o seu próprio
e verdadeiro eu, já não será presa da tagarelice de
outros eus, interiores e exteriores (Nichols, 1993,
p. 34).

Pelo avesso, na errância como possibilidade de


nos conectarmos com nossas figuras internas, no
exercício libertador de identificar nossa pergunta-o-
riginária, sigamos recriando o cotidiano acadêmico e
os modos de se fazer pesquisa. Sejamos inteiros!

Para ser grande, sê inteiro: nada Teu


exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto
és No mínimo que fazes. Assim em
cada lago a lua toda Brilha, porque
alta vive.
(Ricardo Reis/Fernando Pessoa, 1933).

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72
ayvu

Linhas, tramas,
cartografias e dobras
uma outra geografia nos
cotidianos das pesquisas

Eduardo Simonini1

Um homem se propõe à tarefa de desenhar o mundo.


Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens
de províncias, de reinos, de montanhas, de baías,
de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instru-
mentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco
antes de morrer, descobre que esse paciente
labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto
– Borges.

Os franceses Gilles Deleuze e Pierre-Félix Guat-


tari iniciaram, no final da década de 1960, uma par-
ceria intelectual improvável. Enquanto Deleuze já era
um renomado filósofo, com aclamados livros publica-
dos sobre Nietzsche, Hume e Bergson, Guattari era um
psicanalista que – apesar de próximo a Jacques La-

1
Psicólogo, Mestre em Psicologia Social, doutor em Educação, pro-
fessor adjunto no departamento de Educação da Universidade Fe-
deral de Viçosa/MG. Email: simonini198@gmail.com
73
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

can2 – não tinha formação universitária nem reconhe-


cimento nos meios intelectuais de seu país. Guattari,
por sua vez, notabilizava-se por uma ativa participa-
ção em uma clínica psiquiátrica chamada La Borde3,
por sua atuação como psicanalista e também por seu
histórico de envolvimento com diferentes processos
grupais. Tal envolvimento remontava a seus tempos
de movimento estudantil, tendo, desde então, parti-
cipado em diferentes grupos, mobilizações sociais e
intervenções sócio-políticas. Tomado numa dinâmica
hiperativa,
Guattari tanto ativava quanto era ativado em di-
ferentes ações grupais e, segundo Deleuze:

Félix sempre teve muitas dimensões, muitas ati-


vidades – psiquiátricas, políticas, trabalho de gru-
po. É uma estrela de grupo. Ou antes seria preciso
compará-lo a um mar: sempre móvel em aparên-
cia, com brilhos de luz o tempo todo. Ele pode pu-
lar de uma atividade a outra, dorme pouco, viaja,
não para.
Quanto a mim, eu seria antes como uma colina:
mexo-me pouco, sou incapaz de levar duas em-
preitadas, minhas ideias são ideias fixas e os raros
movimentos que tenho são interiores. (Deleuze,
2016, p. 249).
2
Psicanalista francês e um dos mais renomados intérpretes da
obra de Freud. Segundo Roudinesco e Plon (1998, p. 445), ele foi o
único a dar à obra freudiana uma estrutura filosófica e a tirá-la de
seu ancoramento biológico, sem com isso cair no espiritualismo.
Guattari foi, por um período de tempo, analisado por Lacan.
3
O castelo de La Borde é uma clínica psiquiátrica situada a 15 km
ao sul de Blois, na comuna de CourCheverny, França, tendo ini-
ciado suas atividades na década de 1950. Guattari começou seu
trabalho nesta clínica em 1955 e permaneceu vinculado à mesma
até o dia de sua morte, em 28 de agosto de 1992. Segundo Guattari
(2016, p. 91) ele tinha começado a estudar Farmácia, fazia cursos
de Filosofia, Psicologia, e aí abandonei tudo e comecei a trabalhar
diretamente nessa clínica.
74
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Aqueles dois homens, tão diferentes em seus rit-


mos existenciais, encontraram-se pela primeira vez
em La Borde a partir da mediação de um amigo em
comum – Jean Pierre Muyard (Dosse, 2010). Naquela
época, Deleuze estava se interessando pelo universo
da psicose e Muyard sugeriu que Guattari pudesse ser
um bom interlocutor face aos trabalhos deste último
na clínica psiquiátrica. Na ocasião, Deleuze também
vivenciava a fragilidade de sua saúde: lutava contra o
alcoolismo e igualmente se recuperava de uma cirur-
gia onde, em consequência de uma tuberculose, havia
retirado um de seus pulmões. Já Guattari lidava com
as tensões de uma relação conjugal que se encami-
nhava para o divórcio, além de vivenciar uma espécie
de bloqueio de escrita. Se por um lado muitas ideias o
tomavam, por outro não conseguia passá-las de forma
sistematizada para o papel; o que fez com que Deleuze
o estimulasse a manter um diário onde pudesse ano-
tar tudo o que lhe viesse à mente e enviasse tais ideias
a ele (Deleuze), mesmo sem qualquer correção. Parte
desse diário foi publicado em um livro póstumo (Guat-
tari, 2006) que mostra um pouco do processo criativo
de Guattari, assim como suas angústias, sonhos, refle-
xões a respeito de si, sobre sua vida cotidiana, sobre
Deleuze e também sobre os conceitos que criava.
Assim, aqueles dois homens iniciaram, no final
dos anos de 1960, um trabalho sustentado principal-
mente na troca de cartas. Quando se reuniam pessoal-
mente, tais encontros ocorriam geralmente fora de La
Borde, uma vez que, se por um lado Guattari fosse uma
estrela de grupo, Deleuze era avesso a grandes públi-
cos, preferindo um trabalho mais solitário, como um
lapidário a trabalhar uma gema. E era inclusive nesse
sentido de pedra preciosa que Gilles Deleuze conside-
rava as ideias de Guattari: para ele, os conceitos que
75
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

aquele criava eram como diamantes brutos que neces-


sitavam ser lapidados para revelar um efetivo brilho.
Trabalhando, portanto, de uma maneira prefe-
rencialmente epistolar, em 1972 eles publicaram um
livro intitulado O Anti-Edipo (Deleuze; Guattari, 2010).
Tal livro se constitui basicamente numa crítica ao mo-
delo de inconsciente postulado por Sigmund Freud,
que possui uma de suas sustentações na lógica do te-
atro edipiano: como se a humanidade encenasse, des-
de os seus primórdios, o mito de Édipo na construção
não apenas das relações familiares, mas também na
constituição do psiquismo e da cultura. Roudinesco
(2008, p. 281) resume da seguinte forma essa questão:

Freud considerava que o complexo de Édipo estava


inscrito no âmago da personalidade humana e que
sua estrutura triangular verificava-se nas mais
diversas culturas. Em sua forma positiva tinha a
ver com o desejo de morte em relação ao rival do
mesmo sexo e com o desejo sexual pela pessoa do
sexo oposto; em sua forma negativa, com o amor
pelo progenitor do mesmo sexo e com o ciúme em
relação ao progenitor do sexo oposto. Nessa pers-
pectiva, a estrutura triangular do complexo obti-
nha eficácia da proibição do incesto. Dito de outro
modo, essa proibição era, para Freud, a condição
de toda cultura: o incesto era um fato antissocial
ao qual a humanidade tivera que renunciar para
poder existir.

Daí que o complexo de Édipo se tornava um ele-


mento fundamental – uma grande narrativa (Lyotard,
2008) – para a constituição do psiquismo e da cultu-
ra, pois a proibição do incesto seria responsável pela
criação do núcleo do Superego, uma instância psíqui-
ca articuladora dos limites inconscientes que possi-
bilitariam o convívio em sociedade.

76
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Contudo, questionando a primazia e a universa-


lidade desse teatro edipiano na fundação da existên-
cia humana, Deleuze e Guattari propuseram um outro
modelo para o psiquismo: o inconsciente-máquina.
Este não seria a reprodução ad infinitum de uma ar-
quetípica tragédia grega, mas a maquinação contínua
e inventiva de composições tantas vezes caóticas.
Contudo, se a imagem do inconsciente funcionando
como uma narrativa teatral é substituída, em Deleu-
ze e Guattari, pela imagem de um inconsciente que
se articula às lógicas produtivas de uma máquina, é
importante se fazer a ressalva de que a dimensão do
maquínico para eles não se reduz à fabricação de um
objeto em si, mas à multiplicação de composições
colocadas em movimento entre objetos, independen-
temente de os mesmos serem qualificados como bio-
lógicos, sociais, mecânicos, linguísticos, abstratos ou
tecnológicos. Argumentaram, portanto, que:

O que chamamos de maquínico é precisamente


essa síntese de heterogêneos enquanto tal. Visto
que esses heterogêneos são matérias de expres-
são, dizemos que sua própria síntese, sua consis-
tência ou sua captura, forma um enunciado, uma
enunciação propriamente maquínica. As relações
variadas nas quais entram uma cor, um som, um
gesto, um movimento, uma posição, numa mesma
espécie ou em espécies diversas, formam outras
tantas enunciações maquínicas. (Deleuze; Guatta-
ri, 1997, p. 143).

O que se compõe com as palavras do poeta Ma-


noel de Barros, quando este declarou: Prefiro as má-
quinas que servem para não funcionar: quando cheias
de areia de formiga e musgo – elas podem um dia mi-
lagrar de flores (Barros, 2010, p. 342).

77
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Barros, em seu versar, descreve uma trama ma-


quínica – e não uma conexão mecânica – entre a for-
miga, o musgo, a areia, o clima e o artefato tecnológico
que parece entregue a outros funcionamentos que não
à produção serializada. A flor que surge é uma enun-
ciação maquínica, não sendo compreendida como
exterior aos agenciamentos que possibilitaram sua
existência.
Maquínico, portanto, não é o artefato tecnológi-
co que serve como substrato para o musgo, a formiga,
a areia e a semente; por maquínico podemos enten-
der a própria trama entre esses elementos distintos
e díspares, na qual podem vir a serem engendrados
mundos que não se encontravam pré-programados ou
necessariamente envolvidos numa relação temporal,
geográfica, linear e/ou causal. Por sua vez, cada um
desses elementos é igualmente uma pequena máqui-
na, sendo assim qualificado não porque seja meca-
nizado, mas porque só existe aberto a composições,
a agenciamentos, a fluxos e cortes dessas mesmas
composições e fluxos.
Por sua vez, em O Anti-Édipo – e nas outras
obras que compuseram juntos4 – mais do que uma
crítica à redução do inconsciente e do social ao teatro
familiarista do complexo de Édipo, Deleuze e Guattari
colocaram em movimento uma maneira outra de pro-
blematizar o entendimento do que seja a realidade.
Consideraram eles que a realidade, enquanto produ-
ção maquínica, não se sustentava em nenhuma es-
sência, em nenhuma verdade inaugural, em nenhum
fundamento centralizador e em nenhuma consciên-
cia transcendente a dar um destino unificado ao uni-
verso. Ao contrário disso, propuseram que a realidade
4
Além de O Anti-Édipo, escreveram Kafka: por uma literatura me-
nor, Rizoma, Mil Platôs e O que é filosofia?.
78
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

não é necessariamente um lugar, mas um processo de


composições plurais a tramarem mundos. As signi-
ficações, as políticas, as estéticas, as linguagens, os
sujeitos... surgiriam como transitórios nódulos nessas
tramas, no dobrar das linhas de um rizoma.
O conceito de rizoma, por sua vez, foi roubado
por Deleuze e Guattari da Botânica, onde este é com-
preendido como sendo um caule modificado que fun-
ciona como uma reserva de energia da planta. A ima-
gem que um rizoma traz é a da filiação com tramas e
não necessariamente com enraizamentos, o que faz
da grama um exemplo dessa dinâmica, uma vez que
não existe um ponto central a definir um fundamen-
to originário àquele vegetal, mas linhas a comporem
trajetórias diversificadas. Não há, em um gramado,
um núcleo totalizador: ele é uma malha rizomática.
Assim, ao se pesquisar a dinâmica de um rizoma, não
seria mais a questão de buscar pela profundeza e/ou
pontos de origem das raízes, mas de seguir as linhas
que se emaranham na construção de tramas cujas tra-
jetórias são ativadas e/ou abortadas no processo vivo
e maquínico de composições, rupturas e alianças.
É, pois, como um dos princípios do rizoma que
Deleuze e Guattari apresentam o conceito de carto-
grafia, sendo este roubado, por sua vez, da Geografia.
Como conceito geográfico, a cartografia se refere a
uma representação gráfica de uma superfície com in-
tenção de se construir um mapa. Sendo assim, Deleu-
ze e Guattari propuseram que se as malhas rizomáti-
cas não possuem profundezas a serem escavadas, são
elas, porém, engendradas em linhas de intensidades
diversas (biológicas, políticas, linguísticas, econômi-
cas, estéticas, etc.) a indicarem movimentos que tra-
çam um mapa de intensidades e afetos no compor de
territórios existenciais. E, para seguir essas malhas
79
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

em rizoma, os referidos autores sugerem que se torna


necessário:

[...] instalar-se sobre um estrato, experimentar as


oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um
lugar favorável, eventuais movimentos de desterri-
torialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las,
assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experi-
mentar segmento por segmento dos contínuos de
intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de
uma nova terra. (Deleuze; Guattari, 1996, p. 23-24).

Fazer uma cartografia para eles seria, portanto,


seguir os trajetos que articulam linhas de subjetiva-
ção que – em suas aproximações, acelerações, dis-
tanciamentos e filiações – produzem uma nova terra.
É nesse contexto que Rolnik (1989, p. 15-16) também
considera que:

A cartografia nesse caso acompanha e se faz ao


mesmo tempo que o desmanchamento de certos
mundos – sua perda de sentido – e a formação de
outros [...]. Sendo tarefa do cartógrafo dar língua
para afetos que pedem passagem, dele se espera
basicamente que esteja mergulhado nas intensi-
dades de seu tempo.

Assim, praticar uma cartografia no processo de


pesquisar paisagens sociais não consiste na tarefa de
re-apresentar a realidade, uma vez que o próprio con-
ceito de realidade – enquanto dimensão independente
do pesquisador – é questionado. Ao contrário da tarefa
de representação, a proposta de uma cartografia é a de
seguir linhas que, em seu tramar, compõem mundos
imanentes ao próprio viver. Então, no movimento de
cartografar realidades, temos que o que está em jogo é
algo muito mais complexo do que reduzir a dinâmica
cartográfica a um método de pesquisa. Isso porque, no
80
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

processo da cartografia, não basta ao pesquisador se


munir de instrumental metodológico; a principal ati-
tude que o mesmo deve assumir é tanto epistemoló-
gica quanto existencial, ao considerar que não existe
um mundo independente das tramas que o tecem.
Esta é inclusive uma das principais diferenças
entre a prática da cartografia e da etnografia. Ambas
buscam descrever relações e processos sociais no
calor do cotidiano; contudo, se na etnografia se pre-
tende descrever densamente – e com distanciamento
etnocêntrico – uma realidade social, no processo de
se praticar cartografia, a principal preocupação não
é a de descrever a realidade de um grupo, mas a de
acompanhar os processos múltiplos que ativam mo-
vimentos singulares de produção de realidade e seus
consequentes regimes de verdade. Enquanto a etno-
grafia preferencialmente descreve uma estrutura de
realidade, a cartografia se pretende a seguir linhas
de produção de realidades. Por sua vez, o cartógrafo
é partícipe das próprias linhas que ele segue, sendo
um efetivo praticante das composições de realidade
que ele pretende descrever. É como problematiza Um-
berto Eco, a partir de seu personagem Guilherme de
Baskerville:

Como posso descobrir a ligação universal que tor-


na ordenadas as coisas se não posso mover um
dedo sem criar uma infinidade de novos entes,
uma vez que com tal movimento mudam todas as
relações de posição entre o meu dedo e todos os
demais objetos? As relações são os modos pelos
quais a minha mente percebe a relação entre entes
singulares, mas qual é a garantia de que esse modo
seja universal e estável? (Eco, 2003, p. 201).

Se o personagem de Eco se angustia na busca


de um universal enquanto vivencia uma realidade que
81
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

foge de seus dedos a cada novo movimento no qual ele


se compromete, um cartógrafo já assume a impossibi-
lidade do absoluto. Ou seja, numa pesquisa cartográ-
fica realiza-se um acoplamento entre o pesquisador,
seu campo de intervenção e as relações com as quais
ele e o campo celebram núpcias, o que faz com que a
realidade se construa, na pesquisa, de forma contin-
gente ao flanar do cartógrafo e não como uma experi-
ência exterior a esse caminhar. Na melhor definição
feita por João do Rio, flanar é:

[...] um verbo universal sem entrada nos dicioná-


rios, que não pertence a nenhuma língua! Que sig-
nifica flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é
ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação
ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã,
de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, ad-
mirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir
com os garotos o lutador do Cassino vestido de tur-
co, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das
lanternas mágicas, conversar com os cantores de
modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ou-
vido dilettanti de casaca aplaudirem o maior tenor
do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos
pintados a giz nos muros das casas, após ter acom-
panhado um pintor afamado até a sua grande tela
paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar
absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego,
para deixar de lá ir, levado pela primeira impres-
são, por um dito que faz sorrir, um perfil que inte-
ressa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja.
É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de
perambular com inteligência. (Rio, 2007, p. 17-18).

Desta maneira, mais do que um método com


procedimentos específicos, a cartografia diz respeito
a um flanar como atitude de investigação, no seguir
uma geografia dos encontros, das vizinhanças, de um
campo-potência que faz agenciar afetos no tramar re-
82
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

alidades. Não seria, pois, uma ferramenta para repre-


sentar o real, mas sim uma proposta de acompanhar
processos de produção de realidades, inclusive os
processos que o próprio investigador coloca em movi-
mento quando se propõe a observar e a intervir. Como
ensinou Kastrup (2010), uma intenção cartográfica de
pesquisa se atém mais no acompanhar processos do
que no representar um objeto; se enovela mais nas
questões sobre o que está acontecendo? e que tramas
estão sendo ativadas ou abortadas? quando no agen-
ciar de diferentes linhas de subjetivação.
Portanto, uma atitude cartográfica de pesquisa
não estaria à busca da verdade de um fenômeno, mas
comprometida com o acompanhar mundos que, mes-
mo através de linhas provisórias, traçam e/ou estabi-
lizam efeitos de mundos-verdade. A imagem a seguir
é ilustrativa dessa concepção de linhas que compõem
mundos.

Árvore (Luciana Rosado) – Fonte: arquivo pessoal.

83
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

A árvore, emergente no traçado entre barbantes,


é fabricada no encontro de linhas, na trama de linhas,
na multiplicidade de linhas. Diante do quadro apre-
sentado, faço minhas as indagações levantadas por
Ingold (2012, p. 28): o que é árvore, e o que não é árvo-
re? Onde termina a árvore e começa o resto do mun-
do? Essas não são questões fáceis de responder. Não
são questões de fácil resposta porque a árvore emerge
da/na trama e não como um objeto neutro e indepen-
dente, só existindo, portanto, como efeito de proces-
sos que não se reduzem a apenas uma linha, mas se
expandem na composição de linhas plurais a compor
uma experiência de realidade que denominamos árvo-
re. Ignorando a trama, muitos ficarão restritos à re-
presentação da árvore como sendo um objeto unitá-
rio, fixo, identitariamente localizado. Os cartógrafos,
porém, estão mais interessados em seguir as linhas
que compõem o objeto: linhas históricas; linhas nar-
rativas; linhas vegetais; linhas de políticas públicas;
linhas das políticas ambientais; linhas econômicas;
linhas das redes fluviais; linhas dos insetos, musgos,
fungos, líquens; linhas-nós que estagnam processos;
enfim, linhas em movimento que compõem uma esta-
bilidade cognitiva e identitária a que nos acostuma-
mos chamar de “árvore”. A postura de cartógrafo – ao
suspeitar da fixidez tanto das identidades quanto da
própria realidade – faz alianças com aquelas do bió-
logo chileno Francisco Varela, quando este sustentou
que:

[...] há múltiplos lugares de onde se configuram


essas identidades emergentes, todos os níveis em
que se pode constituir uma identidade e que se im-
bricam uns com os outros de maneira que não é
justamente nem hierárquica, nem de uma causa-
lidade simples. O que somos agora é a imbricação
84
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

de todas essas múltiplas determinações. [...] Desse


modo, quando se faz a pergunta, biologicamente:
o que é um organismo?, a única resposta que vejo
é que na realidade um organismo não é uma coi-
sa, mas sim o lócus onde ocorrem todas as emer-
gências [...], em muitos níveis, celular, imunitário,
neuronal, linguístico, social; e todos estes ocorrem
simultaneamente sem que haja um lugar referen-
cial. Logo, a experiência de um sujeito humano
não se situa em um lugar preferencial, mas em
toda parte. (Varela, 1993, p. 95-96).

Argumentos estes que também fazem ressonân-


cia com os do romancista Somerset Maugham, quan-
do considera que o desafio de entender uma experi-
ência de uma vida consiste em abordá-la mais pela
complexidade dinâmica do conteúdo do que pela fixi-
dez da forma, pois:

É difícil a gente compreender bem as criaturas e


não creio que possamos conhecer ninguém a fun-
do [...]. Pois os homens não são somente eles; são
também a região onde nasceram, a fazenda ou o
apartamento da cidade onde aprenderam a andar,
os brinquedos que brincaram quando crianças, as
lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de
que se alimentaram, as escolas que frequentaram,
os esportes em que se exercitaram, os poetas que
leram e o Deus em que acreditaram. Todas essas
coisas fizeram deles o que são, e ninguém pode co-
nhecê-las somente por ouvir dizer; é preciso sen-
ti-las. (Maugham, 2003, p. 6-7).

Assim, por seguir as linhas que compõem a di-


versidade de uma experiência existencial – mais em
seu conteúdo rizomático do que em seu formalismo
identitário –, o significativo numa pesquisa de inten-
ção cartográfica não seria o instrumental metodoló-

85
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

gico em si, mas o abraçar uma perspectiva ético-es-


tética de assumir a realidade como malha rizomática
imanente ao viver. É diante disso que temos que, no
fazer uma cartografia, não há um instrumento espe-
cífico de pesquisa, podendo o cartógrafo se utilizar de
metodologias derivadas da etnografia (em sua des-
crição densa de uma cena social), do diário de campo
(outro recurso da etnografia), da análise de conteúdo,
do método bola de neve, da análise do discurso, da
análise documental, de questionários, de observação
participante, de entrevistas, de grupos focais, de pes-
quisas quantitativas, entre outros tantos métodos já
legitimados nas pesquisas sociais. Mas, como dito,
mais significativo que a ferramenta metodológica a
ser utilizada é não se perder de vista de que a pers-
pectiva de intenção cartográfica consiste em um mo-
vimento de pesquisa que em nada está comprometido
com promessas de validação de realidade ou estabe-
lecimento de verdades. Mais do que validar verdades,
a proposta consiste em seguir efeitos de verdade que
validam determinada produção circunstancial de
constâncias que chamaremos de real. Essas constân-
cias se referem à estabilização de uma identidade; de
uma dobra de subjetivação.
Como diz Deleuze (1991, p. 105), uma dobra de
subjetivação é exatamente como a invaginação de um
tecido na embriologia ou a feitura de um forro na cos-
tura: torcer, dobrar, cerzir. Emergente de uma trama ri-
zomática que se dobra a exemplo de um origami5, uma
realidade se institui nas dobraduras feitas nas tramas
sociais por práticas normativas, conjunto de saberes,
histórias coletivas e experiências singularizadas, que

5
Prática artística oriental em que figuras, objetos e paisagens to-
mam forma a partir das dobraduras feitas em uma folha de papel.
86
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

configuram a vivência de ser algo, de ter um território


identitário e a sensação de uma alma privativa. Rose
(2001, p. 182-183), abordando essa questão da dobra
enquanto produção de realidade, argumenta que:

O que é invaginado é composto de qualquer coi-


sa que possa adquirir o status de autoridade em
um agenciamento particular. As maquinações da
aprendizagem, da leitura, do querer, do confessar,
do lutar, do andar, do vestir, do consumir, do curar
invaginam uma certa voz (a do sacerdote, a de
nosso médico ou a de nosso pai), uma certa invo-
cação de esperança ou medo (você pode se tornar
o que você quiser ser), uma certa forma de ligar um
objeto com um valor [...], um certo pequeno hábito
e uma técnica de pensamento (morda a bala, olhe
antes de saltar, autocontrole é tudo, é bom parti-
lhar os próprios sentimentos), uma certa conexão
com um artefato dotado de autoridade (um diário,
um dossiê ou um terapeuta).

As realidades seriam, portanto, dobras de agen-


ciamentos heterogêneos e complexos que transbor-
dam para além dos condicionamentos sociais, econô-
micos e dos traumas psíquicos. Enquanto praticantes
de mundos e cartógrafos de realidades, falamos e
pensamos em meio a essas dobras com as quais fa-
zemos núpcias na composição de uma experiência de
mundo em meio aos encontros que produzimos, às co-
nexões que mantemos ativas, aos agenciamentos ma-
quínicos que nos produzem uma vida. Construindo-se
ao nível de uma dobra, toda produção de realidade or-
ganiza modos específicos de existir e de conceber um
mundo. É importante, porém, ressaltarmos que cada
dobra não é correspondente a um ponto de vista a
produzir uma interpretação da realidade. Cada dobra
é verossímil, verdadeira, intensa e real em si mesma,

87
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

não havendo nada a ser revelado para além das linhas


que organizam sua consistência. O que não impede
que mundos entrem em zonas de interseção, criando
mestiçagens que se ramificam em outras dobras, em
outras maneiras de invaginar uma experiência exis-
tencial que, diferentemente de ser um modo de estar
no mundo, compreende um modo de estar com um
mundo. Portanto, numa mesma cena social coexisti-
riam múltiplos mundos, que não necessariamente se
comunicam, se reconhecem ou se validam.
Assim, quando praticamos cartografias em uma
pesquisa, consideramos essas dobras como sendo di-
ferentes regimes de realidade, onde uma mesma cena
cotidiana comporta múltiplas composições de sen-
tido, múltiplos mundos não necessariamente sensí-
veis a todos os olhares e racionalidades. Um exemplo
simples disso eu encontrei quando tive a oportunida-
de de participar da defesa de doutorado da pesquisa-
dora Márcia Eliana Martins, na Universidade Federal
de Viçosa/MG. Em sua pesquisa, que versava sobre a
viabilidade das cooperativas de crédito rural solidá-
rio, ela vivenciou uma experiência a partir do inusi-
tado encontro que ativou com as unhas daqueles que
ela entrevistava. Márcia se deixou afetar por aquele
elemento aparentemente insignificante e que, num
primeiro momento, nada tinha a ver com a pesquisa
que desenvolvia. Não praticava uma pesquisa carto-
gráfica, mas conduziu, a partir das unhas, uma proble-
matização cartográfica no instante em que resolveu
problematizar tramas que se engendravam aos modos
como diferentes personagens da cena social analisa-
da tratavam suas próprias unhas.
Ela, contudo, não sabia onde colocar, no corpo da
tese, seu emaranhado de pensamentos a respeito das
unhas, considerando-os inclusive pouco científicos,
88
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

já que a cena narrada era composta a partir de suas


próprias sensações e incômodos. Mas, afetada, achou
que aquela experiência tinha que ficar registrada em
algum lugar, e a situou na epígrafe dos apontamentos
finais de seu trabalho. Transcrevo aqui a referida epí-
grafe:

Depois de uma longa manhã de entrevistas, per-


cebi que uma das marcas comuns entre os agri-
cultores que entrevistei eram as unhas. Me dei
conta que em cada conversa, num determinado
momento, me pegava olhando, sem intenção ou
propósito, as mãos dos entrevistados e, conse-
quentemente, as unhas. Quase todos, ou melhor,
todos os que observei, entre diretores, agentes de
crédito e associados, tinham as unhas corroídas,
curtas, no talo do dedo e sempre, sempre com res-
tos de terra. Na parte da tarde, durante a atividade
de formação (o Encontro com as Lideranças Lo-
cais), estava prestando atenção à apresentação e,
num movimento que o coordenador da atividade
fez com a mão, suas unhas brilharam contra a luz.
E eu pensei: ele faz unha! – como um pensamento
solto, talvez para espantar o sono, enganar o can-
saço. Mas, resolvi olhar mais atentamente. A unha
dele reluzia como se estivesse com base. No fun-
do, pensei, isso também não era foco da pesquisa
e eu acabei deixando para lá. Contudo, no retorno
para casa, naquele momento em que as experiên-
cias do dia se assentam em nossa consciência e
é possível realizarmos as ligações entre os fatos,
as duas imagens, tanto das unhas cortadas e tão
limpas que reluziam quanto das unhas dos agri-
cultores – gastas pela lida do dia a dia e sujas da
terra –, uma em frente à outra, permitiram a ob-
servação do ponto de vista do contraste, sobretudo
considerando que todos os dirigentes do Sistema
Cresol, em qualquer atividade em que estejam, se
apresentam como agricultores familiares (Diário
de campo, julho de 2015). (Martins, 2016, p. 185).
89
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

As unhas eram elementos insignificantes quan-


do pensamos no tema da tese e nos desdobramentos
políticos e sociais nos quais a pesquisadora se debru-
çava na construção do trabalho. Porém, uma atitude
cartográfica de pesquisa não menospreza as insignifi-
câncias, uma vez que concebe que as unhas indicadas
também se tecem na malha rizomática que compõe as
realidades dos cooperados pesquisados. Assim, caso
nos aventuremos a seguir as tramas em meio às quais
as unhas se engendram, encontraremos possivelmen-
te diferentes dobras de subjetivação a enunciarem re-
gimes de poder, diferentes modos de produzir reali-
dade com o campo, com a economia, com a estética,
com as famílias, com relações de gênero e de trabalho,
dentre outras.
Acompanhar uma malha rizomática nos coloca,
portanto, na trama de múltiplas camadas de textuali-
dades, narrativas, políticas, estéticas, sensibilidades
e discursos que se dobram sobre si mesmas como um
palimpsesto6. Nesse sentido, ao se praticar a cartogra-
fia numa pesquisa, acompanhamos diferentes tramas
de mundos que se imbricam mutuamente, criando
uma diversidade de realidades – diferentes dobras de
subjetivação – dentro de um mesmo espaço social, no
engendrar de uma complexa costura de vida.

Eu tentei compreender a costura da vida; me


enrolei, pois a linha era muito comprida. Mas como
é que eu vou fazer para desenrolar, se na linha do
céu sou estrela, na linha da terra sou rei, na linha
das águas sou triste pelo fogo que um dia apaguei.
Na linha do céu sou estrela, na linha da terra sou rei,

6
Palimpsesto designa um pergaminho ou papiro cujo texto foi
raspado para permitir a reutilização. Sendo um texto que contém
vestígios de outro, temos que num palimpsesto os textos se sobre-
põem, formando camadas narrativas.
90
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

mas na linha do fogo sou triste pelos mares que não


naveguei
(Sérgio Pererê – Costura da vida – https://www.you-
tube.com/watch?v=ilBG4Bjojxc)

Referências
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BORGES, J. L. Obras Completas. São Paulo: Globo, vol. 2, 1999.
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. Dois regimes de loucos: textos e entrevistas (1975-
1995). São Paulo: Ed. 34, 2016.
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criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropoló-
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cartógrafo. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (orgs.).
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MARTINS, M. E. Sujeitos rurais e organizações de coopera-
tivismo de crédito rural solidário: (des)caminhos, (im)pos-
sibilidades e (re)invenções. Tese (Doutorado em Extensão

91
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Rural) - Universidade Federal de Viçosa, 2016.


MAUGHAM, W. S. O fio da navalha. São Paulo: Folha de São
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ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
ROUDINESCO, E. Jacques Lacan: esboço de uma vida, his-
tória de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.

92
ayvu

Cartas e conversações
uma experiência de pesquisaescrita
na diferença

Daiana Pilar Andrade de Freitas Silva1


Anelice Ribetto2

Entrando na conversa: uma abertura


...uma conversa não é algo que se faça, mas algo que
se entra...e ao entrar nela, pode-se ir aonde não ha-
via sido previsto...e essa é a maravilha da conversa...
– Jorge Larrosa.

Este trabalho é um desdobramento de muitas


conversas, nas quais entramos ao longo do curso de
1
Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção: Processos Formativos e Desigualdades Sociais da UERJ/FFP.
Professora de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) do Ins-
tituto Benjamin Constant (IBC). daianapilar@hotmail.com
2
Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense
(UFF). Professora Associada do Departamento de Educação da Fa-
culdade do Formação de Professores (UERJ/FFP/DEDU) da Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro. Atua em projetos de ensino,
pesquisa e extensão na Licenciatura em Pedagogia e coordena o
Programa de Pós-Graduação em Educação - Processos formativos
e desigualdades sociais, na Linha Políticas, Direitos e Desigualda-
des. anelatina@gmail.com
93
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Mestrado em Educação, junto aos encontros semanais


com o Coletivo Diferenças e Alteridade na Educação3.
Conversas estas que possibilitaram a produção da dis-
sertação intitulada Entre Cartas e conversações: uma
experiência literária nos encontros com crianças com
cegueira (Silva, 2018), orientada pela professora Ane-
lice Ribetto na Universidade do Estado do Rio de Ja-
neiro, no bojo do Programa de Pós-graduação: Proces-
sos Formativos e Desigualdades Sociais. Colocamos
em questão a experiência de produção de uma disser-
tação que problematiza os efeitos dos encontros com
crianças com cegueira, estudantes do Instituto Ben-
jamin Constant (IBC) e, também, a necessidade de um
pesquisarescrever outro que nos permita explicitar o
que nos passa nos encontros, nas conversas: na di-
ferença. Trata-se de uma conversa interrompida por
outras conversas, que talvez possa nos permitir ou-
tras interrupções, onde outros sujeitos possam entrar
e, nos mesmos, continuarmos a transitar de modos
outros, imprevisíveis.
Como metodologia possível para o trabalho dis-
sertativo, pensamos no exercício cartográfico. Carto-
grafar nos permite acompanhar um processo e criar

3
Coletivo “Diferenças e Alteridade na Educação” é um coletivo
criado em 2011 que, atualmente, reúne professores da escola bási-
ca, professores e estudantes da Faculdade de Formação de Profes-
sores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, gestores das
redes públicas de ensino e famílias de alunos ditos “pessoas com
deficiências”. No coletivo desenvolvemos projetos de pesquisa, de
ensino e de extensão vinculados ao Departamento de Educação
(http://www.ffp.uerj.br/) e ao Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação: Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculda-
de de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (http://ppgedu.org/). Disponível em: <https://www.fa-
cebook.com/pg/Coletivo-DiFeren%C3%A7as-e-Alteridade-na-Edu-
ca%C3%A7%C3%A3o-272571673092768/about/?ref=page_internal>.
Acesso em: 30 mai. 2017
94
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

formas de dizer, narrar, expressar os efeitos dos en-


contros entre nós. O Cartógrafo é um verdadeiro an-
tropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e
desovar, transvalorado. Está sempre buscando ele-
mentos/alimentos para compor suas cartografias
(Rolnik, 1989, p. 2). Dessa forma, o exercício cartográ-
fico foi se compondo de modo processual, no encontro
com o campo de pesquisa, com as crianças com ce-
gueira, nas conversas com os autores e nos encontros
com o coletivo.

A processualidade se faz presente nos avanços e


nas paradas, em campo, em letras e linhas, na es-
crita [pesquisaescrita] em nós. A cartografia par-
te do reconhecimento de que o tempo todo esta-
mos em processos, em obra. O acompanhamento
de tais processos depende de uma atitude, de um
ethos, e não está garantida de antemão. (Barros;
Kastrup, 2009, p. 73).

A atitude, forma de ser e se colocar eticamen-


te na pesquisaescrita nos permitiu estar disponíveis
para pensar seu contorno metodológico e escriturís-
tico, que se traduziu como um ensaio. O ensaio como
efeito do próprio exercício cartográfico e que também
tem a ver com a experiência literária, que se forja nos
encontros com crianças com cegueira. Um ensaio
composto em cartas a uma amiga e conversações.
Uma experiência modificadora de si:

Pode se dizer, talvez, que o ensaio é uma atitude


existencial, um modo de lidar com a realidade, uma
maneira de habitar o mundo, mais do que um gê-
nero de escrita. Pode se dizer, talvez, que o ensaio
é o escrito precipitado de uma atitude existencial
que, obviamente, mostra enormes variações histó-
ricas, contextuais e, portanto, subjetivas. Pode-se

95
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

dizer, talvez, que o ensaio é uma determinada ope-


ração no pensamento, na escrita e na vida, que se
realiza de diferentes modos em diferentes épocas,
em diferentes contextos e por diferentes pessoas.
Poder-se-ia dizer, talvez, que o ensaio é o modo ex-
perimental do pensamento, o modo experimental
de uma escrita que ainda pretende ser uma escri-
ta pensante, pensativa, que ainda se produz como
uma escrita que dá o que pensar; e o modo experi-
mental, por último da vida, de uma forma de vida
que não renuncia a uma constante reflexão sobre
si mesma, a uma pensante metamorfose. (Larrosa,
2004, p. 32).

O ensaiar permite desnaturalizar, estranhar o


presente e é esse movimento que produz o desloca-
mento daquilo que já está dado, do instituído, para
pensar sob outras perspectivas. Desta forma, apresen-
tamos uma pesquisaescrita organizada de um modo
outro: entre cartas a uma amiga e conversações que
anunciam sentimentos e pensamentos, experiencia-
dos nos movimentos da vida.

As cartas e as conversações
O modo como a dissertação foi composta diz res-
peito a uma tomada de posição onde nos colocamos
politicamente implicadas. Assim, na experiência da
pesquisaescrita transitam algumas cartas escritas a
uma amiga e também outras conversações. Ambas
produzidas em meio ao desejo pelos encontros:

É no encontro, nesse meio de proliferação, que os


corpos expressam sua potência de afetar e ser afe-
tado. É nele que o desejar flui e cria mundos agen-
ciando modos de expressão e a conectividade da
vida em sua múltiplas experimentações. (Neves, p.
69, 2015).

96
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Assim nos encontramos com a escrita, com a re-


lação de amizade, com um coletivo, com autores, ter-
ritórios, crianças com cegueira e também com os efei-
tos provocados nos próprios pensamentos. As cartas
a uma amiga expressam a experiência com outros,
no território escolar, onde narramos os pensamentos
e inquietações que os encontros provocam. Elas se
apresentam na pesquisa como dispositivos que, se-
gundo Deleuze (1996), são máquinas de fazer ver e de
fazer falar (p. 83). Os dispositivos são:

...um conjunto decididamente heterogêneo que en-


globa discursos, instituições, organizações arqui-
tetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposi-
ções filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o
dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre
esses elementos. (Foucault, 1979, p. 244).

A carta assumida como um dispositivo que car-


rega no papel aquilo que fazemos em nosso cotidiano:
as conversas, os encontros... Para além disso, carre-
gam, ainda, a expressão do dito e do não dito, a relação
que se pode estabelecer entre esses elementos e os
efeitos produzidos no campo de pesquisaescrita e seu
próprio movimento.

São Gonçalo, 21 de fevereiro de 2018.

Querida amiga,

Quero compartilhar contigo o dia de hoje. Qua-


lifiquei! Lembra que havia lhe contado que compar-
tilharia algumas das cartas que lhe envio na compo-
sição de minha dissertação de mestrado? Pois bem,
compartilhei ao produzir o meu texto de qualifica-

97
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

ção, enviei para banca e aguardava ansiosa pelo dia


de hoje. Foram muitas as contribuições... Estou feliz!
Mas quero lhe falar especificamente de um dos efei-
tos deste dia, um dentre os muitos que me marcaram
e que, de certo modo, tem a ver contigo: minha amiga.
Nossa amizade despertou a curiosidade de al-
guns. É... me perguntaram por ti. Deste modo, retornei
para casa pensando em você. No que você é para mim
e no que somos.
Quando penso em ti, já não imagino um corpo,
com forma e características palpáveis. Quando pen-
so em ti penso para além do concreto... e penso. Pen-
so nesse movimento de pensar. Acho tão difícil isso.
Como dizer? Como explicar? Não direi. Já não preci-
so... Você sabe. Você é a amizade!
Amizade que permite o encontro na diferença.
Não somos iguais... Por isso lhe escrevo pra compar-
tilhar experiências, para conversar, pensar, experi-
mentar, divergir.
Acho que ainda terei muito a dizer, não sobre
você, mas sobre os efeitos do que lhe escrevo em
mim. É... terei um bom trabalho pela frente.

Um grande abraço,
Daiana Pilar.
(Silva, 2018, p. 43).

Ao trazer cartas a uma amiga na produção do


texto, pensamos nelas como aliadas no processo de
criação, implicando-nos no processo da pesquisaes-
crita e no acompanhamento de seus efeitos. Efeitos
expressados no processo de produção da pesquisaes-
crita e também na produção da materialidade do pa-
pel em que foram escritas as cartas a uma amiga que
expressa, também, o modo ensaístico e artesanal em
que a pesquisaescrita foi composta.

98
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

O ensaio permite uma escrita de cacos. Cacos


[sobras] do que se partiu, cacos [sobras] do que
foi jogado fora, do que foi abandonado, do que foi
substituído por uma moda ou pela gulodice de um
consumo desmesurado. Cacos [sobras] que podem
ser reutilizados, recuperados para emergir em ou-
tra coisa. (Ribetto, 2009, p. 22).

Nesse sentido, para escrita das cartas a uma


amiga, foi produzido um papel reutilizado, feito pelos
restos, produzido pelas sobras dessa pesquisaescrita
que, ao serem recuperados, se transformaram em ou-
tra coisa, tornando-se outro. Ou seja: no decorrer do
processo da pesquisaescrita fomos escrevendo, ras-
cunhando, delineando em cadernetas, guardanapos,
papéis de chocolates, folhas soltas, imprimindo um
monte de textos nas diferentes disciplinas cursadas
etc. Isso tudo não foi jogado fora como um resto im-
produtivo, mas, ao contrário, ao misturar esses cacos
ou restos de papéis com água, foi deixado de molho de
modo a se decompor, utilizamos uma tela para nova
composição e, assim, foi reinventado o material em
que as cartas para uma amiga foram escritas. Esse
investimento como um gesto de quem faz alquimia
constitui uma expressão do que política, ética e este-
ticamente desejamos forjar a partir da pesquisaescri-
ta. Assim como nos coloca Dias (2016):

Ético, porque abre-se à possibilidade de fazer es-


colhas, produzindo desmanchamentos de formas
dadas. Estético porque faculta a criação de uma
vida bela e livre nas ligas da constituição de uma
arte, pelo plano dos afetos e perceptos. Político
porque desejamos forjar encontros e poder tecer
uma conversa para, talvez, enfrentar o desafio de
formar e pesquisar mantendo vivo um campo pro-
blemático, apostando na condição e possibilidade
de diferir do que somos. (p. 118).
99
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

No sentido de potencializar essa possibilidade


de diferir do que somos é que as cartas foram endere-
çadas a uma amiga. São cartas que não estabelecem
em si uma relação de correspondência de ida e volta,
mas nos permitem pensar na amizade como relação
de alteridade, uma relação ética [...] entendida como
relación de alteridad, como semántica de la cordiali-
dad, como praxis de la amistad (Mèlich, 2006, p. i)4. Ao
direcionar as cartas a uma amiga, problematizamos a
própria relação de amizade, colocando-a como máxi-
ma expressão da diferença. Relação livre que aponta
para o desafio e para incitação recíproca, e não para
submissão ao outro (Ortega, 1999, p. 168), portanto,
possível de romper com modelos pré-estabelecidos.
As conversações enunciam o exercício de pen-
sar as experiências expressadas nas cartas a uma
amiga, expressando os sentimentos produzidos nos
encontros. Encontros que expressam em si também
a dimensão da conversa, pois é no encontro que a
conversa se produz enquanto possibilidade de proble-
matizar, de formular nossas próprias questões. Como
afirmam Deleuze e Parnet (2004):

Um encontro é talvez o mesmo que um devir ou


umas núpcias. É do fundo dessa solidão que se
pode dar qualquer encontro. Encontram-se pesso-
as (e por vezes sem as conhecer nem as ter jamais
visto), mas também movimentos, ideias, aconte-
cimentos, entidades. Todas estas coisas têm no-
mes próprios, mas o nome próprio não designa de
modo algum uma pessoa ou um sujeito. [...] Encon-
trar é descobrir, capturar, roubar. Mas não há um

4
De acordo com o estabelecido pela ABNT, na NBR 6023, item 8,7.5,
utilizamos nesta citação a localização (l.) e não a paginação (p.)
por se tratar de citação retirada de livro digital com paginação ir-
regular (p.i).
100
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

método para descobrir, apenas uma longa prepa-


ração. Roubar é o contrário de plagiar, de copiar,
de imitar ou fazer como. A captura é sempre uma
dupla captura, o roubo, um duplo roubo. É assim
que se cria, não algo de mútuo, mas um bloco as-
simétrico, uma evolução a-paralela, núpcias, sem-
pre <<fora>> e <<entre>>. Uma conversa seria pre-
cisamente isso. (p. 17).

