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ANAIS DO II SEMINÁRIO NACIONAL DE

EPISTEMOLOGIA DO ROMANCE

Organização:
Grupo de Pesquisa Epistemologia do Romance

Corpo Editorial:
Prof.ª Drª. Ana Paula Aparecida Caixeta (IDA-UnB)
Prof.ª Drª. Maria Veralice Barroso (SEEDF)
Prof. Dr. Wilton Barroso Filho (TEL/UnB)
Nathália Coelho da Silva (PósLit – UnB)
Sara Lelis de Oliveira (PósLit – UnB)

Brasília
Universidade de Brasília
2018
Coordenação geral:
Dra. Ana Paula Aparecida Caixeta (IdA/VIS)

Comissão Científica:
Prof.ª Drª. Ana Paula Aparecida Caixeta (IDA-UnB) - Brasileira
Prof.ª Drª. Maria Veralice Barroso (SEEDF) - Brasileira
Prof. Dr. Wilton Barroso Filho (TEL/UnB) - Brasileiro

Comissão Organizadora:
Denise Moreira Santana (PósLit – UnB) - Brasileira
Emanulle Souza Alves da Silva (PPGM – UnB) - Brasileira
Janara Laíza de Almeida Soares (PósLit – UnB) – Brasileira
Luana Araújo Gonzaga (VIS) - Brasileira
Lucas Fernando Gonçalves (PósLit – UnB) - Brasileiro
Nathália Coelho da Silva (PósLit – UnB) – Brasileira
Priscila Cristina Cavalcante Oliveira (PósLit – UnB) – Brasileira
Sara Lelis de Oliveira (PósLit – UnB) – Brasileira

Diagramação:
Nathália Coelho da Silva (PósLit – UnB) – Brasileira
Sara Lelis de Oliveira (PósLit – UnB) – Brasileira

Projeto Gráfico:
João Paulo Coelho - Brasileiro

Revisão:
Sara Lelis de Oliveira (PósLit – UnB) – Brasileira

Arte da capa:
Ana Paula Aparecida Caixeta – (IdA/VIS)
Grupo de Pesquisa Epistemologia do Romance

A532 Anais eletrônicos do II Seminário Nacional de Epistemologia do


Romance: o estético como espaço de entendimento do
humano / Grupo de Pesquisa Epistemologia do Romance,
organização. – Brasília : Universidade de Brasília, 2018.
196 p. : il.

Disponível em formato eletrônico.


Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-89698-54-2

1. epistemologia do romance. 2. epistemologia – estética.


3. literatura. 4. teatro. 5. tradução I. Grupo de Pesquisa
Epistemologia do Romance.

CDU 82
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Wilton Barroso Filho
...........................................................................................................................................7

TRADUÇÃO E DO SABER: EPISTEME


Ana Helena Rossi (UnB) .................................................................................................. 8

APONTAMENTOS PARA UMA ESTÉTICA EPISTEMOLÓGICA


Ana Paula Aparecida Caixeta (UnB)
........................................................................................................................................ 25

TRADUZIR O SENTIR/CONHECER NA LÍNGUA DO INVASOR: GAMALIEL


CHURATA E O COMBATE DE EL PEZ DE ORO
Cesar Augusto López Nuñez (UNASM)
........................................................................................................................................ 34

AS NARRATIVAS (IM)POSSÍVEIS NOS ROMANCES METAFICCIONAIS


HISTORIOGRÁFICOS DE BARBARA CHASE-RIBOUD: DISCURSO, CORPO
E PODER
Dayse Rayane e Silva Muniz (UnB)
........................................................................................................................................ 42

UM GESTO ESTÉTICO DO AUTOR CARLOS FUENTES NA CONSTRUÇÃO


DOS ESPAÇOS LITERÁRIOS NA OBRA TERRA NOSTRA
Denise Moreira Santana (UnB)
........................................................................................................................................ 53

