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EPISTEMOLOGIA DO ROMANCE
Organização:
Grupo de Pesquisa Epistemologia do Romance
Corpo Editorial:
Prof.ª Drª. Ana Paula Aparecida Caixeta (IDA-UnB)
Prof.ª Drª. Maria Veralice Barroso (SEEDF)
Prof. Dr. Wilton Barroso Filho (TEL/UnB)
Nathália Coelho da Silva (PósLit – UnB)
Sara Lelis de Oliveira (PósLit – UnB)
Brasília
Universidade de Brasília
2018
Coordenação geral:
Dra. Ana Paula Aparecida Caixeta (IdA/VIS)
Comissão Científica:
Prof.ª Drª. Ana Paula Aparecida Caixeta (IDA-UnB) - Brasileira
Prof.ª Drª. Maria Veralice Barroso (SEEDF) - Brasileira
Prof. Dr. Wilton Barroso Filho (TEL/UnB) - Brasileiro
Comissão Organizadora:
Denise Moreira Santana (PósLit – UnB) - Brasileira
Emanulle Souza Alves da Silva (PPGM – UnB) - Brasileira
Janara Laíza de Almeida Soares (PósLit – UnB) – Brasileira
Luana Araújo Gonzaga (VIS) - Brasileira
Lucas Fernando Gonçalves (PósLit – UnB) - Brasileiro
Nathália Coelho da Silva (PósLit – UnB) – Brasileira
Priscila Cristina Cavalcante Oliveira (PósLit – UnB) – Brasileira
Sara Lelis de Oliveira (PósLit – UnB) – Brasileira
Diagramação:
Nathália Coelho da Silva (PósLit – UnB) – Brasileira
Sara Lelis de Oliveira (PósLit – UnB) – Brasileira
Projeto Gráfico:
João Paulo Coelho - Brasileiro
Revisão:
Sara Lelis de Oliveira (PósLit – UnB) – Brasileira
Arte da capa:
Ana Paula Aparecida Caixeta – (IdA/VIS)
Grupo de Pesquisa Epistemologia do Romance
CDU 82
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Wilton Barroso Filho
...........................................................................................................................................7
1
Professor associado no Departamento de Filosofia, no Departamento de Teoria Literária e nos Programa
de Pós-Graduação em Literatura e Metafísica da Universidade De Brasília. Coordenador do grupo de
pesquisa Epistemologia do Romance (CNPq/UnB).
8
Resumo: Tradução é um processo que compreende várias etapas interligadas e relacionadas entre
si por questões epistemológicas referentes à construção do saber. Quando se traduz, existem
sempre os lócus A e B, entre os quais o/a tradutor(a) intervém pela linguagem, a começar pelo
lócus A (texto de partida) até operacionalizar as metamorfoses do texto que vão desembocar no
lócus B (texto de chegada). Tradução tem a ver com conhecimento, e como esse conhecimento
organiza-se em um polo para ser modificado no outro polo. Daí a importância de termos um
percurso analítico (Antoine Berman), e entendermos a importância do continuum de conversões,
conceito cunhado por Marcos Vinícius Leite a partir da leitura do texto de Walter Benjamin, “A
tarefa do tradutor” [Die Aufgabe des Übersetzers], e desenvolvido por mim. A metodologia
propõe dois resultados: de um lado o texto da tradução e, do outro lado, o discurso sobre a tradução
que remete à epistemologia do saber.
Palavras-chave: Tradução. Epistemologia do saber. Linguagem. Antoine Berman. Walter
Benjamin.
Résumé: Traduction est un processus qui comprend plusieurs étapes toutes reliées entre elles par
des questions épistemologiques en relation avec la construction du savoir. Lorsqu’on traduit, il
existe toujours les locus A et B, parmi lesquels le traducteur intervient par le langage en
commençant par le locus A (texte de départ) jusqu’à rendre operationnel les métamorphoses
textuelles qui déboucheront sur le locus B (texte B). Traduction a á voir avec la connaissance, et
comment cette connaissance s’organise dans un pole pour être modifié sur l’autre pole. D’où
l’importance d’avoir un parcours analytique (Antoine Berman), et de comprendre l’importance
du continuum de conversions, concept mis à jour par Marcos Vinícius Leite à partir de la lecture
du texte de Walter Benjamin, “La tâche du traducteur”[Die Aufgabe des Übersetzers], et
développé par moi. La méthodologie propose deux résultats: d’un côté, le texte de la traduction,
et de l’autre, le discours sur la traduction qui renvoie à l’épistémologie du savoir.
Mots-clés: Traduction. Épistémologie de la connaissance. Language. Antoine Berman. Walter
Benjamin.
Introdução
2
Profa. Dra. Ana Helena Rossi, Atua no Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução (LET) do
Instituto de Letras da Universidade de Brasília, e nos Programas POSTRAD e POSLIT da Universidade de
Brasília. Poeta, possui um blog de poesia [https://ana-poesia-poesie.blogspot.com/]. Fundadora e Editora
da revista caleidoscópio: linguagem e tradução [http://periodicos.unb.br/ojs311/index.php/caleidoscópio].
E-mail: anahrossi@gmail.com.
9
sua metodologia, isto é, qual é a episteme que está em jogo. Então, inicialmente, vejamos
algumas definições que servirão de embasamento para a nossa discussão.
Por tradução, entende-se, aqui, não o ato técnico de alterar o código
linguístico/léxico, de uma frase, de uma expressão. Refiro-me, aqui, ao que construí na
Universidade de Brasília durante todos os meus anos de ensino e de orientação de
trabalhos acadêmicos em sala de aula, e que está objetivado nos trabalhos que orientei
(graduação e pós-graduação). Nesse sentido, tradução é processo3 isto é, a tradução
definida como um conjunto de atos (que podem ser também interpretados como sendo
individuais), mas cuja inteligibilidade dá-se no âmbito do macro, isto é, de uma
metodologia/sistematização/percurso analítico que correlaciona as distintas atividades
realizadas em vários momentos “t” da tradução. Portanto, essas atividades não são
independentes entre si, elas se redefinem umas em relação às outras dentro de um universo
que cita e correlaciona elementos e cuja base é o recorte da realidade e o que vamos
selecionar.
Tradução é também selecionar, adequar, organizar, (re)organizar, estabelecer
pontes, critérios, diferenças de percepção, imaginação, elaborar cortes, e sustentar
posições, pois, segundo Gaston Bachelard4 trata-se de conceber/imaginar/sonhar o que
está sendo traduzido, qual é o ponto fulcral do texto que será traduzido. E, para isto, está
ligado à capacidade de interpretar. Estas imaginação e criatividade embasam o ato de
tradução porque traduzir também é criar e processar, e interpretar, e selecionar, e adequar,
é também organizar, e dar a ver o recorte daquele universo. Tradução é, pois, uma
organização de elementos que identificam e sistematizam os saberes em jogo, que os re-
conhece como tal no lócus A, e, em seguida, dentro desse processo, os reformata, os
reconstrói, os ressignifica-os no lócus B. Onde estão esses saberes? O texto que é o objeto
da tradução é sempre resultado de uma cultura, de uma cosmovisão, de um ponto de vista
elaborado, de uma opção científica fruto de uma discussão, de uma poesia que re-elabora
o recorte do mundo. A ressignificação constitui uma etapa fundamental para o trabalho
de tradução. Não é possível traduzir, no sentido que opero aqui, sem uma compreensão
fina a priori do material a ser traduzido, pois trata-se de
recombinar/redistribuir/reinventar os diferentes elementos em jogo. Tradução tem a ver
3
ROSSI, Ana Helena. “Processos e experiências: pensando a tradução”. caleidoscópio: linguagem e
tradução. Vol, 2. n. 1. Junho de 2018. p.1-14
4
BACHELARD, Gaston. L’eau et les rêves: essai sur l’imagination de la matière. Paris. Librairie José
Corti, 1942, 267 pp.
10
com linguagem5, pois relaciona-se com a nomeação das coisas do mundo. A nossa
compreensão (das coisas, do mundo, e de nós mesmos) provém da linguagem, do
elemento linguístico que nos faz constituir as categorias de inteligibilidade. São estas
operações que constroem o sentido (ou não) daquilo que vivemos.
Outro conceito que trago aqui é o de episteme, no sentido desenvolvido por Michel
Foucault em seu livro Les mots et les choses6, e de maneira mais indireta em Archéologie
du savoir7 com a noção de “discurso” e de “discursividade”, levando em conta as muitas
críticas já tecidas a este conceito, cujas definições retomo aqui8. Na entrevista de Michel
Foucault com Noam Chomsky (1971), epistemologia é:
5
ROSCOE-BESSA, Cristiane. “O conceito de linguagem em Walter Benjamin e sua relação com a
tradução”. Traduzires. Vol. 4. 2013. p. 29-39.
6
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris. Gallimard.
1966, 400p.
7
FOUCAULT, Michel. L’Archéologie du savoir. Paris. Gallimard. 1969. 175p.
8
JUIGNET, Patrick. Michel Foucault et le concept d’épistème”. In: Philosophie Science et société (en
ligne). 2015. https://philososciences.com/philosophie-generale/la-philosophie-et-sa-critique/10-michel-
foucault-episteme (/philosophie-et-societe/29-philosophie-generale/-la-philosophie-et-sa-critique/10-
michel-foucault-episteme). Acesso em 01/11/2018
9
Original em francês: “saisir les transformations d’un savoir á l’intérieur à la fois du domaine généal des
sciences et, également, à l’intérieur du domaine en quelque sorte vertical que constitue une société, une
culture, une civilisation à un moment donné.”
10
Original em francês: “Il ne sera pas question de connaissances décrites dans leur progrès vers une
objectivité dans laquelle notre science d’aujourd’hui pourrait enfin se reconnaître; ce qu’on voudrait
mettre au jour, c’est le champ épistémologique, l’épistèmè où les connaissances envisagées hors de tout
critère se référant à leur valeur rationnelle ou à leurs formes objectives, enfoncent leur positivité et
11
Esta pesquisa inicia-se a partir da minha atuação como tradutora, e toma corpo no
âmbito da minha atuação na Universidade de Brasília, desde março de 2011, como
professora no Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução do Instituto de Letras
da UnB, atuando em sala de aula, orientando monografias de fim de curso (TCC),
manifestent ainsi une histoire qui n’est pas celle de leur perfection croissante, mais plutôt celle de leurs
conditions de possibilité.”
11
KRISTEVA, Julia. Le génie féminin 1. Hannah Arendt. Paris. Fayard. 1999. p. 9. Traduzido por mim a
partir do original a seguir: “(...) une oeuvre enracinée dans la biographie de leur expérience.”
12
Traduzido do original por mim, a seguir: « Il soutenait que seule l’expérience, et non l’apprentissage
dans les livres, permettait véritablement de savoir soigner. En apportant une perspective alchmique à
l’étude de la vie et de la médecine, Paracelse a participé à l’unification des sciences ». in : Richard Aline,
Le Meur Hélène. Les grandes controverses scientifiques. Paris. Dunod. 2014, pp. 2-5.
13
CHEMLA, D., ABASTADO, P. « Vésale, Paré et Paracelse : trois figures médicales majeures de la
Renaissance ». in La lettre du cardiologue – Risque Cardiovasculaire. n. 428. outubro de 2009. p. 35.
12
Para tornar essas escolhas referentes ao texto mais conscientes por parte dos alunos,
sistematizei esses critérios nos seguintes pontos abaixo:
13
1. O texto a ser escolhido deve ser um texto clássico, conhecido, datado e com uma história.
2. O texto deve ter sido publicado por uma editora/site/arquivo identificáveis como prova de sua
existência.
3. Não são aceitos textos de própria autoria.
4. Deve ser escrita uma justificativa, isto é, identificar o conjunto de leis internas que regem esses textos.
A justificativa é um texto redigido e formalizado com parágrafos estruturalmente coerentes entre si. Essa
demanda trouxe a primeira grande dificuldade para os alunos: o que é justificar o texto? Como estruturar
um parágrafo? O que é um parágrafo?
Nas minhas experiências em sala de aula, a grande maioria dos alunos da graduação
chegava em sala de aula com a ideia firme e forte que eles iam “passar” o texto de uma
língua para outra, não importando se era tradução ou versão. Nessa lógica, o que existia
no texto A (texto de partida) existia também o texto B (texto de chegada). Vários
pressupostos embasavam essa visão dos alunos. Um deles é que as línguas funcionariam
de maneira simétrica. Portanto, era só “passar” de uma língua para a outra com a ajuda
dos dicionários na procura de palavras fragmentadas, desconectadas do seu contexto
textual. Tal concepção da tradução é mais comum do que se pensa. Nesta visão, a tradução
consiste em um ato de “passagem”. Desconsiderava-se, portanto, o recorte semântico,
visual, sonoro (verbivocovisual, segundo a poesia concretista) do léxico, a etimologia da
palavra.
Essa compreensão da não-simetria das línguas não foi algo adquirido a partir da
leitura de textos. Isso veio de minha própria experiência de ter entrado em contato, desde
muito cedo, com várias línguas, de famílias linguísticas diferentes. A língua é um corpo
social, ativado pelo coletivo, aprendida com o coletivo. Se somos seres falantes de
língua(s), é porque fomos socializados na prima infância e posteriormente para falar a(s)
línguas, para moldar a nossa garganta e falar sem sotaque durante anos de aprendizado
para chegarmos ao que parece ser, hoje, familiar e óbvio. Mas isso nós já esquecemos.
Essa proposta de tradução nos faz adentrar novamente nesses terrenos complicados da
nossa experiência linguística. Lembro-me, sempre, o meu perfeito estranhamento quando
aprendi, aos 10 anos de idade, na Bélgica, onde morava com a minha família, que a língua
flamenga possui o “neutro”, e que o particípio passado era colocado no final da frase. Isso
coloca uma outra atenção para o interlocutor, pois trata-se de prestar atenção ao verbo
que aparece no final. Esse estranhamento orientou-me para as idiossincrasias das línguas,
suas sobrevivências, suas dimensões nunca imaginadas em outra língua. Porque língua é
cultura, e organização de conhecimento, como afirma Aryon Rodrigues:
14
ROSSI, Ana Helena. “Entrevista com o Prof. Dr. Emérito Aryon Dall’Igna Rodrigues por Ana Helena
Rossi, Traduzires, n. 2, Dezembro de 2012, p. 127.
15
Assim, cada língua constitui-se em um lócus com suas idiossincrasias, sua história,
suas estranhezas que cotejam o conhecido, e o conhecido coteja o estranho.
Então, voltando ao nosso problema do percurso metodológico, qual a relação entre
as línguas do par linguístico escolhido? De fato, trata-se de dois lócus de estranhamento,
dois lócus que interagem, dois lócus com os quais o aluno deve lidar compreendendo essa
estranheza que acompanha o familiar, construindo uma interação que se espera a mais
consciente possível. Lócus, palavra latina, é um local específico16 que conjugo com os
afetos. Toda língua contém elementos estranhos, cuja definição segundo o dicionário é:
Essa série de exercícios iniciais para definir o texto fizeram imergir dúvidas
profundas. Estávamos prontos para iniciar o trabalho de tradução como processo.
O processo tradutório é tudo, menos linear. Ele tem seus vai-e-vem, e não é
constituído por categorias herméticas entre si. Em razão da complexidade da tarefa
tradutória, e de seus inúmeros labirintos, a questão central é registrar o que está sendo
feito na tradução, a historicidade das soluções, seus erros e acertos, suas dúvidas. Sem
esse registro/memória/diário/comentários, esse conjunto de paratextos que se constitui no
15
ROSSI, Ana Helena, “Entrevista com o Prof. Dr. Emérito Aryon Dall’Igna Rodrigues por Ana Helena
Rossi, op. cit., p. 130.
16
Dicionário PRIBERAM, https://dicionario.priberam.org/lócus. Acesso em 01 de novembro de 2018.
17
Dicionário PRIBERAM, https://dicionario.priberam.org/estranho. Acesso em 01 de novembro de 2018.
16
Reflexivo, pois, remete a fazer uma nova “flexão”, dobrar, inclinar, recomeçar o
movimento de compreensão do erro, do acerto. Assim, ser um tradutor reflexivo significa
ser um tradutor em um constante movimento de fazer novamente a flexão, isto é, voltar
ao texto original, voltar às versões anteriores, aos comentários, mais uma vez, e mais uma
vez, ler de novo a primeira versão, a segunda, a terceira, para compreender as
escolhas/alterações feitas na segunda, na terceira versões e demais, a fim de produzir um
conhecimento sobre a tradução. Nesse tipo de trabalho, temos dois resultados: (1) o texto
traduzido, como também (2) o material crítico/discurso sobre a tradução que é também
um conhecimento, e que faz parte da pesquisa. Na pesquisa, para ter sobre o que refletir,
é preciso ter dados coletados, saber organizá-los, sistematizá-los, para analisa-los,
interpretá-los, e termos um resultado da pesquisa. Nesta etapa do trabalho, foi
fundamental o conceito de continuum de conversões cunhado por Marcos Vinícius Leite19
partir da leitura de Walter Benjamin, e desenvolvido por mim no âmbito deste e de outros
trabalhos. Entende-se, por continuum de conversões, os infinitos estados do texto no
decorrer da tradução. Mais concretamente, trata-se de cada uma das versões/traduções
obtidas a partir desse percurso analítico. Esse conceito explicita uma das características
fundamentais da linguagem que é a sua infinita plasticidade. Portanto, o conceito
estabelece uma relação entre os diferentes estados de concretude do texto que podem ser
organizados em termos temporais, estabelecendo a cronologia do processo de tradução.
O continuum de conversões identifica o processo tradutório. Registrando suas etapas,
analisando-as, não como partes separadas e independentes umas das outras, mas como
partes de um todo que se inicia no lócus A e termina, provisoriamente, no lócus B, eu
(tradutor/a) tenho a dimensão macro e a micro conjugadas. Entre o lócus A e o lócus B
18
Dicionário PRIBERAM, https://dicionario.priberam.org/reflex%C3%A3o. Acesso em 01 de novembro
de 2018.
19
LEITE, Marcos Vinícius. “A estrutura da linguagem em Walter Benjamin”. Revista Ética e Filosofia
Política. Nº 12. Volume 1. Abril de 2010. p. 11-23
17
20
Dicionário PRIBERAM, https://dicionario.priberam.org/experiência. Acesso em 01 de novembro de
2018.
18
1. das características da linguagem do texto de partida – lócus A - (estruturas sintáticas, léxicos, campos
lexicais, expressões idiomáticas, ideias, etc.);
2. do que deve ser estar estruturado/recombinado no texto de chegada – lócus B - (estruturas sintáticas,
léxicos, campos lexicais, expressões idiomáticas, ideias, etc.);
3. da relação que une os dois textos, de suas leis de funcionamento – lócus A e -B;
4. da(s) sua(s) (in)competência(s) de tradutor; e o que deve ser feito para ultrapassá-las;
5. sobre o que está sendo construído na tradução, em termos macro, a partir das escolhas tradutórias, e
que eu chamo de projeto de tradução. É o momento do que chamo do “confronto do/a tradutor(a) consigo
mesma, e não apenas com a imagem que ele/ela tem de si.”
21
CLASTRES, Pierre. Le grand parler: Mythes et chants sacrés des Indiens Guarani. Paris. Seuil.
1974. 140 p.
22
CLASTRES, Pierre. Le grand parler: Mythes et chants sacrés des Indiens Guarani. Paris. Seuil.
1974. 14-15p. [Original: “Traduire est, bien sûr, tenter de faire passer dans un univers culturel et
linguistique déterminé, la lettre et l’esprit de textes issus d’un système culturel différent, produits par une
pensée propre. Lorsque, comme dans les mythes, le texte est une narration d’aventures, la traduction ne
pose guère de problèmes. L’esprit colle à la lettre, l’énigme est à peu près exclue du récit. Plus ardu, et
pour cela sans doute passionnant fut le travail de traduction des textes religieux. (...) Parti pris donc
délibéré que le nôtre: soucieux de nous écarter le moins possible de la lettre du texte, nous avons par là
même essayé d’en restituer l’esprit, estimant, pour paraphraser une affirmation fameuse, que traduire les
Guarani, c’est les traduire en guarani. Traduction presque toujours littérale, par conséquent (...). Fidélité
à la lettre en vue d’en conserver l’esprit, et peut-être, pour certains fragments, une apparence
d’obscurité.”]
20
Conclusão provisória
23
BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou o albergue do longínquo [La traduction et la lettre ou
l’auberge du lointain]. [tradutores Marie-Héléne Catherine Torres, Mauri Furlan, Andréa Guerini],
NUPLITT/7Letras. Rio de Janeiro; BERMAN Antoine. Pour une critique des traductions: John Donne.
Paris, Gallimard. 1995. 275p.
21
da posição de falar da sua tradução a partir de elementos esparsos sem amálgama entre
si. Como observa Antoine Berman:
24
BERMAN, Antoine. “A tradução e seus discursos”. Alea. Volume 11. número 2. Julho-Dezembro de
2009. p. 341-353
22
25
BENJAMIN, Walter. “A tarefa-renúncia do tradutor” [trad. Susana Kampff-Lages]. in Castello Branco,
Lúcia (org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin – quatro traduções para o português. Belo
Horizonte. Fala/UFMG, 2008, p. 66-81.
26
RAULET, Gérard. “L’atelier du traducteur. Benjamin et les Tableaux parisiens ». Revue italienne
d’études françaises [online]. 4. 2014, http://journals.openedition.org/rief/656. Acesso em 30 de agosto de
2018.
27
BENJAMIN, Walter. “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” in Escritos sobre
mito e linguagem (1915-1921), [Organização, apresentação e notas Jeanne Marie Gagnebin; Tradução
Susana Kampff Lages e Ernani Chaves], São Paulo: Livraria Duas Cidades/34 editora, 2011, p. 55.
23
Referências
BACHELARD, Gaston. L’eau et les rêves: essai sur l’imagination de la matière. Paris:
Librairie José Corti, 1942, 267 pp.
________________. Pour une critique des traductions: John Donne, Paris, Gallimard,
1995, 275p.
CHEMLA, D., ABASTADO, P., « Vésale, Paré et Paracelse : trois figures médicales
majeures de la Renaissance », in La lettre du cardiologue – Risque Cardiovasculaire,
n.. 428, outubro de 2009, p. 35.
CLASTRES, Pierre. Le grand parler: Mythes et chants sacrés des Indiens Guarani,
Paris, Seuil, 1974, 14-15p.
__________________. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines,
Paris, Gallimard, 1966, 400p.
ROSSI, Ana Helena. “Entrevista com o Prof. Dr. Emérito Aryon Dall’Igna Rodrigues por
Ana Helena Rossi, Traduzires, n. 2, Dezembro de 2012, p. 127.
O contexto
A reflexão que aqui se propõe tem na Estética um olhar basilar, pautado em aspectos
de relações sensíveis do ‘ser no mundo’29. Assumidamente, é também um texto nascido
nas trincheiras da Epistemologia do Romance, fazendo parte de uma trajetória reflexiva
importante no que diz respeito aos debates sobre epistemologia, arte e, consequentemente,
educação. Este campo, por sua vez, embora não seja o cerne de conceitos a dar conta das
principais nuances das discussões aqui evocadas, é um eixo norteador, pois denuncia o
cunho pedagógico inerente às perspectivas da Estética enquanto possibilidade de
conhecimento na obra de arte. De outro modo, podemos dizer que este texto traz consigo
um gesto dialógico entre as questões de epistemologia do romance (enquanto teoria
complexa) e artes visuais, debatidas em uma perspectiva que se propõe pedagógica;
principalmente porque os empreendimentos aqui fomentados são claramente oriundos de
reflexões intensificadas por experiências em sala de aula, com cursos da graduação e pós-
graduação30.
Apontamentos para uma estética epistemológica nasce como ponto de partida para
um novo olhar acerca das possibilidades de conhecimento na arte, baseando-se em um
28
Doutora e mestre em Literatura (UnB); formada em Letras e Artes Plásticas. É Professora adjunta do
Departamento de Artes Visuais da UnB. E-mail: caixetaanapaula@unb.br
29
Embora a noção de “ser o mundo” seja cerne das reflexões fenomenológicas de Heidegger (Ser e Tempo,
publicado em 1927), não é tarefa deste pequeno texto adentrar-se nesse discurso. A ideia aqui evocada
esboça uma compreensão simplificada de que o ser no mundo é um ser concreto; é um ser de relações
efetivas com as coisas que o circundam.
30
Em caráter de estágio docente, junto ao Prof. Wilton Barroso Filho, coordenador do grupo Epistemologia
do Romance, vários cursos de estética foram ministrados, rendendo-nos reflexões importantes quanto a este
campo da filosofia. Como professora adjunta, ministrei duas disciplinas que fortaleceram o debate aqui
empreendido.
26
olhar contextual, comparatista e norteado por ações filosóficas como ação reflexiva
acerca das problemáticas oriundas do campo da estética. As discussões sobre estética
transitam em nossos debates de grupo31 desde o início, com os esforços empreendidos
ainda nos esboços de uma epistemologia do romance, pensada por Wilton Barroso. Essas
reflexões conduziram-nos a um novo eixo disciplinar (enquanto campo de
conhecimento), para dar conta de questões próprias do fazer romanesco, atentando-nos,
então, para reflexões de uma epistemologia com sensibilidade estética.
