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60 MARCOS A.

DA SILVA

fruição por profes?ores e alunos, faz-se igualmente ne-


cessário refletir sotlre itens daquela história que, tradicio-
Memória ou experiências
nalmente, é ensinada nas escolas como dimensões de de saberes
patrimônio.
A discussão de fazeres humanos não significa descar-
tar os tópicos habitualmente ensinados como história. Ela
é contraponto a muitas das abordagens desses tópicos e
,I,
desempenha tal papel na medida em que também se tem
acesso aos termos em que foram construídos seus elen-
cos temáticos e interpretativos. Atuar como crítica desses "Por que negar a evidente necessidade da
elencos não se confunde com ignorá-Ios nem os reprodu- memória?"
zir de forma ampliada e intocada, como se apenas a mas- (AIain Resnais, Hiroshima meu amor)

sificação dos saberes existentes fosse suficiente para que


eles atendessem a necessidades de mais pessoas. "A memória é u.m~ forma de prot~sto. Se
você não lembra de algo importante está au-
Essa massificação só pode interessar quando articula- tomaticamente aceitando, quem sabe, uma
"
(
da à garantia do direito à autonomia do pensamento, su- atrocidade."
I
,
perando submissões a autoridades e ao coletivo, como (EIi Wiesel, "Entrevista" ,lstoÉ, nO 1206, lU 1.1992)
,
discutido por Theodor Adorno no ensaio "Educação após
Auschwitz" . "Minha memória, senhor, é como despe-
'1
," Assim, elencos temáticos e interpretativos já presen- jadouro de lixos."
I'
tes no ensino de história (períodos, personagens etc.) (Jorge Luis Borges, "Funes, o memorioso")

também merecem ser incorporados às modalidades de


patrimônio histórico, que, como quaisquer outras, reque-
rem abordagens a partir de problemáticas de conheci- No romance 1984, de George Orwell, concluído em
mento para não se transformarem em (ou continuarem a
1948, o personagem central, Winston Smith, trabalha
ser) informações isoladas e desvinculadas da invenção num Ministério da Verdade (MINIVER), que trata de no-
cotidianado mundopelos sereshumanos. .
tícias, diversões, instrução e belas-artes.
A ocupação de Smith nesse emprego é reescrever
textos de acordo com as relações de poder vigentes a
cada momento, eliminando tudo aquilo que apresente al-
guma discordância ou incoerência quanto à imagem ofi-
cial desejada de personagens, países e quaisquer outros
temas. l

.
,...

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o impedimento de tal sociedade_enfr~l1Jarcgntradi.. Po.~gtÜlig.ade§..


Memória e mentira foram aproximadas
ções presenTe~l11ã memÓrladõ trajeto por ela percorrid<i> pela ótica da dominação, através de um Ministério dito
evidencia conflitos e tensões-sobre os quais o govern9 "da Verdade", indicando a capacidade impositiva daque-
age repressivamente, visando a seu silencíamento e deI- la forma de poder.
sal?ari'(.ao,-rstotamoém signifiCãa necessidade de cons~
troir permanentemente outras memórias, que assegurem
a preponderância de um poder onipresente, centralizado Nada espontâneo nem inercial
,~
e sem alternativas.
,
.,' A crescente atenção que historiadores, antropólogos,
É uma situação coerente com o tratamento dispensa-
do, naquele mundo, às identidades das pessoas,--.,.--
subme- filósofos e outros especialistáS têm dedicado à memória
tida§ a significados indiscutíveis, como expresso na rêssãltã.a importância desse tema para a compreensão de
"novilíngua" dos lemas partfdários ali vigentes: "Guerra identidades sociais e relações de poder.
é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força". Se essa relevância é mais palpável no que se refere
Orwell foi um socialista inglês, combatente nas Briga- aos poderes visíveis, instituídos, como no Estado total de
das Internacionais da Revolução Espanhola. Esse seu li- Orwell, ela também se revela estratégica para grupos e
;1:,
, vro tomou como importante referencial a experiência do agentes sociais aparentemente destituídos de sua força e
",. stalinismo, incluindo o culto à personalidade do gover- que, através de memórias próprias, revelam instrumentos
t
nante os mecanismos totalitários que prÇ>curavamanular
as diferenças
_.- " sdb o signo da administração de...,. tudo.
) de seu poder, evidenciando a existência de várias memó-
rias, como foi salientado por Ulpiano T. B. de Meneses
,.'
I

