Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Mario Bunge
Tradução de Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira
O artigo foi publicado na revista Free Inquiry (vol. 35, 2014) e aparece nas obras Doing
Science: In The Light of Philosophy (2016) e Elogio del Cientificismo (2017).
Introdução
O conjunto de pessoas que escreve sobre ciência pode ser dividido em três grupos:
cientificista, anticientificista e semicientificista. Por exemplo, o polímata Nicolas Condorcet,
o psicólogo e sociólogo Jean Piaget e o sociólogo Robert K. Merton pertencem ao primeiro
grupo, enquanto Hegel, Nietzsche e Heidegger pertencem ao segundo. Finalmente, o grupo
de pensadores semicientificistas inclui Kant, Marx e os positivistas lógicos. Todos esses
últimos pensadores elogiaram a ciência, em particular sua racionalidade e sua
universalidade, mas se mantiveram apegados a dogmas anticientíficos: o fenomenalismo nos
casos de Kant e dos positivistas lógicos, e a dialética hermética de Hegel no caso de Marx.
A palavra cientificismo foi popularizada pelo embriologista Félix le Dantec por volta
de 1912. Em 1939, ela havia recebido uma definição clara no clássico Vocabulaire de André
Lalande. No entanto, o conceito surgira muito antes pela ala radical do Iluminismo francês.
E tanto a palavra quanto o conceito ocorreram em outros contextos — particularmente na
propaganda religiosa, onde foi usado pejorativamente.
Na mesma palestra, Condorcet observou que, nas ciências "morais" (sociais), "o
próprio observador forma parte da sociedade que observa". Portanto, presumivelmente, ele
teria acolhido o chamado teorema de Thomas, de acordo com o qual, em questões sociais, a
aparência é a realidade, pois as pessoas reagem não a estímulos externos, mas à maneira
como os "percebem". Portanto, o cientificismo de Condorcet não era naturalista: ele sabia
que as máquinas e os sistemas sociais, embora materiais e não espirituais, eram artificiais
ou feitas pelo homem e, em razão disso, tão antinaturais quanto a ciência, a ética e a lei.
(Note que eu distingo o naturalismo do materialismo. Enquanto o naturalismo sustenta que
todos os existentes são naturais, o materialismo inclui, na realidade, coisas e processos
artificiais, da construção à computação e à administração. Assim, enquanto o naturalismo,
estritamente definido, é reducionista, o materialismo pode abrir espaço para a emergência
e, por conseguinte, para visões de mundo "hierárquicas" [multiníveis].)
O Círculo de Viena, que operou de 1929 a 1936, adotou todos os princípios da ala
radical do Iluminismo francês, exceto o materialismo: permaneceu acorrentado ao
fenomenalismo de Hume, Kant, Comte e Mach. Além disso, com exceção de Otto Neurath,
os membros do Círculo eram indiferentes às ciências sociais, o que, de um modo geral, pelo
menos adulava à tradição científica do Iluminismo.
ContraIluminismo e Anticientificismo
Dada essa visão, é compreensível que Dilthey tenha argumentado pela necessidade
de fazer estudos verstehende (interpretativos) ou "humanistas" — em vez de científicos —
do social. É claro que nem Dilthey nem seus seguidores suspeitaram de que o problema de
"inferir" (na verdade, adivinhar) estados mentais a partir do comportamento observado é
um problema inverso e, como tal, um para o qual nenhum algoritmo está disponível, de
modo que qualquer solução proposta para ele é especulativa, como observei no meu livro de
2006, Caçando a Realidade: A Luta Pelo Realismo. Basta pensar nas várias maneiras pelas
quais uma piscada de olhos ou uma revolta nas ruas pode ser "interpretada"!
Supõe-se em geral que Weber era o mais famoso dos praticantes da "sociologia
interpretativa", refletindo o subtítulo de sua obra-prima de 1921, Economia e Sociedade:
Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Em outros lugares, Weber se identificou
explicitamente como seguidor de Dilthey. Mas, pelo menos, desde sua admirável defesa do
objetivismo ou realismo (1904), Weber tentou praticar o método científico. Em um artigo
de 1907, ele submeteu o idealismo histórico a um ataque devastador; em 1924, ele chegou a
propor uma explicação materialista do declínio da Roma antiga.