É em meio ao encontro que se pode conversar e


a conversa carrega em si a arte de problematizar, nos
permitindo fabricar outras questões. Para os autores
citados, quando não há essa possibilidade de fabri-
car as próprias questões, ou seja, quando as questões
nos são dadas, não temos muito a dizer; portanto, não
há conversa. É nesse sentido que nas conversações
buscamos nos encontrar com outros interlocutores,
como autores, textos, obras de arte, entre outros, para
problematizar questões do campo de pesquisa que
se enunciam nas cartas a uma amiga. Incluem jus-
tamente a problematização das cartas a uma amiga
compostas pelos efeitos dos encontros com crianças
com cegueira, como podemos ver no fragmento de
uma conversação:

Poderíamos dialogar, mas prefiro conversar, por acre-


ditar, assim como Skliar (2017), que existe uma dife-
rença abismal entre o diálogo e a conversação. O au-
tor coloca que o diálogo se realiza segundo a vontade
de quem o convoca. Em contrapartida, conversar tra-
ta-se de um gesto diferente, isto é, “un encuentro sin
princípio ni fin que se desvía, avanza y retrocede, se
pierde y quizá se reencuentra” (SKLIAR, 2017, p. 173).
A conversação é uma palavra que não rebaixa e nem
diminui, não supõe superioridade e inferioridade e
sim sugere horizontalidade, oralidade e experiência,
nos permitindo sentir juntos (LARROSA, 2013). (Silva,
2018, p. 25).
101
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

A conversa tem a ver com a diferença enquanto


que o diálogo tem mais a ver com a ideia de fraterni-
dade. Desse modo, a conversa vai de encontro ao que
afirma a amizade como relação que comporta a diferen-
ça, e não como relação fraterna que se dá entre iguais.

... o valor de uma conversa não está no fato de que


ao final se chegue ou não a um acordo... pelo con-
trário, uma conversa está cheia de diferenças e a
arte da conversa consiste em sustentar a tensão
entre as diferenças... mantendo-as e não as dis-
solvendo... e mantendo também as dúvidas, as
perplexidades, as interrogações... e isso é o que a
faz interessante... por isso em uma conversa não
existe nunca a última palavra... por isso uma con-
versa pode manter as dúvidas até o final, porém
cada vez mais precisas, mais elaboradas, mais
inteligentes... por isso uma conversa pode man-
ter as diferenças até o final, porém cada vez mais
afinadas, mais sensíveis, mais conscientes de si
mesmas... por isso uma conversa não termina, se
interrompe... e muda para outra coisa... (Larrosa,
2003, p. 212).

Para dar continuidade a este trabalho, poten-


cializando o valor de uma conversa, escolhemos uma
carta e uma conversação que fazem parte da disser-
tação Entre cartas e conversações: uma experiência
literária nos encontros com crianças com cegueira
(Silva, 2018). Ambas se encontram no mesmo tempo
verbal do texto original.

102
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Uma carta...olhos

Rio de Janeiro, 17 de março de 2017.


Querida amiga,
Olá! Como está? Sabe, eu continuo nesses mo-
vimentos de problematizar a vida, na pesquisa aca-
dêmica e nos encontros entre literatura e crianças
com cegueira: meu campo atual de estudos. Quando
eu ouso pensar que já sei, me surpreendo mais uma
vez e entendo que não sei. Nunca saberei... como é
bom não saber!
Esse mês me encontrei com Lucas, um estu-
dante de 5 anos com cegueira que faz parte de minha
turma no IBC. Falante e curioso! Gosta de conversar
com os colegas da turma e sai pela sala encostando,
pegando, tocando em tudo. Não tem nada de tímido.
Ajudou-me a arrumar a sala bem rápido (eu arrumo
sempre a sala com todos para que possam conhecer
melhor o espaço). Fiquei encantada com todos, de-
pois lhe falo melhor de cada um, mas quero lhe cha-
mar atenção para o Lucas, visto que estávamos ele, eu
e mais duas crianças, a Luíza e o Henrique, indo para
o almoço quando de repente ele parou tudo e disse:
– Espera, tia! A Luíza e o Henrique já tiraram os
olhos para limpar?
Eu disse:
– Como assim?
Ele respondeu:
– Tirar, tia. Eu sempre tiro os meus para limpar.
Nesse momento Henrique interrompeu:
– Lucas, meus olhos não saem. Eu só lavo. O seu
sai? Uau!
Muito legal, os olhos do Lucas saem, Luíza.
Luíza não disse nada, mas fez uma cara de ma-
ravilhada com fato de os olhos saírem e eu continuei:
– É, mas você não tira os olhos na escola, né,
Lucas? Só se for necessário e ele estiver muito sujo a
ponto de te incomodar.
– Eu limpo em casa, tia.

103
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Assim, fomos para o almoço conversando sobre


coisas que fazemos em casa e não fazemos na escola.
O fato é que Lucas utiliza duas próteses, uma
em cada lado. Para ele é comum tirar os olhos, pois
isso faz parte de sua rotina diária a ponto de pensar
que todas as pessoas tiram os olhos. Para o Henrique
e Luíza não é comum tirar os olhos, mas, ao mesmo
tempo, consideraram o fato de Lucas tirar os olhos, no
caso a prótese, algo muito legal.
Desde então, venho questionando o que nos
permite pensar da forma como pensamos, agir da
forma que agimos, falar da forma que falamos. Para
Lucas é “normal” tirar os olhos... Por que é normal?
O que é normal? Mas Henrique e Luiza acharam
muito legal... Por que acharam legal?
Essas são minhas inquietações, respostas, como
disse, não sei. Arrisco-me pelo caminho do talvez.
Um grande abraço,
Daiana Pilar.
(Silva, 2018, p. 56)

Uma conversação... sobre diferenças, infância e


amizade
Ao experienciar esta “pesquisaescrita”, não pre-
tendo encontrar respostas para as questões apresen-
tadas na carta, mas sim me encontrar justamente com
um talvez, talvez seja isso, ou aquilo... Um talvez que
alimente em mim o exercício do pensar. Pensar como
Ângela, personagem do livro Sopro de Vida, quando
diz: “só me interessa o que não se pode pensar – o
que se pode pensar é pouco demais para mim” (Lis-
pector, 1978, p. 98). Pensar o que não se pode pensar,
pensar aquilo que não está dado, o impensável, que só
pode caminhar pelo talvez, longe de todas as certezas.
Pensar nas diferenças, na infância, na amizade, como
possibilidade que talvez comporte esse exercício de
pensamento. Pensar, conversar...
104
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Na carta citada, expresso a minha inquietação


em Luiza e Henrique acharem legal os olhos do Lu-
cas saírem. Ao mesmo tempo, tal inquietação mostra
que há um estranhamento meu com o fato de o Lucas
utilizar próteses. Pergunto-me: são próteses ou olhos?
Permito-me trocar a palavra estranhamento por sur-
presa e assim conversar com Skliar (2014):

A surpresa: uma forma balbuciante que assume


para si a perplexidade. Por que um desconhecido
traz uma voz nova, uma irrupção que pode mudar
o rumo da terra, um gesto nos faz rever o já co-
nhecido, a palavra antes ignorada. É questão de
escutar, não de concordar. Concordar ou não com
algo que não pensávamos ou não olhávamos antes
não tem a menor importância. Sim, é só questão de
escutar. Como se não houvesse outra coisa senão
uma linguagem que nunca é nossa, feita de frag-
mentos que jamais se possuem. Como se por um
instante o distante se tornasse próximo e quem
se aproximasse fosse próximo. Como se deixasse
os ouvidos no meio do caminho e se prescindisse
de toda palavra conhecida. Como se cada um dos
desconhecidos encarnasse a possibilidade de uma
verdade (p. 150).

Escutei...
Ensaiei o deixar os ouvidos ao longo do cami-
nho...
Prescindir-me do conhecido...
Skliar ainda coloca que talvez a escuta não seja
um gesto destes tempos, no caso se refere aos tempos
de produtividade onde o falar está destinado a conse-
guir adeptos, entronizar-se, entre outros. Sugere que
precisamos ouvir exercitando a alteridade, o que sig-
nifica um estranhar, um perturbar, um alterar. E é o
encontro com o outro que permite esse estranhar, ou

105
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

seja, uma sensação de interrupção que nos altera in-


fluenciando o nosso estar no mundo.

Estar no mundo e estar na poesia talvez suponham,


desse modo, algo parecido: desestimar qualquer
ideia ou vestígio de normalidade, de hábito, do en-
colhimento de ombros que significa que as coisas
são assim mesmo. Ali é onde morre parte do mun-
do, parte de nós mesmos (Skliar, 2014, p. 149).

Nesse movimento, Skliar sugere que converse-


mos com desconhecidos no sentido de não conhecer-
mos o mundo de antemão, simplesmente não conhe-
cê-lo jamais, o que significa “olhar para a imensidão
como se nunca deixássemos de ser crianças, perma-
necendo no estado de infância” (2014, p. 149).
O pensamento de Skliar me permite problemati-
zar o fato de nossos corpos estarem disciplinados por
discursos de normalização e que estes discursos es-
tão nas nossas falas, no nosso agir, nos nossos gestos.
Esses discursos se legitimam no meu estranhar o fato
do Lucas utilizar prótese, e na própria palavra prótese
e não olho. Por que não olho? O fato de outros alunos
acharem legal o olho do Lucas sair vai ao encontro do
estado de infância citado por Skliar, criança que não
conhece o mundo de antemão.
A relação entre as crianças, para Skliar, é uma
relação de alteridade, o que nos permite pensar na
diferença enquanto relações e não um sujeito, pois
quando a diferença é o sujeito, sempre haverá uma
acusação, um desvio, uma anormalidade, etc. Preci-
samos escutar, pensar de outros modos, retomar o
estado de infância que nos permita substituir o con-
cordar ou discordar pelo estranhar, pela sensação de
irrupção que permite uma abertura para o exercício
da alteridade.
106
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Nesse sentido, a criança possui uma abertura


que permite o exercício da alteridade. Portanto, aqui
o que se pretende é pensar na criança em seu estado
de infância. A infância não como um tempo evolutivo,
mas como uma condição caracterizada pelas abertu-
ras, nomeadas por Skliar como “afeição perceptiva”.

O tempo das crianças não é um tempo unidimen-


sional. Não acontece por concentração, disciplina,
esforço, aplicação, dedicação. Acontece por ani-
malidade. Se prefere para não ofender os demasia-
do humanos, acontece por animalidade de afeição
perceptiva. Afeição perceptiva: quando os ouvidos
estão abertos, quando o olhar está aberto, quando
a pele está aberta, quando o mundo chega incon-
tinente a um corpo que o recebe sem escrúpulos,
sem armadilhas, sem jurisprudência. O tempo das
crianças nos deveria fazer notar essa animalida-
de que desperdiçamos, perdemos, subestimamos
sempre e à qual devemos, pelo menos, infinito res-
peito. Porque a animalidade não é bestialidade,
nem monstruosidade nem desumanidade. A ani-
malidade põe o humano em seu lugar, mesmo que
pareça sempre o contrário. (Skliar, 2014, p. 167).

Essa condição de animalidade de afeição per-


ceptiva colocada por Skliar nos permite pensar na in-
fância (condição humana) como um estado, uma con-
dição aberta às relações de diferença. Ao pensar nessa
condição de criança, nas diferenças, nas relações de
alteridade, me permito ir além na busca de algo que
se assemelhe a essa condição de infância, busco uma
relação que comporte as diferenças nos permitindo
uma abertura ao outro, que não imponha condições,
mas que ocorra mesmo na vida adulta. Nesse contex-
to, penso na amizade.
Esse alterar-se influenciando o modo de estar no
mundo provocado pelo exercício da alteridade, pecu-
107
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

liar da infância, também pode ser percebido nas rela-


ções entre amigos, visto que se trata de uma relação
que potencializa as diferenças.

A amizade não é algo que um povo persegue, algo


especial entre adultos, homens de bem, algo trans-
mutado em irmandade ou fraternidade. É mais ou
menos isso. É afirmação de existência livres. Os
amigos vivem pelas suas diferenças. Não são es-
pelhos para os outros, identidade coletiva ou ideal,
fusão numa unidade superior. (Passetti, 2003, p. 12).

Nesse contexto, a amizade ultrapassa a ideia


de relação fraterna, que acontece entre iguais, mas,
ao contrário, é uma relação sem pré-condições, que
permite uma abertura para o outro, abertura para as
outras formas de existência, para as diferenças. Por-
tanto, falamos aqui da amizade como um exercício
político que serve de oposição aos discursos que su-
gerem uma forma homogeneizada de existências que
tendem a excluir as alteridades, desconsiderando as
pluralidades e os conflitos.
Ortega (2000) fala da amizade, tendo por base o
pensamento de Foucault, Arendt e Derrida, como rela-
ção ética que possibilita uma alternativa às relações
de tolerância e indiferença, que geram o consenso e
suprimem as singularidades, relações estas peculia-
res da sociedade moderna. Nesse sentido, a amizade
permite o convívio com um outro que não expressa a
semelhança, ao contrário, nos permite o exercício de
aceitar a distância, a diferença como uma condição
da amizade. Portanto, a relação entre amigos sugere
uma ética para vida, livre das estruturas sociais que
pretendem disciplinar, normalizar, legitimar, etc.
A amizade como relação que permite a abertura
para o outro, comum à condição de criança, abertu-
ra ao encontro, permitindo ver para além do já visto,
108
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

para além daquilo que eu considero como “prótese” e


que o outro considera como “olho”.
No texto “Sobre a lição ou do ensinar e aprender
na amizade e na liberdade” Larrosa (2017) associa a
aprendizagem na leitura articulando-a à relação de
amizade.

Em torno do texto como palavra emplazada - quan-


do o texto é realmente algo que se pode chamar
de comum -, articula-se uma forma particular de
comunidade, uma forma particular de estar em-
plazados pelo que é comum. E essa forma é uma
amizade, uma philia, uma unidade que suporta e
preserva a diferença, um nós que não é senão a
amizade de singularidades possíveis. (p. 178).

O autor coloca que quando o texto é algo comum,


público, de todos e de ninguém, no sentido de algo que
se dá a ler permitindo um pensar, um perguntar e um
dizer de diferentes maneiras, permite a constituição
de uma comunidade, que não é a do consenso e sim a
da amizade, isto é, que nada se tem em comum senão
o espaço onde se tornam possíveis as diferenças.

A amizade (da leitura) não está em olhar um para o


outro, mas em olhar todos na mesma direção. E em
ver coisas diferentes. A liberdade (da leitura) está
em ver o que não foi visto nem previsto. E em di-
zê-lo. Mas para que essa liberdade seja possível, é
preciso entregar-se ao texto [encontro], deixar-se
inquietar por ele e perder-se nele. A liberdade aqui
é generosidade. Não apropriação do texto [encon-
tro], para nossos próprios fins, mas desapropria-
ção de nós mesmos no texto [encontro]. (Larrosa,
2017, p. 181).

A amizade acontece como um espaço de possibi-


lidades, abertura ao diferente, abertura que acontece

109
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

na medida em que podemos olhar na mesma direção


e ver outras coisas, ver o que não está previsto e poder
dizer sobre. Não estava previsto meu “estranhamento”
ao ver a prótese do Lucas saindo. Como no encontro
não há previsão, apenas acontece e, ao acontecer, pen-
so, questiono, me desaproprio de mim mesma. Assim,
me permito pensar na palavra “texto” como encontro.
Encontro com crianças com cegueira, encontro com a
escrita literária, encontro com um coletivo, encontros
onde me desaproprio de mim mesma para me encon-
trar com desconhecidos pensando na amizade como
espaço de possibilidades que potencializa as diferen-
ças. É nesse sentido que vivo esta “pesquisaescrita” e
direciono cartas a uma amiga.
(Silva, 2018, p. 64-67).

Fechando a conversa: outras aberturas


Pensamos que fechar não é encerrar, fechar não
é concluir, fechar não é finalizar. Fecha-se o que se
abre, ou se abre o que foi fechado. Portanto, o fechar é
movimento, um movimento que pode provocar outras
aberturas, outras conversas.
Marquad (2001, p. 64) escreveu que las historias
han de ser narradas; é nesse sentido que pesquisa-
mosescrevemos para narrar, dividir o que nos passa,
acreditando na importância de dar, compartilhar as
experiências, não para apresentar um modelo, mas
para talvez possibilitar o pensamento, produzir in-
quietações. Marquad (2001, p. 64) continua dizendo
que as histórias no son predecibles como procesos
regulados por leyes naturales o como acciones plani-
ficadas, porque solo se convirten en historias cuando
sucede algo imprevisto.
O sentido da pesquisaescrita aqui apresentada
está aberto justamente ao imprevisto, às incertezas
110
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

que nos possibilitaram o pesquisarescrever. Talvez


nem tenha um sentido previsto, já que o sentido num
exercício cartográfico não é algo dado a ser descober-
to, mas talvez algo criado a ser inventado. Talvez seja
este o sentido: inventar outras formas de fazer, pen-
sar, ver, de pesquisarescrever essa experiência.
Portanto, o exercício cartográfico que teve como
efeito o ensaiar da pesquisaescrita possibilitou a nar-
rativa de um processo permeado de problematizações:
nas cartas, nas conversações, nos encontros, na expe-
riência da pesquisaescrita, permitindo-nos ir aonde
não havíamos previsto, nos estranhamentos, nos ges-
tos, entre outros movimentos que nos possibilitaram
a busca por formas outras de dizer que comportassem
o encontro na diferença.

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111
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

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112
ayvu

A pesquisa narrativa
uma abordagem teórico-metodológica
sobre o silêncio do existir e o
mistério da palavra

Iduina Mont’Alverne Chaves1


Marcio Mori2

Introdução
O presente trabalho tem como objetivo apresen-
tar a contribuição da narrativa para nossa capacida-
de de pensar/ponderar sobre questões e problemas
educacionais, uma vez que a função da narrativa é a
de fazer nossas ações inteligíveis para nós mesmos e
para os outros. O interesse em narrativa – como um
modo de conhecimento – advém do fato de ela explo-
rar o sentido da sua importância como um meio de:
(1) informar a pesquisa e a prática educacionais; (2)
explorar e proporcionar aos professores a possibili-
dade de refletir sobre suas ações e, ao mesmo tempo,

1
Doutora em Educação pela USP. Professora Adjunta da Univer-
sidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em
Educação na mesma universidade.
2
Doutor em Educação pela UFF. Professor do Centro Universitário
Carioca (UNICARIOCA).
113
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

enriquecer o entendimento de sua própria prática; (3)


auxiliar os pesquisadores a ganharem um entendi-
mento mais complexo do ensino e das práticas edu-
cacionais; (4) reconstruir a experiência pedagógica e
torná-la acessível para reflexão; (5) auxiliar a ganhar
melhor entendimento do ensino, abrindo novas ave-
nidas de pesquisa, apontando para melhoria da pró-
pria prática.
A narrativa está ganhando aceitação como um
importante instrumento para o desenvolvimento
profissional. Os professores podem usar histórias de
suas experiências profissionais para refletir sobre a
sua própria prática, articular valores e crenças, dar
forma à teoria de ensino e para mais entendimento
do processo decisório – as histórias interagem com
os leitores, com os ouvintes e com outros contadores
de histórias. Essas histórias servem frequentemente
de base para reflexão, discussão e debate. A narrativa
levanta também a questão da voz e da autoria.
Vários estudiosos debruçaram-se sobre o tema
e fornecem subsídios para a adoção desse fazer que
se apresenta como uma diferente abordagem na cons-
trução da pesquisa. Diferente porque pesquisador e
pesquisado, sujeito e objeto, numa trama emaranhada,
se entrelaçam, tocam-se nas experiências, tornam-se
intimamente ligados – embora diferentes – como a
mão esquerda e a mão direita em ação nas atividades
do existir.
Segundo McEwan e Egan (1995), a narrativa tor-
na-se um veículo de escolha entre ambos, permite
capturar os modos como as pessoas realmente for-
mam seu próprio conhecimento e como solicitá-las
a transformar esse significado pessoal, organizando
suas experiências numa dimensão temporal e se-
quencial.
114
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Para Crites (1975), a narrativa é capaz de reprodu-


zir a concreta peculiaridade da experiência. Sua lin-
guagem característica não é conceitual, mas consiste
tipicamente no tipo de imagem verbal que emprega-
mos com referência a coisas como elas aparecem aos
nossos sentidos ou figuram em nossas atividades prá-
ticas. O autor acrescenta, ainda, que a forma narrati-
va reproduz as tensões temporais da experiência, um
movimentar-se da tensão presente entre cada movi-
mento que abraça a memória do que tinha sido antes
e uma atividade projetada.
Para Benjamin (1988), a narrativa, que duran-
te tanto tempo floresceu num meio de artesão – no
campo, no mar e na cidade – é ela própria, num cer-
to sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela
não está interessada em transmitir o “puro em si” da
coisa narrada como uma informação ou um relatório.
Ela mergulha a coisa na vida do narrador para, em se-
guida, retirá-la dele. Assim se explica na narrativa a
marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do
vaso: um vaso que se constrói ao girar, submetido a
um olhar multiocular.
Delory-Momberger (2012, p. 37) salienta que nós,
os humanos, fazemos a nossa experiência de vida no
tempo e que não temos uma relação direta, transpa-
rente, com o vivido e com o desenrolar da própria vida,
porque essa relação é mediatizada pela linguagem e
por suas formas simbólicas. Assim, a autora esclarece
que, para representar o desdobramento temporal, os
humanos recorrem a palavras e imagens que têm em
comum o fato de designarem um espaço a percorrer
no tempo: linha, fio, caminho, percurso, círculo, ciclo,
carreira da vida. E complementa: o homem escreve
no espaço a figura temporal de sua existência. Assim,
essa autora conclui que o narrativo é o lugar onde a
115
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

existência humana toma forma, em que ela se elabora


e se experimenta sob a forma de uma história (Delory-
Momberger , 2012, p. 40).
Narrar não é reproduzir depoimentos. Vai além.
Toca a alma: a alma do outro, a alma do mundo, a pró-
pria alma de quem escreve. É necessário conhecer os
mistérios das palavras e é preciso amá-las, numa en-
cantação que trafegue, vagarosamente, a colear entre
quem escreve e o leitor. É um estado.
Mas o que fazer para atingir esse estado? É cla-
ro que não é ficar entorpecido somente pelas palavras
alheias, pois assim não se narra. Não é redicção. En-
tretanto, é valido lembrar que, às vezes, é na redicção
que se cria. Ou recria? Ou recreia? Quantas questões!
Trabalhar o ato de narrar: eis a questão! Para tal, o
escritor deve trabalhar primeiramente a si próprio,
vasculhar as camadas, as esferas da própria alma, co-
nhecer-se para depois brincar, distraidamente, com a
língua, deixando lambidas da sua existência, do mun-
do e do outro deslizarem suavemente na fantasmagó-
rica folha de papel em branco. É preciso insistir: nar-
rar não é fornecer depoimentos. Depoimentos – até os
trágicos – são frios e repousam em lápides escuras,
que um dia ficarão amarelecidas, com a irretirável po-
eira do tempo. São temporais e racionais em demasia.
O narrar transita entre tempos cronológicos,
tempos amorfos (Ricoeur, 2012), tempos dos tempos...
E nesse transitar, sobrevive, conduz, finca raízes e
traz à tona o pensar do escritor, do outro que, mobi-
lizado, entra em estado de flexões dentro de si, além
de carregar consigo os milênios que habitam os seres.
Reflexões: flexionar dentro num vaivém constante
que vai ao encontro de respostas ou de outros ques-
tionamentos. Nessas flexões, não há neutralidade,
tampouco passividade, pois o ato de narrar provoca.
116
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Provoca questionamentos e, por isso, incita a busca. A


busca pelo desnudamento. E, nessa diligência, possí-
veis respostas num constante jogo de linguagem.
É nesse allea jacta est que reside o narrar: cole-
ando entre o acaso e a fatalidade, entre o já-pensado
– prestes a ser enterrado – e o pensar, entre o dito e o
não dito, beirando o interdito, porque original, porque
permite pescar entrelinhas nos oceanos desconheci-
dos da memória, nas esferas do tempo. A esse respei-
to, Clandinin (1994) – para preservar a distinção entre
fenômeno e método, no que tange à narrativa – chama
o fenômeno de história e a investigação de narrativa.
A pesquisa narrativa faz uso de materiais pesso-
ais, tais como histórias de vida, conversas e escritos
pessoais. Ela convida à reflexão e requer do pesquisa-
dor o exame do contexto em que se situa a pesquisa
e suas implicações mais amplas, além de provocar o
olhar dos pesquisadores e dos professores para situ-
ações que, para eles, passavam despercebidas, tais
como alguns dos seus próprios valores e compromis-
sos, as obrigações do sistema escolar, as relações no
ambiente escolar, as formas de avaliação, algumas
práticas de ensino que favorecem a alguns estudan-
tes em detrimento de outros, entre outros. Contar his-
tórias é dar voz ao self – uma voz tão reprimida na
nossa escola, seja de nível básico ou superior. Nas pa-
lavras de Robinson e Hawpe (1986, p. 12), o historiar é
um método de sucesso para organizar a percepção, o
pensamento, a memória e a ação.
Para Carter (1995, p. 326), a narrativa é uma for-
ma de captar a complexidade de nosso entendimento
sobre o ensino, de como os outros podem ser prepa-
rados para se engajar nessa profissão e para explicar
a compreensão dos professores sobre o conhecimen-
to que emerge da ação. Nesse sentido, essa visão de
117
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

conhecimento reconhece que as vidas de professores


são inscritas/escritas ao longo do tempo e suas histó-
rias são vividas e ditas, revividas e recontadas à me-
dida que os professores encontram novas situações
em suas vidas. Uma vez contada uma história, nos
alerta Steedman (1986), ela se torna peça da história,
uma peça aberta para interpretação.
Assim, em face das afirmações desses renoma-
dos estudiosos do fenômeno, é possível afirmar que
uma história de experiências vividas em espaços edu-
cativos – e contada por alguém – pode levantar muitas
questões significativas sobre o ensino, relacionadas
ao currículo, a questões epistemológicas e paradigmá-
ticas, a opções metodológicas, à relação teoria/práti-
ca, à tomada de decisões, às relações professor-aluno,
ao ser profissional/professor, às situações de ensino/
aprendizagem, entre outras. É uma forma de explo-
rar a complexidade do que significa ensinar – não só
o quê, o como, mas também os porquês e os quando
do processo de ensino e aprendizagem, e também o
fato de se pensar o a serviço de quem. Além do mais,
abre possibilidades para outros professores pensarem
a sua prática e contarem as suas próprias histórias.
Histórias do seu movimento, da sua trajetividade, dos
seus acertos e erros no fazer docente, além de refle-
xões sobre a prática e sobre os possíveis projetos.
Os movimentos de pesquisa em educação cami-
nham, a nosso ver, para uma (re)paradigmatização, à
recusa, mesmo, dos modelos clássicos – simplifica-
dores, fechados, racionalizadores, homogeneizadores
– e adotam modelos que acolhem a pluralidade, a ar-
ticulação, a diferença, o acaso, o individual, a poesia, a
arte, a dor, o amor, o prazer.
Em face disso, recorremos a Morin (1982), que
afirma que a consciência da complexidade leva a uma
118
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

tomada de consciência da indispensável mudança de


paradigma nas ciências, partindo de uma visão sim-
plificadora, unidimensional, parcelada, para um co-
nhecimento multidimensional, integrador, complexo.
Essa complexidade (o pensamento complexo),
no sentido de conceber a articulação, a identidade, a
diferença entre todos os aspectos (uma vez que o pen-
samento clássico faz a separação desses aspectos ou
os unifica por meio de uma redução mutiladora), nos
torna sensíveis a evidências adormecidas: a impos-
sibilidade de expulsar a incerteza do conhecimento
(Morin, 2003, p. 465). Assim, transmuta-se de um cor-
po de ideias inscrito na ordem do rendimento e da efi-
cácia para um corpo de ideias assentado na abertura,
na perspectiva da complexidade.
Aprendemos com Morin que o homem não pode
ser reduzido à sua feição técnica de Homo Faber nem
à sua feição racionalista de Homo Sapiens, mas que
devemos considerar, na feição do homem, o mito, a
dança, o canto, o êxtase, o amor, a morte, o despropó-
sito e que é preciso não rejeitar a afetividade, a neu-
rose, o acaso, o diferente, o inesperado. Enfim, a gran-
de lição de que o homem verdadeiro se encontra na
dialética de sapiens-demens.
Morin (1982), na sua obra Ciência com consci-
ência, alerta para a explicação do princípio da ciên-
cia clássica que tendia a reduzir o conhecimento ao
manipulável. Insiste, ainda, que nos voltemos para o
conhecimento que possa ser refletido, meditado, dis-
cutido, incorporado por cada um no seu saber, na sua
experiência, na sua vida… (p. 25).
O pensamento de Edgar Morin é sugestivo para
o começo da história que desejamos contar sobre nos-
sos estudos, projetos, em suma, sobre a reflexão, sem-
pre em percurso, voltada para os caminhos da pes-
119
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

quisa em educação, mais especificamente no tear da


formação do professor. Uma busca que se caracteriza
pelo entendimento dos textos e dos contextos… Dos
textos que dão base, que cimentam o movimento da
pesquisa em educação, de modo mais geral, e das nos-
sas (a)venturas, de modo particular. Dos contextos, no
que diz respeito à Pesquisa Narrativa usada nos nos-
sos estudos sobre experiências educacionais.
Com base nesse diferente/novo texto a respeito
da pesquisa, que se constitui de formas metodológicas/
investigativas de compreensão da realidade educacio-
nal, numa perspectiva multidimensional, passamos,
agora, ao contexto da Pesquisa Narrativa, paisagem de
nossos mais recentes estudos e pesquisas.
A narrativa tem se tornado um importante ins-
trumento para a pesquisa no meio acadêmico europeu
e norte-americano e, aqui, no Brasil, já se incorporou
à pesquisa educacional. A abordagem narrativa torna
o pesquisador mais intimamente ligado ao processo
investigativo do que nos métodos quantitativos e es-
tatísticos. Por meio da narrativa, entramos em conta-
to com nossos participantes como pessoas engajadas
no processo de se interpretar. Trabalhamos com o dito
e com o não dito, dentro do contexto no qual a vida é
vivida e o contexto da entrevista no qual as palavras
são faladas para representar aquela vida. O uso meto-
dológico da narrativa põe os pesquisadores em con-
tato com questões metodológicas, epistemológicas,
ontológicas, numa perspectiva multidisciplinar, com
suporte da antropologia e da literatura. Nesse sentido,
podemos falar tanto de pesquisa em narrativa, quan-
to de pesquisa narrativa, significando que a narrativa
pode ser ambos, fenômeno e método.
Ainda nas trilhas do pensar de Steedman (1986),
cremos que a narrativa se torna peça da história, uma
120
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

peça que, como uma flor primaveril, lentamente desa-


brocha, mostrando todo o seu esplendor, pronta para
a interpretação.
E, como peça da história, a colear no fértil ter-
reno do narrar, apresentamos, a seguir, como a forma
narrativa foi usada para o relato do conjunto de in-
formações sobre a cultura e o imaginário de dois pro-
fessores de uma escola pública estadual do ensino
fundamental e médio (EPEEFM), ressaltando as expe-
riências desses professores nessa escola.

Samuel: um grande mestre


Era uma vez um menino que queria muito, mui-
to ser professor. Hoje, homem feito, fala de sua mo-
vimentada trajetória de mestre. Nasceu na cidade do
Rio de Janeiro e cresceu no seio de uma família de
classe média, ao lado de dois irmãos, um irmão e uma
irmã, e dividindo o quintal de sua casa com primos
e amigos da vizinhança. Uma infância bem típica da
garotada dos anos 1950, com muita brincadeira, jogo
de bola, muita animação:

Eu ficava admirando a entrada dos professores


pela porta principal da escola... Usando paletó e
gravata, jaleco. Aquilo me emocionava e dizia para
mim mesmo “um dia eu serei um deles”. Foi o meu
grande sonho. Nunca quis ser outra coisa.

Na sua fala inicial, ele já nos apresenta uma ima-


gem: a porta de entrada. A porta que, segundo Cheva-
lier e Gheerbrandt (2012, p. 734), simboliza o local de
passagem entre dois estados, entre dois mundos [...].
Eles salientam que não somente indica uma passa-
gem, mas um convite para a travessia, e, nessa traves-
sia, o oculto ou talvez o sonho.

121
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Já na infância, o sonho de ser professor habitava


a mente de Samuel. Um sonho que foi perseguido até
a sua realização. Para Maffesoli (2014, p. 65), nossos
sonhos também nos pensam.
Quanto à família de Samuel, o pai era dono de
açougue, e sua mãe, uma mulher forte e trabalhadeira,
passava roupa em casa, enquanto tomava conta dos
filhos e dos agregados.

Minha mãe era uma mulher semianalfabeta, mas


tinha maneiras de professora. Ela colocava os fi-
lhos e os quatro sobrinhos (filhos de uma irmã
dela que ficavam conosco) ao redor da mesa e,
enquanto passava roupa, ia dando aula para nós.
Era a grande mestra. Bastante lúcida para a época,
sua mentalidade aberta nos levava a discutir sobre
tudo, até assuntos considerados proibitivos.

A mãe colocava os filhos ao lado da mesa e atua-


va como professora, enquanto passava roupa. A mesa,
normalmente, nos lares mais simples, fica na cozinha.
Quanto à mesa, Barcellos (2017, p. 35) salienta que esta
já foi declarada uma ‘metáfora da vida’. E ressalta que
ela pode se vestir de pano, de festa, de cotidiano e é
o local onde celebramos agrupamentos, onde realiza-
mos reuniões, onde se revelam níveis progressivos de
intimidade e de convívio. E, na cozinha, nesse conví-
vio, desenrola-se o estar-com.
De acordo com Maffesoli (2014, p.85), esse estar-
com é a antiga e obsessiva preocupação com a relação:
estar religado ao outro. É o local do fortalecimento do
nós em detrimento do eu – o que favorece a religação.
E a religação, nesse local de comunhão emo-
cional, revela-se como um local em que há despren-
dimentos, afetos e sensibilidade. Nesse cenário, para
Barcellos (2017, p. 37), a cozinha é um centro afetivo

122
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

da casa, é o coração da casa. Evoca um centro cria-


tivo. Estar na cozinha é estar dentro de um coração.
Provavelmente, o fato de a mãe transmitir os poucos
conhecimentos ao filho, num local considerado como
o coração da casa, o centro criativo, trouxe subsídios
para alimentar o sonho na alma.
Cabe ressaltar que as memórias candentes que
se ligam a esse espaço da domesticidade mais pro-
funda fazem dele, fazem da cozinha, uma sala de estar
dentro de nós (Barcellos, 2017, p. 37).
Afirmou que gostava da escola; entretanto, não
foi um bom aluno no primário e no ginásio.

Eu tinha uma cara de bonzinho, mas fazia muita


gazeta, o que me levou à reprovação na primeira
série do segundo grau, numa escola particular.
Meu pai nunca me perdoou e disse que não paga-
ria mais escola para malandro. Foi uma coisa mui-
to séria para mim. Daí, eu resolvi estudar e passei
a ser o melhor aluno da turma.

Revelar a alma, contar os fracassos e os hero-


ísmos. Época de sonhos. Sonhos de adolescente, so-
nhos de conquistas. Voos. Hillman (1998, p. 39) afirma
que o “puer” não suporta a falta de direção com tempo
e paciência. Não sabe quase nada das estações e da
espera. E complementa:

E quando deve descansar ou retirar-se de cena,


então parece estar preso num estado atemporal,
inocente dos anos que passam, em desacordo com
o tempo. Seu vagar é como o vagar do espírito, não
como uma odisseia da experiência. Vagueia para
gastar ou capturar e para incendiar, para tentar
sua sorte, mas não com o objetivo de voltar para
casa. [...] Como o “senex”, não escuta, não apren-
de. [...] O “puer”, portanto, mal compreende o que
se ganha com a repetição e a consistência, ou seja,
123
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

com o trabalho; ou o ir e vir, para a esquerda e para


a direita, para dentro e para fora que traz a sutileza
de procedermos passo a passo através da comple-
xidade labiríntica do mundo horizontal. (p. 39).

Mundo horizontal que, segundo Hillman (1998, p.


38), é o contínuo do tempo/espaço, denominado reali-
dade; o mundo do puer é vertical, do voo e da queda.
Quixotescamente, muitos caminhos verticais foram
traçados. Muitas quedas. Muito egoísmo – próprios
da adolescência. Muita leitura, muita vivência num
mundo de capa e espada.
Os anos 1960 foram marcantes na sua vida. A
entrada na universidade, os movimentos estudantis,
a militância política...

Estudava muito, fazia estágios, participava das


atividades culturais, estava sempre bem informa-
do, em todos os sentidos. Não me limitava apenas
ao meu curso de História Natural. Aprendi mui-
to, aproveitando o momento rico da universida-
de. Meu engajamento na política universitária foi
muito forte, eu panfletava, frequentava as reuniões
secretas. Isto me valeu a saída da Universidade do
Brasil. Mas eu queria um Brasil melhor.

A passagem para a universidade foi decisiva em


sua vida: a passagem de um mundo de capa e espada
para um mundo em que imperava o racional, mescla-
do a um sonho de mudança. Época em que, de acordo
com Wallerstein (2004, p. 53), o liberalismo triunfante
reinou como geocultura do sistema-mundo moderno.
Época em que a esquerda mundial [...] viu-se reduzi-
da sistematicamente a uma encarnação alternativa
do liberalismo: um liberalismo avançado e um pouco
impaciente, mas mesmo assim um liberalismo. Entre-
tanto, em face das experiências vividas, foi um mo-

124
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

mento em que pôde viver as questões desse período


histórico. E, certamente, pensar no papel dos futuros
intelectuais. O fato de desejar um Brasil melhor, em
releitura para os dias atuais, possivelmente poderia
ser traduzido com as palavras de Wallerstein (2004,
p. 54):

[...] será mais difícil para as forças progressistas,


provenientes de condições múltiplas, memórias
diferenciadas e problemáticas distintas, criar en-
tre elas as alianças para combater as forças pri-
vilegiadas que têm à sua disposição, poder, di-
nheiro e (não esqueçamos) muita inteligência.
O papel dos intelectuais comprometidos requer
muita inventividade e criatividade. Certamente
não encontraremos as respostas para este desafio
lendo Gramsci ou qualquer outra figura idealiza-
da. Temos de inventar para nós um novo sistema
histórico sem termos certeza de que sairemos vi-
toriosos. E devemos fazê-lo, porque existe a opor-
tunidade de reinventar o mundo [...].

A vida de estudante era partilhada com o tra-


balho no Banco Inglês e aulas particulares. Daí para
frente, nunca mais deixou de ser professor. Surgiu a
primeira oportunidade de trabalhar em escola – um
colégio particular para alunos adultos, do Artigo 99.

Foi interessante. Cheguei à escola, fiz minha apre-


sentação e perguntei se estavam precisando de
professor. Responderam-me que sim e me entre-
garam o diário e me mandaram para a sala de aula.
Perplexo, entrei meio tímido na sala e comecei a
conversar com os alunos... Perguntei-lhes o que
sabiam de Biologia, procurei saber quem eram.
Gosto de aula com movimento, com vivência. O
clima rolou... Eu já estava usando as ideias cons-
trutivistas nos anos 1960. Demo-nos muito bem.
Depois trabalhei com adolescente, noutra escola

125
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

particular do Méier, bairro de classe média do Rio


de Janeiro. Iniciamos uma caminhada juntos até o
final do segundo grau. Eu tinha paixão por aquela
escola. Trazia para ela tudo o que podia aprimorar
o ensino e a aprendizagem. Fizemos muitas coi-
sas juntos – passeios e visitas culturais, criamos o
Clube de Ciências, acampamos. Uma relação ines-
quecível. O diretor, embora sendo militar, nos per-
mitia inovar. Cresci junto com eles.

O gosto pela aula com vivência, com movimen-


to, traz à tona o fato de que a posse das qualidades
de mestria equivale ao título (GUSDORF, 2003, p. 91).
Percebe-se, nitidamente, um professor em busca de,
à procura de, um tanto insatisfeito com a burocracia,
um professor que não se satisfaz em repassar progra-
mas ao alunato mecanicamente. Percebe-se, também,
um professor preocupado com relações. Relações de-
licadas, porque humanas. O mestre percebe que não
há dono do saber e trabalha a si mesmo antes de en-
gajar nas ligações delicadas e nas articulações neces-
sárias para o seu fazer.
Por volta de 1972, já lecionando na Universida-
de Gama Filho, Samuel se tornou professor do Estado.
Afastou-se do banco e das escolas particulares. Início
difícil.

Lá tive meu ritual de entrada como professor do


Estado: os alunos me receberam quietos, mas no
quadro de giz, um desenho imenso de um órgão
sexual. Não foi fácil. O início da profissão, no setor
público, é, na maioria das vezes, complicado. So-
mos enviados para áreas de difícil acesso e, qua-
se sempre, escolas complicadas. Essa escola era
atravessada pela problemática da comunidade,
pelas guerras do tráfico. Mas acabei conquistando
a garotada. Outro grande aprendizado. Um caso de
covardia minha, na época – ao ser transferido para
126
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

uma escola mais central, não tive coragem de me


despedir deles. Não fechei o ritual.

Quando abordamos as ligações delicadas e as ar-


ticulações necessárias para o ofício de mestre, depa-
ramos com essa declaração: havia um desenho imen-
so de um órgão sexual.
Chevalier e Gheerbrant (2012) afirmam que o falo
é símbolo de poder gerador. Possivelmente, o desenho
tenha sido feito para evidenciar que ali também havia
um poder e um poder que foi quebrado com as arti-
culações necessárias ao ofício de mestre que, habil-
mente, foi utilizado pelo professor. E ressaltou que o
início é complicado. Ora, a palavra plicare, oriunda do
latim, significa dobrar, fazer pregas, vincar. Com(pli-
car) significa fazer dobras sequenciais, no intuito de
reduzir, diminuir e, num emaranhado, ocultar algo no
meio das dobras. O oposto, descomplicar, é retirar es-
sas dobras que recobrem algo que não é para ser vis-
to. O início foi complicado, disse-nos. Foi necessário
para a conquista o retirar das dobras que recobriam as
delicadas e sutis relações. Alves (2001; 2006) aborda
com brilhantismo esse assunto, o complicado, em En-
tre a ciência e a sapiência: o dilema da educação e em
Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras.
O professor Samuel é um homem elegante, muito
bonito e tem uma voz forte e melodiosa, o que lhe deu
mais uma oportunidade de atuação – foi animador
de festas e de programas. Uma atividade prazerosa
e que lhe rendia alguns trocados. Lutou sempre pelo
respeito ao professor. Participou dos movimentos, das
greves. Por isso, foi penalizado. Após uma greve dos
professores do estado, em 1979, na qual se engajou
abertamente, foi devolvido pelo diretor da escola em
que trabalhava para a Secretaria de Educação.

