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5.
“O Reino de Deus está perto!”
A MENSAGEM DE JESUS
É fundamental tentarmos perceber qual é o núcleo da sua mensagem de Jesus: o que ele nos
quer dizer é revelador do significado da sua pessoa, da concepção de Deus e da vida humana. A causa a
que dedica a sua vida, a grande preocupação que o move na sua actividade pública é o anúncio. Jesus
apresenta‐se como aquele que vem proclamar uma Boa Nova (Lc 4,16‐21). O que anuncia Jesus?
Anuncia algo de novo? Tentaremos identificar os aspectos centrais da mensagem de Jesus Cristo,
procurando o conteúdo daquilo que ensina, o significado dos seus gestos e a sua forma de vida.
1. Da mensagem do Baptista à de Jesus
Para captarmos o núcleo da mensagem de Jesus pode ser útil vermos a sua relação com João
Baptista e confrontarmos as duas pregações. A admiração de Jesus por João Baptista é testemunhada
pelos Evangelhos: Jesus considerava‐o mais do que um simples profeta, era “o maior de entre os
nascidos de mulher”. João pertencia a uma família sacerdotal, mas rompeu com o templo e com o
sistema religioso que ele representava, e foi para o deserto pregar a sua mensagem.
João Baptista deu‐se conta da crise que o seu povo vivia, mas o seu olhar profético identificava a
raiz de toda essa crise: o pecado e a rebeldia de Israel. O seu diagnóstico concluía que a história do
povo eleito tinha chegado ao seu fracasso total, frustando assim o projecto de Deus a seu respeito. Era
a Aliança que estava quebrada. O povo tinha, por isso, que enfrentar o juízo de Deus. Já não era
possível escapar à ira iminente de Deus, recorrendo aos meios tradicionais. De nada serviam os
sacrifícios de expiação, pois o próprio templo estava corrompido.
João exigia uma conversão radical, uma purificação total para restabelecer a Aliança. Era
necessário um novo rito de purificação radical, que não estivesse ligado ao culto do templo. Na sua
pregação João punha Deus no centro e no horizonte de toda a procura de salvação. Tudo ficava
relativizado: o templo, os sacrifícios, a interpretação da lei, a própria pertença ao povo eleito. A única
coisa decisiva e urgente era converter‐se a Deus e aceitar o seu perdão.
João estaria convicto de que ia acontecer um grande juízo de Deus, purificador, que daria início a
um tempo novo, restabelecendo a justiça e eliminando a maldade. Usava imagens violentas para dizer
que Deus ia proceder a uma limpeza total. O grande juízo purificador iria dar origem a uma situação
nova de paz e de vida plena, resultado da força transformadora de Deus.
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DEUS E HOMEM – O Mistério de Cristo
Jesus foi baptizado por João. Isto significa que partilhava em parte da sua pregação e da sua
mensagem. Jesus partilhava, concretamente, os seguintes aspectos:
• A visão sobre a situação desesperada de Israel, de que o povo tinha necessidade de uma
conversão radical.
• A esperança de que Deus vinha ao encontro do seu povo, todos poderiam experimentar a
proximidade de Deus.
• A centralidade de Deus que levava a relativizar todas as estruturas.
No entanto, a acção e a mensagem de Jesus separam‐se da do Baptista, em vários aspectos.
Aquilo que João antevia para o futuro, Jesus anunciava‐o já presente. Começava “agora” a
irrupção definitiva de Deus. Deus iria agir nesta situação desesperada de maneira nunca imaginada.
Chegava a salvação de Deus.
Não era só uma mudança de focagem temporal o que Jesus perspectivava. Com Jesus, tudo se
centrava na misericórdia de Deus. O que começava agora para este povo, não era o juízo de Deus, mas
o grande dom da salvação. Nesta situação desesperada, o povo iria conhecer não a ira destruidora de
Deus, mas a sua infinita compaixão. O reino de Deus estava próximo. Já não era possível esperar mais;
o importante era acolhê‐lo. Era preciso proclamar essa "Boa Notícia". O povo iria converter‐se, mas a
conversão não consistiria em preparar‐se para um juízo, como João pensava, mas em "entrar" no
"Reino de Deus" e em acolher o seu perdão salvador.
Jesus oferecia‐o a todos. Não somente aos baptizados. Sem desaparecer em Jesus a ideia do
juízo, transformava totalmente a sua perspectiva. Deus chegava para todos como salvador e não como
juiz. Deus, porém, não obrigava ninguém; convidava somente. O seu convite podia ser acolhido ou
rejeitado. Era cada um que decidia o seu destino.
Jesus deixou o deserto que tinha sido o cenário da preparação e deslocou‐se para a terra
habitada por Israel a proclamar e a "encenar" a salvação que era oferecida já a todos com a chegada de
Deus. As pessoas não teriam que se deslocar ao deserto, como no tempo de João. Seria ele próprio,
acompanhado dos seus discípulos, que percorreria a terra prometida. A sua vida itinerante pelas
povoações da Galileia e seus arredores seria o melhor símbolo da chegada de Deus, o qual vinha como
Pai a oferecer uma vida mais digna a todos os seus filhos.
Jesus afastou‐se também do perfil e da estratégia profética de João. A vida austera do deserto
foi substituída por um estilo de vida mais festivo. Pôs de lado a maneira de vestir do Baptista. O jejum
deixava de ter sentido. Tinha chegado o momento de fazer banquetes abertos a todos, para acolher e
celebrar a vida nova que Deus queria instaurar entre o seu povo. Jesus transformou o banquete
partilhado por todos no símbolo mais expressivo de um povo que acolhia a plenitude de vida mais do
agrado de Deus".