II Nessas amargas alusões à revolução perdida, o aniqui- no artigo "A história, cativa da memória?".
lamento de uma memória minimamente autônoma e sua A esse respeito, Benjamin, no texto "Sobre o conceitd
substituição pela contrafação que interessasse ao Grande de história", argumentou que os grupos dominantes, en-
Irmão - o govemante que tinha voz e efígie reproduzidas quanto vencedores das lutas sociais em diferentes mo-
em todos os lugares - eram vieses básicos para o poder to- mentos, agregam aos seus troféus de guerra um monopó- ,
tal declarar, à sua maneira, um fim da história muitas déca- lio da memória como continuidade, metamorfoseada eIT\~
das antes de esse assunto fortalecer-se tanto com a dilui- vontade geral - da nação ou do povo,'por exemplo. É po~
ção do bloco soviético (fins dos anos 80). esse motivo que a memória dominante pontua uma crono-\
\ Orwell atribuiu à memória, portanto, amplo espaço logia (seqüência temporal) e uma periodização (recortesf
na ~finição de identidades coletivas, intensamente rela-
Ir <
naquela seqüência) com
do seus beneficiários aspectotambém,
senhores, lógico e do
objetivo,
tempotoman1
social.
~iol)ado à dominação, donde sua importância pol~ico/A I
destruição de certas memórias e a construção de outras Tal processo nada tem de automático ou conspirató-
atesta que há diferenças em ~eu seio, remissíveis aos di- rio. Sua elaboração requer articulações políticas em tomo
v~r_s_osgrueos humario~, com seus projetos, fantasias e de um projeto de sociedade expressas publicamente atra-
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- ~
das, capazes de submeter outras formas de explicar o
I vés de diferentessuportes,em múltiploslugares.Isso sig-I mundo aos seus termos.
nifica que modaÚdades de memória social se expressam,
a partir de personagens, acontecimentos, monumentos' Nesse sentido, a meffiQriatriunfao.te ~ignififa ofere-
objetos, narrativas, iconografia e tantas outras formas. l cer interpreta oe.§.de experiência~ elaboradas quando da
las surgem quer no calor da hora de acontecimentoS ec osao do fato - certa modalidade de histórliimediafa
quer em sua preservaçãOâe 'identidade, configurando so -, apresentada para contemporâneos e pósteros como pu-