127
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Comecei a procurar escola. Mas, pela ligação po-


lítica, minha ficha não era boa. A Secretaria en-
viava, nesses casos, para escolas mais distantes.
Nessa época, o professor Marcos trabalhava tam-
bém na Gama Filho e, sabendo da minha situação
de professor sem escola, me convidou para lecio-
nar na EPEEFM, escola que dirigia. Como ele tinha
muito prestígio na Secretaria, minha nomeação foi
imediata. Ele me deu esse voto de confiança, pelo
Samuel profissional, reconhecido pelo seu bom
trabalho, na Gama Filho.

No EPEEFM, Samuel trabalha até hoje.

Apresentei-me à coordenação da EPEEFM. Passa-


ram-me o programa, mas não me informaram da
metodologia e da rigidez. Mas, logo entendi... Um
dia estava trabalhando na sala de aula o conteú-
do “movimento”, em física. Uma bola foi o recurso
utilizado – começamos a jogá-la na parede e a ob-
servar seu movimento. De repente, entra a coorde-
nadora de turno e, irritada, pergunta:
– Que bagunça é essa?
– É uma aula sobre movimento – respondi-lhe.
– Não vejo nada escrito no quadro.
– Isso vem depois; primeiro se pratica. – retorqui.
– Apresente-se, agora, na coordenação. – disseme.
– Professor, a regra da escola é outra.
Fiquei chocado.

Naquela época, a EPEEFM era uma escola tradi-


cional, uma escola adepta de um paradigma arcaico,
presa à racionalidade, conteudista somente, uma es-
cola burocrática e repressiva, enfim, uma escola que
ainda concebia um mundo-máquina. Para trazer uma
imagem dessa escola, basta assistir ao filme de 1933,
intitulado Zéro de conduite (Zero de comportamento),
de Jean Vigo.

128
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

O professor Samuel precisava sobreviver como


professor. Assim, foi buscar a dose certa, na convivên-
cia com outro colega, professor de física, muito volta-
do para a teoria. Em outras palavras, começou a fazer
as articulações necessárias para o ofício.

A escola era impregnada por um medo – o medo


pedagógico que a equipe do Serviço de Orientação
Pedagógica provocava. Era um grupo da mais alta
competência... E nos dava a entender que éramos
incompetentes. Ai de quem cometesse um erro,
um deslize. Eu tinha muito medo de ser apanhado
numa “gafe pedagógica”. Há muitas histórias sobre
isso, que aqui não apareciam, que não se comenta-
va. Mas, há meios de se sobreviver... Adiante vere-
mos, na eleição para diretor da escola.

Logo que pôde, transferiu-se para o turno da noi-


te, no qual funcionavam os Estudos Adicionais para
adultos. Assumiu a disciplina Programas de Saúde.

Esse turno era diferente. Professora Marita, a coor-


denadora, fazia tudo para que se pudesse trabalhar
mais livremente. Ela era cúmplice [...], mas pedia
que fôssemos com cuidado. O professor Marcos
pouco frequentava esse turno. As visitas, pela di-
retora adjunta, eram esparsas.

Em 1982, Samuel ganhou uma bolsa para apri-


morar seus estudos. Passou alguns meses na Alema-
nha e na sua volta, como o horário já estava fechado,
foi nomeado coordenador do turno da noite. Buscou,
na sua gestão, a abertura, facilitou a inovação.
Criou laços fortes com o grupo.

Enfrentei alguns problemas de “ordem” adminis-


trativa. Um exemplo bem corriqueiro: deveria im-
pedir a entrada, na escola, do aluno que estivesse
sem o jaleco. Eu não achava justo mandá-los em-
129
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

bora, fazê-los perder aula, mas, também como


membro do corpo administrativo, não deveria de-
sobedecer às regras. Resolvi o impasse compran-
do jalecos e deixando disponíveis para emprésti-
mo. Era o turno da resistência. Um fato ocorrido
nesse período: o retrato do professor Marcos, que
ficava na sala do Grêmio, apareceu de bigode e chi-
frinhos. Como mandava o figurino, comuniquei o
caso à Direção. A ordem foi: cobrir o quadro, não fa-
lar para ninguém e interditar o Grêmio por alguns
dias. Mas, todo mundo na escola ficou sabendo.”

Samuel nunca teve impasses com o professor


Marcos, mas o considerava uma pessoa distante dos
professores. Um homem de gabinete. Era difícil de ter
acesso ao...

Grande Pai, sempre muito sofrido, muito emocio-


nado, demonstrando todo seu sacrifício para nos
proteger, para nos manter nessa casa de amor. Foi
um grande Diretor para a época. Criou uma escola
sólida, mas faltou um pouco de humanização.

Hillman (2001, p. 120) salienta que é o poder que


vem com o cargo, e o cargo é apenas uma parte do po-
der. [...] Sem liderança, carisma, autoridade ou influ-
ência; o sujeito pode estar ocupando o cargo, mas não
terá o poder. O diretor possuía todas as qualidades
para exercer o cargo e o poder; entretanto, em virtude
da adoção de um paradigma tecnicista, faltava-lhe a
humanização. Na esteira do pensar de Morin (2012, p.
136), em suas atividades, o diretor exercia somente o
estado prosaico do existir, que é usado em situação
utilitária e funcional, nas atividades destinadas à so-
brevivência, a ganhar a vida, no trabalho submetido,
monótono, fragmentado, na ausência e no recalca-
mento da afetividade.

130
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Faltava-lhe experienciar o estado poético do


existir. Ainda segundo Morin (2012), esse estado é o
de emoção, de afetividade, realmente um estado de
espírito.
O tempo foi passando e, no início dos anos 1980,
a escola viveu um momento de grande impacto. O
ar da EPEEFM ficou pesado... Todos da escola foram
convocados para um pronunciamento do Diretor Mar-
cos. Um mistério! Num estilo bem formal, com o pátio
cheio de professores, alunos e pessoal administrativo,
Marcos anunciou a sua saída da escola, o seu pedido
de aposentadoria. A escola emudeceu atônita. Muitos,
mas muitos pedidos particulares, abaixo-assinados,
nada removeu a decisão do grande chefe.
Sentiram-se órfãos.
A escola começou a se agitar para a eleição do
novo diretor. A diretora adjunta do professor Marcos
era o grande nome para substituí-lo. Mas todos os
professores eram candidatos em potencial. Um movi-
mento em prol da eleição de Samuel foi feito e obteve
êxito. Travou-se um confronto e a força, a potência da
massa pode eclodir. Assim, Samuel tornou-se o novo
diretor.

A escola, apesar de estar quieta, passiva e funcio-


nando, tinha um grande descontentamento, uma
vontade de mudar. E o voto foi o exemplo. A can-
didata do poder, quando soube que não tinha sido
eleita, nunca mais pisou o pé na escola. Só vinha
assinar o ponto. Os primeiros meses como diretor
foram muito difíceis. Tive que aprender tudo sozi-
nho, pois o professor Marcos disse que não ia me
passar nada, que eu buscasse aprender. Ouvi tam-
bém de um grupo de colegas da escola: “Você vai
destruir a escola, vai acabar com tudo que a escola
tem de bom. Você não tem o direito de ser diretor”.

131
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Eu lhes respondi que tinha sim, pois havia sido


eleito. Mas recebi, também, muitas manifestações
de apoio. Um fato que me emocionou muito foi o
almoço de minha posse. E, nessa ocasião, aconte-
ceu uma coisa muito bonita: a cerimônia do “que-
brar o copo”. Uma professora, que era judia, enro-
lou um copo num pano, eu pisei no copo e quebrei
o copo. E ela disse: “O pior que possa acontecer na
sua gestão seja o quebrar um copo”. Isso foi muito
bonito para mim, porque essa professora era tida
como muito ligada à direção anterior. Naquele dia,
ela estava mostrando que ela queria renovação.
Aquilo foi uma coisa muito forte para toda a es-
cola. Ela, publicamente, colocou-se ao meu lado. E
muitos outros professores da velha-guarda vieram
e me disseram: “Samuel, nós estamos com você”.
Eram pessoas tidas também como muito fiéis à
antiga direção, mas elas sentiam que a escola vi-
via muito amarrada, elas queriam mudar. Elas fo-
ram maravilhosas.”

Samuel construiu seu caminho na EPEEFM de


maneira muito consciente. Soube valorizar e exaltar
o trabalho, o empenho do professor Marcos. Reconhe-
ceu e aproveitou o que a escola tinha de muito bom.

Eles criaram uma escola sólida. Isso deve ser dito


e reconhecido. Apenas não souberam acompanhar
a mudança que se fazia presente no país. Eu acho
que a minha gestão trouxe essa mudança, o bom
que já havia, com um pouco mais de humanida-
de dentro da escola, de humanização, de abertura
para a participação. Vamos mexer com as aulas,
vamos fazer aula prática, vamos passear, vamos
fazer isso, vamos fazer aquilo. A escola viveu mo-
mentos de euforia até.

Em outras palavras, Samuel soube unir o prosai-


co e o poético. O fato de quebrar um copo, um ritual,

132
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

foi um caminho. Assim, o novo diretor mostrou que


não iria destruir a escola, pelo contrário, propiciou a
abertura e o encontro mais informal e mais alegre en-
tre os professores, os alunos, o pessoal de serviços.

Nós criamos um sistema de encontro na última


sexta-feira de cada mês, num bar do centro da ci-
dade, e a escola ia. Tivemos ocasião de ter a es-
cola quase toda reunida, tomando chope junto...
Marido, mulher, filho, periquito, papagaio, todo
mundo. Foi uma forma que a gente encontrou de
dizer “puxa, a escola tem que ter o seu momento
de descontração”. Talvez eu tenha usado uma po-
lítica bastante esperta, não vou negar. As festas,
eu não obrigava ninguém a vir, vinha quem que-
ria, e vinham todos. Quando os colegas me viam
de vassoura na mão, no dia das festas, limpando a
quadra, todo mundo pegava a vassoura para varrer
também. Era uma forma esperta de ser, era uma
forma que eu encontrei de cativar os colegas. Uma
vez uma professora disse para mim, ali na escada:
“Samuel, eu não consigo tirar as minhas três fal-
tas, eu fico com uma raiva de você, pois quando eu
penso que você está tentando mudar essa escola
e eu estou em casa... Eu não consigo”. Eu usei as
minhas armas. Amenizei coisas que eram muito
fortes aqui.

Um clima mais descontraído parecia reinar na


escola. Um diretor mais próximo dos professores e
dos alunos. As festas e os rituais foram mantidos.

Esses rituais são antigos, vêm desde a criação das


Escolas Normais. Os alunos gostam – cerimônia
de incorporação, festa junina, festa da primavera,
semana da normalista e as festas de fim de ano.
Mas, o grande ritual acontece no último dia de
aula da terceira série – é música, é flor, é comida
e bebida, fotografia, blusa autografada. As alunas

133
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

não abrem mão de fazer uma festa separada, em


cada turma. É uma festa de muita emoção, de mui-
to choro, de muito abraço.”

As festas, as cerimônias estão no caminho dos


rituais e abarcam o estado poético. Para Morin (2012,
p. 137), a vida real da poesia é o amor. E acrescenta:

O estado poético dá-nos o sentimento de superar


os nossos próprios limites, de sermos capazes de
comungar com o que nos ultrapassa. Purga a an-
siedade, a preocupação, a mediocridade, a bana-
lidade. Transfigura o real. Estado transfigurador e
transfigurado da existência, é, certo, precário, ale-
atório, mas estado de graça. (Morin, 2012, p. 137).

O Samuel diretor deixou na escola a marca da


alegria e da proximidade. O tempo foi pouco, por volta
de dois anos para grandes projetos. Mas, fez a “transi-
ção” com o cetro e o gládio do amor. E, continuou pro-
fessor na escola. Hoje, faz parte do Setor Técnico Pe-
dagógico (SETEPE), com um trabalho respeitado por
todos. Falou com entusiasmo do Projeto Repetentes,
coordenado pela professora Gin.

Uma turma exclusiva para os repetentes foi uma


ordem da Secretaria de Educação. A princípio,
achamos um absurdo. E os alunos também. Então,
resolvemos criar esse projeto, com vistas a consi-
derar as turmas de repetentes não como as dos ex-
cluídos, dos fracassados. Eram turmas que teriam
um tratamento especial. Temos o cuidado de lhes
dar essa explicação. Fazemos um trabalho conjun-
to: SETEPE, professores e alunos. É feito, no início
do ano letivo, um levantamento sobre “quem ficou
reprovado em quê”. Assim, os professores partem
do conhecimento dos alunos. Há disciplinas que
não tiveram alunos reprovados, o que permite ao
professor avançar no conteúdo, evitando, dessa
134
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

maneira, a repetição. Aqui tem dado certo. A apro-


vação no final do ano é quase total.

Samuel fez algumas considerações sobre as ges-


tões que o sucederam:

Acho que a escola se perdeu um pouco na gestão


do meu sucessor. Este não pode ficar o tempo todo
na direção. A EPEEFM, hoje, há alguns resquícios
do passado, pois volta a ter algumas coisas rígi-
das que a gente tinha pensado que elas não iriam
mais voltar à escola. É uma escola muito organi-
zada, peca apenas por alguns pontos que ela não
consegue evoluir, pois fica presa a uma estrelinha
na gola do aluno, a uma cor de casaco, a uma situ-
ação de não liberdade para os setores. Os setores
têm que ter liberdade de criar. A direção tem de
juntar peças, tem de canalizar esforços. Ela não
pode centralizar. Em alguns momentos, volta um
“medo”, especialmente quando se fala de aluno, de
uniforme, de estrelinha, de escada, de entrada, de
porta de ferro, de horário. Coisa que a gente tinha
superado. Está voltando de uma maneira velada,
sutil, mas se percebe isso nos corredores da esco-
la. A escola foi e voltou um pouquinho atrás. Há
uma vontade, mas um medo de mudar.

Samuel é um grande mestre. Competente, alegre,


disposto sempre a ajudar. Um gentleman. Seu sonho
virou realidade. E com muito louvor.

Gláucia: o sonho de um mundo melhor
Gláucia é uma mulher pequena, mas de presença
exuberante. Alegre e muito simpática, é querida por
todos na escola.
A grande paixão de sua vida era a sociologia,
ser socióloga por profissão. Mas, a morte prematura
de seu pai, um oficial da aeronáutica, a fez mudar de

135
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

rumo. Precisava seguir uma profissão que lhe garan-


tisse um emprego certo e o mais rápido possível. Era,
na época, uma adolescente cursando o último ano do
ginásio. O magistério foi a solução.
Poderia aliar sociologia e magistério. Assim fez.
Terminou o curso científico no Colégio Pedro II e re-
cebeu o diploma de professora pelo Instituto de Edu-
cação.
Na Escola Normal, reconheceu sua habilidade
para lidar com crianças. O salário era suficiente para
se manter, morando com a mãe, bem como para pagar
o cursinho pré-vestibular. Conseguiu entrar na uni-
versidade e realizar o seu sonho, a sociologia. Ficou
fascinada pelo curso.
O início da carreira de professora não foi fácil,
pois teve início em uma escola no Morro do Alemão,
local perigoso, com discentes carentes de auxílio afe-
tivo. Um grande desafio para uma adolescente de 17
anos.

Eu era muito nova e assumi esse emprego no úl-


timo ano da Escola Normal. O governador colocou
na sala de aula as alunas da 3ª série, para suprir
a falta de professores. Nós tínhamos uma ajuda,
muito relativa, no Instituto de Educação. Era só
uma vez por semana, que era o dia de nossa folga,
para contar as nossas mágoas e receber orienta-
ção. A relação com a direção da escola era agradá-
vel. Você não imagina uma escola dentro do mor-
ro, com crianças carentes, [...] uma realidade na
qual não há livro nenhum que prepare você para
o enfrentamento. Não há teoria que coloque você
diante desse tipo de prática. Isso foi por volta de
1962. Mas, eu venci e terminei o ano contente.”

Gláucia pressentiu que somente uma mudança


paradigmática poderia lançar luz sobre o fenômeno da

136
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

teoria e que o impensado e o impensável estão mais


presentes do que nunca. Nosso conhecimento alcan-
ça a ignorância, mas enobrecida, pois não é mais a ig-
norância arrogante que se ignora, mas a ignorância
nascida do conhecimento que se reconhece ignorante
(Morin, 2012, p. 292).
O trabalho em outras escolas do município foi
mais tranquilo para Gláucia. O doloroso rito de pas-
sagem – a experiência positiva no Morro do Alemão
– lhe deu segurança e confiança na sua capacidade
para lidar com o ensino. Aprovada num concurso para
Escola Normal do Estado do Rio de Janeiro, iniciou
sua fase de professora nos cursos de formação de pro-
fessor. Até hoje, esse é o espaço de suas realizações.
Mestra dedicada, atuante e muito criativa...
Na Escola Normal Heitor Lyra, trabalhou durante
14 anos.

É uma escola que eu adoro profundamente. Um


pedaço da minha vida. Lá ocupei todos os postos,
com exceção do de diretora – supervisora, coorde-
nadora, agente de núcleo. Como tinha duas matrí-
culas, numa eu dava aulas de sociologia, didática
de estudos sociais e fundamentos da educação; na
outra, lidava com a parte técnico-burocrática. Saí
dessa escola, debaixo de choradeira, por força das
circunstâncias. Ela se localiza em Ipanema, e eu
trabalhava também na Universidade Gama Filho,
ambas distantes da minha casa. A convite de meu
colega, professor Samuel, vim trabalhar na EPEE-
FM, onde ele lecionava. Mas, meu cordão umbilical
estava preso lá.

Na EPEEFM, o primeiro ano foi muito difícil.

Essa escola era muito diferente do Heitor Lyra. Era


uma escola bastante tradicional. O diretor, o pro-
fessor Marcos, era uma pessoa bastante carismá-
137
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

tica e que tinha um grupo que trabalhava com ele


numa relação de confiança; eram os velhos. Havia
uma separação entre velhos e novos – os velhos
tinham uma sólida fama acumulada; quanto aos
novos, pairava uma certa desconfiança. A EPEEFM
era uma escola conhecida pela sua competência, e
eles desconfiavam de todos os novos. Não davam
nem tempo de a gente provar que também podia
ser bom. Isso me causou, inicialmente, impacto
bastante grande. Reconheço que eles eram com-
petentes e essa fama se conhecia em todo o Esta-
do. A relação era difícil. Havia uma cobrança, eles
viam a prova que você dava, julgavam e opinavam
sobre o que você trabalhava. Os professores novos
eram enviados para o turno noturno, chamados de
grupo rebelde. Era um curso à parte, de estudos
adicionais. Muito pouco visitado pela direção.

A sombra do puer, o senex, que é uma palavra la-


tina para designar “velho”, está presente no discurso
de Gláucia. O senex é associado ao deus Apolo disci-
plinado, controlado, responsável, racional, ordenado
(SHARP, 1997, p. 133). O confronto puer-senex revela-
se na EPEEFM e traz à tona o sentimento de impacto,
de dificuldade. Por um lado, a ordem, o estático; por
outro, o desejo de transformação impedido pelo racio-
nal, pelo ordenado.
O tempo foi passando... E veio a bonança. O dire-
tor, professor Marcos, pediu sua aposentadoria. A elei-
ção para novo diretor se anunciava. O grupo da noite
lançou a candidatura de professor Samuel, que saiu
vitorioso.

O professor Samuel quebrou o gelo que havia na


escola, na direção dele. É uma pessoa de fácil con-
vívio. Uma pessoa bastante humana. A partir daí,
a escola se tornou uma coisa única. Eu tenho sido
muito feliz aqui na EPEEFM. Eu gosto da escola.

138
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Hoje, a escola se tornou um lugar agradável. Eu não


sairia mais dessa escola, mas, no primeiro ano, eu
tive vontade de voltar para minha antiga escola.

O aparente equilíbrio entre o puer-senex, entre


o poético e o prosaico, fez com que a professora pen-
sasse que aquela escola era uma coisa única. Única
para ela significava ser especial. A docente transitava
entre o fazer prosaico e o fazer poético e, assim, dese-
nhou a sua trajetividade.
Assim, teve espaço livre para mostrar a sua com-
petência, para elaborar livremente o projeto de ensino
em que acreditava. Mostrou seu talento e obteve reco-
nhecimento de todos na escola. Foi coordenadora de
turno e logo teve seu nome indicado para as próximas
eleições. Ser diretora não fazia parte de suas ambi-
ções, preferia:

[...] planejar, bolar as coisas, mas o pessoal me pe-


diu para eu me candidatar, como diretora adjun-
ta do Mauro... Para manter o que o Samuel havia
conseguido. A professora Laís também se juntou
a nós. Vencemos. O Mauro depois de três meses
se afastou do cargo por motivos pessoais. Foi uma
experiência válida. Tive a oportunidade de abrir
as portas da escola para pessoas que realmente
precisavam – foi o de que mais gostei. A criação
do Projeto EPEEFM, pré-escola e alfabetização, em
função da Favela do Metrô, foi uma realização gra-
tificante. A professora Laís tinha muita experiên-
cia administrativa. Trabalhamos muito bem jun-
tas. Investimos muito sangue aqui dentro. Acho
que conseguimos manter a escola num padrão
bom. A EPEEFM foi uma escola normal de quali-
dade, e a gente não abre mão desse mito criado.
Existe um certo orgulho em manter a escola nessa
posição.

139
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Gláucia voltou, terminado seu mandato, para sua


sala de aula, para fazer aquilo de que gostava. Estudar,
aprimorar-se fazia parte também do cotidiano dessa
professora, que é mestre em Sociologia. Gostava de
trabalhar em grupo, assim, procurava envolver os co-
legas nos seus projetos.

Existe um grande grupo aqui dentro que é muito


interessante para se trabalhar, um grupo estudio-
so que valoriza o que faz, que procura ajudar, dar
sugestões, cooperar com material. Em um projeto
que fiz sobre o Rio de Janeiro tive a ajuda de mui-
tos colegas. Sem eles, eu não teria conseguido. En-
tra aí o prazer da profissão. É essa situação... Eu fiz,
eu consegui, eu tive sucesso, eu acho que a coisa
passa muito por aí e sinto falta desse tipo de traba-
lho em outras escolas. Eu acho que a escola ideal
seria essa, que tivesse o prazer constante, que pro-
piciasse a realização. E a EPEEFM é isso.

O prazer de lecionar é destacado porque há li-


berdade de trabalhar da forma em que se acredita ser
o certo. Mas essa forma de acreditar no que é o certo
vem mesclada com razão e emoção, com prosa e po-
esia, enfim, com o resultado dessa mescla: amor. Um
trabalho somente centrado na técnica, no racional,
afasta o discente do processo educativo. Havemos de
ter em mente que, como nos adverte Morin (2012, p.
59), conhecer e pensar não é chegar a uma verdade
absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza.
Nesse ínterim, a afirmação de Gusdorf (2003, p.
25) se faz necessária, quando afirma que se o raciona-
lismo fosse a verdade, o professor seria inútil.
Gláucia também reconheceu que esse grupo es-
tava perdendo a sua força.

A coisa está sendo bastante individualizada. O co-


lega até diz: “Foi bom você ter feito isso, não sei
140
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

como você tem coragem de fazer”. Ele vê você


como um verdadeiro Kamikaze, ao invés de ele
tentar junto, ele diz: “Isso é loucura, é só para al-
guns mesmo que são muito interessados. Eles es-
tão desmotivados”.

Remar contra a maré, como se diz informalmen-


te, é fato quando a professora percebe que é difícil
pensar de outra forma, quando percebe que o indivi-
dualismo prevalece – um retorno ao racional somente.
Gláucia entendia a escola como uma subcultu-
ra e, para que houvesse unidade entre as pessoas, ela
precisava de mitos – e de ritos...

A gente passa a vincular a escola em função des-


sas coisas... “A minha escola é bonita”, “eu sou da
EPEEFM”. Ela precisa sempre tratar de uma unida-
de, ter uma identidade... Eu pertenço a um grupo,
isso tudo faz parte do nosso ethos cultural. Per-
tencer à EPEEFM é uma coisa muito forte, não só
porque ela é arrumada, porque tem laguinho com
peixe, sala de professores com sofás confortáveis,
isso dá nossa identidade cultural. O ritual de che-
gada na escola, entrar na coordenação, este ser o
ponto de congraçamento, o prédio bonito, o quadro
de avisos na sala do professor com as datas dos
aniversários dos professores... São essas formas
simbólicas que fazem a humanidade. Outros pon-
tos também são significativos – mesinha de alu-
no no pátio, os bancos do pátio, o buraco embaixo
da escada que é o ponto de encontro das alunas,
esses símbolos escolares... São os nossos cantos.
Esse contato humano que a gente sente tanta falta
é que faz o espírito da escola, a sua estrutura está
aí, nas relações que você estabelece. A escola não
está só na sala de aula, ela está também nesses
pequenos lugares – a busca da qualidade humana
que as escolas precisam ter. Esses ritos seguram
o status quo da EPEEFM, baluarte da resistência.

141
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

As palavras de Gláucia demonstram a sua sensi-


bilidade, o seu entendimento das representações, dos
simbolismos, bem como da importância dos rituais
para o ethos da escola. Acredita, também, que a di-
reção atual busca manter relações de respeito com o
professor, de valorizá-lo, de proporcionar um ambien-
te agradável. Reconhece que a direção está presa a
certas incongruências do governo.
Gláucia falou sobre seus sonhos de juventude
com certa tristeza:

Eu estou em paz comigo mesma, ao mesmo tem-


po, tenho uma certa decepção com a carreira do
magistério, de eu não ter conseguido, da minha
geração não ter conseguido... Mudar esse mundo...
A geração de quebra de valores, de quebra de con-
ceitos, de quebra de ideologias. Pelo contrário, nós
vimos as coisas se degringolarem, e o poder ficar
mais forte. E as gerações que a gente formou en-
trar no rol da acomodação. Vejo hoje alguns dos
meus alunos brilhantes, como ministros e fazendo
parte do poder. Pessoas que foram da minha ge-
ração, meus grandes ídolos caírem do meu pedes-
tal... E eu aprendi com as palavras deles. Meus ve-
lhos e queridos professores... Hoje, instrumentos
do poder dominante. Isso é bastante decepcionan-
te. Quanto aos nossos alunos, vai ser muito mais
difícil para eles. O trabalho de reconstrução vai ser
muito mais doloroso. Nós tivemos os velhos mes-
tres, e eles vão ter quem? Os nossos mestres desa-
pareceram no tempo e no espaço. A nova geração
vai ter que tirar da pedra.

Gláucia sonhava com um “mundo melhor”, um


desejo de dimensões muito amplas, que ultrapassasse
os limites de uma escola, de pequenos grupos... Dessa
escola sobre a qual ela se sente tão feliz.

142
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Eu queria aquela escola atuante, que realmente se


preocupasse com o saber, que o saber fosse a pri-
mazia da escola, que o aluno também aprendesse
a querer saber. Eu acho que o aprender “o querer
saber” está sendo o maior desafio das nossas es-
colas. A escola em que as pessoas criam, estão
interessadas em saber coisas, descobrir coisas...
Esse sonho eu espero ver um dia realizado. Não
vejo isso aqui, como escola, como instituição, vejo
como experiências de caráter particularizado. Eu
não penso em ilhas, eu penso em continentes. E é
esse continente a gente não chegou ainda.”

Gláucia encontrou na EPEEFM um espaço aberto


para tentar “cumprir o seu sonho”:

É uma espécie de Narciso... Pelo menos eu cumpro


o meu sonho, eu estou realizando aquilo que se-
ria o meu sonho de educação, a busca, a percepção
que a gente tem da escola ideal, mesmo não sendo
na realidade, mas a gente mascara muito isso em
volta da escola ideal... Os pequenos sucessos, aqui,
são muito valorizados. Tudo que dá certo aqui é
bastante incensado. O que sustenta os professores
aqui é o prazer dentro do grupo, não é o prazer com
a profissão, nem com a educação de maneira geral,
é o esprit des corps, um baluarte de resistência a
todas as pressões.

Gláucia manteve uma relação de amor com a


EPEEFM... É uma casa, é uma família, eu me sinto
bem. Mas, Gláucia queria muito mais. Sonhava com
um mundo melhor... Que ainda não viu.
Gláucia é um exemplo de professora, um ser hu-
mano que merece a mais alta consideração. Talvez, se
muitas Gláucias existissem, quem sabe, o mundo se-
ria bem melhor.

143
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Duas histórias, dois movimentos a deslizar sobre


o silêncio do existir e o mistério da palavra
Não são os olhos que olham, são os sentimentos.
Não são os olhos que veem, são as emoções.
Somos todos cegos de contagiosa cegueira.
No mundo dos afetos somos cegos incuráveis.
– Olga de Sá.

As histórias contadas pelo professor e pela pro-


fessora permitiram que eles fizessem um exame de
seus valores pessoais, de suas tendências paradigmá-
ticas, epistemológicas e metodológicas, numa síntese
de que o conhecimento do professor é experimental.
Não foram os olhos que os auxiliaram a deslizar
as escadarias da memória; entretanto, foi o sentir (SÁ,
2005) que os fizeram adentrar no silêncio do existir
e no mistério da palavra. Invadir esse espaço no pa-
lácio da memória, na tentativa de pescar lembranças
nos oceanos desconhecidos da mente, nas esferas do
tempo, deslizando entre imagens, esses professores
evocaram a primeira visão da escola: a porta de entra-
da, pois a porta simboliza o local de passagem entre
dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e
o desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobre-
za extrema (Chevalier; Gheerbrant, 2012, p. 734). Se-
gundo esses autores, a porta não somente indica uma
passagem, mas convida a atravessá-la. É um convite
à viagem rumo a um além... (p. 735). No entanto, pela
experiência – que, no dizer de Larrosa (2014, p. 18),
é aquilo que nos passa, o que nos acontece e o que
nos toca, percebemos que, após a passagem, isto é, a
travessia por essa porta, há um labirinto. Chevalier e
Gheerbrant (2012, p. 530) salientam que:

O labirinto é, essencialmente, um entrecruzamen-


to de caminhos, dos quais alguns não têm saída e
144
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

constituem assim impasses; no meio deles, é mis-


ter descobrir a rota que conduz ao centro dessa bi-
zarra teia de aranha. A comparação com a teia de
aranha não é, aliás, exata, porque a teia é simétrica
e regular, enquanto a essência mesma do labirinto
é circunscrever no menor espaço possível o mais
completo emaranhamento de veredas e retardar
assim a chegada do viajante ao centro que deseja
atingir.

Esses autores (Chevalier; Gheerbrant, 2012) res-


saltam que o labirinto deve, concomitantemente, per-
mitir o acesso ao centro por uma espécie de viagem
iniciatória, e proibi-lo àqueles que não são qualifica-
dos (p. 530). Dito em outras palavras, chegar ao centro
e passar por um processo de (trans)formação é privilé-
gio para alguns; para outros, é proibido. Mas qual a for-
mação que os iniciados devem ter para dissipar as né-
voas que existem no começo dessa travessia e chegar
ao centro, sem proibições? Cremos que seja uma for-
mação centrada num paradigma que englobe cultura,
história, política, ética, embora não se reduza somente
a isso – como nos ensina o pensamento moriniano.
Nossos entrevistados adentraram o labirinto do
existir-no-mundo do fazer docente e, ladeados pela
razão mesclada à emoção, ultrapassaram passagens,
trajetos, (re)velando que somos cegos incuráveis por
vivermos num mundo em que a incerteza impera.
Nas esquinas labirínticas dessas memórias, em
cada ritual de passagem, em cada iniciação, em cada
passagem pelo fogo – o primeiro objeto, o primeiro fe-
nômeno no qual o espírito humano é refletido (Bache-
lard, 2008, p. 83) –, percebemos a faiscante e prazero-
sa lembrança do se contar. Para esse autor, só o fogo
merece o desejo de conhecer, haja vista que acompa-
nha o desejo de amar.

145
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

O contar-se é como a passagem da nigredo ao al-


bedo. O contar-se, a forma narrativa, é uma passagem
pelo fogo. Pelo fogo, tudo muda (Bachelard, 2008, p.
86). Com a mudança, com a (trans)formação, a purifi-
cação no consumir-se na chama e, consequentemen-
te, fazer descobertas. Descobertas sobre o si-mesmo.
Fazer descobertas sobre o si-mesmo, por meio
da narrativa, demonstra que são os sentimentos, as
emoções que olham e percebem o real – o que, pos-
sivelmente, pode nos livrar, pelo menos um pouco, da
cegueira, (des)vendando os mistérios do existir-no-
mundo, reencantando a prática docente.

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ção. São Paulo: Loyola, 1999.
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CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos:
mitos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 26ª
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sobre a narrativa de si na modernidade avançada. Natal:
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146
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

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base para as diferenças entre psicoterapia e disciplina es-
piritual. In: HILLMAN, J. O livro do puer. São Paulo: Paulus,
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rizonte: Autêntica, 2014.
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SHARP, D. Léxico junguiano: dicionário de termos e concei-
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WALLERSTEIN, I. O fim das certezas e os intelectuais com-
prometidos. In: MORAES, D. (org.). Combates e utopias: os
intelectuais num mundo em crise. Rio de Janeiro: Record,
2004.

147
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

148
ayvu

A autoetnografia como modo de


habitar sensibilidades e sentidos
da investigação narrativa1
Luis Porta2
Jonathan Aguirre3

Introdução
[…] as narrativas formam um marco dentro do qual se
desenvolvem nossos discursos acerca do pensamento e
a possibilidade do homem e proveem a coluna vertebral
estrutural e funcional para muitas explicações especí-
ficas de certas práticas educativas. Os relatos contri-
buem para fortalecer nossa capacidade de debater sobre

1
Tradução: Rafael de Souza (SME-RJ) e Tiago Ribeiro (CAp-INES).
2
Docente investigador da Faculdade de Humanidades da Univer-
sidade Nacional de Mar del Plata, Argentina. Doutor em Filosofia e
Ciências da Educação. Professor Titular da disciplina “Problemáti-
ca Educativa” da Faculdade de Humanidades, UNMdP, categoria 1.
Membro da Carreira de Pesquisador Científico de CONICET, catego-
ria independente. Dirige o Centro de Investigações Multidiscipli-
nares em Educação (CIMED/ UNMdP).
3
Doutor em Humanidades e Artes com menção em Educação
(UNR). Bolsista de Doutorado do CONICET. Especialista em Docên-
cia Universitária (UNMdP). Desenvolve suas funções docentes na
cátedra “Problemática Educativa” e “Sociologia da educação” da
Faculdade de Humanidades da Universidade Nacional de Mar del
Plata. É membro do Centro de Investigações Multidisciplinares em
Educação (CIMED/ UNMdP).
149
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

questões e problemas educativos. Ademais, dado que a


função das narrativas consiste em tornar inteligíveis
nossas ações para nós mesmos e para os outros,
o discurso narrativo é fundamental em nossos esforços
de compreender o ensino e a aprendizagem.
– Hunter McEwan e Kieran Egan.

Na investigação social, o trabalho de campo re-


presenta uma etapa crucial e central em que a sensi-
bilidade e a reflexividade do investigador são postas
em jogo permanentemente. Referimo-nos ao termo
“campo” como o referente empírico de uma investiga-
ção. É o que se aspira interpretar e compreender, é o
mundo natural e social no qual a vida dos grupos hu-
manos que o constroem se desenvolve. Sua composi-
ção é uma rede complexa que entrelaça o espaço físi-
co, os atores, suas atividades e seus sentimentos. Do
campo, surge a informação que o investigador obtém
e transforma em dados utilizáveis e suscetíveis de se-
rem interpretados na investigação. O real se compõe,
assim, não unicamente de fenômenos observáveis,
mas da significação que os atores atribuem a seu en-
torno e à trama de ações que os envolve (Guber, 2001).
O investigador cria e recria os significados do campo e
acessa dois domínios diferenciais, embora indissolu-
velmente unidos: o universo das ações e das práticas e
a dimensão dos sentidos e das representações; ambos
compõem igualmente o mundo singular do trabalho de
campo, que é intensamente habitado pelo investigador.
Nesse contexto, a investigação narrativa se
constitui em caminho e possibilidade de brindar ao
investigador um tipo de catalizador de seus próprios
sentimentos, reflexividades e significações das vozes
e das vivências que fazem parte do universo a indagar.
A narrativa, tanto do investigador quanto dos sujeitos,

150
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

é central para interpretar e compreender o fenôme-


no social em sua complexidade. Bolívar e Domingo
(2006) aclaram que a narrativa é um gênero relevante
para representar e falar da ação na vida cotidiana e
em contextos especializados. Por isso, este tipo de in-
vestigação configura um campo próprio, que adquire
maior relevância a cada dia e que se viu potenciali-
zado ante a decepção pós-moderna das grandes nar-
rativas e da reivindicação da dimensão pessoal nas
ciências sociais (Bolívar; Domingo, 2006).
No presente capítulo, tentaremos dar conta de
nosso processo reflexivo ao longo do trabalho de cam-
po e das diferentes oportunidades que nos presenteia
a investigação narrativa para poder explicitar tais
reflexões e sensibilidades e, ao mesmo tempo, poder
validá-las como instrumentos metodológicos poten-
tes na investigação qualitativa. Especificamente, cen-
traremos nas potencialidades e riquezas que o diário
autoetnográfico outorga, entendido como uma auto-
narração das próprias vivências e reflexividades do
investigador no decorrer do processo investigativo.
Um diário pessoal que se transforma em documento
narrativo na medida em que o objetivamos e, ao voltar
à narração, outorgamos-lhe diversas significações e
múltiplos sentidos (Suárez, 2017).
Para tanto, nos posicionamos em uma perspecti-
va de pesquisa que implica em colocar a reflexividade
do investigador no centro do processo. A reflexivida-
de, assim concebida, pressupõe uma reformulação da
forma e do modo de produzir o conhecimento social,
tomando distância de posições objetivistas e assumin-
do a capacidade reflexiva dos sujeitos, que nos permi-
te aceder às interpretações acerca do mundo social
no qual sua existência se dá. Dessa forma, a narrativa,
ao mesmo tempo em que no possibilita reconstruir e
151
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

reorganizar a experiência dos sujeitos através de seus


próprios relatos, implica-nos emocionalmente a par-
tir de nossas sensibilidades e sentimentos.
Recuperamos as potencialidades da autoetno-
grafia e da autorreflexividade no trabalho de campo,
posto que neste nos sentimos pessoas junto a outras
pessoas, [que ele] nos torna partícipes de dramas e de
alegrias, não pelo certificado ou pela licença que dão
mérito à nossa profissão, mas porque outro confiou
em nosso olhar e devolveu-nos a esperança de que a
comunicação é possível (Vasilachis, 2007, p. 25), daí o
valor de refletir sobre esta etapa da investigação nar-
rativa.
O relato autoetnográfico, que é apresentado neste
capítulo em forma de fragmentos, tenta dar conta de
nossa própria reflexividade. Essa narrativa foi escrita
no decurso do trabalho de campo e durante todo o pro-
cesso de pesquisa. A escrita de nossos sentimentos,
decisões, afeições, permitiu uma recursividade e uma
cristalização de múltiplos sentidos que nos possibili-
taram habitar a investigação assentes em outros olha-
res e refletir a partir das mesmas. Por essa razão, sus-
tentamos que a escrita sobre si mesmo, isto é, o relato
autobiográfico, possui um valor altamente formativo.

O dar-se conta das emoções e sentimentos, das


crenças e ideologias que a experiência vivida des-
perta na lembrança do entorno e das circunstân-
cias, na passagem à palavra escrita, nas releituras
sucessivas que permitem modificações, nessa fei-
tura cuidadosa, comprometida, implicada está boa
parte do potencial formativo da narração. (Souto,
2016, p. 43).

A narração, nesse sentido, não busca nem aspira


à objetividade, é, porém, expressão subjetiva. A nar-

152
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

rativa escrita é justamente isso, contar a experiência


vivida, escrevendo-a. Nesse sentido, e recuperando
Ricoeur (2009, p. 29), a narrativa é o lugar onde a exis-
tência humana recebe forma, onde se elabora e se ex-
perimenta na forma de uma história.
A experiência da qual daremos conta no corpo
deste artigo se desprende e é parte de uma investiga-
ção muito mais ampla: A formação docente na Argen-
tina. Um estudo interpretativo das políticas nacionais.
O caso dos denominados ‘Polos de Desenvolvimento’
(2000-2001), desenvolvida no Centro de Investigações
Multidisciplinares em Educação (CIMED) da Univer-
sidade Nacional de Mar del Plata. É parte integrante
das pesquisas que o Grupo de Pesquisas em Educa-
ção e Estudos Culturais (GIEEC) realiza, desde o ano
de 2003, nesta universidade, relacionadas ao enfo-
que biográfico-narrativo na formação de professo-
res, às identidades docentes, às políticas públicas de
formação, às paixões e emoções postas em jogo nos
relatos de professores memoráveis, partindo de uma
concepção de formação docente mais humanizada e
humanizante, construída sobre a base de narrativas
que falam de grandes continuidades entre mentores,
ofícios e aprendizes, de momentos epifânicos dentro
e fora das instituições escolares e a amálgama entre
o profissional e o pessoal destes professores memorá-
veis (Aguirre, 2016; Álvares; Porta; Sarasa, 2010; Porta;
Yedaide, 2013).

Referências gerais da investigação e do trabalho


de campo
O Polo de Desenvolvimento era pensar esse espaço de
uma instituição educativa que se transforma em algo
que pode gerar um projeto que lhe dá uma vida muito
mais rica, mais qualidade à formação e, ao mesmo

153
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

tempo, convoca, compartilha com outras instituições,


como universidades, escolas, e ajuda outros a se
desenvolverem, interna e externamente.
– Narrativa de Docente do ISFD nº 803 Puerto Madryn –
Coordenadora da Equipe dos Polos de Desenvolvimento.

No ano 2000, teve início um projeto de desenvol-


vimento e fortalecimento, no marco do Programa Na-
cional de Formação Docente do Ministério de Cultura
e Educação da Nação Argentina, coordenado por Edi-
th Litwin e seu grupo de trabalho. O projeto Polos de
Desenvolvimento teve como principal objetivo o for-
talecimento e o enriquecimento da formação docen-
te e das instituições formadoras. A partir da estimu-
lação de propostas educativas inovadoras e com alta
recuperação pedagógica, propôs-se a potencializar a
formação dos futuros docentes, propondo redes de tra-
balho colaborativo entre as instituições educativas
regionais através de linhas de especialização que os
próprios atores locais escolhiam. Para a implementa-
ção do projeto, foram selecionados 84 institutos de for-
mação de professores de todo o país, que trabalharam
em rede com instituições associadas: uma universi-
dade nacional mediante alguma unidade acadêmica
(uma cátedra, um departamento, um instituto ou uma
faculdade); mais de uma escola, todas elas próximas
geograficamente do polo, porém com características
substancialmente diversas como campo de ação edu-
cativa, e outros institutos, em uma ação concentrada
com as jurisdições.
Nossa investigação tenta recuperar os poten-
ciais de tal política pública, não desde uma aborda-
gem clássica, na qual as normativas e os documentos
oficiais são o centro da análise, mas como ponto de
partida na compreensão de que as políticas públicas
são redes postas em ação no território através de su-
154
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

jeitos que se apropriam, resistem, ressignificam os


diversos sentidos da política pública em questão. Por
isso, recuperamos as narrativas de tais atores, que
nos brindam com a possibilidade de imiscuir-nos em
um território pouco abordado na investigação sobre
políticas públicas na Argentina e que está sujeita aos
sentimentos, experiências, vivências dos sujeitos
que intervieram na efetivação da política. A narrativa
presenteia-nos com a oportunidade de habitar esses
relatos e de interpretar o projeto Polos de Desenvol-
vimento alicerçados em novas perspectivas. Para tal,
visitamos institutos de formação docente que foram
sede do projeto e relacionamo-nos com os atores que
fizeram parte deles.
Nosso trabalho de campo começou antes de vi-
sitar as instituições formadoras selecionadas. Para
compreender a política de formação docente, objeto de
nossa investigação, em primeiro lugar, entrevistamos
todos os coordenadores e a equipe nacional do proje-
to Polos de Desenvolvimento. Para isso, utilizou-se a
técnica da entrevista semiestruturada. Nelas, adotou-
-se o enfoque (auto)biográfico-narrativo como forma
de indagação na realidade educativa. O objetivo pri-
mordial deste recurso foi captar as narrações no meio
mais natural possível. Dentro do tipo de entrevista em
profundidade, elegeu-se a forma estruturada, aberta,
de caráter semiflexível com um roteiro de perguntas
que são feitas a todos os entrevistados, ainda que não
exatamente na mesma ordem (Taylor; Bogdan, 2007,
p. 100). O caráter semiaberto dessas entrevistas abriu
espaço para que o entrevistado adquirisse um papel
mais ativo, por momentos quase que guiando a en-
trevista mediante uma reconstrução entrelaçada por
acontecimentos do passado em função de sua relação
com o presente e com o projeto.