Para proclamar a sua misericórdia de uma maneira mais sensível e concreta dedicar‐se‐ia a fazer
aquilo que João nunca tinha feito: curar os doentes que ninguém curava; aliviar a dor dos
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abandonados: tocar os leprosos que ninguém queria tocar; abençoar e abraçar as crianças e os mais
simples. Toda a gente devia sentir a proximidade salvadora de Deus, mesmo os mais esquecidos e
desprezados como os cobradores de impostos, as prostitutas, os endemoninhados e os samaritanos.
João tinha sido apelidado de “baptista”, porque a sua vida girava em torno do baptismo no
Jordão. A Jesus apelidaram‐no de “comilão” e "amigo dos pecadores”, pois costumava celebrar o
acolhimento de Deus sentando‐se à mesa com os marginalizados.
Jesus abandonou de igual forma a linguagem dura do deserto. O povo devia escutar agora uma
Boa Notícia. A sua palavra fazia‐se poesia. Convidava as pessoas a olhar para a vida de uma maneira
nova. Começava a contar parábolas. Tudo lhe falava da proximidade de Deus: a semente que se lança à
terra, o pão que se coze, as avezinhas do céu e as searas dos campos, as bodas em família e as refeições
à volta de Jesus.
Já nem o baptismo fazia sentido como rito de uma nova entrada na terra prometida. Jesus
substituiu‐o por outros sinais de perdão e de cura que exprimiam e tornavam realidade a libertação
que Deus desejava para o seu povo. Para se receber o perdão, não era preciso subir ao templo de
Jerusalém a oferecer sacrifícios de expiação. Também não era já necessário ser submergido nas águas
do Jordão. Jesus oferecia tudo isso de uma forma gratuita àqueles que acolhessem o reino de Deus.
Com Jesus tudo começava a ser diferente. O temor e o juízo davam lugar à alegria do
acolhimento de Deus, amigo da vida. Já ninguém falava da sua "ira" iminente. Jesus convidava a uma
confiança total em Deus Pai.
2. O Reino de Deus
O centro da pregação de Jesus (o mesmo é dizer: o centro do Evangelho) é o Reino de Deus, ou
Reino dos Céus. Reino de Deus e Reino dos Céus, como lhe chama o Evangelho de Mateus, são a mesma
coisa, já que os judeus nunca pronunciavam o nome de Deus – nem sequer o mencionam – e utilizam
substitutivos para se referirem a Ele. Quando S. Marcos narra que "Jesus veio para a Galileia pregar a
Boa Nova de Deus, dizendo: completou‐se o tempo e o Reino de Deus está perto; convertei‐vos e
acreditai na Boa Nova" (1,14‐15), resume em poucas palavras a mensagem de Jesus: o centro desta é a
vinda do Reino de Deus
2.1. O que é o Reino ?
Jesus anuncia que o Reino está a chegar. E diz mesmo que o Reino já chegou. O que é o Reino?
O Reino de Deus não é um território, nem se confina a um tempo ou a um espaço. Não tem
fronteiras. O Reino de Deus é Deus. O “Reino de Deus” é o próprio Deus; o próprio Deus, dum ponto de
vista concreto: o da Sua actuação neste mundo e na nossa história. É o reinado de Deus.
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DEUS E HOMEM – O Mistério de Cristo
No tempo de Jesus havia muita expectativa em relação à vinda do Reino de Deus, que era uma
das promessas do Antigo Testamento a realizar com a vinda do Messias. Jesus não assume nenhuma
das interpretações existentes mas ultrapassa‐as e está aberto a todas.
Jesus nunca descreve o Reino de Deus. Não diz o que é nem o que significa essa actuação de Deus
no mundo. Por uma razão simples: tudo isso está descrito com suficiente clareza no Antigo
Testamento. Algo que com frequência se ouve dizer, até na pregação – que o Deus do Antigo
Testamento é um Deus do castigo, do temor e da Lei e que o Deus do Novo Testamento é um Deus do
amor e do perdão – é, em grande medida, falso. O primeiro que o defendeu, Marcião, é talvez o
primeiro hereje de importância na história da Igreja. O Deus do Antigo Testamento é o mesmo Deus do
perdão e do amor do Novo Testamento. O que Jesus prega não é que, face a um Deus do castigo, haja
um Deus do perdão e do amor, mas que este Deus do perdão e do amor do Antigo Testamento começa
actuar “desde já”. Que esse Deus está perto.
2.2. Características do Reino
O Reino de Deus tem características concretas. Apresentamos as três principais.
A primeira é que o Reino de Deus está vinculado à Pessoa de Jesus. Daqui vai surgir um ponto de
conflito na vida de Jesus. A pertença ao Reino de Deus, isto é, o deixar que Deus actue sobre alguém,
liga‐se à aceitação desta pregação que Jesus faz. Reparemos que com frequência aparece no Evangelho
a seguinte pergunta dos judeus a Jesus: “Com que autoridade fazes Tu isso?” (Mt 21, 23‐27). Recolhe‐
se aqui uma realidade histórica sofrida por Jesus, já que está atestada em todos os escritos: a atitude
dos judeus que pedem a Jesus uma prova que legitime a Sua mensagem como procedente de Deus.
A segunda característica é que o Reino de Deus vem para todos e vem gratuitamente. Deus ama‐
nos, independentemente do que seja o nosso actuar. É o que significa que Deus é nosso Pai, que é amor
incondicionado. Daqui não se pode deduzir que seja indiferente a forma como vivemos. Pelo contrário:
precisamente porque Deus nos quer sem condições, é que nos sentimos obrigados a corresponder,
com todas as nossas forças, ao amor incondicionado de Deus.