Ao longo da trajetória do grupo, a Estética ganhou escopo como eixo norteador da
ideia de se “decompor” uma obra a fim de compreender quais elementos fazem parte de
seu processo constitutivo. Elementos estes que ganham uma forma por meio de gestos
criativos do sujeito que cria, próprios do universo da Arte e, consequentemente, da
Estética. Desse modo, fica evidente que nosso percurso, embora se proponha
epistemológico enquanto ação por busca de elementos de conhecimentos na obra de arte,
ele é genuinamente estético: pelo processo inicial de relação entre sujeito/objeto, ou,
pensando por uma perspectiva maffesoliana (SILVA et al, 2010):
sujeito/fenômeno/forma. A esse fenômeno, nós chamamos de efeito estético; ou seja, pela
busca de consciência sensível do que essa relação (no caso sujeito/obra de arte) promove,
é que se propõe pensar o que os atravessa como aspecto de efeito. Seria nesse movimento
de investigação de questões da ordem da sensibilidade que tratam os esboços para uma
estética epistemológica.
Já é consenso em nossas pesquisas que o estético existe como uma necessidade do
epistemológico. Ou seja, a Estética, enquanto uma “ciência da sensação”
(BAUMGARTEN, 1996), é responsável por pensar questões que afetam a sensibilidade
do sujeito. Isso nos faz assumir um lugar de fala: o lugar da reflexão estética, promovido
por um leitor da obra de arte que se propõe perverso (BARROSO e BARROSO, 2018),
diferente do lugar da criação ou simples fruição, cujos debates acerca de Poética vs.
Estética ainda pairam num problemático movimento sinonímico.
Para nós, é muita cara essa diferenciação, pois é no assumir um olhar de pesquisador
(enquanto sujeito curioso e inquieto com os efeitos estéticos que circundam o sujeito no
mundo e não um sujeito de academicismos doutrinários), que se pode compreender
elementos de conhecimento no espaço da arte; justamente porque será por meio desse
olhar atento que o leitor perverso buscará formas de compreensão acerca das sensações
31
O grupo Epistemologia do Romance foi oficialmente cadastrado no CNPq em 2011, mas já trazia
discussões em artigos e dissertações desde 2003.
27
provenientes entre sujeito/obra de arte. Mais do que isso: não é um gesto de autorreflexão
somente, em que o sujeito pensa sua experiência de efeito estético, proveniente de seu
contato com a arte. Mas é um gesto de reflexão acerca do outro e dos movimentos que os
processos de efeitos estéticos causam nesse outro, em sua cultura, em seu contexto, em
seu lugar de fala32.
Colocando a estética como ponto integrante de possibilidades de conhecimento, ou
seja, por garimpar em um solo epistêmico, compreendemos que, buscar formas de
entendimento daquilo que afeta o sujeito é também uma forma de conhecimento. Não um
conhecimento preocupado com verdades absolutas. Mas um conhecimento pautado em
elementos próprios da condição humana, reverberados por meio da forma da arte.
Portanto, volto à ideia de uma epistemologia da sensibilidade, já esboçada por Bachelard,
em A psicanálise do fogo (2008), bem como por Maffesoli, em Elogio da razão sensível
(2008).
Essas discussões, porém, não nascem do puro gesto fruitivo. No âmbito acadêmico
da arte, é recente a pesquisa em arte no Brasil enquanto modus científico (ZAMBONI,
1998), haja vista que Arte (colocando-a em maiúsculo) não é lógica nem ciência – o que
para nós nunca esteve em questão. Contudo, é pelo gesto reflexivo daquele que contempla
a arte, em especial, daqueles que pensam os fenômenos sensíveis provenientes dos
processos contemplativos da arte, que se encontra um pesquisador da epistemologia do
romance.
Dito isso, podemos compreender que nosso olhar, para além do romance, ao se
assumir um olhar estético (ou seja, sensível àquilo que a forma e conteúdo provocam),
assume-se enquanto um olhar acerca de tudo aquilo que circunda o universo das artes,
sensível por natureza. Portanto, para nós, nosso movimento de pesquisar conhecimento
em arte pressupõe uma teoria complexa, operada por modos comparatistas (Artes, Letras,
Filosofia, História), de modo que, quanto maior nosso movimento de leitura da obra e
possibilidade de comparação (enquanto forma de entendimento), mais elementos
estéticos denunciam os conhecimentos possíveis no objeto, bem como sua natureza.
Feita essa contextualização, encaminho minha fala para pensarmos a Estética
epistemológica como possibilidade de se conhecer através das relações sujeito/objeto,
provocadas por percepções sensíveis.
32
Aqui, pensa-se em lugar de fala enquanto uma postura ética, do modo como aponta Djamila Ribeiro, em
O que é lugar de fala? (2017). Enquanto postura ética, o olhar acerca do lugar de fala confronta
dialeticamente com a estética.
28
Para um leigo, que não conhece o trabalho de Lígia Clark nem de Schwartz,
tampouco lida com debates acerca da forma da arte enquanto performance, fica difícil,
em um primeiro movimento, lidar com os efeitos que esta obra provoca. Seja pela nudez,
ainda um tabu social quanto às questões do corpo ligadas ao sexo, à sexualidade e ao
sexismo, seja por uma moral externa à obra, que interfere, como um tipo de conhecimento
a priori (ou seja, como uma verdade universal), no modo de relação com este objeto de
arte. Isso leva o espectador, no caso, o interator, a reagir negativamente por meio de gestos
de censura: ‘não se pode ver nem tocar um homem nu; não se pode ver nem tocar um
homem nu, especialmente, uma criança, pois isso é imoral, é pedofilia, é violência’
(utilizando as afirmações movimentadas pelas mídias televisivas e sociais virtuais).
É preciso observar que, para além do reducionismo da moralidade, existe um
sintoma de cerceamento que antecede qualquer reflexão. Também evoca uma
mobilização curiosa entre arte contemporânea e ‘arte para as massas’, haja vista que o
público de uma arte que se propõe pós-moderna é reduzido a um nicho específico – seja
pela carência de espaços culturais e artísticos fora dos grandes centros urbanos, seja pela
carência formativa acera de questões ligadas às novas formas subjetivas da arte. Contudo,
antes de criar um embate raso sobre os que entendem de arte X os que não entendem de
arte (a dicotomia entre o sujeito acadêmico, culto X sujeito comum, popular), precisamos
nos perguntar: por que essa obra causa efeitos estéticos que levam o sujeito a querer negá-
la, apaga-la, silenciá-la?
Kant nos provoca a buscar conhecimento por meio de perguntas. E a arte
contemporânea é um espaço tomado por elas. Não faz parte da arte, hoje, dar respostas
(históricas, pontuais, fechadas, simbólicas, representacionais, figurativas). Ela não tem
compromisso com a forma, com o ético, com a moral, com o universo político ou
ideológico. Esse é seu princípio de autonomia (KANT, 2010); contudo, ela é fisgada pelo
princípio de heteronomia que faz da arte também reflexo de questões existentes por
contextos a priori, como as leis, por exemplo. Desse modo, nosso gesto metafísico está
33
Informações disponíveis em: http://infoartsp.com.br/noticias/entenda-a-polemica-da-performance-de-
wagner-schwartz-no-mam/
31
em compreender como esse “a priori” acaba por sucumbir a relação da obra de arte, por
uma heteronomia, a determinações lógicas do campo da moral, por exemplo. E,
retomemos, não é a lógica nem a moral espaço para compreensão/definição da arte.
Portanto, o que se evoca aqui é: ao observar a performance de Schwartz e
provocados por perguntas de conhecimentos, como: o que eu posso saber sobre essa obra
e em que ela afeta o sujeito?, tal como nos põe a pensar Kant (2015), criar-se-ão condições
de buscar elementos de conhecimento, cujas reflexões levarão a conhecer dados que
fazem parte do processo constitutivo da obra, promovendo alterações de pensamento para
além do que o simples efeito estético provoca. Ou seja, não está em questão se se gosta
ou não de performance ou se essa obra é ou não ofensiva do ponto de vista moral,
religioso, etc. O que está em questão é: como, a partir dela, é possível lidar com questões
que estão intrínsecas ao nosso modo de pensar o corpo e a relação com o corpo, por
exemplo. Ou, em outra perspectiva, é possível pensar como a arte ocupa espaços
privilegiados, cujas discussões levam a reflexões filosóficas que, lamentavelmente, não
estão em todos os contextos culturais e formativos.
Sendo assim, podemos entender, aqui, que a percepção sensível é uma ação
primária do conhecer as coisas sobre si e o outro, mas, por ser primária, é importante que
esta etapa seja ultrapassada por outras etapas de entendimento. Isso leva a pensar que, se
é possível elencar possíveis etapas de entendimento da obra de arte – não como método
interpretativo ou modelação de forma de aprendizagem, mas como caminhos para se
ultrapassar questões do efeito estético –, pode-se promover, junto a ações educativas em
artes, um gesto estético, filosófico por natureza, que incitará a pensar a arte como espaço
de conhecimento.
Uma estética que propõe epistemológica é uma estética preocupada com o
conhecer. Enquanto ação educativa, caberá a ela provocar relações de maior movimento
fruitivo, no sentido do deleite e da apreciação, cujos esforços permitirão demorar-se
diante do objeto de arte. Esse processo fruitivo de demora faz emergir noções conscientes
do efeito estético provocado pela arte, em que se altera o contexto da pura sensação em
direção a perguntas que nortearão meios interpretativos de entender ou aproximar de um
entendimento contextual (Por que? De onde vem? Quem fez? O que eu sinto ao observar
isso?). Consequentemente, prosseguimentos dessa natureza levarão a possibilidades de
conhecimento a partir da experiência com a arte.
32
Considerações
Referências
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.
DUVE, Thierry de. Kant depois de Duchamp. Revista do mestrado em História da arte
33
ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas, SP:
Autores Associados, 1998.
34
Resumo: Publicado no ano de 1957, El pez de oro, de Gamaliel Churata, é considerado a bíblia
do indigenismo peruano não só pela extensão que possui, mas porque sua classificação tem sido
um grande problema para os pesquisadores. O texto transitaria entre o romance, a poesia, o teatro,
a música, o carnaval andino (pukllay), o delírio xamânico (laykhakuy), etc. e, nesse sentido, nos
apresenta um evento no qual podem ser percebidos dois objetivos. O primeiro está relacionado
com a desterritorialização do espanhol e as formas genéricas da tradição ocidental. Isso permite,
em segundo lugar, a apresentação de uma estética distinta à do colonizador. Em outros termos, a
luta que se estabelece no texto com as palavras (λογομαχία), as incrustações do quéchua e aymara
respondem à necessidade de traduzir uma ontologia divergente da hegemônica.
Palavras-chave: Estética. Tradução. Epistemologia. Pensamento ameríndio. Gamaliel Churata.
1. El pez de oro
34
Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-
mail: octaviomermao@gmail.com.
35
Mesmo assim, nós tentaremos nomeá-la, mas sem nenhuma intenção pertencente aos
parâmetros contra os quais o livro lutaria: os parâmetros ocidentais.
Um dado interessante deste texto responde à questão da sua feitura. O autor
demorou aproximadamente trinta anos em acabá-la e sua aparição no panorama das letras
peruanas representou uma tarefa inalcançável para as capacidades hermenêuticas da
intelligentia peruana dos começos da segunda metade do século XX. Poderíamos dizer,
sem temor a errar, que a criação literária no Peru sempre esteve um passo além dos
críticos. Nesse sentido, é importante fazer duas observações.
Em primeiro lugar, El pez de oro é um texto que depende muito dos anos prévios a
sua aparição no tocante aos movimentos artísticos da vanguarda, especialmente com o
surrealismo. O mesmo Churata, inclusive, debateu com César Vallejo sobre a importância
deste movimento artístico para a produção estética da América Latina. Somado a isso, as
transformações socioeconômicas do altiplano peruano foram fundamentais para criar um
espaço de efervescências do qual o escritor não esteve excetuado.35 Em segundo lugar, o
substrato epistêmico da obra será a linha de fuga que guiará o seu movimento fora da
episteme do pensamento do colonizador. Nesse sentido, não se apresentaria uma
dependência, em El pez de oro, do surrealismo, mas um transcender do mesmo, porque o
que Churata faz é sondar os limites desta corrente em prol de permitir falar a voz ou vozes
de um pensamento outro.36
Como pode se observar, a obra da qual falamos desbordaria a ideia de representação
pela variabilidade caleidoscópica que apresenta: não seria uma obra, senão muitas obras
ou muitas dobras de experimentação estética. Além da multiplicidade de personagens
teríamos uma multiplicidade de espaços nos quais estes poderiam habitar. Por outro lado,
tentaria se afastar das suas influências externas até subsumi-las em um marco distinto de
compreensão e interpretação. Em outros termos, Churata aproveitar-se-ia das potências
estéticas ocidentais. Finalmente, o tempo que tomou escrever este “peixe” permitir-nos-
ia afirmar que este produto estético é um work in progress e por essa razão deveria se
fazer muita ênfase na sua proposta de movimento. Sem dúvida, estas questões têm
semelhanças com O Guesa do genial Sousândrade, já que as pautas de ambas as obras
apontariam, finalmente, a um plano de aproximação da realidade do nosso continente.
35
Elizabeth Monasterios (2015) e Juan Ulises Zevallos (2013) fazem um aporte imprescindível para
compreender o tempo de Churata.
36
Marco Thomas Bosshard faz uma análise detalhada do surrealismo e certas influencias deste fora da
Europa no seu livro, presente na bibliografia, Churata y la vanguardia andina (2014).
36
2. O problema da tradução
para se referir a este acontecimento (2014, 2010). Para dizê-lo de outra forma, o que se
opera em El pez de oro é a expressão das formas do afora do pensamento europeu.
Poderíamos chamar este evento estético como um de tipo crítico, já que desestruturaria
formações estratificadas para permitir emergir uma enorme diversidade de vozes a partir
do que se entenderia do conceito de relação no pensamento ameríndio: a ampliação de
laços subjetivos. Face a esta modalidade encontrar-se-ia o naturalismo ocidental ou a
denominação e dominação dos objetos do cosmos37.
O que se intentaria propriamente expressar/traduzir? Um conhecimento outro do
ser. Quais são as características deste? Fundamentalmente a imanência, a continuidade da
vida e a partilha generalizada ou ampla desta que permitiria uma comunhão dos viventes
do cosmos. O princípio reitor do livro mostra duas chaves: 1) o descobrimento da
perenidade da vida e a ficção da morte e 2) a fertilidade como seu imperativo categórico.
Melhor vermos uma passagem de El pez de oro:
Como se pode ver, vida e beleza são compreensíveis somente na encarnação.38 Isto
implica que o pior inimigo do pensamento que procura expor Churata é Platão, já que El
pez de oro erige-se contra a transcendência e as procuras ascendentes. Pior ainda, o
chamado da fertilidade propõe invadir o espaço, abrir as portas ao plural. Agora adquire
mais sentido a teatralidade do texto, posto que esse estaria habitado por uma grande
quantidade de seres que não dependem nem do antropomorfismo nem do
antropocentrismo.39 Os personagens principais são o Peixe de ouro, o seu pai, o Puma de
ouro e sua mãe, a Sereia do lago Titicaca. Também temos peixes de prata, lhamas,
37
Para uma visão panorâmica deste assunto é imprescindível consultar a questão das quatro ontologias
gerais que existiriam no planeta, segundo Philippe Descola (2012). Destas quatro, duas são do nosso
interesse e sua relação é inversamente proporcional: o animismo, relacionado com os povos ameríndios e
o naturalismo, relacionado com os europeus. Por outro lado, e como complemento teórico detalhado e
arriscado é importante consultar o naturalismo e perspectivismo ameríndio proposto por Eduardo Viveiros
de Castro em seu livro Metafísicas canibais (2015).
38
O conceito da vida e da carnalidade que expõe Churata tem muitas similitudes com a proposta do filósofo
francês Michel Henry (2018). No entanto, o escritor peruano vai mais além, já que não se interessaria
somente pelo humano.
39
Talvez, por este motivo, Miguel Ángel Huamán (2013) não aceite dizer que o texto é uma carnavalização
de tipo europeu, mas de tipo andino ou pukllay.
38
cachorros, vicunhas, nuvens, ventos, toda uma serie de entes que deixam de lado o
humano, personagem que também se encontra na lista, claro está, para demonstrar que a
existência não teria como regente ao homem. Por fim, estes deslizamentos nos
conduziriam a exposição de uma forma outra de organizar as existências.
Pode observar-se também que a remissão à questão de uma ontologia que permite
a habitação do livro, desterritorializa este, devido a que passaria a ser um meio complexo
de expressão que não contemplava plenamente estas capacidades. O livro converte-se em
um território novo e, por que não, sagrado. É importante mencionar, neste ponto, que o
subtítulo de El pez de oro é “Retábulos de laykhakuy”. No Peru, o retábulo é um objeto
que possui certas caraterísticas sacras, mas o destaque que nós queremos fazer é sua
proposta de simultaneidade. Como no teatro barroco, o mundo teria níveis e eles não
estariam divorciados. A interação infinita seria o signo do livro como revelação do
mundo. Algo muito parecido com a proposta que fazem Deleuze e Guattari, na primeira
parte de Mil platôs: “Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas,
organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais”
(2014, p. 22-23). É isso o que faz o texto, propor uma lógica de diálogo generalizado.
Assim, até as palavras encontrariam um limite, posto que os animais, as plantas, a
geografia e os espíritos têm uma participação política que deve ser atendida e negociada.
Neste ponto, poderia se fazer uma objeção importantíssima. A língua, na qual se
escreveu El pez de oro é o castelhano, a língua do invasor, a língua do inimigo. Por que
não escrever na língua nativa, nas suas próprias potencias criativas? Uma hipótese poderia
ser a seguinte: deve-se destruir desde dentro as capacidades da língua de poder,
demonstrar que é limitada e que esses limites têm que ser explicados a partir de língua
vencida.40 Cremos que só levando até a loucura os modos de expressão do colonizador é
possível afirmar a singularidade das formas ameríndias. Mas, como se consegue
esclarecer esta proposta? É necessário chegar a um último ponto.
3. A fuga
Nós deixamos sem explicar uma palavra chave faz linhas acima. Imaginamos que
se criou um vazio, porque além de ser um termo aymara, é um neologismo dessa língua.
40
O paradigma Deleuze-guattariano deste fenómeno é Kafka (2002), devido a que este era judeu, checo e
escrevia em alemão. Isto quer dizer que ele minava as estruturas por dentro e deste modo criava uma nova
forma expressiva.
39
A ideia é reconhecer no Peixe de ouro uma nova forma, através da qual deve ser
entendido o humano. E esta renovação ou modificação é total, porque implica uma nova
universalidade, uma nova territorialidade, um novo vitalismo, cosmos, estética, beleza,
plenitude, reprodução ou erótica. Como pode ser olhar, o projeto de Churata é muito
abrangente e, por que não o dizer, impossível.
Mas, como tentar traduzir a variedade, a variação mesma; o animal, o vegetal, por
exemplo? Através de um delírio, no qual prima a língua próxima a processos de
40
Referências
DELEUZE, G. El saber: Curso sobre Foucault. Tomo 1. Buenos Aires: Cactus, 2013.
______. El poder: Curso sobre Foucault. Tomo 2. Buenos Aires: Cactus, 2014.
______. La subjetivación: Curso sobre Foucault. Tomo 3. Buenos Aires: Cactus, 2015.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: Para una literatura menor. Madrid: Editora
Nacional, 2002.
______. Mil platôs: Vol.1. 2da Edição. São Paulo: Editora 34 Ltda., 2014.
______. Mil platôs: Vol.4. 2da Edição. São Paulo: Editora 34 Ltda., 2012.
41
DESCOLA, P. Más allá de naturaleza y cultura. Trad. Horacio Pons. Buenos Aires:
Amorrortu, 2012.
41
Doutoranda em Literatura e Representação pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura pela
Universidade de Brasília. E-mail: daysermuniz@gmail.com
43
negras naturalmente ocuparão um lugar de maior desvantagem, pela natureza dupla das
opressões que sofrem, chamadas de colisões pela teórica feminista negra Kimberlé
Crenshaw (2004, 12).
Nesse sentido, a busca por representações dignificantes e não estereotipadas de
populações negras, cara aos feminismos negros e aos estudos pós-coloniais, funciona
como um mecanismo que busca desmantelar a lógica patriarcal e racista. Essa necessidade
é corroborada pela feminista negra bell hooks, que encara a prática de (re)ssignificação
representativa como uma luta central na luta contra os preconceitos.
iniciativa de autoras negras como a própria Chase-Riboud, Toni Morrison e Alice Walker,
nesse sentido, segue o pressuposto de que “o papel da literatura na produção da
representação cultural não deve ser ignorada” (SPIVAK, 2017, 580). Ainda segundo
Spivak, esse papel de representação precisa ser problematizado para além das questões
de gênero, contemplando também o cerne sexista e imperialista das práticas discursivas.
Em outras palavras, a condição feminina e negra precisa ser pensada a partir de uma
desconstrução dupla e interseccional, já que, como denuncia hooks, “a existência de
mulheres negras na cultura da supremacia branca problematiza, e torna complexa, a
questão geral da identidade e da representação femininas” (HOOKS, 2017, 498).
Aprendemos em de Sally Hemings que a pequena Sally, então com quatorze anos,
vai para Paris com o propósito de acompanhar as filhas de seu senhor. Um pouco depois
de sua chegada, é estuprada42 por ele, ficando grávida pela primeira vez. Em meio ao
desespero da descoberta da gravidez, Hemings chega a fugir do palácio em que morava,
sonhando com a liberdade em terras francesas. No entanto, a falta de perspectiva a
convence a voltar para casa. Que opções teria uma mulher negra, que não sabia nenhum
ofício, com uma criança nos braços? Essa observação é feita por Adrien Petit, empregado
e amigo de Jefferson que o acompanhou por quase toda a vida política: “Sally Hemings
passou a tarde de Natal segurando uma criança. Aquela criança simbolizada seus sonhos
perdidos em Paris: a felicidade e promessa parisienses, de que ela não falava mais”
(CHASE-RIBOUD, 1994, 43). A vida da protagonista, mudada pela maternidade, é alvo
de críticas constante de seu irmão, James Hemings, que tinha esperanças de ser alforriado
junto com a irmã, ainda na França. No entanto, James parece não entender que apesar de
ambos serem escravos, a realidade dos dois não é a mesma. Por ser mulher, Sally não
teria uma garantia de liberdade tão concreta, como percebemos na seguinte reflexão:
“Independente do homem que o meu irmão era, ele era um homem. E não importa o que
acontecesse com ele, ele nunca ficaria, como eu, preso nas garras de um amor que me
segurava contra a minha vontade” (CHASE-RIBOUD, 1979, 33% formato kindle).
Com o passar dos anos, a assimetria nas relações entre Jefferson e sua escrava se
torna cada vez mais contundente. A trajetória da protagonista, marcada pelo nascimento
42
Na narrativa, a percepção de que a relação sexual entre Sally Hemings e Thomas Jefferson não foi
consensual fica implícita em sentenças como a proferida por Hemings no início do capítulo 13: “Talvez eu
sempre soubesse que ele me reclamaria. Não tinha sido om mesmo com a minha mãe e as minhas irmãs?”
(CHASE-RIBOUD, 1994, 27% - formato kindle). A sutileza narrativa em apontar para o abuso do corpo
da mulher escravizada como uma extensão de seus serviços figura como outra denúncia feita pela voz
autoral.
46
de sete filhos do presidente, seguida pela derrocada econômica da família Jefferson e pelo
escândalo político do envolvimento de Jefferson com uma escrava, no contexto sulista
estadunidense da época, redundam em um apagamento cruel da subjetividade e da própria
existência de Sally Hemings. No entanto, o seu ato de escrever um diário se delineia como
uma resistência ainda inédita na realidade das mulheres de sua família. Hemings escreve
no diário e guarda as cartas do presidente, atitudes que salvam a sua memória através do
poder simbólico da escrita.
Outrossim, o poder simbólico dado a Sally Hemings através de seus diários, no
âmbito ficcional, e por meio de seu protagonismo em dois romances, é um passo
importante na construção de tradições negras de escrita e produção, posicionando sujeitos
ora subalternizados pelo discurso colonial como produtores de conhecimento, o que acaba
por provocar ranhuras no que Foucault denomina como “[...] constrangimentos do
discurso: os constrangimentos que limitam os seus poderes, ao que refreiam os seus
aparecimentos aleatórios, os que selecionam os sujeitos falantes” (FOUCAULT, 1996,
13). Apesar de pequenas, essas ranhuras são fundamentais para a (re)ssignificação da
história e da memória dos povos negros estadunidenses. Esse tipo de narrativa desenha
possibilidades impensáveis no discurso canônico, como podemos perceber nas
colocações trazidas pelo narrador onisciente sobre a relação entre o presidente e sua
escrava em Sally Hemings. Essa voz narrativa, entre outros aspectos, problematiza a
mudança de perspectiva de Jefferson quanto à abolição da escravatura. O que teria feito
o redator da Carta da Independência mudar de ideia?
A natureza taciturna de Sally, descrita pela filha como uma mulher silenciosa e
resignada, faz com que a história com Jefferson continue adormecida por um longo
tempo. No entanto, quando já está idosa, Sally se envolve emocionalmente com um
jornalista branco que pretende publicar os diários. A desconfiança da protagonista,
enraizada em uma vida inteira de dor e sofrimentos, a leva a queimar todos os registros
47
Ela não tinha nada, com exceção do seu passado. E agora, até isso
tinha sido tirado dela. Ela tinha sido estuprada da única coisa que
uma escrava possuía: sua mente, seus pensamentos, seus
sentimentos, sua história. Entre todas as decisões da sua vida,
nenhuma delas foi feita por ela mesma (CHASE-RIBOUD, 1979,
15% formato kindle)
The President’s Daughter, publicado quinze anos após Sally Hemings, também
traz o mesmo caráter de denúncia contra as violências experienciadas por mulheres negras
presente no livro anterior. Entretanto, essa segunda trama tem uma natureza mais
polifônica que a primeira, evidenciada por um número maior de personagens, com
narrativas mais intrincadas, exploradas por diversos pontos de vista. Conta-se a história
da única filha de Jefferson e Hemings, Harriet Hemings, que se torna Harriet Petit para
fugir da escravidão. A vida da protagonista é desnudada muito mais pela ficção do que
pela história; se no primeiro romance Chase-Riboud podia contar com um aparato
histórico mais amplo, em The President’s Daughter a personagem histórica se constrói
primordialmente através da ficção (CHASE-RIBOUD, 1994).