155
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

De ditas entrevistas – sete no total – surgiram


os Institutos de Formação Docente que decidimos in-
dagar. Aqui é quando se torna evidente que o próprio
campo vai moldando a investigação e vai levando-a
por caminhos que, a priori, não eram previstos (Gessa-
ghi, 2016). Trabalhou-se com cinco Institutos de For-
mação Docente, os Institutos de Formação Docente nº
803 de Puerto Madryn (Chubut), o Instituto Integral de
Educação Permanente (IIPE, de Santiago del Estero), a
Escola Normal José Gorostiága de la Banda (Santiago
del Estero), o Instituto nº 31 de Necochea (Buenos Ai-
res), e o Instituto Vicente D’Abramo de Monte Grande
(Buenos Aires).
Antes de visitar as instituições, foram realizadas
entrevistas com especialistas do campo da formação
docente com extensa trajetória acadêmica e grande
incidência na produção de conhecimento do objeto
de estudo. Isso permitiu, em primeiro lugar, ter o tes-
temunho dos referentes da formação docente sobre a
política coordenada por Edith Litwin e, em segundo
lugar, possibilitou-nos começar a instância do traba-
lho de campo nas instituições com um panorama am-
plo e ao mesmo tempo complexo do Projeto de Polos
de Desenvolvimento.
Particularmente, nosso trabalho de campo con-
sistiu em viagens e visitas aos institutos, onde foram
utilizadas diversas técnicas e instrumentos de coleta
de dados. Foram realizadas entrevistas em profun-
didade com os membros da Equipe de Polos de De-
senvolvimento, com os diretores dos institutos e com
estudantes; foi possível levar a cabo grupos focais,
alcançou-se um registro fotográfico de mais de 200
fotos das diversas produções e atividades que os ins-
titutos realizaram e, paralelamente a todas as visitas,
foi confeccionado um diário de campo no qual fomos
registrando todo o acontecido no campo.
156
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Além disso, durante o trabalho no campo, realiza-


mos o trabalho de arquivo, no qual foram recuperadas
produções do Projeto de Desenvolvimento na institui-
ção. Neste ponto, parece-nos interessante destacar a
recuperação da perspectiva de fazer Etnografia de Ar-
quivo (Rockwell, 2009, p. 157). O desafio que abordar
os arquivos documentais de maneira assente em uma
perspectiva etnográfica apresenta-nos é justamente
poder imaginar a história não oficializada (Certeau,
1982) das instituições de nossa investigação. Dessa
forma, o que enriquece a análise etnográfica das fon-
tes oficiais e normativas é ler os discursos sobre a po-
lítica como prática de um discurso (Rockwell, 2009).

A implicação e reflexão do investigador no traba-


lho de campo
A linguagem tem uma referência e um sujeito, um
mundo e uma audiência, no mesmo nível e na
mesma instância discursiva. A linguagem e a
narrativa implicam, também, em uma maneira
própria de designar o sujeito discursivo.
– Ricoeur.

A implicação é uma noção-chave dentro do pro-


cesso de investigação em geral e da etapa do traba-
lho de campo em particular. Ajuda a conhecer a reali-
dade que queremos compreender e renova a questão
da subjetividade ao afirmar que a inclusão do sujeito
ao conhecer, ao relacionar-se com os outros e com o
mundo se dá sempre de maneira natural, fazendo par-
te da trama pela qual se está interessado em conhecer
(Souto, 2016).
Nesse sentido, a implicação, às vezes, é incons-
ciente, é inerente ao ser humano. Ardoino (1997) a-
ponta que se padece a implicação; uma pessoa não se

157
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

afeta, mas é afetada: a implicação é aquilo pelo que


nos sentimos aderidos, arraigados a algo, ao que não
queremos renunciar (Ardorino, 1997, p. 52).
Gessaghi (2016) adverte-nos que não é possível
descartar ou lutar contra a implicação emocional e
psicoafetiva de si como investigador. Em vez disso, é
preciso aceitá-la, apropriar-se dela e utilizá-la como
mecanismo potente de interpretação dos dados e do
fenômeno social abordado. Que a investigação social
e, particularmente, o trabalho de campo mudem os
sujeitos e implique-os desde suas biografias, emoções
e sentimentos e possibilite compreender que a subje-
tividade do investigador não conforma um obstácu-
lo no processo de conhecimento, se analisado com o
mesmo rigor intelectual que se aplica a outro tipo de
dados construídos no campo (Gessaghi, 2016, p. 38). O
seguinte fragmento do diário autoetnobiográfico ex-
plica como, durante as entrevistas, o sujeito que in-
vestiga se implica no relato do entrevistado:
Algo me aconteceu pela primeira vez, é que, à me-
dida que fui narrando sua função como bibliote-
cário-arquivista na província de Chaco e que de-
talhava suas atividades, viagens, relação com as
pessoas. Fui imaginando a paisagem e viajei com
ela a esses Polos. Isto é... Em cada entrevista, viajo
ao projeto Polos e imagino-os. Sinto-me mais um
no relato, em sua vida. Os sentimentos estão à flor
da pele na medida em que vou entrando na profun-
didade do objeto que estudo. Era consciente de que
devia voltar ao papel de entrevistador, mas cus-
tou-me. (Diário Autoetnográfico, Cidade de Buenos
Aires, 17-03-2017).
Na sala onde seria realizada a entrevista, havia
cheiro de livros. É a primeira vez que tenho tempo
só e em silêncio para observar e deixar-me absor-
ver pelo clima e pelo contexto da entrevista. Pude

158
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

tomar consciência de meu papel, de objetivar-me,


até que Lidia subiu com duas delicadas xícaras de
café e um bule de leite para o café com leite. Tudo
estava pronto para começar. (Diário Autoetnográfi-
co, Cidade de Buenos Aires, 01-06-2017).

Na investigação qualitativa, a implicação do


sujeito que investiga é parte constitutiva, ignorar tal
fato seria ignorar o caráter humano da investigação.
O ponto chave está em analisá-la para não ficar cego
diante de sua presença ao saber que se está aderindo
de alguma forma ao que se observa, se escuta e que
isso exerce influências na forma de conhecer e inter-
pretar (Souto, 2016, p. 112). Dentro do amplo processo
de investigação, no trabalho de campo, o investigador
deve fazer o exercício de explicitar e de permitir-se
aproximar de seus afetamentos, porque ele mesmo se
afeta e é afetado pelo campo. Esse processo de análise
da implicação é uma via aberta para a investigação,
é um processo que, por sua singularidade, sua com-
plexidade e pela relação com o contexto situacional, é
sempre original, inédito, irrepetível e, claro, escapa a
toda tentativa de generalização da experiência, já que
é o próprio investigador que se implica. Aqui começa
a entrar em jogo a sensibilidade do sujeito que inves-
tiga ao mesmo tempo em que se confunde com as sen-
sibilidades próprias do campo que está observando.
O ser consciente da implicação e afetação que se
produz no investigador requer uma prática reflexiva
capaz de visibilizar tais aspectos. Demanda, de algu-
ma maneira, uma metacognição da pessoa. Sair de si
para poder observar-se e refletir, não sendo tal cami-
nho de reflexão simples nem isento de dificuldades.

A reflexão implica em um retorno da vista, da


atenção, do pensamento a algo ou a alguém para

159
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

permitir, a partir da capacidade de reflexividade


do sujeito, que a ação que tomou certa direção pos-
sa modificar-se nesse movimento de retorno que
permite questionar, seguir pensando, conceituali-
zar, captar o sentido e o vivido, modificar. (Souto,
2016, p. 76).

Isso se manifesta na narrativa que apresenta-


mos a seguir, em que é possível observar claramente
a implicação que, em alguns momentos, acontece nas
entrevistas:

Desfrutei do grupo focal com os professores do


ISFD Nº35. Mais ainda: não queria terminar. Por
momentos, vinham à minha mente os autores da
bibliografia de metodologia que li antes de visitar
o instituto. Aqui me dou conta da importância da
teoria no trabalho de campo. Pude ver, na prática,
o que os autores recomendavam. Creio que, ade-
mais, pus em jogo tudo o que sou. (Diário Autoet-
nográfico, Cidade de Buenos Aires, 13-06-2017).
Novamente, a ansiedade cobre-me por completo.
Em poucas horas, viajo à Córdoba para entrevis-
tar uma referência do projeto Polos. Espero poder
controlar a ansiedade. (Diário Autoetnográfico, Ci-
dade de Córdoba, 24-04-2017).
Com Mariana foi nosso terceiro encontro; me senti
bem recebido e cuidado. Ela foi extremamente ge-
nerosa, recebeu-me em sua casa, tomamos o café
da manhã juntos. Isto aconteceu depois de vários
encontros; a confiança foi sendo gerada pouco a
pouco. A confiança entre investigador e investiga-
do foi consolidando-se à medida que o entrevista-
do se dá conta da seriedade e do profissionalismo
do investigador [...]. Aqui pude ver o que a teoria e
a bibliografia sustentam sobre o vínculo entre os
sujeitos na investigação. (Diário Autoetnográfico,
Cidade de Buenos Aires, 01-06-2017).

160
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

A reflexão é tal, tanto caso de voltar a uma situ-


ação, a uma decisão tomada em campo, a um senti-
mento durante uma entrevista ou a uma simples ideia
expressa na escrita; abre, no tempo presente, múlti-
plas leituras para indagar, encontrar novos signifi-
cados e sentidos para a experiência e para a prática
profissional (Souto, 2016, p. 77). Neste mesmo sentido,
a reflexividade no trabalho de campo aportará a dife-
renciação dos contextos, a detectar cotidianamente a
presença dos próprios marcos interpretativos e o dos
informantes, ajudando a elucidar como cada um in-
terpreta essa relação, em busca de tornar possível o
estabelecimento de um nexo progressivo entre ambos
os universos (Guber, 2001, p. 213).
O trabalho reflexivo do investigador o faz vol-
tar a si mesmo enquanto sujeito e a suas ações para
gerar transformação nos vínculos, nos modos de ser
docente, na relação com o saber, nos sofrimentos e
afetações que o trabalho de pesquisa acarreta, o que
necessariamente significa mudanças na própria sub-
jetividade. É a reflexão que mobiliza, questiona e, con-
comitantemente, produz novos saberes. É por isso que
compreendemos a reflexão como um processo recur-
sivo e não linear, com idas e vindas conjuntas, ondas
do pensar, do conhecer, do sentir, do atuar.
Contudo, no trabalho de campo, especialmente
na investigação narrativa, não só se apresenta uma
reflexividade, mas são postas em jogo diversas refle-
xividades. Primeiramente, a reflexividade do investi-
gado como membro de uma sociedade ou cultura, em
seguida a reflexividade do investigador, que segue de-
terminada perspectiva teórica e, por último, as refle-
xividades dos atores no estudo (Guber, 2001). A seguir,
explicitamos dois traços das entrevistas mais difíceis
que surgiram. Elas significaram esse encontro de am-
161
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

bas reflexividades que se configuraram em uma expe-


riência altamente formativa:

A entrevista que acabo de fazer foi a mais difícil


que fiz até o momento. Sinto que ambos, entrevis-
tador e entrevistado, nos testamos, nos medimos
até onde estávamos dispostos a indagar, a respon-
der a cada um. Foi a entrevista mais difícil, porém,
ao mesmo tempo, me ensinou, porque nem come-
çamos e a entrevistada deixou claros sua postura
e posicionamento. Isso me ensinou que explicitar
a estrutura guia das perguntas antes de gravar é
central para gerar confiança no entrevistado e para
saber até onde está disposto a narrar e, ao mesmo
tempo, aprendi que a sinceridade e humildade são
a chave de todo encontro entre sujeito que investi-
ga e sujeito investigado, porque foi a partir desses
lugares que pudemos encontrarmo-nos. (Diário
Autoetnográfico, Cidade de Córdoba, 28-04-2017).
Por um momento, tive vontade de interromper a
entrevista porque sentia que não respondia com
comodidade e que suas respostas não aporta-
riam em demasia à reconstrução da experiência.
Depois, lembrei de minha ansiedade e que devia
dar-lhe tempo e dar-me tempo para pensar estra-
tégias metodológicas que ajudem à entrevistada a
recordar de sua experiência e a gerar o clima pro-
pício para que possa liberar-se [...]. Logo após esse
momento, decidi perguntar questões relativas ao
trabalho em equipe durante o projeto e questões
mais vinculares. Então ela se sentiu mais cômoda
e relaxada e pôde expandir-se mais. Ao terminar
a entrevista, fui embora com a sensação de ter to-
mado decisões concretas no meio da entrevista e
o poder dar-me tempo e espera. (Diário Autoetno-
gráfico, 23-03-2017).

O ponto nodal da reflexividade é considerar o


homem como parte do mundo social interatuando, ob-
servando e participando, com outros homens, de um
162
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

contexto e de uma situação espaço-temporal determi-


nada e, a partir daí, considerar o investigador como
parte do mundo que estuda. Como apontam Hammer-
sley e Atkinson (1994, p. 40) ao incluir nosso próprio
papel dentro do foco de investigação no mundo que
estamos estudando, podemos desenvolver e compro-
var a teoria sem ter que recorrer a inúteis chamadas ao
empirismo, em sua variedade naturalista ou positivista.
Assim, concebemos a reflexividade do investigador no
trabalho de campo a partir da qual descrever uma situa-
ção é construí-la (Vasilachis, 2007, p. 115). A reflexivida-
de emerge como suporte e, ao mesmo tempo, dinâmica
básica da proposta etnográfica, sustentada na relação
que se estabelece entre dois sujeitos interatuando e
participando. De tal maneira compreendida, a reflexão
é uma prática de implicação e, portanto, deve ser posta
em análise no próprio processo reflexivo, ainda quan-
do se trata de refletir sobre um objeto outro, outro su-
jeito, distinto de si mesmo (Souto, 2016).
A investigação narrativa é o contexto propício
para potencializar a reflexividade do investigador e
utilizá-la como metodologia qualitativa potente para
interpretar os dados da investigação. A narrativa se
transforma em catalizador dos sentimentos, emoções,
afetações do próprio investigador no processo do tra-
balho de campo. Narrar as próprias sensações à me-
dida que vão surgindo se transforma em um elemento
potente de meta-cognição do processo de pesquisa.
Assim, a narrativa nos presenteia a possibilidade de
materializar e de visibilizar, realçar, a própria subjeti-
vidade do investigador social.

Surpreendeu-me estar trabalhando na Biblioteca


Nacional do Professor e dizer... Sou bolsista do Co-
nicet4 e sentir-me investigador. O mais importan-
4
Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas, Argentina.
163
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

te foi quando encontrei, assim, fortuitamente, na


sala de documentação, o informe final da Gestão
de Edith Litwin, onde se detalhava o projeto de Po-
los de Desenvolvimento, objeto de minha tese. A
alegria me invadiu como quando a alguém é des-
velado um mundo desconhecido. (Diário Autoet-
nográfico, 29-03-2017).
Hoje cheguei a Buenos Aires para começar meu
trabalho de campo. Às 8h30, estava na estação de
Retiro. Novamente senti o mesmo que na primeira
vez em que viajei a Rosário para iniciar meu dou-
torado. Ansiedade, temor de não cumprir a entre-
vista, preocupação para que o início seja promis-
sor e possa ter um bom trabalho de campo. Agora
lembro das palavras de Gessaghi (2016), quando
sustentava que o início do trabalho de campo ge-
ralmente é angustiante, porque só no final é possí-
vel ver o trabalho realizado. Estou em meio a essa
sensação, mas confiante. (Diário Autoetnográfico,
30-11-2016).

Assente nesta lógica, as investigações de corte


narrativo não apenas permitem que os atores inves-
tigados narrem suas vidas ressignificando-as desde
o presente, mas fazendo alusão ao rastro do passado
que marca, que habilita o investigador a se pôr no lu-
gar do sujeito narrador de sua própria vida em relação
à investigação e ao trabalho em campo. É por isso que,
como aponta Guber (2001, p. 54), o conhecimento é re-
velado não ao investigador, mas no investigador, de-
vendo comparecer no campo, devendo reaprender-se
e reaprender o mundo desde outra perspectiva.
Por essa razão, o trabalho de campo é uma eta-
pa apaixonante da investigação e é comparável a uma
ressocialização do sujeito investigador, ou melhor,
como uma viagem odisseica5 cheia de desafios, con-

5
A categoria viagem odisseica é nativa das investigações reali-
164
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

tratempos e surpresas que o próprio campo vai outor-


gando à medida que se caminha nele.

O trabalho de campo na investigação narrativa:


Uma “viagem” apaixonante.
Estou saindo para Mar del Plata da estação de Retiro,
escrevendo no ônibus. Um sorriso se esboça em meu
rosto pela satisfação do trabalho cumprido. Por fim,
após idas e vindas, e-mails e encontros suspensos,
pude concretizar a entrevista com a coordenadora do
projeto de Polos. Foi a primeira entrevista em pro-
fundidade que fazia referência ao projeto. Me senti
cômodo, quiçá a calidez da entrevista e seu compro-
misso com o objeto de estudo da tese fez com que
eu me sentisse tranquilo e seguro ao mesmo tempo
[...]. Quando nos despedimos e nos cumprimentamos,
senti que começava um caminho que é promissor e
potente. Hoje iniciei a apaixonante viagem do
trabalho de campo, sem saber o que me espera.
– Diário Autoetnográfico. Cidade de Buenos Aires,
01-12-2016.

A relevância do trabalho de campo está vincu.


lada, em primeiro lugar, a uma tradição antropológica
para a qual a realização de dito trabalho supõe uma
decisão e um posicionamento incindível da prática de
investigação. Não só se trata de ir a um lugar, mas de
uma maneira de estar e, mais ainda, de uma forma de
posicionar-se no campo.
Sem dúvidas, a implicação do trabalho de campo
tem um referente inevitável nas proposições de Mali-
noswski (1995, p. 22), para quem tal trabalho pressupõe,
basicamente, a realização da observação participante
como o caminho a recorrer na busca pelo conheci-
zadas pelo Grupo de Pesquisa em Educação e Estudos Culturais
(GIEEC), dirigido por Luis Porta e localizado na Faculdade de Hu-
manidades da Universidade Nacional de Mar del Plata, Argentina.
165
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

mento da cultura, especialmente para compreender o


ponto de vista dos atores sociais. Daí em diante, põe-
se em marcha uma perspectiva de trabalho que, além
de vertebrar o exercício do ofício antropológico, mar-
cou decididamente a investigação social.
Referir-se ao campo implica um lugar particular,
aquele no qual os atores sociais desenrolam suas vi-
das, onde se encontram, interatuam, onde são geradas
e produzidas situações e acontecimentos que deman-
dam nossa atenção. Nas palavras de Guber (2001, p.
84), o campo se converte em referente empírico da in-
vestigação, no entanto enquanto tal, é o resultado de
uma construção levada a cabo pelo próprio investiga-
dor e seus informantes. Aqui se destaca a importân-
cia da própria subjetividade do investigador e o com-
ponente biográfico do mesmo na hora de construir o
campo.
Nesse contexto, a descrição etnográfica no
campo e sua interpretação mobiliza a totalidade da
sensibilidade do investigador e lhe conduz através
da visão, da audição, do olfato, do tato e do paladar
para deter-se às diferentes sensações encontradas e
detalhadas minuciosamente (Rockwell, 2009, p. 115).
Ingressar no trabalho de campo, como sustenta Ges-
saghi (2016), geralmente é angustiante e excitante ao
mesmo tempo, porque se está fazendo questões que
apenas no final do trabalho encontrarão sentido den-
tro de um todo organizado e interpretado.
Por esta razão, o ingresso no “campo” e fazer tra-
balho etnográfico implica em uma aprendizagem para
o investigador. Uma aprendizagem que requer mu-
danças e transformações na experiência da investi-
gação em geral e no trabalho de campo em particular,
na qual se intensifica a capacidade do investigador de
perceber a realidade, mas onde, por outro lado, agudi-
166
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

za sua exposição na mesma, com as implicações que


isto assume no nível de mobilizações internas e emo-
ções diversas. Como aponta Galindo Cáseres (1998,
p. 71), a experiência da investigação social muda os
sujeitos, os reconfigura, em alguns casos intensifi-
cando percepções prévias, em outros transformando
profundamente. De alguma maneira, o trabalho de
campo implica em uma sorte de artesania intelectual
(Alliaud, 2017), posto que se coloca na prática de um
ofício ao mesmo tempo em que converte e constitui o
investigador como principal instrumento de investi-
gação no campo.
A experiência do campo e o trabalho interpreta-
tivo devem transformar a consciência do investiga-
dor e modificar sua maneira de perceber os processos
sociais (Rockwell, 2009). Não se sai indene do traba-
lho de campo; o terreno sempre transforma (Gessaghi,
2016). Transforma porque mobiliza a totalidade da
inteligência e da sensibilidade do investigador. Isto
impulsiona ter um olhar flexível, propenso a deixar-
se impressionar pela realidade, sensível ao diverso,
porém atento ao imprevisível que está no cotidiano
(Vasilachis, 2007).
A metáfora da viagem nos proporciona a pos-
sibilidade de reinterpretar o que para nós significa a
instância do trabalho de campo. Disse Gessaghi (2016,
p. 40) a respeito: esse início do trabalho de campo foi
como o de uma viagem na qual as coordenadas da
proximidade e da distância não deixaram de se des-
locar. Compreender o trabalho de campo com base na
metáfora da “viagem” demanda pensarmos em nós
mesmos como viajantes empreendendo um caminho
que a priori se apresenta incerto e angustiante, mas
que, à medida que conhecemos, experimentamos, no
encontramos com outras pessoas no meio desse ca-
167
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

minho, essa viagem se torna prazerosa e convida-nos


a conhecer cada vez mais lugares.
As viagens a Buenos Aires me são mais familiares
e o metrô já começa a ser parte da paisagem da in-
vestigação. Volto na linha D, passando as estações,
pensando que cada entrevista realizada é um pas-
so a mais na direção do objetivo da investigação
e, ao mesmo tempo, se transforma em pequenos
ensinamentos formativos. (Diário Autoetnográfi-
co. Cidade de Buenos Aires, 23-03-2017).

Em uma viagem sempre acontece um encontro.


As viagens são encontros. Viaja-se para encontrar:
para encontrar cidades, para encontrar costumes,
para encontrar práticas sociais, para encontrar pes-
soas. Se alguém viaja com a ideia do encontro, aber-
to ao encontro, seguramente dele sai profundamente
enriquecido, como se sai das viagens (Álvarez; Porta;
Sarasa, 2010).
No trabalho de campo, devemos necessariamen-
te ter a capacidade de assombrar-nos, de estarmos
abertos ao espontâneo e circunstancial que acontece
em nossa visita ao campo. Não é possível ingressar
nele sem ter a sensibilidade, a abertura e o olhar flexí-
vel ao espontâneo que, por momentos, o próprio cam-
po oferece. De igual maneira ocorre nas viagens. Dei-
xamos nos assombrar pelas paisagens, pelas cidades,
pelas culturas, nos deixamos assombrar pelo novo,
experimentando-o através de todos os sentidos. Essa,
precisamente, há de ser a atitude do investigador no
trabalho de campo (Vasilachis, 2007). Um exemplo
dessa situação no campo foi um encontro fortuito:

A viagem começou falando do clima, da universi-


dade, do painel que devia expor no congresso, to-
das palavras para passar o tempo. Eu, um bolsista,
estava levando uma reitora de universidade para o
168
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

hotel no marco da I Fábrica de Ideias que aconte-


ceu em Mar del Plata. Tudo mudou quando me per-
guntou sobre meu trabalho no Grupo de Pesquisa.
Expliquei-lhe que era bolsista e que investigava
um projeto de formação docente chamado Polos
de Desenvolvimento. O ar foi cortado por alguns
segundos quando ela responde: “Não me diga! Eu
fui assessora do Polo de Desenvolvimento de Cha-
co”. Aí me veio à mente a ideia do imprevisível do
campo. O campo cobra vida própria e te leva por
caminhos inesperados. Imediatamente lhe per-
guntei se poderia entrevistá-la. Ela me disse que
com todo o prazer me concederia a entrevista.
Uma jogada do destino me pôs ali e eu devia apro-
veitá-la. Era minha primeira entrevista com uma
assessora do projeto Polos. (Diário Autoetnográfi-
co. Cidade de Mar del Plata, 23-03-2017).

Sem dúvidas, o viajante não é o mesmo ao retor-


nar da viagem (Álvarez; Porta; Sarasa, 2010). Quando
se volta de uma viagem, a pessoa não é a mesma que
iniciou o caminho ao desconhecido. A pessoa retorna
com outras vivências, outras paisagens, tendo se rela-
cionado com outros sujeitos, outras culturas. Pois, da
mesma forma que uma viagem transforma o viajante,
o trabalho de campo o faz com o pesquisador. O in-
vestigador social não é o mesmo ao retornar do cam-
po. Não é o mesmo pelo simples fato de que algo em
sua subjetividade, em sua sensibilidade, em sua bio-
grafia mudou. O contato com o campo, com pessoas,
com instituições transforma, educa, produz uma nova
reflexividade no sujeito que investiga. Nesse sentido,
Rockwell (2009, p. 196) argumenta que a experiência
etnográfica, no campo e no arquivo, transforma nos-
sas maneiras de pensar e de ver, inclusive de ser.
Hoje, no Instituto, sinto que estou dentro do Polo
de Desenvolvimento. Durante o grupo focal, sinto

169
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

que já não era o mesmo, que havia aprendido, que


toda a experiência havia sido altamente formativa
para mim. Por momentos voltava a minhas classes
de biologia do ensino médio enquanto os docentes
narravam suas atividades em ciências naturais.
Isto me fez consciente do quanto de minha biogra-
fia está posta em jogo na investigação. Realmente,
não sou o mesmo que entrou no instituto e muito
menos o mesmo que iniciou este diário no come-
ço do trabalho de campo. (Diário Autoetnográfico.
Monte Grande, Buenos Aires, 16-06-2017).
Saí do campo, do instituto, com certa nostalgia.
Deixar o trabalho de campo gera certo duelo ou va-
zio, porque uma etapa é terminada, mas se inicia
uma nova na investigação. Sinto que me envolvi
muito, sinto que aprendi muito. (Diário Autoetno-
gráfico. Monte Grande, Buenos Aires, 16-06-2017).

Nessa mesma linha, sustentamos que o traba-


lho de campo é um retornar permanente a si mesmo.
Uma viagem que sempre provoca a voltar ao que se é,
a como se vê e a como entende os fenômenos que nos
rodeiam. É, em alguma medida, voltar à sua própria
narrativa, à sua própria subjetividade:

Sem dúvida, considerar que este é o centro, o mio-


lo do processo do qual se fala, tem a ver com um
pressuposto: o retorno a si, se efetivamente pro-
duzido, permite ampliar o conhecimento que o
sujeito investigador tem sobre seus marcos re-
ferenciais operantes e possibilita-lhe aumentar
o conteúdo que conterá seu parêntese durante a
análise no campo. (Fernández, 2011, p. 58).

O investigador saberá mais de si mesmo depois


de ter se colocado em relação com os atores no cam-
po, precisamente porque, a princípio, só sabe pensar,
orientar-se aos demais e formular perguntas a partir
de seus próprios esquemas. Porém, no trabalho de
170
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

campo, aprende a fazê-lo assente em outros marcos


de referência com os quais necessariamente se com-
para (Guber, 2001).
Por último, o processamento e interpretação dos
dados recuperados em campo levam o investigador a
um retorno a essa viagem realizada anteriormente e,
assim, a poder narrar a experiência vivida (Rockwell,
2009, p. 195). Não é uma simples narração descritiva,
mas uma onde o pesquisador põe em jogo suas inter-
pretações, seus marcos teóricos, suas vivências e, so-
bretudo, sua própria subjetividade, posto que os dados
recuperados do campo são verdadeiras construções
do investigador após interpretar o objeto de estudo.
Pensar o trabalho de campo com base na metá-
fora da viagem ajuda a compreender ainda mais o que
o investigador social sente, experimenta e vive ao re-
alizá-lo. Uma viagem que, como dissemos, por vezes
se torna complexa, instável, angustiante, incerta, mas
que, concomitantemente, é altamente formativa, que
transforma o pesquisador, enriquecendo seu olhar e,
principalmente, lhe oportuniza voltar a si mesmo e
reencontrar-se.

Relatos subjetivantes: Potencialidades do registro


autoetnográfico na investigação (auto)biográfico-
narrativa
Entendemos como narrativa a qualidade estruturada
da experiência entendida e vista como um relato, por
outro (como enfoque de investigação), as pautas e
formas de construir sentido, a partir de ações
temporais pessoais por meio da descrição e análise
dos dados biográficos. É uma particular reconstrução
da experiência pela qual, mediante um processo
reflexivo, se dá significado ao sucedido ou vivido.
– Bolívar.

171
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Como sustentamos em linhas anteriores, enten-


demos o processo de pesquisa como um processo re-
flexivo. Tal processo possibilita nos darmos conta e
explicar nossas próprias ações e a diversidade de con-
dicionantes que as determinam. Assim, a reflexão per-
mite levar em conta a relação entre teoria e prática,
entre pensamento e ação (Sanjurjo, 2002).
Utilizar instrumentos metodológicos como o
diário autoetnográfico implica em inscrevermo-nos
fortemente em uma perspectiva interpretativa selada
nas ciências sociais a partir do chamado giro herme-
nêutico. Esse paradigma privilegia o acesso ao mundo
das interpretações (Geertz, 1994), restaurando o valor
das significações que os sujeitos outorgam ao mundo,
em um esforço para compreender as intenções huma-
nas (Bruner, 1998). Os textos construídos pelos atores
sociais, inevitavelmente contextuais e complexos,
tornam-se, deste modo, fonte de conhecimentos re-
levantes como experiência no mundo, irredutíveis às
explicações causais e, simultaneamente, isentos das
“garantias” dos métodos clássicos das ciências físicas
e naturais (Bolívar, 2016).
Entendemos, nesse contexto, que as narrativas
estão presentes em todos os aspectos da vida, abar-
cando desde memórias pessoais até a literatura e a ci-
ência, a fotografia e a arte. Não há registros narrativos
únicos, em vez disso são múltiplos e polifônicos (Por-
ta, 2015). A partir dessa perspectiva, a narrativa com-
bina o relato com o conhecimento e a compreensão
daquilo a que se está referindo (Martin, 2008).
Nos últimos anos, Clandinin e sua equipe de tra-
balho têm enriquecido ainda mais o mundo da indaga-
ção narrativa, utilizando a prática reflexiva para aju-
dar distintos profissionais a se aprofundarem em suas
identidades pessoais e profissionais (Clandinin; Cave,
172
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

2011). Dessa maneira, a investigação narrativa tornou-


se uma pedagogia na educação (Huber et al, 2013).
Seguindo a senda hermenêutica traçada por Ga-
damer (1996), Ricoeur (2009) aponta que a narrativa
está intimamente relacionada ao problema da identi-
dade pessoal e às aporias temporais. Assim, o estudo
sobre a identidade pessoal e a identidade narrativa é
apresentado a partir desse autor como um trabalho fi-
losófico reflexivo, de meditação, uma atividade inter-
pretativa. É a partir da narrativa que se resolvem os
paradoxos da identidade pessoal, a pessoa entendida
como um personagem do relato não é uma entidade
distinta de suas experiências, muito pelo contrário:
partilha do regime da identidade dinâmica própria da
história narrada (Ricoeur, 2006, p. 147).
Alicerçado neste mundo de significações, refletir
sobre as implicações do diário autoetnográfico como
uma das técnicas metodológicas que utilizamos em
nossas investigações provoca, também, uma reflexão
sobre o próprio estudo da narrativa e sobre a própria
subjetividade do investigador social. Connelly e Clan-
dinin (1995) afirmam que o estudo da narrativa é o es-
tudo da forma através da qual os seres humanos expe-
rimentam o mundo:

A razão principal para o uso da narrativa na in-


vestigação educativa é que os seres humanos são
organismos contadores de histórias, organismos
que vivem vidas relatadas. […] Por isso, dizemos
que a narrativa é tanto o fenômeno que se inves-
tiga como o método de investigação (Connelly;
Clandinin, 1995, p. 11).

Dessa maneira, como primeira aproximação, po-


deríamos dizer que o diário autoetnográfico represen-
ta justamente a forma através da qual o investigador

173
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

experimenta, sente, pensa e vive o processo de pes-


quisa. O diário autoetnográfico é por si só uma narra-
tiva produzida pelo sujeito que investiga os efeitos de
poder explicitar as diversas vivências, sentimentos,
interpretações que vai registrando e sentindo ao longo
não só do processo de investigação, mas, particular-
mente, no próprio trabalho de campo.
É, como argumentam os autores, um relato pes-
soal do investigador onde fica explícita a sua própria
subjetividade: A narrativização da vida em um autor-
relato textualiza a vida, textualiza as experiências
vitais e as converte em um texto (Bolívar; Domingo;
Fernández, 2001, p. 31).
Relatar ou narrar as experiências no processo de
investigação é uma forma de habitar nossos próprios
sentidos e nossas próprias palavras. Assim, a escrita
do diário autoetnográfico é uma forma no espaço que
prefigura o habitar de nossas ideias (Martínez; Ben-
goa, 2016, p. 47) ao mesmo tempo em que se transfor-
ma em uma aventura levada a cabo na ocupação do
espaço (Martínez; Bengoa, 2016, p. 48).
A seguir, os fragmentos mostram pinceladas de
sentimentos e emoções que o investigador coloca em
jogo em relação ao trabalho de campo. Destacamos a
figura do orientador como guia, acompanhante e mes-
tre no processo:
Simplesmente tinha necessidade de escrever o
que estou pensando e sentindo após um janeiro
de trabalho caloroso em Mar del Plata. […] Com o
trabalho em capítulos da tese, me dou conta de
como se vai madurando e entrando pouco a pou-
co na tese. Vou entendendo processos e armando
em minha cabeça o esqueleto do documento final
(a sinto tão distante e, ao mesmo tempo, se torna
pouco a pouco tão íntima). (Diário Autoetnográfi-
co. Monte Grande, Buenos Aires, 16-06-2017).
174
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Temo que esteja com dificuldades para abandonar


o campo, sinto que sempre se pode buscar mais,
que me faltam dados. A figura do orientador se
torna cada vez mais importante, porque marca os
tempos e os fechamentos. Já é hora de abandonar
o campo e compreender a nova etapa da tese. (Diá-
rio Autoetnográfico, 1-06-2017).
Às 15h, saí para ir à casa da antiga assessora do
Programa de Formação Docente que marcou o Pro-
jeto de Polos de Desenvolvimento. Pensar que há
alguns anos lia seus trabalhos e agora me encontro
indo à sua casa. Aqui aparece outro rastro e apren-
dizagem. Lembro que meu orientador contava so-
bre seu costume de comprar biscoitos finos antes
de visitar um entrevistado. É um gesto que cria o
clima de cordialidade e confiança entre ambos os
sujeitos da investigação. No caminho para a casa
da assessora, recordei do relato de meu orientador
e disse: “Por que não fazê-lo eu também?”. Rastros
que surgem no momento menos esperado. Assim,
passei por uma padaria, comprei 250g de biscoitos
e me dirigi ao encontro. (Diário Autoetnográfico.
Cidade de Buenos Aires, 1-06-2017).

No diário autoetnográfico entendido como re-


lato, o sujeito repensa e reinventa suas experiências
no campo, as interpreta tomando autoria dos fatos e,
portanto, podendo imaginar possibilidades de atua-
ção futuras diferentes. É, em definitivo, um registro de
experiências, um conhecimento consciente da sin-
gularidade de cada indivíduo (Bolívar; Domingo; Fer-
nández, 2001). A partir do narrar nossos afetamentos e
emoções, que conformam nossa própria subjetividade,
nos transformamos em narradores de experiências e
práticas de investigação. E, assim, toda narração au-
tobiográfica já pressupõe, em si mesma, uma interpre-
tação, construção e recriação de sentidos, leituras do
próprio mundo e da própria vida.

175
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Diferentemente de um diário de campo, o diário


autoetnográfico que utilizamos em nossas pesquisas
recupera o que o investigador vai sentindo, não só no
momento do trabalho de campo, mas ao longo do pro-
cesso investigativo. Assim, o diário se torna um tipo
de uma bitácula onde ficam registradas emoções, an-
siedades, preocupações, alegrias, desafios, decisões
que vai o investigador experimentando e que juntas
implicam uma aproximação metacognitiva do pro-
cesso de investigação.

Quando terminei a entrevista com Elisa, peguei o


metrô para a 9 de Julho.
Lá, me esperava meu pai para que empreendêsse-
mos a viagem de volta a Mar del Plata. Como de
costume, tomei um café para esperá-lo e, enquanto
isso, me dispus a passar a conversa do gravador
para o notebook e para o pen drive. Quando co-
nectei o gravador ao notebook, o mundo se deteve
por alguns segundos. O gravador ficou em branco
e não respondeu mais. O arquivo estava dentro e
não pude baixá-lo. [...] a viagem de volta foi difí-
cil, minha ansiedade estava à flor da pele. Pensava
permanentemente nas variantes que tinha, devia
fazer a entrevista novamente, viajar de novo [...].
Chegando a Mar del Plata, o gravador desligou-se,
ficou sem bateria. Pensei que quando o conectas-
se novamente recuperaria o arquivo. Chegamos às
23h e a primeira coisa que fiz foi verificar se ele
funcionava e se o arquivo estava nesse. Felicidade
e aprendizagem. Foi uma aprendizagem enorme.
Serviu para eu saber que tenho de confiar mais.
Também entender que nem tudo depende de mim
nem de minha responsabilidade. Tive sorte em
meu trabalho de campo, não tive maiores contra-
tempos. Tenho de relaxar mais e saber que os tem-
pos são distintos na tese e na investigação. Apren-
di a controlar, em parte, minha ansiedade e isso
é bom. (Diário Autoetnográfico. Cidade de Buenos
Aires, 3-08-2017).
176
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

A partir do registro autoetnográfico, o investiga-


dor pode reconstruir a investigação assente em um
lugar reflexivo, analisando o processo desde outra
magnitude. O que tentamos fazer a partir do diário
autoetnográfico é tomar consciência do processo in-
vestigativo experimentado. O diário outorga a possi-
bilidade de, uma vez concluída a investigação, reali-
zar a metacognição da mesma. É, de alguma maneira,
a consciência e a consideração por parte da própria
pessoa de suas estratégias e processos cognitivos
(Souto, 2016). Assim, refletir sobre a ação realizada
implica tanto na possibilidade de melhorar a própria
aprendizagem como, também, a capacidade de conhe-
cer e melhorar as próprias capacidades e limitações.
A tarefa do investigador está atravessada por
uma infinidade de tensões ao longo do processo de in-
vestigação. Essas tensões, em certas ocasiões, estão
relacionadas às decisões que vai tomando em conjun-
to com o orientador na eleição e abordagem do tema
e da bibliografia, na estrutura do trabalho, no trabalho
de campo, na interpretação dos dados obtidos e, parti-
cularmente, no trabalho de escrita final.
O relato autoetnográfico constitui o âmbito fun-
damental para organizar a experiência da investiga-
ção, para expor nossas intuições a partir dos referen-
tes empíricos que vão nos revelando no campo (Vasi-
lachis, 2007). É, ao mesmo tempo, uma oportunidade
para detectar inclinações pessoais, situações ou vi-
vências que podem de alguma maneira incidir no mes-
mo. A relação entre o pessoal, o emocional e o intelec-
tual se transforma mediante a análise reflexiva que en-
contra, no diário autoetnográfico, o espaço propício
para sua manifestação (Hammersley; Atkinson, 1994,
p. 183).

177
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Nesta instância, o instrumento básico de toda


investigação qualitativa, particularmente da investi-
gação narrativa, é o próprio investigador, suas apre-
ciações e experiências, o que sente e lhe passa, distin-
tas situações e acontecimentos vividos que confluem
no processo de construção social do conhecimento.
Neste contexto, a autorreflexividade emerge
como suporte e, concomitantemente, como dinâmica
básica da proposta etnográfica, posto que, sem uma
verdadeira introspecção nas reflexividades do in-
vestigador, não se pode alcançar uma interpretação
complexa do objeto que se indaga. Ou seja, toda situ-
ação que se observa é construída com base em nossa
subjetividade. Explicitá-la aporta não só uma valida-
ção metodológica, mas permite enriquecer o olhar e
aceitar que nossa subjetividade e implicação como
sujeitos estão presentes na interpretação dos dados
recolhidos no campo. A reflexividade do investigador
se transforma no eixo do trabalho etnográfico.
A narrativa e o enfoque narrativo vêm auxiliar
o investigador etnográfico. Tal enfoque permite ao
sujeito que investiga narrar suas sensações, medos,
angústias, alegrias, afetações e emoções que vai vi-
vendo e experimentando ao longo do trabalho de in-
vestigação, particularmente na instância do trabalho
de campo. Narrar nossas experiências e nossas deci-
sões em campo permite obter um novo instrumento
de coleta de dados, mas, ao mesmo tempo, implica na
utilização dessas mesmas narrações como elemento
catalítico (Yedaide; Alvarez; Porta, 2015) do trabalho
de investigação. A narrativa, assim, se torna um bál-
samo que nos presenteia a possibilidade de encon-
trar a voz do coração [...], a busca de nossa própria
voz interior (Najmanovich, 2014, p. 58). Permite-nos,

178
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

de alguma maneira, objetivar nossa própria subjetivi-


dade e, ao fazê-lo, tomamos consciência, também, de
nossos processos de formação como investigadores,
daí a validade catalítica da narrativa (Anderson; Herr,
2007).
Em nosso caso, à medida que avançava a inves-
tigação e nossas visitas ao campo, fomos narrando,
contando, fazendo uma autorreflexão de nossas vi-
vências e experiências em um diário autoetnográfico.
Fomos documentando narrativamente tudo que senti-
mos, vivemos, fomos e somos em torno do processo de
investigação. Em dito registro, entendido como relato,
repensamos e reinventamos nossas sensações, as in-
terpretamos assumindo autoria dos fatos e, portanto,
pudemos imaginar possibilidades de atuação futuras.
É, definitivamente, um registro de experiências, um
conhecimento consciente da singularidade de cada
indivíduo (Bolívar; Domingo; Fernández, 2001).
Do ponto de vista metodológico, utilizamos o
registro escrito para dar conta do que fomos viven-
do ao longo do processo de investigação. O diário foi
sendo completado à medida que habitávamos cada
vez mais os territórios do campo. Entrevistas, grupos
focais, visitas a institutos de formação docente, via-
gens, encontros, conversas com colegas, tudo foi re-
gistrado a partir de nossa vivência e sentimentos. O
texto construído foi sendo ressignificado com o tem-
po e foi constituindo-se numa malha de experiênci-
as altamente formativas e profundamente subjeti-
vantes.

179
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

A narrativa autoetnográfica como miscelânea de


significações e cristalização de sentidos6
A escrita e a narrativa romperam o limite imposto
pela existência humana: a morte. A escrita permite
não só deixar marcas que perduram para além da
própria existência, mas, também, mensagens que
falam da posterioridade [...].
– Assmann.