A terceira característica, consequência da anterior, é que os primeiros destinatários do Reino de
Deus, segundo Jesus, são os pobres. Por que é que são os primeiros? Porque, na concepção do Antigo
Testamento, a riqueza é uma bênção. Se a riqueza é bênção de Deus quem é pobre não possui essa
bênção. Jesus, contrariamente à concepção dominante, afirma que a bênção de Deus, o Seu Reino, essa
actuação de Deus que já está a chegar, vem preferencialmente para todos aqueles que parecem estar
por ele esquecidos.
Pobres são, também, os doentes, que na concepção judaica não têm a bênção de Deus. Pobres são
os marginalizados pela sociedade, termo correlativo ao conceito de cumprimento da Lei. Tenha‐se em
conta que, com muita frequência, o pobre está realmente impedido de ser um bom cumpridor da Lei,
mesmo que apenas pela impossibilidade, por motivos económicos, de conseguir tudo o que é
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necessário para oferecer os sacrifícios prescritos na Lei. O homem que cumpre a Lei é o homem
integrado na sociedade judaica; portanto, o que não cumpre a Lei é o desintegrado, o marginalizado.
Pobre é o órfão menor de doze anos, a viúva sem filhos; ambos estão privados de “personalidade
jurídica”, não podem ir a tribunal reclamar uma terra como sua. Pobres são as prostitutas. Estas, por
definição, não cumprem a Lei, são mulheres sem maridos nem filhos que as representam; são o
exemplo típico da marginalização. Pobres são os publicanos. Publicano é o que está no “telónio”.
Pobres são, portanto, "aqueles que não têm nada a esperar do mundo mas unicamente de Deus".
Àqueles que aos olhos do mundo não têm futuro, Jesus anuncia o futuro do Reino. Aqueles que não têm
bens nem felicidade no mundo, Jesus proclama‐os felizes no Reino de Deus.
As palavras são confirmadas pelo comportamento de Jesus. Ele dirige‐se àqueles que as classes
religiosas desprezam (publicanos e prostitutas) e solidariza‐se com os pobres e humildes. Promete‐
lhes a alegria do perdão e a experiência da misericórdia de Deus.
2.3. O Reino de Deus: oferta de salvação
O Reino de Deus é oferta de salvação.
Também aqui colhemos um aspecto característico do anúncio de Jesus. O Reino de Deus não é
castigo e juízo, mas Boa Nova de misericórdia e salvação.
Na sequência dos profetas, Jesus anuncia o Reino como final do sofrimento e das angústias e
como realização de todas as esperanças dos atribulados: os cegos veêm, os coxos andam, aos pobres
anunciada a Boa Nova (Lc. 7,22 ss). Esta experiência do perdão e da misericórdia de Deus deve
provocar nas pessoas uma atitude idêntica de misericórdia para com os outros. Aqueles a quem Deus
perdoa devem perdoar‐se mutuamente (Mt. 18, 23‐25). Assim o amor e a aceitação de Deus provoca a
aceitação mútua dos homens e destrói as barreiras que separam. Cada um pode ter a certeza que é
amado e aceite por Deus, apesar do seu pecado, e sentir‐se livre para aceitar e entrar em comunhão
com os outros.
Mas o homem está fechado no seu egoísmo e limitado pelas potências do mal. Daí que o anúncio
do Reino seja também luta contra estas potências ("os demónios"). Veremos isto mais adiante.
2.4. A vinda do Reino: presente e escondido
Jesus prega que a vinda do Reino de Deus está iminente. Isto quer dizer que a esperada actuação
de Deus neste mundo começa já, que já se nota a sua presença.
O Reino de Deus é promessa para o futuro, mas concretiza‐se já no presente. Ao apresentar o
Reino de Deus como próximo e já presente Jesus distingue‐se também das concepções judaicas. Na
verdade, os Judeus esperavam o Reino para o futuro: “o Deus dos céus fará aparecer um reino que
jamais será destruído e cuja soberania nunca passará a outro povo" (Dan 2,44).
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DEUS E HOMEM – O Mistério de Cristo
Esta esperança judaica num Reino de Deus escatológico era fruto da sua experiência histórica:
eles haviam dado conta em muitas circunstâncias do poder protector de Deus. Podiam confiar em Javé,
que era amigo deles e Senhor do mundo inteiro e da história. Mas nalgumas épocas históricas Deus
parecia ausente e alheio às tribulações do povo. Será que as suas maravilhas eram apenas factos do
passado? Nestas alturas os profetas consolam o povo judeu afirmando que no futuro Deus realizará
novo Êxodo, nova Aliança e maravilhas ainda maiores que no passado. Nos últimos dias (tempos
escatológicos) Deus mostrar‐se‐á o Senhor absoluto do mundo inteiro.
Aqui se mostra a originalidade de Jesus: Ele anuncia o Reino não apenas para o futuro mas para
agora: “completou‐se o tempo e o reino de Deus está perto" (Mc 1,15). O Reino de Deus chega pois com
a pessoa de Jesus. Ele é a realização da promessa do Reino. A sua realização perfeita só acontecerá no
futuro e por isso devemos esperá‐lo e pedi‐lo "venha a nós o vosso Reino".
Por outro lado, exige a nossa decisão e o nosso empenho no presente: “o futuro de Deus é o
apelo que Deus dirige ao presente e o presente é o momento da decisão luz do futuro de Deus"
(Bornkamm). Jesus fala do Reino em termos de presente e de futuro.
2.5. Um Reino de justiça
O Reino de Deus esperado era a afirmação da justiça divina no mundo, a realização plena da paz
(shalom). Por isso S. Paulo e S. João, escrevando para ouvintes para quem a expressão de Reino de
Deus não era familiar, utilizam as palavras 'justiça" e "vida” para significar o mesmo. Assim, podemos
hoje falar do Reino de Deus como possibilidade de realizar as expectativas profundas dos homens em
relação à paz, fraternidade, vida e liberdade. Por isso, também se pode apresentar o Reino de Deus
como resposta às grandes perguntas dos homens e como realização da "utopia humana".