Por ser uma mulher ruiva de olhos verdes, Harriet Petit consegue fugir do sul
escravocrata para tentar uma nova vida na Filadélfia. Tendo como mentor e guardião
Adrian Petit, Harriet cruza a linha racial para se tornar, como seus irmãos a chamavam,
uma invenção. Julgada pelos irmãos por esconder suas raízes negras, a protagonista passa
toda a vida buscando autenticidade e aprovação numa realidade que não acredita ser sua.
A paranoia de Harriet circunda todos os aspectos de sua vida: a relação com o marido e a
sociedade de modo geral, a luta travada por ela pela abolição da escravatura e até
encontros eventuais com pessoas negras. As implicações do segredo de Harriet tomam
amplas proporções, intervindo até mesmo em suas caminhadas diárias pela cidade:
O apagamento que Harriet sofre na busca por uma vida digna se torna fatal em sua
trajetória, levando à loucura e à morte precoce. A personagem rasura o passado como
mulher negra e escravizada, e fabrica memórias de uma realidade inexistente, carregadas
de culpa e angústia. A loucura de Hemings é sofrida em silêncio, ironicamente ocupado
por vozes de várias gerações de sua família, ouvidas pela protagonista em episódios de
alucinação e paranoia insistentemente relatados no romance. As vantagens de uma vida
branca não distanciam de Harriet profundos questionamentos existenciais, que apenas
podem ser revelados em seus diários, como observado na passagem a seguir:
No que concerne as obras aqui discutidas, podemos pontuar que Hottentot Venus
é a que mais explora a metaficção historiográfica. Essa percepção se dá pela natureza de
seu relato: Sarah Baartman, uma personagem histórica que viveu no século XIX, tem toda
a sua trajetória reconstruída através da ficção. Utilizando-se das mais diversas fontes,
como jornais, livros, teorias científicas, ilustrações e peças de teatro, Chase-Riboud
desenvolve uma narrativa a partir do lugar mais impossível de todos: a morte. Se nos dois
romances anteriores os diários são os meios de relatos das experiências das personagens,
em Hottentot Venus o mundo espiritual permite que uma mulher ora silenciada pelo
discurso eurocêntrico se torne narradora da própria trajetória, assim como mediadora de
todas as vozes que permeiam sua história.
Mais conhecida na Europa como a Vênus Hotentote, Sarah Baartman se tornou
um grande fenômeno na Europa. Após presenciar o massacre do seu povo, os coecoe, no
processo de colonização da África do Sul pelos holandeses, Baartman foi levada para o
continente europeu por um caçador de espécies raras, no intuito de ser exposta como uma
“criatura exótica”. Após viver em Londres, a sul-africana foi para a França, onde morreu
aos aproximadamente trinta anos. Objeto dos estudos eugenistas de Georges Cuvier, a
protagonista teve uma trajetória de sofrimento e desumanização, uma vez que o seu corpo
era considerado pelos estudos científicos da época como símbolo da sexualidade negra,
desviante e primitiva. Os estudos de Cuvier concluíram que a forma física de Baartman a
aproximava mais do macaco do que do ser humano, o que, entre outras afirmações
profundamente equivocadas, legitimou cientificamente toda a violência a que a
personagem foi exposta.
Visto que as representações de mulheres negras no século XIX obedeciam uma
lógica colonial que não concebe esses sujeitos como dotados de humanidade e
inteligência, a voz narrativa de Baartman como uma mulher inventiva e crítica se mostrou
50
Referências
HOOKS, bell. Black Looks, Race and Representation. Boston: South End Press, 1992.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.
SPIVAK, Gayatri. “Literatura”. In: BRANDÃO, Izabel [et al] (org.). Traduções da
Cultura: Perspectivas Críticas Feministas (1970-2010). Florianópolis: EDUFAL; Editora
da UFSC, 2017.
Resumo: Trataremos no presente artigo de comunicação sobre o espaço literário presente na obra
Terra Nostra, do autor mexicano Carlos Fuentes. O trabalho se fundamenta nos estudos da
Epistemologia do Romance e na hipótese de que existe um gesto estético de Fuentes ao descrever
a devoção do personagem Felipe II ao quadro de um pintor italiano que nos leva a um
questionamento epistemológico sobre quais espaços literários podemos descobrir através desta
obra, em especial o quadro “Las meninas”, de Diego Velásquez, como uma obra de arte que rompe
e antevê questões estéticas e históricas da corte espanhola. O caminho hermenêutico escolhido
perpassa textos de H. G. Gadamer e M. Foucault propondo uma comparação destes textos
específicos que tratam do quadro como obra de arte, o que nos leva à possibilidade de pensar que
em Terra Nostra existe uma convergência estética do objeto com a história que conduz a
construção da racionalidade literária do autor.
Palavras-chave: Epistemologia do Romance. Literatura comparada. Carlos Fuentes. Terra
Nostra.
O gesto estético
43
Doutoranda em Literatura PósLIT- UnB e membro do grupo de estudos e pesquisa Epistemologia do
romance.
54
estrutura histórica do texto é a peça teatral Todos los gatos son pardos (1970). Contudo,
neste momento o que nos interessa é o quadro.
Compreende-se que o gesto estético de um autor como Carlos Fuentes é a atividade
que contempla sua racionalidade, um atributo que mostra a singularidade criativa de sua
escolha narrativa. Por perseguir esta ideia de racionalidade é que em determinado
momento da leitura de Terra Nostra nos deparamos com uma frase que nos despertou
para a busca hermenêutica de sentido do texto: “Y el señor sólo tenía ojos y voluntad para
el supuesto mistério de un cuadro italiano”. (FUENTES, 1975, p. 90). Ou seja, ao
acompanhar as palavras do narrador no trecho citado, conseguimos conecta o tempo
espaço da obra a um tratamento histórico e estético sobre a construção do Palácio do
Escorial.
Em nossos estudos junto ao grupo da Epistemologia do Romance buscamos
esclarecer como Carlos Fuentes é um autor de transpiração, um autor que possui uma
construção estética que vai além da inspiração e imaginação, ele se move pelas leituras
que faz de outros autores e do tempo histórico, ele trabalha arduamente para a construção
estética de seu projeto literário, ele possui a qualidade de escritor que incansavelmente
luta para mostrar a importância da memória social e coletiva através de seus textos.
É importante compreender e destacar a crença que Fuentes possuiu no papel que a
imaginação desempenha no texto literário, e de como essa determinação se tornou
doutrina intelectual dos anos cinquenta para a “La generación del Medio siglo”44 da qual
fez parte. O autor aponta na obra Eu e os outros (1989) uma característica reconhecível
para o continente latino-americano que é a origem Romana de nosso espírito:
44
A geração da metade do século no México formada por Carlos Fuentes, Victor Flores Olea, Enrique
González Pedrero, Mario Moya, Porfirio Muñoz Ledo, Xavier Wimer e Salvador Elizondo, entre outros
teve por característica contar com escritores mexicanos que escreveram durante os anos de
1950(Hernández, 1999, p. 121).
55
americano é descendente ibérico mais que espanhol, além da raiz indígena, e das
influências africanas, o autor decide que este continente “multirracial e policultural
precisa de uma denominação mais completa e batiza-o de Indo-Afro-Iberoamérica”
(FUENTES, 1990) por reconhecer a multiplicidade de realidades aqui vivenciadas. Esse
reconhecimento se apresenta como uma constante preocupação em suas narrativas
sincréticas, antropológicas e universalizantes da criação de seu mundo literário, um
compromisso social com a inovação das formas de narrar. E foi a partir desta inquietação
que nos detivemos a compreender o espaço que o quadro ocupa na obra em questão.
O espaço
Carlos Fuentes é um autor que reitera a sua preocupação com o tempo dentro do
espaço literário, perseguir uma existência temporal de seus personagens ou de outros
elementos narrativos em suas obras significa tentar compreender o espaço presente
através do tempo refutado, passado e presente, e em nosso caso, do conhecimento que
deriva da representação do quadro italiano que é um contraponto a seu personagem
principal no primeiro tomo da obra.
Em trechos de seus ensaios aos quais ele reporta à sua memória de infância
acabamos por compreender que sua escrita advém da seriedade com que foi educado para
exercer o seu trabalho, da herança educacional aprendida em solo americano sobre como
ser um homem de sucesso, como buscar no futuro a sua meta de progresso e felicidade; e
do quanto essa cultura diverge da natureza mexicana de seus compatriotas e o torna
cidadão do mundo.
O trecho demonstra uma educação religiosa recebida nos Estados Unidos que
diverge da forma latina de educação religiosa e de uma relação latina com o tempo, e este
aspecto se apresenta como pano de fundo em Terra Nostra. A influência do pensamento
católico romano sobre a nação latino-americana é percebida na relação que o sujeito deste
lado do continente possui com o tempo e com o espaço.
Terra Nostra é um romance que está dividido em três partes: O Velho Mundo, O
Mundo Novo e o Outro Mundo, esses três mundos contam a história que inicia e termina
em Paris em 1999, durante um apocalipse. Especificamente neste trabalho queremos
iniciar um estudo comparativo com os textos de Gadamer (1997) “A valência ontológica
do quadro” e Foucault (2000) “Las meninas” para tentar alcançar a percepção do todo (a
obra) pela parte (um capítulo da obra).
Arriscamo-nos a tratar de um microcosmo que está no capítulo inicial da obra Terra
Nostra para traçarmos uma linha epistemológica da racionalidade estética do elemento
que se repete que a figuração do quadro de Diego Velásquez nos personagens da obra e a
repetição de se estar diante de um elemento contemplativo da arte. Porque entendemos
que o autor tem um motivo para usar o quadro como elemento de reflexão estética da arte,
e com este objeto estético ele nos faz pensar em uma escolha que não é apenas a escolha
da representação, mas uma escolha ontológica, uma escolha sobre a consequente
manipulação que este elemento metafórico prescinde.
É a partir de um exercício hermenêutico que entendemos poder obter o
conhecimento que deriva da representação do quadro, de uma perspectiva narrativa de
um mundo irreal construído através do espaço literário; por mais que seja esta uma obra
ficcional ela permite compreender as razões históricas de um tempo em que a religião
estava intimamente associada com a Monarquia.
Esse jogo estabelecido pela obra literária de Carlos Fuentes nos faz pensar no hábil
narrador que desde seu espaço literário, ou como nos diz Milan Kundera, desde seu
observatório literário, aponta para um quadro cheio de significações religiosas, um
território do Velho Mundo que se encontrava em franca expansão, quando os conflitos
humanos existenciais e materiais se resolviam pelos dogmas religiosos e pela doutrina
católica. Um espaço que replica as palavras retiradas do evangelho em um exame de
consciência de um personagem da realeza espanhola diante do santíssimo sacramento da
eucaristia.
Esse narrador traça caminhos e aponta suas críticas ao espelhismo, que não se
enxerga, ao exame de consciência do rei que não existe: “Dios está borracho de pecados”
57
(FUENTES, 1975, p.102). Rei este que está pedindo perdão, e continua pecando. Ganha
lugar também neste capítulo a voz filosófica do autor através das elucubrações e das
necessidades de purificação do Senhor Felipe II.
Neste jogo que o narrador estabelece com a arte e com os personagens da obra, a
voz do personagem Felipe II fala sobre o tempo, e é essa a repetição que nos aguça a
pensar o que leva a racionalidade presente na obra:
O trecho traz consigo uma concepção filosófica sobre o tempo que deixa claro que
a vida do homem não deve ser contada pelos anos que passam, mas pelas virtudes que
este homem possui. A racionalidade encontrada aqui revela uma busca pelo tempo e pelo
conflito humano que se perpetua no tempo, o jogo a que o leitor está submetido deve ser
repensado a cada relação com os elementos textuais.
O quadro
O quadro presente pela primeira vez no capítulo intitulado “Todos mis pecados”
funciona como uma reflexão da contemplação do pensamento do personagem sobre a
religiosidade presente neste momento histórico cultural da Espanha. Ali, existe uma clara
referência ao Palácio do “Escorial”, onde ocorre a primeira parte do livro, este lugar é um
monastério que teve a construção iniciada em 1557 sob o comando de Felipe II, para
comemorar a vitória na Batalha de San Quintín e serve até hoje para abrigar os restos
mortais da dinastia da coroa espanhola.
A obra Terra Nostra é também a alegoria do quadro de Diego Velásquez,
encontram-se ali a anã, o cachorro, os reis, o pintor e os reis. A trama é ambígua e
irracional, o quadro é um elemento simbólico e contemplativo que envolve quem lê o
58
Representar, neste caso, significa fazer com que algo esteja presente e seja
percebido pelo leitor pesquisador. Atentos ao fato de que o autor descreve um homem
que contempla um quadro e especificamente, através dessa contemplação passa a
descrever uma sucessão de acontecimentos vistos desta mesma perspectiva inicial, é que
compreendemos estar diante de uma possibilidade de leitura Epistemológica, uma leitura
que revela a obra de Diego Velásquez dentro da obra de Carlos Fuentes e que revela que
este mesmo quadro observa outro quadro que veio da Itália, da cidade de Orvieto, um
quadro que guarda as penitencias de Cristo e que revela uma rei que se prostra diante dele.
45
A obra de Diego Velásquez é do ano de 1656, realizada durante o reinado de Felipe IV na Espanha.
46
O ano de 1492 foi de extrema importância para a Espanha porque foi o ano em que ocorreu o
descobrimento da América, a Conquista de Granada e a publicação da primeira gramática da língua
castelhana.
59
O caminho percorrido pelo texto ao retratar que o quadro é também a Via Sacra e
parte do evangelho de Jesus Cristo faz-nos buscar conexões com a história para
compreender os atos e falas dos personagens, visto que se associam ao mistério da
crucificação de Cristo e à histórica cristianização da Espanha de Carlos V e Isabel, durante
a união dos reinos de Castilha e Aragão. É ímpar perceber que o autor que se introduz
através da metáfora artística e literária do quadro faz da manifestação do divino uma
relação com a ontologia do ser, neste caso, o Senhor que olha o quadro na obra.
Para Gadamer (1999) o quadro não pode ser entendido como objeto de consciência
estética, mas como um acontecimento do ser em sua estrutura ontológicas a partir de
fenômenos como o da representação, e neste sentido tentamos nos aproximar de suas
considerações:
Essa ontologia do quadro é uma ontologia metafísica, uma relação que se estabelece
com o mundo. Ao utilizar o quadro como escolha estética, Carlos Fuentes preenche os
vazios da distensão temporal da criação com sua imaginação linguística e geográfica de
identidade mexicana, do catolicismo presente em sua cultura. Ao lermos o ensaio de
Foucault, encontramos em Terra Nostra pontos de convergência com a obra de
Velásquez, observamos que Fuentes também utiliza uma anã, um rei, uma rainha, um
servo, um cachorro e um quadro, faltaria um pintor, mas temos um escritor, um
manipulador das palavras um ventríloquo de sua própria cena.
Quiça, a motivação de tratar neste artigo especificamente este quadro italiano que
a obra indica ter vindo de Orvieto- cidade italiana traga questionamentos ainda mais
contundentes sobre a obra. É como se o romance Terra Nostra contasse a história do
quadro de Velásquez porque tudo nesta pintura vai além do espaço pictórico, porque não
é apenas representação, é sobretudo, a relação indissolúvel que trata Gadamer do quadro
como ser ontológico, e talvez por isso, nos proponhamos futuramente compreender a obra
60
através do quadro de Velásquez e buscar a referência da obra a este quadro italiano que
reporta a uma ideia do autor sobre a origem romana que influenciou na colonização do
Novo Mundo.
Em determinado momento da obra Terra Nostra nos deparamos com o seguinte
trecho: “El cuadro: El grupo de hombres desnudos Le da la espalda al Señor y a la Señora
para mirar al Cristo; el Señor mira la baja mirada del Cristo y la Señora mira las nalgas
pequeñas y apretadas de los hombres. Y Guzmán mirará a sus amos que miran el cuadro.
Levantará, turbado, la mirada: el cuadro lo mira a él.” (FUENTES, 1975, p. 96).
Ocorre assim o efeito da inversão do olhar. O quadro que olha para o sujeito torna
o efeito da representação em um espelhismo. Gadamer (1999) também trata da relação
entre o espelho e a arte e o interessante é notar que este é o momento em que ele dissocia
a representação do objeto representado, ele mostra que o quadro ou o espelho não
representam, eles são parte integrante do objeto e foi isso que conseguimos verificar na
citação que fizemos anteriormente da obra. O quadro que olha o personagem porque ele,
personagem, tem um olhar turvo, que perdeu seu curso natural,
O tempo
A necessidade que nos moveu neste artigo foi a de encontrar em uma realidade que
também é nossa, uma força identitária de nossa condição latino-americana, de
compreender uma cultura que muito explica sobre nossa raiz histórica no tempo, e a nosso
ver, deve ser fortemente explorada pela literatura comparada. Ver-se no outro e colocar-
se no lugar do outro é um exercício de alteridade imprescindível na sensibilidade artística
da leitura romanesca temporal de Carlos Fuentes.
Terra Nostra mostra como o passado é suscetível de manipulação e consequente
transformação pela criação literária. A abolição das fronteiras lógicas, que foram
instituídas com a finalidade de criar novas semelhanças ainda não percebidas no quadro
pode ser visto como uma metáfora poética da história da Espanha.
O quadro não é apenas uma obra de arte, ele é também um ser constituído de
significados, ele representa, porém não precisa ser representação, a força do objeto move
o sujeito, move a narrativa, é o leitor que se intriga pela relação que estabelece com o
conflito que faz parte de sua condição humana, é ele quem encontra no gesto estético do
autor a possibilidade de fruição, enfim, a compreensão de que a obra de arte é.
Referências
GADAMER, H.- G. Verdade e Método I. Tradução Flávio Paulo Meurer. Rio de Janeiro:
Vozes, 1997.
NITRINI, S. Literatura Comparada: História, Teoria e Crítica. São Paulo: Edusp, 2015.
62
Introdução
47
Mestre em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida, pela Universidade Federal do Oeste do Pará
(UFOPA), e pesquisadora do Programa de Pesquisa e Extensão Cultura, Identidade e Memória na Amazônia
(Proext-Cima) da UFOPA. E-mail: karinessilva@outlook.com
48
Doutor em Teorias Literárias, é professor, pesquisador e coordenador do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida (Ppgsaq) e do Programa de Pesquisa e
Extensão Cultura, Identidade e Memória na Amazônia (Proext-Cima), vinculados ao Centro de Formação
Interdisciplinar, da Universidade Federal do Oeste do Pará. E-mail: itasophos@gmail.com
64
Pelo exposto, o trabalho apresenta em seu primeiro tópico uma breve abordagem
sobre o Carnapauxis e o Mascarado Fobó de modo a promover a compreensão de tais
particularidades da cultura amazônida, e no segundo tópico apresenta a cidade de Óbidos
e a relação dos blocos carnavalescos com o personagem enfatizando a importância da
linguagem literária no contexto amazônida, bem como do personagem Mascarado Fobó,
símbolo marcante na cultura obidense, como um dos meios pelos quais o movimento
literário em Óbidos acontece e se fortalece. Neste sentido, ressalta-se que a linguagem
literária faz da linguagem um objeto estético.
49
Todas as histórias que seguem à lenda de Muiraquitã fazem parte do universo mítico e lendário da
Amazônia, sendo apresentado ao mundo por diversos contadores de história e escritores.
65
A cidade tem uma história singular no cenário nacional devido à sua estratégica
localização, às margens do rio Amazonas, seu Estreito, o que permitiu aos portugueses
no período colonial levantarem no local um posto de controle e exploração da região norte
brasileira. A cidade de Óbidos foi fundada sob a influência de sua coirmã portuguesa,
situada próxima a Lisboa, no ano de 1697, a partir de uma vila então chamada de Vila
Pauxis.
Ao longo de sua história, Óbidos se destaca não somente por sua beleza histórica,
natural e sua posição estratégica, mas também por ser o lugar de nascimento de grandes
ícones nacionais na política, na ciência, e principalmente na literatura, tais como José
Veríssimo Dias de Matos (1857-1916), educador, jornalista e estudioso da literatura
brasileira, e Herculano Marcos Inglêz de Souza (1853-1918), advogado, professor,
jornalista, contista e romancista, ambos os escritores membros imortais da Academia
Brasileira de Letras.
A riqueza cultural evidenciada em sua diversidade de manifestações faz de Óbidos
um polo irradiador e sentinela do movimento de culturas da região do Baixo Amazonas.
De fato, essa cidade possui um rico folclore amazônico que inclui as quadrilhas de
Marambiré, realizadas nas diversas comunidades de quilombos, como as Remanescentes
de Quilombo Silêncio e Matá; os festivais de raízes negras com suas folias de Reis; os
festejos dedicados à fauna e a flora, tais como Festival do Jaraqui, Festival do Acari,
Festival do Tucunaré, Festival do Milho, Festival da Castanha; os festejos religiosos como
a Festa de Sant’Ana. Além dos festivais civis, o Festival Folclórico Pauxis que junta
diversos grupos de carimbó para apresentações e disputas culturais, os Cordões de
Pássaros com suas músicas, danças e disputas, estabelecendo marcos de memória nas
comunidades que as realizam, e o Carnapauxis, com seu Mascarado Fobó, e seus blocos
de foliões que saem às ruas da cidade durante o período dos festejos carnavalescos, sendo
esta última manifestação cultural obidense considerada uma das formas de inspiração
para artistas e/ou escritores locais para a composição da literatura amazônida.
Óbidos conta com sete blocos carnavalescos oficiais e um alternativo, sendo que os
oficiais saem às ruas no período do carnaval, e o alternativo no período que antecede o
carnaval. São eles, respectivamente: Bloco Vai ou Raxa, Bloco Mirim - Unidos do
Umarizal, Bloco Serra da Escama, Bloco Águia Negra, Bloco Xupa Osso, Bloco Unidos
do Morro, Bloco das Virgens; Bloco Pai da Pinga.
A relação entre o Mascarado Fobó e o Carnaval de Óbidos, denominado
Carnapauxis – ajuntamento dos termos Carnaval e Pauxis –, sendo este um gentílico dos
67
na sua essência, e não cabe ser apropriada pela cultura erudita. Sobre a festa carnavalesca
e a relação com o povo, são memoráveis as palavras de Goethe em sua visita à Itália em
1788. Para ele, o Carnaval romano não é uma festa dada ao povo, “mas que o próprio
povo dá a si mesmo” (GOETHE, 2017, p. 524). Mais adiante, no mesmo texto, ele
complementa, “na festa, ao contrário, é dado um sinal de que todos podem se comportar
do modo mais louco e tolo que quiserem, e que, com exceção de socos e golpes de faca,
tudo o mais é permitido” (p. 525).
Neste sentido, há por um instante no tempo do festejo, suspensão das relações
hierárquicas entre ricos e pobres; negros, brancos e índios; homens, mulheres e pessoas
de outras opções sexuais; adultos, jovens e crianças; visitantes, turistas e moradores.
Todos se aproximam; cada um traduz o ato do outro como uma brincadeira; fazendo com
que “a liberdade e a independência mútuas se mantenham em equilíbrio em causa do
bom humor universal” (Bakhtin, 1981, p. 215). Neste sentido, o Carnapauxis e o
Mascarado Fobó, sendo uma festa popular, devolve ao povo sua condição de coletividade,
historicidade, liberdade, simetria social e, principalmente, sacraliza o sentido sério da
brincadeira. É neste aspecto que se funda a identidade cultural do festejo obidense.
Considerações finais
Referências
GOETHE, Johann Wolfgan Von. Viagem à Itália. Tradução de Wilma Patricia Marzari
Dinardo Maas. São Paulo: UNESP, 2017.
70
HEGEL, Friedrich. Cursos de estética I, II, III e IV. São Paulo: Edusp, 1835-1999-
2000-2002-2003.
WELSFORD, Enid. The Court Masque: A Study in the Relationship Between Poetry
& Revels. Cambridge, University Press, (1927) 2015.
71
Esse trabalho contempla uma visão mais teórica da pesquisa e abordagem que está
sendo desenvolvida no mestrado. Como norteamento do trabalho, partimos da
Epistemologia do Romance para fazer uma análise filosófico-literária do objeto literário
que propomos analisar, que é a obra “Os sonâmbulos”, escrita pelo austríaco Hermann
Broch (1886 – 1951). Essa é uma obra extensa, formada por três volumes e carregada de
diversas questões que se aproximam da filosofia. Abordaremos aqui como se dão as
noções de espírito de época e de decadência dos valores a partir não somente de “Os
sonâmbulos”, mas do Broch enquanto um autor que pensa sobre sua obra.
Temos a possibilidade de apresentar como se dão as personagens dos três volumes
da obra, que são “Pasenow ou o romantismo”, “Esch ou a anarquia” e “Huguenau ou a
objetividade” e nesse sentido fazer uma abordagem estética mais detalhada de Os
Sonâmbulos, mas propomos fazer uma análise mais voltada para a crítica e teoria de
Hermann Broch, embora isso não queira dizer que deixaremos de abordar sua narrativa,
pois que nossa reflexão parte também dela.
Teremos outra abordagem sobre a estética mais basilar de Broch, de modo a mostrar
como ele a enxerga a partir do sistema de valores e não a partir do artista que cria uma
obra levantando questões sobre um sistema de valores.