Tentamos, neste capítulo, habilitar a reflexão em


torno da implicação e das sensibilidades que são pos-
tas em jogo pelo investigador ao longo do processo de
investigação, especialmente na instância do trabalho
de campo. Implicação, reflexão e narração foram os
conceitos que vertebraram o trabalho e que configu-
ram os elementos centrais, se o que se pretende é ex-
por os processos vitais que vão acontecendo na pessoa
do investigador ao longo do processo de investigação.
Ao caracterizar a narrativa autoetnográfica como mis-
celânea de significações (PORTA, 2017), fazemos refe-
rência à polifonia de significados que o narrador vai
entretecendo à medida que narra suas próprias expe-
riências. No relato se produz, inevitavelmente, a recur-
sividade dos significados que o pesquisador outorga a
suas interpretações e vivências.
No ir e vir da interioridade à palavra escrita, do
vivido à lembrança, do voltar a atenção aos nossos
sentimentos desde outro lugar, faz-se com que, por ve-
zes, o trabalho de escrever, de narrar, forme, eduque.
Quem narra suas experiências, suas emoções, seus

6
Recuperado da Conferência de Abertura A narrativa biográfica
como miscelânea de significações e cristalização de sentidos, mi-
nistrada pelo Dr. Luis Porta, no marco da II Fábrica de Ideias (His-
tórias e práticas) realizadas na cidade de Mar del Plata (Argenti-
na), nos dias 7, 8 e 9 de setembro de 2017.
180
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

medos, afetações e alegrias pode abrir seu pensar e sua


própria subjetividade e, assim, aprender do já vivido,
ressignificando-o, atribuindo-lhe novos sentidos. Par-
tir da aceitação de que o sujeito que investiga se impli-
ca e, ao implicar-se, o entorno e sua própria reflexivi-
dade em relação ao objeto de estudo requer a neces-
sária explicitação e todo esse caminho que o investi-
gador percorre. Assim, a narrativa é o lugar onde a e-
xistência humana toma forma, onde se elabora e se ex-
perimenta em forma de história (Ricoeur, 1999, p. 29).
O escrever sobre si mesmo adquire significados
fortes em nossa cultura. O autobiográfico narrativo-
reflexivo ajuda a construir a existência de um sujeito
autor de si mesmo, que se inscreve na sociedade des-
de este lugar (SOuto, 2016). Os relatos autobiográficos
permitem conhecer mais a si mesmo, conhecer mais
os outros, outros que olham, nos refletem. Aqui radica
a potência do diário autoetnográfico na investigação
qualitativa. O registro, ademais de ser uma peça meto-
dológica válida e importante aos efeitos de reconstruir
o campo e o que sucede nele, é potente em relação ao
próprio relato do investigador, que se configura em
autonarração subjetivante. Nós, como investigadores,
não escapamos dessa implicação assinalada com an-
terioridade. Manifestá-la e analisá-la se torna indis-
pensável para a própria investigação, posto que se
explicitam os próprios processos vitais do sujeito que
interpreta o objeto de estudo.
Provavelmente, na epistemologia clássica, a ma-
nifestação das emoções, afetações, desejos e temores
mediante relatos pessoais não tenham um lugar de
destaque. Porém, para aquelas epistemologias narra-
tivas outras, que se posicionam em formas alternati-
vas de produzir conhecimento, recuperar as vozes e

181
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

as subjetividades dos atores imersos nos processos


de investigação se torna altamente potente e extre-
mamente enriquecedor. A inclusão da subjetividade
e do sujeito é face predominante do narrativo, daí a
incorporação desse enfoque em nossas investigações.
Documentar narrativamente o que somos e o que faze-
mos se torna nodal para habitar novos territórios me-
todológicos e epistemológicos.
Para concluir o capítulo, escolhemos uma narra-
tiva que justamente define o trabalho de campo como
esse salto ao vazio que só no final do processo pode-
remos articular em sua totalidade. Entretanto, ao mes-
mo tempo, arriscar-se com metodologias “outras” tam-
bém implica um salto para o desconhecido, mas com
a serena certeza de que esse caminho deixa marcas
altamente formativas em nosso ser como investigado-
res e como pessoas.

Creio que não me dou conta dos pequenos passos


que vou dando porque o olhar está sempre posto
no futuro, mas hoje, que estou próximo de concluir
meu trabalho de campo, sinto que cresci e que foi
um tempo de profunda aprendizagem e conheci-
mento de mim mesmo. Em uma aula, explicitei
que o trabalho de campo é um salto para o vazio.
Uma colega, que participava dessa disciplina, me
enviou uma mensagem dizendo… com tuas pala-
vras, lembrei da pintura de Yves Klein, um salto ao
vazio, obrigado pela lembrança e pelo depoimento.
Essas são coisas que nos marcam. (Diário Autoet-
nográfico. Mar del Plata, 3-08-2017).

182
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Yves Klein. O homem no espaço.


O pintor do espaço se atira ao vazio, 1960.

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186
ayvu

Infâncias, cidades,
(in)visibilidades
metodologias de pesquisa em construção

Rita Marisa Ribes Pereira1


Fernanda de Azevedo Milanez2
Juliana Botelho Viegas3

O cronista que narra os acontecimentos,


sem distinguir entre os grandes e os pequenos,
leva em conta a verdade de que nada do que
um dia aconteceu pode ser considerado
perdido para a história.
– Walter Benjamin.

1
Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas.
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. Professora da Faculdade de Educação da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Grupo de Pesquisa
Infância e Cultura Contemporânea. Pesquisadora 2 do CNPq.
2
Licenciada em Pedagogia. Mestre e doutoranda pelo Programa de
Pós Graduação em Educação da UERJ - PROPED. Bolsista FAPERJ.
Membro do Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea.
3
Licenciada em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestranda pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (ProPEd – UERJ), bolsista do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Integrante do
Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea (GPICC).
187
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Todo texto tem seu contexto, lembra-nos Bakh-


tin (2003): em sua materialidade inscreve os seus au-
tores e leitores num diálogo que nem se inicia, nem se
esgota nele. No entanto, carrega o hálito da contem-
poraneidade que transformara seu tema em questão,
bem como cada palavra se desenha posicionada em
face do debate que pretende firmar. Trata-se de um
pensar posicionado, de uma enunciação que se diri-
ge, de um dizer à espera de contrapalavras. Por essa
mesma razão, toda leitura implica indagações sobre o
tema de que trata o texto, como esse tema se coloca no
debate no contexto da sua produção, em que auditório
social ele é produzido e com quem seus autores estão
a dialogar. Parte dessas informações geralmente es-
tão explicitadas no interior do texto; outras precisam
ser investigadas pelo leitor como uma forma de com-
plementar sentidos à compreensão do texto. Leitoras
de Bakhtin que somos, queremos explicitar o contex-
to de produção deste texto, mas seguimos desejosas
de que outras indagações possam vir enriquecê-lo de
sentidos, ampliando o debate proposto, pois é nossa
intenção tanto a explicitação das condições de sua
produção, quanto a construção de uma escuta para
aquilo que só o leitor, de seu lugar de leitor, pode fazer.
Este texto nasce no contexto de um repensar
da trajetória do Grupo de Pesquisa Infância e Cultura
Contemporânea e das metodologias de pesquisa com
crianças construídas ao longo de quase quinze anos
de pesquisa. Além da alternância de temas da cultura
contemporânea, temos assumido como um tema per-
manente de estudos a especificidade da pesquisa com
criança. Avaliamos que temos acumulado uma signi-
ficativa reflexão acerca da especificidade da pesquisa
com crianças e do lugar ativo das crianças na interlo-
cução de pesquisa.
188
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

A escolha dos temas, das questões e das opções


metodológicas tem sido construída tomando por bús-
sola pistas e indicações das crianças que nos afetam
como pesquisadores. Exemplos disso, nossas pesqui-
sas se iniciaram focando nas relações das crianças
com as mídias eletrônicas e o consumo4. A percep-
ção de que naquele momento as crianças passavam
a interagir com as mídias digitais fez com que redi-
recionássemos nossos estudos5. Com isso, não ape-
nas pudemos testemunhar a chegada das crianças
ao uso dos computadores e a sua inscrição na ciber-
cultura, como pudemos indagar junto com elas sobre
o novo lugar social que essa condição lhes conferira:
o de uma potencial horizontalidade nas condições
de comunicação6. Na tensão entre explorar os senti-
dos dessa potencialidade e estar atentos ao lugar que
as mídias digitais ocupavam na vida cotidiana das
crianças, pudemos perceber que, embora a mobili-
dade sociotécnica permitisse a elas uma ubiquidade
sem precedentes, elas pouco se deslocavam na cida-
de onde moram7. Buscar saber mais sobre o cotidiano
das crianças e dos seus deslocamentos na cidade é o
objetivo central do projeto de pesquisa que neste mo-
mento se encontra em produção8.
4
“Infância, mídia, educação: perspectivas de pesquisa e interven-
ção”. (2005-2008). Financiado pelo Edital “Primeiros Projetos” –
FAPERJ – 2006 e PROCIÊNCIA 2006 – UERJ/FAPERJ.
5
“Artes do dizer e do dizer-se: narrativas infantis e usos de mí-
dia”. (2009-2011). Financiado pelo Edital “Jovem Cientista do Nosso
Estado” – FAPERJ-2008, PROCIÊNCIA UERJ/FAPERJ 2009 e Edital
Universal CNPq 2009.
6
“Infância e cultura: experiência e criação na contemporaneidade”
(2012-2014). Financiado pelo Edital “Jovem Cientista do Nosso Es-
tado” – FAPERJ 2012 e PROCIÊNCIA – UERJ/FAPERJ 2011.
7
“A infância e seus cronotopos” (2015-2017) – PROCIÊNCIA UERJ/
FAPERJ 2015 e Financiado pelo PQ CNPq 2014.
8
“Fisiognomias da infância: experiências cotidianas, alteridades e
189
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

De certo modo, ao longo dessa trajetória, cada re-


ordenamento de nossas questões nos conduziu a bus-
car novas metodologias que fossem condizentes com
as diferentes temáticas e com suas possibilidades de
investigação. E sempre que buscamos o contexto em
que tais decisões foram tomadas, lá encontramos uma
palavra ou um gesto de criança que nos mobilizou a
mudar a rota ou alterar o ritmo. No entanto, repara-
mos que, embora as crianças sempre tivessem ocupa-
do um lugar ativo na interlocução e nas decisões de
pesquisa, via de regra, nós – os pesquisadores – ocu-
pávamos um lugar já hegemônico e/ou já naturalizado
no que se referia à delimitação da temática, à escolha
do campo e do grupo de crianças que participariam da
pesquisa, ao tempo de duração dos encontros e à dis-
posição dos mesmos ao longo do processo da pesqui-
sa, o esboço de um roteiro balizador da interlocução,
ainda que feito para ser alterado etc. Ou seja, circulá-
vamos nos limites de uma concepção de infância cir-
cunscrita pelos nossos próprios critérios de escolha
e em metodologias cuja familiaridade e histórico em
nossos estudos sugeriam certas garantias.

Infância: fisiognomias
Que infâncias se tornam perceptíveis nessas
condições? Que outras permaneceram invisíveis? Que
fazer para torná-las presentes? Promover um deslo-
camento no lugar que ocupamos como pesquisadores
mostrou-se, para nós, como o novo desafio de pesqui-
sa a ser enfrentado. Deslocamento no sentindo de sair
do lugar de quem interpela as crianças para ocupar o
lugar de quem se deixa afetar e experimentar, então,
estar atento sem intervir objetivamente, renunciando
à postura de que ele, o pesquisador, tem a obrigatorie-
deslocamentos”.
190
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

dade de ser o sujeito proativo no processo de pesqui-


sa. Noutra direção, trata-se de aprender a se aquietar
para espreitar o mundo. A interlocução verbal – já
naturalizada em nossas rotinas – é posta circuns-
tancialmente em segundo plano, apostando em ou-
tras formas de percepção, onde o pesquisador passa
a ocupar o lugar de quem precisa mesmo é aprender a
perceber, mais do que intervir ou inaugurar uma con-
versa. É desse deslocamento – ainda em processo e
carente de palavras para dizê-lo – que este texto trata.
Nosso propósito é o de ensaiar formas de atenção aos
modos de ser e de estar das crianças em seu cotidia-
no, permitir-nos à estesia da materialidade do coti-
diano, espreitar contextos instaurados pela dinâmica
da própria vida. Que infâncias se mostram para nós
no movimento da vida? O que nos dão a ver as crian-
ças sem que nos afoitemos a interrogá-las?
Tendo infância e cotidiano como conceitos cen-
trais ao novo projeto, buscamos em Walter Benjamin a
fundamentação para a construção da estesia preten-
dida nomeando o que se busca como as fisiognomias
da infância. Em sua filosofia da linguagem, o conceito
de fisiognomia (Benjamin, 1984; 1987; 2006; Bolle, 2000)
se apresenta como uma imagem dialética para pensar
o jogo que se produz entre os modos como a infân-
cia pode se apresentar aos pesquisadores e os modos
como os pesquisadores constroem um olhar aguçado
à percepção da infância. Na esteira das produções
deste autor (Benjamin, 2015), estamos delimitando o
conceito de infância circunscrito às experiências que
são próprias das crianças – sujeitos históricos e par-
tícipes da produção da cultura – e que também cons-
titui a vida adulta na forma de memória.
O conceito de fisiognomia é deveras polissêmi-
co e controverso. No Século XIX, distintos campos
191
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

científicos – psicologia, biologia e mesmo a ciência


romântica de Goethe – disputaram sentidos em torno
do conceito. No tensionamento entre subjetividade e
objetividade, balizador da Ciência Moderna, todo um
saber científico de caráter determinista e eugênico se
constituiu em seu entorno no afã de explicar, classifi-
car e interpretar traços do caráter a partir das linhas
dos rostos.
Tecendo severa crítica a essas posturas, Walter
Benjamin busca a fertilidade do conceito de fisiogno-
mia: no sentido de se construir uma estesia à materia-
lidade com que as épocas se deixam perceber, para que
essa materialidade, uma vez tornada visível, pudesse
gerar uma reflexão sobre a experiência do tempo e da
história, supostamente imperceptíveis. Seu propósito
é, numa perspectiva materialista, construir uma con-
cepção de história associada às transformações das
cidades e da cultura, onde as dimensões do espaço e
do tempo sejam tratadas indissociavelmente. O autor
sinalizava que as consequências éticas de se perce-
ber o tempo separadamente do espaço, tal como apre-
goava a ciência moderna, podiam ser avaliadas pela
invisibilidade da história, concebida como um tempo
vazio e homogêneo.
Fruto de uma elaboração de pensamento que se-
gue na mesma direção, a fisiognomia, na perspectiva
benjaminiana, pode ser compreendida como a arte de
escrever a história através de imagens. Na filosofia da
linguagem de Benjamin, as imagens do pensamen-
to correspondem ao que os conceitos significam no
campo científico. Escrever a história é dar uma fisio-
nomia às datas (1987; 2006), tarefa do historiador ma-
terialista e do cronista do cotidiano. As fisiognomias,
na acepção do autor, portanto, não se constituem da-
dos naturais, mas construções históricas de sujeitos
192
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

posicionados a pensar sua época. Interessava ao au-


tor espreitar os rostos da história, as fisionomias da
modernidade, da multidão (Bolle, 2000).
Também as fisiognomias da infância foram ex-
ploradas por Benjamin, tanto no que se refere à com-
preensão de que a infância implica uma relação com
o tempo, com a história, com as diferentes épocas,
quanto por considerar que a perspectiva a partir da
qual as crianças cotejam a história é uma perspecti-
va legítima e aguçada em sua materialidade. Sua obra
nos oferece uma coleção de imagens dialéticas de in-
fância, sobretudo em Rua de mão única e Infância em
Berlim por volta de 1900, onde apresenta imagens de
infância prenhes de história. Da materialidade do co-
tidiano da criança – os brinquedos, os livros, as práti-
cas infantis, a linguagem, os lugares por onde anda –,
o autor traça uma análise complexa da história e da
cultura.

Éticas, estéticas e conhecimentos


Abdicar do lugar de protagonista numa interlo-
cução e ensaiar uma postura inicial de quietude é o
deslocamento a que nos propomos. Em termos meto-
dológicos, esse deslocamento impõe alguns desafios:
criar modos de perceber, modos de registrar, modos de
analisar e de sistematizar o conhecimento produzi-
do. Almejamos criá-los tendo por princípio norteador
a indissociabilidade das dimensões ética, estética e
epistemológica tanto sinalizada por Walter Benjamin
(1984; 2006), ou seja, tendo clareza de que os modos de
perceber são também modos de se posicionar valora-
tivamente em relação ao mundo social e de circuns-
crever possibilidades de conhecimento, tanto quanto
o agir denota formas de percepção que põem em ato
uma determinada bagagem teórica.
193
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Buscando problematizar a complexidade que


reside nos mais simples modos de percepção, en-
contramos na literatura de Ítalo Calvino um par para
nossas reflexões. Palomar, personagem que dá título
a uma das suas obras, é um senhor que é todo olhos
e que vive a pensar sobre os modos como percebe o
mundo ao seu redor: o gramado, o amor das tartaru-
gas, um cesto de pantufas, as ondas do mar, o assovio
do melro, a banhista de seios nus. A vida cotidiana.
Uma característica presente na obra de Calvino é a
simplicidade nas escolhas dos fatos a serem obser-
vados, contraposta à complexidade nas análises. As
descrições do senhor Palomar são tentativas de vi-
sualizar a profundidade presente nas coisas simples.
Nessa mesma perspectiva, pretendemos estar atentos
a cenas simples da vida cotidiana.
Após percorrer toda a obra provocando-nos com
sua existência tão atenta, eis que oferece um conse-
lho a quem, como ele, pretende se dedicar a espreitar
o mundo: aprender a estar morto, aprendizagem que
se tornou inspiração para a construção da sensibi-
lidade por nós almejada, construída na recusa a um
protagonismo imediato.
Em Como aprender a estar morto (Calvino, 1994),
Palomar busca o desafio de observar sem intervir.
Nesse desafio, poderá, sobre a diferença entre mor-
rer, deixando de existir e o que chama de estar morto,
uma forma de fazer presente no mundo mais disposto
a percebê-lo do que a alterá-lo, ou, dizendo de outro
modo, uma forma de não presença ativa, onde a ação é
justamente o dar-se a perceber. Quer tentar entender
como é o mundo sem ele. O mundo sem ele significará
para ele o fim da ansiedade? Um mundo em que as
coisas acontecem independentemente de sua presen-
ça e de suas reações, seguindo uma lei ou necessidade
194
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

ou razão própria que não diz respeito a ele? (Calvino,


1994, p. 109).
O esforço de Palomar é uma crítica severa ao mo-
do contemporâneo do homem viver em face de tantas
demandas e quase sem prestar atenção a elas, é uma
recusa a todo protagonismo imediato, toda postura a-
foita que supõe saber agir ou poder dizer antes mes-
mo de se permitir conhecer. No campo da pesquisa, é
uma cutucada à presunção iluminista que supõe dar
existência às coisas, iluminá-las na medida em que se
as toma por objeto de estudo. Na contramão da cons-
trução de uma ação imediata, o conselho de Palomar é
o aquietar-se, entregar-se a esse objeto em vez de afoi-
tar-se em possuí-lo, tarefa que só quem se dispõem a
aprender a estar morto exerceria como maestria.
Como lembra Queiroz (2017), essa construção me-
todológica nada tem a ver com a busca de um lugar
isento ou de uma ciência asséptica, supostamente neu-
tra ou imparcial. “Estar morto” não desresponsabiliza
o pesquisador do conhecimento que ele constrói, pelo
contrário, sendo ele um tradutor daquilo que vê e autor
da reflexão que propõe, a assinatura teórica e metodo-
lógica é compromisso seu, e por isso ele deve responder
integralmente. Mesmo diante das apropriações feitas,
as construções todas são decisões de cunho ético,
pois assinar um pensamento é torná-lo ato seu no tex-
to de sua autoria (Bakhtin, 2010). Do mesmo modo, não
implica anestesiar-se diante do outro, não se trata de
uma recusa, mas, ao contrário, de uma abertura na sua
radicalidade: estar aberto para que o outro te afete, ab-
dicar da pretensão de ser o Adão bíblico que funda os
acontecimentos e as interlocuções.
Aprender a estar morto, no sentido que nos pro-
põe Calvino, implica na criação de uma nova forma de
agir que exige do pesquisador aguçar os seus modos
195
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

de percepção do outro (no caso, a criança) e abdicar


de uma agência que, via de regra, lhe cabe, posto que
geralmente é o pesquisador que decide onde e quan-
do a pesquisa se realizará. Nesse modo de agir, talvez
o maior desafio do pesquisador seja abandonar-se ao
tempo do outro, abrir-se a ser tocado por algo que ain-
da não sabe o formato através do qual se apresentará.
Aqui se desnuda a centralidade da dimensão estéti-
ca no tipo de pesquisa pretendida: “aprender a estar
morto” é também uma recusa à razão instrumental e
dogmática que supostamente tudo sabe e tudo orga-
niza, mas que, paradoxalmente, se mostra estéril na
percepção à simplicidade da vida cotidiana. Apren-
der a estar morto é, portanto, reaprender a perceber
o mundo esteticamente. Aprender a ver o que não se
procura, aprender a escutar aquilo sobre o que não se
perguntou. Aprender a estar morto é um exercício de
profunda sensibilidade e reflexão.
Nessa perspectiva metodológica, ainda que se
possa reconhecer um lugar ativo na observação, é no
ato de escrever que o pesquisador que “aprendeu a es-
tar morto” assume efetivamente seu lugar ativo, seja
nas pequenas e esparsas anotações de campo, seja na
produção de texto que visa organizá-las e, mesmo, tor-
ná-las compreensíveis para colocá-las em circulação.
É no ato de escrever que o pesquisador redesenha a al-
teridade vivida no campo – a vida cotidiana – de uma
maneira nova e que exige dele uma postura ética que
é de outra natureza daquela já experimentada quan-
do da interlocução entre o pesquisador e o seu outro.
Lembrando que nosso campo de pesquisa é a vida co-
tidiana no seu fluxo intermitente, é possível que esse
outro que se tornara objeto de nossa observação não
chegue a construir conosco – os pesquisadores – for-
ma alguma de alteridade além daquela que é própria
196
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

à vida cotidiana: cruzar na rua, estar no mesmo trem,


trocar um olhar no meio da multidão. Por isso, exige
uma forma de registro que faça justiça à peculiarida-
de dessa alteridade possível.
Considerando que num primeiro momento a ati-
tude do pesquisador é a de “aprender a estar morto”
aguçando quietamente a sua sensibilidade, trata-se
de uma experiência que se (com)funde com o próprio
existir da vida cotidiana. Mas onde encontrar o tênue
limite entre a vida cotidiana e aquilo que, na vida co-
tidiana, se torna pesquisa? Quando tem origem uma
pesquisa? Na perspectiva metodológica aqui em cons-
trução, a escrita tem um papel decisivo, pois entende-
mos que é no escrever que o pesquisador responde, do
lugar único de pesquisador que ele ocupa, ao que viu
e viveu. É na escrita de pesquisa que esse outro ganha
vida, ganha história, trazido e apresentado por aquilo
que dele percebemos enquanto espreitávamos a vida
em seu cotidiano.
Para essa escrita, os pensamentos precisarão ser
responsavelmente lapidados a partir daquilo que foi
visto e vivido no campo, e a teoria que vai nascendo e
sendo construída em sua forma e conteúdo, na arqui-
tetônica desse novo (con)texto, visa criar um sentido
que é único sobre esse pensar, pois ganha existência
a partir de um específico ponto de vista. É neste espa-
çotempo singular que reconhecemos o ato da criação,
compreendendo ato como aquele gesto responsável
e único que emaranha exclusivamente o autor e seu
pensamento (Amorim, 2009) numa resposta ética e
estética. Isso quer dizer que não há outra pessoa que
possa ver o que vimos, pensar o que pensamos, dar
sentidos de acordo com a verdade que assumimos. Na
realização desta singularidade, nos diferenciamos do
outro e a alteridade se concretiza, conferindo sentido
197
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

ao ato. É uma marca de participação deixada cons-


cientemente num determinado tempoespaço.
Na busca de uma escrita que fizesse justiça aos
modos de percepção pretendidos, encontramos a
crônica como um gênero discursivo privilegiado por
Walter Benjamin para a construção de narrativas do
cotidiano, um gênero ao qual os historiadores mate-
rialistas deveriam atentar para que pudessem cons-
truir uma narrativa histórica que levasse em conta
não apenas os grandes fatos, mas também os peque-
nos acontecimentos do cotidiano, esquecidos pela
historiografia oficial (Benjamin, 1987). A crônica, na
concepção de Walter Benjamin, é uma forma de histo-
riografar, não havendo distinção ou hierarquia entre
o cronista e o historiador, tanto quanto não há, na sua
perspectiva, entre o narrador das histórias cotidia-
nas e a historiografia oficial. Sua peculiar filosofia da
história se desenha na relação e na tensão entre os
fragmentos singulares da vida cotidiana e uma ideia
de totalidade – da história, da cultura, da vida social.
Por essa razão, a crônica é um gênero textual onde se
torna possível o encontro das singulares histórias de
vida com a história coletiva, encontro esse que per-
mite uma análise complexa das subjetividades (dos
sujeitos e das épocas) a partir da simplicidade mate-
rializada do cotidiano. Sua Crônica Berliniense, pos-
teriormente nomeada de Infância em Berlim por volta
de 1900, entre outros textos, é exemplar dessa con-
cepção, na medida em que, alegoricamente, a história
singular de sua infância faz emergir a história coleti-
va de uma época.
É a vida cotidiana, por excelência, o nosso cam-
po de pesquisa. Paradoxalmente, um campo infinito e
invisibilizado. A ideia da invisibilidade que nos mo-
vera a pensar que infâncias existiam para além dos li-
198
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

mites que nossa vista até então alcançava, associada


ao desafio de pensar a cidade em sua amplidão, con-
duziu-nos à leitura de uma outra obra de Ítalo Calvi-
no, chamada As cidades Invisíveis, e nossa intenção
primeira fora a de buscar perceber crianças e infân-
cias um tanto invisibilizadas no contexto social em
cidades cuja lógica da urbanidade também escolhe
hipervalorizar alguns espaços enquanto deixa invisí-
veis outros.
Assumindo a literatura como teoria social, Cal-
vino (2003) nos convida a atravessar a fronteira da
visibilidade das suas cidades literárias para a invi-
sibilidade das cidades que habitamos. Assim, o livro
Cidades Invisíveis nos convida a conhecer cinquen-
ta e cinco fisionomias de cidades de outros espaços
e tempos, expandindo as possibilidades de destacar
determinados aspectos, ao mesmo tempo em que nos
auxilia a pensar sobre o que vem sendo de alguma for-
ma invisibilizado. Quantas cidades invisíveis existem
no cotidiano? O que se torna hegemonicamente invi-
sível na cidade?
Das cidades invisíveis de Calvino, trazemos, para
este texto, duas, de forma exemplar: Zaíra e Fílide. A
cidade de Zaíra, por exemplo, não se descreve pelas
suas construções físicas: de quantos degraus são fei-
tas as ruas em forma de escada, da circunferência dos
arcos dos pórticos (Calvino, 2003, p. 7), mas pelas re-
lações estabelecidas entre as medidas de seu espaço
e os acontecimentos do passado: a altura daquela ba-
laustrada e o salto do adúltero que foge de madrugada;
a inclinação de um canal que escoa a água das chuvas
e o passo majestoso de um gato que se introduz numa
janela (Calvino, 2003, p. 7). Assim, descrever a cida-
de tal como ela é não implica na exposição isolada
de seus aspectos espaciais nem em suas recordações
199
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

ilhadas, isso porque Zaíra não conta seu passado, ela


o contém como as linhas da mão, escrito nos ângu-
los das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos
das escadas”. Não enxergamos, na vida, o tempo ou
o espaço, vazios e distintos, mas um acontecimento
inserido num contexto específico que une, idiossin-
craticamente, estas dimensões (Queiroz, 2016). Ou
seja, tempo e espaço contam juntos uma história. Zaí-
ra é, como todas as cidades, por essência, uma cidade
cronotópica9, onde cada acontecimento se desenrola
num contexto específico, um contexto onde tempo e o
espaço permanecem indissociáveis.
Já Fílide é uma cidade com inúmeras possibili-
dades de observação. A cidade tem pontes que atra-
vessam os canais: pontes arqueadas, cobertas, sobre
pilares, sobre barcos, suspensas, com os parapeitos
perfurados (Calvino, 2003, p. 38); uma grande varieda-
de de janelas diante das ruas: bífores, mouriscas, lan-
ceoladas, ogivais, com meias-luas e florões sobrepos-
tos; e diversos tipos de pavimento: de pedregulhos, de
lajotas, de saibro, de pastilhas brancas e azuis. Em to-
das as partes da cidade é possível observar uma espé-
cie de surpresa para os olhos. Com isso, devido à gran-
de variedade de especificidades presentes na cidade,
há sempre algo novo a ser descoberto em Fílide. No
entanto, esse fluxo constante de coisas a serem ob-
servadas a todo o momento acaba por invisibilizar de-
terminados acontecimentos, pois não é possível dar
conta de visualizar tudo que o cotidiano contempla. O
que nossa vista prioriza?
Tomando de empréstimo o desafio posto por Cal-
vino de focar as materialidades do cotidiano das cida-
9
O conceito bakhtiniano de cronotopo concebe espaço e tempo de
forma entrelaçada, entendendo que essas dimensões constituem
um todo. (Bakhtin, 2010).
200
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

des como perspectiva para problematizar as relações


sociais que nelas se desenham, tomando o cuidado de
construir um olhar aguçado em meio ao fluxo inter-
mitente daquilo que as cidades querem mostrar e da-
quilo que elas fazem por invisibilizar, é que passamos
a nos indagar: E as crianças na cidade? Que infâncias
as cidades orgulhosamente estampam? Que infâncias
as cidades se esforçam para esconder?
E nós, que visões-miopias-astigmatismos cons-
truímos nessas (in)visibilidades?

Fisiognomias da infância: perceber, problemati-


zar, narrar
Como dito no início deste texto, o projeto de pes-
quisa em que se sustenta a produção deste texto se pro-
duz par a par com projetos individuais de monografias,
dissertações e teses, cada um deles com seus campos e
metodologias próprias. Para a construção de um cam-
po comum de pesquisa no bojo do projeto institucional,
delimitamos que nosso campo seria circunscrito pe-
los lugares por onde circulam os membros do grupo de
pesquisa em seus deslocamentos cotidianos, dos quais
citamos alguns onde manifestamos interesse em focar
a possível presença de crianças: a cidade em seu todo
nos limites que nossa vista a percebe, crianças em
trânsito nos transportes coletivos – trens, metrô, ôni-
bus, vans escolares –, eventos culturais, mercados, lo-
jas, bancas de camelôs, cantinas escolares, na rua, em
processos de mudanças, em processos de refúgio etc.
Assim, as crianças envolvidas na pesquisa são aque-
las que de alguma forma afetam o pesquisador que,
por ser afetado, no momento em que é afetado, passa
a observar o contexto no qual ela se encontra de um
modo diferenciado. Em última instância, nosso tema
de pesquisa são as crianças em sua vida cotidiana, e o
201
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

campo da pesquisa, a própria vida cotidiana que emer-


ge quando se transforma em questão.
Como um Palomar que espreita Cidades Invisí-
veis e crianças que se tornam (in)visíveis nas cidades
(in)visíveis, trazemos a seguir, para este texto, em tom
de ensaio, três situações de campo já apresentadas em
forma de crônicas10. Buscando compartilhar com o lei-
tor os critérios de escolha e o processo de criação dos
registros dessas situações de campo até que elas to-
maram a forma que aqui assumem, podemos destacar
alguns momentos, ponderando que elas foram vividas
de forma singular por cada autora. Muitas escritas e
rescritas foram feitas desde as anotações iniciais até
a lapidação em forma de crônica – gênero discursivo
que para nós está ainda na lista das aprendizagens
por acontecer. Por isso mesmo, a opção de caminhar
amparadas por Calvino é, neste momento, parte de
um processo de (auto)autorização a escrever numa
linguagem que tanto não é comum às nossas práticas
de escrita quanto não é convencional no campo das
ciências humanas e sociais. Trata-se de um reapren-
der a olhar e a dizer, sabendo serem muitas as formas
de olhar e de dizer. Trata-se de assumir, também, sem
falsas modéstias, que queremos, sim, amparadas em
Benjamin (1987) e em nossa trajetória de estudos e
reflexões sobre construção de metodologias de pes-
quisa com crianças, ocupar o lugar do cronista cuja
tarefa é de disputar a produção de uma historiografia.
10
A especificidade da crônica como um gênero discursivo faz par-
te de nossa agenda de estudos. Neste momento, apoiamo-nos em
Calvino para nossas primeiras escritas, sem pretender classificar
seus escritos como crônicas, contos ou outra denominação con-
temporânea provocada pelo esmaecimento das fronteiras entre os
gêneros. Nossa opção se deve ao fato do autor descortinar, para
nós, uma forma literária de olhar – e de olhar a cidade – e de es-
crever que intuímos como um caminho possível.
202
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Uma historiografia da Infância que, alegoricamente,


busca na materialidade dos cacos da vida cotidiana
centelhas para pensar as tensões e contradições da
história da humanidade.
As cenas apresentadas foram trazidas de nosso
cotidiano e traduzidas em texto/crônicas, na intenção
de convidar o leitor a experimentá-las esteticamente.
Esse é o nosso propósito. Então, vamos a elas.

1
Valdrada Centenário
Construída palavra sobre palavra em Cidades In-
visíveis, de Ítalo Calvino, Valdrada se nos apresenta
como a primeira cidade de “As Cidades e os Olhos”, na
vizinhança de outras tantas cidades também batiza-
das femininamente, com seus mistérios que se des-
vendam a cada passeio por esse livro-lugar. Deixando
para trás qualquer topografia única, Valdrada, que se
ergue à beira de um lago, faz com que os viajantes
e moradores se imprimam todo o tempo imersos em
duas cidades: uma perpendicular em volta do lago e
outra refletida de cabeça para baixo, onde o que se
dá de importância numa é o oposto daquilo que se
dá a ver na outra. Assim também com as pessoas
que por lá circulam que, em toda experiência vivida,
deixam aos seus olhos de turistas e de valdradien-
ses o reflexo que é, ao mesmo tempo, assimétrico e
correspondentemente invertido. Suspeita-se que os
gestos narcisos e aprisionados tenham um único e
breve lampejo de liberdade, no único instante em que
a união das duas cidades se desfaz: no movimento na
Valdrada d’água, que, com a mais tenra brisa, lembra
a cada morador da Valdrada seca que sua imagem es-
pecular vive e se move em outra direção.
Centenário, como Valdrada, é um lugar-espelho
que reflete sua imagem na também conhecida San-
ta Cruz. Ou é Santa Cruz que reflete Centenário. Lo-
caliza-se territorialmente no Distrito de Campo do

203
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Coelho, que está na área rural de Nova Friburgo, que


por sua vez é um dos municípios da região serrana do
estado do Rio de Janeiro, sudeste do país. Lugarejo
rural de pouco comércio, ruas de terra batida, escola
municipal, umas poucas casas, tudo entremeado por
grandes pedaços planos e montanhosos de verdes de
muitos tons, cujos limites são demarcados pelos pro-
dutos plantados em quilômetros de extensão. É lugar
de significativa produção de hortaliças, de sérios ma-
nejos de agrotóxico, de distribuição do plantio para
todo o estado. Em seu reverso, comenta-se que aqui
nem todo mundo come o que planta.
É dito também que tempos atrás houve uma festa
de cem anos de um antigo e conhecido morador. Foi
festejo grande, daqueles que duram três dias e três
noites, comentado por toda região, especialmente
quando o povo perguntava sobre quem iria e poste-
riormente quem fora ao aniversário de centenário do
conhecido vizinho. A força de tal festejo comunitário,
reverberando na voz das pessoas que ali habitavam,
batizou informalmente o local como Centenário, em-
bora a localidade já fosse conhecida como Santa Cruz.
É lá onde vive o garoto a quem chamam Caíque, me-
nino que aparenta uns nove anos para mais ou para
menos, filho de família numerosa de agricultores me-
eiros da região. Todos de rostos bem parecidos.
Apenas quem chega perto deste lugar, Centená-
rio – Santa Cruz – Valdrada e nesta época do ano –
outono – pode enxergar como a estrada permanece
seca pela falta de chuva e, nos dias ensolarados, há
que se perceber a poeira desenhada sobre o chão de
terra fazendo subir uma fumaça quase vermelha, si-
nalizando o gesto de cada gente que passa de carro,
moto, bicicleta e mais raramente de ônibus, impri-
mindo seus vestígios pelo chão e fazendo-os sumir
em seguida.
E no caminhar por uma daquelas ruas pode calhar
de ver esse menino sem camisa por entre os carros,
montado numa bicicleta enferrujada, sempre seguin-
do apressado. Dia desses, chega ele ao seu destino – o

204
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

portão da escola municipal - e fica um tempo olhando


para dentro. Vê e se vê nos outros meninos brincan-
do no pátio, enclausurados em seus uniformes. Reco-
nhece alguns, acena e chama-os pelos apelidos. Al-
guns respondem e outros riem; não se sabe se dele ou
para ele. Resolve fazer suas manobras mais radicais
ali, naquele pedaço de terra defronte da escola. Empi-
na a bicicleta algumas vezes, faz um cavalo de pau e
volta ao que parece ser seu ponto de partida: o olhar
dos meninos de dentro da escola refletindo a perfor-
mance que faz subir uma nuvem esfumaçada de po-
eira vermelha. Olha disfarçada e esperançosamente
para o pátio de cimento queimado, onde muitas vezes
ficou de pé, na fila, enclausurado em seu uniforme
surrado, olhando para fora. É ele agora que está de
fora, e é deste lugar que observa as mesas compridas,
empenadas e de colorido fosco já gasto pelo tempo e,
nas paredes, reconhece, por trás da poeira, os murais
enfeitados com os mesmos desenhos mimeografados
indistintos. Parece procurar o seu. Mas surge uma
brisa forte que espalha poeira por todos os olhos e
ele não acha o desenho, não acha os meninos, não se
acha. Sobe e segue na bicicleta enferrujada, deixando
para trás um novo rastro de poeira vermelha, que se
espalha pelo chão e pelo ar, e em seguida baixa, some
e faz esquecer quem passou por ali, desimprimindo
sua marca e sua passagem por aquele lugar.
Até os dias atuais, a localidade onde vive o me-
nino Caíque se faz e se desfaz na poeira do outono,
na neblina do inverno e nas águas que tudo enchar-
cam no verão, se transmutando em seus dois nomes
– Santa Cruz e Centenário –, refletindo o movimento
contínuo de ser uma que se reflete inversamente na
outra. É nessa Valdrada friburguense onde vive aque-
la criança-aluno, que se vê dentro refletido, mas está
fora da escola, que oscila entre ser visível e/ou invisí-
vel a ela e à comunidade onde vive, muito embora se
esforce em sua mirabolante manobra radical de se fa-
zer ver, num esforço arièsiano de presença. O que lhe
é oferecido saber dentro da escola não encontra eco

205
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

naquilo que lhe interessa descobrir, ver e viver no seu


cotidiano. Ele se rebela e sai. A escola parece que não
vê. Entretanto, sua presença/ausência se faz cons-
tante e marcante, refletida na negação, na queixa, na
ameaça. Grande parte da comunidade, incluindo a es-
cola, fala nele todo o tempo em que não está presente.
São palavras que não dialogam, mas que instauram
um jogo de opostos onde ausência e presença dispu-
tam espaço nas vozes das pessoas da redondeza.
É nessa arena de opostos que podemos pensar o
lugar desse outro. O outro que só existe por ser di-
ferente daquilo que eu sou e consequentemente não
ser como os eus consensuais indiscriminados. Exis-
tindo pela negação, esse outro se revela como o re-
verso, como a imagem que não corresponde, como a
Valdrada ao vento, que se movimenta modificando-se
da imagem original. Entretanto, é na oportunidade de
falar deste diferente que posso me posicionar e me
discriminar, fazendo aparecer um eu que se coloca no
mundo.
Nesse jogo de contrastes, que num sentido pode
paralisar, apenas repetindo e reforçando a condição
binária espelho/reverso, me parece ser o exato ins-
tante em que a escola-Valdrada se perde do menino
quando deixa de vê-lo como outro, como aquele que
escapa aos mesmos, como alguém sujeito de história
própria. E quando se olha o menino, que Escola-Val-
drada-Centenário espelha, a partir de seus contrá-
rios?

2
Quando chegar lá...
Início de tarde de uma sexta-feira da paixão, em
um trem do Ramal Santa Cruz, uma família ocupa
um banco: duas irmãs, um irmão e um pai. Estação
Santíssimo. A filha mais nova pergunta ao pai se está
andando em um trem bala que desliza sobre o esgo-
to. O pai, emudecido, não responde. Estação Senador
Camará.
Todos querem chegar rápido em algum lugar:
206
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

– Pai, tá chegando?
– Quem dera!
“Estação Bangu”.
As crianças se impressionam com a oferta de
produtos que circulam nos vagões...
– Leva dez balas por um real.
– Dois bombons me paga um.
– Dois amendoins é um real.
–Olha a batata, olha a batata! Quer batata?
– Aquela boneca para presentear seu filho, né, ba-
cana?!
– De dez a quinze lá fora, hoje me paga cinco.
Quem quer salame?
“Estação Guilherme da Silveira”.
Ajoelhada no banco, na última janela do último
vagão do trem, a irmã mais nova se impressiona com
a dimensão da praça do bairro.
– Olha o tamanho disso!
A mais velha segue, quase imóvel, sentada de
pernas cruzadas ao lado dos irmãos.
“Estação Mocidade de Padre Miguel” Os três ir-
mãos decidem brincar juntos de forma barulhenta, o
pai jura nunca mais levá-los para andar de trem nem
comprar bala para eles. A mais nova, de joelhos rala-
dos e sorriso no rosto, acena para todos que estão pa-
rados na plataforma à espera da abertura das portas
do vagão. O mais novo, ainda se atrapalhando com a
fala, repete incessantemente a palavra “porrada”, en-
quanto simula uma arma com as pequenas mãos.
“Estação Magalhães Bastos”.
Uma jovem flautista embarca no trem vestin-
do roupas chamativas e rouba a atenção de todas as
crianças entre zero e cem anos.
“Estação Vila Militar”.
Irmã mais velha briga com o irmão mais novo,
que se queixa com o pai. O mesmo responde:
– Não vou me meter, vocês que se resolvam so-
zinhos.
Três segundos depois, o pai muda de lugar e se
senta entre as crianças para evitar brigas.