Mas não poderá o homem com as suas possibilidades realizar no mundo estes valores? Segundo
a concepção da Bíblia o homem encontra‐se limitado e impedido pelas potências do mal e só o Senhor
do mundo e da história pode oferecer este estado de coisas. É isso o Reino de Deus: a possibilidade
oferecida por Deus aos homens de realizar as suas expectativas profundamente humanas como a
justiça, a paz e a fraternidade. O Reino de Deus não é apenas espiritual mas engloba uma dimensão
profundamente humana, ao libertar o homem das potências do mal que o limitam e dividem.
2.6. Um Reino de amor
Reino de Deus é a proximidade de Deus no amor. O Antigo Testamento falava do Reino de Deus
como do "dia do Senhor", dia em que Javé manifestaria plenamente a sua glória. Falar do Reino de
Deus era, assim, anunciar a proximidade de Deus em relação às pessoas. Deus está perto, aceita, acolhe
e cuida dos homens. O mundo inteiro está nas mãos de Deus que cuida de erva dos campos (Mt 6,30),
dos pássaros do céu e com muito mais carinho ainda dos homens (Mt 10,29‐31).
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DEUS E HOMEM – O Mistério de Cristo
Notamos que Jesus não fala de Deus de uma maneira abstrata e filosófica mas do Deus vivo que
ama e se compromete com os homens. O domínio de Deus no seu Reino é em conclusão o domínio do
amor.
A mensagem de Jesus é novidade. Está toda ela centrada num tema de fundo – o Reino de Deus –
mas apresentado de uma maneira nova em relação à expectativa dos seus contemporâneos.
3. Sinais do Reino de Deus
O Reino de Deus não é um tema acerca do qual Jesus tenha feito grandes discursos teológicos. É
simplesmente anunciado. “Completou‐se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei‐vos e
acreditai no Evangelho” (Mc 1,14). Jesus anuncia o Reino de Deus, fazendo posteriormente
especificações e correcções da forma como era entendido. O anúncio do Reino é mais um grito de
vitória do que um discurso catequético.
Por isso, o Reino de Deus é, antes de mais, para ser mostrado. Na pessoa de Jesus faz‐se presente
e mostra‐se o Reino de Deus. A sua vida mostra a soberania de Deus, a implantação da justiça divina
sob a forma de bondade, de misericórdia, de amor.
O segundo aspecto a sublinhar é que esta presença do Reino se concretiza em gestos de
reparação, de restauração, de libertação. Parte de uma situação de fragilidade da humanidade (surdez,
cegueira, paralisia, doença, morte, exclusão...) para mostrar que Deus a quer recompor.
Jesus mostra, mediante alguns gestos, onde está presente, em que consiste e como actua o Reino
de Deus. Podemos dizer que tudo, na vida de Jesus, é sinal da presença do Reino de Deus, pois a sua
pessoa é incarnação desse Reino. No entanto, há alguns gestos particularmente significativos,
enquanto reveladores dessa presença operativa de Deus, que exprimem a realidade do seu Reino: o
lugar privilegiado dos pobres, os milagres, as refeições, o perdão dos pecados, o acolhimentos de
todos.
3.1. O lugar privilegiado dos pobres
Já falámos do lugar privilegiado dos pobres no ministério de Jesus. Eles, tal como todos os que
não tinham direitos na sociedade, são os destinatários privilegiados do Evangelho de Jesus, da Boa
Nova que Jesus anuncia. Os outros reinos nunca foram uma boa notícia para os pobres, porque é
precisamente a sua condição de pobres que os exclui.
A situação preferencial dos pobres no Reino de Deus diz muito sobre a natureza desse Reino. O
Reino de Deus é oferta gratuita. Não é resposta a qualquer mérito, moral ou de outro tipo, nem é um
direito adquirido por ninguém. Por isso, os destinatários privilegiados são as pessoas consideradas
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sem méritos nem direitos. Anunciar gratuitamente a Boa Nova aos pobres é uma prova de que o Reino
de Deus é absolutamente gratuito.
A simples existência dos pobres manifesta a ausência da justiça e do direito. O lugar preferencial
que eles têm na acção de Jesus, revela que o Reino de Deus consiste sobretudo na instauração da
justiça divina. A justiça de Deus transcende em muito a justiça meramente legal, pois não dá a cada um
o que é estipulado por lei, mas o que cada um precisa para viver com dignidade, como ser humano,
filho de Deus.
3.2. Os milagres de Jesus
A.) Milagres e mensagem de Jesus
Se para conhecer Jesus é muito importante ter em conta o conteúdo da sua pregação, não são
menos importantes as suas obras. Na verdade, se as suas palavras impressionam as pessoas pela sua
novidade e profundidade, as obras que realizou não impressionam menos.
Mas as obras impressionantes que Jesus realizou – os milagres – tornam‐se hoje muito
problemáticas para a nossa mentalidade científica. Hoje dificilmente aceitamos milagres como obras
extraordinárias que contradizem as leis da natureza. Terá Jesus violado as leis da natureza para
mostrar o seu poder? Ou os milagres serão apenas interpretação e composição teológica dos
evangelistas? Antigamente via‐se milagres em tudo. Ainda hoje o povo simples corre aos milagres.
Porém as pessoas cultas explicam os mesmos acontecimentos por causas naturais. Poderão explicar‐se
assim os milagres do Evangelho?