Para isso, nos valeremos de um outro livro escrito por Broch, intitulado “Espírito e
espírito de época” (Geist und Zeitgeist, na língua alemã). Este livro não é um romance,
mas um compilado de ensaios que pretendem mostrar como se dá a ascensão e decadência
dos valores de uma época, neste caso, no início do século XX. A partir disso, Broch
defende que esses problemas podem ser captados e apresentados pela arte.
50
Mestranda - PPGμ/UnB. E-mail: emanuellesas@hotmail.com
72
III, § 15). Dessa forma, o sofrimento torturante e oculto dos que estão sujeitos à
degradação dos valores faz o homem procurar um afeto para que suspenda ao menos por
algum instante essa dor. Para que o sacerdote tenha credibilidade, ele mesmo tem que ser
doente, pois tem que conseguir entender como se dá o sofrimento do próximo e o
protestantismo não abandona isso.
A Igreja, para Broch, se fundamenta na “irracionalidade do ser humano”. Mas esse
não é o único sistema que se propõe absoluto, o positivismo inclusive teria sido um
sistema “mais perverso ainda” (BROCH, 2014, p.19), propondo o progresso. Com a
chegada da Primeira Guerra Mundial, todos os sistemas teriam entrado em crise, sendo
que um dos motivos seria porque a morte estava presente mais do que nunca na sociedade.
Quando um valor se estabelece na sociedade e algum homem “perturba” (BROCH, 2014,
p.33) os valores estabelecidos, esse indivíduo será expelido pela sociedade, pois que ele
é considerado mal.
Os esforços das personagens que trabalho em “Os sonâmbulos” estão diretamente
ligados às noções de sistemas de valores proposta por Broch; Pasenow quer permanecer
no sistema, mas isso o angustia. Esch quer lutar contra o sistema, mas ele é hipócrita
consigo mesmo pois sua verdadeira face é conservadora. Huguenau não quer aderir ou
lutar contra os valores, mas criar os seus próprios.
Broch defende que todo um sistema é movido por um logos que pretende dar conta
do mundo. A concepção de logos que apresentamos é fundamentada por Arendt em
“Homens em tempos sombrios”, que mostra que essa palavra está é traduzida também por
“Verbo”, presente no Evangelho de São João onde se lê “no início foi o Verbo e do Verbo
fez-se a carne” (JOÃO, 1:1-4), mas segundo ela em Broch “a carne em que se converteu
o logos não é mais o filho mítico de Deus; é o homem em máxima abstração” (ARENDT,
2018, p. 152).
Nesse sentido, o logos seria como a necessidade de uma operação lógica abstrata
para dar conta do mundo, onde a representação ganha mais espaço que alogos própria
realidade. Esse conteúdo teria se tornado tão fundamental, que passou a ser o plano de
fundo de todas as escolhas, sendo estas de sujeitos como Pasenow, Esch ou Huguenau.
Esse logos teria feito com que o conteúdo passasse a justificar a própria forma. Broch
mostra em “Os sonâmbulos” que ele é um saber cognitivo que ainda não dá conta do
futuro, da liberdade e imprevisibilidade humana.
74
Para Broch, o ponto central de cada época seria o como se dão seus valores morais,
pois afeta a história de todos os viventes inseridos nesse período, podendo se reflete
culturalmente e isso é chamado por ele de “espírito da época”. Mesmo que haja a mudança
de uma época para outra, ele afirma que o absolutismo do logos estará sempre presente
como uma nuvem de pensamento que sombreia toda a história, no sentido dos valores
morais sempre mostrarem um caminho aparentemente harmônico, único e lógico.
As personagens seriam como os sujeitos que estão ali sendo narrados de maneira a
representar toda essa estrutura moral por trás de qualquer pensamento particular, como se
houvesse uma hierarquia onde o progresso lógico fala mais alto:
Não perceber essas imposições, seria para Broch o fato de elas já serem tão naturais
ao longo da história, mas denuncia que isso vem matando outras formas de pensamento.
A dúvida não existe para o sujeito que percebe a palavra de Deus como “medida para
todas as coisas”, pois tudo está resolvido para esse sujeito; basta esperar o futuro
prometido chegar.
desenvolvem, menos vontade ética se tem, pois que os sujeitos passam a se tornarem
indiferentes ao irracional, que é o caso de Huguenau. Desse modo, o narrador diz que
“diante da morte é permitido tudo ao ser humano, tudo se torna livre, por assim dizer
gratuito e estranhamente descomprometido” (BROCH, 2013, p. 213).
Nesse sentido, Arendt e Kundera em A arte do Romance, identificam na obra “Os
sonâmbulos” esse aspecto metafísico onde o sujeito é movido por um sistema e todas as
suas decisões e comportamentos partiriam dessa noção de logos, onde a representação do
real é mais verdadeira que o próprio real e o sujeito se move no que se mostra dado de
antemão pelo sistema. A boa arte para Broch teria eu se mostrar oposta inclusive ao desejo
ético. Mais adiante ele entra numa noção que expressa a má arte, que segundo ele será o
kitsch.
Ao ler uma narrativa literária, o leitor infere que as personagens descritas ali não
existem no mundo real, mas elas podem “se vestir” da existência humana. Wilton Barroso
(BARROSO, 2015, p. 22) chama esse movimento de serio ludere, literalmente traduzido
por “brincadeira séria”, que consiste na capacidade que o romance tem de exprimir o real
através de narrativas ficcionais. Em Kundera surge o termo “egos experimentais” que
sugere os personagens tendo tantos “eus” como nós, ou seja, sendo um sujeito ficcional
que também tem o seu mundo. Nesse sentido o espaço literário se mostra como um
laboratório de experimentos sobre questões humanas.
Disso, inferimos que Hermann Broch utilizou o espaço literário como sendo um
laboratório onde se imprime questões profundas da condição humana em personagens
que funcionam como se fossem representações de sujeitos do mundo real. Broch cria
personagens fictícios para compreender o próprio ser humano e teve necessidade de entrar
no espaço literário para falar dessas questões. O problema da arte para ele se tornou um
problema ético. Isso move Broch a trazer essas questões para o mundo literário, que para
ele pode abranger essas reflexões.
Por fim, podemos dizer que a obra possibilita levantar questões que ultrapassam
diferenças culturais e até mesmo temporais entre os seres humanos por tratar do que é
próprio da condição humana, como o problema da escolha, o modo em que nos inserimos
e reagimos aos sistemas em que nos encontramos e como encaramos não apenas a questão
da morte em si, mas a possibilidade de tirar a vida do outro.
76
Referências
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras,
2018.
HEGEL, G. W. Friedrich. Cursos de Estética. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo:
Edusp, 2001.
Resumo: Os Awaeté Parakanã são povos de recente contato que preservam vivas as marcas mais
importantes de sua cultura: danças, língua, pintura, organização econômica e política, e estrutura
educacional autônoma. A pintura corporal é uma manifestação artística, cultural e estética de
diversos povos desde os primórdios da história, cuja prática apresenta peculiaridades e
simbologias próprias. Homens, mulheres, e crianças se pintam, sendo as mulheres protagonistas
na tarefa de preparar tinta e fazer pintura. Em termos práticos, o jenipapo verde é colhido, ralado
e espremido para dele ser retirado o líquido, e misturado ao pó do carvão para dar pigmentação
escura. Depois, coloca-se numa cuia e com ponta de graveto é feita a pintura corporal, que
permanece no corpo por até 15 dias. Os Parakanã se pintam por motivos de proteção da
comunidade, cerimônias de casamento, luto ou cura de doenças.
Palavras-Chave: Pintura Corporal. Awaete Parakanã. Cultura.
Abstract: The Awaeté Parakanã are people of recent contact who preserve the most important
brands of their culture: dances, language, painting, economic and political organization, and
autonomous educational structure. The Body painting is an artistic, cultural and aesthetic
manifestation of various people since the beginning of history, whose practice has its own
peculiarities and symbologies. Men, women, and children paint themselves. Women are
protagonists in the task of preparing the paint liquid and doing the paintings. In practical terms,
green genipap is harvested, grated and squeezed to remove the liquid, and mixed with charcoal
powder to give dark pigmentation. Afterwards, it is placed in a gourd and with tip of twig the
corporal painting is done, and it remains on the body by up to 15 days. The Parakanã paint
themselves for reasons of community protection, marriage ceremonies, mourning or healing.
Key Words: Body Painting. Awaete Parakanã. Culture.
51
Graduada em Psicologia, é discente pesquisadora do curso de Pós-Graduação Interdisciplinar Mestrado
em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida, vinculado ao Centro de Formação Interdisciplinar, da
Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. E-mail: habia_atm@hotmail.com.
52
Doutor em Teorias Literárias, é professor, pesquisador e coordenador do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida (Ppgsaq) e do Programa de Pesquisa e
Extensão Cultura, Identidade e Memória na Amazônia (Proext-Cima), vinculados ao Centro de Formação
Interdisciplinar, da Universidade Federal do Oeste do Pará. E-mail: itasophos@gmail.com.
78
Introdução
A Amazônia, com sua natureza exuberante guarda ainda hoje uma realidade pouco
conhecida e debatida no mundo, que é sua grande e complexa sociodiversidade. Os povos
que nela foram se multiplicando aos milhares constituíram complexas redes linguísticas,
sociais, culturais, harmoniosos sistemas econômicos de trocas e uma vasta fartura
gastronômica, no interior das matas e na beira dos rios. Neste contexto, traremos uma
amostra dos povos pertencentes a esse cenário, conhecidos como Awaete Parakanã, de
matriz indígena, com sua história e cultura riquíssimas. O termo 'Parakanã' não
corresponde a uma autodenominação, com significado específico vinculado a algo
simbólico como por exemplo um acontecimento ou um objeto da natureza. Os Parakanã
se auto determinam awaeté, 'gente de verdade'.
Os Awaeté Parakanã foram avistados por brancos pela primeira vez em 1910, e
identificados pelos brancos como um povo agressivo que atacava colonos e trabalhadores
da Estrada de Ferro do Tocantins para saquear objetos e comidas. Contudo, inversamente
ao que os brancos contam sobre as origens do contato, a história dos Awaeté Parakanã é
de fugas constantes de inimigos mais poderosos, e sua tendência passou a ser a de se
deslocarem a lugares novos para sobreviver, tornando-se assim povos nômades, sem
poderem cultivar qualquer tipo de lavoura. Até 1960 os Parakanã habitavam a floresta da
terra firme nas cabeceiras do rio Bacajá.
Nesse interim, possuidores de um vasto território de terra firme interflúvios do rio
Tocantins e do rio Xingu, acabaram por se separarem. A cisão entre os Parakanã ocorreu
em finais do século XIX, sendo divididos em Parakanã Ocidentais e Orientais. Isto
ocorreu em períodos distintos por motivos de brigas internas e também por doenças, como
ocorrido no caso de um surto de poliomielite em 1976, registrado pela FUNAI.
(OLIVEIRA, 1986 apud DA SILVA, 1995, p. 26).
Divididos entre as duas Terras Indígenas, os Orientais assentaram-se às margens
dos rios Pucuruí, Bacuri e do rio da Direita; enquanto os Ocidentais foram para noroeste
para viver entre os rios Jacaré e Pacajazinho-Arataú, formadores do rio Pacajá. Durante
os anos 1980, com a implantação da represa hidrelétrica de Tucucuí, os Awaeté Parakanã
do oriente foram transferidos para a Terra Indígena Parakanã entre os anos 1984 e 1986
(Almeida-Silva 2014). Hoje, os Awaeté Parakanã têm a sede de sua aldeia localizada na
latitude 4°29'2.01"S e longitude 49°57'55.45"O, distante a 35 quilômetros da sede do
79
As pinturas corporais são as marcas de diversas etnias indígenas que carregam nos
corpos e nos rostos suas identidades. Para sua realização, os indígenas se utilizam de tintas
naturais, provindas de árvores e frutos. A fruta mais utilizada pelos índios para o preparo
da tinta é o jenipapo; e às vezes também eles recorrem ao urucum, extraindo uma tinta
vermelha para a pintura. Ora, a pintura de corpo pode ser feita com a ajuda das mãos e
dedos; sendo que os traços mais finos se fazem com pequenos estiletes de palha ou
madeira.
Esteticamente, os traçados gráficos pintados nos corpos dos índios Parakanã são
retas curtas em ziguezagues. Nesses traçados há a representação de animais da floresta
como homenagem ritualística à vida e aos mitos dessa matriz cultural indígena. Na
atividade pictórica, o papel das mulheres é relevante e fundamental, pois são
protagonistas em realizar a ação de pintar na superfície complexa da pele, bem como o
preparo da tinta. Sua pintura são desenhos com ângulos em curvas, acompanhando o
relevo do corpo.
80
Figura 02: Indígena Awaeté Parakanã, perfil corporal com gráficos pictóricos.
Fonte: http://www.eletronorte.gov.br
Considerações Finais
Referências
CARVALHO, João. A pacificação dos Parakanã. Carta, Brasília: Gab. Sen. Darcy
Ribeiro, n. 9, p. 213-40, 1993.
LUSTOSA, Caio. Parakanã, terra e barragem. Ciência e Cultura, São Paulo: SBPC,
v.32, n.3, p.325-7, 1980.
Abstract: Presented by Brazilian Literary History in an insipid and insufficient way, the Amazon
has always been linked to biodiversity. Nowadays, however, it is possible to glimpse in the literary
horizon of Amazonian expression more complex questions of the human being who learned the
art of living in the Forest. Thus, since the middle of the nineteenth century there are several writers
who seek approaches to affirm that there was no concealment or author silence on the most
relevant sociocultural events in the region, either through the narrative or the unreported.
Herculano Marcos Inglez de Souza, a born-man of Óbidos, presents in his novels a particular
universe from the Amazon of the nineteenth century, portraying the society way of living. In his
novels, indigenous, caboclos, riverside people, mocambeiros and whites life styles are exalted,
which allows him to claim to himself the status of legitimate presenter of Amazonian cultures
once forgotten or excluded. His novels serve therefore to voice these peoples and impose crisis
on the local bourgeois thinking of European culture so stubborn in disregarding these voices in
the presentation to the world of the inhabitant of the forest. The present article discusses these
topics under aesthetic and epistemological structures.
Keywords: Amazon. Literature. Epistemology. Aesthetics.
53
Doutor em Teoria Literária pela UnB, é professor e pesquisador na Universidade Federal do Oeste do
Pará, coordenador do Programa de Pesquisa e Extensão Cultura, Identidade e Memória na Amazônia
(CIMA) e do Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida (PPGSAQ),
ambos da Ufopa; membro de Grupo de Pesquisa e Estudos da Amazônia e do Grupo de Pesquisa em
Epistemologia do Romance, da UnB. E-mail: itasophos@gmail.com
85
Introdução
provocando sua capacidade inspiradora e imaginativa para dar vida a uma cena que pode
também ser um mergulho na realidade.
Assim, trejeitos indígenas, caboclos, ribeirinhos, quilombolas e migrantes são
exaltados e transparecem em seus romances, bem como reivindica para si a condição de
legítimo agente em apresentar culturas de comunidades locais, outrora esquecidas e
excluídas, por meio do romance, servindo de voz às minorias e impondo crise no
pensamento burguês local de cultura europeia, teimoso em desconsiderar essas vozes na
apresentação ao mundo do habitante da floresta. Há, nas cenas da vida amazônica,
aparente ausência de explicações e esclarecimentos dos eventos, como se fosse
deficiência – porque extrapola limites do formalismo abstrato da narração –, o que leva o
leitor desavisado a ter estranha sensação de que viver nessa região é pesadelo ou sonho
do qual não se pode acordar, ou a ter a sensação de estar de fato no mundo, mas sob o
efeito do imaginário. Assim, real e representação imaginária se confundem. Teria sido
essa a motivação de Inglez de Souza? Isso é bem provável, pois há um debate bastante
enriquecedor na Amazônia contemporânea sobre questões de cultura, que está
intrinsecamente ligado à ideia de Matutice e Civilidade, a partir do imaginário popular
dos nascidos na Amazônia e que está fortemente presente no discurso literário de Inglez
de Souza, escrito no século XIX.
A obra literária de maior prestígio de Inglez de Souza está organizada na forma de
trilogia [O Cacaulista (1876), O Coronel Sangrado (1877); O Missionário (1878)]. Na
obra, os personagens imaginados por Souza apresentam olhares da vida e do jeito de ser
do povo da Amazônia, sua relação peculiar com a floresta, o jogo meticuloso de poder
político, as disputas por terras entre fazendeiros cacaulistas, os trejeitos de moradores da
floresta, as relações conflituosas de amor, os fatos sociais que sem entendimento de
cultura que Souza propõe seria de difícil compreensão.
Assim, podemos nos perguntar se ao considerar a obra de Souza, a Amazônia pode
ser apresentada como espaço estético do entendimento humano, e como tema de debate
cuja efervescência está na relação entre jeitos culturais matutos e jeitos culturais
civilizados europeizados na Amazônia. Neste sentido, é salutar lembrar o que o teórico
ensaísta das culturas da Amazônia, Paes Loureiro, comentou sobre a questão da
Amazônia como “uma cultura dinâmica, original e criativa, que revela, interpreta e cria
sua realidade. Cultura que, através do imaginário, situa o homem numa grandeza
proporcional e ultrapassadora da natureza que o circunda”. (LOUREIRO, 1995, 30).
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Inglez de Souza, com sua obra Cenas da vida Amazônica, e mais especificamente
o romance O coronel Sangrado (1877), foco deste artigo, utiliza-se em linhas gerais de
seus personagens por meio de prosa ficcional para enveredar no escopo da vida e do jeito
de ser do povo da Amazônia, e sua relação peculiar com a floresta, o que nos permite
apresentar nossa tese de que a literatura feita na Amazônia e pelo povo da Amazônia forja
uma possível condição humana amazônida de ser e viver. Neste sentido, podemos afirmar
que o conflito está em como apresentar ao mundo uma forma singular local de
aproximação da realidade que sirva de representação universal, contemplando variados
modos linguísticos e expressões das vivências coletivas e individuais, e que ajude o leitor
amazônida ou não a constituir suas próprias percepções de verdade, organizar suas
memórias, conhecer-se e reconhecer-se na sua condição humana. Se essa apresentação
universal é possível, é bastante complexo afirmar.
Entretanto, não estamos reivindicando uma apresentação universal, nem parece
pretensão ou projeto estratégico de escritores locais o de reivindicar a literatura
amazônida como síntese do mundo. Entretanto, é sensata a proposta de que a literatura
brasileira de expressão amazônica, sem que haja reivindicação a universalismo literário,
tenha em seu próprio universo literário um pensamento sensato sobre a condição
amazônida de uma época, uma provocativa às sociedades não amazônidas porque a
Amazônia é um daqueles lugares onde incontáveis formas de se escrever sobre a
existência são plausivelmente aglutinas, formando um olhar bastante singular sobre a
existência humana.
Neste sentido, o que nos interessa não é reivindicar que o tema Amazônia seja um
conceito universal; afinal, o próprio termo Amazônia já desempenha uma função
universalizadora. Importa-nos saber que desde meados do século XIX a literatura
amazônida tem apresentado enredos que descrevem o ambiente natural, a realidade social
e a diversidade sociocultural local, fazendo uso de linguagens próprias da região,
experimentando formatos estéticos que articulam texto e contexto, para demonstrar um
pensamento possível sobre a existência humana a partir da Floresta Tropical e provocar
reflexões sensíveis na humanidade.
Na perspectiva de se provocar um debate sobre condições humanas possíveis, e
considerando a ótica da tradição cultural da Amazônia é que tomamos como objeto de
estudo O Coronel Sangrado, de Inglez de Souza. A obra apresenta os traços culturais de
90
seu povo, suas memórias e sua fluida relação de pertencimento entre rios e florestas,
revestida de composições detalhadas da vida e dos costumes da Amazônia que somente
um típico caboclo saberia desvendar dada a sua sensibilidade.
Sua obra segue uma engenharia preenchida por arranjos comportamentais de
hábitos, de valores sociais, econômicos e políticos vividos em terras no interior da
Amazônia, no final do século XIX. Problemas de ordem racial, eleitoral e patronal são
diluídos na obra com a manifestação de diversos personagens, tais como o tenente coronel
Sangrado que dará fluidez ao enredo mediante um processo dialógico do qual se
constituirá toda sua relação com Miguel Fernandes. Sobre o romance, Távora (1882, pp.
236-237) comenta que,
Ferreira destaca no trecho, a acuidade com que Inglez de Souza retrata costumes e
hábitos do Norte, que parece obedecer a uma intenção geral do próprio autor em fixar em
seus romances, cenas da vida Amazônica. Segundo o comentador, nos romances de Souza
o ser amazônida não sofre diante da paisagem que o cerca, ao contrário, ele a incorpora
de tal forma em sua vida, que diante dos mais simples gestos a natureza nunca é vista de
forma diminuída ou como sufocadora dos acontecimentos. Não é por acaso que Coutinho
(2004) tenha comentado que a obra de Souza seria um tipo de conjunto documental
ecológico e sociológico importante, pormenorizado por uma escrita que evidencia a
cultura do cacau e a vida política, religiosa e social do interior paraense. Inglez de Souza
em seu romance soube imprimir o que a Amazônia tem de diverso, sua gente, seus tipos
humanos com suas nuances culturais, fielmente retratadas nas narrativas da forma mais
fiel possível à realidade, conforme atesta Barreto,
No decorrer da obra, há um gesto estético que o autor faz para que o leitor
compreenda o mote, ou o eixo, e por meio dele reúna as condições epistemológicas
necessárias para apreender a lógica da vida no interior da floresta, em Óbidos, que no
nosso modo de ver, expressa uma espécie de síntese da formação cultural do povo
Amazônida no final do século XIX, ou seja, o que é ousado na estética de Souza é sua
forma literária de apresentar condição amazônida de ser e viver, por meio de uma história
que mistura a matutice e a civilidade, justamente no espaço da matutice. Em geral, a
exposição recai sobre o espaço civilizado, descaracterizando ou mesmo desqualificando
o espaço matuto.
A obra de Inglez de Souza parece seguir certa linearidade sobre aspectos culturais
retratados em seu romance. Ele configurou fontes preciosas a respeito da sociedade
amazônida de seu tempo. Segundo Martins (1996, p. 19), “a vida do amazonas, não o
temperamento dos personagens é que configuram o tema central de Inglez de Souza”. O
jeito de ser, costumes, hábitos, crenças, particularidades do linguajar, padrões de
civilidade e matutice, jogos de poder, sociabilidade, política, são alguns dos recursos que
o autor dispôs para discorrer sobre a cultura que se prefigurava na região amazônica do
século XIX e que até hoje refletem o jeito típico do matuto da Amazônia.
Inglez de Souza busca dar credibilidade ao seu texto trazendo para seu interior
nuances históricas da região e certos detalhes tão ricos que somente se pode achar na
93
Óbidos do século XIX, por alguém que conheça experiencialmente o local, dando-nos
possiblidades de conhecimento sobre a cultura Amazônica no período que a obra foi
escrita. Uma leitura epistemológica atenta à sensibilidade estética do autor no desenrolar
do enredo de O Coronel Sangrado nos permite obter um panorama das relações
socioculturais vivenciadas no interior da Amazônia no final do século dezenove, e de
como os comportamentos e as atitudes das pessoas da época são reflexos de um mundo
cultural dinâmico e de uma ambientação cultural que nada deve ou as torna inferior a
outras culturas, como aquelas advindas da ‘civilidade’.
No romance, Souza não desqualifica o interior paraense, e sequer atenua seu
discurso sobre a dicotomia entre cultura civilizada e cultura matuta. Por meio de seu gesto
estético, ele nos convida a transitar entre um mundo marcado pela aceleração da vida
[civilidade] e outro mundo que prima pela lentidão [matuto]. Enquanto a metrópole
dispõe sobre o sujeito urbano, um ser civilizado, aberto, moderno, avançado e
desenvolvido; cabe ao matuto interiorano apresentar-se como sujeito do mato,
aparentemente atrasado, selvagem e ignorante. Contudo, a opção epistemológica e
estética de Souza é apresentar como protagonista de seu texto romanesco um típico sujeito
nascido no interior da Amazônia, que viveu a experiência da metrópole e que volta às
suas origens e acaba resgatando seu trejeito cultural, sem abrir mão do que a civilidade
lhe propôs como fundamento de vida.
No discurso do narrador de Souza há todo um jogo narrativo que culmina em
atitudes e comportamentos que seus personagens vão tomando à medida que o narrador
vai expondo as situações. Assim, uma leitura do romance de Souza sob a batuta de uma
epistemologia da sensibilidade nos leva a um olhar estético dos trejeitos culturais em que
são embebecidos seus personagens, e com isso, um entendimento da existência de
diferentes culturas no seio da Amazônia, não menos ou nem menos evoluídas umas em
relação a outras, mas diversas e plurais porque vividas em contextos diferentes.
No Paranameri, ou Paraná de Maria Tereza, lugar onde nos situa o narrador como
ponto de reencontro do personagem Miguel com sua mãe e com sua grande paixão, Rita,
e também o lugar onde ocorreu o conflito de terra entre ele e o Coronel Ribeiro, descrito
em O Cacaulista. É sobre a ótica do retorno que o narrador intenta-nos apresentar o
contraponto de vida cultural do personagem Miguel, vivida em sua meninice no
Paranameri e os aspectos culturais da cidade adquiridos por ele durante os cinco anos
vividos na capital de Belém. O Coronel Sangrado evidencia através do discurso do
94
Algo que causava certa estranheza para sua mãe, seus amigos e Rita, pois para
eles Miguel havia mudado. Não era mais o mesmo menino que pescava pirarucus, caçava
e que se divertia em meio aos cacauais. Ele era agora tão diferente. Diante disso, o
narrador deixa que Miguel evidencie o que realmente se passava em sua mente
conflituosa. E na medida em que isso ocorria, o narrador relatava nas atitudes de Miguel,
mesmo que tenha estado distante de sua terra e tendo vivenciado outra cultura, costumes
e hábitos do Paranameri. O que denota que mesmo por trás da carapuça da civilidade ele
não poderia ter outro caminho senão o de viver a sua cultura matuta,
Neste sentido, cremos que o narrador intenta apresentar ao leitor um Miguel que
mesmo tendo passado cinco anos longe de sua terra e tenha abstraído estereótipos
culturais da cidade, ainda possuía “uma natureza selvagem e ardente, de que uma
educação civilizadora apenas aparara as pontas, cortara os ângulos bruscos, encobria as
exterioridades” (Souza, 1968, p. 151). Ele de fato possuía trejeito impregnado de
matutice, demonstrado no momento em que o personagem deixa de lado convenções
políticas e sociais estabelecidas na cidade e decide por fim viver as liberdades de vida no
Paranameri com a amada Rita, mostrando que a camada de civilidade que o revestia era
tênue e passageira.