"
cialmente fatos que, com freqüência, historiadores/pro
~fessores/alunosreiteram. -
j ros fatos. Os historiadores/professores/alunos que preten-
dem separar interpretações de fatos não se dão conta de
:J Um exemplo clássico, no Brasil, dessa construção de que sempre trabalham com interpretações;~não há fatos
fato-memória é comentado por Adalberto Marson, no en- originários;.;interpretar aqueles que são assim supostos é
saio "Reflexões sobre o procedimento histórico", incluí- fazer interpretação de interpretações; pensar que nada se
do na coletânea Repensando a história: a abolição da es- interpreta quando se pretende recuperar puros fatos é re-
cravidão, aos 13 de maio de 1888. Marson discute como, por sua interpretação "inaugural", que lhe garantiu a so-
.., naquela data mesmo, definiu-se uma dimensão grandiosa brevivência como memória.
da Abolição através de diferentes manifestações - bata- A existência de vozes alternativas à da memória insti-
I~" lhas de flores, bailes públicos, noticiário na imprensa etc. tuída articula-se com dimensões de lUtassociais\la cons-
I
I' Tal elaboração do tema estabeleceu um fato muito preci- -trução de identidades e nas relações de poder, demons-
so: a escravidão acabou. trando que tal processo de consolidação não fica isolado
Aquele autor comenta outras vozes (José Lins do em certas camadas da sociedade, embora atenda a inte-
," Rego, no romance Menino de engenho, e órgãos da im- resses prioritários de algumas delas, precisando conven-
I' prensa operária brasileira; pode-se acrescentar-Ihes ma- cer diferentes grupos sobre sua adequação.
rinheiros na Revolta da Chibata, de 1910, e denúncias Um exemplo dessa construção e de seu desdobra-
sobre o mundo rural brasileiro mais recente) que apon- mento em persuasão é oferecido pela experiência de
taram a continuidade de faces de experiência escrava "fim da ditadura" e "redemocratização" no Brasil dos
após aquela data, sem conseguirem, todavia, consolidar anos 80: houve movimentos contra a ditadura, desde os
sua memória, funcionando apenas como versões alter- anos 70, que tematizaram múltiplos direitos (de trabalha-
nativas, em contraponto àquela outra. dores, mulheres, indígenas, negros, homossexuais, sem-
O que se observa nesse comentário não é a pretensão terra etc.) como dimensões básicas da democracia a ela-
de' substituir um fato-memória ("Abolição") por outro borar; a partir da "Campanha pelas Diretas", tal
("continuidade de dimensões escravistas") e, sim, o pro- discussão foi canalizada quase exclusivamente para o
cesso de elaboração social do fato-memória, que se firma universo da política institucional, com os detentores <k
a partir de múltiplos investimentos simbólicos associados diferentes mandatos (governadores, deputados. Sl'llIIdo
à situação dominante das relações sociais neles envolvi- res) à frente; a saída encontrada para aqudt\ "1111,1,.1"
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eleição indireta ,deTancredo Neves, união entre peeme- mas: tanto os livros didáticos básicos mais banais como
debistas e dissidências pedessistas ("Aliança Democráti- sofisticados núcleos acadêmicos brasileiros de pesquisa
ca") - complementou o descarte daquelas tematizações dedicaram-se, no final dos anos 80 e começo dos anos 90,
anteriores, configurando uma "Nova República" como a IT!odalidadesde comemoração sobre Abolição, Repúbli~
esquecimento de lutas ou, no máximo, redução das últi- ca e Descobrimento da América, entre outros eventos. -
mas a itens retórico-burocráticos. { A memória dOl!lipante,p~~~firmar, precisa sufo-
Ainda no campo do último exemplo, é conveniente car ou submeter memórias autônomas, provando que sua
I,I'
,'0'
,.. registrar que figuras co-responsáveis pela ditadura (Del- exiStenCiase dá n~m'espãÇo-cfêlutas,confi~r~!!do pode-
:J fim Netlo, Paulo Maluf, José Sarney e outros) beneficia- res menos visíveis e muito eficazes na construção de
ram-se daquela con.struçãode memória através de rápida identidades sociaiS':" --
e singular reinserção na "nova" cena política, quer como , Tal espaço de Íutas demonstra a existência de outras
pretensos experts em certos quesitos (economia, legisla- potencialidades no social, pouco palpáveis mas muito
ção), quer na condição de fictícios "experientes e compe- significativas para se entenderem tensões e alternativas,
tentes administradores", sendo mesmo eleitos e aclama- evidenciando que os grupos dominados, de forma even-
dos no contexto supostamente pós-ditatoriaL Isso foi tualmente descontínua mas também intensa, preservam
explorado pelo desenhista Laerte nos quadrinhos "A poderes. Nesses termos, ele esboça uma situação de di-
queda dos países do Leste": Maluf, Amin, Marchezan, reito a memórias para todos, que se articula politicamente
Magalhães e ,Delfim Netto aparecem carregados em com os debates sobre fortalecimento de cidadania e evi-
l'i' triunfo no penultimo quadro daquela narrativa. denciaque o respeitoa diferentesmortos- e suasmemó-
Esse exemplo de memória sobre a mais recente dita- rias - resulta em respeito aos vivos.
I'
dura brasileira explícita evidencia ser necessário, para os Em 1992, na cidade de São Paulo, houve iniciativas
dominântes, convencer outros grupos sociais sobre a visando a recuperação documentada de restos mortais de
logicidade das relações de poder vigentes, forma de ga- desaparecidos políticos assassinados na ditadura brasilei-
rantir a sobrevivência da própria dominação. rade 1964-1984.
/ . Tal memória se beneficia da definição de personagens' Aparentemente, tal esforço poderia remeter apenas a
/ e lugares, reforçando-se através de comemorações e um puro passado (tais fatos ocorreram naquele terrível
rememorações, sob a forma de diferentes rituais, dos es- período - e só) se ele não convivessecom gravesconti-
petáculos cívicos (paradas, solenidades) ao cotidiano me- nuidades da experiência ditatorial - governo Collor, mi-
nos perceptível- nomes de ruas e outros logradouros pú- . séria em nome de modernidade, nova respeitabilidade
blicos, personagens em cédulas ou selos etc. Ela Sê pública adquirida por diferentes figuras de peso daquele
mescla com diferentes níveis de conhecimento histórico regime, irresponsabilidadesocial do governo FHC - e
através das associações que ensino e projetos de financia- fomento de práticas neofascistas, como agressões a nor-
mento para pesquisas fazem entre datas, personagens e te- destinos, negros, judeus, presos e menores.
~