207
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

– Parem de arrumar problemas! Vão ficar todos


machucados. Não vou mais comprar bala pra nin-
guém.
O filho mais novo chora. Três segundos depois o
pai para o primeiro vendedor e compra saquinhos de
balas para todos. O sorriso volta a habitar a face da
família.
“Estação Deodoro”.
O pai avisa às crianças que eles precisam pegar
outro trem, que demora muito. A filha mais nova per-
gunta:
– Podemos pegar um trem bala?
O pai não responde, e diz:
– Quando chegar lá, vou fazer um sopão para der-
rubar vocês! Vai ser comer e cama.
“Estação Marechal Hermes”.
O pai pergunta para a filha mais velha:
– Sua mãe está bem?
A filha responde balançando a cabeça, afirmando
que sim.
“Estação Bento Ribeiro”.
A filha mais nova se encolhe toda, como se esti-
vesse tremendo de frio:
– Sai daqui frio! Você tem piolho, eu não.
O pai abre a mochila e a cobre com um casaco.
“Estação Oswaldo Cruz”.
A filha mais velha questiona o pai:
– Quando chegar lá, posso ir à praça?
O pai responde que os brinquedos vão estar mo-
lhados, mas que, se ela quiser ir, ele não liga.
“Estação Madureira”.
O filho mostra um machucado ao pai, que responde:
– Quando chegar lá, eu passo uma pomada.
– Pai, você comprou iogurte?
– Não, quando chegar lá eu compro.
“Estação Cascadura”.
Passa um vendedor de bala e as crianças pedem
ao pai, que compra um saquinho para cada um.
– Ainda bem que agora acabou o dinheiro, chega
de bala! Agora só tenho três reais contados para a mi-
nha cerveja.
208
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

A filha mais nova segue com frio e pede ao pai


que pegue na mochila mais uma peça de roupa para
que ela possa se cobrir.
“Estação Quintino”
O pai reclama:
– Três dias com vocês, haja dinheiro, haja paci-
ência.
A filha mais velha responde:
– Eu acho pouco.
“Estação Olímpica Engenho de Dentro”.
Diálogo entre o pai e a filha mais velha:
– O que sua mãe fez com os setecentos reais que
eu mandei?
– Comprou iogurte e macarrão.
– Só isso?
– Acho que ela não conseguiu pegar todo o di-
nheiro com o moço do banco.
– E ela ainda ganhou setecentos reais do fundo
de garantia.
– Não! Ela ganhou setecentos e dez, mas teve que
comprar cimento.
“Estação Méier”.
Ao avistar um vendedor de arcos, a filha mais
nova pede:
– Pai, me dá um arco de gato?
O vendedor passa direto e o pai responde:
– Ih! O gato foi para o brejo.
O vendedor volta e o pai fala:
– Um arco para essa menina, pelo amor de Deus!
O filho mais novo pede um também, o pai retruca:
– Tá doido? Preciso de dinheiro para a minha cer-
veja.
A irmã mais velha questiona o irmão:
– Quer um arco? Virou “viadinho”?
“Estação Maracanã”.
A família desembarca do trem, cada vez mais
perto de chegar lá...
Talvez, mais importante do que “chegar lá”, sejam
a caminhada e os diálogos que se constituíram nes-
sa trajetória. Em Cidades Invisíveis, Calvino (2003)

209
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

nos apresenta Melânia. Nela, todas as vezes em que


o visitante vai até a praça da cidade, ele encontra um
pedaço de diálogo, produzido pelos mais diversos su-
jeitos. Quando regressa a Melânia, anos depois, o vi-
sitante encontrará a continuação do mesmo diálogo,
ainda que produzido por outrem. Assim, quando um
morador de Melânia deixa a praça, seu lugar na pro-
dução dessa interlocução é ocupado por outro sujei-
to. A população da cidade se renova, os dialogadores
morrem, outros nascem e assumem seus respectivos
lugares, cada um em seu papel, assim como no ciclo
da vida: independentemente de quem morre, o seu
papel subsiste, protagonizado por outro ator. No mo-
mento em que o sujeito deixa a praça, modifica sua
função na constituição desse diálogo ou se insere
nesse espaço pela primeira vez, mudanças em cadeia
ocorrem até que todos os papéis sejam ocupados. É
possível que um único sujeito, isto é, que um único
dialogador mantenha simultaneamente dois ou mais
papéis, e com o passar do tempo esses mesmos pa-
péis vão se modificando, não são mais exatamente os
mesmos de antes.
Assim como Melânia, também podemos pensar o
trem como uma cidade. Uma cidade que só existe en-
quanto o trem, composto por sujeitos, se movimenta.
Desta forma, trem e Melânia são cidades que se cons-
tituem na produção de diálogos, que são o ponto fixo
e essencial na construção das cidades. Tanto no trem
quanto em Melânia as pessoas vão sendo substituí-
das umas pelas outras e aglutinam papéis na corren-
te do diálogo. Assim, o pai da narrativa anterior, além
de se constituir no papel de pai, também se constitui
no papel de consumidor, em meio a tantos outros pa-
peis possíveis presentes na “praça” da cidade trem.
Deste modo, seja em Melânia, seja no trem, os su-
jeitos se modificam, mas os diálogos continuam inal-
terados, isso porque os papéis mantêm-se e os atores
se renovam. Ao frequentar a cidade trem, possivel-
mente o visitante encontrará na “praça” diálogos de
crianças pedindo aos pais que comprem algum pro-

210
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

duto disponível nos vagões, pais preocupados com a


relação entre as questões financeiras e as necessi-
dades e desejos de seus filhos, entre muitos diálogos
possíveis desenvolvidos diariamente no cotidiano
dos trens, e o que nos interessa são exatamente es-
sas interlocuções. Afinal, como já mencionado, mais
importante do que “chegar lá” são os diálogos produ-
zidos na caminhada.

3
A cidade que se muda das pessoas
Mal o dia começava quando a vi pela primeira
vez. Trocava o pijama estrelado com que passara a
noite e listava, orgulhosa, os muitos desenhos do ves-
tido que terminava de ajeitar enquanto a mãe pentea-
va os seus cabelos: “tem bola, tem gato, tem cachorro,
tem princesa!”. O pai, silencioso e ágil, escutava o te-
lejornal num pequeno celular enquanto desmontava
o quarto da família: um colchão de casal posto sobre
uma pequena carroça. Foi tudo o que pude ver no bre-
ve instante em que passei. Ao retornar, poucos minu-
tos depois, já não estavam lá.
No dia seguinte, já saí de casa desejosa de re-
encontrá-la. E lá estava ela, no carrinho, arrulhando
mais que passarinho, toda arrumada e com uma bo-
neca na mão. O pai desfazia, mais uma vez, o quarto
da família; a mãe ajeitava os lençóis numa sacola e
guardava sob a carroça. Mais que isso não pude ver,
embora tivesse diminuído o passo para expandir o
instante. Minha rotina de acompanhar o filho que ia
para a escola até o ponto do ônibus passou a marcar
os meus encontros com ela, aquela vizinha tão pe-
quena que tinha uma esquina inteira para ser sua
casa – uma casa que, como num passe de mágica, se
desfazia. Ao voltar do ponto do ônibus, percebi que
não estavam mais. Nada naquela esquina contava
que uma família (sagrada família?) passara a noite
ali. Nenhum rastro. O comércio, indiferente àquela
esquina, ensaiava abrir suas portas. A loja de col-
chões lembrava que “um terço da sua vida você passa
211
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

nele”. Um terço da vida. Que vida? O que era o terço


da vida daquela Menina? E o que faria ela nos outros
dois terços de vida não categorizados pela loja de col-
chões sob cuja marquise dormia?
Fiquei me indagando sobre como seria a chegada
da família àquela esquina, no dia a dia. Como seria a
mágica da feitura do lar no avesso das contradições
sociais que o amanhecer supostamente apagava?
Deixei que o cotidiano se encarregasse de marcar
esse encontro. Certa vez, passei por lá em seguida do
fechamento das lojas. Nada. Outra noite, passei por
volta das dez. Nada. Será que não viriam mais? – pen-
sava. Mas no amanhecer estavam lá, já se preparan-
do para sair. Quando chegavam, então? No fluxo não
programável da vida, uma noite nos encontramos. A
rua com poucos transeuntes. A família ocupando seu
lugar. A cama já posta. A menina dormindo num can-
tinho do colchão sobre a carroça. Pai e mãe assistin-
do a novela num celular. Dois transeuntes engrava-
tados ironizaram entre si: “celular melhor que o meu,
heim...”. Há pessoas com sensibilidade aguçada para
perceber objetos.
Vida que segue. Muitas vezes mais nos encontra-
mos no amanhecer. Algumas, à noite. Numa das ma-
nhãs, a menina brincava com um filhote de cachorro,
tão pequeno quanto ela. Difícil avaliar qual dos dois
estava mais feliz naquela algazarra. Numa noite, to-
mava sopa, parabenizada pela mãe porque já estava
conseguindo tomar sopa “sozinha”. “Bom dia! Boa
noite!”. Passamos a nos cumprimentar, como costu-
mam se cumprimentar os vizinhos.
Mas chegou o dia em que não mais a vi pela ma-
nhã – nem seus pais, nem seu cãozinho, nem sua car-
roça. Foi como se o mundo ficasse mais vazio. Voltei
à noite, na esperança de que nossos horários matu-
tinos é que tivessem se desencontrado. Nada. Olhei
ao redor da praça, no quiosque, em esquinas próxi-
mas. Nada. Na esquina que era dela, outras pessoas
dormiam, também trazidas pela crise provocada pelo
golpe de 2016. Um partir e um chegar sem alardes. Co-

212
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

meço já a me acostumar com os rostos desses novos


moradores e talvez, antes que eles também partam,
possamos ensaiar alguma relação de vizinhança,
quem sabe, alguma cortesia... Em passos apressados
a população segue cruzando a esquina a cada ama-
nhecer. O vendedor de colchões, com cara de quem
não dormiu muito bem a noite, abre com força a corti-
na de ferro de sua loja, fazendo despertar os morado-
res de rua que sonhavam dormir um pouquinho mais
em suas camas de papelão.
Ainda não sei ao certo se a experiência da vizi-
nhança nessa provisoriedade enreda nossos destinos
ou se apenas os naturaliza na paisagem, junto aos
tantos outros vizinhos e vizinhas, proprietários com
residência fixa, com quem trocamos, muitas vezes
só por cortesia, muxoxos de bons-dias e boas-noites.
Mas o que eu queria mesmo era saber da menina.

No livro As Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino con-


ta-nos a instigante história da cidade de Sofrônia, que
é composta de duas meias cidades: uma parte é fixa, a
outra parte é provisória e existe por temporadas. Uma,
feita de pedra, mármore e cimento, inclui o banco, as
fábricas, os palácios, o matadouro, a escola e todo o
resto. A outra comporta a montanha russa com ladei-
ras vertiginosas, a roda-gigante com cadeiras girató-
rias, a cúpula do circo com seus trapézios pendurados
ao centro. Finda a temporada, os gritos de alvoroço
dados na montanha russa ficam em suspenso, os tra-
pézios paralisam no ar e as flechas se imobilizam na
direção do alvo à espera da próxima temporada. En-
quanto isso, os pedreiros se esforçam para desmontar
os muros de pedra e os pilares de cimento. Em gran-
des guindastes são carregados monumentos, docas,
hospitais, refinarias de petróleo que vão de praça em
praça, cumprindo o itinerário de todos os anos.

213
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Quem somos nós, na cidade de Sofrônia? Os que


se abalam intermitentemente de praça em praça pen-
durados nos guindastes? Aqueles cujos gritos ficam
paralisados no ar? O que é fixo e o que é transitório? O
que, nesse jogo, é de fato o real? Que lugar se reserva,
na cidade de Sofrônia, para a Menina que tem uma es-
quina só para si e que, de repente, se transforma na ci-
dade da esquina que não tem uma Menina só para si?
Terá deixado no ar, em suspenso, seus arrulhares de
passarinho, tal qual o grito daqueles que andavam na
montanha russa? Terá sua carroça-lar sido carregada
imperceptivelmente pelos guindastes em romaria de
praça em praça com as grandes muradas de pedra? O
que nesta cidade é fixo, o que é provisório?
Teria KublaiKan, após cruzar todas as Cidades
Invisíveis, encontrado tal menina numa cidade sem
nome? Uma Cidade Invisível ou uma cidade que não
queria ver? Dizem que cada vez que uma cidade en-
cara meninas com suas próprias esquinas, lançadas
à sua própria sorte, a cidade se muda, com seus edi-
fícios de pedra, seu banco, suas casas de leis, suas
escolas, seus hospitais e leva consigo os poucos ha-
bitantes engravatados que nesse percurso acabaram
por se empedernir... A menina? A menina fica. Em seu
ponto fixo. Com seu olhar fixo. Desafiando Pascal e a
cada um de nós a mover o mundo.

Referências
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato. São Carlos: Pedro e
João Editores, 2010.
. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
BENJAMIN, W. A hora das crianças: narrativas radiofônicas
de Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2015.
214
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

. Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG; São


Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
. Obras Escolhidas v. II: Rua de Mão Única. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
. Obras escolhidas v. I: Arte e política, magia e téc-
nica. São Paulo: Brasiliense, 1987.
. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Bra-
siliense, 1984.
BOLLE, W. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
CALVINO, I. As cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
. Palomar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
QUEIROZ, C. T. “A aprendizagem do “estar morto” como es-
tratégia metodológica na pesquisa com crianças”. In: Anais
do I Congresso de Estudos da Infância. Universidade do Es-
tado do Rio de Janeiro. Rio de janeiro. 2017.
. O relógio e o vento: Conversando com crianças so-
bre o tempo. Brasil, 2016. Dissertação (Mestrado em Educa-
ção) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

215
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

216
ayvu

Experienciar o pensar,
pensar a experiência
notas sobre um coletivo de
pesquisa em educação

Walter Kohan1
Simone Berle2

Dedicamos esse texto à educação pública brasileira.


UERJ resiste!

Ao brincar com total entrega à Kalimba,


instrumento musical que Ayume nos seus cinco
anos dedilhava com muita calma descobrindo sons
que iam se tornando cada vez mais harmoniosos,
perguntamos onde ela havia aprendido a música que
emanava de suas mãos. “EU QUE ME ENSINOU”,
afirmou ela com naturalidade, continuando a brincar.
– Maria Amélia Pereira.

A América Espanhola é “original” =


ORIGINAIS devem ser suas instituições e seu Governo =
e ORIGINAIS os meios de fundar um e outro.
– Simón Rodríguez.
1
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Pesquisador do CNPq e da FAPERJ. Atualmente, bolsista PDE CNPQ
na University of British Columbia (2017-8).
2
Doutora em educação pelo Programa de Pós-graduação em Edu-
cação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Integrante
do Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias – NEFI. Bolsista
FAPERJ Nota 10.
217
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Este texto reúne percepções educativas que


emergem do Núcleo de Estudos de Filosofias e Infân-
cias (NEFI) do Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação (PROPEd) da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). O que registramos nas páginas que
seguem é fruto da complexidade de um movimento de
pesquisa ou como temos percebido o movimento edu-
cativo de um grupo de ensino, pesquisa e extensão.
Tratamos aqui de pensar o que significa um modo de
fazer pesquisa e as ambiguidades e tensões (que nos
parece interessante considerar) de como esse modo
de fazer pesquisa tem afetado a nós, que participamos
dele.
Ao observar a presença do duplo movimento
das ações educativas do NEFI – elaborar e elaborar-
-se, pesquisar e pesquisar-se –, olhamos com atenção
o que isso poderia nos dizer sobre o sentido de fazer
pesquisa hoje numa universidade pública brasilei-
ra. Apesar de nos suscitar interesse, não pretende-
mos apresentar um panorama mais amplo sobre es-
ses sentidos, nem estamos em condições de dialogar
com a vasta tradição de produção acadêmica sobre a
própria pesquisa, mas sim dar a ver o que pensamos
a partir do nosso fazer, enquanto grupo, ao aceitar o
convite dos queridos Tiago e Adrianne para compar-
tilhar nossas dúvidas, percepções, caminhos. Ou seja,
colocar algo sobre a mesa para pensarmos juntos.

Os modos da pesquisa
Existem muitas maneiras de se fazer pesquisa.
É possível que, em educação, por lidarmos de forma
muito intensa com a complexidade de relações huma-
nas, tenhamos o privilégio e a possibilidade de expe-
rimentarmos esses caminhos de formas não apenas
diversas, mas também previsíveis. Desencadeamos
218
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

continuamente pesquisas e o que elas dirão, nos di-


rão, o que nos será possível dizer a partir delas e os
efeitos do que nos propomos enquanto pesquisador-
xs , em nós e nos outrxs, nas mesmas instituições e
modos de saber, são incontornáveis; aqui apenas co-
locamos nossa atenção numa parte pequena – aquela
que podemos perceber e escrever – da experiência de
pesquisa vivida no NEFI.
A educação está conectada com processos de
vida individuais e coletivos. Daí parte da dificuldade
em dar respostas precisas, sabidas: trabalhamos com
a vida e o viver, com como a pensamos, com os mo-
dos de interrogá-la e habitá-la. Isso quer dizer que,
ao pesquisar, trabalhamos com aquilo que não pode
ser paralisado ou unificado; muito menos, controlado.
Nesse sentido, a educação exige de nós, estudantes e
professorxs3, dialogar com muitas outras vozes e com
muitas outras áreas e saberes.
Em vista disso, consideramos que fazer pesqui-
sa é desencadear um processo educativo. Diz respeito
a aprender a escutar e falar com diferentes vozes, per-
ceber e afirmar diferentes sentidos, em alguma medi-
da, e aprender a habitar o mundo educativo de outras
tantas maneiras. Essa consideração está apoiada no
percurso de 15 anos de trabalho coletivo entre ensino,
pesquisa e extensão na e com a universidade públi-
ca. Esse percurso está atravessado e sustentado pelas
pessoas, instituições parceiras, órgãos de fomento,
mas também pela constituição histórica e social, em
nosso país, da escola e da universidade.
Em contrapartida, a pesquisa acadêmica surge
cada vez mais como uma experiência solitária, pro-
3
Alternamos o uso de x com o feminino e o masculino para ex-
pressar nosso incômodo com os traços sexistas da língua e nossa
busca de uma linguagem menos sexista.
219
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

dutivista e de grandes proporções; deve apresentar


uma fundamentação específica, hipóteses claras,
metodologia consolidada e resultados mensuráveis e
passíveis de serem avaliados objetivamente, em um
universo bastante competitivo e condicionado, como
o universitário; deve também propiciar produtos que
mostrem sua produtividade.
Nas universidades, o esforço de programas de
pós-graduação, departamentos e grupos de pesquisa
supõe uma dimensão institucional, mas também um
coletivo de pessoas que se tornaram ou estão se tor-
nando pesquisadoras. Esse tornar-se pesquisador/a
diz respeito a acompanhar processos de aprendiza-
gem manifestados em monografias, dissertações e te-
ses que, além de validar uma titulação, são, para falar
com Benjamin (2008), uma coleção de achados que
se reúnem para compor uma reflexão. Essa coleção,
como bem disse Foucault (1992), é como compor uma
parede de quadros: em cada retrato está o rosto de al-
guém com quem pensamos e, no final, acabamos por
nos parecer um pouco com cada um. Dessa maneira,
explícita ou implicitamente, a pesquisa, como forma
e conteúdo, experiência e exercício, acaba afetando o
próprio pesquisador num duplo processo, pois a pes-
quisa é educacional, como veremos a seguir.

O NEFI e a pesquisa
A pesquisa apresenta-se para nós como ato edu-
cativo de aprender a compor, com outrxs, um caminho
no pensamento e na vida. Quando a pesquisa é educa-
tiva, os efeitos educacionais se multiplicam, reunindo
uma complexidade de relações entre universidade e es-
cola, crianças e adultos, plural e singular, coletivo e in-
divíduo, social e cultural. Desde nossa perspectiva, es-
sa composição comporta um diálogo entre muitas vo-
220
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

zes e, sobretudo e também, quando se trata de grupos


afincados em instituições públicas de ensino superi-
or, a geração das condições para que essas vozes pos-
sam ser manifestadas e escutadas. Nesse cenário, a-
presentamos aqui a nossa própria tarefa de compor e
propiciar pesquisas a partir do NEFI no PROPEd/UERJ.
O NEFI apresenta-se aberto para receber quem
queira pensar os assuntos pertinentes às relações en-
tre educação, infância e filosofia. Seu núcleo duro é
composto pelos membros mais institucionalmente li-
gados à universidade: professores, estudantes da gra-
duação e pós-graduação de vários cursos da universi-
dade, alguns deles bolsistas de pesquisa, extensão ou
docência, pós-doutorandos, mas também candidatos
a esses lugares, além de professores de escolas de en-
sino infantil, fundamental ou médio; o núcleo conta
com um número elevado de pesquisadores visitantes
de outras regiões do Brasil e do exterior. Nesse cená-
rio, desde 2005, formaram-se 9 estudantes de gradua-
ção, 19 de mestrado, 13 de doutorado, 12 de pós-douto-
rado; houve 17 bolsistas de extensão, 4 de iniciação à
docência, 15 de iniciação à pesquisa; foram mais de 20
professores visitantes, 8 professores de escola públi-
ca, bolsistas de apoio técnico, 7 estudantes bolsistas
de outros países em estâncias temporárias; projetos
de pesquisa interinstitucionais foram realizados com
universidades nacionais (UnB, UNESP, UNICAMP, UFC,
UFRJ) e internacionais (Paris 8, KULeuven, Univ. de
Buenos Aires, La Plata, FLACSO, Univ. de Chile, Univ.
Pedagógica y Tecnológica de Colombia, University
of British Columbia, Montclair State University, Uni-
versidade do Porto, Universidade de Napoli, Univer-
sidade de Padova, The Aegean University, University
of Cape Town, University of Strathclyde, Universidad
Central de Venezuela, entre outras).
221
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Entre outras atividades, o NEFI edita o periódi-


co childhood & philosophy, em parceria com o Inter-
national Council of Philosophical Inquiry with Chil-
dren (ICPIC); organiza a cada dois anos os Colóquios
Internacionais de Filosofia e Educação; alimenta um
banco de dados bibliográfico sobre ensino de filosofia
e propõe experiências anuais de formação. Em 2016
criou, e mantém ate hoje, um selo editorial com quatro
coleções (“Teses e Dissertações”, “Eventos”, “Ensaios”
e “Materiais Escolares”)4.
Acreditamos que, desde sua criação, o NEFI man-
tém certas formas de afirmar um espaço educativo de
pesquisa, que foram se consolidando com o passar do
tempo. Essas formas são geradas a partir do trabalho
filosófico com crianças e jovens e as práticas conco-
mitantes de formação de professores nele inspiradas
e seus desdobramentos em pesquisas dentro e fora da
UERJ (Kohan; Olarieta, 2012).
Portanto, trata-se de pensar como estamos nos
fazendo pesquisadores e, nesse sentido, ao mesmo
tempo, educadores. Com Meirieu (1998, p. 21) apren-
demos que ninguém pode dar a vida a si mesmo, e
também ninguém pode se dar sua própria identidade;
o pedagogo francês também nos faz ler que o ser hu-
mano não está presente na sua própria origem, ainda
assim [...] somos introduzidos no mundo por adultos
que fazem, como se diz ‘as apresentações’ (Meirieu,
1998, p. 21), um mundo que já estava aí antes de nas-
cermos, antes de nossos pais nascerem, com seus va-
lores, linguagem, costumes, ritos, alegrias e sofrimen-
tos e também com suas contradições. Um mundo que
não conhecemos em sua totalidade, não concordamos
com tudo, mas fazemos parte dele e nele devemos nos

4
Sobre a edições do NEFI, cf.: www.filoeduc.org.
222
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

introduzir (Meirieu, 1998). Portanto, o adulto torna-se


adulto com a intervenção de outros adultos. Apren-
demos a estar no mundo com os outros, nos educa-
mos em relação. Assim, aprendemos ao longo da vida
e diante disso, imediatamente surge uma pergunta:
como estamos pesquisando? Como estamos apren-
dendo a fazê-lo com outros? Como estamos habitando
a escola e a universidade públicas nesse movimento
educativo de pesquisa em um mundo educacional que
nos antecede em muito?
Apresentamos aqui, então, uma concisa história
do NEFI para, a partir de sua trajetória de ensino, pes-
quisa e extensão, pensar sobre pesquisar, em relação a
como temos nos inventado enquanto grupo de pesqui-
sa que se organiza e compõe com as diferentes vozes
de professorxs e pesquisadorxs, adultos e crianças na
escola e na universidade públicas para problematizar,
a partir disso, como um imperativo metodológico tem
sido reinventado com o próprio trabalho.
Desenhamos o grupo a partir de uma ideia de
universidade que herdamos e da universidade que ha-
bitamos no Brasil. Consideramos tanto que o ensino
e a extensão fazem parte insubstituível e igualmente
sustentadores do pesquisar quanto o seu inverso. An-
tes da polarização que supõe a ideia de que a pesquisa
é norteadora do ensino e da extensão, afirmamos uma
interlocução sem hierarquias entre esses três modos
da vida universitária. Por isso, o NEFI, ao propor ações
de extensão com o projeto Em Caxias a filosofia en-
caixa?5, gerou espaços para a pesquisa e o ensino,
bem como pesquisas apoiadas por órgãos de fomento

5
O projeto é desenvolvido em escolas da rede municipal de edu-
cação do município de Duque de Caxias, no Estado do Rio Janeiro,
desde 2007. Uma descrição do projeto pode ser encontrada em: A
escola pública aposta no pensamento (KOHAN; OLARIETA 2012).
223
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

que criaram condições para fortalecer o trabalho de


ensino e extensão e as práticas docentes em nível de
graduação e pós-graduação em diálogo com o ensino
infantil, fundamental e a educação de jovens e adultos
na escola pública e consolidaram um campo de pes-
quisa emergente no Brasil.

Pesquisa em educação: o que a história da educa-


ção nos faz escutar
Em relação com a história da universidade na
Europa e no mundo, a universidade no Brasil é uma
criança. Ainda no início do século XIX foram criadas
escolas superiores e faculdades. Porém, a instituição
só se organiza, efetivamente como tal, no século XX.
Assim, enquanto no Brasil a instituição de ensino su-
perior ganhava seus primeiros contornos, no mundo,
já no século XIX, se discutia a ideia de universidade
voltada à pesquisa e à ciência (Trindade, 1999). Herda-
mos uma universidade em que o conhecimento está
atravessado pela ciência e o poder. Definindo priori-
dades estratégicas e alocação de recursos financeiros
para os estados e multinacionais, as políticas cientí-
ficas, que se generalizam em todos os países, e a esta-
tização das instituições geraram uma complexa rela-
ção: o fomento para ciência tem estado acompanhado
de uma espécie de governo da ciência (Trindade, 1999).
Em nossos dias, depois de algo mais de uma dé-
cada de modestas (mas efetivas) políticas de inclusão
e expansão durante os governos de Lula e Dilma, que
apenas em parte atiçaram seu caráter claramente eli-
tista, no contexto das políticas neoliberais instaura-
das para a educação superior após o golpe parlamen-
tar de agosto de 2016, a universidade pública brasileira
enfrenta um momento difícil em que essa ampliação
encontra-se paralisada e seu caráter laico, gratuito
224
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

e democrático, corre sério risco. Desde sua criação,


a estrutura universitária no Brasil está circunscrita
em seu nível público sobre o tripé ensino, pesquisa
e extensão. Esta triangulação pretende a integração
de universidade e comunidade, sendo esta talvez uma
tentativa de superar a polarização entre teoria e práti-
ca, em especial na educação, por se aproximar do que
costumamos ouvir como o chão da escola6 e da socie-
dade civil em um sentido mais amplo. O embate entre
a teoria que não pensa a prática e a prática que não
se vê na teoria gera um abismo que coloca a univer-
sidade em uma suposta relação de superioridade em
relação à escola.
Lüdke, Cruz e Boing (2009) fazem o registro da
complexa relação entre pesquisa e a educação básica.
O estudo desenvolvido entre 2003 e 2006 apontou para
diferentes questões, entre elas a pesquisa não ser tra-
tada como parte do trabalho do professor. A autora su-
blinha que essa questão é agravada pela distinção en-
tre a pesquisa acadêmica e a pesquisa educativa. Não
perceber a necessidade de um professor pesquisador
ou a pesquisa como um processo educativo pode colo-
car a pesquisa como um processo descolado da ação
educativa. Com efeito, aqui caberia perguntar: o que
significa pesquisar? Investigar e pesquisar são o mes-
mo? Qual a sua relação com o ensino? Por exemplo,
para Meirieu (1998) a formação do professor passa por
aprender a tornar-se pesquisador. Acima de tudo, um
professor é um pesquisador.
As metodologias de pesquisa, a modo de so-
brevoo, são uma espécie de parâmetro para orientar
uma pesquisa, ou seja, um modo de conduzir/fazer
6
Um grande exemplo dessa aposta, no Brasil, foi a criação do Pro-
grama de Iniciação a Docência (Pibid), atualmente interrompido
pelo Ministério de Educação pós-golpe.
225
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

uma pesquisa. Se tratarmos a pesquisa como algo a


ser produzido, inventado, criado, constituído ao pas-
so em que se persegue uma questão, estamos assu-
mindo, também, que o ato de pesquisar exige observar
com atenção o que está acontecendo no percurso em
que perguntamos: como ela se desdobra em modos de
pensar que podem ou não afirmar um caminho poten-
te no pensamento, uma aprendizagem ético-afetiva
(Merçon, 2007)?
As diversas metodologias de pesquisa oferecem
ferramentas diferentes. Os caminhos possíveis, a tro-
ca de ideias, o tensionamento teórico são em cada caso
atravessados pelo próprio fazer e pelos sujeitos partí-
cipes desse fazer – em diferentes planos –, seguem
variados processos, diversas fontes, interpretações e
alternativas encontradas (Cambi, 1999). A complexi-
dade desse fazer reúne uma espécie de polifonia que,
quando o que está em jogo é a metodologia, não pode
desconsiderar quem faz, com quem faz, onde faz...
Em se tratando da pesquisa filosófica em educa-
ção, além das opções metodológicas, estamos enreda-
dos por uma trama de relações e significações concei-
tuais que tornam o pesquisar um processo ainda mais
complexo. Quando se afirma uma perspectiva ou viés
filosófico a partir do trabalho do pesquisador em edu-
cação, não criamos drogas ou antídotos que possam
ser aplicados em massa, mas uma espécie de phár-
makon, um remédio-veneno que desestabiliza e inter-
rompe os estados de normalidade no pensamento e na
vida, instaurando uma dúvida, um enigma, um para-
doxo, algo que exige ser pensado. Nesse cenário, a for-
ma específica de trabalho do NEFI afirma uma prática
de pesquisa muito mais problematizadora do fazer
educativo do que propositiva de grandes mudanças.
Certamente, não é uma postura majoritária no campo.
226
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

O campo da filosofia da educação no Brasil vem


se constituindo fortemente desde os anos 1980 a par-
tir de uma perspectiva histórico-crítica, segundo a
qual se trataria de desenvolver uma atitude reflexi-
vo-filosófica sobre os problemas educacionais do pre-
sente (Saviani, 1980). Na atualidade, convergem nele
diversas linhas advindas de outras tantas correntes
de pensamento, tais como fenomenologia, existen-
cialismo, marxismo, teoria crítica, filosofia analítica,
pragmatismo e pós-estruturalismo.
Nesse campo, a perspectiva afirmada pelo NEFI,
entre a educação e a filosofia, não diz respeito a uma
corrente de pensamento em particular, mas à filoso-
fia como uma experiência de pensamento que se afir-
ma na pesquisa educacional a partir de inspirações
bastante diversas e imprecisas, tanto do pensamento
europeu como latino-americano. Podemos destacar,
de um lado, a filosofia para/com crianças, criada por
Matthew Lipman e Ann Margaret Sharp, com seu in-
fluente paradigma da comunidade de investigação
filosófica. De outro lado, a filosofia europeia, em par-
ticular alguns filósofos franceses, como M. Foucault,
J. Derrida, J.-F. Lyotard, G. Deleuze e J. Rancière. Tam-
bém merecem destaque os pedagogos belgas J. Mass-
chelein e M. Simons, em especial seus aportes sobre
a forma escolar e a pesquisa educativa; finalmente,
fontes do pensamento latino-americano como Paulo
Freire, Simón Rodríguez e os zapatistas.

Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias –


NEFI: quem somos?
O NEFI tem se mostrado como uma composição
de muitas vozes. O exercício de pensar junto, que fez
nascer uma proposta de filosofar com crianças no Es-
tado do Rio de Janeiro, tem possibilitado interlocu-
227
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

ções entre escolas, universidades e seus atores. Por


isso, essa escrita também é feita de muitas vozes. Ela
é uma tentativa de desenhar os caminhos por onde
temos passado, ou como pensamos a relação entre
educação, filosofia e infância. Como experimentamos
o conviver com crianças, adolescentes, adultos, pro-
fessores, alunos, em escolas, universidades, casas, sa-
las, pátios, cozinhas, varandas, areias, terras, gramas,
chãos: mundos; em tempos de experienciar o pensar
e pensar a experiência: viver. Trata-se de dar a ver
como temos encurtado a relação entre viver e educar:
estreitando as relações entre experiência e pensa-
mento, infância e filosofia. Conviver em espaços cole-
tivos de educação.
Assim como um ensaio, que se forma como uma
figura do caminho da exploração, do caminho que se
abre ao tempo em que se caminha (Larrosa, 2003, p.
112), essa escrita também se configura assim: no ca-
minho. A intenção não é desvelar tudo o que se tem
feito no NEFI, mas apresentar uma narrativa do que
compreendemos como alguns sentidos das ações do
núcleo, enquanto composição do que temos caminha-
do, ou da vida que vivemos enquanto núcleo de es-
tudos e pesquisa. O interesse é promover abertura e
discutir tanto o que experimentamos enquanto gru-
po como o que pensamos os que dele participamos.
Afirmamos o que concebemos como movimento vital
para estarmos juntos no núcleo, pois buscamos aqui,
também, uma experiência de pensamento e não afir-
mar uma verdade que se pretende definitiva. Afinal,
ensaiar tem a humilde pretensão de mostrar o movi-
mento da vida, e a vida não está nunca bem articulada
(Mèlich, 2012, p. 22).
Partimos de uma caminhada tentativa, oscilan-
te, ainda em movimento (Oliveira, 2018). Como expe-
228
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

riência de pensamento, como movimento de vida, não


pensamos que podemos mais do que tentar mostrar
por onde e como temos passado, tampouco que mos-
trar é mais do que um horizonte do que se pode ver.
Nessa perspectiva, no NEFI, pensamos que estamos
em caminho (Gaivota, 2017), porque nunca estamos
prontos, conformados, pois aprender está mais próxi-
mo de começar do que de terminar e, assim, mais per-
to de viver, da infinitude de pensar do que da finitude
de morrer: porque a vida é descontínua e sempre pode
ser reinventada.
Nesse mote, também repensamos e reinventa-
mos os problemas, e um deles tem sido o da escola
pública. Perguntamo-nos sobre o valor das reformas
educacionais (Viegas, 2006), sobre a naturalização
dos termos escola e pública e, a partir dessa desna-
turalização, o que pode uma escola pública entre a
vivência da desigualdade e o horizonte da emancipa-
ção (Redondo, 2016). O discurso meritocrático investi-
do massivamente com a narrativa neoliberal sobre a
educação é de que a formação do cidadão depende da
vontade e dedicação de cada um, que cada um de nós
é responsável pelo capital que é capaz de gerar em si
e para si (Biesta, 2013). Com isso, garantimos que cada
pessoa, cada humano, responsabilize-se pela sua gló-
ria e seu fracasso, e nos tornamos nossos próprios
salvadores ou algozes.
No NEFI, afirmamos outros princípios. Tenta-
mos, ao mesmo tempo, verificar a igualdade das inte-
ligências (Rancière, 2003), a igual e infinita potência
de cada um, sem importar gênero, etnia, idade, classe,
para professorxs e estudantes por igual, sem perder
a dimensão inventiva da arte de ensinar (Rodríguez,
2001). A professora inventora é uma figura de uma
professora criadora, mas também de uma professora
229
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

atenciosa, hospitaleira, atenta. A forma do zapatismo


praticar a política tem nos inspirado para buscar ou-
tra forma de exercer o poder de ensinar e aprender na
universidade: uma prática de escuta, atenção, acom-
panhamento, empoderamento, cooperação e hospita-
lidade, antes que de controle, disciplina, competência,
exclusão e elitização, como muitas vezes é entendido
(Ezln, 2001).
No Brasil, temos vivido a aproximação (ou a se-
melhança) das escolas às empresas e das ações edu-
cativas às competências e habilidades de que lan-
çamos mão através da massividade de conteúdos a
serem superados. Perante esse panorama, professoras
e professores de escolas públicas vivem, no NEFI, um
espaço de possibilidade, de diálogo (Gomes, 2017), de
cores (Souza, 2017), de escrita potente (Cunha, 2014),
de problematizar o lugar do corpo desde a educação
infantil (Silva, 2012) até o ensino médio (Costa, 2008),
de pensar o sentido de aprender e ensinar filosofia no
ensino médio (Xavier, 2010), de repensar, enfim, a pró-
pria prática (Santiago, 2011).
É sobre, com e no que acreditamos que temos
investido nossas pesquisas, nossas conversas, nos-
sos estudos, nossos encontros, nossa vida. É o próprio
pesquisar que se torna objeto da escrita mesmo, ou
ainda, quando a escrita é o objeto da pesquisa (Olarie-
ra, 2016). A crença na pluralidade de significados que
vamos constituindo no viver coletivo nos leva a aban-
donar a ideia positivista de conhecimento científico
único, universal. Ao contrário disso, afirmamos nossa
educação a partir do próprio exercício do pensar filo-
sófico nela, na medida em que a:

[...] filosofia aparece como uma atividade, um exer-


cício que afeta a própria vida e as outras. Ela não é
saber, mas uma relação com o saber, um afeto pelo
230
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

saber, que toca os modos de vida dos que a pra-


ticam, uma qualidade que outorga sentido à vida
dos seus praticantes. (Kohan, 2012, p. 32).

Diante disso, o NEFI, desde 2003, vem circun-


dando suas perguntas em torno da relação entre edu-
cação, filosofia e infância, a partir da afirmação da filo-
sofia como um saber sem conteúdo (FERRARO, 2010).
Essas ações de ensino, pesquisa e extensão estão for-
temente interligadas, tornando-se difícil dizer onde
uma termina e outra começa. Em vista dessa afirma-
tiva, pensamos que:

Ensinar – que é um modo de entender – supõe e


provoca pesquisar. Pesquisar o quê? Sendo a nossa
uma universidade pública, seu compromisso com
a escola pública e o público em geral é intrínseco
e diz respeito inclusive à revisão do “lugar menor”
atribuído à extensão, tida por simples mensageira,
como se ela fosse apenas a sacola de transmissão
de um saber produzido na universidade, pelos pes-
quisadores, que então, “generosamente” “repassa-
riam” seus resultados à comunidade. A extensão
está associada, ao contrário, a um trabalho de en-
sino e pesquisa, é uma das forças enraizadoras de
pesquisa, igualmente necessária ao trabalho uni-
versitário, em que os participantes de dentro e de
fora da universidade pensam juntos os problemas
que a própria experiência da filosofia lhes coloca e
dissolvem muros. (Kohan, 2012, p. 19).

A extensão vem sendo um propulsor de encon-


tros, problemáticas, estudos. A partir dela, é estabe-
lecida uma relação educativa que permite estender
pontes ou abrir caminhos por lugares onde, talvez,
nunca tivéssemos pensado caminhar.
As nossas ações, na escola ou na universidade,
são tecidas em torno da crença de que o perguntar

231
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

move o pensar. Por isso os encontros se dão nas mais


variadas dimensões e possibilidades de (encontrar
com) filosofar: música, literatura, poesia... Como po-
tenciadoras de algum tipo de atividade interrogati-
va... As experiências vividas no município de Duque
de Caixas mostram:

O caráter indissociável da extensão, pesquisa e en-


sino. Ela potencia, através de experiências de pen-
samento filosófico, a dimensão pesquisadora da
extensão, a projeção extensionista da pesquisa no
mundo das relações de ensino e aprendizagem que
atravessam a instituição escolar. (Kohan, 2012, p. 19).

Por isso, o que emerge da extensão é retroali-


mentado pela pesquisa, ou seja, uma existe só porque
a outra existe. Uma gera vida para a outra. Pois nos
interessa gerar condições para o diálogo – reunir-se
lado a lado, de várias formas, mas sem hierarquias,
ninguém na frente, ninguém atrás, todos têm vez e
todos têm voz. Fazemos isso por acreditar que [...] as
possibilidades que se abrem no pensamento são infi-
nitas, porque é como abrir o espaço a um diálogo de
verdade, a uma diferença efetiva, a uma alteridade
que não se pode antecipar e com a que se pensa junto
(Salas; Kohan, 2012, p. 162). Conversar, escutar e pen-
sar com o outro permeiam os encontros do NEFI.
Pois nós tratamos de trabalhar sempre da mesma
maneira, com meninos e meninas, com os docen-
tes das escolas, entre os estudantes e professores
da universidade: nossos espaços de formação são
sempre marcados pela lógica da experiência: nós
nos reunimos para experienciar o pensar e pensar
a experiência. Este é o duplo movimento que afir-
mamos sempre, ou ao menos tratamos de fazê-lo e,
para isso, nos reunimos, para insistir e aprofundar
o valor e o sentido da experiência de pensar jun-
232
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

tos o que nos interessa. De modo que nosso modo


de trabalho segue essa lógica em que pensamos,
experimentamos o pensar e ao mesmo tempo nos
distanciamos dessa experiência no próprio pen-
samento para voltar sobre ela e desdobrá-la um
pouco mais, dar-lhe outra volta, revolver um pouco
seus sentidos. Creio que este é o jogo da filosofia:
com crianças, adultos ou com quem seja. (Kohan,
2012, p. 164).

O NEFI busca honrar o tripé ensino-pesquisa-


extensão sobre o que se afirma a vida universitária.
A compreensão pedagógica do ato de pesquisar está
associada a um universo de ensino e extensão que fo-
menta a abertura de questões no início e no fim do
caminho. Certamente busca-se responder às questões
que são colocadas. Contudo, essa busca não signifi-
ca um horizonte ou um objetivo de pesquisa, mas um
processo que permanece a serviço do surgimento de
novas questões. Digamos, um pouco exageradamente
sintéticos, que não se pergunta para responder, mas
se responde para seguir perguntando.
Por isso, ao NEFI não interessa tanto encon-
trar uma pergunta que possa ser respondida quanto
aprender a pensar filosoficamente sobre uma questão
e se relacionar filosoficamente com as questões que
possam ir surgindo pelo caminho. Talvez experien-
ciar o pensar, pensar a experiência descreva mais
justamente esse trajeto de pesquisa do NEFI do que
os modos habituais da pesquisa científica, quando se
trata de, a partir de alguma questão, levantar algumas
hipóteses que permitam respondê-la sem deixar de
perguntá-la.
São muitas as vidas, ou é a vida presente em nós
que nos leva a apostar na filosofia como possibilida-
de de transformar-nos. Entre essas vidas, destaca-
mos alguns autores que nos inspiram (Kohan, 2012):
233
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

a concepção de filosofia como atividade, experiên-


cia de pensar, com Sócrates; educação popular, com
Simón Rodríguez; igualdade das inteligências, com
Jaques Rancière (2003); escrita e pensamento como
experiências, com Michel Foucault (1992); filosofia
como vida que atravessa os muros da universidade,
com Giuseppe Ferraro (2010); práticas filosóficas com
crianças, com Matthew Lipman e Ann Sharp (1998);
devir-criança, com Gilles Deleuze e Felix Guattari
(2001); pensar e afirmar uma nova política, com os
zapatistas (Ezln, 2001); a politicidade da educação,
com Paulo Freire (1994; 1996); a antinomia, o paradoxo
das figuras institucionais, com Jaques Derrida (1990).
Pensamos e repensamos nossas ações, ao pas-
so que tentamos configurar o que os autores nos dão
a pensar, para nos pensar. Por isso, para nós, pensar
vem sendo pensar-se; pesquisar, pesquisar-se; edu-
car, educar-se. Aqui tratamos de rastrear como esses
conceitos reverberam em nossos trabalhos e ações,
por onde caminhamos ou a estrada que trilhamos ao
pesquisar. Escolhemos apresentar alguns conceitos e
autores que consideramos e com os quais pensamos e
aprendemos a pensar.

A pesquisa como autoformação: Masschelein e


Simons
Masschelein e Simons (2014) concebem a filoso-
fia da educação, assumidamente, como uma tentativa
de dar forma a uma postura que é abordada a partir
do trabalho educativo, ou seja, consideram a filosofia
como educação. Uma filosofia que é ascética e pública.
Ascética, pois não está vinculada ao entendi-
mento da filosofia no viés da tradição crítica, que diz
respeito ao fazer filosófico como um trabalho de julga-
mento, ordenação, justificação, seleção, esclarecimen-

234
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

to de conceito, interpretação ou explicação (Massche-


lein; Simons, 2014, p. 10), ou seja, em outras palavras,
aquela que tem a pretensão de validar algo, seja de
forma ética, normativa ou epistemológica, pois revela
a verdade, de modo que o filósofo ocupa um papel crí-
tico-julgador que se distancia da realidade para tomá-
-la como objeto de conhecimento. Por isso, os discur-
sos ancorados na tradição crítica da filosofia tomam
a revelação da verdade, disciplinada e dirigida, como
uma demonstração, julgamento ou desmistificação,
revelando um conhecimento adequado para pessoas
que precisam de esclarecimento. Para ilustrar tal po-
sição, os pedagogos belgas usam a imagem da alego-
ria da caverna: os que estão na caverna precisam do
filósofo, iluminado pelo conhecimento, para guiá-los
em direção à luz (Masschelein; Simons, 2014). Inspi-
rados em outra tradição de filosofia, os autores assim
a descrevem:

[...] reconhecidamente mais marginal, que pode-


mos chamar de tradição “ascética” (ou existencial-
mente orientada), que compreende a crítica não
em termos de julgamento, mas em termos de uma
experiência e de uma exposição. Nessa tradição, o
trabalho da filosofia é, em primeiro lugar, sobre si,
isto é, “submeter alguém à “prova da realidade con-
temporânea”” (Foucault), o que implica um enten-
dimento não dos outros, mas de si mesmo – porém
de si mesmo não como sujeito do conhecimento,
mas como sujeito da ação. Essa submissão de al-
guém à prova é, portanto, um exercício no contex-
to da autoformação e autoeducação: ela procura
transformar ou modificar o modo de ser de alguém
e como esse alguém vive o presente. (Masschelein;
Simons, 2014, p. 11, grifos dos autores).