O FOBÓ MASCARADO COMO LINGUAGEM LITERÁRIA AMAZÔNIDA:


UM FESTEJO REAL QUE SUSPENDE A REALIDADE OU A DENSIFICAÇÃO
DO IMAGINÁRIO?
Elian Karine Serrão da Silva (UFOPA)
Itamar Rodrigues Paulino (UFOPA)
........................................................................................................................................ 63

O ESPÍRITO DE ÉPOCA DA DECADÊNCIA DOS VALORES


Emanuelle Souza Alves da Silva (UnB)
....................................................................................................................................... 71

PERCEPÇÕES ESTÉTICAS DA PINTURA CORPORAL INDÍGENA DA


COMUNIDADE DOS AWAETE PARAKANÃ NO SUDESTE PARAENSE
Habia Santos de Melo (UFOPA)
Itamar Rodrigues Paulino (UFOPA)
........................................................................................................................................ 77
CENAS DA VIDA AMAZÔNICA DE INGLEZ DE SOUZA: TAFULHANDO
SOBRE ESTÉTICA E EPISTEMOLOGIA
Itamar Rodrigues Paulino (UFOPA)
........................................................................................................................................ 84

EPISTEMOLOGIA E FEMINISMOS: TRANSFORMAÇÕES NO ESTUDO DO


ROMANCE
Janara Laíza de Almeida Soares (UnB)
....................................................................................................................................... 98

O QUE PODE UM CORPO QUE NÃO AGUENTA MAIS?: UMA BREVE


ANÁLISE DO LITERÁRIO NA AUTOBIOGRAFIA DE LORIS ÀDREON
“MEU CORPO, MINHA PRISÃO”
Leocádia Aparecida Chaves (UnB)
...................................................................................................................................... 109

ARTE, CONHECIMENTO E ESCRITA DE SI: MO(VI)MENTOS


AUTOBIOGRÁFICOS E (AUTO)FORMAÇÃO DO SUJEITO
Luiz Carlos Pinheiro Ferreira (UnB)
...................................................................................................................................... 118

O EPISTÊMICO E O METAFÍSICO NO ROMANCE QUE PENSA


Maria Veralice Barroso (UnB)
...................................................................................................................................... 131

“VOCÊ É SEU PRÓPRIO LAR”: A POESIA COMO MEIO DE


RESSIGNIFICAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS PARA MULHERES VÍTIMAS DE
VIOLÊNCIAS
Maxçuny Alves Neves da Silva (SEE – DF)
...................................................................................................................................... 143

CAMINHOS POSSÍVEIS ENTRE O CORPO E A PALAVRA:


APONTAMENTOS METAFICCIONAIS EM UMA/DUAS DE ELIANE BRUM
Nathália Coelho da Silva (UnB) ................................................................................... 151

CEM ANOS DE SOLIDÃO À LUZ DOS ESTUDOS EPISTEMOLÓGICOS


Priscila Cristina Cavalcante Oliveira (UnB)
...................................................................................................................................... 164

POESIA NAHUATL EM PORTUGUÊS: PERCURSO ARQUEOLÓGICO-


TRADUTÓRIO
Sara Lelis de Oliveira (UnB)
...................................................................................................................................... 172

ASPECTOS DO PROCESSO CRIATIVO NO TEATRO


Walter Lima Torres Neto (UnB)
...................................................................................................................................... 185
APRESENTAÇÃO