Mas voltando a Wilhelm Dilthey e a longa e estranha vida após a morte de suas
ideias. A hermenêutica, ou textualismo, emergiu das teses de Dilthey de que (1) tudo que é
social é espiritual ou cultural e (2) de que o centro da vida social é a produção e a
circulação de símbolos, que devem ser interpretados da mesma maneira que os teólogos
interpretam escrituras enigmáticas. É por isso que seus principais seguidores — Claude
Lévi-Strauss, Paul Ricoeur e Charles Taylor — sustentaram que as sociedades são
"linguagens ou linguagens semelhantes". Destarte, o estudo da sociedade deve se
concentrar no simbólico e ter como objetivo captar "significados", quaisquer que sejam. (No
alemão coloquial, Deutung [interpretação] pode denotar sentido ou intenção — uma
polissemia que facilita pular da meta de um agente para o significado de suas expressões e
ações. Da mesma forma, obscurantista é a invocação ritual de Franz Brentano da fama da
"intencionalidade", apenas porque ele confundiu "referência" ou "atinência" com
"intensão" [ou sentido, ou conotação] e "intenção" em seu sentido psicológico.)
Mas, é claro, se alguém se concentra nas palavras, e não nas necessidades básicas
nem nos interesses investidos, nunca conseguirá entender por que as pessoas trabalham,
cooperam ou lutam. Não é de admirar que a hermenêutica não tenha nada a dizer sobre as
principais questões sociais de nosso tempo, desde as guerras do petróleo ao
desaparecimento de empregos, da China até o declínio dos impérios.
A visão de Merton da ciência prevaleceu até que Thomas Kuhn e Paul Feyerabend
lançaram a sua fórmula "tudo vale!". Michael Foucault e seus seguidores (em particular,
Bruno Latour) publicaram sua própria tese: "Ciência é política por outros meios".
Figura 1. A fusão de uma ciência biológica, uma biossocial e uma social — uma clara
quebra da divisão natural/cultural decretada pelo anticientificismo.
Para ver os estudos sociais modernos da melhor maneira possível, é preciso olhar
para o trabalho de antropólogos, arqueólogos, sociólogos e historiadores de persuasão
científica. Exemplos incluem a escola de Annales, o monumental e influente American
Dilemma de Gunnar Myrdal, o inventário de peças arqueológicas feitas antes de serem
afogadas pela Aswan High Dam (Represa de Assuã) e o estudo maciço The American
Soldier. A publicação deste último trabalho, em 1949, provocou a ira da escola humanista,
mas também marcou o início da era científica da sociologia americana, com Robert Merton
à frente e a American Sociological Review como seu carro-chefe.
Muitos filósofos presumem que ciência e filosofia não se cruzam: que os cientistas
partem de dados ou hipóteses com as quais lidam sem preconcepções filosóficas. Uma
olhada na história da ciência deve ser suficiente para indicar que essa tese é um mito. Um
exame rápido de alguns problemas em aberto corroborará esse veredicto severo.
2. Lamarck estava certo, afinal? Nos últimos anos, a genética e a biologia evolutiva
foram enriquecidas como a epigenética, o mais novo ramo da genética. Isso mostrou
conclusivamente que algumas experiências, como a nutrição materna (ou negligência),
causam a metilação das moléculas de DNA, alteração química hereditária. No entanto, essa
descoberta não justificou Lamarck: apenas mostrou que o mecanismo darwiniano (variação-
seleção) vem em mais de uma versão.
3. Os animais podem estar em estados conscientes? A literatura popular, começando
com Aesop, está cheia de história sobre a consciência em animais de várias espécies. Mas as
anedotas não são dados científicos concretos. Alguns dos melhores dados foram obtidos
recentemente efetuando inativações talâmicas e corticais reversíveis — intervenções
delicadas que estão além do conhecimento dos psicólogos "humanista". Acontece que há
evidências crescentes da hipótese de que animais de várias espécies podem ser conscientes.
Figura 2. A matriz filosófica do progresso científico. De Mario Bunge, Matter and Mind
(2010).
Pseudocientificismo
É sabido que qualquer coisa pode ser falsificada. A principal razão é que os crédulos,
de longe, superam o número de céticos. Além disso, o falso costuma ser mais rentável do
que os artigos genuínos. Isso vale até para a ciência: testemunhe o sucesso comercial da
psicanálise e da medicina alternativa.
O que acontece com a ciência também ocorre com o cientificismo. O
pseudocientificismo é a prática de desfilar as pseudociências como se fossem ciências
genuínas apenas porque elas utilizam alguns dos atributos da ciência — em particular, o
uso conspícuo de símbolos matemáticos — enquanto não detêm suas propriedades
essenciais — em especial, a compatibilidade com o conhecimento antecedente e a
preocupação com testes empíricos.
Reconhecimento