Nesse contexto – da autoformação e da autoe-


ducação –, a prática educacional e filosófica busca es-
235
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

tabelecer um ethos atento e experimental ou a arte


de tornar algo capaz de aparecer e se transformar em
alguma ‘coisa’ (algo que nos preocupa e que começa a
significar ou exprimir) que não apareceria sem esse
trabalho (Masschelein; Simons, 2014, p. 23). O proto-
colo seguido nesse fazer pesquisa é a repetição sem
um fim definido, pois se rompe com a ideia de pes-
quisar como direcionamento, resposta, e de método
como solução massiva para questões predetermina-
das. O fazer pesquisa é um trabalho de exposição, pois
abre um espaço que possibilita a experiência, à luz de
Bergson, não ver o que pensamos, mas pensar no que
vemos (Masschelein; Simons, 2014, p. 23).
Na tradição ascética, a filosofia é compreendi-
da como um trabalho sobre si mesmo, o que implica
um entendimento não dos outros, mas de si mesmo
(Masschelein; Simons, 2014, p. 11). Assim, nos aproxi-
mamos da ideia de educação e pesquisa como um fa-
zer educativo. Para usar as palavras de Masschelein e
Simons (2014), autoeducativo.
O caminho da pesquisa não está dado e há dife-
rentes formas de passar por ele, distintas perspecti-
vas de olhar. O sentido do caminhar, para os pedago-
gos belgas, [...] é a possibilidade de olhar para além de
qualquer perspectiva, uma visão ou um olhar que nos
transforma (e, portanto, é uma experiência) enquan-
to que estamos sujeitos ao que vemos [...] [e] o impor-
tante do caminhar é pôr em movimento esse sujeito e
essa posição (Masschelein; Simons, 2014, p. 43). Ins-
pirados por Benjamin, esses autores assinalam a di-
ferença entre percorrer um caminho e sobrevoá-lo. A
diferença está na própria atividade e o efeito que ela
tem sobre nós e sobre o que nos revela: entre ver o ca-
minho e experimentar sua autoridade.

236
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Pensamos na figura do caminhar e do caminho


como inspiração para o pesquisador e a pesquisa, em
uma situação hipotética em que não se trata sempre
literalmente de caminhar, mas de aprender a educar o
olhar, de estar atentos ao presente e repetir, deslocar
o olhar para que possamos ver de uma maneira dife-
rente, para que possamos ver o visível, [...] e de ma-
neira que possamos ser transformados (Masschelein;
Simons, 2014, p. 43).
Assinalamos esse contorno de estudos que vem
sendo desenvolvido pelo NEFI nos limites da ação
educativa, enquanto educação de si ou, dito de ou-
tro modo, da pesquisa como pesquisar-se. A partir
da obra de Arendt (1991, 2011) e de Foucault (1992), tal
tarefa é da ordem da relação do humano com o mun-
do. Portanto, exige a exposição e o cuidado (Carvalho,
2012). Aqui, a exposição está marcada pela ideia da fi-
losofia como educação, entendida como um trabalho
sobre si mesmo, a partir do exercício do pensamento
em três sentidos: a) colocar em jogo o próprio pesqui-
sador, o que sugere um trabalho sobre si; b) colocar
um presente educacional em jogo, ou seja, o presente
dos discursos educacionais, instituições e práticas; c)
um gesto público e, portanto, educacional na medida
em que pode ter significado para outros que são con-
vidados a compartilhar a experiência e constituir um
público pensante (isto é, eles são convidados a se co-
locarem à prova e a serem ensinados) (Masschelein;
Simons, 2014, p. 17).
O esforço que fazemos para tornar essa pesquisa
pública, esse modo, também é o modo como nos in-
ventamos (Rodríguez, 2001). Fazer pesquisa torna-se,
assim, pesquisar-se... Trata-se de um voltar-se para
si, a partir daquilo que interrogamos, daquilo que o
mundo nos faz interrogar. E como nos faz interrogar?
237
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Quando colocamos atenção em algo. Desse modo, o


interesse em si nos leva a colocar atenção sobre algo.
Se na tradição crítica de pesquisa ela se mede
pelas perguntas e as respostas que permite alcançar,
na pesquisa como autoformação, o que mais importa é
a relação que se estabelece com as perguntas e as res-
postas por parte dos sujeitos da pesquisa. Assim, uma
tese, dissertação ou monografia, não se mede apenas
como um produto final, mas nos afetos e efeitos trans-
formadores vividos durante a escrita.
Essa tradição de pesquisa tem suas raízes na fi-
losofia grega antiga. Para Pierre Hadot (2006), as obras
filosóficas da Antiguidade grega não estão organiza-
das como demonstração de um determinado sistema,
mas como técnicas que perseguem fins educativos,
pois os filósofos daquela época chegavam ao espírito
dos seus leitores e ouvintes buscando produzir neles
um certo estado de ânimo (Hadot, 2006, p. 9). Daí a
base do conceito de exercício espiritual: formar o es-
pírito e não informá-lo. Daí, também, a aproximação
entre a figura do pedagogo e do filósofo.
A palavra espiritual é usada, neste estudo, na
tentativa de tentar abarcar a complexidade contida
em tais exercícios. Poderiam denominar-se exercício
do pensamento, mas a palavra deixaria de fora a in-
tensa participação da imaginação e da sensibilidade
(Hadot, 2006), assim:

[...] a palavra “espiritual” permite compreender


com maior facilidade que exercícios como esses
são produto não só do pensamento, mas de uma
totalidade psíquica do indivíduo que, em especial,
revela o autêntico alcance de tais práticas: graças
a elas o indivíduo acede ao círculo do espírito ob-
jetivo, o que significa que volta a situar-se na pers-
pectiva do todo. (p. 24).

238
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Trata-se de uma askesis7.


Segundo Hadot (2006), as raízes da filosofia an-
tiga têm, no exame de consciência, meditação e con-
templação, exemplos de exercícios espirituais. Os
exercícios tinham uma característica de repetição.
Até o mais banal dos acontecimentos poderia estar
registrado em cartas e cadernos de notas. Eles ser-
vem como uma espécie de suporte para a retomada de
si, bem como para a troca de reflexões sobre si com o
outro. São tarefas do eu em relação com o próprio eu
(Hadot, 2006), que buscam modificar a relação do eu
com o mundo.
Os estoicos propunham uma distinção entre
o discurso da filosofia e a filosofia em si mesma. As
partes da filosofia – a física, a ética e a lógica – eram
entendidas mais como partes do discurso filosófico do
que como partes da filosofia em si. Por não se tratar de
uma construção de sistemas, mas uma experiência de
vida é que não se teoriza então sobre lógica, ou seja,
sobre falar e pensar corretamente, mas que se pensa e
se fala bem [...] [e assim sobre a física e a ética, pois] o
discurso filosófico não é filosofia (Hadot, 2006, p. 238).

Quando se reflete sobre o que implica a vida filo-


sófica, nos damos conta de que existe um abismo
entre teoria filosófica e o filosofar como ato exis-
tencial. O artista também parece que se contenta
com aplicar uma série de regras. Mas existe uma
incomensurável distância entre a teoria abstrata
da arte e a criação artística. No entanto, no que
diz respeito à filosofia, não se trata unicamente de
criar uma obra de arte, mas de transformar-se a
si mesmo. Levar uma vida filosófica corresponde
a uma ordem de realidade absolutamente distinta
a do discurso filosófico. (Hadot, 2006, p. 239-240).

7
Termo grego que se traduz justamente por exercício, prática.
239
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Nesse sentido, quando falamos da relação edu-


cativa, os conteúdos, assim como as metodologias,
são a forma como aprendemos a constituir um pensar.
Não são as equações e os teoremas que nos ensinam,
mas o pensamento que somos capazes de construir a
partir deles, em relação com eles. Não são os métodos
que fazem a pesquisa, mas o que somos capazes de
constituir a partir deles, em relação com eles. Perce-
bemos a mesma incomensurável distância entre a te-
oria da arte e a criação artística que entre os métodos
e a escrita/produção de conhecimento. O como fun-
ciona tal uma força impulsionadora do pensar, pois é
ali que se geram condições para encontrar sentidos
para o pensamento.
A filosofia com crianças nos aproxima dos exer-
cícios espirituais, praticados entre os estoicos céticos
e epicuristas: são um convite a transformar a si mes-
mo. Nessa filosofia, o pesquisar é uma ação simulta-
neamente de fazer-se e fazer, fazer-se pesquisador e
fazer pesquisa. A pesquisa que se faz também é a pes-
quisa que me faz; o passo que caminho é passo que me
caminha: quem caminha, também é caminhado. A ta-
refa de pesquisar é dar a ver um pensamento e o pen-
samento é a matéria que tenta modificar a si mesma
(Hadot, 2006, p.24). Um método se pensa a si mesmo
e, se pensando, abre caminhos para pensar e pensar-
se de outra maneira.

Experienciar o pensar, pensar a experiência: um


princípio metodológico?
A inseparabilidade entre os modos de habitar a
escola e a universidade também faz do NEFI um espa-
ço de inseparabilidade entre a pesquisa e a educação
e nos faz encontrar com outros modos de perceber a
universidade e a produção de conhecimento.
240
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

As ações de experienciar o pensar que o NEFI


propõe estão vinculadas ao movimento de Filosofia
com Crianças, criado, na década de 70, pelo filósofo
norte-americano Matthew Lipman. De lá para cá a
proposta tem se espalhado por todo o mundo, o que
gerou uma apropriação do método lipmaniano.
Em nossas pesquisas, percebemos que as de-
nominações filosofia para crianças e filosofia com
crianças têm apontado para uma noção de pertenci-
mento, assim como para uma noção de reinvenção. O
termo filosofia com crianças vem sendo mais usado
na América Latina, o que nos leva a retornar à ideia
que trouxemos no início desta escrita, de que nossa
universidade é uma criança. Quando articulamos a fi-
losofia com crianças, afirmamos o modo como nos co-
locamos em relação ao outro: com, de igual para igual,
sem hierarquias.
Experienciar o pensar surge como movimento
inicial de reunião para pensar coletivamente sobre
algo. O modo como esse movimento se desenrola é o
foco do que pode ser percebido como segundo movi-
mento pensar a experiência. Essa é a base de todos os
encontros promovidos pelo NEFI. Porém, esse modo
de organizar encontros para pensar não se restringe
às crianças. Os encontros com adultos também têm
tomado essa orientação. Ou seja, filosofia com crian-
ças não é necessariamente um encontro de crianças,
mas uma maneira de se encontrar com o outro e com
o pensar do outro.
Derrida (2012), ao falar da experiência, faz uma
analogia com a visão. O pré-visível não é da ordem da
experiência, pois a experiência não pode ser previs-
ta. Ela é algo que nos assalta, pode surgir de qualquer
direção, nunca de frente. Não é um horizonte. O hori-
zonte faz parte do repertório que temos constituído,
241
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

com e no qual atuamos e improvisamos. A experiên-


cia é algo que mobiliza esse horizonte no sentido da
dúvida, do espanto, do inusitado, da recomposição.
Quando propomos experienciar o pensar é em torno
desse conjunto de ideias que atuamos. Para nós, in-
teressa também que esse experienciar seja pensado,
por isso tratamos de propor um duplo movimento: ex-
perienciar o pensar, pensar a experiência. Com isso,
Derrida (2012) nos põe a pensar o outro movimento, a
saber: colocamos atenção no que foi possível perce-
ber, sentir, olhar, escutar, pensar de uma proposta de
experienciar o pensar? O segundo momento – pensar
a experiência – é tão rico e valioso quanto o primeiro;
ele nos oferece tantas condições de pensar quanto o
primeiro momento. Experienciar o pensar supõe ge-
rar condições para que um grupo de pessoas dedique
seu tempo a pensar sobre algo, dialogue sobre ideias,
perguntas e problemas.
Talvez aqui possamos pensar, com Rodríguez
(2001), que estamos, com minúsculos movimentos,
nos inventando, gerando possibilidades para que ou-
tros se inventem. Resistindo, sobretudo, ao discur-
so de medo que paira sobre nós, experimentamos a
educação e a filosofia como formas de vida (Foucault,
2015) e a universidade e a escola como espaços de
afirmação da vida (Merçon, 2007).
O NEFI tem uma forma de fazer pesquisa que
se aproxima desse outro modo de fazer filosofia que
enunciam Masschelein e Simons (2014): ascética. Não
se trata de mostrar uma verdade, mas de apostar no
próprio exercício de pensar, a partir de uma tradição
socrática (Foucault, 2015), o que converte a escrita
não só num exercício de pensamento, mas também
num pensar a experiência. Mesmo se consideramos o
modo mais tradicional de fazer pesquisa, não se trata
242
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

somente de contar, narrar uma aposta, uma hipótese,


mas, enquanto isso ocorre, há uma transformação... O
próprio escritor é tomado pela escrita, que pensa e se
pensa.
Quem escrevemos quando (des)escrevemos uma
pesquisa? A pesquisa (re)nasce com a escrita, quando
a escrita torna a visitar o pensado, o experienciado,
o vivido. A escrita, o (re)visitar a experiência do pen-
sar, está pensando outra vez, está experimentando
outra vez. Escrever e escrever-se na escrita. Por isso
dizemos: experienciar o pensar, pensar a experiência.
Esse duplo movimento é uma composição metodoló-
gica dos fazeres no NEFI que traçam a complexa tra-
ma de tornar-se professor.
A escrita vai se tornando um revisitarmo-nos a
nós mesmos, pois encontramos, como na filosofia com
crianças, um lugar seguro no encontro com outrxs,
onde podemos experimentar dizer, escutar e pensar
com e sobre o nosso repertório, ao mesmo tempo em
que experimentamos escutar e pensar sobre o repertó-
rio dxs outrxs. Nesse encontro, podemos nos enganar,
mudar de ideia, voltar atrás, defender, argumentar so-
bre as ideias. Um espaço-tempo8 para reordenar o que
pensamos, o que escutamos, o que somos, o que es-
cutamos, o que falamos... Para nos inventarmos a nós
mesmos. Talvez seja bom lembrar que a etimologia de
8
Propomos a utilização da noção de espaço-tempo, desenvolvida
pelos geógrafos Doreen Massey e Milton Keynes (2008), que, ao
problematizar a noção de tempo e espaço, propõe a mudança e a
permanência como potência dos encontros, em que a coexistência
de múltiplas histórias exige múltiplos espaços, com relativa auto-
nomia (Massey, Keynes, 2004). O que já não cabe na noção aparta-
da de tempo e espaço, pois se o tempo é a dimensão da mudança,
então o espaço é a dimensão do social: da coexistência contempo-
rânea dos outros. E isso é ao mesmo tempo um prazer e um desafio
(Massey, 2008, p. 21). Sempre que nos referirmos a espaço-tempo,
será de acordo com essa reflexão.
243
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

inventar, do latim inventus, (chegado dentro) não diz


respeito apenas a um criar-se, mas a uma atenção e
sensibilidade para que algo possa chegar dentro. De
modo que inventarmo-nos é algo assim como deixar
que cheguem (pessoas, pensamentos, perguntas, de-
sejos, sensações) dentro de nós.
Percebemos, assim, que a metodologia das ações
do NEFI, experienciar o pensar, pensar a experiência,
nascida na extensão, no encontro da universidade
com a escola, de adultos e crianças, foi se configuran-
do num modo de fazer pesquisa como educação ou de
uma educação como pesquisa, atravessando experi-
ências diversas do filosofar com crianças pelo Brasil
afora e pela Argentina (Cirino, 2016).
Não desejamos com esta escrita replicar um
método, mas narrar uma experiência de trabalho de
um grupo que vem transitando intensamente entre
a escola e a universidade públicas. Nossa metodolo-
gia minúscula, menor (Deleuze; Guattari, 2003: Gallo,
2013) foi se inventando assim, como grupo.
A prática/ação pedagógica vai tornando-se uma
maneira de andar, uma metodologia, e a metodologia
se tornando uma prática/ação pedagógica, diluindo a
fronteira entre as dicotomias pensar e fazer, teoria e
prática. A universidade, portanto, ocupa-se, também,
de gerar tempo e espaço para as professoras da edu-
cação básica se ocupar, com outros, de seu próprio
pensar e pensar-se. Assim, aquilo que parece indis-
pensável ao ser docente encontra algumas condições
para ser apresentado e pensado com iguais, de qual-
quer idade, história, formação.
O imperativo de que a universidade faz pesqui-
sadores pode ser invertido se consideramos que estes
têm constituído, em seus núcleos, grupos, coletivos
de pesquisa/estudo outros modos de estar na univer-
244
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

sidade. O NEFI é um exemplo disso. Mesmo com todo


o discurso de produção, metas, inovação, insistimos
que a realização do nosso trabalho vem de um proces-
so de vínculo com a experiência do pensar. Por isso,
as ações afirmam-se na significação individual e co-
letiva delas. A suspensão e profanação da própria uni-
versidade faz com que inventemos uma coexistência
nela. Não se trata de ir contra ou a favor das políticas,
mas de reinventar os modos de habitar essas políticas
que nos atravessam e que nós mesmos constituímos.
Pensamos, também, que assim não só resistimos, mas
encontramos outros modos de fazer escola, de educar,
portanto, de pensar, de formar. A pesquisa torna-se
um gesto autoeducativo. Eis um dos aspectos da po-
liticidade da educação, em que se verifica que mudar
é difícil, mas não impossível (Freire, 1996, p. 30): na
própria transformação de si.
Ao fim, também experimentamos a universida-
de pública como um espaço de refazê-la, uma opor-
tunidade de afirmar uma outra universidade no seu
interior. O contexto da universidade se mostra como
um espaço de criação, invenção e, por isso, resistên-
cia. Talvez ele só seja possível pela reunião entre in-
fância, filosofia e educação como círculo de formação
em que a pós-graduação se constitui como um espaço
eminentemente educativo. A infância é uma força de
inícios muito mais do que uma etapa da vida; a filoso-
fia, um exercício de pensar e pensar-se muito mais do
que uma história de saberes ou conceitos já criados; a
educação, uma possibilidade para nos autoeducarmos
muito mais que a pretensão de formação de um ou-
trem (Masschelein; Simons, 2014).
Talvez esse seja um pequeno gesto, um primeiro
passo para iniciar um caminho que pense a pesquisa
em educação como um processo formativo do profes-
245
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

sor que, em sua essência, é aprender a tornar-se pes-


quisador: não para ensinar como se faz uma pesquisa,
mas para aprender a acompanhar o aprender de outrxs
e inventar, juntos, caminhos possíveis de pensamento.
Ao mergulhar e registrar o percurso, de forma
minúscula, o que o movimento de experienciar o pen-
sar, pensar a experiência nos faz olhar, acontece um
duplo movimento: o primeiro compele a pensar/olhar
o que há para saber num caminho; o segundo chama
a escrever esse caminho, o que já é, em si, a constitui-
ção de outro caminho (Olarieta, 2016). O pesquisador
que caminhou o caminho e o pesquisador que conta
desse caminho já não é o mesmo. Os atos de escrever,
ler, reescrever, ler-se, também fazem o pesquisar. Nes-
se sentido, nosso registro minúsculo é um desejo de
abrir uma porta para considerar a pesquisa como um
exercício de aprender a tornar-se outrem, em que está
implicado, antes de tudo, um processo de aprendiza-
gem sobre si mesmo.
Educação como pesquisa ou pesquisa como edu-
cação. Talvez seja bom terminar este ensaio escreven-
do alguns verbos em infinito, que dizem respeito ao
modo como o NEFI, ao pesquisar, pesquisa-se: educar
como pesquisar; pesquisar como educar; formar pro-
fessores como formar-se; convidar todxs a se educar,
publicamente; pensar como exercício de habitar poli-
ticamente as instituições; educar-se na pesquisa; pes-
quisar-se na educação: “nefiar”; sim, talvez o NEFI seja
mais propriamente um verbo do que uma sigla, uma
maneira de habitar e recriar a universidade como es-
paço educativo, público. Dessa forma, “nefiamos”, “ne-
fiando-nos”, procurando pesquisar e nos pesquisar,
afirmando uma política da escuta, do igual, da dife-
rença, do menor, da atenção... Como na pesquisa, na
escola, no espaço público da universidade, na escrita.
246
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

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249
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

250
ayvu

Sobre o tempo da pesquisa e a


importância da observação

Ana Angélica Albano1

The desire to see and the need to be seen cannot be


overestimated; when such seeing and being seen
takes place, it is like a blessing.
– James Hillman

A orientação é, para mim, uma das atividades


mais prazerosas da vida acadêmica. Gosto do acompa-
nhamento individual, gosto do tempo da espera pela
maturação da pergunta, dos silêncios e das explosões
das descobertas inesperadas. Gosto de acompanhar a

1
Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo
(1995). Professora livre docente da Faculdade de Educação da Uni-
versidade Estadual de Campinas/Unicamp, pesquisadora do Labo-
ratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação da Unicamp (La-
borarte). Diretora do Museu de Artes Visuais da Unicamp (desde
2014) e diretora associada (2012-2014). Membro do Focus Group for
Creativity in Education, da Fundação Marcelino Botín, Santander/
Espanha (2009-2014) e do Imagination and Education Research
Group (IERG) – Simon Fraser University/Canadá (desde 2003).
251
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

espera, às vezes difícil de suportar, e ser testemunha


do encontro de algo que vinha sendo perseguido há
muito tempo e que finalmente se revela.
É no trabalho de orientação que o tempo pode
melhor ser regulado pelas perguntas do outro e a ob-
servação silenciosa é mais valiosa.
Quando entrei no mestrado no Instituto de Psi-
cologia da USP, em 1976, contávamos com um longo
tempo para amadurecer nossas pesquisas. Antes do
exame de qualificação, tínhamos que cursar dez dis-
ciplinas, mas não havia urgência nos prazos para as
defesas. Hoje as condições dos programas de pós-gra-
duação são outras. Os prazos são curtos, e é grande
a pressão para publicar artigos durante o período da
pesquisa, um importante exercício de formação que
precisa ser cuidadosamente dosado para não disper-
sar a concentração necessária para o aprofundamen-
to do tema investigado. Recortar e colar citações, mui-
tas vezes, substitui a reflexão, apesar de poder dar a
impressão de conhecimento do campo.
Em entrevista a Amélia Hambúrguer em 1984, o
físico e crítico de arte Mário Schenberg comenta:

Hoje se obriga a pessoa a publicar muito, se obri-


ga a publicar demais. O critério de julgamento da
eficiência científica de uma pessoa é o número de
publicação, o que é uma ideia absurda, porque, por
exemplo, há pessoas que publicaram inúmeros
trabalhos que ficaram totalmente desconhecidos
[...]. Essa preocupação de ter um grande número de
trabalhos publicados às vezes pode prejudicar as
pessoas, se é que não prejudica sempre. Pode ser
que prejudique sempre porque a pessoa fica na-
quela tensão de estar publicando, e sempre outras
coisas, sem ter tempo para se concentrar bastante
sobre uma determinada coisa. (Hamburguer, 1984,
p. 148).

252
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Na década de 1980, Schenberg já se preocupava


com a falta de tempo para a concentração necessá-
ria ao trabalho de pesquisa… Mas, como o “tempo não
para”, e estamos todos submetidos às mesmas regras
de produtividade, penso que meu papel como orienta-
dora é criar uma qualidade de interlocução que auxi-
lie o(a) pesquisador(a) em formação a não se desviar
do seu propósito, envolvendo-se profundamente com
suas perguntas. Acredito que cada pergunta traz con-
sigo um apelo sutil, mas complexo, que pode condu-
zir-nos a um conhecimento mais profundo das coisas
e de nós mesmos, através do tema a ser pesquisado.
Esse aprofundamento, muitas vezes, implica
afastar-se momentaneamente do assunto e dedicar-
se à literatura, ao cinema, à poesia, à música, fazer
caminhadas, dançar, fazer coisas que ajudem a ficar
com a cabeça nas nuvens, como propõe Roberto Gam-
bini (2010, p. 149).
O psicólogo Thomas Moore adverte que perde-
mos a capacidade de contemplação como cultura,
porque sentimos que não estamos realizando nada,
enquanto contemplamos. Ele nos lembra que Ficino,
na Renascença, já dizia que a alma, para prosperar,
necessita de férias todos os dias. Mas férias num sen-
tido mais profundo, no sentido de sair da realidade
cotidiana e esvaziar a cabeça ou “ficar com a cabeça
nas nuvens”. E a arte, diz ele, tem essa capacidade de
capturar nossa atenção, afastar-nos momentanea-
mente da realidade imediata e colocar-nos em outro
estado de consciência.
Essas férias, que levo muito a sério no meu co-
tidiano, nas quais sigo dedicando diariamente um
tempo para literatura (que posso usufruir sem sair de
casa), ajudam a criar internamente um tempo mais
alargado, que favorece imensamente a pesquisa, mes-
253
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

mo quando estamos sujeitos à urgência dos prazos


acadêmicos. Em artigo sobre a pesquisa – Histórias
de iniciação na arte –, apresento minha forma de
aproximação do meu objeto:

Para compreender o meu tema, tenho me deixado


guiar pela poesia, pelos mitos, “As mil e uma noi-
tes e outros contos”, para ver se encontro o foco
que me permitirá olhar para as vidas que estou
estudando com um sentido mitológico. A função
do mito para a psicologia não é descrever ou enu-
merar os diversos tipos de comportamento, mas
ampliar a reflexão, auxiliando-nos a ultrapassar
os limites e os condicionamentos do nosso tempo
e da nossa cultura. “Mitos não fundamentam, eles
abrem”, ensina-nos Hillman (1992, p. 44). (Albano,
2007, p. 91).

A atitude que adoto nas minhas orientações,


aprendi com Jung. Proponho que, em vez de preci-
pitarmo-nos sobre o objeto de estudo, armados com
algum conhecimento preestabelecido, devemos dar,
primeiramente, um tempo de pausa, tão longo quan-
to necessário. Para, então, deixar que apareça o que
interiormente nos atrai naquele objeto. Deixarmo-nos
impressionar pelo objeto, circundá-lo livremente, ob-
servando-o a partir de diferentes ângulos, para me-
lhor reconhecê-lo e avaliá-lo.
O conhecimento virá, então, da observação das
coisas. Das coisas do mundo visível e do invisível que
nos atraem a conhecê-los.
Jung usa o termo “religião” como relegere, que
significa reler, observar atentamente, considerar, re-
considerar e pensar. Esta forma de relegere é, para
mim, o que rege a orientação: que implica em dar o
tempo necessário para a observação atenta do objeto
da pesquisa, considerando e reconsiderando as possi-
254
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

bilidades. Implica em respeito ao tempo do outro, às


suas dificuldades e a seus deslumbramentos. Saber
que a pesquisa é do outro e que o meu papel é cuidar
para que ele permaneça fiel a si mesmo, o que pode
até implicar em mudança de rota. A única impossibi-
lidade é aceitar menos do que o outro é capaz de fazer.
Em minha pesquisa de doutorado, havia inves-
tigado a relação mestre-discípulo entre Tarsila do
Amaral e o artista contemporâneo Tuneu. Observando
o desenvolvimento da obra de Tuneu, acompanhado
por Tarsila, havia compreendido que o artista é inicia-
do por sua própria obra. O papel do mestre, portanto,
seria facilitar ao discípulo a percepção do projeto que
virá a ser sua obra e auxiliá-lo na sua realização. Sigo
fiel ao princípio aprendido no doutorado: uma tese é
uma obra; portanto, é a obra por criar que conduz o
processo. Nem sempre a parceria com os(as) orien-
tando(as) foi fácil, mas raras vezes precisamos inter-
romper o processo.
Outro princípio que adoto na orientação é enco-
rajar cada um(a) a procurar as ferramentas teóricas
que melhor correspondam ao problema a ser pesqui-
sado. Embora deixe sempre claros meus referenciais
teóricos, nos cursos e em nossas reuniões, cada um
é livre para utilizar os autores com quem mais se
identifique e/ou que sejam os mais adequados para
analisar os dados da pesquisa. Para o exame de qua-
lificação, convidamos professores especialistas nos
autores adotados, para que possam auxiliar e conferir
a apropriação dos conceitos. Sinto-me absolutamen-
te confortável com essa postura, que está de acordo
com a forma como fui orientada pelo Dr. João Frayze,
psicanalista, que aceitou minha formação junguiana,
encorajando-me a explicitá-la na minha tese.

255
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Orientar é ajudar o outro a encontrar a própria


voz. Encorajo, portanto, a escrita autoral – aspecto que
tem sido encoberto pela escrita chamada acadêmica.
Talvez, pela minha inabilidade, desde o mestrado, em
enquadrar-me numa forma de escrever em que não
me reconhecesse, ou talvez, pelo meu amor à literatu-
ra: escrever bem é um dos meus critérios na seleção
da pós-graduação.
No prefácio que escrevi para o livro: Danças
circulares na formação de professores: a inteireza
de ser na roda, de Luciana Ostetto (2014), comento o
acompanhamento da sua pesquisa, que, apesar de ser
particular do processo dela, reflete minha forma de
orientar:

Acompanhar o desenvolvimento desta pesquisa


foi um desafio e um grande prazer. Não era um as-
sunto com que eu tivesse familiaridade e obser-
vava com desfrute suas descobertas, suas obser-
vações e o cuidado com que passou a desenvolver
a pesquisa, aprendendo e ensinando a dançar. A
cada passo um questionamento, um encantamen-
to, o cuidado redobrado para lidar com as resistên-
cias que encontrava em alguns grupos e a alegria
em percorrer caminhos ainda não trilhados. En-
contrar as ferramentas que a auxiliassem a ana-
lisar os dados foi outra questão a ser enfrentada.
Os teóricos que ela vinha estudando há anos não
eram adequados para o objeto da nova pesquisa.
Era necessário encontrar outros interlocutores.
Mudar o enfoque teórico é mudar a perspectiva.
Deslocar-se do território conhecido para o desco-
nhecido. No início, as leituras de Jung e Hillman
eram para ela desconcertantes: Não consigo nem
fazer uma síntese precária, me dizia. Foi a experi-
ência estética, vivida enquanto dançava e ensina-
va a dançar, que abriu passagem para esses auto-
res. O deslocamento do campo do conhecimento

256
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

puramente racional para o conhecimento estético


trouxe a necessidade do diálogo com quem já ha-
via trilhado esse mesmo caminho. Com o “seu jeito
próprio de ser”, dedicou-se a esta vertente teóri-
ca, nova para ela, com a mesma seriedade e afin-
co, que reservava para estudar as danças. Buscou
cursos dentro e fora da Universidade, frequentou
grupos de estudo e congressos. Porém, entre seus
interlocutores privilegiados, não estavam apenas
os teóricos. Entendeu que para pesquisar arte se-
ria preciso fazer e fruir arte e poder, assim, falar de
arte, através da arte. Dedicou, então, tempo para ir
aos museus, ao cinema, ler romances e poesia e,
especialmente, para escutar muita música. Aven-
turou-se, também, no desenho, que surgiu, espon-
taneamente, como necessidade durante os meses
da escrita da tese. (Albano, 2014, s./p.).

Antes de iniciar este texto, enviei aos ex-orien-


tandos a seguinte questão: Se perguntarem a vocês
qual é a imagem que têm do período que estavam
escrevendo sua tese e/ou sua dissertação… Qual é a
primeira imagem que aparece? E para os quatro que
ainda estão em processo, mudei um pouco a pergunta
para: Qual a imagem que tem da experiência no dou-
torado?
Não quis perguntar diretamente sobre a orienta-
ção, para não direcionar a resposta. Queria sentir se
as imagens poderiam me dar pistas sobre como per-
cebiam o processo. Nem todos responderam a tempo,
e a maioria das imagens chegou em palavras.
Optei por colocar os nomes dos autores em nota
de rodapé, para não interferir na fluência das ima-
gens, que algumas vezes foram expressas em apenas
uma palavra.

257
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Essa primeira imagem, um homem saltando so-


bre o abismo2, é de um orientando de doutorado ini-
ciando sua pesquisa. A eloquência da imagem dispen-
sa comentários.
Quem já esteve diante de um papel ou tela em
branco conhece essa sensação.
A sequência seguinte é de um doutorando no
meio do processo da pesquisa.
A primeira foto apresenta-nos a uma névoa colo-
rida, que talvez possa representar algo.

Como estamos muito próximos do objeto, seus


,As imagens seguintes foram por mim agrupadas pe-
las semelhanças. Elas indicam estados de espírito e
me fazem pensar que, talvez, o meu desejo de incenti-
2
Sérgio de Azevedo. Tomas Vega.
258
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

var um estado de suspensão do tempo, de férias num


sentido mais profundo, de cabeça nas nuvens, tenha
sido, algumas vezes, bem-sucedido.
Agrada-me pensar que, ao invés da imagem co-
mum de “parto”, associada ao sofrimento de escrever
uma tese, apareçam imagens de leveza, de brilhos e
transparências, esconderijos protegidos para o sonha-
dor sonhar em paz. Sinto-me profundamente gratifi-
cada na função de protetora dos sonhos-teses.
Os verdes das folhagens do jardim de minha casa3.
Uma floresta com partes fechadas e outras com
espaços para a luz do sol entrar4. Um rio de águas
mansas, fluindo. E veio uma sensação: leveza5.
O mar... Suas cores e brilhos e transparências...
Nos dias e nas noites... Seu eterno movimento…6
Um mergulho7
Um refúgio de criação…8
De toca, esconderijo! (como quando criança, em-
baixo de lençóis-tendas ou atrás da penteadeira que
havia no quarto da minha mãe eu me punha a escre-
ver histórias…)9 Uma cor... Vermelho…10 um desejo de
desenhar.11
Descobertas, amplitude...
Alguém sentado num pico mais alto do mundo
observando/contemplando tudo o que está ao redor –
prazeres, ruínas, transformação, mudança.12
3
Lucilia Franzini.
4
Simone Cintra.
5
Luciana Ostetto.
6
Rose Helena Reyes.
7
Alessandra Ancona de Faria.
8
Ester Broner Giannella.
9
Ana Cristina Rosseto Rocha.
10
Paula Almozara.
11
Henrique Lima Assis.
12
Nilza de Souza.
259
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Uma constelação13:

A última imagem que apresento foi enviada por


um músico14, que terminou o mestrado há dez anos.
Diferentemente dos demais, fazia muitos anos que
não estávamos em contato, e sua resposta chegou
em forma de carta, com notícias e fotos da família, de
onde recorto suas imagens:
Poxa, que surpresa boa receber essa mensagem
sua!
E que pergunta difícil de responder assim, de
bate-pronto.
Pois vou dizer duas imagens que me vieram for-
tes na memória:
A primeira é de estar diante de uma produção
que nunca terminava, a cada porta que abria de dis-
cussão/reflexão, três novas janelas me convidavam a
novos caminhos de investigação.
A segunda é a da relação orientadora-orientan-
do, sempre muito bem contornada por você numa fra-

13
Maria Carolina Duprat Ruggieri.
14
Alexandre Randi.
260
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

se simbólica, que reedito agora com minhas palavras,


a partir de uma elaboração mais madura: “o trabalho
é seu, você que pode (e escolhe) trazê-lo ao mundo ou
não”. Relação essa cuja síntese descobri na última ida
minha à sua casa, já próximo do ponto final da mi-
nha dissertação; depois de Hermann Hesse, não tenho
nada mais a acrescentar. :

Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo.


Não posso abrir-lhe outro mundo de imagens, além da-
quele que há em sua própria alma. Nada lhe posso dar a
não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajuda-
rei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo.
– Hermann Hesse.

Referências
ALBANO, A. A. Tuneu, Tarsila e outros mestres: uma história
de iniciação. 1995. Tese (Doutorado em Psicologia) - Univer-
sidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
. A. Tuneu, Tarsila e outros mestres…: o aprendizado
da arte como um rito de iniciação. São Paulo: Plexus, 1998.
ALBANO, A. A. Histórias de iniciação na arte. Em Aberto, v.
21, n. 77, 2007.
ALBANO, A. A. O aprendizado que vem das fontes. In: OS-
TETTO, L. E. (org.). Danças circulares na formação de profes-
sores: a inteireza de ser na roda. Florianópolis: Letras Con-
temporâneas, 2014.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Diccionario de los símbo-
los. Barcelona: Herder, 1988.
ESCOBEDO, J. C. Diccionario enciclopedico de la mitologia.
Barcelona: De Vecchi, 1985. p. 383.
GABILK, S. Conversations before the end of time. New York:
Thames and Hudson, 1995.
GAILLARD, C. Jung e a arte. Pro-Posições, v. 21, n. 2(62), 2010.
GAMBINI, R. Com a cabeça nas nuvens. Pro-Posições, v. 21,
n. 2(62), 2010.
261
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

HAMBURGUER, A. Mario Schenberg entre os físicos. In:


GINZBURG, G.; GOLDFARB, J. L. (orgs.). Mário Schenberg: en-
tre-vistas. São Paulo: Instituto de Física da USP; Perspecti-
va, 1984.
HILLMAN, J. A blue fire. New York: Harper Perennial, 1991.
. Persons as types. In: . Egalitarian typo-
logies versus the perception of unique. Dallax: Spring Publi-
cations, 1980.

262
ayvu

Por uma escola almada


o corpo brincante e a
educação para a sensibilidade

Rosane Barbosa Marendino


Tania Marta Costa Nhary

Iniciando a convetsa
A alma de nossa civilização depende da civilização
de nossa alma. A imaginação de nossa cultura clama
por uma cultura da imaginação
– J. Hillman.

Compreendemos que a busca de novos caminhos


para antigos problemas sobre as questões da educa-
ção envolve uma desmontagem das – também anti-
gas – bases de conhecimentos científicos reducionis-
tas, segregadores e pragmáticos. O esgotamento e a
superação do modelo clássico e tradicional apontam
para a necessidade de se adotar um novo paradigma,
sobretudo quando se trata de pesquisas na área de ci-
ências humanas.
Dessa forma, quando trazemos uma provocação
sobre a questão da alma na educação e sobre as novas
formas de se pensar o tempo e o lugar do corpo brin-
263
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

cante na escola, desejamos incitar o leitor a pensar


em uma pedagogia da sensibilidade, pautada em uma
base poética da mente (Hillman, 2001), que valorize a
beleza, as miudezas, os afetos, o mundo das imagens
e o lúdico: lugares esses onde se escondem as potên-
cias, a vitalidade do humano e a força propulsora da
vida.
Deleuze (2006, p. 56) afirma que quando o fun-
do emerge à superfície, o rosto humano se decompõe
neste espelho em que tanto o indeterminado quanto
as determinações vêm confundir-se numa só deter-
minação que estabelece a diferença. Entendemos,
com isso, que se arriscar na abertura de novas experi-
ências possíveis, principalmente diante das incerte-
zas, significa dar valor ao que reside nas profundezas,
não importando compreender apenas o que se encon-
tra na superfície.
É diante desse reconhecimento que propomos
dialogar com as possibilidades hermenêuticas apon-
tadas neste livro como metodologias minúsculas1 tan-
to na compreensão do conceito de alma, quanto na crí-
tica ao espaço que a ciência iconoclasta tem mantido
no cotidiano escolar, não reconhecendo o importante
papel da imaginação e da sensibilidade na educação.
Estamos a propor o pensamento sobre uma es-
cola almada (Marendino, 2011; Nhary, 2011) que reflete
e sonha os símbolos; que se percebe no seu papel ins-
taurador; que intui; que imagina e que se revela em sua
potência geradora de espaços para o ser sensível, para
1
Utilizamos o termo metodologias minúsculas em acordo com o
título deste livro, que nos sugere serem aquelas que rompem com
uma norma prescritiva do método científico objetivista, cartesiano
e racional, reforçando, em contrapartida, a importância das multi-
plicidades, das diferenças, da polifonia e do diálogo, compromis-
sadas com as singularidades, com o diferir, com o sabor e o saber
criado e vivenciado na pesquisa.
264
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

os afetos, para as emoções e para o lúdico, sem jamais


desconsiderar o diálogo com a razão. Precisamos de
métodos que capturem essa essência, que enxerguem
esses mínimos espaços/tempos e que desafiem a lógi-
ca endurecida da objetividade.
É nessa medida que as metodologias minúscu-
las irão nos provocar e permitir que adentremos os
lugares da escola produzindo pesquisas e registros
que nos conduzam a tais leituras. Estamos a propor
que conceitos e ideias sejam ouvidos como legítimas
expressões da imaginação, que se traduz através das
metáforas e dos símbolos.
Sendo assim, tratamos aqui da escola como lu-
gar de se fazer alma (Hillman, 2001), na qual o corpo
brinca, se expressa, produz sentidos, significados e se
transforma através dos laços da complexidade e de
tudo aquilo que é tecido junto a tantos elementos.

A escola como ato de esculpir: um lugar de “fazer


alma”
Penetrar num labirinto e regressar dele, tal é o rito
iniciático por excelência, e no entanto toda a exis-
tência, mesmo a menos movimentada, é susceptível
de ser assimilada ao caminhar num labirinto.
– Mircea Eliade

Plotino foi um filósofo grego classificado pelos


pensadores contemporâneos como um neoplatônico
e que dedicou grande parte de sua obra a tratar da
busca da alma através da beleza. Com ele, é possível
resgatar a ideia de que a educação se trata de uma es-
pécie de movimento revelado no ato de esculpir uma
estátua que temos em nós (Plotino, 2000).
Nessa mesma direção simbólica, Araújo e Ma-
chado (2013) apontam para a educação como um pro-
265
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

cesso de modelagem, que se perfaz através da trans-


formação iniciática. Tais autores utilizam-se da figura
metafórica referente ao personagem Pinóquio, e das
suas possibilidades de transmutação e regeneração.
Nos ritos de passagem descritos no conto As aventu-
ras de Pinochio2 (o boneco que quer se tornar um me-
nino), Araújo e Machado destacam o papel da experi-
ência da morte que, por sua vez, desemboca em uma
ressurreição. Segundo os autores, nessa história há
um conjunto de símbolos emblemáticos que se com-
plementam e que dão significado ao tema da meta-
morfose no homem contemporâneo. Morre-se e vive-
-se no movimento ritual de iniciação, fundamental na
condição humana. Para Araújo e Machado (2013, p. 36):

[...] a iniciação assume contornos dramáticos por-


que esse combate pressupõe sempre uma descida
aos Infernos, uma entrada do neófito, vivo e são,
no labirinto, no interior de um monstro, no ventre
de uma Deusa ou então no ventre da Mãe, em que
o sujeito só é realmente herói se regressar são e
salvo, a fim de iniciar uma nova vida como adulto
(domínio da “cultura”). Como o outro mundo é o lu-
gar da redenção, da transmutação, do renascimen-
to, da ciência e da sabedoria, o iniciado, quando de
lá volta, é realmente outro, quer do ponto de vista
existencial e ontológico, quer do ponto de vista
psicológico.