Wilton Barroso Filho1

O estético como espaço de entendimento do humano foi o tema do nosso segundo


Seminário Nacional que, levado em conta o nosso Seminário Internacional do ano
passado, foi na prática o terceiro de uma série que o apoio da FAP-DF nos permitiu
realizar. Que venham muitos outros. Também é um ano que temos muito a celebrar
porque lançamos o nosso primeiro livro de grupo, Estudos Epistemológicos do Romance.
Diferentemente das anteriores, nesta edição do seminário cada organizador das
mesas teve autonomia nas escolhas. O resultado foi muito bom, sobretudo porque os
debates com olhares vindos de fora foram extremamente ricos.
O estético como espaço do entendimento foi uma escolha nossa muito decorrente
do nosso trabalho de pesquisa em grupo. Aponta um desenvolvimento teórico relevante
que permite discussões com outras áreas do conhecimento: artes, psicologia, história,
sociologia, tradução e teatro.
Agora uma parte bastante expressiva desta semana intensa está aqui em forma
perene de texto. Só me resta desejar aos nossos leitores uma grande fruição.

1
Professor associado no Departamento de Filosofia, no Departamento de Teoria Literária e nos Programa
de Pós-Graduação em Literatura e Metafísica da Universidade De Brasília. Coordenador do grupo de
pesquisa Epistemologia do Romance (CNPq/UnB).
8

TRADUÇÃO E EPISTEMOLOGIA DO SABER: EPISTEME

Ana Helena Rossi (UnB)2

Resumo: Tradução é um processo que compreende várias etapas interligadas e relacionadas entre
si por questões epistemológicas referentes à construção do saber. Quando se traduz, existem
sempre os lócus A e B, entre os quais o/a tradutor(a) intervém pela linguagem, a começar pelo
lócus A (texto de partida) até operacionalizar as metamorfoses do texto que vão desembocar no
lócus B (texto de chegada). Tradução tem a ver com conhecimento, e como esse conhecimento
organiza-se em um polo para ser modificado no outro polo. Daí a importância de termos um
percurso analítico (Antoine Berman), e entendermos a importância do continuum de conversões,
conceito cunhado por Marcos Vinícius Leite a partir da leitura do texto de Walter Benjamin, “A
tarefa do tradutor” [Die Aufgabe des Übersetzers], e desenvolvido por mim. A metodologia
propõe dois resultados: de um lado o texto da tradução e, do outro lado, o discurso sobre a tradução
que remete à epistemologia do saber.
Palavras-chave: Tradução. Epistemologia do saber. Linguagem. Antoine Berman. Walter
Benjamin.

Résumé: Traduction est un processus qui comprend plusieurs étapes toutes reliées entre elles par
des questions épistemologiques en relation avec la construction du savoir. Lorsqu’on traduit, il
existe toujours les locus A et B, parmi lesquels le traducteur intervient par le langage en
commençant par le locus A (texte de départ) jusqu’à rendre operationnel les métamorphoses
textuelles qui déboucheront sur le locus B (texte B). Traduction a á voir avec la connaissance, et
comment cette connaissance s’organise dans un pole pour être modifié sur l’autre pole. D’où
l’importance d’avoir un parcours analytique (Antoine Berman), et de comprendre l’importance
du continuum de conversions, concept mis à jour par Marcos Vinícius Leite à partir de la lecture
du texte de Walter Benjamin, “La tâche du traducteur”[Die Aufgabe des Übersetzers], et
développé par moi. La méthodologie propose deux résultats: d’un côté, le texte de la traduction,
et de l’autre, le discours sur la traduction qui renvoie à l’épistémologie du savoir.
Mots-clés: Traduction. Épistémologie de la connaissance. Language. Antoine Berman. Walter
Benjamin.

Introdução

O título da minha conferência “Tradução e Epistemologia do Saber: episteme” no


II Seminário Epistemologia do Romance cobre o campo conceitual e metodológico que
quero traçar aqui, hoje, com vocês. Trata-se de um diálogo que desenvolvo há vários anos
no âmbito acadêmico, em especial na Universidade de Brasília, e que relaciona tradução
e saber, ou melhor dizendo, como o saber é construído, quais as suas finalidades, qual a