Os milagres de Jesus tornaram‐se hoje embaraçosos. Mas não podemos calá‐los. Eles fazem parte
das tradições mais antigas do Evangelho. S. Marcos faz do seu evangelho quase uma narração de factos
miraculosos. O próprio Jesus apela para as suas obras como motivo de credibilidade (cf. Jo 10,38). O
Jesus que faz milagres aparece tão nítido no N.T. como o Jesus que anuncia o reino de Deus. Não
podemos pois eliminar simplesmente este tema. Além disso os milagres de Jesus estão profundamente
relacionados com a sua mensagem. Ajudam a compreendê‐la e tornam‐na concreta para a mentalidade
do povo.
B.) Os milagres à luz da investigação histórica
Se compararmos os evangelhos por ordem cronológica, notamos uma tendência a amplificar os
milagres. Esta tendência, verificada em muitos outros acontecimentos, faz‐nos questionar a
correspondência histórica de cada um dos relatos evangélicos. Os evangelistas utilizaram estes relatos
para exaltar a figura de Jesus, e portanto nem todos os milagres narrados terão acontecido
historicamente naquela forma. Uma outra conclusão da investigação histórica que algumas narrações
miraculosas parecem projecções retrospectivas na vida histórica de Jesus da experiência de fé pós‐
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pascal. Já vimos que esta maneira de narrar era legítima. Os evangelhos não são na verdade, crónicas
históricas mas anúncio de fé.
Não podemos colocar no mesmo plano todos os milagres. Seria falso concluir que não tenha
havido milagres. Não há nenhum crítico sério que não admita um núcleo histórico na narração dos
milagres de Jesus. Não seria possível uma tradição evangélica de milagres que não tivesse fundamento
na vida real de Jesus. Não pode haver dúvida que Jesus realizou obras extraordinárias, que
impressionaram e deixaram estupefactos os seus contemporâneos.
Os investigadores estão de acordo quanto à veracidade histórica de muitas narrações
miraculosas, nomeadamente nos seguintes aspectos.
• Devem‐se ter verificado muitas curas de doentes de vários géneros, inexplicáveis
humanamente, pelo menos naquele tempo.
• Deverão ter acontecido diversas curas de possessos do demónio. As doenças eram vistas
naquele tempo como consequência do pecado e relacionadas com o demónio. Sobretudo as doenças
psíquicas seriam abundantes e vistas como possessões diabólicas. Estas curas são vistas como sinal do
Reino de Deus que chega e põe fim ao reino do demónio.
• Outras narrações de milagres terão tido fundamento em acontecimentos mais simples que
depois foram ampliados e compostos na pregação primitiva.
• As narrações do evangelho são sóbrias e Jesus não recorre a milagres espectaculares, nem em
proveito próprio, mas unicamente em função de libertar os que sofrem. Recusa fazer milagres como
prova do seu poder (Lc 11,29).
• Outro aspecto a não esquecer, e já referido, é que os evangelhos foram escritos à luz da
ressurreição e da glorificação do Senhor. O mistério de Cristo ressuscitado aparece como a verdadeira
fonte e força de onde derivam os milagres. Assim, alguns milagres serão representações antecipadas
do Senhor ressuscitado e não acontecimentos reais da história de Jesus.
C.) Sentido de milagre
O que é o milagre? Estamos habituados a um conceito apologético de milagre; como acções
extraordinárias que contradizem as leis naturais e que se apresentam assim como prova insofismável
do poder de Deus. Na concepção apologética o milagre era visto como uma violação das leis naturais.
Mas conheceremos nós todas as leis da natureza? Seria, pois, difícil provar científicamente que os
milagres são excepções ou contradizem as leis naturais. Além disso, custa a admitir que Deus substitua
as causas naturais. Parece antes que opera através delas.
Devemos, por isso, passar de um conceito apologético a um conceito bíblico de milagre. A Bíblia
fala de milagres como sinais e manifestações do poder de Deus e não como acções espectaculares para
dar nas vistas. Deus é Senhor da história e da natureza e na sua providência age através delas para
manifestar a sua protecção. Ao lermos os milagres do evangelho não notamos preocupação em
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DEUS E HOMEM – O Mistério de Cristo
mostrar excepções às leis naturais (não havia então pensamento científico), mas sinais da grandeza de
Deus.
Verificamos no evangelho que os milagres são ambíguos, isto é, podem ter outra explicação que
não o poder de Deus: os fariseus, por exemplo, explicam os milagres de Jesus por magia diabólica (Mc.
3,22‐30). Hoje tenta‐se explicar alguns milagres por influência psicológica, ou seja pelo fascínio que
emanava da pessoa de Jesus e provocava a fé nas pessoas. Podemos aceitar esta explicação?
Quanto à natureza dos milagres, podemos concluir que são acções extraordinárias, que
impressionam. Mas não são provas absolutas: são ambíguos e admitem outras explicações. São
indicações da força de Deus, sinais para a fé, pois vão além das capacidades normais, mas deixam
liberdade em acreditar.
D.) Significado dos milagres de Jesus
Jesus faz milagres. Na actualidade, toda a crítica, incluindo a crítica não cristã, está de acordo em
que Jesus realizou, na sua vida, acções entendidas pelos seus contemporâneos como miraculosas. Jesus
fez sinais maravilhosos, em concreto, a expulsão de demónios ou a cura de doenças, que a crítica
histórica entende como tendo realmente acontecido.
Esses sinais eram algo relativamente frequente no seu contexto histórico, e eram especialmente
realizados pelos homens religiosos. O milagre era algo sociologicamente frequente. A maior parte de
nós não está consciente de ter visto um milagre em toda a sua vida. No nosso mundo explicamos as
coisas de outra maneira, de modo que os milagres não existem; isto é, não existem porque não os
vemos, porque não os interpretamos como tais. Plínio, um naturalista romano, escreveu uma história
natural na qual falava de uma planta que só se dava em Israel e que não floria aos sábados. Isto afirma‐
o um naturalista. Ou seja, a concepção da ciência e a percepção das coisas são muitíssimo diferentes no
mundo antigo e no nosso.