~
~ 1
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A recuperação daqueles restos mortais assumiu, en- monopólio, enfrenta tensões e lutas que resultam tanto
. ! tão, o papel de sàlientar a importânciade não esquecer em sua produção permanente como na elaboração de al-
experiências, lutando contra a impunidade de criminosos ternativas aos seus termos.
~svv j através do impedimento de novos crimes similares àque-
~ t "
lesoAo mesmo tempo, ela não pretendeu condenar gene-
~,\..
D''''
~ J ricamente os militares (inclusive porque houve responsa- Mais que matéria-prima
bilidades civis nos referidos crimes, bastando lembrar
I'
( influentes personalidades da ditadura que, no máximo, A atenção dada por historiadores a essa questão en-
I prestaram serviço militar obrigatório) e, sim, práticas es- globa, freqüentemente, certa ênfase nas diferenças entre
pecíficas de determinados militares, numa historicidade memória e história.
precisa. Pierre Nora, por exemplo, realçou o caráter etnográfi-
Do ponto de vista das vítimas daquelas violências e co e totalizante da memória, contrapondo-o à perspectiva
de seus parentes e amigos, tal recuperação também signi- subjetiva, via historiador, e particularizante da história.
ficou a reconquista de identidades emocionais, pessoais e José Honório Rodrigues, menos sutilmente, atribuiu
coletivas, como se verificava nas audiências públicas que à memória os papéis de lembrar e comemorar, cabendo à
marcaram as referidas iniciativas. A dor das pessoas liga- história as dimensões de análise e crítica, puro conheci-
das aos mortos identificados mesclava-se à sua capacida- mento diferenciado de funções ideológicas.
de de comprovar responsabilidades, entender trajetos da Insistir sobre a distinção (ou, mesmo, oposição) en-
sociedade onde'aquilo foi possível e interferir nos novos tre memória e história prejudica significativa potencia-
.' percursos dessa mesma sociedade. lidade nesse debate: a dimensão de produção, tão paten-
Pensar em memórias próprias aos grupos dominados te na constituição da memória, que pode contribuir para
não se restringe, certamente, a situações dessa natureza. a reflexão sobre relações entre o conhecimento histórico
Suas manifestações em movimentos sociais - contra ca- e tal viés.
restia, por creches, moradia e saúde, dentre outros - e No caso da memória, sua face de elaboração signifi-
num cotidiano de tradições (regionais, étnicas, familiares ca, também, uma exposição de virtualidades em disputa,
etc.) ampliam o campo de discussão sobre memória, evi- que constituem ou silenciam determinados temas com os
denciando ângulos desta como um fazer múltiplo. quais o conhecimento histórico se relaciona muito inti-
A memória é marcada, portanto, por dimensões de mamente.
invenção, seleção e combinação temáticas no social, que É nessa interpretação de interpretações realizada pela
se diferenciam do passivo acúmulo, deixando patentes história, como foi anteriormente definido, que se torna
caracteres de disputa em sua definição. O estabelecimen- mais empobrecedor reduzir seus referentes à condição de
to de sua face dominante nos quadros de determinada matéria-prima ou se limitar à situação de repetir 111"1111)
historicidade, embora associado à referida vontade de rias "inauguradas" por diferentes "pais fllfdadorc..."
<i dI'