2
Profa. Dra. Ana Helena Rossi, Atua no Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução (LET) do
Instituto de Letras da Universidade de Brasília, e nos Programas POSTRAD e POSLIT da Universidade de
Brasília. Poeta, possui um blog de poesia [https://ana-poesia-poesie.blogspot.com/]. Fundadora e Editora
da revista caleidoscópio: linguagem e tradução [http://periodicos.unb.br/ojs311/index.php/caleidoscópio].
E-mail: anahrossi@gmail.com.
9

sua metodologia, isto é, qual é a episteme que está em jogo. Então, inicialmente, vejamos
algumas definições que servirão de embasamento para a nossa discussão.
Por tradução, entende-se, aqui, não o ato técnico de alterar o código
linguístico/léxico, de uma frase, de uma expressão. Refiro-me, aqui, ao que construí na
Universidade de Brasília durante todos os meus anos de ensino e de orientação de
trabalhos acadêmicos em sala de aula, e que está objetivado nos trabalhos que orientei
(graduação e pós-graduação). Nesse sentido, tradução é processo3 isto é, a tradução
definida como um conjunto de atos (que podem ser também interpretados como sendo
individuais), mas cuja inteligibilidade dá-se no âmbito do macro, isto é, de uma
metodologia/sistematização/percurso analítico que correlaciona as distintas atividades
realizadas em vários momentos “t” da tradução. Portanto, essas atividades não são
independentes entre si, elas se redefinem umas em relação às outras dentro de um universo
que cita e correlaciona elementos e cuja base é o recorte da realidade e o que vamos
selecionar.
Tradução é também selecionar, adequar, organizar, (re)organizar, estabelecer
pontes, critérios, diferenças de percepção, imaginação, elaborar cortes, e sustentar
posições, pois, segundo Gaston Bachelard4 trata-se de conceber/imaginar/sonhar o que
está sendo traduzido, qual é o ponto fulcral do texto que será traduzido. E, para isto, está
ligado à capacidade de interpretar. Estas imaginação e criatividade embasam o ato de
tradução porque traduzir também é criar e processar, e interpretar, e selecionar, e adequar,
é também organizar, e dar a ver o recorte daquele universo. Tradução é, pois, uma
organização de elementos que identificam e sistematizam os saberes em jogo, que os re-
conhece como tal no lócus A, e, em seguida, dentro desse processo, os reformata, os
reconstrói, os ressignifica-os no lócus B. Onde estão esses saberes? O texto que é o objeto
da tradução é sempre resultado de uma cultura, de uma cosmovisão, de um ponto de vista
elaborado, de uma opção científica fruto de uma discussão, de uma poesia que re-elabora
o recorte do mundo. A ressignificação constitui uma etapa fundamental para o trabalho
de tradução. Não é possível traduzir, no sentido que opero aqui, sem uma compreensão
fina a priori do material a ser traduzido, pois trata-se de
recombinar/redistribuir/reinventar os diferentes elementos em jogo. Tradução tem a ver

3
ROSSI, Ana Helena. “Processos e experiências: pensando a tradução”. caleidoscópio: linguagem e
tradução. Vol, 2. n. 1. Junho de 2018. p.1-14
4
BACHELARD, Gaston. L’eau et les rêves: essai sur l’imagination de la matière. Paris. Librairie José
Corti, 1942, 267 pp.
10

com linguagem5, pois relaciona-se com a nomeação das coisas do mundo. A nossa
compreensão (das coisas, do mundo, e de nós mesmos) provém da linguagem, do
elemento linguístico que nos faz constituir as categorias de inteligibilidade. São estas
operações que constroem o sentido (ou não) daquilo que vivemos.
Outro conceito que trago aqui é o de episteme, no sentido desenvolvido por Michel
Foucault em seu livro Les mots et les choses6, e de maneira mais indireta em Archéologie
du savoir7 com a noção de “discurso” e de “discursividade”, levando em conta as muitas
críticas já tecidas a este conceito, cujas definições retomo aqui8. Na entrevista de Michel
Foucault com Noam Chomsky (1971), epistemologia é:

identificar as transformações de um saber no interior ao


mesmo tempo do campo geral das ciências, como também, no
interior do campo de alguma maneira vertical que constitui uma
sociedade, uma cultural, uma civilização em um dado momento.9
(tradução e grifos meus)