95
Considerações Finais
Referências
FERREIRA, Carlos. Luiz Dolzani. Correio Paulistano, São Paulo, 28 maio 1876.
JOZEF, Bella. Inglês de Souza: Textos escolhidos. Col. Nossos Clássicos, nº 72. Rio de
Janeiro, Agir: 1963.
SOUZA, Herculano Marcos Inglês de. O Coronel Sangrado. Coleção Cenas da Vida
do Amazonas. Belém, UFPA: 1968.
TAVORA, Franklin. La literatura brasilera – escritores del Norte del Brasil. Nueva
Revista de Buenos Aires, Buenos Aires, Ano II, Tomo V, Buenos Aires – Argentina,
1882. Ano II, Tomo V.
98
EPISTEMOLOGIA E FEMINISMOS:
TRANSFORMAÇÕES NO ESTUDO DO ROMANCE
Resumo: Os estudos feministas, da crítica à teoria, têm modificado o modo como o conhecimento
é produzido. Colocado ao lado de grandes teorias, como a psicanálise e o marxismo, a mudança
de perspectiva que o feminismo exige culminou numa série de mudanças nas interpretações, nos
métodos e nos conteúdos das áreas de saber. Apesar disso, o reconhecimento de tal mudança
epistemológica permanece ignorado na academia, quando não criticado a partir do senso comum.
Observando a lacuna existente na discussão acerca dos fundamentos e do papel do feminismo
para a construção de novas epistemologias, discutirei a) como o feminismo mudou as bases da
construção de conhecimento nas diversas áreas do saber; b) como o feminismo transformou o
estudo literário, em especial o romance; c) as objeções à aceitação do pensamento feminista como
base de novas epistemologias.
Palavras-chave: Epistemologia. Feminismo. Romance.
A literatura brasileira tem se digladiado, desde 1899, com uma história que entrou
no imaginário social, quiçá no próprio inconsciente cultural dos brasileiros leitores: Dom
Casmurro. Nosso velho conhecido narra a traição de sua esposa, Capitu, e de seu amigo
Escobar, o que o torna um homem ensimesmado e desiludido pelo resto da vida. Por
longos sessenta anos, talvez mais, o povo brasileiro se compadeceu com a história do
menino Bentinho e da covardia perpetrada por sua dissimulada esposa e seu ingrato
amigo.
No entanto, no início dos anos 1960, uma nova leitura de Dom Casmurro nos
angustiou com outro elemento: a dúvida. A crítica norte-americana Helen Caldwell
escreveu, nessa época, o livro “O Otelo Brasileiro de Machado de Assis: um estudo sobre
Dom Casmurro”, marco na fortuna crítica do escritor, pois muda o foco de análise da
traição para o ciúme. Essa mudança simples, que insere a dúvida no caráter de Bentinho
e na possibilidade de Capitu não o ter traído, definiu várias categorias de análise do
54
Doutoranda em Estudos Literários Comparados no Programa de Pós-Graduação em Literatura da
Universidade de Brasília. É Mestre pelo mesmo programa e licenciada em Letras, Linguística e Literaturas
pela Universidade do Estado da Bahia. E-mail: janara_soares@hotmail.com.
99
Talvez também seja um truísmo ter que afirmar, como se faz desde a década de
1970, que não há uma teoria feminista, mas diversas teorias heterogêneas com diversas
perspectivas e metas. Elaine Showalter aponta a observação de Annette Kolodny, em
1976, para quem a chamada crítica literária feminista é, na verdade, “more like a set of
interchangeable strategis than any coherent school or shared goal orientation” (1981, p.
180).
Em relação às demais áreas do saber, Londa Schienbinger, professora de história da
ciência no departamento de história da Universidade de Stanford, fez um longo trabalho
sobre o impacto do feminismo nas ciências. No livro O feminismo mudou a ciência?,
publicado em 1999, a pesquisadora afirma que a importância do feminismo não está
apenas na entrada de mais mulheres nos ambientes científicos. Uma das principais ideias
dos primeiros capítulos é que esta entrada não aconteceria sem modificações na estrutura
da ordem vigente. Em um amplo levantamento descritivo e estatístico da participação de
mulheres nas ciências na história ocidental e, especificamente, nos Estados Unidos,
Londa Schienbinger analisa como tal participação não foi uma história linear de
progresso, dependendo de variáveis diversas. Seus dados mostram, por exemplo, que a
simples abertura da entrada de mulheres na universidade não garante que elas cheguem
101
55
De que as mulheres não são iguais aos homens, mas seus opostos complementares.
102
Daí a necessidade de se criar uma referência teórica feminista para que tais
mecanismos tenham um norte. Esse pensamento se coaduna com o de Andreta e Alós
(2017), para quem as teorias feministas também são teorias de interpretação, diferindo
das demais em alguns pontos: a) olhar crítico sobre os próprios postulados básicos dos
processos de interpretação; b) suposição da relação complexa entre os textos literários e
o contexto sociocultural, histórico e geográfico, relação não transparente, pois “mesmo a
mais inocente das análises imanentistas, centrada apenas em aspectos formais e textuais
favorece e reitera uma concepção particular de Literatura que, por sua vez, fomenta uma
105
A literatura enquanto instituição é um dos mais fortes objetos de poder que temos
nas sociedades, principalmente em terras brasileiras. Mesmo que a sociedade se
modifique constantemente, certos aspectos foram tão engessados no imaginário e nas
representações que dificilmente conseguem se transformar na mesma proporção. Um
deles é a superioridade da Literatura, de uma certa Alta Literatura, sustentada e legitimada
por aqueles que têm acesso a ela. Seja no senso comum, seja na academia, a forma de se
ganhar notoriedade social através da literatura continua muito parecida com aquela dos
últimos dois séculos. Os questionamentos trazidos pelo pensamento feminista e que
colocam em xeque os paradigmas que proporcionam a manutenção dessa legitimidade
não aconteceria, pois, sem reação.
Essa questão foi largamente analisada por Rita Terezinha Schmidt56, em 2006, no
artigo “Refutações ao feminismo: (des)compassos da cultura letrada brasileira”, em que
observa o silenciamento da opressão das mulheres e a ausência das questões de gênero
em obras de pensadores da cultura brasileira, bem como o antifeminismo no campo das
Letras no Brasil. Dentre os elementos analisados, estão a repulsa às ideias oriundas dos
56
SCHMIDT, Rita Terezinha. Refutações ao feminismo: (des) compassos da cultura letrada brasileira. Rev.
Estud. Fem., Florianópolis , v. 14, n. 3, p. 765-799, Dec. 2006 . Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2006000300011&lng=en&nrm=iso>. access on 19 Nov. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
026X2006000300011.
106
Referências
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca Produções
Culturais Ltda., 1999.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural.
São Paulo: Perspectiva, 1978.
VINCENTINI, Ana Maria. Mudar a referência para pensar a diferença: o estudo dos
gêneros na crítica literária. Cad. Pesq., São Paulo, n. 70, , p. 47-52., 1989. Disponível
em: http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/1152, Acesso em 10 out.
2018.
ZOLIN, Lúcia Osana. Aportes teóricos rasurados: a crítica literária feminista no Brasil.
Veredas, n. 18, p. 99-112, Santiago de Compostela, 2012.
109
Resumo: Discutirei, nesta breve análise, a obra “Meu corpo, minha prisão: autobiografia de um
transexual” (1985) de Loris Àdreon por meio da intertextualidade com a obra “O guarani” (1857)
de José de Alencar. “Escolha” estética genial, aos moldes discutidos por Deleuze e Guatarri
(1977), uma vez que a escritora – uma mulher transexual, me parece, manejará o modelo
romântico alencariano tanto para narrar de forma idealizada a sua história de amor com o indígena
Oitameno, quanto para revelar a sua impossibilidade, diferentemente da ficção. Dessa
perspectiva, a escritora, à beira de mais uma tentativa de suicídio, ao decidir escrever e publicar
a sua história de vida, marcada pela transfobia desde a mais tenra infância, nos remete a outra
indagação: o que pode um corpo que não aguenta mais? (LAPOUJADE,2011). Por meio dessa
análise, portanto, pretendo contribuir na desconstrução de análises literárias transfóbicas capazes
de silenciar ou até mesmo apagar a potência estética desse gênero de produção literária.
Palavras-chave: Autobiografia. Mulher Transexual. Intertextualidade. Estética. Transfobia.
57
Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Práticas Sociais da UnB, sob orientação do
Professor Rogério Lima da Silva. Tem como foco discutir na tese a epistemologia da transfobia por meio
de autobiografias produzidas por pessoas transgêneras no Brasil contemporâneo. E-mail:
leocadiachaves@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6205-6304.
58
O termo genérico transgênero refere-se à condição de uma pessoa não se identificar com o gênero
designado no seu nascimento; neste grupo pode-se incluir, por exemplo, pessoas travestis e transexuais
(JESUS, 2012).
59
Luiz Mott, coordenador do Grupo Gay da Bahia (GGB) e ativista dos direitos civis de Lésbicas, Gays,
110
Pois bem, desse acervo de quatorze autobiografias publicadas entre 1982 e 2017,
importa destacar que oito foram escritas por mulheres, e desse conjunto, trago para o II
Seminário Nacional de Epistemologia do Romance “O estético como espaço de
conhecimento do humano”(2018), mesa temática “O corpo e a palavra na gestação do
texto literário: estudos sobre o não dito no processo feminino de criação” a obra de Loris
Àdreon “Meu corpo, minha prisão – autobiografia de um transexual” (1985). Escritura
que se configura como uma das primeiras autobiografias trans publicadas no Brasil e a
primeira produzida por uma mulher trans60 em nosso país (MOIRA, 2018).
Uma obra que parece “nascer” quando Àdreon à beira de mais uma tentativa de
suicídio, ao procurar Rose Marie Muraro, editora da primeira obra autobiográfica trans
no Brasil “A queda para o alto” (1982) de Anderson Herzer, ouve: “Por que em vez de se
matar você não escreve a sua história? A gente publica aqui...” (ÀDREON, 1985, p.5).
Interessante notar que esse convite, em princípio “perverso”, enunciado por Muraro
no prefácio da obra, na minha perspectiva, não apaga a agência de Àdreon enquanto
escritora, pois além de buscar uma editora para conversar sobre “o seu caso”, nos
informa, ao longo de sua narrativa, o hábito de escrever diários desde a adolescência, o
que nos leva, inclusive, a indagar sobre o seu processo de criação da obra publicada.
Neste contexto, importa situar o lugar de fala da narradora, que de origem espanhola,
branca e loira, ainda criança nos anos de 1960, migra com a sua família para a floresta
amazônica, onde alcançam alguma ascensão financeira, fator determinante para a sua boa
formação escolar:
Já no ginásio, irrepreensivelmente devotado61 a aprender com rapidez,
obtinha notas desejáveis e sempre o 1º lugar em francês. Porém os
professores notaram logo meu desajuste em relação aos colegas e sem
querer demonstrar, discriminavam-me, tornando vãos os esforços que
eu fazia para ser o melhor (ÀDREON, 1985, p.26)
Pois bem, se por um lado, temos uma biblioteca enunciada que fatalmente interfere
na arquitetura narrativa da autora construída para dar conhecimento de si e de sua relação
com o mundo, por outro lado, vislumbro nessa escrita literária a presença de uma obra
não enunciada: o romance “O guarani” (1857) de José de Alencar – um “não dito no seu
processo de criação”.
Quanto a essa “presença”, não posso comprová-la por meio da “biblioteca”
explicitada por Àdreon ou por meio de pesquisa genética de sua obra, mas por meio de
alguns elementos estéticos (PIGLIA, 1990) que compõem a sua arquitetura narrativa, o
que me permite pensa-la “[...] enquanto um espaço de reflexão e possibilidades cognitivas
112
[...]” (BARROSO FILHO, BARROSO, 2015). E nessa toada indagar: o que é possível
saber desse objeto? O que desnudar a partir da estrutura íntima dessa textualidade? O que
encontrar nessa decomposição? (BARROSO, 2003, p.4)
Pois bem, registro inclusive que esta análise literária se contrapõe
exponencialmente à “abordagem” literária dos dois primeiros paratextos que
acompanham a obra, pois enviesados por um olhar sexualizador e patologizante (MOIRA,
2018) da autora e de sua obra, se apresentam como “manifestações” críticas guiadas pelo
juízo moral e não pela razão estética (HEGEL apud BARROSO FILHO, BARROSO,
2015) da criação. Comentários críticos que acabam por se constituir em discursividades
desqualificadoras do literário na criação de Àdreon e por isso – ao fim, ao cabo –
transfóbicos (MOIRA, 2018).
Para esse contraponto, vou me deter nos paratextos “Brega delirante” de Bernadette
Lyra62 e “Excesso (Ex-sexo) melodramático” de Herbert Daniel63. Para ilustrar, citarei,
respectivamente, um trecho do texto de Bernadette Lyra e do texto de Herbert Daniel:
62
Conforme nota de rodapé, ao final do paratexto, a comentarista é apresentada como escritora e doutoranda
pela Escola e Comunicação e Artes da USP (ÀDREON, 1985).
63
Conforme nota de rodapé, ao final do paratexto, o comentarista é apresentado como escritor (ÀDREON,
1985).
113
corpo, a sua vida para esse amor quanto para revelar, denunciar a sua impossibilidade,
pois territorializados sob o solo de uma nação – ainda – transfóbica.
Sob esse viés, percebo essa intertextualidade (CARVALHAL, 2009) como fruto
de um labor literário (BARROSO FILHO, BARROSO, 2015), pois ao usar essa tradição
literária, na minha perspectiva de análise, o faz no manejo criativo para rasurar,
questionar, provocar reviravoltas de, pelo menos, dois “campos canônicos” - o gênero
literário e o identidade de gênero.
Quanto à forma, destaco a tentativa de apresentar a narrativa por meio de capítulos
relativamente curtos; encerrados, quase sempre, com suspiro ou suspense (aos moldes
folhetinescos); o uso de uma linguagem melodiosa, subjetiva, confessional, idealizada e
sobretudo lírica, para dizer, em especial, do amor entre ela e Oitameno, indígena do povo
Juma, batizado por Amadeu64; uma textualidade fortemente marcada por lendas
indígenas. Quanto ao conteúdo, me deterei, ainda que brevemente, na construção
narrativa de Àdreon quanto ao amor de Oitameno por ela, que se aproxima do amor de
Peri para Ceci construído por Alencar, como discutem Lucena e Costa (2011) e veremos
na citação abaixo:
Foi nessa noite que fixei pela primeira vez, desde que fomos
apresentados em minha chegada, a atenção em Amadeu, o índio,
descendente dos últimos Jumas da Região do Alto Madeira, onde seu
verdadeiro nome era “Oitameno”. Seu corpo forte e bronzeado
mostrava a virilidade e a beleza saudável que se retratam nas pinturas
da Idade Média. Seus cabelos negros, lisos e brilhantes, enfeitavam o
rosto de traços enérgicos, cujos lábios, bem delineados, mostravam
64
Interessante notar que a escritora usará, na maior parte da narrativa, o nome indígena da “personagem”
para narrar a história de amor vivida por eles.
114
Virtudes que ao revelarem um amor devoto, puro, casto, como o de Peri para Ceci,
guardam um potencial salvacionista, mas que na realidade transfóbica de Àdreon não
vingará. Sob esse viés, sublinhamos que se em “O guarani” as personagens, Cecília - a
mulher branca civilizada - e Peri - um indígena -, são criados para se enunciarem como
fundadores de uma outra Ordem, de uma outra nação ( BOSI, 1994); aqui, no século XX,
os possíveis fundadores dessa outra nação, atualizados na escrita autobiográfica de
Àdreon - uma mulher transexual (descrita aos moldes europeus) e um indígena -
contrariando o modelo inspirador - não romperão com o padrão determinado pela Ordem
patriarcal; muito antes pelo contrário. Aqui, o real é maculado pela violência transfóbica
ainda que se trate de um amor puro e nobre, um amor devoto, distanciando-se, ao fim e
ao cabo, da “matriz romanesca ficcional”:
- “Seu desgraçado, filho de uma... que é que está fazendo com outro
macho nessa rede? Como é que você pode fazer uma coisa dessas, seu
115
- “Adeus Lorys, nunca mais nos veremos; lutei além de minhas forças,
perdoe-me, mas hoje morre minha esperança de alcançar tua liberdade!
Viverei de tua lembrança e ninguém jamais ocupará teu lugar em mim;
Adeus, minha Diakuy!”(ÀDREON, 1985, p. 120)
“Em minha vida, minha prisão”, portanto nos deparamos com uma estrutura
narrativa literariamente perversa, pois o “flerte ” com o modelo de narrativa projetado
por Alencar, que visa recriar um modelo de nação (LUCENA; COSTA, 2011), aqui é
mobilizado por Àdreon diferentemente da ficção, pois desnudará a sua inviabilidade. Na
sua escrita, portanto, não há um final apaziguador ou conciliatório para o amor, para a
nação; pior: o amor é aniquilado; a mulher é degredada e o indígena, de herói passa a ser
um anônimo errante, do qual nunca mais ninguém terá notícias:
- “Oitameno perdeu toda a motivação pela vida depois que você partiu
para a Espanha. Ele ainda voltou a te procurar dois dias depois que teu
pai te levou para o Rio. Mas tua mãe o avisou que era inútil procurar
por ti, porque não voltaria mais ao Brasil; daí ele se desesperou tanto
que que começou a beber muito e foi-se embora para ‘Puerto Ayacucho’
na divisa de Colômbia com Venezuela. Nunca mais soubemos qualquer
notícia dele durante esses quatro anos; pobre rapaz, quem sabe se até
não morreu por cometer alguma loucura, de desgosto...” (ÀDREON,
1985, p.121)
Referências
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UFMG, 2002.
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Guacira Lopes (org.): O corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte:
Autêntica, 153-172, 2000.
___________. Vida Precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós,
2006.
DELUEZE, Gilles; GUATTARI, Felix. A literatura Menor. In: Kafka por uma
literatura menor. Trad. Júlio Castanõn Guimarães. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1977.
JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e
termos: guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais transgêneros, para
formadores de opinião. 2012. Brasília. Disponível em https://www.sertao.ufg.br.
Acesso em: 22 set. 2017.
LUCENA, Afrânio Gurgel; COSTA, Maria Edileuza da. A personagem feminina medieval
no romance O guarani. In: Anuário de Literatura. vol. 16, n. 1, p. 60-71, 2011.
Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/view/2175-
7917.2011v16n1p60. Acesso em: Nov. 2018.
MOIRA, Amara. O que nos dizem as primeiras autobiografias trans? In: Suplemento
Pernambuco, 2018. Disponível em:
https://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/2053-o-que-nos-dizem-as-
autobiografias-trans.html. Acesso em: outubro de 2018.
PÁL PELBART, Peter. Vida Capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras,
2003.
118
Apresentação
65
Doutor em Arte e Cultura Visual pelo Programa de Pós-Graduação em Artes e Cultura Visual da
Universidade Federal de Goiás. Professor Adjunto do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da
Universidade de Brasília.
66
A tese de doutorado apresenta dezoito fragmentos narrativos que versam sobre aspectos pontuais e
particulares relacionados com os contextos de escolarização, formação e atuação concernentes com a
investigação da minha história de vida.
119
67
A expressão mo(vi)mento utilizada na tese de doutorado foi concebida para subsidiar os capítulos,
representando um esforço semântico que pudesse dar conta da justaposição das palavras “momento” e
“movimento”. Ao trazer essas duas palavras para o contexto arqueológico de investigação, pondero que a
liberdade concedida na justaposição entre uma e outra, almejou uma possibilidade para justificar tanto o
interesse pela arte como pelo processo de elaboração e reflexão acerca das experiências vivenciadas ao
longo da minha trajetória de vida.
123
formação representa um desafio, tanto para aqueles que precisam pensar e organizar uma
escrita que sinalize e sintetize uma trajetória profissional, como para aqueles que desejam
escrever a vida para compreender a si mesmo, numa dimensão arqueológica de
investigação do próprio sujeito.
Nesse percurso narrativo que permeou a escrita de si, duas experiências da infância
ganharam destaque na proposição do referido texto, porque foram relevantes para
compreender minhas escolhas pessoais e profissionais. Experiências peculiares que
delinearam o entendimento e o apreço à arte e, consequentemente, meu endereçamento
para o âmbito da docência.
Uma delas está relacionada a um objeto familiar, o acordeão que pertenceu ao meu
pai e que remete ao universo da música. A outra refere-se às lembranças que apontam
para o momento em que experimento a colcha de retalhos tecida pela minha avó materna.
Tanto o acordeão como a colcha de retalhos representam artefatos emblemáticos e
configuram uma temporalidade particular da infância. Essa lembrança arraigada de
afetividade levou-me a pensar nas visualidades presentes no cotidiano da infância, no que
condiz com a sua potência enunciadora de sentidos e significados para o campo da
narrativa autobiográfica. O lugar da arte e da expressão artística estava permeado de
nuanças, até então, desconhecidas conceitualmente na época da infância. Seu sentido
residia no divertimento, na brincadeira e, também, na tentativa de construir enlaces
afetivos.
Posteriormente, ao tratar dessas lembranças a partir de um olhar atento e amparado
em elaborações advindas de um percurso de análise68, recuperei nuances e impressões
significativas relacionadas, sobretudo, com a época da infância. Um movimento que
prescindiu atentar para questões pertinentes reclusas no tempo da memória, mas que
diziam respeito ao afeto e as boas recordações de uma época determinante da minha
formação subjetiva. As lembranças da infância, nesse sentido, devem sua existência a
um processo de deslocamento (FREUD, 2006), pois residem em lugares recônditos que
precisam ser acessados a partir de um mo(vi)mento arqueológico, intenso e determinado
pelo desejo do sujeito.
68
Desde 2004 realizo um percurso de análise na perspectiva lacaniana, justamente por considerar pertinente
à elaboração dos sintomas, conceitos e situações reveladas pelo inconsciente, que fazem parte da minha
constituição como sujeito e, desse modo, passível das sintomáticas da existência humana.
124
A imagem do meu pai tocando o acordeão faz parte de um lugar particular, de uma
lembrança tênue no tempo, residindo nesse espaço particular e simbólico representado
pelo mundo da casa. Um tempo que, segundo Bosi (2003, p. 36), abre espaço para uma
“força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e
invasora”, prestes a lançar no tempo presente resquícios desse lugar do passado, mas
ainda presente nas lembranças e recordações da infância. Esse tempo carregado de força
69
A expressão “mundo da casa” foi utilizada nos escritos da tese para dialogar com o “mundo da escola”,
possibilitando explicitar aspectos pontuais acerca da minha experiência tanto com o contexto da arte como
na transição entre esses dois mundos.
125
subjetiva e profunda, conforme aponta Bosi (2003), acontece mediante a narrativa que
permeou os fragmentos. A narrativa acentua a importância das lembranças, aguça a
capacidade de reviver na memória momentos relevantes, sobretudo para resgatar
minúcias imprescindíveis ao conhecimento e a escrita de si. Além disso, essas lembranças
permitem compreender o meu interesse pelo campo das artes, significando com mais
nitidez, tanto do ponto de vista pessoal quanto profissional, minha relação com o meu
processo (auto)formativo. No recorte do fragmento narrativo apresentado a seguir
evidencio aspectos pontuais da minha relação com o acordeão, numa dimensão do afeto
que, até então, não era percebida por mim.
Minha lembrança da infância com a colcha de retalhos produzida pela minha avó
materna permite refletir sobre os sentidos dessa experiência, especialmente como forma
de significar a minha relação com o universo da criatividade e do afeto, pois foi
[...] num desses momentos, sozinho no quarto da minha avó, que passei
a observar a colcha que ela usava na cama. Eu já tinha visto inúmeras
vezes o processo da costura de retalhos que vovó fazia. Era fantástico o
modo como ela costurava e organizava aqueles retalhos de tecidos que,
à primeira vista, não tinham serventia, como ela mesma dizia. Ela
cortava e ajustava os diferentes tipos de tecidos em uma caixa para
depois emendá-los um a um até formar uma colcha. Era um processo
demorado que dependia dos retalhos e de uma boa dose de paciência.
Em sua cama havia uma colcha antiga, usada especialmente aos
domingos para enfeitar o quarto. Foi naquele lugar, deitado na cama,
que pude perceber como diferentes tipos de retalhos podiam configurar
um todo, apesar das singularidades de cada fragmento de tecido. A
relação das partes que formavam o todo era uma coisa instigante, um
desafio para mim (FERREIRA, 2015, p. 208-209).
Figura 2: Colcha de retalhos produzida pela minha avó materna. Acervo pessoal.
Considerações finais
Referências
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003.