L
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obedece a dimensões de estruturação e transformação


tradições dominartes - 1822, 1888, 1889, 1922, 1930,
1937, 1946, 1964 ou 1985, para evocar alguns dos mar- que diminuem aquele confronto tão nítido entre espaço
cos mais usuais da memória política brasileira. do etnográfico e campo do reconstruído, como se obser-
Ao mesmo tempo, é necessário levar em conta que a va em Lévi-Strauss. O próprio mito da objetividade, ali-
história, como saber, não lida apenas com as memórias mentado por parcelas do conhecimento histórico erudito,
dos outros. Nesse sentido, são muito pertinentes as obser- reforça a memória interna desse campo de saber.
vações de Nora sobre as relações que o campo de conhe- Discutir memória possibilita para os historiadores,
I I'
".! cimento histórico erudito estabelece com sua própria tra- portanto, refletir permanentemente sobre a historicidade
0,0
dição, configurando uma espécie de memória interna, de sua própria produção, criticando o chão seguro e en-
marcada pela pretensão à continuidade e crescente com- ganoso de teorias que têm pretensões de operar como ga-
pletude de sua produção, que, às vezes, é designada rantia de objetividade, quer como primeiro princípio (ou
como "saber acumulado". seja, corpo de conceitos de que se parte e ao qual se sub-
Daí, ser muito difícil negar que o trabalho erudito do mete uma suposta matéria-prima do saber), quer como
"I historiador, relacionando-se com outras memórias, parti- fim último - vale dizer, corpo de conceitos que se atinge
o,
cipe também do processo permanente de produzi-Ias, di- no final das operações de conhecimento, resultante de re-
,- retamente (instituições cultas, como academias, socieda- flexões a que se aplicou aquele mesmo referencial em es-
I. tado bruto.
1 des científicas e museus, revistas especializadas etc.) ou
,, não (ensino básico, publicações de divulgação, progra- Essa crítica aberta pelo diálogo entre história e me-
mas de rádio e télevisão e instâncias similares). mória não significa perda de qualquer teoria. Ela eviden-
Refletir sobre articulações entre memória e história cia a insuficiênciado teóricocomo garantiapreliminar-
não significa reduzir os dois termos à c~ndição de sinôni- isto é, anterior à reflexão sobre experiências específicas -
mos. Salienta, todavia, a dependência recíproca de ambas do pensamento, questão discutida por Edward Thomp-
e sua densidade como prática social. Ao contrário da son no livro A miséria da teoria. Resulta dessa crítica
oposição feita por Nora entre memória (espaço do vivido uma concepção de conhecimento histórico que não se
e do absoluto) e história (lugar do reconstruído e do rela- contenta com hierarquizar teoria e documentos, saber
tivo), é possível enfatizar no reconstruído e relativo al- acumulado e possibilidades de pesquisa/ensino/aprendi-
guns horizontes do vivido e certa pretensão do absoluto, zagem, interpretações e experiências.
que passam pelas regras eruditas do fazer, com os meca- A teoria como primeiro princípio ou fim último, aliás,
nismos de legitimação institucional - diplomas, títulos, pode ser encarada como pretensão à memória única do
publicações, prêmios -, e tendem a apagar o lugar social campo de saber, que quer submeter todo pensamento ao
da produção, que autores como Jean Chesneaux e Michel viés da inevitabilidade ou do puro objeto.
de Certeau, em diferentes perspectivas, tanto salientaram. Além de possibilitar uma relação com difel'l'IIIl', "I
O universo do vivido e do absoluto, por sua vez, também portes das experiências sociais que não os J'l'lhII a ('1111111
t
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ção de matérias-primas, uma vez que os encara no pro- mocratização, 1964, Nova República) exemplifica a for-