Dentre símbolos e metáforas contidas nas narra-


tivas sobre Pinóquio, olhamos a escola e a educação,
encaradas no seu movimento de iniciação, apontando
caminhos para uma renovação, para o reencontro do
homem consigo mesmo.
Em cada escola existem histórias a serem conta-
das, existem aspectos culturais – patentes e latentes –
2
Obra escrita pelo italiano Carlo Collodi em Florença, em 1881.
266
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

a serem desvelados, existem estruturas arquetípicas


(Jung, 2008) e coletivas a serem apreendidas, assim
como existem as histórias individuais. Existem luga-
res de sombra e de luz. Esse é o trajeto antropológico3
que G. Durand (1993) propõe em seus estudos, no qual
acreditamos ser preciso olhar, compreender, trazer à
tona, libertar.
Quando Paula Carvalho (1990) aponta para a
importância de uma leitura ampliada da educação,
cremos que está se referindo ao conjunto de práticas
socioeducativas que cimenta todas as demais práti-
cas, ou seja, um complexo de fatos fáticos que unem,
que estabelecem o contato, que religam. Nesse caso,
a educação poderia ser pensada como um procedi-
mento de descoberta do ser, dos aspectos latentes e
dos símbolos da afetividade que são os elementos de
transcendência pelos quais a alma, assim como nos
fala Plotino, pode ser descoberta. A educação se tra-
ta, enfim, de um encontro com o nosso daimon, termo
esse que Hillman (2001) usa ao se referir às vocações
e a uma espécie de voz interior que nos realiza. O dai-
mon é uma espécie de guia que a todo o momento nos
lembra o que compõe as nossas imagens e faz um pa-
pel de portador de nossos destinos.
Assim sendo, compreendemos que a escola pode
ser um dos palcos nos quais a alma se apresenta. Já
que educação se trata de um processo iniciático, de
adaptação, de transformação do mundo e de si mes-
mo, ela também pode ser pensada como um procedi-
mento de descoberta do ser, de autoconhecimento e

3
A noção de trajeto antropológico, segundo Gilbert Durand, diz res-
peito ao incessante intercâmbio existente, ao nível do imaginário,
entre as pulsões subjetivas e assimiladoras (internas, latentes) e
as intimações objetivas (externas, patentes) que emanam do meio
cósmico e social (Durand, 1993).
267
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

de conhecimento do outro a partir das considerações


dos aspectos latentes e dos símbolos da afetividade,
que são os elementos de transcendência pelos quais a
alma – assim como pensam Plotino e Hillman – pode
ser revelada.
Enquanto processo iniciático, de individuação,
de trajetos antropológicos e de meio de produção sim-
bólica, a educação deveria revelar os mitos, as ima-
gens e os símbolos pessoais como elementos agrega-
dores do ato de aprender.
Nos movimentos da ludicidade, nas potências
expressivas e nos elementos da poiesis4, os daimons
se realizam e a alma é cultivada. A escola necessita
reconhecer essa complexidade e as ligações tecidas
entre razão e emoção, já que estas não se excluem,
mas se tornam complementares, mesmo diante de
seus antagonismos.

O corpo brincante como potência da alma


Existe uma ligação direta entre as imagens inte-
riores e os estados emocionais a elas ligados e os
movimentos do corpo no tempo e no espaço.
– Elisabeth Zimmermann

Na introdução deste artigo, dizíamos que as in-


vestigações epistemológicas vêm avançando nas últi-
mas décadas, principalmente no campo das ciências
sociais e educacionais, conquistando um patamar que
rompe com o racionalismo, com o positivismo, com a
objetividade e com as verdades absolutas. Vale res-
saltar, mais uma vez, o quanto se considera, hoje, que

4
Poiesis é entendida aqui no viés do pensamento aristotélico que
remete ao sentido de produção criadora, visto que, para esse pen-
sador, a criação e a poesia têm o significado equivalente por com-
partilharem a mesma origem.
268
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

a questão do conhecimento humano vem a ser bem


mais complexa, ou melhor, passa a envolver um pen-
sar complexo (Morin, 1990) que encampa fatores além
da razão, mas que não a desconsideram.
Assim, vislumbram-se novos caminhos de com-
preensão do social e do educacional que se alinham
a um conhecimento multidimensional, sem o isola-
mento da razão e da emoção, do cogito e da poiesis;
do patente e do latente, do corpo e da alma, mas sim
considerando essas instâncias amalgamadas.
Essa mudança paradigmática abre espaço para
se pensar sobre a alma na/da escola.
Uma alma, como já afirmado em linhas acima,
que é o centro da vida psíquica (Hillman, 2009) e dia-
loga com as mais variadas sensações corpóreas, visto
que nosso corpo é o nosso destino (Keleman, 2001, p.
33), um destino que não segue sem alma, sem as in-
quietações da psique. Ele é presença certa em todas
as instâncias da vida, ele é a própria materialização
de nossa existência. O corpo, então, escuta o chama-
mento dos daimons, busca viver poeticamente. Como
afirma Zimmermann (2009, p. 155), a personalidade in-
dividual se desenvolve num processo original, onde
os impulsos criativos das camadas mais profundas se
manifestam no campo de relações conscientes do eu.
Assim, a imagem poética do corpo brincante surge
como linguagem evocada pela consciência, em que o lú-
dico, como fuga para fora do real, desse não se descola.
Há um corpo e uma alma na nossa existência, há
uma alma e um corpo que nos fazem estar aqui, sendo
o que somos. O que não há é uma dicotomia de am-
bos, pois somos pensamento e emoção, razão e senti-
mentos, agimos e nos movemos em função de nossas
pulsões internas e de nossas necessidades objetivas.

269
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Transitamos entre realidade e devaneio, entre o si-


mulacro e o mundo real, entre o sagrado e o profano
(Eliade, 2006). Somos, enfim, corpo e alma – uno. Uma
alma corporificada, em que o que quer que sejamos,
somos a psique (Hillman, 2009, p.18), nossa alma.
O corpo, então, sente-se penetrado e fecunda-
do pelo desejo da alma, uma mistura do consciente e
do inconsciente. No entanto, como afirma Le Breton
(2007, p. 28), o corpo parece algo evidente, porém nada
é mais inapreensível que ele. Talvez por isso ele seja
pouco visto e reconhecido no contexto escolar, talvez
por isso ele não faça parte da maioria das propostas
pedagógicas, das metodologias de ensino.
Porém, a ludicidade no contexto escolar é ex-
pressão do corpo encarnado, é reveladora das ner-
vuras de afetos, de segredos, de anseios, de dores, de
alegrias. O corpo revela a alma. Tudo o que ele, o cor-
po – sobretudo o corpo brincante –, expressa em seus
movimentos, em sua vivência e experiência, é prenhe
em significados. Assim, o corpo lúdico sai em busca
de diferentes sensações e fruições, de um desfrute
aparentemente banal que, muitas vezes, principal-
mente para as crianças, se realiza ao se encontrar nos
jogos e brincadeiras.
Como afirma Huizinga (2004, p. 11), a ludicidade
é uma ação livre assumida voluntariamente, que en-
volve o indivíduo por inteiro numa espécie de arreba-
tamento que traz a sensação de felicidade, logo, liga-
-se a prazer, divertimento e lazer. Entende-se, assim,
a ludicidade como atividade que propicia uma expe-
riência de plenitude, que envolve o sujeito por intei-
ro. Uma espécie de mergulho no íntimo, na busca de
algo que não se desvia da realidade, mas que anda em
paralelo a ela (Huizinga, 2004), em um mundo outro

270
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

em que aventuras, descobertas, conflitos e diferentes


fruições alimentam a própria alma e satisfazem às
necessidades expressivas do corpo. Logo, as coisas do
corpo e da alma são da ordem dos sentidos, o que tor-
na a alma corporificada, o corpo almado. Um não exis-
te sem o outro quando mergulhados na ludicidade.
Assim, a atividade lúdica pode ser considerada
um tecido intersticial que integra razão e emoção,
norma e vida, ordem e desordem, sonho e fantasia, o
real e o imaginável. Se entregar ao lúdico é, em pri-
meiro lugar, se doar de corpo e alma, é, por si só, ins-
taurar uma tessitura integradora que requer o investi-
mento do corpo.
A poética do corpo brincante das crianças no
cotidiano escolar – na maioria das vezes expressa por
meio de jogos e brincadeiras – é reveladora de sen-
timentos, desejos, opressões, histórias, assim como
revela modos de ser e estar no mundo e até mesmo a
própria psique. Geralmente, é remetida aos pequenos
nadas (Maffesoli, 1999), a algo infrutífero, sem sentido
e banal. É da ordem das miudezas que, mesmo nega-
das, teimam em fazer parte da escola.
Não há escola sem corpo, não há corpo sem alma,
não há criança que não brinque, que não se manifeste
ludicamente (salvo exceções, por vezes patológicas).
Logo, a vida vivida por corpos na escola excede e foge
à lógica cartesiana e racional de docilidade corporal.
Isso porque o corpo brincante veicula imaginação, so-
nhos, desejos, devaneios, criações, vivências e expe-
riências.
No entanto, há uma produção de sentidos nas
atividades lúdicas corporais das crianças na escola
que, em grande escala, não é observada, nem sequer
compreendida como linguagem, como expressão de

271
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

sentimentos que revelam a singularidade da criança


(Nhary, 2011). O recreio escolar, como manancial de
tais linguagens, muitas vezes é visto como algo à par-
te do próprio processo educativo, é uma prática apar-
tada das demais, em tempo e espaço. Manifestações
lúdicas em sala de aula muitas vezes são vetadas,
controladas, docilizadas em nome da ordem e da pas-
sividade, cabendo muitas vezes ao recreio ser palco
dessas manifestações.
Na pesquisa intitulada A cultura lúdica na esco-
la e o corpo imaginal (Nhary, 2011), ficou evidente que
o recreio de determinada escola é repleto de alegrias,
de conflitos, descobertas, desafios e afetos; que o cor-
po brincante ‘faz vibrar’ o chão, enche o espaço de ri-
sos e gritos de emoção; traça um vaivém de corpos
entre as rampas, entre os pátios da escola a procura
de algo cada vez mais prazeroso (p. 295), o que rever-
bera a ideia de que o corpo lúdico é sedento por viver
uma experiência rica em representações e sentidos.
Então, pelo aqui exposto, trata-se de reconhecer-
mos a necessidade de uma pedagogia sensível, que
chame o corpo a participar ativamente das práticas
de ensino, que o compreenda como encarnado em sua
vitalidade e potência, que perceba suas manifesta-
ções lúdicas, que o reconheça como parte do próprio
processo de formação humana. Porém, o pensamento
racional, simplificador e excludente teima em reinar
em muitas escolas impondo ordem, obediência, disci-
plina, docilidade.
Apontamos aqui a necessidade de apostarmos
em novos pressupostos para a educação, destacando
a ludicidade como uma possibilidade a ser valoriza-
da em propostas pedagógicas que se inclinem a uma
educação sensível como forma de (trans)formação de

272
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

sujeitos, reconhecendo-a como atividades educativas


que permitem o narrar de corpos encarnados, alma-
dos, por ser entendida como manifestação humana,
que se insinua como atividade temporária, que tem
uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista
uma satisfação que consiste nessa própria realização
(Huizinga, 2004, p. 12).
Acreditamos e apontamos, por meio de pesquisa
supracitada, que escola também é lugar de corpo brin-
cante, não há como negar; no entanto, nem sempre
conseguimos captar essa poética cotidiana em suas
vitalidades, em sua potência expressiva e reveladora
do “ser criança”. O corpo brincante é uma linguagem
que se utiliza de metáforas (verbais ou gestuais) para
narrar a experiência do vivido. Essa dimensão possi-
bilita amplificar a percepção e ressaltar a realidade
sensível do corpo que multiplica, mistura e combina
os seus sentidos, essa rede sutil de conexões onde se
encontram cingidos razão e emoção. Daí o reconhe-
cimento de que o corpo faz parte do ensino, da vida,
da escola. Daí a necessidade de reconhecê-lo em sua
complexidade, em seus movimentos sinuosos, mas ri-
cos em potência, força e saberes.

Deixando pistas para conversas futuras


Pinóquio regressa à casa da Fada, que promete
transformá-lo num menino de verdade, e também
dar uma festa de arromba para comemorar
esse acontecimento.
– Carlo Collodi
Ratificamos aqui que a tarefa primordial da edu-
cação é levar-nos a aprender e ensinar com alma. É
nos levar a sonhar, a construir nossos próprios cami-
nhos, a descobrir coisas, a sentir e entender a vida. A

273
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

pedagogia carece de uma reconciliação com as coisas


da alma, da fantasia e da imaginação. É preciso atri-
buir valor à imaginação, às sensações, às “coisas” do
sensível como parte do processo educativo. É preciso
reconhecer a importância de uma pedagogia da/para
a sensibilidade e que não deixe o corpo de fora.
Torna-se, assim, de grande importância assumir
uma perspectiva compreensiva, reflexiva, crítica e
transformadora, levando à compreensão de que o cor-
po, como forma de expressão, é entendido como fenô-
meno sociocultural que perpassa o processo de ensi-
no/aprendizagem como forma de desenvolvimento e
transformação humana. Ou seja, é preciso adotar um
paradigma em que sensibilidade, compreensão e ima-
ginação sejam consideradas e afirmadas. É preciso
trabalhar com perspectivas nas quais corpos confor-
mados de madeira se tornem corpos vivos, de carne e
osso.
Assim como nos falam Araújo e Machado (2013),
que o velho boneco Pinóquio possa dar lugar a uma
nova criança viva. Que possa dar vez a um menino
como deve ser, ou seja, a um menino transformado
duplamente, pois não somente passou a ser humano,
mas igualmente transformou-se numa criança esté-
tica e eticamente cheia de qualidades. Meninos que
se tornam bons porque permitem seus daimons, têm
livres seus corpos e cumprem, enfim, o seu Destino.
Junto a isso, apostamos em pesquisas que pos-
sam revelar-nos, cada vez mais eufemisticamente,
aquilo que se encontra nas profundezas, ou seja, o
tecido do imaginário educacional revelador das inte-
rioridades dos sujeitos, no qual as metáforas, os sím-
bolos e os mitos nos permitem desvelar, se trazidos à
tona e compreendidos. Não podemos nos negar, para
tanto, certo espírito romântico que reconhece e afir-
274
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

ma a importância da imaginação na formação inte-


lectual e que também declara que o conflito entre ra-
zão e imaginação é de fato irreal, pois se trata de uma
polarização equivocada sobre como as pessoas veem
seu mundo e suas experiências.
Assim como nos fala Bachelard (1988), há impor-
tância em se sonhar e pensar os devaneios e em se
sonhar e pensar os pensamentos. Para esse exercício
hermenêutico, tanto os corpos quanto as almas, tanto
o prosaico quanto o poético precisam andar de mãos
dadas, contando com a fada que nos realize os desejos.

Referências
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educacional nas aventuras de Pinochio. Revista Educação e
Emancipação, v. 6, n. 1, 2013.
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1993.
HILLMAN, J. O código do ser: uma busca do caráter e da vo-
cação pessoal. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
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cação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. 4ª ed. Lis-
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NHARY, T. M. C. A cultura lúdica na escola e o corpo ima-

275
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

ginal. 2011. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade


Federal Fluminense, Niterói, 2011.
PAULA CARVALHO, J. C. de. Antropologia das organizações
e educação: um Ensaio Holonômico. Rio de Janeiro: Imago,
1990.
PLOTINO. Tratado das Enéadas. Tradução, apresentação e
notas de Américo Sommerman. São Paulo: Polar Editorial,
2000.
ZIMMERMANN, E. Individuação em contato com o corpo
simbólico. In: . (org.). Corpo e individuação. Petró-
polis: Vozes, 2009.

276
ayvu

Caminhar entre a
pesquisa e a educação
um exercício e algumas notas em favor do
caráter acontecimental do pensamento

André Bocchetti1
Teresa Gonçalves2

Já se vão alguns anos desde que decidimos, en-


quanto professores de uma Faculdade de Educação,
experimentar com os estudantes o potencial edu-
cativo do ato de caminhar. Recém-chegados àquela
universidade, trazíamos inquietações comuns em re-
lação a certos modos de produção de pensamento rei-
nantes em algumas relações educativas que haviam
cruzado nossas vivências como educadores. Sentía-
mos falta, no trabalho com os estudantes, de uma es-
pécie de saborear que, como nos lembra Roland Bar-

1
Professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro e docente colaborador no Programa de Pós-
Graduação em Gestão e Avaliação da Educação Pública na Univer-
sidade Federal de Juiz de Fora. Mestre e Doutor em Educação pela
Universidade de São Paulo.
2
Professora adjunta da Faculdade de Educação e do Programa de
Pós-Graduação em Educação da UFRJ. Doutora em Educação e So-
ciedade pela Universidad de Sevilla.
277
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

thes (1987), está na raiz da própria ideia de sapientia e


da importância que ela carrega; de um modo de operar
que atrelasse a implicação do sujeito, seus atravessa-
mentos afetivos e cinestésicos às transformações que
materializam seu processo educacional.
Queríamos escapar de um modelo de produção
de conhecimento extremamente evidente no campo
acadêmico, capaz de ainda hoje compreender as figu-
ras do professor e do pesquisador como portadoras de
certo direito de enunciação universalizante de sabe-
res. Ao saber unificado, validado como científico pelas
externalidades normatizantes de nossa época, buscá-
vamos contrapor outro, talvez um tanto mais incorpo-
rado, como diriam Masschelein e Simons (2014); co-
nhecimento derivado não de um código previamente
estabelecido como aceitável – no caso, fundamental à
construção dos programas dos cursos acadêmicos de
um modo geral –, mas de uma relação ética e existen-
cial do sujeito consigo mesmo, imersa nas relações
afetivas que estabelece em sua jornada universitária.
Relação de cuidado de si que, por sinal, está no cerne
da separação feita por Michel Foucault (2010) entre o
teórico – esse eterno construtor de um sistema global
(p. 290) – e aquele que experimenta: sou um experi-
mentador [...] [diz o filósofo francês] no sentido em que
escrevo para mudar a mim mesmo e não mais pensar
na mesma coisa de antes (p. 290).
Tratava-se, portanto, de uma tentativa de pro-
dução de um trabalho que ampliasse a possibilidade
de contato dos estudantes e de nós, professores, com
experiências educativas – incluindo-se aqui todo o
caráter acontecimental, arriscado e marcante que a
noção de experiência traz consigo (Larrosa, 2015). Em
nosso caso, buscávamos tal transformação na imer-
são dos participantes dos cursos que oferecíamos em
278
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

uma experiência específica de corporeidade e errân-


cia. E por isso nos pusemos a caminhar.
Os exercícios realizados com os estudantes con-
tinuam, até aqui, a nos apontar diversos caminhos in-
teressantes em nossas reflexões docentes. Nos fazem
pensar, como fizemos em outro momento, em manei-
ras distintas de conceber o ato formativo e a própria
pedagogia (Gonçalves; Bocchetti; Valentim, 2017). Nos
dão elementos para, juntos com autores como Careri
(2013) e Jacques (2014), reconhecer o valor da errân-
cia na produção de mundos e sujeitos. E, igualmente,
nos permitem pensar em favor de uma pesquisa tam-
bém inquieta e atenta às possibilidades oriundas de
nossas próprias derivas. É em relação a esta última,
a esse pesquisar um tanto desviante, que queremos,
aqui, tecer algumas considerações.

Algumas caminhadas
Os exercícios de caminhada têm sido propostos
anualmente, desde 2015, abarcando grupos de estu-
dantes de graduação distintos. Em todas as versões da
atividade, estiveram presentes estudantes que cursa-
vam as disciplinas de Pesquisa Educacional e Educa-
ção Brasileira ministradas por nós, nos cursos de Pe-
dagogia e Licenciatura. A primeira versão da proposta
contou, também, com participantes das disciplinas
de Pedagogia Empresarial e Didática; à segunda tur-
ma somaram-se os graduandos inscritos em Questões
Éticas em Educação. As caminhadas com o primeiro
grupo ocorreram no segundo semestre de 2015, com
mais de 80 estudantes. No ano seguinte eram cerca
de 40 participantes nas atividades, desenvolvidas no
primeiro semestre letivo. Em 2017, novamente nos
meses iniciais do calendário acadêmico, foram apro-
ximadamente 60 graduandos envolvidos no trabalho.
279
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

Todo o processo que envolve as caminhadas se


dá ao longo de cinco aulas incluídas nos programas
das disciplinas citadas e realizadas concomitante-
mente naquilo que temos chamado de encontros in-
tegradores. Durante tais momentos, os estudantes de
todos os cursos envolvidos se reúnem em um espa-
ço comum, participando de sessões conduzidas con-
juntamente pelos professores engajados na proposta.
Nas primeiras duas aulas, os participantes se depa-
ram com alguns textos, imagens e reflexões que pro-
curam afirmar modos implicados de construção de
conhecimento, envolvendo tensionamentos de uma
suposta relação sujeito-objeto nessa produção – como
se vê, por exemplo, em Kastrup (2008) – e análises de
abordagens nas quais a presença do pesquisador é co-
locada em relevo – como Masschelein (2008) –, além
de registros anteriores e narrativas sobre exercícios
semelhantes àquele que está sendo proposto. Na ter-
ceira aula da sequência se dá a caminhada propria-
mente dita, procedida por dois encontros nos quais tal
experiência é expressada entre os membros do grupo,
tanto por um relato escrito quanto por meio de pro-
duções artísticas. Os encontros que precedem essa
sequência de aulas envolvem a apresentação geral da
proposta por cada professor, e aqueles que se seguem
a ela incluem, sempre, elementos de integração entre
o vivido e a disciplina em questão – culminando, por
sinal, na produção de um registro analítico que ex-
pressa tal composição.
Mas é de fato no terceiro dia desse processo que
muito de suas possibilidades e inquietações começa
a se materializar para os participantes. Nossa propo-
sição central aos pequenos grupos de estudantes que
se encontram na deriva comum não poderia ser mais
elementar: a caminhada em um espaço público do Rio
280
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

de Janeiro, atenta à questão: o que a experiência de


caminhar produz em você, no que tange à educação?.
Em geral, a simplicidade da solicitação incomoda
muito, e não são poucas as perguntas dos estudantes
que procuram objetivar o intempestivo que caracte-
riza a proposta: Qual o objetivo dessa caminhada?,
Precisamos ver o quê? A gente precisa anotar alguma
coisa?, Até que horas precisamos caminhar? Pergun-
tas que são, em geral, respondidas com um desacomo-
dador e silenciso sorriso por nós.
Talvez o que mais incomode em um exercício
como esse é que ele incita, justamente, a um modelo
de relação consigo mesmo um tanto raro nas diferen-
tes produções acadêmicas solicitadas aos nossos es-
tudantes. Em sua acontecimentalidade – ou seja, na-
quilo que provoca uma redistribuição das potências,
por meio do qual tudo recomeça, mas de outro modo,
como diz Lapoujade (2015, p. 68) –, a situação viven-
ciada incita a um estado de presença. A algo, portanto,
que, se estabelece pela crença no outro e em si mes-
mo, por meio de uma relação com o mundo e com algo
que nos coloca em uma situação sempre efêmera com
a realidade (Larrosa, 2014). Será possível pensar en-
tão, a partir de uma deriva como essa, em uma pes-
quisa que se alimente dessa presença, dessa crença,
dessa efemeridade? Os caminhos de Helena e Cristina
3
podem nos ajudar nessa resposta.

Um caminhar e alguns sentidos à pesquisa educa-


cional
Desses muitos passos, queremos seguir uns
poucos, específicos, errantes, inquietos: queremos fa-
lar das experiências de Helena, uma estudante que,

3
Nomes fictícios.
281
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

em 2015, pôs-se a caminhar na Praça XV, no centro


do Rio de Janeiro, com Cristina, sua companheira de
jornada – cada uma delas, posteriormente, apresenta-
ria suas reflexões sobre o exercício. A caminhada de
Helena é, como muitas outras, cheia de inquietações
iniciais, de incertezas fundamentais que a levam a se
mover e, mais do que isso, de certa forma a obrigam
a algumas ações: a partir de seu exercício, a estudan-
te se vê impelida a acrescentar ao seu relato escrito
um outro texto – que intitula A metáfora –, no qual
vai produzindo um conjunto de análises a partir de
algumas figuras metafóricas pautadas na experiên-
cia que vivencia. Concomitantemente, produz ainda,
junto com Cristina, um breve filme, que as ajuda a dar
conta do que tentam explicitar a partir da vivência da
caminhada. A “obrigação de”, aqui citada, mantém en-
tão uma relação de necessidade; e não se trata de uma
necessidade fundada no próprio sujeito, mas antes
surgida de algo estrangeiro que o violenta, para utili-
zar um termo utilizado por Gilles Deleuze ao falar da
potência irruptiva do acontecimento, o elemento fun-
dante da possibilidade de uma pesquisa em educação
que se relacione com a presença do pesquisador e,
com ela, com a força transformadora sem a qual o ato
de pesquisar é desprovido de sentido (Masschelein;
Simons, p. 2014).
Em sua obra Proust e os Signos, Deleuze (2006)
dá contornos a tal furor que nos chega, derivado de
nossos encontros com o que irrompe dos aconteci-
mentos no mundo vivido. A verdade [diz ele – uma
verdade não existente aprioristicamente –] depende
de um encontro com alguma coisa que nos força a
pensar e a buscar o que é verdadeiro. Pois é precisa-
mente o signo [– continua o filósofo –] que é o objeto
de um encontro e é ele que exerce em nós a violência
282
ayvu
(Deleuze, 2006, p. 15). Parece ser justamente esse tipo
de relação com o mundo aquela que é capaz de ins-
taurar aquilo que Orlandi, a partir do próprio Deleuze,
chama de pensamento necessário (Orlandi, 2016, p.
18), o qual surge quando o pensar ocorre graças a uma
conexão positiva com aquilo que ele ainda não pensa
(p. 18).
Existe, então, nos parece, uma diversidade de
elementos nas andanças de Helena, que termina por
instaurar um pensamento necessário que a atravessa
– e a muitas outras, como já discutimos em outro tra-
balho (Gonçalves; Bocchetti; Valentim, 2017). Tal mo-
vimento é visível, por exemplo, por meio de um con-
junto de perguntas e reflexões que surgem depois do
exercício, como uma espécie de brainstorm. Sigamos
as questões que Helena coloca a si mesma, imersa ao
mesmo tempo na feira de antiguidades que acontecia
naquela praça no dia do exercício, nos feirantes que
ocupam aqueles espaços e nos símbolos históricos
que ambientam o lugar:

O conhecimento não legítimo. As pessoas dão au-


las sobre o Rio antigo, a partir e por meio das suas
próprias experiências. Por que é que o “locus” da
educação é a Escola? Não poderia ser outro lugar
qualquer? Porque é que o professor/pesquisador é
o único ser socialmente legitimado à produção e
transmissão de conhecimento? As histórias das
pessoas na Praça XV (o lugar da caminhada) nos
ensinam algo? O que elas transmitem é importan-
te? Quem pode dizer que elas são ou não são im-
portantes? O lugar como ele é. O ponto de vista do
outro. (...) Que pedagogia é essa?

A partir da presença de Helena e dessa força


acontecimental que leva ao pensamento necessário,
de algum modo registrados nos seus trabalhos, acre-
283
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

ditamos poder afirmar que o ato por ela instaurado


– por um lado, repleto da atenção e da exposição ne-
cessárias à relação educativa (Masschelein, 2008), por
outro aberto à produção de uma mudança na condição
de existência de quem está em campo (Masschelein;
Simons, 2014) – se convertera em uma pesquisa edu-
cacional. A partir dele, então, podemos apontar três
eixos do que gostaríamos de chamar uma pesquisa
desde o caminhar. Esses elementos estão, original-
mente, circunscritos à noção de educação democráti-
ca como proposta por Gert Biesta (2013), e o exercício
aqui é o de, portanto, pensá-los rumo a uma relação
específica com a pesquisa que tem também um funda-
mento educacional; algo particularmente importante
se compreendermos que o ato de pesquisar e o ato
educativo se cruzam em um ponto específico: aquele
ligado à necessidade de transformação do sujeito que
com qualquer um deles se envolve (Masschelein; Si-
mons, 2014).
Biesta pensa o sentido da educação contempo-
rânea em contraponto à linguagem da aprendizagem
quantificável e diagnosticável que parece colonizar
os discursos, as práticas e as políticas no campo edu-
cativo. Propõe-se, então, a recuperar uma linguagem
educacional que escape das armadilhas da lógica eco-
nomicista e produtivista. Em sua perspectiva, essa ou-
tra linguagem, capaz de captar o que é especial nas
relações educacionais, estaria centrada em três con-
ceitos fundamentais, que se interconectam: a confian-
ça (sem fundamento) (Biesta, 2013, p. 44), a violência
(transcendental) (p. 46) e a responsabilidade (sem co-
nhecimento) (p. 50). Com ele e com Helena, talvez nos
encontremos com algumas linhas de fuga capazes de
apontar para o que seria essa pesquisa desde o cami-
nhar.
284
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

Para Biesta, a educação – e, acreditamos, a pes-


quisa educacional – só começa quando o sujeito en-
volvido nesse processo se dispõe a correr um risco, o
risco do imprevisível: de não descobrir o que gostaria
de descobrir, de aprender o que não imaginaria que
se aprenderia ou desejaria aprender, de aprender algo
que preferiria não aprender. Daí que as relações edu-
cacionais impliquem confiança no que é incalculável,
imprevisível; ela é necessária em situações nas quais
não se sabe e não se pode saber o que vai acontecer
(p. 45). Dessa confiança se diz sem fundamento, já que
ela não se produz a partir de qualquer outra base que
não seja si própria. Na pesquisa de Helena, ela surge
atrelada a alguns movimentos.
Em primeiro lugar, há uma atitude de disponibi-
lidade que parece caracterizar o já citado regime de
presença de Helena no exercício proposto. Diz ela: Es-
tava convencida: mesmo que as minhas fronteiras es-
tivessem desenhadas por todas as minhas vivências,
bastava que eu deixasse a praça XV falar comigo, que
deixasse suas fronteiras fundirem-se às minhas. Tra-
ta-se aqui, portanto, de uma espécie de entrega afe-
tiva à “atmosfera” que se materializa no campo; uma
disposição a ser permeada pelos afetos formados no
turbilhão de pequenas percepções que emergem da-
quele espaço4.
Disponível à atmosfera intensiva dos aconteci-
mentos que a rodeiam, Helena vivencia uma série de
reverberações afetivas em seus encontros. Elas pas-
sam pela entrada em outros modos de comunicação
entre corpos, como aquela pela qual ela afirma que
sem saber, o Senhor-Tem-Tudo5 respondeu à minha
4
Acerca da discussão da noção de atmosfera e das relações que ela
estabelece com nossos regimes de corporeidade, vide Gil (2001).
5
Em diversas passagens, Helena trata as pessoas com quem se
285
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

pergunta sem que eu precisasse verbalizá-la; pela


sensação de ser atraída – como um ímã – para uma
barraca; ou ainda pela possibilidade de, ao deixar ser
levada pela própria experiência, [...] pela Praça XV,
permitir a si mesma ser conduzida pela mão do aca-
so, daquilo que não podemos controlar, daquilo que
simplesmente brota. Outras formas de comunicação,
atratividade e permissividade podem, então, surgir
dessa confiança que emerge em relação à experiência.
E a frase que ressoava em minha mente era: Dei-
xe que a Praça XV fale com você. Sinta a argila. Pela
metáfora, Helena relembra o texto discutido em sala,
que trata da experiência dos cegos em uma oficina
de cerâmica (Kastrup, 2008) na qual eles noticiam as
forças e a tensão interna (p. 190) da argila – caracte-
rísticas que lhes obrigam a com ela de algum modo
negociar na feitura dos objetos. Mas a afirmação da
estudante alude, ainda, à já citada violência deleuzia-
na que, em Biesta, surge atrelada à possibilidade edu-
cativa. Seus registros noticiam o carácter transforma-
dor e até perturbador da aprendizagem, na medida em
que tal processo implica uma resposta ao que é outro,
ao diferente, e assim desafia, perturba, desloca.
Em Biesta (2013), assumir o risco da educação
implica em propiciar oportunidades para que os in-
divíduos venham ao mundo (p. 48). Por isso, as rela-
ções educacionais não são relações confortáveis; elas
implicam uma ‘violação da soberania do estudante’, e
a educação se torna, então, uma forma de violência.
Ao interferir na soberania do sujeito, pela dificuldade
das questões que coloca e dos encontros que provoca,
ela torna possível a aparição de seres únicos e sin-
gulares – e daí sua transcendentalidade. A aprendi-
encontra a partir desse tipo de notação, gerando uma linguagem
voltada à captação dos afetos que será discutida posteriormente.
286
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

zagem como resposta implica mostrar quem és e em


que posição estás; implica, simultaneamente, ativida-
de – dizer, fazer – e passividade – escutar, esperar,
ficar atento, criar espaço.
Na pesquisa de Helena, a violência acontecimen-
tal está visível, por exemplo, na já citada obrigação de
fazer um vídeo e de produzir um registro metafórico.
Ao vivenciar situações como essa, a estudante termi-
na por enunciar alguns dos aspectos dessa violência
em sua pesquisa: sua continuidade, na medida em que
a vivência de Helena é a cada segundo ressignifica-
da por suas reverberações que transitam entre o pas-
sado, o presente e o futuro de suas observadoras; sua
temporalidade variável, tendo em vista que algumas
irrupções de suas experiências – como a relatividade
do valor dos objetos expostos na feira de antiguida-
de – têm uma duração ampliada, e permanecem como
eixos dos relatos realizadas pela estudante; e, enfim,
sua força desequilibradora, notável desde o início de
seus relatos: Devo confessar, diz ela, que nesse mo-
mento [do começo da caminhada] ainda estava pouco
à vontade: não sabia se deveria falar com as pessoas
ao meu redor, não sabia se deveria conversar com mi-
nha companheira, gravar ou fotografar.
O valor dessa violência de que nos falam Deleuze
e Biesta ao processo de pesquisa reside, fundamen-
talmente, na articulação que ela promove com uma
resposta necessária. Tal relação situa a emergência
dos problemas em uma espécie de lugar ainda não
pensável pelo sujeito. O pesquisador ou estudante é,
então, confrontado com uma exterioridade que afasta
a noção de conhecimento como algo a adquirir, apro-
ximando-a de uma relação consigo mesmo que pres-
supõe o cuidado ético em enfrentar as questões que
emergem na relação entre ele e o mundo, em sua con-
287
adrianne ogêda guedes & tiago ribeiro (orgs.)

tingência. Não mais uma resposta à supostas neces-


sidades universais – travestidas em conceitos reifica-
dos ou abordagens reconhecidas no campo –, mas um
movimento de colocação e recolocação de problemas
que surpreendem e tomam o pesquisador a partir de
condições subjetivas singulares.
O que, então, constitui a pertinência das ques-
tões colocadas por Helena é a relação entre o modo
impactante pelo qual elas emergem e a novidade que
suscitam em retorno, capaz de causar certo espanto
à estudante, fundamental ao pensamento que se ins-
taura a partir de sua escrita. Tais intempestividades,
por sinal, incitam à produção de dispositivos de lin-
guagem imprevisíveis no início do processo, que pro-
curam dar conta, justamente, desse conjunto de emer-
gências acontecimentais. Desde aí, no caso de Helena,
nasce seu texto puramente metafórico – necessidade
de produção que escapa àquilo que a estudante enten-
de como as formalidades acadêmicas – e, ainda, um
conjunto de personagens nomeadas a partir dos afe-
tos que provocam na estudante-pesquisadora e que
conduzem boa parte de suas narrativas: o Senhor das
Moedas, o Senhor dos Óculos Antigos, o Senhor Con-
versador, o Senhor Tem-Tudo. Figuras que vêm à tona
por não respeitarem quaisquer a priori de caracteri-
zação que os agruparia – não há “feirantes” no texto
de Helena –, e que só podem ser, portanto, assumidas
em sua existência por serem recebidos pelas já expli-
citadas aberturas afetivas e implicação visíveis nas
narrativas da estudante.
De tais atitudes de pesquisa – instauradas nes-
se jogo entre violência e confiança no qual imerge o
pesquisador – deriva a possibilidade da relação entre
aquilo que Helena chama de tessitura e experiência:
única possibilidade de encontrar uma determinada
288
pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

maneira de interagir com aquele campo, pautada nes-


se caso na conversa, seguida da fotografia e da filma-
gem. A atenção ao campo se materializa na resposta
metodológica a posteriori, surgida como única capaz
de perscrutar elementos da complexidade que ali se
instaura – algo vivido também em experiências como
a de Opipari e Timbert (2013) junto às crianças no mor-
ro da Mangueira. A metodologia surge, aqui, em favor
do respeito às intensidades que emergem do campo.
Dessa espécie de furor6 do ambiente surge, en-
tão, a responsividade que conduz a ação do pesqui-
sador, mas emerge daí, igualmente, um sentido de
responsabilidade – o terceiro elemento do qual trata
Gert Biesta em suas discussões sobre o que chama
educação democrática. Tal aspecto deriva dos dois
precedentes: o educador, aberto à imprevisibilidade
e envolvido na irrupção dos acontecimentos ineren-
tes ao ato educativo, é responsável pela subjetividade
do estudante, pelo seu vir ao mundo como ser único
e singular. Responsabilidade que implica a aceitação
do desconhecido: o intempestivo está no centro da
relação pedagógica, e é o educador que deve assumir
essa responsabilidade ilimitada por algo, ou alguém,
que não conhece e não pode conhecer. Assim na edu-
cação como no ato de quem pesquisa.
Helena se vê, de algum modo, responsável pelos
encontros que lhe implicam afetivamente com aque-
les desconhecidos que vivenciam a Praça naquela ma-
nhã. Responsabilidade que, então, aponta para a ten-
tativa de assumir algumas questões desde a perspec-
tiva das relações ali constituídas, em uma espécie de
caminho de pensamento que, emergido no aconteci-
mento, atravessa o próprio pesquisador e desemboca
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Outras reflexões sobre tal noção de furor e sua produtividade sub-
jetiva podem ser encontradas em Bocchetti (2017).
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nas questões éticas concernentes ao cuidado com os


próprios problemas – o corpo que caminha, aqui, fun-
ciona como um catalisador que absorve as intensida-
des do mundo vivido, convertendo-as em questões sin-
gulares que não cessam de respeitar os elementos da
relação. Algo visível, exemplarmente, nas questões que
surgem à estudante ante uma banca que vende câme-
ras fotográficas e que movem o pensamento, o qual ter-
mina por se instaurar na escrita encarnada de Helena:
Qual é a lente pela qual as pessoas leem o mun-
do? Qual é a lente pela qual as pessoas enxergam
a praça XV? Será que ela está velha? Será que ela
está nova? Será que ela está embaçada? Será que
ela está desfocada? Quem diz que a lente de ou-
trem é desfocada ou não? Ruminei-as durante al-
gum tempo, esperando que a praça XV me direcio-
nasse novamente. E ela o fez.

As perguntas de Helena são as perguntas do


mundo que habita. Mas não são tão somente suas per-
guntas; são questões que lhe invadem, vindas de uma
exterioridade que, com ela composta, formam uma
espécie de comunidade afetiva sem a qual a transfor-
mação advinda da pesquisa em educação parece im-
possível. Daí a implicação, a atenção e o cuidado de si
inerentes a esse processo – inerentes à responsabili-
dade ante a imprevisibilidade que se anuncia. Desde
aí, finalmente, uma postura particularmente ética que
nos interessa pensar ao enunciarmos, nestas linhas,
um pesquisar desde as caminhadas.

Éticas do caminhar: alguns apontamentos finais


sobre a pesquisa-educação que emerge da deriva
Quando convidamos os estudantes para cami-
nhar, sabíamos desde o início que os desafios a en-

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pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

frentar seriam muitos. Sob um aspecto estrutural, há


negociações e análises intensas relativas à possibili-
dade de alocação dos professores envolvidos em um
mesmo dia e horário de aulas – condição sine qua
non para a realização dos encontros integradores –,
ao currículo oficial das disciplinas e à infraestrutura
física de nossa faculdade. No que concerne aos limi-
tes pedagógicos, frequentemente nos confrontamos
com uma lógica densamente escolarizante que, vinda
de origens diversas no espaço acadêmico, demanda
uma formação baseada em um conteúdo apriorístico
a qual, de maneira geral, não parece satisfazer muitos
dos pressupostos educacionais que compartilhamos
e tentamos enunciar nestas poucas páginas.
Se seguimos no esforço de manter exercícios
como esse, é porque acreditamos na potência formati-
va advinda das possibilidades de alçar aos estudantes
e a nós mesmos a um plano de experiência múltiplo.
A um certo modelo um tanto hermético das questões
associadas ao planejamento na educação, contrapo-
mos a possibilidade da interrupção provocada pelas
novidades encarnadas experiencialmente pelos par-
ticipantes dos cursos. Tal gesto em favor da desconti-
nuidade é um eco precioso de certo caráter ético das
relações educacionais, o qual gostaríamos de afirmar
no encerramento dessas análises.
Em seus últimos cursos, Michel Foucault se
mostra especialmente atento às maneiras pelas quais
algumas escolas helênicas – sobretudo aquela dos es-
toicos – se aproximam da relação entre subjetividade
e verdade. Nota, nas análises que realiza em uma série
de textos do período, uma problematização do cuida-
do consigo mesmo que em muitos momentos escapa
à objetivação de um código capaz de expressar o ver-
dadeiro, em favor da subjetivação do discurso (que se
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faz) verdadeiro pelas próprias experiências nas quais


se envolve o sujeito – de um fazer de si mesmo o su-
jeito desses discursos verdadeiros (Foucault, 2006, p.
400). Há, em muitos dos discursos que permearam o
estoicismo – dentre os quais as vozes de Sêneca e
Epicteto são apenas algumas das analisadas por Fou-
cault –, uma incitação constante à transformação de
si mesmo que se dá pela aproximação ética entre as
mensagens de verdade que o sujeito escolhe para si e
aquilo que acolhe como conduta pessoal. É na coin-
cidência entre essa escolha discursiva e esse acolhi-
mento afetivo, entre aquilo que diz ser a verdade e o
modo como esta opera sobre si mesmo que se funda a
possibilidade de uma relação ética com o mundo.
Reconhecemos, aqui, o valor dessa operação éti-
ca sobre nossa própria experiência docente e procura-
mos experimentá-la e dar ao outro oportunidades de
vivenciá-la por meio da experiência de uma pesquisa
desde o caminhar. Há nesse intuito, e no âmbito dos
exercícios propostos, uma via dupla de produção de
conhecimento a apontar: de um lado, a proposta ope-
ra diretamente sobre nós, professores pesquisadores,
provocando uma espécie de dobramento das experi-
ências vividas pelos estudantes sobre nossa própria
prática e modificando as mensagens que podemos, a
partir daí, propor – algo que diz respeito à já citada
responsabilidade que se produz em meio à intempes-
tividade dos acontecimentos que derivam do proces-
so proposto.
Por outro lado, há um segundo dobramento
oriundo do exercício de caminhar, desta vez das ir-
rupções acontecimentais sobre o próprio estudante
e sua produção. O embate com a força subjetivadora
do campo, alimentada pela implicação e pela confian-
ça de quem caminha, levanta problemas singulares,
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pesquisa, alteridade e experiência – metodologias minúsculas

contingentes à experiência e advindas de seu choque


com a presença daquele que a vivencia. O resultado
dessa dinâmica afetiva é a produção de questões cir-
cunstanciais e cheias de sentido ao estudante que se
envolve na proposta – as quais podem, então, servir
de elemento de aproximação entre a pesquisa que re-
aliza e as discussões durante o curso. Este é o cerne
da atitude ética que queremos então apresentar aos
estudantes ao longo do processo: a possibilidade de
se envolver com as próprias questões, surgidas em
uma experiência singular de problematização e co-
nhecimento. Mais do que isso, porém: de uma deriva
pelos espaços públicos pode, então, surgir outra, li-
gada aos conhecimentos produzidos na caminhada e
capaz de cruzar tais emergências singulares na pro-
dução de um Comum marcado pelas diferenças dos
sujeitos nele imersos. Na produção de uma ética pelo
cuidado de si na pesquisa, elementos como esses dão
testemunho de uma errância educativa possível, que
a todo momento nos lembra dos limites tênues entre
uma pesquisa educativa que nos transforma e uma
transformação educacional que se dá pela via de um
pesquisar, de fato, encarnado.

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