Resumo: Conforme o entendimento do escritor Milan Kundera, o romance literário, que se quer
de valor estético, prima pelo conhecimento da existência, para tanto, há que ser gestado por meio
da prática do pensamento filosófico, zelando entretanto, pela permanência das dissonâncias que
o afastam de uma verdade sistêmica. Destarte, em diálogo com o pensamento kunderiano,
entendendo porntanto, que a narrativa romanesca é um solo privilegiado de conhecimentos sobre
Ser, o presente trabalho objetiva refletir acerca dos espaços concedido ao epistêmcio e o
metafísico no romance que pensa.
Palavras-chave: Romance que pensa. Metafísica. Epistemologia. Literatura. Filosofia.
A expressão romance que pensa foi aqui subtraída dos estudos desenvolvidos pela
autora junto ao Grupo de Pesquisa Epistemologia do Romance. Movidas pela pergunta
kantiana “O que posso saber?”, as investigações assumidas pelos pesquisadores do Grupo
tomam por objeto de análise o texto ficcional, nele buscando a partir de uma abordagem
interdisciplinar, levar em conta conexões entre narrativas literárias e narrativas
filosóficas. Ao estabelecer e coordenar o diálogo entre estas duas áreas - Literatura e
Filosofia -, os estudos epistemológicos do romance, se amparam em um tripé filosófico
constituído pela estética, a hermenêutica e a epistemologia. Teoricamente assim
sustentados, os estudos epistemológicos assumem declaradamente a intenção de se
aproximar, de modo mais reflexivo e menos opinativo, de um movimento que faz circular
o desejo de extrair possibilidades de conhecimentos acerca do humano no espaço das
subjetividades literárias.
Ao lidar com os pressupostos da epistemologia, braço da filosofia que
historicamente esteve ligada às ciências modernas, faz-se importante destacar que a noção
de romance que pensa emerge da necessidade de delinear um caminho em busca do
conhecimento sobre a existência a partir da ficção. Neste percurso, ainda que de um ponto
de vista epistemológico, será necessário trabalhar no sentido de manter um claro
afastamento da linearidade e da lógica conclusiva, normalmente previstas pelas ciências
exatas - muitas das quais, ainda calcadas nos apelos positivistas. Importante lembrar,
entretanto, que distanciado da rigidez dos métodos cientificistas ou dos sistemas de
70
Doutora em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília. Pesquisadora colaboradora no
Programa de Pós-Graduação em Metafísica – PPGM/UnB. E-mail: mariaveralice27@gmail.com.
132
pensamento, aquele que lida com o Romance que pensa, não exclui de seu fazer a busca
pela racionalidade e intenções do criador, posto que trabalha no sentido de criar condições
para formular explicações que ultrapassem o que foi a priori sentido, intuído na relação
com o objeto.
A ideia de romance que pensa se arrasta entre nós pesquisadores da Epistemologia
do Romance, sendo com frequência tocada por nossas falas e escritos, sem, no entanto,
ter se constituído até o momento, esforços laborais no sentido de um enfrentamento mais
aprofundado do tema. Várias são as explicações para que isso tenha ocorrido, a razão
primeira, entretanto, diz respeito às origens da expressão, ela deriva das discussões de
Milan Kundera acerca da arte do romance.
Os estudos kunderianos foram e, em grande medida, continuam sendo um ponto
importante de referências para as pesquisas desenvolvidas nos espaços de nossas
reflexões, nesse sentido, quando, há alguns anos atrás, deparei com esta expressão
conceitual nas páginas do livro ensaístico de “A cortina”, enquanto pesquisadora da obra
romanesca de Milan Kundera, tinha consciência de que estava diante de algo que
precisaria ser melhor investigado, entretanto, naquele momento, outras questões
referentes à obra do autor se faziam mais urgentes: o reconhecimento integral da obra
literária e a compreensão de algumas escolhas estéticas tais como, a construção das
personagens como os don juans, por exemplo ou com a escrita em variação e a opção
cuidadosa por tipos específicos de narradores foram algumas das opções estéticas que
juntamente com a temática do idílio, do lirismo, do kitsch, do peso e da leveza, do riso e
do erotismo, tomaram minha atenção por mais ou menos dez anos de estudos.
Assim, a ideia de romance que pensa ficou suspensa, sinalizada por algumas breves
citações, mas sobre as quais pairavam diversas interrogações. De modo alguma, o
desenvolvimento de reflexões mais elaboradas sobre o tema deixou de se fazer presente
por haver negligência em relação a importância da discussão, mas sobretudo, em razão
da compreensão segundo a qual, caminhar pela obra e o pensar kunderiano requer uma
ação processual. A tal compreensão impõe-se outra, aquela voltada para o entendimento
segundo o qual a noção de romance que pensa não está, de modo algum, dissociada de
todos os estudos realizados até aqui no que se refere ao mundo romanesco de Milan
Kundera, neste sentido, voltar ao tema no presente é um ganho na medida em que outros
aspectos da obra já foram tratados, sendo, portanto, de melhor compreensão e manejo no
contexto da obra.
133
Neste ponto, creio ser importante esclarecer dois aspectos. O primeiro é que,
embora seja captada das reflexões kunderianas acerca do romance moderno, a noção de
romance que pensa, do modo aqui compreendida, extrapola os limites da obra literária
deste escritor, ela se estende a um corpus diversificado que compõe a historiografia do
romance moderno, do qual Miguel de Cervantes é o precursor. Já o segundo aspecto diz
respeito a uma necessidade, cada vez mais emergencial de retomar as discussões em torno
desta categoria romanesca, o que de acordo com observações prévias, decorre das
aproximações da pesquisadora com os estudos metafísicos, movimento que impele cada
vez mais a uma reflexão de cunho epistemológico cujo interesse volta-se para a
compreensão dos processos de conhecimento e pelos modos de conhecer voltados às
ontologias, em resumo, um conhecimento subtraído de reflexões constitutivas de uma
metafísica do estético romanesco.
Romance psicológico
71
Esta proposição se construiu em diálogo com a fala do professor Dr. Evaldo Sampaio, proferida no dia
06/11/2018 durante a conferência Intitulada “Filosofia é Literatura? Literatura é Filosofia?” que teve lugar
no II Seminário Nacional de Epistemologia do Romance: o estético como espaço de entendimento do
humano.
135
em diálogo com os escritos de Hermann Broch, Robert Musil e Nietzsche, Kundera expõe
seu descontentamento com o romance que se debruça excessivamente sobre as
personagens descrevendo-as minuciosamente. Conforme o pensar kunderiano, ao escritor
desta categoria de romance nada escapa, nenhuma ação, nenhum gesto, nenhum detalhe
da personalidade ou da fisionomia das personagens deixa de ser descrita, pois “...uma vez
que os personagens devem parecer “vivos”, é preciso acrescentar o maior número de
informação possível a seu respeito(mesmo que elas sejam tudo menos surpreendentes)”(
1994, p.142).
Esse patrulhamento daquele que cria em relação às ações das suas personagens é
incômodo aos olhos do romancista por várias razões: ele retira do leitor a beleza da
descobertas e, na medida em que tudo descreve e a tudo responde, restringe os espaços
das perguntas; sobretudo, o desagrado evidenciado pelo ensaísta em relação ao romance
psicológico, se deve ao fato de que, ao centrar atenção máxima nas personagens, essa
tipologia romanesca negligencia a importância do tema. E para Kundera, as personagens
não importam enquanto seres correspondentes ao real, mas sim enquanto eus que, a partir
de uma condição existencial particular, experienciam as situações propostas pela
narrativa cujo desenrolar está centrada em um tema, por isso, as personagens são, por ele
tratadas, como “egos experimentais”. Em “O livro do riso e do esquecimento”, por
exemplo, embora totalmente dispares, as narrativas se constituem em um romance cujo
entrelaçamento das sete partes independentes se dá por meio dos temas da História e do
riso. É dessa insubordinação, liberdade adquirida pela reorientação da escrita que se volta
ao tema, que advém a simpatia demonstrada pela escrita literária de Hermann Broch e
Robert Musil. Os três volumes de “Os Sonâmbulos”, por exemplo, são interligados não
por ações lineares das personagens, nem por uma cronologia temporal, mas por um único
tema: a degradação dos valores. Musil, por sua vez, ainda que não totalmente avesso a
linearidade, interliga os sentidos de “O homem sem qualidades” por meio do tema da
comicidade e, à medida que prossegue, a narrativa se afasta do verossímil aproximando-
se do jogo como estratégia de narrar.
No entendimento de Kundera, se mesmo introduzindo o pensamento no romance,
os dois autores souberam libertar a literatura do exagero descritivo, ao propor um modo
de pensar distanciado dos sistemas “Nietzsche muda em profundidade a maneira de
filosofar: como definiu Hannah Arendt, o pensamento de Nietzsche é experimental.”(
1994, p. 158). A resistência de Nietzsche em transformar as ideias em dogmatismos
dentro de sistema de pensamento é semelhante à aversão de Kundera pelo excesso de
136
descrições sobre as personagens tal qual se observa no psicologismo praticado por parte
dos criadores do romance realista. Neste sentido, o que parece propor Kundera, não é que
o romancista passe a seguir o pensamento de nietzcheano, muito menos a ele se submeter,
mas é importante se atentar para sua maneira de pensar.
No ensaio em questão, já se percebe uma clara defesa em direção ao romance que
pensa, entretanto aqui Kundera não está preocupado em discutir se o romance é Filosofia
ou se é Literatura. Através das digressões sobre o trato das ideias praticada de um ponto
de vista estético pelos literatos e do ponto de vista filosófico pelo filósofo, o que deseja
Kundera é desvendar as maneiras pelas quais o romance deve pensar e estas maneiras
certamente se distanciam da pratica excessiva da descrição cujo resultado se aproxima
dos exageros explicativos contido nas narrativas filosóficas que, ao pensar por sistemas,
arriscam transformar as ideias em dogmas. Nesta primeira acepção não se tem um
conceito elaborado de romance que pensa, mas, por oposição ao romance psicológico, ou
ao que Kundera entende acerca desta categoria de romance, já é possível observar o que
efetivamente ele não é.
Romance histórico
Romance filosófico
pratica literária que ganhou adeptos no século passado da qual, para muitos críticos, seria
ele próprio membro, com veemência e insistência, Kundera irá defender a hipótese de que
nem todos os escritores que optaram por fazer do espaço literário um lugar do pensamento
se alinharam à prática criadora, subordinada à correntes de ideias pré-existentes. Não
havendo aqui uma ação discursiva no sentido de hierarquizar uma categoria romanesca
em relação à outra, o que deseja Kundera é evidenciar que o pensamento é algo próprio
da criação, assim, ao mesmo tempo em que busca se afastar dessa dependência imposta à
narrativa literária que se constrói por meio do exercício da ruminação, procura
exaustivamente apontar para diferenças que regem a percepção estética em torno da
relação literatura e filosofia no âmbito do romance moderno.
“Adentrar a alma das coisas” é uma das reflexões constitutivas do livro “A cortina”
cujo teor nos permite afirmar que a noção conceitual de um romance que pensa formulada
por Kundera emerge sobretudo em razão da aproximação que a crítica teima em realizar
entre sua escrita literária e o existencialismo sartreano. Com firmeza quase ríspida em
resposta a tal entendimento, dirá que constitui
Considerações Finais
Por apresentar uma elaboração estética que não deriva puramente da intuição ou da
inspiração, o romance que pensa cria condições para que possamos decompor suas
estruturas, construídas laboriosamente, por uma ação que pressupõe racionalidades,
efetuando escolhas estéticas cuidadosamente desenvolvidas. O romance nesta perspectiva
é uma engrenagem estética que faz produzir sentidos sobre a vida, permitindo uma ação
hermenêutica e epistemológica na qual será possível depreender conhecimentos fecundos
acerca das ontologias, um conhecimento que prevê uma relação com a universalidade
própria da condição humana. Pois se é verdade que a filosofia não soube pensar a vida do
homem tal qual nos diz Kundera, caberá ao romance pensar sua “metafísica concreta”,
mas não será qualquer tipo de romance; não será aquele obcecado pelas informações sobre
as personagens, nem aquele preocupado em fazer da narrativa um lugar falseado, a partir
do qual poderá ilustrar a História, nem aquele que se subordina às correntes e sistemas
filosóficos em busca de um verdade, ao romance que caberá o papel de pensar a
“metafísica concreta do homem” será o romance comprometido com o pensamento mas
não com a verdade, será em suma: o romance que pensa.
Referências
KANT, Imanuel. Estética Transcendental In. Crítica da razão pura. Trad. Fernando
Costa Mattos.Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São
Francisco, 2015.
RESUMO: O presente artigo visa a apresentar os resultados parciais do projeto “Você é seu
próprio lar” que vem sendo desenvolvido emuma escola pública de Taguatinga-DF com custeio
da FAPDF com vistas ao atendimento a mulheres vítimas de violências. As atividades propostas
buscam observar o poder da palavra poética como instrumento catártico de transformação. Dessa
forma, buscando aporte teórico em Freud, Wechsler, Novaes, Hussein e Bourdieu dentre outros,
o projeto intenta analisar o efeito das oficinas de leitura e escrita a fim de verificar os efeitos dessa
atividade poética no empoderamento dessas mulheres. Espera-se que tais atividades sejam
capazes de oferecer ferramentas de autoanálise e de concientização a respeito das relações de
poder socialmente contituídas em nossa sociedade e de que fazemos parte, muitas vezes, como
vítimas e como cúmplices.
Palavras-chave: Violência. Mulher. Vítima. Poesia. Escrita. Empoderamento.
A situação da violência contra a mulher no Brasil tem sido alvo de diversos estudos
e algumas ações governamentais ao longo da história. Embora se tenha tentado minimizar
o problema, nem a criação das delegacias especializadas, nem a Lei Maria da Penha
(2006) ou da Lei do Feminicídio (2015) se mostraram capazes de reduzir o número de
casos e/ou coibir a ação dos agressores.
Infelizmente esse continua sendo um grave problema social que afeta o Brasil e o
mundo, mesmo com todos os esforços empregados pela luta feminista em torno da
questão. Na verdade, a violência contra a mulher possui um grande alcance em seus
efeitos, pois causa dor física e psicológica à vítima, afetando também os filhos e a família
como um todo e tem se perpetuado de geração a geração a despeito dos avanços
alcançados pelos estudos a respeito do tema.
Pesquisas em todo o mundo apontam para uma alta incidência de casos de
violências contra a mulher nas mais diversas camadas sociais, problema que atinge a todas
as culturas e raças e que se torna mais visível com o advento da evolução tecnológica dos
meios de comunicação. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS),
um terço das mulheres que vivem nos países do continente americano são vítima da
violência.
72
Doutora e Mestre em Literatura pela UnB, professora efetiva da SEEDF, atuando na educação básica
(Ensino Médio).
144
73
De acordo com a pesquisa apresentada no item 1.5 Referencial teórico.
74
De acordo com o senso de 2009 – www.inep.gov.br
146
Sendo assim, acredita-se que a processo educacional possa ser relevante para buscar
saídas para o problema que afeta a vida escolar dessas crianças e adolescentes que se
encontram inseridos em ambientes familiares que passam por esse problema. Para muitas
dessas crianças e adolescentes a escola é, talvez, o único lugar seguro.
Nesse contexto, a educação pode ser vista como um caminho viável para se
alcançar as vítimas de violência. Com educação é possível ampliar o vocabulário socio-
produtivo e aumentar a capacidade de articulação do discurso, bem como a criticidade
sobre o discurso do outro, tornando instumento de libertação e, ao mesmo tempo,
ferramenta terapêutica.
De acordo com Xerri (2013) a aprendizagem da poesia tem importância terapêutica
sobre a saúde mental e as dificuldades e os conflitos emocionais, pois produzir poesia
trabalha diretamente com a criatividade que é muito importante no nível social,
incentivando o indivíduo a ser pioneiro e progredir na ciência, tecnologia, arte e saúde,
podendo ser importante fator na solução de problemas da vida real.
No processo educativo de leitura e produção de poesia exercita-se a criatividade de
forma intensa. Essa produção criativa está relacionada com a prevenção de problemas e
ajuda a desenvolver seu potencial que facilitará a emergência de suas forças internas na
resolução de problemas presentes e futuros. (Wechsler, 1985)
O texto poético é uma potência ativa que promove a reflexão sobre os problemas
da vida com questionamentos ante os valores existentes (Novaes, 1971).
Destarte, o ensino da leitura e escrita de poesia pode ser fator preponderante na
reconstrução da autoestima bem como na percepção dos problemas e na busca por
soluções, pois a poesia leva o leitor a refletir, a contemplar, a meditar e dar um maior
significado ao existir. (Hussein, 2008)
Em suas observações, Mazza (2012) percebeu que a redação de poesia foi útil para
melhorar a autoestima, a solução de problemas, a interação social e o comportamento pró-
social de jovens.
O grupo atendido é formado por 30 mulheres da comunidade escolar (mães, irmãs,
avós e amigas de alunas e algumas alunas) que se reunem semanalmente em encontros
com duração de 1 hora. Os encontros são gravados para que se possa analisar as
contribuições orais. Ao final do projeto serpa produzido um livro relatando a experiência
e apresentando os resultados analisados durante o processo, além de conter, no livro,
poemas produzidos pelas mulheres.
147
Referências
ARAÚJO, M.F; Martins, E.J.S. & Santos, A. L. “Violência de Gênero e Violência Contra
a Mulher”. Em Araújo, M.F. & Mattioli, O (orgs.) Gênero e Violência (p.17-35). São
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Família: diagnóstico e abordagens terapêuticas (p.38-44). Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 2008.
BOSI, A. O Ser e o Tempo da Poesia. 6ª ed. São Paulo: Companhia das letras, 2000.
ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996.
GROSSI, M.P. “Rimando Amor e Dor: reflexões sobre violência no vínculo afetivo-
Conjugal”. Em Pedro, J.M. & Grossi, M.P. (orgs.) Masculino, Feminino, Plural. Ilha de
Santa Catarina: Editora Mulheres,1998.
HUSSEIN, C.L. Leitura crítica e leitura criativa: Ensino e aprendizagem. Rio de Janeiro:
CBJE, 2008.
MAZZA, I. N. Poetry creative writing for an arts and athletics community outreach
Program for At-risk Youth. Journal of poetry therapy. 2012: 25: 225-231.
PAZ, O. O Arco e a Lira. Trad. de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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SCHRAIBER, L.B.; D’Oliveira, A.F.; Falcão, M.T.C. & Figueiredo, W.S. Violência dói
e não é direito: violência contra a mulher, saúde e direitos humanos. São Paulo: Unesp,
2005.
SILVA, V.M. Violência Contra a Mulher: quem mete a colher? São Paulo:Cortez, 1992.
Resumo: Corpo e palavra podem ser consideradas vias de rompimentos de não-ditos no processo
de transcendência de si e transgressão da sociedade? Refletir sobre esta pergunta é o objetivo
deste artigo. Com um olhar filosófico sustentado pela teoria complexa da Epistemologia do
Romance, pretende-se observar aspectos metaficcionais no romance Uma/Duas (2011) de Eliane
Brum que possibilitam a análise desse conflito humano problematizado na questão acima. O
trabalho analisará como as vozes narrativas de Laura – personagem mulher – abrem espaço para
o pensamento acerca da gestação – corpórea – da palavra ficcional e o modo como tal gesto
estético da escritora (no romance) pode também ser considerado como uma ressignificação crítica
de si mesmo, da sua história e do seu contexto social. Neste sentido, a metaficção torna-se base
para a produção de conhecimento do ser.
Palavras-chave: Corpo. Palavra. Romance. Metaficção. Não-ditos. Filosofia. Ser humano.
Introdução
Desenvolvendo e teorizando.
75
Doutoranda em Literatura pelo Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade de Brasília
(UnB). Membro do grupo de pesquisa Epistemologia do Romance (CNPq).
152
76
Na Epistemologia do Romance, os pesquisadores usam o termo serio ludere para identificar o movimento
proposto para o jogo de leitura. Da tradução do latim, “brincadeira séria”, o termo foi criado pelo líder do
grupo Epistemologia do Romance, Wilton Barroso Filho, e apareceu pela primeira vez no artigo Elementos
para uma Epistemologia do Romance (2003), para designar o gesto epistemológico do próprio sujeito
investigativo cuja missão é “procurar passar para além do texto, perguntando-se o que lhe é possível saber
do objeto/texto/conjunto de textos/obras”.
77
Este trabalho é fruto de uma pesquisa em andamento de doutorado da autora, no Programa de Pós-
graduação em Literatura da Universidade de Brasília. No entanto, vale dizer ainda que o tema também foi
trabalhado inicialmente na dissertação de mestrado, defendida em outubro de 2017. COELHO, Nathália.
Estética dos Contrários: a busca pela gênese de Uma/Duas, de Eliane Brum. (2017). Disponível em:
http://repositorio.unb.br/handle/10482/31274
78
Em a Arte do romance (2009), Milan Kundera diz acreditar que o fundador dos tempos modernos não é
apenas Descartes, mas também Cervantes. “Quero dizer com isso que se é verdade que a filosofia e as
ciências esqueceram o ser do homem, parece mais evidente ainda que com Cervantes se formou uma grande
arte europeia que é justamente a exploração desse ser esquecido.” (2009, p. 12)
154
foi escrita, à própria existência (que engloba tanto autor quanto pesquisador). Ora, munido
deste espírito, estas linhas se adentram no objetivo do artigo descrito acima.
O romance conta a história da mãe Maria Lúcia e da filha Laura que vivem uma
relação conflituosa de amor e ódio. Com o intuito de se livrar da sensação de que seu
corpo é apenas uma extensão da mãe, Laura começa a escrever um livro dentro do livro,
desdobrando assim, sua própria voz – iniciada em primeira pessoa e quando na ficção
dentro da ficção passa para terceira pessoa, descolada de si mesmo.
É neste movimento, entre a ficção e a realidade na narrativa, dando luz às
palavras que literalmente saem do seu corpo, como descrito, é que a personagem
consegue levantar reflexões acerca de diversos aspectos da sociedade, tais como relações
de poder e silenciamentos impostos às mulheres, violências institucionalizadas ao corpo,
fomento à submissão feminina e passa – no processo de escrita e ao mesmo tempo de
transgressão/transcendência de si – a reiterar o papel da mulher enquanto senhora dona
de si, do seu próprio corpo, das suas ações, das suas escolhas, da sua voz.
Em Universo Concentrado: narração e reflexão em “Campo geral”, disponível
no livro Entre Filosofia e Literatura: recados do dito e do não dito (2015), Franklin
Leopoldo Silva afirma que “a instância narradora se faz reflexiva para que o
desapercebido, oculto nos hábitos da vida repetitiva, se manifeste como se viesse à luz
pela primeira vez, com tudo que há de temível e de inquietante nas aparições inesperadas”
(2015, p. 09).
O autor acredita que um escritor/empreendedor da narração acaba promovendo
um desdobramento reflexivo natural do próprio exercício da escrita, “irradiando
significação e reordenando a realidade a partir de si.
a luz que revela não é nem objetiva ou subjetiva; não é natureza nem
psique, mas atua quando as duas forças entram em comunhão por via
da unidade solar que ilumina todas as coisas e cada uma delas, situando
assim o sujeito diante de si e do mundo das suas interrogações. (SILVA,
2015, p. 10)
é seu, próprio e deve ser respeitado, num processo de se virar literalmente do avesso para
compreender seus próprios terrenos e os que habita. Desta maneira, a característica da
personagem de narrar e refletir parece nos encaminhar para um lugar de conhecimento
que foi possível pelo fato de que a autora escolheu retratar em seu romance o nascimento
de uma própria escritora e do seu processo ficcional se formando, das entranhas, com
todas as vísceras e sangue envolvidos no processo, nada romântico e idealizado. Ou seja,
por ser um romance retratando como se faz um romance, há o entendimento do uso da
metaficção.
Em Poética do Pós-modernismo: história, teoria e ficção (1991), Linda Hutcheon
explica que a metaficção historiográfica pode ser conceituada por “romances famosos e
populares que, ao mesmo tempo, são intensamente auto reflexivos e mesmo assim, de
maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos.”
(HUTCHEON, 1991, p. 21). Não é esta definição fechada de Hutcheon que interessa aos
apontamentos em Uma/Duas, mas o modo como a teórica chegou à sua formulação com
base em suas observações da problematização da história e do sujeito.
Assim como o teórico Wladimir Krysinski, em Dialética da transgressão (2007),
diz que a “transgressão é a própria evolução criadora onde a literatura ocupa espaço tão
importante”, Hutcheon também acredita que a arte é campo de conhecimento no qual tem
a capacidade e deve, na pós-modernidade, “fazer-se questionar de dentro”, “deixando
visíveis suas contradições entre sua auto-reflexividade e sua fundamentação histórica”
(HUTCHEON, 1991, p. 15). A transgressão ocorre num ambiente pós-moderno propício
para a contradição, “que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios conceitos que
desafia” (1991, p. 19).
Hutcheon diz ainda que a habitual separação entre arte e vida já não é mais válida.
“A arte contraditória do pós-modernismo ainda estabelece essa ordem, mas depois a
utiliza para desmistificar nossos processos cotidianos de estruturação do caos, de
concessão ou atribuição de significado” (D’HAEN 1986 apud HUTCHEON, 1991, p.
24). Ou seja, a arte usa os padrões sociais pré-estabelecidos para transgredi-los em sua
essência, “mostrando que a realidade social é estruturada por discursos (no plural)”
(HUTCHEON, 1991, p. 24).
Em Uma Duas, quando Laura começa a escrever uma ficção dentro da ficção, ela
também muda a perspectiva do narrador que passa da primeira para a terceira pessoa,
marcado graficamente no livro por diferentes tipologias de fonte. Essa travessia começa
156
logo no primeiro capítulo e a história passa a se desenrolar neste entre lugar, entre
“realidade” e “ficção” na própria ficção.