cesso de definiçlões de identidades e produções de me- ça de produção de hegemonia política daqueles parâme-
mórias, aquela articulação contribui para o debate sobre a tros, reforçados por boa parte da produção erudita de co-
própria noção de fonte histórica de forma ilimitada: ao nhecimento histórico.
pensar na constituição de lugares, símbolos e formas de Eles não abrigam, todavia, outras inúmeras tentativas
memória, o historiador/professor/aluno abandonará o ilu- e experiências de diferentes grupos humanos ao longo de
sório conforto da documentação escrita, muito mais res- sua vigência como memória e história. Pensar numa his-
.I trita ao universo social dominante, e enfrentará uma infi- tória que não se reduza a redizer tais marcos passa pela
"'
nidade de caminhos percorridos pelo social, dando conta admissão de memórias organizadas a partir de outros cri-
da culturamaterial(universode artefatos- objetosutili- térios e referenciais e, também, pelas atividades da pes-
tários, instrumentos de trabalho, acessórios de rituais, quisa histórica visando entrar em contato com elas.
elementos decorativos etc. -, incluindo o ambiente e o
corpo) e do conjunto de práticas englobadas pela rubrica #,'
"cotidiano" - atividades corriqueiras, repetitivas e previ- o oral e o audiovisual
síveis, que também abrigam sentimentos como esperan-
ças, receios, ódios e conformismo. Embora a memória se manifeste através de diferentes
Endossando a abertura documental que o apelo à suportes e seja discutida por historiadores brasileiros,
cultura material representa, é necessário ir além desse desde os anos 70, com base em documentação escrita -
próprio conceito para se pensar na materialidade de toda caso do artigo "A revolução do vencedor", de Carlos A.
, Vesentini e Edgar De Decca -, o apelo aos registros orais
" cultura (textos, crenças, sentimentos, projetos), articu-
II
lando-a cQm as práticas sociais que a tornam mais per- (audiocassete) e audiovisuais (videocassete) tem marca-
ceptível- rituais,aprendizageme difusões,por exemploI do mais recentemente significativa parcela da discussão
Nesse sentido, o próprio conhecimento histórico, em historiográfica entre nós sobre a questão.
seus vários espaços de ensino/pesquisa, também se Muitos profissionais da área utilizam gravador e
constitui em dimensão de cultura material. câmera como recursos para coletar narrativas de agentes
Evidentemente, a memória ainda abrange múltiplas sociais sobre suas experiências em diferentes universos -
práticas voltadas para a preservação de parâmetros so- movimentos sociais, bairro e localidade, práticas profis-
ciais dominantes, o que deixa patente sua organização sionais, trajetórias de migração etc. A publicação de textos
como contraponto a diferentes projetos e potencialidades por autores brasileiros, em variadas perspectivas, como
na vida social. Nesse sentido, a referência feita a marcos História oral- a experiência do CPDOC, de Verena Al-
instauradores da memória política dominante no Brasil berti, "Documentos orais e visuais: organização e usos co-
(Independência, Abolição, República, Tenentes/PCB/ letivos", de Yara Aun Khoury, e 'canto de morte ka;o-
Modernismo, Revolução de 1930, Estado Novo, Rede- wá, de José Carlos Sebe Bom Meihy, além da'fradução de
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"História local e h.stória oral", de Raphael Samuel (incluí- interessados através da criação de um banco de dados
do no n9 19 da Revista brasileira de história), A voz do informatizado, com terminais nas diferentes unidades da-
passado, de Paul Thompson, e a síntese "A história oral", quela rede de ensino e também permitindo consultas a
de Gwin Prins, dentre outros materiais, contribui para a catálogos e outros referenciais de bibliotecas e demais