O elemento fundamental aqui são as transformações do saber enquanto


conhecimento do mundo, estabelecido a partir de uma dupla identificação no campo geral
das ciências. Em Les mots et les choses, Michel Foucault confirma que:

Não se trata de conhecimentos descritos em seu progresso rumo


a uma objetividade na qual a ciência de hoje poderia, enfim, se
reconhecer; o que gostaríamos de trazer à luz do dia é o campo
epistemológico, a episteme na qual os conhecimentos,
considerados fora de todo e qualquer critério que se refira a seu
valor racional ou a suas formas objetivas, confirmam sua
positividade e manifestam assim uma história que não é aquela
de sua perfeição constante, mas, sim, aquela de suas
condições de possibilidade.10 (Tradução e grifos meus)

5
ROSCOE-BESSA, Cristiane. “O conceito de linguagem em Walter Benjamin e sua relação com a
tradução”. Traduzires. Vol. 4. 2013. p. 29-39.
6
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris. Gallimard.
1966, 400p.
7
FOUCAULT, Michel. L’Archéologie du savoir. Paris. Gallimard. 1969. 175p.
8
JUIGNET, Patrick. Michel Foucault et le concept d’épistème”. In: Philosophie Science et société (en
ligne). 2015. https://philososciences.com/philosophie-generale/la-philosophie-et-sa-critique/10-michel-
foucault-episteme (/philosophie-et-societe/29-philosophie-generale/-la-philosophie-et-sa-critique/10-
michel-foucault-episteme). Acesso em 01/11/2018
9
Original em francês: “saisir les transformations d’un savoir á l’intérieur à la fois du domaine généal des
sciences et, également, à l’intérieur du domaine en quelque sorte vertical que constitue une société, une
culture, une civilisation à un moment donné.”
10
Original em francês: “Il ne sera pas question de connaissances décrites dans leur progrès vers une
objectivité dans laquelle notre science d’aujourd’hui pourrait enfin se reconnaître; ce qu’on voudrait
mettre au jour, c’est le champ épistémologique, l’épistèmè où les connaissances envisagées hors de tout
critère se référant à leur valeur rationnelle ou à leurs formes objectives, enfoncent leur positivité et
11

As condições de possibilidade são aquelas necessárias para que haja conhecimento.


São aquelas condições que estruturam o texto. É sempre muito difícil registrar essa
memória, pois ela traz as idiossincrasias e tem a ver com as escolhas feitas, e não apenas
com o resultado final do texto. Trata-se das condições histórico-sociais-culturais de
existência do texto. Assim, tornar possível uma tradução significa ter em mente o registro.
Episteme pode ser definida como a ordem/a organização que estrutura a linguagem
em um determinado tempo histórico, em uma determinada época, levando em conta as
condições de sua possibilidade, que precisam ser registradas para serem analisadas
enquanto conjunto de decisões tomadas.
Pois, o que está em jogo é construção/identificação do saber, isto é, “uma obra
enraizada na biografia de sua experiência.”11 A experiência chama as possibilidades de
compreensão do que é feito, e de como é feito, como afirmou Paracelso a respeito de
“experiência”, assim como sua importância na historiografia das ciências:

Ele sustentava que apenas a experiência, e não a


aprendizagem nos livros permitiria realmente saber
curar. Trazendo uma perspectiva alquímica ao estudo da
vida e da medicina, Paracelso participou da unificação
das ciências.12 (Tradução e Grifos meus)