É nesse exercício da escrita, ocorrido durante todo o romance, que Laura promove
reflexões em sua instância privada, de transcendência de si e na esfera pública, de
transgressão da sociedade. Enquanto fala do seu “eu”, abre e revela memórias, conflitos
e traumas internos para o leitor e as dificuldades inerentes ao escrever, que acaba
transformando-a e ressignificando-a enquanto sujeito. Ao falar por meio da voz do seu
narrador, revela como as relações sociais são construídas, como se pode manipular o
discurso em nome do poder, como há violência e repressão institucionalizada na vida
cotidiana dos seres humanos e promovida.
Ao citar a filósofa Julia Kristeva, Hutcheon lembra que a “escrita pode ser
encarada como experiência dos limites, limites da linguagem, da subjetividade e da
identidade sexual.” (1991, p. 25) E estar em limites, como Uma Duas parece revelar,
ultrapassa a esfera do discurso. O movimento de escrever - da realidade para a ficção e
da ficção para a realidade - tem um meio pelo qual se materializa, vem à tona e imbrica o
sujeito ao seu processo criativo como uma mãe a um filho, ou uma filha, neste caso. Esse
meio do qual se fala é o corpo.
As palavras de Laura não surgem limpas e tampouco vêm do nada. Elas se
inscrevem, assim como as da sua própria mãe Maria Lúcia (que também aparece como
uma terceira voz no romance contando sua versão dos fatos por meio de escrita de cartas)
primeiro em si mesmas, nas marcas dos seus corpos, nos cortes que promovem, na
inconsciência ou consciência de que são seres viventes, meros espectadores ou
protagonistas de suas próprias vidas.
Em Corpo: identidades, memórias e subjetividades (2009), as estudiosas Mônica
Pimenta Velloso, Joelle Rouchou e Cláudia de Oliveira dizem que “durante muito tempo,
predominou a ideia de um corpo, em grande parte controlado, disciplinado e subjugado
pela teia dos “podres poderes”. Restava aos estudiosos a árdua tarefa de desvendar essa
rede, tentando restituir uma suposta liberdade ao corpo-objeto” (2009, p. 15). Este parece
ser o movimento de Laura e Maria Lúcia em Uma Duas. Ambas, do modo como
conseguiram e a vida pôde proporcionar, tentam desvendar a existência através da busca
por essa liberdade e independência de seus corpos, numa viagem pela subjetividade, na
revisitação de memórias e identidades que começa no corpo e acaba por se desembocar
na arte literária.
157
Maria Luisa Luz Tavora, em seu artigo Das formas e cores – Fayga Ostrower –
do corpo operante publicado no livro acima citado diz, sobre a obra da artista polonesa,
que o “corpo integra-se aos procedimentos artísticos, chegando na contemporaneidade a
se revelar como matéria prima da obra. (...) diversos são os espaços de negociação,
múltiplos os lugares de enunciações” (2009, p. 155). Parece haver um diálogo nestes
apontamentos no que tange na escolha estética de Eliane Brum ao abrir suas personagens
para experiências corporais, que, por sua vez, servem como estrada para o desenrolar da
ficção. Ademais, é por meio deste debate que a autora eleva a discussão sobre a dignidade
de vida e morte na sociedade, de modo a abrir as significações de ambas as instâncias,
desfazendo amarras, evidenciando o que estava oculto, reiterando a ideia de que o sujeito
do hoje é essa fragmentação que nunca completa sua história.
Vale lembrar o que Guacira Lopes Louro escreveu em Corpos estranhos: ensaio
sobre sexualidade e teoria queer (2018):
Maria Lúcia é uma mulher que nasceu de mãe morta no parto, criada por um pai
militar que promovia um distanciamento de afeto dos dois, mas ao mesmo tempo a
violentava pela palavra quando a obrigava a escrever cartas para suas amantes. “Ao ler
o significado de ósculo, lembrei da cena. Beijo. Então era aquela coisa repugnante que
meu pai queria fazer com a mulher da carta? Na verdade, no colo da mulher da carta.
Senti um líquido quente escorrer entre as minhas pernas e soube que tinha me urinado”
(BRUM, 2011, p. 85).
Aliás, esse era o seu único contato com a palavra de Maria Lúcia, escondida num
profundo silenciamento das emoções. Quando o pai morre, num súbito infarto, Maria
Lúcia, a jovem muda e educada em casa, é coagida pelo porteiro do prédio a ser sua
esposa. O “homenzinho de pele branca, molenga e cinza” chega de mansinho dizendo que
vai cuidar de Maria Lúcia como o seu próprio pai, até que a estupra e a faz sua mulher.
Seu destino é esse. Presa por ele e ao mesmo dependente da sua presença.
Ele tocava o meu corpo com cuidado, quase com temor. E foi tocando
e tocando em todos os lugares onde meu pai nunca tocou. Eu não sabia
o que ele fazia, mas sabia que ele não devia fazer. Não conseguia me
mexer. Talvez nem quisesse. Eu nem mesmo estava ali. Mas estava de
algum modo porque comecei a gostar e a odiar aquele toque. Era a
primeira vez que alguém me tocava. E era bom e era ruim. (...) Eu tive
nojo dele ao ver aquele corpo branco e mole tão diferente do corpo do
meu pai. Mas continuei parada ali até mesmo quando ele abriu as
minhas pernas, e eu senti uma dor tão grande que pensei que tinha
acordado todos os vizinhos com o meu grito. Mas, como tudo em mim,
foi um grito de silêncio, porque ninguém apareceu. (BRUM, 2011, p.
112)
diz: “É para os seus leitores que escrevo. Mas a decisão de publicar também a minha
versão é sua. Será sempre sua. Eu não deixarei que você coloque mais uma violência na
minha conta. Dessa vez, vai assumir. Vai ter de me matar ou não na sua narrativa”
(BRUM, 2011, p. 71).
Laura vira jornalista e parece encontrar na palavra uma maneira de fugir de seus
conflitos de não conseguir sentir-se uma mulher independente da mãe. Durante a infância,
tem problemas de queda de cabelo, de fala. Com medo que o pai abuse dela também,
Maria Lúcia coloca a filha para dormir consigo todas as noites dando o peito para mamar.
A situação só cessa quando Laura conta para as professoras que observam a cena como
uma possibilidade de abuso e vão conversar com a mãe. Laura também tenta dar fim ao
seu próprio corpo. E é aí que adquire o hábito de cortar a si mesmo. Diz “as paredes de
mim me sufocam” (BRUM, 2011, p. 71) ou depois “Eu corto corto corto e ainda não sei
que existo” (BRUM, 2011, p. 15)
Até que, já na vida adulta, morando separadas, Laura é acionada por vizinhos da
mãe que a encontram apodrecendo no apartamento. E acaba a levando para morar consigo
novamente. Numa dessas noites cuja a mãe fica sem parar gritando o seu nome e
arranhando a porta do quarto, Laura para de se cortar para começar – de súbito – a
escrever, uma história dentro da própria história.
Parir dói. Escrever também. Parir e escrever são atos de auto violência e
transgressão. Parir ressignifica a história da mulher (dizem as mães), também a abre para
uma nova condição de vida. Assim como também a escrita de um romance. Ambos os
movimentos são viscerais. Tem cor vermelho sangue. “Sempre tive medo de escrever. Da
hora de tornar meu sangue símbolo do meu sangue”, diz Laura. (BRUM, 2011, p. 16).
A personagem Laura vive esse movimento, de gestar um texto de palavras
engasgadas na garganta durante anos à fio, e promove um parto em si mesma de palavras
escritas e ficcionais, mas que não deixam de dialogar com a sua própria história, com a
sua experiência, com seus conflitos. Ao contrário, potencializa-os quando postos em
reflexão. Neste sentido, parece problematizar, em si mesmo, o desenvolvimento de uma
narrativa ficcional, bem como os conflitos de uma escritora hipotética, no caso Laura. E
acaba, nesse sentido, pensando questões inerentes ao próprio gênero romanesco e ao
sujeito – de forma imbricada – por dentro, num entre lugar que perpassa a ficção e a
realidade, como mencionado anteriormente.
Não há, portanto, o que nos parece, uma maneira de dissociar a palavra do corpo.
Muito menos as palavras de nossas dores, marcas, traumas. No entanto, parece possível,
como revela Uma/Duas, abrir espaço – mesmo que doa – para uma nova reconfiguração
de vida, para uma reflexão sobre a sociedade, para a transgressão das relações de poder,
dos maqueamento impostos e que nos “auto impusemos” em nome da manutenção da
ordem, do silenciamento de conflitos, em nome de outros, em nome da vergonha, da “boa
moral”, dos “bons costumes”, das relações desiguais.
A reivindicação do corpo e da palavra (da sua voz) é a tomada das rédeas, do
controle de si mesmo até mesmo na decisão extrema de pôr fim em si mesmo. Maria
Lúcia, já velha, descobre que tem um câncer bastante agressivo e o tratamento, também
agressivo, ainda que tenha poucas chances de cura, promoverá uma vida, em sua opinião,
indigna e permeada de limitações. Por isso decide que não quer mais viver e pede que a
filha a mate, não mais no romance dentro do romance, mas na vida real. Laura faz
isso. E Maria Lúcia morre, após deixar seus escritos para a filha. Não se sabe o que Laura
fez com as palavras da mãe. Mas no fim, acaba com a reflexão:
161
Conclusão
Confie em mim, você vai gostar. Eu não confio (...) Eu não me importo
de ser violentada, desde que possa ficar deitada sentindo o cheiro de
hortelã. É tão boa a sensação das mãos dele sobre mim. Seus dedos
162
Referências
Resumo: O presente trabalho visa a apresentar um estudo do romance Cem anos de solidão, do
autor colombiano Gabriel García Márquez, a partir da experiência estética do leitor. A pesquisa
aqui proposta buscará, nos estudos sobre a Epistemologia do Romance, aporte teórico para
analisar o ato de ler como um articulador entre o imaginário e o real a partir da concepção
epistemológica que considera a influência da filosofia, da história, da estética e da hermenêutica.
Nos propomos buscar a compreensão do efeito estético provocado na recepção, sendo o leitor
parte complementar à obra e ao sentido dela. Por meio do percurso da estrutura hermenêutica da
obra literária, elementos de recursos de sentidos saltam aos olhos como possibilidades
interpretativas e, a cada lance desse jogo a partir da linguagem, novas formas de sentido são
compreendidas. Os textos de Michel Foucault e do Ricardo Piglia nos auxiliarão na análise do
efeito estético e do processo de criação na figura do leitor.
Palavras-chave: Epistemologia do romance. Leitor. Estética da recepção.
Introdução
79
Mestranda em Literatura pela Universidade de Brasília e membro do grupo de estudos Epistemologia do
Romance. E-mail: priscilacavalcante1@gmail.com
80
O grupo foi formado em 2003 pelo professor Dr. Wilton Barroso Filho e busca estudar a obra romanesca
como um espaço de desafios para pensar a condição humana.
165
inaugura uma teoria complexa que propõe um olhar diferenciado da obra literária e que
busca legitimar o texto literário romanesco como espaço possibilitador de conhecimentos
acerca da existência e condição humana.
A partir de um olhar atento e de um processo de investigação e decomposição do
texto literário, a Epistemologia do Romance busca os elementos de racionalidade
presentes na ficção. Enquanto conjunto de obra de um autor, há elementos que se mantêm
em todos os textos literários, não se modificam. Essa invariância permite o
reconhecimento da obra de um autor e orienta a saber qual elemento constitutivo está
desde o início à finalização do seu processo de criação. O que os elementos comuns e
invariáveis no conjunto da obra de determinado autor nos contam? O que eu posso saber
da recorrência de escolhas estéticas, seja de um personagem, um lugar, a opção pelo
narrador? Por detrás desse olhar pesquisador do leitor dentro do texto literário, há uma
busca de possibilidades de saberes no objeto artístico. O autor trabalha a palavra como o
artesão a argila, é labor. As palavras que formam o texto literário são escolhidas pelo seu
criador, atentando-se ao modo de sua utilização, uma vez que dentro de cada palavra há
muitas possibilidades de interpretações semânticas.
Em seus estudos, Michel Foucault nos revela no interior de seu livro As palavras e
as coisas os processos de conhecer. O autor traz uma imagem para se pensar a opacidade
e a fragmentariedade da palavra, como a palavra pode não ser o suficiente? A perspectiva
do leitor, esse olhar do outro, faz a leitura das imagens que emergem das palavras e busca
interpretar o que se vê. A palavra é o visível e o secreto, “é uma natureza fragmentada,
dividida contra ela mesma e alterada, que perdeu sua transparência primeira; é um segredo
que traz em si, mas na superfície, as marcas decifráveis daquilo que ele quer dizer”
(FOUCAULT, 2000, 52).
As reflexões em torno da Epistemologia do Romance passam pela compreensão da
obra literária como um solo fértil para se conhecer e refletir a condição humana. Ao tomar
a questão do conhecimento dentro da obra de arte, a dicotomia razão e sensação perpassa
todo o tempo. Georg W. Hegel, em seu Cursos de Estética Volume I, diferencia o belo da
166
natureza do belo artístico, afirmando que este é superior ao natural porque provém do
espírito “só é obra de arte quando, brotada do espírito, também pertence ao terreno do
espírito, foi batizada pelo espírito e somente expõe aquilo que é formado em sintonia com
o espírito” (HEGEL, 2001, p. 51).
A arte é o espaço onde por meio do sensível o espírito se realiza. Para o autor, o
belo não é um julgamento de origem subjetiva, como em Kant, mas uma ideia que existe
na realidade, em obras de arte reais e históricas “toda obra de arte pertence à sua época,
ao seu povo, ao seu ambiente e depende de concepções e fins particulares, históricos e de
outra ordem” (HEGEL, 2001, p. 38). A arte é uma forma particular sob a qual o espírito
se manifesta. Para se manifestar, a arte depende da aparência, entende-se por ganhar
forma, ou seja, é algo construído por uma figura, cuja forma abarca um conteúdo. A
aparência do objeto de arte não é mais uma imitação, mas uma apresentação de essência.
Ao salientar que o ser humano é finito, mas sua capacidade reflexiva e filosófica é
infinita, Hegel nos orienta no sentido de fazer ver a arte como resultante do espírito
sensível e reflexivo. Para o autor, a arte é fruto da atividade humana e por detrás do
processo criador há o valor do trabalho “o produto artístico, em contrapartida, é apenas
uma obra humana, feita pelo conhecimento humano e por mãos humanas” (HEGEL,
2001, p. 51). As discussões entre o sensível e o inteligível ainda demonstra o não
esgotamento.
O leitor ao adentrar o texto literário precisa se distanciar de sua própria moral para
voltar o seu olhar para as possibilidades reflexivas acerca das provocações nascidas de
experiências com o objeto artístico. Para Wolfgang Iser, no O Ato da Leitura, a obra é
compreendida na recepção de acordo, tanto com sua estrutura quanto pelo processo de
leitura, permitindo ser observado esteticamente, uma vez que o leitor é também um
elemento marcado textualmente na obra de arte, seja literária ou não. O processo
interpretativo da obra parte de perguntas sobre o que este objeto tem a nos dizer e quais
as expectativas temos sobre ele. Quais as sensações/efeitos que a obra causou no leitor?
O efeito estético nasce do imediato, é interativo e contemplativo, sendo assim antecede o
sentido do texto.
De acordo com Iser, não há um sentido único para a recepção, e sim uma construção
de sentidos e comunicação nascidos do processo de recepção. Ao percorrermos a estrutura
hermenêutica do objeto, elementos de recursos de sentidos são revelados o tempo todo
como possibilidades interpretativas, mas são variáveis porque a cada lance desse jogo da
obra de arte novas formas de sentido são compreendidas. Marcas de leituras vão tingindo
167
o corpo do leitor e aos poucos as primeiras camadas do texto literário são descoladas até
chegar ao exercício de sua decomposição. Sentir o texto e ter a sensibilidade para perceber
os seus movimentos, ouvir e ver além do que é dito, o que está na sua subTERRAneidade.
De acordo com as discussões empreendidas pela Epistemologia do romance, o leitor
enquanto olhar pesquisador se diferencia de outros recebedores. Enquanto sujeito de
investigação, o posicionamento frente ao objeto literário não está somente para leitura e
comparação, mas também para relação e articulação dos saberes presentes no romance.
Para além da admiração e do prazer que o objeto pode exercer sobre o olhar de quem lê,
o leitor pesquisador questionará os fundamentos estéticos da obra e ouvirá o texto literário
a partir de uma percepção consciente “no entendimento dessa percepção epistemológica,
além do prazer, outros elementos são responsáveis por estabelecer nossas relações,
estimular nossas reações ou conduzir nossas atitudes diante do objeto literário”.
(BARROSO; BARROSO, 2015).
Tendo esse amparo teórico, penso o meu próprio processo de escrita, o que as
imagens da obra nos falam? O objeto artístico é dotado de conhecimento e desperta em
nós possibilidades interpretativas. As perguntas ao objeto vão e voltam em um
movimento dialógico, por isso não se finda e os problemas tencionam em outros. O
retorno ao objeto é uma necessidade para ouvir a respiração do texto literário. A arte como
atividade humana está ligada à sensibilidade e à criação, é manifestação e espaço de
conhecimento. Volto ao meu objeto literário e reflito sobre meu processo de escrita e as
escolhas estéticas de análise.
O eterno retorno da obra Cem anos de solidão, dos seus personagens e do próprio
leitor pensam sobre a condição humana, arte como espaço de conhecimento. Os escritos
do autor são resultado de labor, de transpiração, eLEgeR as palavras é uma manifestação
do seu processo criativo. Os escritos de García Márquez, especialmente seus três
primeiros romances, A revoada (1955), Ninguém escreve ao coronel (1958), A má hora
(1962); e o livro de contos Os funerais de mamãe grande (1962), funcionam como
embrião de um projeto estético que se constrói gradativamente. Cem anos de solidão
(1967) se constitui por meio de um diálogo permanente com outros escritos já existentes.
A continuidade dos personagens e de Macondo são possiblidades para se refletir de que
168
maneira seus escritos funcionam como o esboço de um projeto estético sobre o qual
pretende atuar.
Ao nos depararmos com a voz narrativa sobre Macondo observamos uma obra que
constrói a sua própria lógica e seu próprio lugar. O narrador aqui nos conduz a conhecer
o objeto literário de forma natural e proximal, somos também testemunhas, vemos o que
está no limite entre o crível e o literário ao nos depararmos com a falta de limites de um
ser racional.
A personagem Úrsula Iguarán, esposa de José Arcádio Buendía, é um fio de
sustentação da narrativa e a ideia circular do tempo, presente no conhecimento platônico
grego, está nessa personagem. Como esse tempo que é circular e retorna está não só nos
pensamentos, nos movimentos, nas ações, mas também no próprio corpo de Úrsula? O
que o retorno pode pensar sobre a condição humana? O que o retorno revela? O que o
tempo de Úrsula me conta sobre sua solidão? Qual é a sua SOLidão?
O narrador tece uma rede de registros como se durante toda a narrativa estivesse
dentro de um observatório contando de forma artesanal experiências “É ele quem mostra
um pouco da cena, é ele quem esconde e torna turvo, deixando-nos apenas vozes no ar”
(FERNANDES, 1996, p.32). É um narrador-movimento, ele perpassa as vozes das
personagens tendo conhecimento de seus pensamentos, sentimentos e emoções. É o
caminhar do tempo, ele o controla e se sobrepõe a uma invenção humana, uma vez que
está em uma condição externa, em uma relação criada por ele. A voz narrativa é o acesso
do leitor aos espaços de circulação das personagens dando ritmo próprio à narrativa.
A leitura do texto literário paralisa o olhar e constrói mundos possíveis. O narrador
conta as histórias de vários personagens e projeta imagens a partir da linguagem. Os
acontecimentos de Macondo e dos Buendía se tornam passado na voz do narrador, uma
vez que são estruturadas gramaticalmente no tempo passado, mas as cenas acontecem na
imaginação do leitor no presente. As cenas são traduzidas por meio da linguagem e se
movem diante do leitor.
O narrador, como seu autor, não detém todos os fatos, nem é dono de
todos os detalhes, muito menos de forma linear. Todo o intento de
organizar uma narrativa é um esforço intelectual. O romance só é fruto
do inconsciente porque é uma manifestação criativa, mas o fato
narrativo, esse é rigorosamente consciente e cultural. O narrador então
é um organizador de peças narrativas dispersas, conflituosas entre si,
tensas e incompletas. O leitor por sua vez se não tem uma narrativa
organizada, fa-la-á em sua cabeça. Pela necessidade de ordem e
linearidade, de dar sequência lógica a uma massa amorfa de
169
Úrsula tem uma firmeza na palavra que seca a boca de quem a ouve e o coração de
Macondo é a sua generosidade e rigorosidade. Junto com a sua morte em uma quinta-
feira santa traz para Macondo uma inundação de quatro anos, onze meses e dois dias.
Úrsula é o início e o declínio de Macondo, é a sustentação do povoado. Ela sente a
realidade que está ao seu redor, a praticidade e a decisão envolvem sua imagem, enquanto
seu marido e seus filhos caminham no tempo em busca das guerras e do imaginário. Qual
é o lugar que ela ocupa no processo criativo do autor?
Úrsula, uma criação, um labor, um cavar do escritor. García Márquez
artesanalmente trabalha a palavra, como Aureliano Buendía os seus peixinhos de ouro. É
o olhar sobre o real, como posso retomar esse real decantando a narrativa? Artesanato,
trabalho, transpiração. Macondo, Úrsula e outros personagens saltam aos nossos olhos
em romances anteriores a Cem anos de solidão, especialmente Os funerais de mamãe
grande, diálogo desta pesquisa, como posso pensar essa continuidade? De que forma essa
retomada do escritor permite pensar o seu projeto estético, criativo da obra? A criação é
um fazer artístico e sensível ao sujeito diante da necessidade de representação linguística,
por sua vez, racional.
Criador e criação, leitor diante. O leitor ao adentrar o texto literário precisa se
distanciar de suas certezas e voltar a luz de sua lanterna para o espaço artístico, o qual
permite um outro olhar de vida. Sem um posicionamento reflexivo que questione o efeito
que a leitura do texto provoca, o leitor desatento vai sentir o texto literário no seu eu
movido pela admiração sem pensar sobre o fundamento estético da obra. O leitor
pesquisador procura além do visível, do dito, do transparente, procura o que está na
subterraneidade e na intimidade do texto literário como um investigador e a sua lupa em
mãos. O escritor monta seu texto, peças são postas, uma teia de intencionalidades é
construída. O leitor comum estará mais susceptível a ser fisgado pelas armadilhas do texto
e a concordar que o texto literário conta só com uma possibilidade de interpretação.
Para concluir devemos pensar que o olhar do leitor pesquisador não captará tudo
o que se encontra na palavra. Esse olhar investigativo percorrerá o texto literário movido
171
por uma sensibilidade para ler além das linhas, para ouvir o não dito. O leitor está
mergulhado em palavras e imagens, os sentidos são múltiplos e ambíguos, o jogo
metafórico está lançado “Um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe
confusamente. Na clínica da arte de ler, nem sempre o que tem melhor visão lê melhor”
(PIGLIA, 2006, p. 19). O leitor pesquisador não desconsidera nenhuma possibilidade de
conhecimento, percorre as estruturas subterrâneas do texto literário e procura um diálogo
entre os elementos textuais regulares e as exterioridades da obra.
Referências
HEGEL, Georg. Curso de Estética I. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: EDUSP,
2001. (INTRODUÇÃO).
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. Tradução de Eric Nepuceno. Rio de
Janeiro: Record, 101.ed. 2017.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Todos los cuentos. Santiago de Chile: Sudamericana, 2012.
PIGLIA, Ricardo. O último leitor. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
172
Introdução
81
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura (PÓSLIT) da Universidade de Brasília. Mestre
em Estudos da Tradução e Bacharel em Letras – Tradução/Espanhol pela mesma universidade. E-mail:
saralelis@gmail.com
82
Os mexicas também são chamados de astecas, assim como outros que posteriormente adotaram outros
nomes (chalcas, huaxtecos), por serem oriundos da cidade de Aztlan (SANTOS, 2002, p. 71).
83
LEÓN-PORTILLA, 2011, p. 163-164.
84
Ao se estabelecerem no Altiplano Central, os mexicas fundaram México-Tenochtitlan, capital
mesoamericana, em 1325. Dominavam as rotas comerciais, recebiam tributos de quase toda Mesoamérica,
e impuseram o nahuatl como língua franca. A cultura dos mexicas consistiu em grande parte na apropriação
da cultura tolteca, sua antecessora (SANTOS, 2002, p. 75-76).
85
LEÓN-PORTILLA, 2011, p. 153.
173
Digo que não se deve dissimular nem permitir que ande aquele índio
representando seu ídolo e aos demais cantores suas idolatrias, cantos e
lamentações, os quais cantam enquanto veem que não há quem os
entenda presente. No entanto, em vendo que está quem os entende,
mudam o canto e cantam o canto que compuseram de São Francisco,
com o aleluia ao final para solapar suas maldades e, em transpondo o
religioso, tornam ao tema de seu ídolo86 (DURÁN, 1867, tradução
nossa).
86
Do original: “Digo que no se debe disimular ni permitir que ande aquel indio representando su ídolo y
a los demás cantores sus idolatrías, cantos y lamentaciones, los cuales cantan mientras ven que no hay
quien lo entienda presente. Empero, en viendo que sale el que los entiende, mudan el canto y cantan el
canto que compusieron de San Francisco, con el aleluya al cabo para solapar sus maldades y, en
trasponiendo el religioso, tornan al tema de su ídolo”.