expansão e o aprofundamento daquele interesse pelo re- entidades de pesquisa. Tal proposta não foi implantada,
gistro de narrativas,já assumido pelo ensino básico. mas se mantém como indicação para a integração daque-
I,"
Trata-se de caminho frutífero tanto ao garantir a ex- les recursos de trabalho no ensino básico de diferentes
pressão de vozes de agentes sociais menos presentes disciplinas.
,.I noutros documentos (textos, acervos de museus, patri- Certamente, o apelo ao oral e audiovisual deve ser
]' mônio edificado etc.) quanto ao evidenciar uma presen- conduzido com o rigor e o cuidado que todo estudo his-
ça direta do pesquisador no ato de produzir a narrativa, tórico requer, buscando, inclusive, a precisão máxima ao
com suas perguntas e intervenções participando da fala organizar informações. Articular as narrativas coletadas
registrada. com outros materiais disponíveis sobre as experiências
'" É claro que o trabalho com o oral e o audiovisual não que abordam não corresponde a "corrigir" o que um
se restringe ao ato de gravar. Os autores indicados, entre narrador falou sobre suas experiências nem a transformar
outros, assumem cuidados que cercam tanto aquele mo- seu pensamento em mera fonte "complementar". Este
mento como etapas seguintes de transcrição e textua- procedimento visa compreender aquelas falas no contex-
lização das narrativas, preservação dos materiais, devolu- to de sua produção social, que não se reduz à narração
ção aos narradores e divulgação para outros públicos. isolada.
J~'.,
As iniciativas nesse campo já assumidas pelo ensino A procura de precisão e organização, por sua vez,
de 1Q e 29 graus podem ser exemplificadas pelos esforços não se confunde com o culto à quantificação e à estatísti-
desenvoividos na Secretaria Municipal de Educação de ca como "fins" ou "revelações do real": ela contribui
São Pauto entre 1989 e 1992, quando se realizaram, em para avaliar especificidades e originalidades de temas e
parcela da rede escolar, trabalhos de reflexão sobre temas opiniões identificados, sua configuração coletiva e nuan-
geradores a partir dos quais elaboram-se projetos temá- ces particulares que recebe na prática social.
ticos para as várias disciplinas de cada unidade escolar. Importa, também, evitar a produção de um mito tec-
Isto significou discutir memórias da própria escola e nicista sobre esses recursos como os únicos dignos de
do bairro onde se localiza, incluindo os trajetos de vida confiança e atenção. Garantindo o apoio aos mesmos,
de seus moradores, coletados em entrevistas feitas por não é possível negligenciar o apelo à bibliografia e outras
professores e alunos. fontes disponíveis sobre as experiências sociais aborda-
A equipe de história (professores da rede e assessores das nas narrações que se registram, em áudio ou video-
de universidades) propôs que esses materiais fossem pre- cassete, sob pena de perder o processo social que possi-
servados e tomados acessíveis a outras escolas e demais bilitou as próprias narrativas.
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76 MARCOS A. DA SILVA
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~) O Com efeito, ninguém é somente negro ou mulher ou
A produção conjunta das narrações por pesquisado- ~:J nortista ou liberal ou gay ou católico, digamos. Seres hu-
res e diferentes indivíduos ou grupos que eles contatam :-9
~CQ
e
contribui para se entender o trabalho da memória como O manos abrigam essas e inúmeras outras identidades em
importante referencial da reflexão histórica, num proces-
.->-~ suas existências, que, além disso, sofrem transformações
so de esclarecimento recíproco que não se beneficiará ~ através de suas trajetórias.
pelo reforço a novas hierarquias e preconceitos entre as Ligar memória a identidades, portanto, engloba tam-
partes nele envolvidas. bém dar conta dessa multiplicidade, que quase nunca é