Assim como Paracelso, Isaac Newton, o descobridor da lei da gravidade na física,


também foi um alquimista.13

1. Tradução como processo epistemológico

Esta pesquisa inicia-se a partir da minha atuação como tradutora, e toma corpo no
âmbito da minha atuação na Universidade de Brasília, desde março de 2011, como
professora no Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução do Instituto de Letras
da UnB, atuando em sala de aula, orientando monografias de fim de curso (TCC),

manifestent ainsi une histoire qui n’est pas celle de leur perfection croissante, mais plutôt celle de leurs
conditions de possibilité.”
11
KRISTEVA, Julia. Le génie féminin 1. Hannah Arendt. Paris. Fayard. 1999. p. 9. Traduzido por mim a
partir do original a seguir: “(...) une oeuvre enracinée dans la biographie de leur expérience.”
12
Traduzido do original por mim, a seguir: « Il soutenait que seule l’expérience, et non l’apprentissage
dans les livres, permettait véritablement de savoir soigner. En apportant une perspective alchmique à
l’étude de la vie et de la médecine, Paracelse a participé à l’unification des sciences ». in : Richard Aline,
Le Meur Hélène. Les grandes controverses scientifiques. Paris. Dunod. 2014, pp. 2-5.
13
CHEMLA, D., ABASTADO, P. « Vésale, Paré et Paracelse : trois figures médicales majeures de la
Renaissance ». in La lettre du cardiologue – Risque Cardiovasculaire. n. 428. outubro de 2009. p. 35.
12

dissertações de Mestrado, realizando cursos de extensão na Universidade de Brasília.


Iniciei esse trabalho na Universidade com textos datados, isto é, com textos da
contemporaneidade, todos publicados em editoras, portanto facilmente identificáveis. Os
gêneros textuais também foram os mais diversos: romances, poesia, artigos científicos de
várias áreas do conhecimento, manuais de empresa, contos, estórias infantis, textos
históricos, textos jurídicos.
O primeiro passo do processo é que os alunos escolhiam em primeira mão textos
que deveriam ser validados por mim em uma segunda avaliação. Surge, então, a primeira
dificuldade que percorre todo o trabalho tradutório: a leitura do texto/ler o texto. Esse
trabalho para escolher o texto confirmou empiricamente que “ler” não é apenas percorrer
o texto e dizer o que nele contém. Parece óbvio, não é, mas não o é porque ler, no sentido
entendido aqui, remete às competências linguístico-culturais-sociais dos alunos para
identificar o conteúdo de um texto, sua intertextualidade, enfim, um conjunto de
competências que saem do “eu acho que...”, e que as têm a ver com perguntas tais como:
Como explicar o texto? Quais critérios da sua escolha? Foi preciso guiar e orientar os
alunos a tomarem consciência do formato do texto, da escrita do texto, da historicidade
do texto, de sua sistematização interna, de suas camadas de sentido. Nessa pesquisa,
progressivamente, minha atenção voltou-se mais por textos literários que, na minha visão,
contém um conjunto de problemas que existem também nos demais gêneros de textos a
serem traduzidos. Para mim, os textos literários são os mais complexos e os mais difíceis,
pois, estabelecem uma relação complexa entre o que é real, o verossímil, o verdadeiro, o
que é histórico, o que é sociológico, categorias essas que os demais textos assumem como
definitivas, e que os textos literários problematizam. A plasticidade do texto literário é
observada em suas utilizações: eles podem ser o testemunho de uma época, dizendo, às
vezes, dependendo da pluma do/a autor(a) mais sobre o real do que um texto classificado
como histórico. Observamos também sua utilização no âmbito
histórico/sociológico/antropológico de maneira complementar ao texto histórico. O
conhecimento que temos do mundo, das diferentes culturas se encontra registrado na
linguagem dos textos literários.