Qual, então, o significado dos milagres de Jesus?
A interpretação dos milagres não pode ser feita apologeticamente. Não se trata de Jesus se
querer manifestar como Filho de Deus e de o demonstrar com acções que são contra as leis da
natureza. É preciso relacionar os milagres de Jesus com a sua mensagem, para compreender o seu
significado. Os milagres não têm um significado científico ou histórico, mas um significado religioso.
Os milagres só se compreendem a partir da pessoa de Jesus e no contexto da sua mensagem. É a
fé em Jesus e não nos milagres que nos é pedida. Uma fragilidade da concepção apologética era separar
os milagres da mensagem e da pessoa de Jesus, como se os milagres justificassem a fé. Mas Ele próprio
se recusou a apresentar provas (Mc 8,11ss) e proclama felizes os que acreditam sem terem visto
provas (Jo 20,29). As narrações dos milagres em S. João apontam claramente esta perspectiva de
passar dos milagres à fé na pessoa de Jesus (por exemplo, a cura do cego é oportunidade para
despertar a fé em Jesus como luz do mundo).
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Os milagres estão relacionados com a fé em Cristo. Na verdade são fruto da fé (“a tua fé te
salvou)”, e resposta à oração. Na sua terra natal, Jesus não realiza milagres por causa da falta de fé
daquele gente (Mc 6,5‐6). Por outro lado, os milagres devem abrir o homem à fé e dispôr ao
seguimento de Cristo (Jo 9,35‐38). Os milagres de Jesus mostram que através d'Ele Deus entrou em
acção e realizou a salvação do homem e do mundo. A nossa resposta aos milagres será pois a aceitação
e a colaboração na acção de Deus.
Os milagres são sinais do Reino que chega. Jesus apresenta os milagres como sinais do Reino (Mt
11,2‐6) e revelação de Si mesmo (Jo. 10,37‐38). Os milagres podem ser vistos como uma mostra da
presença operativa do Reino. Aos discípulos de João, Jesus apresenta os seus milagres como sinais do
Reino que Ele anuncia: "os cegos vêm, os coxos andam, os leprosos ficam limpos...". Jesus, em última
análise, não faz milagres; o que faz é “sinais”. Mais: A palavra “milagre” não é frequente no Novo
Testamento e algumas das vezes em que aparece é em tom crítico. Em Jo 4, 48, Jesus recrimina os que
O escutam, dizendo: “se não virdes sinais e milagres não acreditais.”
Os milagres são uma prova de que o Reino de Deus não é apenas objecto de promessa e
esperança; é também objecto de fé e de acção presente. Estas actuações maravilhosas de Jesus são
simplesmente sinais de que o Reino de Deus está a chegar, de que a actuação de Deus é iminente. O
Reino de Deus está já presente e actua para refazer a história humana.
Os milagres são também sinais escatológicos. O Reino de Deus é também futuro. Neste sentido,
os milagres são sinais e antecipação de um mundo novo, diferente, um mundo que nós esperamos e
preparamos. Falam‐nos da esperança que a humanidade há‐de ser liberta da escravidão da corrupção
(Rm 8,21) e que o sofrimento e a alienação serão superados (Ap 21,45). Apontam assim para o mundo
reconciliado.
E.) Os vários tipos de milagres
Não é por acaso que geralmente os milagres vão ao encontro dos mais necessitados. As cura e
exorcismos são sinais da chegada do Reino de Deus aos sectores mais afundados no sofrimento e na
alienação.
A condição de taumaturgo parece ser um traço histórico indiscutível de Jesus. São abundantes os
relatos pormenorizados de curas. A historicidade concreta de cada milagre deve ser submetida a um
estudo crítico, mas, de um modo geral, os investigadores estão de acordo em que a actividade
taumatúrgica de Jesus constitui um núcleo histórico com fundamento.
Quando Jesus cura os cegos ou os paralíticos, o que faz é mostrar o que significa o Reino de Deus:
que a salvação chegou aos doentes e aos pobres.
Jesus expulsa os demónios, pois a vinda do Reino de Deus implica a destruição do reino de
Satanás. O reino do mal diminui o homem na sua humanidade e torna‐o estranho a si mesmo, aos
outros e a Deus. Assim, as doenças, sobretudo as psíquicas, eram vistas como acção do demónio. A
expulsão dos espíritos põe o dedo na verdadeira ferida do ser humano. É no espírito que está a raiz do
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DEUS E HOMEM – O Mistério de Cristo
mal, mas também da cura, da salvação, da libertação. Quando o espírito está doente, ou quando a
pessoa está possuída por espíritos imundos, começa a sequência de todos os males.
Não admira, por isso, que os evangelhos apresentem com frequência dois tipos de milagres na
mesma cena: a expulção do espírito imundo e a recuperação da saúde ou do bem‐estar, a sanação do
espírito e a cura do corpo. A expulsão do espírito impuro é acompanhada da recuperação do sentidos
(o ouvido, a fala, a vista). Além disso, a cura integral implica também a reintegração na comunidade. É
na comunhão que se encontra a plenitude da saúde, a plenitude da vida, a presença eficaz do Reino.
Daqui concluímos que não é legítima nenhuma interpretação espiritualista ou meramente social do
Reino de Deus.
Outros milagres são sempre sinal do Reino. Ao multiplicar os pães, Jesus diz que o Reino é como
esse banquete onde há para todos e ainda sobra, onde se partilha e se vive a fraternidade.
Com a sua acção, Jesus vê Satanás cair do céu como um raio (Lc 10,18). Com a vinda do Reino de
Deus, a humanidade recupera o seu equilíbrio. O Reino é assim restauração da criação e da condição
humana já no presente. É libertação total do homem, na sua existência espiritual e física e não apenas
libertação do pecado.