harmônica, antes expõe tensões e disputas, as quais nem
precisam se dar entre seres diferentes, porque uma mes-
Identidades simultâneas ma pessoa as suporta. Tal multiplicidade desfaz par-
cialmente as vontades totalitárias, que Orwell tão bem
Se a memória desempenha importantes papéis na de- apresentou, impedindo que a memória seja reduzida à
finição de identidades sociais, é preciso ainda pensar so- unidimensionalidade de um poder com lugar fixo.
bre diferentes faces das últimas.
Muitos movimentos ou grupos sociais organizados
têm feito essa articulação visando aos seus projetos espe-
cíficos. É o caso de feministas e negros, que contribuí-
ram significativamente para a transformação do conheci-
mento histórico sobre seus respectivos grupos e muitos
outros aspectos das experiências sociais, além de múlti-
plos outros exemplos de etnias, minorias, profissionais e
demais coletividades.
A riqueza dessas experiências convida os interessa-
dos pelo prazer da história a pensar sobre possibilidades
de ampliar aquelas transformações. Se os debates de con-
tracultura e outros movimentos de massa dos anos 60 e
70 do século XX tanto significaram para a reconsi-
deração de historicidades à luz de trajetos e projetos es-
pecíficos, que se expressaram como orgulhos negro, fe-
minino e gay, entre outros, cabe pensar sobre o caráter
infinito dessas identidades insatisfeitas com a história
comumente trabalhada mesmo por eruditos especialistas
e a simultaneidade de identidades que marca as ex-
periências históricas.
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76 MARCOS A. DA SILVA
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contribui para se entender o trabalho da memória como Q) manos abrigam essas e inúmeras outras identidades em
importante referencial da reflexão histórica, num proces-
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suas existências, que, além disso, sofrem transformações
so de esclarecimento recíproco que não se beneficiará ~ através de suas trajetórias.
pelo reforço a novas hierarquias e preconceitos entre as Ligar memória a identidades, portanto, engloba tam-
partes nele envolvidas. bém dar conta dessa multiplicidade, que quase nunca é
harmônica, antes expõe tensões e disputas, as quais nem
precisam se dar entre seres diferentes, porque uma mes-
Identidades simultâneas ma pessoa as suporta. Tal multiplicidade desfaz par-
cialmente as vontades totalitárias, que Orwel1 tão bem
Se a memória desempenha importantes papéis na de- apresentou, impedindo que a memória seja reduzida à
finição de identidades sociais, é preciso ainda pensar so- unidimensionalidade de um poder com lugar fixo.
bre diferentes faces das últimas.
Muitos movimentos ou grupos sociais organizados
têm feito essa articulação visando aos seus projetos espe-
cíficos. É o caso de feministas e negros, que contribuí-
ram significativamente para a transformação do conheci-
mento histórico sobre seus respectivos grupos e muitos
outros aspectos das experiências sociais, além de múlti-
plos outros exemplos de etnias, minorias, profissionais e
demais coletividades.
A riqueza dessas experiências convida os interessa-
dos pelo prazer da história a pensar sobre possibilidades
de ampliar aquelas transformações. Se os debates de con-
tracultura e outros movimentos de massa dos anos 60 e
70 do século XX tanto significaram para a reconsi-
deração de historicidades à luz de trajetos e projetos es-
pecíficos, que se expressaram como orgulhos negro, fe-
minino e gay, entre outros, cabe pensar sobre o caráter
infinito dessas identidades insatisfeitas com a história
comumente trabalhada mesmo por eruditos especialistas
e a simultaneidade de identidades que marca as ex-
periências históricas.

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