87
Do original: “…en otras partes, y en las más, porfían de volver a cantar sus cantares antiguos en sus
casas o en sus tecpas [recintos comunales] (lo cual pone harta sospecha en la sinceridad de su fe cristiana)
porque en los cantares antiguos por la mayor parte se cantan cosas idolátricas en un estilo tan oscuro que
no hay quien bien los pueda entender sino ellos solos, y otros cantares usan para persuadir al pueblo a lo
que ellos quieren, o de guerra o de otros negocios que no son buenos, y tienen cantares compuestos para
esto y no los quieren dejar. Para que se pueda fácilmente remediar este daño, este año de 1583 se han
impreso estos cantares que están en este volumen, que se llama Psalmodia christiana en lengua mexicana
para que del todo cesen los cantares antiguos”.
174
1. Cantares Mexicanos
2. Kalendario Mexicano (en castellano)
3. Arte divinatorio de los Mexicanos (en castellano)
4. Ejemplos de las Sagradas Escrituras en Mexicano
5. Un sermón sobre aquello de Estole Sancti
(Sed santos…, también en Mexicano)
6. Memoria de la muerte (en Mexicano)
7. Vida de San Bartolomé (en Mexicano)
8. Fábulas de Esopo (puestas en Mexicano)
9. Historia de la Pasión (en Mexicano)
(CURIEL DEFOSSÉ, 1995, p. 71).
88
LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 80-81.
89
BIERHORST, 1995, p. 7.
90
LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 83.
175
Essa breve introdução aos Cantares Mexicanos baliza a existência de poesia nahuatl
no período pré-hispânico, vinculada à sua produção oral, e abre caminho para o início da
91
Do original: “...evidently the songs were taken from the lips of native informants during the 1550’s,
1560’s, and 1570’s (with one or two songs as late as the 1580’s); some appear to have been collected
singly, and others in batches; the collector was an acculturated Indian, probably in the service of Sahagún,
over the years he may have recopied at least some of the texts, adding explanatory headings and occasional
glosses; some of the work seems to have been done in Azcapotzalco, the rest in Mexico City; possibly the
collector was the well-known Indian writer and political leader Antonio Valeriano; or, just as likely, several
collectors were involved, including Valeriano”.
92
Do original: “Parece, por tanto, muy verosímil que los Cantares mexicanos fueron compilados en buena
parte por uno o varios estudiantes indígenas de fray Bernardino. La identidad del mismo puede rastrearse
un poco. Al tiempo en que Sahagún investigaba en Tepepulco estuvieron con él Antonio Valeriano” (LEÓN-
PORTILLA, 2011, p. 183).
93
Do original: “Y cuando sabemos que Sahagún hizo lo mismo indagando en diversos rumbos, ya que
comenzó por Tepepulco, región de Acolhuacan, y vino a terminar em Tenochtitlan, es muy de admitir que
él fue quien concibió la idea de hacer esta monumental colección y dio a sus colaboradores la tarea de
reunir poemas de sus diversas regiones.
176
94
BIERHORST, 1985, p. xii.
95
LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 10.
96
DÍAZ del CASTILLO, 1939, p. 169, tradução nossa.
177
glíficos nos quais se expressam conceitos como dia, nuvem, fumaça, cidade, palavra e
canto, assim como em glifos para números, calendários e outros glifos silábicos para
nomes de lugar e de pessoas97. Apesar dessa assertiva, houve durante os últimos anos
(1980 -) uma vasta discussão quanto à classificação da escrita mesoamericana na qual é
questionado se se trata de uma escrita logográfica, silábica, fonética, semasiográfica ou
rebus98. A conclusão a que chega León-Portilla, por exemplo, é a de que os signos
também representavam palavras e sons, hipótese recuperada através da escrita em nahuatl
em alfabeto latino inserida nos códices no período colonial:
Imagem 1: exemplo de escrita nahuatl acompanhada da escrita latina (LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 29).
No que se refere aos cantos, pois a escrita mesoamericana em si é tema para outro
artigo, a oralidade e o canto na escrita eram representados através de elementos
pictográficos. A transmissão do conhecimento e das tradições na cultura nahuatl mantinha
uma estreita relação com os códices, os quais indicavam quando a leitura deveria ser
cantada e/ou compartilhada oral e coletivamente como ensinamento. “Para aprender os
cantos, a conta dos dias, a história, se “seguia o caminho dos livros”, como expressa o
vocábulo amoxohtoca”99. O elemento pictográfico que caracteriza o canto e a oralidade é
popularmente chamado de vírgula:
97
LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 30.
98
WHITTAKER, 2009, p. 48-49.
99
LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 99.
178
100
CARR, 2016, p. 62-63.
101
CARR, 2016, p. 78.
179
Esses caracteres, no entanto, são base apenas para a paleografia de Bierhosrt e sua
posterior tradução para o inglês. Em português, por exemplo, no caso de nossa transcrição
do texto, adotou-se o alfabeto na escritura jesuíta antiga.
Essa transformação do nahuatl oral para o nahuatl escrito aclara a imprecisão da
linguagem nahuatl uma vez que há grandes possibilidades de perdas fonéticas. Além
disso, a perda do manuscrito franciscano e sua cópia pelos jesuítas datada de 1628
também configura mais uma camada que afasta o texto em alfabeto latino dos cantos
originais. Tal é o registro que se tem do manuscrito Cantares localizado atualmente na
Biblioteca Nacional do México.
Após transcrição e compilação durante a segunda metade do século XVI, e cópia
no início do século XVII, o manuscrito MS 1628 BIS esteve perdido até a década de
cinquenta do século XIX, quando foi redescoberto na antiga Biblioteca Nacional do
México pelo historiador mexicano Don José Fernando Ramírez. Desde então começaram-
se os estudos e traduções dos Cantares. À época da redescoberta, Ramírez solicitou ao
especialista em língua nahuatl Faustino Galicia Chimalpopoca que o transcrevesse em
outra obra para publicação. Foi transcrito também em 1865 pelo etnógrafo francês Charles
Étienne Brasseur de Bourbourg. Ambas as cópias de Chimalpopoca e Brasseur de
Bourbourg se encontram, respectivamente, na Biblioteca Nacional da Espanha e na
Universidade da Pensilvânia102. Segundo León-Portilla, a cópia do Cantares localizada
102
LEÓN-PORTILLA, 2011, p. 174.
180
nos Estados Unidos foi traduzida do nahuatl para o inglês por Daniel G. Brinton em 1887,
data da edição.
O manuscrito do século XVI, passada a redescoberta de Ramírez e suas três
consequentes publicações em nahuatl e inglês, foi encontrado em 1895 por José María
Vigil na Biblioteca Nacional do México, na época o diretor. O acontecimento gerou mais
publicações nos anos 1899, 1904 e 1918. As publicações de 1899 e 1904 são do mexicano
Antonio Peñafiel (1839 – 1922)103. A primeira, de 1899, trata-se da própria transcrição
dos Cantares e a segunda, de 1904, de uma edição fac-símile sem tradução e com uma
nota histórico-bibliográfica, obra à qual temos acesso pela versão em PDF (2011).
Traçamos o esquema a seguir:
1) Período pré-hispânico (séc. III – XVI) 2) Período colonial (séculos VVI e XVII)
Edição Versão
Redescoberta
fac-símile em PDF Transcrição Tradução
do até então
de do fac- por LELIS, por LELIS,
desaparecido
Peñafiel, símile de 2018 2018
MS 1628 BIS
1904 1904
103
CURIEL, 1995, p. 72-74.
181
Quadro 4: Paleografias e traduções dos Cantares: inglês, espanhol e português (1985, 2011, 2018)
Peñafiel, 1904, f. 16 v Paleografia de Tradução para o Paleografia de Tradução para o Transcrição de Lelis Tradução para o
Bierhorst (1985, p. inglês de Bierhorst León-Portilla (2011, espanhol de León- (2018) português por Lelis
182) (1985, p. 183) p. 196) Portilla (2011, p. (2018)
197)
Xiahuilompehua Strike it up in Xiahuilompehua Alegre empieza, Xiahuil ompehua Regue as plantas,
xihuioncuican pleasure, singer! Sing xiahuiloncuican alegre canta, tú xihuioncuican comece
ticuicanitl huiya ma in pleasure. May you ticuicanitl huiya ma cantor; alegraos, incuicanitl huiya Ei! Deem o tom os
xonahuiacany, all be pleasure. Life xonahuiacan y, reciba contento el maxonahuiacan y on cantores
onelelquixtilon Giver is entertained. onelelquixtilon Dador de la vida elelquixilonypalnemoh Cantem algo
ypalnemohuani yyeo Be pleasured. Life Ypalnemohuani yyeo Alegraos, ya nos uani yyco ayahui Que reguem as plantas
ayahui ohuaya Givers adorns us. All ayahui ohuaya envuelve el Dador de ohuaya ehe
Ma xonahuiacani ye are dancing as flower etcétera. la vida, con brazaletes Maxonahuiacan i Ai! Deram-me um
techonquimiloa bracelets. They’re Ma xonahuiacan i ye floridos se hace el vetechonquimiloa golpe lá onde todo
ypalnemohua ye Your flowers! techonquimilo a baile. Son tus flores, ypalnemoa ye mundo vive
xochimaquiztica They’re strewn: our Ypalnemohua ye ya se ofrecen, nuestro xochimaquiztica Estava em pé
netotilo ye nehuihuio songs are strewn xochimaquiztica canto ya se ofrece. netotilo yenehuihuio E chuviscava Ohuaya
aya moxochiuh a within this house of netotilo ye nehuihuio Donde están los ayamo xochiuha
ohuaya, yao yao ho bracelets, scattered in aya moxochiuh a brazaletes, en la casa ohuaye yao yaoho Que reguem as plantas
ama y yehuaya this house of gold. ohuaya, yao yao ho de metal precioso, amayyehuaya ahuayyao
ahuayyao aye ohuaya The flower tree is ama y yehuaya esparce sus hojas el ayeohuaya ohuaya Enterraram-me lá onde
ohuaya quaking: it shakes. ahuayyao aye ohuaya árbol xochincuáhuitl, se vive
Let the quetzal inhale. ohuaya se balancea, se mece. Não me entregaram
Let troupials, let flores no baile
swans, inhale. Encorajaram-me
Ainda não me deram
flores
Ohuaye yao yaoho
amayyehuaya
ahuayyao ayeohuaya
ohuaya
Elaborado por Sara Lelis de Oliveira no âmbito deste trabalho, 2018.
183
Considerações Finais
Referências
CARR, David Charles Wright. Lectura del Nahuatl. Versión revisada y aumentada.
México: Secretaría de Cultura, Instituto Nacional de Lenguas Indígenas, 2016.
DURÁN, Diego. Historia de las indias de Nueva-España e islas de tierra firme. Tomo I.
México: Imprenta de J. M. Andrade y F. Escalante, 1867. Disponível em:
http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/historia-de-las-indias-de-nueva-espana-y-
islas-de-tierra-firme-tomo-i--0/html/514896e8-f194-46bb-95fc-ff8cca6a87ea.htm
Acessado em 24/10/2018.
Resumo: Na primeira parte deste artigo apresento algumas definições sobre o processo criativo
no teatro para nos balizar acerca das diversas dinâmicas criativas aí existentes. Na segunda parte,
tomo emprestado o exemplo da minha própria trajetória formativa entorno da questão da
transmissão de um processo criativo institucionalizado. E por fim, concluo de maneira provisória
sobre alguns pressupostos acerca do processo criativo no teatro.
Palavras-chave: Processo criativo. Cultura Teatral. Programa de teatro.
“Mozart sabia dar rédea livre às fantasias. Elas borbulhavam num fluxo de padrões
sonoros que, quando ouvidos por outras pessoas, estimulavam seus sentimentos de
maneiras as mais diversas”. (ELIAS, 1995, p.60). Já pináculo da criação artística é
alcançado quando a espontaneidade e a inventividade do fluxo-fantasia se fundem de tal
maneira com o conhecimento das regularidades do material e com o julgamento da
consciência do artista, que as fantasias inovadoras surgem como por si mesmas,
satisfazendo as demandas tanto do material, como da consciência. (ELIAS, 1995, p. 63)
Neste ensaio, o sociólogo alemão para fazer sua análise da trajetória de Mozart, ao
longo dos seus breves 35 anos de existência, é auxiliado pela sociologia, história e
sobretudo pela psicologia. Porém, sua interpretação do processo criativo deste músico de
corte, que desaparece em 1791, ou da concepção de gênio, que ele adota, parece-me
fortemente amparada pelos conceitos apresentados por Hegel em sua Estética, quando
trata do artista.
Hegel, em seu tópico dedicado ao artista, reflete, no início do séc. XIX, sobre
noções tais quais, imaginação, talento, gênio, inspiração, estilo e originalidade. Ao
desenvolver seus conceitos, o filósofo afirma que a imaginação é “a faculdade artística
mais importante” (HEGEL, 1993, p.160), e destaca a noção de “fantasia” associada à
imaginação, que de fato seria a criadora, por oposição a uma imaginação passiva.
Assim, acrescentando-se o exercício da memória do artista acerca das coisas e dos
fatos vistos e vividos, é que afirma ainda o filósofo que “o artista deve inspirar-se, não no
reservatório das abstrações gerais, mas na vida; é que a missão da arte, prossegue o
filósofo, não é exprimir pensamentos, como a filosofia, mas formas exteriores e reais.
104
Walter Lima Torres Neto é formado em Artes Cênicas (Direção e Interpretação). Atualmente é professor
titular de Estudos Teatrais no Curso de Graduação e Pós-graduação em Letras da UFPR em Curitiba.
gualter20@gmail.com ou limatorres@ufpr.br
186
Este é o ambiente próprio do artista.” (HEGEL, 1993, p.160). Portanto, me deterei sobre
os procedimentos próprios às artes cênicas na fabricação dessas ditas “formas exteriores
e reais”.
As artes narrativas da cena possuem propriedades específicas quando as
comparamos à narrativa romanesca. Essas propriedades advêm das combinações entre
espaço e tempo como motores da enunciação teatral. Essas grandezas presentes tanto
numa obra ficcional, dita dramática, quanto idealizadas por meio de uma estética pós-
dramática, condicionam processos criativos distintos. Esses processos criativos
amparados no trabalho sobre o tempo e o espaço pavimentam a entrada em cena de uma
ação que pode ou não pressupor a representação.
Do ponto de vista de uma estrutura narrativa, atribui-se a Aristóteles a primazia de,
com suas considerações sobre a tragédia, nos chamar atenção para o funcionamento de
uma certa engrenagem narrativa. Com o passar do tempo verticalizamos a análise das
partes de qualquer máquina narrativa, por meio de interrogações não mais sobre os
elementos constituintes do drama (ação, conflito, interno e externo, intriga, personagem,
etc) mas sim sobre: a formação de uma identidade, a criação de um imaginário, a
veiculação de uma ideologia e os aspectos de uma intertextualidade inerentes a qualquer
obra. Mas eu não vou lhes falar sobre obras, e sim, sobre processos que levam à
configuração, no caso do teatro, a uma obra cênica, ou no dizer de Hegel suas “formas
exteriores e reais”.
Gianni Ratto, diretor, cenógrafo, homem de teatro de origem italiana que adotando
o Brasil, fez aqui sua carreira depois de deixar a Itália, afirma no seu livro Hipocritando,
que “a criatividade não é algo espontâneo, que surge magicamente por uma solicitação
onírica: a criatividade é sempre a consequência de algo que, incrustado no subconsciente,
provoca um encadeamento de imagens, de ideias e propostas convergentes.” (RATTO,
2004, p. 30). Mas como dar início ao processo criativo especificamente no campo teatral?
Como encontrar uma forma exata para obra, mesmo que esta forma seja provisória? Quais
seriam as etapas processuais deste trabalho teatral que conseguiriam cristalizar este
esforço criativo em “formas exteriores e reais”?
De uma maneira bem geral, e correndo o risco de abarcando o teatro desde a Idade
Média até os dias de hoje, ser acusado de cometer diversos anacronismos, arrisco definir
criatividade no teatro, como sendo: — o procedimento pelo qual um conjunto de agentes
criativos, de distintas áreas artísticas (atuação, dramaturgia, indumentária, cenografia,
iluminação, direção, cenotécnica, iluminotécnica...), mobilizados por um mesmo
187
princípio estético e ético, engajados num projeto artístico e ideológico comum, resolvem
compartilhar criativamente a concepção, execução e promover ainda a recepção de uma
obra cênica, pressupondo um espaço específico e uma determinada audiência.
Esse processo criativo envolve aspectos da técnica, da cultura e da teoria do teatro,
e na minha opinião, ele é condicionado por um forte espírito lúdico. Talvez a “fantasia”
de Hegel aqui compartilhada como um potencial de ludicidade, que mobilizaria os
agentes criativos envolvidos com a criação de uma obra cênica. Esse processo se daria
por meio de um conjunto incontável de ações e reações lúdicas, criativas, espontâneas ou
induzidas; ações e reações, as quais são selecionadas por tentativa/erro para amalgamar
uma determinada forma.
E desse conjunto de atitudes criativas vão se constituindo fragmentos de formas
provisórias, as quais buscam a expressão de conteúdos, até mesmo subliminares, que
agora afloram, atinentes que são às orientações estéticas do processo coletivo indutivo,
cuja meta é a realização de uma determinada obra cênica. É o trabalho intelectual de um
autor dramático ou de um diretor teatral, juntamente com o esforço criativo dos atores e
de um cenógrafo, que numa dinâmica conjunta alcançam essas formas provisórias, num
período que antecede a exibição pública da obra cênica. Esse período preparatório chama-
se genericamente de “ensaio”.
Tradicionalmente, esse conjunto de ensaios é coordenado por um único agente
criativo, cujo perfil, pormenorizado, veremos a seguir. É ele quem, historicamente:
preside os trabalhos criativos e técnicos dos demais agentes envolvidos no projeto; ele
racionaliza o emprego do tempo nas etapas processuais; ele provoca a fantasia dos artistas
envolvidos no processo; ele propõem temas e questões a serem compartilhados
criativamente; orienta o jogo com o espaço; e sobretudo se responsabiliza pelo processo
criativo como um todo, o qual se amalgará, pouco a pouco, no formato de uma obra
cênica. Numa palavra, no dizer de Anne Ubersfeld, que ao se aproveitar da leitura de
Kant, afirma que ele, o diretor teatral, é “o homem do julgamento”.
Como homem do julgamento é dele a última palavra sobre: a identidade da obra; as
figurações do imaginário nela presente; a ideologia da qual ela é portadora; e sobretudo
as combinações intertextuais ou inter-semióticas inerentes à obra.
Os ensaios ou os períodos preparatórios são constituídos por diversas etapas
denominadas no jargão teatral como: leitura de mesa; ensaio a italiana; ensaio de
marcação; ensaio baseado na improvisação corporal; ou na improvisação com texto; ou
ainda na improvisação musical; o ensaio também pode ser compreendido como um
188
treinamento para se dominar uma determinada técnica corporal ou vocal; pode ser
composto ainda de etapas específicas associadas a pesquisas, como por exemplo, uma
improvisação com máscaras; pesquisas de mimeses corpóreas; sessões de pesquisas
etnográficas; ainda tem-se ensaios mais técnicos de ligação de cenas e fragmentos; há
ainda ensaios corridos; ou ensaios técnicos de figurinos, de luz; até se chegar num ensaio
geral... aqui os procedimentos e as práticas são tão variáveis quanto às necessidades dos
grupos de agentes criativos alcançarem suas metas para o estabelecimento da obra cênica.
Ao término do período preparatório de ensaios, quando a obra alcança uma forma
satisfatória, ela é submetida a uma audiência. Pode-se estimar que neste momento, o
elenco de agentes criativos tenha alcançado um consenso, o qual permite a fixação desta
forma que é sustentada: pelo modo de se expressar da cena; pelo jogo da atuação dos
atores; pelos andamentos da encenação; pelas texturas dos materiais exibidos; pelo
balanço dos volumes e formas; pelo ritmo da música; pela harmonização de uma paleta
de cores para figurinos, iluminação e cenários; numa só palavra, esse elenco de agentes
criativos chegam a um consenso sobre uma teatralidade; ou mais contemporaneamente
uma performatividade que conceberam juntos em comum acordo, ao comungarem de um
mesmo projeto estético.
Evidentemente, essa forma convencionada, a ser exibida a cada noite ou a cada
sessão, ou intervenção no espaço público da rua, pode sofrer algum tipo de interferência
(interna ou externa) podendo vir a ser modificada no seu todo ou nas suas partes, desde
que os agentes criativos executores da obra estejam de acordo.
Tentei resumir o processo criativo no teatro que poderia denominar de tradicional
quando liderado por um único agente criativo. Agora gostaria de complementar
lembrando mais duas modalidades de processos criativos presentes no teatro. Vou
resumir para vocês o que seria, a meu ver, uma criação coletiva e o atual processo
colaborativo.
1. A criação coletiva
2. O processo colaborativo
formação, entorno da liderança pelo processo criativo. Por que? Porque o teatro é uma
arte social coletiva, e seria necessário a identificação de um agente criativo responsável
pelo conjunto da obra. E nesse sentido, uma distinção por meio de escolaridades,
diferenciariam uma formação técnica de uma formação universitária.
Não demorou muito e começava aos poucos uma reação no sentido de transformar
os cursos técnicos e de nível médio em cursos de nível superior. Todas as formações
“seriam alçadas” à formação universitária. Ocorria naqueles anos a passagem da noção
de formação do artista do âmbito de um ambiente tipo Conservatório, para o regime
acadêmico universitário. Tratava-se da mudança de um paradigma, de uma formação,
cuja herança era europeia, mormente francesa, para uma formação organizada por
créditos escolares no padrão das universidades norte-americanas, com disciplinas
independentes umas das outras.
Tratava-se de uma medida de controle (de contenção) dos agentes criativos que
naqueles anos durante a ditadura estavam fortemente associados aos movimentos
políticos, pois o Conservatório funcionava no antigo prédio da UNE e havia uma relação
de reciprocidade entre o movimento dos estudantes e as formas e conteúdos trabalhados
pelos artistas de teatro que ali se formavam. No plano institucional, a primeira exigência
foi que as Escolas Isoladas se agregassem em Federações, daí o surgimento primeiro da
Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da Guanabara – FEFIEG (1969),
posteriormente FEFIERJ – Federação das Escolas Isoladas Federais do Estado do Rio de
Janeiro (1975). Por ocasião da criação da FEFIEG, o Conservatório Nacional de Teatro
passou a denominar-se, Escola de Teatro da FEFIEG, e sendo instalada na antiga Escola
de Química da UFRJ, enclausurada entre o Morro da Urca, a Escola Superior de Guerra
e o Companhia de Pesquisa de Recurso Minerais (CPRM), no bairro da Praia Vermelha.
Finalmente, o Conselho Federal de Educação, em 1975, reconheceu os cursos de Direção
Teatral e Cenografia e criou os cursos de Interpretação e Teoria do Teatro, sendo essas
regulamentadas em 1978. Com a criação da UNIRIO, em 1979, concretizou-se a
institucionalização dos cursos superiores em Teatro. E a Escola de Teatro da UNIRIO,
consolidava-se como a única escola de nível superior a oferecer todos os cursos na área
de teatro.
Em 1989, era eu que me formava como ator e diretor teatral, habilitado por esta
mesma Escola, para construir formas simbólicas de expressão cênica. Eu, assim como
boa parte de meus colegas, atores ou diretores, fomos submetidos a uma formação
profissional para nos transformarmos em agentes criativos capacitados a atuar em formas
193
Quando docente do Curso de Direção Teatral na UFRJ, no início dos anos 1990,
procurei pesquisar sobre o trabalho criativo do coordenador da cena teatral, da encenação
ou da performance. Aproveitando-me da história do teatro brasileiro e dos vocábulos que
a língua portuguesa me oferecia estabeleci 04 tipos ideais: o ensaiador dramático; o
diretor teatral; o encenador; e o performador.
Esses tipos ideais de comportamento criativo era para demostrar aos jovens
aspirantes à carreira de diretor teatral, concepções criativas distintas diante da elaboração
e execução de uma obra cênica. No início dos anos 1990, o perfil deste realizador, —
envolvido por grandes transformações atinentes ao mundo digital e ao emprego da
tecnologia em cena, — era muito diferente da formação que me fora dispensada.
Assim, o trabalho criativo do coordenador da cena, conforme um ponto de vista
histórico, poderia ser idealmente resumido da seguinte maneira.
O Ensaiador Dramático, possuiria um perfil de cunho luso-brasileiro, trabalharia
basicamente focado na reprodução de uma cena que converge para expressão do gênero
dramático em que o texto foi escrito. Deve haver uma relação sincrônica entre literatura
dramática e encenação;
O Diretor Teatral por sua vez aporta uma leitura crítica do texto teatral e confere ao
mesmo um revestimento estético, produzido por uma subjetividade que lhe permita
assinar o espetáculo, elevando-o a condição de uma obra de arte independente da
literatura.
O Encenador a seu turno, tensionando cada vez mais a emancipação da cena em
relação à literatura teria o seu trabalho criativo disparado a partir de qualquer resíduo
literário, questão, problema, trazendo à cena uma obra que não tem necessariamente
nenhum vínculo com uma literatura dramática, instaurando novos protocolos criativos e
formas expressivas;
O Performador, estaria próximo daquele criador cênico, que em grupo ou
individualmente, oferece sua própria biografia, decantada por manifestações poéticas
performativas em forma de ações e intervenções cujas matrizes indutivas adviriam do
happening e das artes da performance com o fim de fabricar uma forma cênica muitas
vezes radical, pois arriscando-se fisicamente seus limites entre o real e o ficcional
confronta o espectador com formas divergentes.
Dando continuidade aos estudos sobre processos de criação cênica, em 2013, passei
a estudar o discurso dos agentes criativos expresso nos programas de espetáculos teatrais.
Nesta pesquisa com os programas de teatro, o mais estimulante foi a descoberta da
195
Referências
BOAL Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. São Paulo: Cosac Naify,
2013.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre o teatro. (Trad. Fiama Pais Brandão). Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1978.
ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. (Trad. Sérgio Góes de Paula). Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1995.