3.3. As refeições de Jesus
Um elemento importante na vida e na pregação de Jesus foram as suas refeições. Os evangelhos
abundam em referências a esta prática de Jesus que talvez seja a mais característica da presença do
Reino de Deus: a prática do convívio, a presença frequente em banquetes, a reunião à mesa.
Jesus surpreendia a todos por se sentar à mesa com qualquer um. Ninguém era excluído da sua
mesa, nem ele se excluía da mesa de ninguém. Não era preciso ser‐se puro, nem praticar rituais de
purificação.
As refeições de Jesus com os marginalizados são também sinal do Reino dos Céus. Podemos
dizer que estas refeições de Jesus são uma parábola em acto, uma parábola viva, em lugar de uma
parábola narrada. As refeições são sinal da presença do Reino, são expressão da comunidade e da
comunhão.
As refeições de Jesus são a imagem do banquete celestial e, portanto, anúncio da chegada
iminente do Reino de Deus. No Reino de Deus tudo haveria de ser diferente: a misericórdia substituía a
santidade. Não haveria mesas separadas. O Reino de Deus era uma mesa aberta, onde podiam sentar‐
se, para comer, todos os pecadores. Era isto que Jesus queria transmitir, quando falava de refeições e
participava em refeições.
Jesus não só estava a anunciar esta boa nova, mas estava já a viver isto. Por isso, participava com
gosto e alegria nas refeições, sobretudo com aqueles que ninguém convidava; estes são os primeiros a
ter lugar à mesa de Deus!
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De algumas dessas refeições conservou‐se uma recordação maravilhosa de fraternidade e de
abundância. Entre estas refeições do Senhor houve uma – sem dúvida a mais importante – a última
refeição de Jesus, em que Ele, face à Sua morte iminente, prevista e assumida, se despediu dos que
acreditavam no seu anúncio e O seguiam, dizendo: “Já não beberei mais do fruto da videira até que o
beba no Reino do meu Pai”. Com isso, Jesus oferecia a Sua vida em serviço ao Reino por Ele anunciado.
A Eucaristia é para os cristãos a reiteração dessa última refeição de Jesus. É o seu memorial,
precisamente porque nesse banquete temos a essência do que foi a sua mensagem e a sua vida. O
essencial da sua mensagem ficou plasmado na Eucaristia, porque com as suas refeições, das quais
ninguém era excluído Jesus mostrava como é Deus que acolhe a todos no seu amor e também aos
pecadores.
3.4. O perdão dos pecados
O perdão dos pecados é uma obra escatológica de Deus, é uma prerrogativa divina.
Uma das situações mais significativas é aquela em que a mesma pessoa é perdoada dos pecados
e curada de uma paralisia física (Mc 2,1‐12). O pecado e a culpa são, muitas vezes, a fonte das piores
paralisias. Por isso, o perdão dos pecados é a libertação mais profunda das paralisias que nos impedem
de viver libertos. A paralisia física é a atrofia de um membro físico; o pecado é a atrofia do ânimo, da
alma, da vida. A cura da paralisia é sinal e consequência da libertação espiritual.
Uma vez que o pecado é um obstáculo à intervenção gratuita de Deus, perdoar os pecados
equivale a tornar o Reino de Deus presente, introduz a gratuidade na história. A importância da
actividade perdoadora de Jesus vem do facto de ser testemunho da presença operativa do Reino de
Deus como graça. O perdão dos pecados é pura graça. Não corresponde a méritos adquiridos.
Ver o Reino de Deus no perdão dos pecados não é espiritualizá‐lo. Significa ir à raiz de toda a
acção. É admitir que não vivemos num mundo inocente, mas pecador. Para que o perdão dos pecados
não seja uma mera espiritualização do reino de Deus, tem de se concretizar em práticas históricas. Daí
a importância dos gestos de acolhimento dos pecadores.
3.5. O acolhimento de todos
O acolhimento de Jesus aos publicanos e pecadores fazem parte do núcleo histórico dos
Evangelhos. Em muitas dessas cenas há algo mais do que perdão: há aceitação e acolhimento autêntico
dos pecadores, dos excluídos. Acolher o pecador e compartilhar a mesa com ele é muito mais do que
um simples gesto ocasional de perdão, é aceitá‐lo no seu círculo de amizade. Há mesmo uma
convivência com esta gente. O perdão só alcança todas as dimensões quando consegue reatar as
relações cortadas, quando integra o pecador na comunidade, quando é ponto de partida para uma
convivência nova e renovada.
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DEUS E HOMEM – O Mistério de Cristo
Estes gestos de acolhimento dos pecadores, de aceitação e partilha da mesma mesa, de os
reincorporar na comunidade, de restaurar as relações desfeitas confirmam que o Reino não é uma
coisa meramente espiritual.
3.6. Os sinais do Reino
Todos estes gestos da vida de Jesus mostram que o Reino de Deus está presente na pessoa e na
acção de Jesus. Todos eles apontam numa mesma direcção: o Reino consiste na abundância de vida
para todos; a vida consiste essencialmente na comunhão. Aderindo ao projecto de Jesus pode‐se ir
experimentando isto mesmo. Mas também é certo que estes sinais do Reino só fazem pleno sentido se
aceites na fé.
4. A pregação do Reino de Deus
Ainda que Jesus não tenha feito discursos teológicos sobre o Reino de Deus, o tema também
esteve presente na sua pregação. As acções de Jesus, que tornam presente o Reino de Deus, esclarecem
o significado da sua pregação, mas, ao mesmo tempo, são esclarecidas por ela. Dois núcleos da
pregação de Jesus são especialmente significativos: as parábolas e as bem‐aventuranças.
4.1. As parábolas
A narração de parábolas era a maneira mais característica de Jesus explicar a natureza e as
implicações do Reino de Deus. A maior parte delas começa precisamente assim: “O Reino dos Céus é
semelhante a ...” Isto é, “Deus, quando actua com os homens é semelhante a ...”
As parábolas não inserem Deus nas narrativas. Falam de coisas muito terrenas: a sementeira, o
pão amassado, o caminhante ferido, os trabalhos na vida, as moedas que se perdem.
Algumas parábolas partem de realidades da vida e dos homens, para com elas ilustrar a actuação
de Deus (o fermento e o grão de mostarda); outras são histórias inventadas por Jesus, verosímeis no
seu contexto histórico e sócio‐cultural, com as quais também nos ensina o que acontece com o Reino
que chega (a dos trabalhadores mandados para a vinha, a dos convidados para o banquete); noutras
parábolas Jesus procura ensinar‐nos maneiras de actuar que nos tocam a nós, em resposta ao anúncio
da chegada do Reino (a parábola das dez virgens, ou do administrador astuto).
As parábolas do Reino viram as coisas do avesso, obrigam‐nos a ver o mundo e a vida a partir de
uma outra perspectiva, induzem‐nos a romper com o passado e com os valores habituais. Não
apontam para outro mundo, mas para novas possibilidades neste mundo. As parábolas abrem um
futuro de possibilidades à nossa vida, abrem‐nos a uma conversão. Uma parábola não pode deixar de
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provocar reacção, positiva ou negativa, porque se move no âmbito do paradoxal, do surpreendente, do
não convencional, do chocante, do insensato. Quem escuta uma parábola tem de tomar uma decisão
As parábolas, partindo de realidades da vida, falam do Reino de Deus. Referem‐se ao modo de
Deus actuar. O Deus das parábolas não costuma concordar com os nossos padrões de comportamento.
Deus actua de um modo surpreendente e chocante. Vejamos algumas características deste Reino.
– O Reino de Deus tem origens muito modestas e simples, pouco ou nada perceptíveis. Não
irrompe triunfalmente, mas de um modo modesto e humilde, apenas devido à acção de Deus,
não a empreendimentos humanos espectaculares. Por isso, a primeira resposta é a fé e a
confiança na acção de Deus.
– O Reino de Deus irrompe gratuitamente, é pura graça. Não é resposta a méritos prévios. As
únicas vias de acesso à salvação são a fé, a confiança, a abertura humilde à acção de Deus, o
reconhecimento do prórpio pecado, o acolhimento agradecido do Reino de Deus.
– Mesmo sendo gratuito, este Reino também é exigente. Algumas parábolas insistem também
nas exigências e nos compromissos do Reino de Deus. O Deus do Reino actua com bondade e
compaixão, mas não deseja a irresponsabilidade nem é conivente com qualquer opção.
4.2. As bemaventuranças
As bem‐aventuranças, ou macarismos, são exclamações nas quais certas pessoas são declaradas
felizes, ou bem‐aventuradas. Por vezes, estas exclamações de bem‐aventurança contrapõem‐se a
exclamações de mal‐aventurança. Há exclamações deste tipo dispersas por todos os evangelhos. No
entanto, há dois textos que são apresentados como resumos das bem‐aventuranças de Jesus: Mt 5,1‐12
e Lc 6,20‐23. É opinião comum que estes textos constituem um núcleo histórico da pregação de Jesus.
As bem‐aventuranças são importantes para entender o Reino de Deus.
Quanto aos destinatários preferidos do Reino de Deus, as bem‐aventuranças confirmam, tal
como as parábolas, que são os pobres, todos aqueles que estão sujeitos a qualquer tipo de desgraça, de
tal forma que só podem procurar apoio em Deus e pôr n’Ele a sua confiança. Pobres são os que já não
esperam nada da história humana e só lhes resta esperar pela justiça e pela misericórdia de Deus.
Quanto à natureza do Reino, as bem‐aventuranças confirmam alguns dados das parábolas:
– o carácter gratuito do Reino,
– a presença inicial do Reino na pessoa de Jesus.
Mas sublinham outros aspectos:
– O carácter escatológico da realização plena do Reino de Deus. São formuladas no futuro, como
um anúncio profético, a indicar que a soberania de Deus estabelecerá na história humana a
misericórdia, a justiça, a paz.
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5. Conclusão
Num tempo em que as sociedades puseram de lado todas as grandes ideologias e as pessoas
deixaram de acreditar em utopias, faz sentido ainda propor esta ideia do “Reino de Deus”?
Justamente, a expressão “Reino de Deus” designa a utopia mais ambiciosa da tradição judaico‐
cristã:
• abarca as esperanças últimas da humanidade
• designa o projecto mais ambicioso de Deus para a criação e para a humanidade
• indica a realização plena e a consumação da história.
Neste sentido, o Reino de Deus é uma utopia à espera de realização. Mas é uma utopia em que
acreditamos e esperamos: os crentes têm a certeza de que ela se realizará.
Uma verdadeira utopia não é apenas objecto de esperança: é algo que se deseja e que se vai
construindo progressivamente. Os crentes esperam a plena realização do Reino de Deus no futuro
porque vão contemplando as suas realizações parciais no presente.
A proposta do Reino de Deus só continuará a ser merecedora de confiança na medida em que os
cristãos mostrarem sinais da sua presença. Caso contrário, o Reino será apenas um sonho e uma ilusão
dos crentes.
A paixão de Jesus Cristo foi viver para anunciar e mostrar o Reino de Deus. A paixão dos cristãos
não pode ser outra – anunciar o Reino e concretizá‐lo na vida e na história humana.
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