1.1 Texto? Par linguístico?: iniciar o processo

Para tornar essas escolhas referentes ao texto mais conscientes por parte dos alunos,
sistematizei esses critérios nos seguintes pontos abaixo:
13

1. O texto a ser escolhido deve ser um texto clássico, conhecido, datado e com uma história.
2. O texto deve ter sido publicado por uma editora/site/arquivo identificáveis como prova de sua
existência.
3. Não são aceitos textos de própria autoria.
4. Deve ser escrita uma justificativa, isto é, identificar o conjunto de leis internas que regem esses textos.
A justificativa é um texto redigido e formalizado com parágrafos estruturalmente coerentes entre si. Essa
demanda trouxe a primeira grande dificuldade para os alunos: o que é justificar o texto? Como estruturar
um parágrafo? O que é um parágrafo?

Começamos a estruturar formalmente o texto, identificando as leis que os regem,


como as leis da coerência e da coesão. Cada dificuldade foi sistematizada como um
problema que devia ter uma resposta. Recupero, aqui, essa questão fundamental porque
foram as dificuldades dos alunos – e sua obrigação de resolvê-las –, foram suas muitas
perguntas que pareciam inocentes – mas não o eram – que me colocaram esses desafios
para trazer respostas compreensíveis para eles. Aprimorei a metodologia semestre após
semestre, orientação após orientação, monografia de curso após monografia de curso.
Sou-lhes muito grata.
Conjuntamente com isso, a escolha do par linguístico precisava ser melhor
compreendida, e deixar de ser óbvia. Na disciplina Teoria da Tradução 2 – disciplina
obrigatória do curso de Letras – Tradução do Departamento de Línguas Estrangeiras e
Tradução, conjuntamente com as disciplinas de versão (dadas em francês) intituladas de
Práticas de Tradução – Textos Literários – português-francês, e Práticas de Tradução –
Textos Gerais – português-francês, e Práticas de Tradução – Textos Técnico-Científicos
– português-francês, orientei trabalhos que utilizaram os três pares linguísticos em estudo
na Universidade no curso de Letras-Tradução: português-francês/francês-português,
português-inglês/inglês-português, espanhol-português/português-espanhol.
Em primeiro lugar, a escolha do par linguístico deve ser problematizada na
tradução, assim como a escolha de fazer uma versão (do lócus A conhecido para o lócus
B desconhecido) ou uma tradução (do lócus A desconhecido para o lócus B conhecido).
Quando se opta por uma tradução, trata-se de operacionalizar esse processo dentro de um
movimento que sai do polo desconhecido para o polo conhecido, aquele conhecido como
língua materna. Em termos de senso comum, diz-se que “trazemos” a tradução para o que
conhecemos. O outro movimento é optar pela versão que, no caso, significa partir do
lócus conhecido e ir para o lócus desconhecido. Essas especificidades não foram
suficientemente elaboradas.
14

Nas minhas experiências em sala de aula, a grande maioria dos alunos da graduação
chegava em sala de aula com a ideia firme e forte que eles iam “passar” o texto de uma
língua para outra, não importando se era tradução ou versão. Nessa lógica, o que existia
no texto A (texto de partida) existia também o texto B (texto de chegada). Vários
pressupostos embasavam essa visão dos alunos. Um deles é que as línguas funcionariam
de maneira simétrica. Portanto, era só “passar” de uma língua para a outra com a ajuda
dos dicionários na procura de palavras fragmentadas, desconectadas do seu contexto
textual. Tal concepção da tradução é mais comum do que se pensa. Nesta visão, a tradução
consiste em um ato de “passagem”. Desconsiderava-se, portanto, o recorte semântico,
visual, sonoro (verbivocovisual, segundo a poesia concretista) do léxico, a etimologia da
palavra.
Essa compreensão da não-simetria das línguas não foi algo adquirido a partir da
leitura de textos. Isso veio de minha própria experiência de ter entrado em contato, desde
muito cedo, com várias línguas, de famílias linguísticas diferentes. A língua é um corpo
social, ativado pelo coletivo, aprendida com o coletivo. Se somos seres falantes de
língua(s), é porque fomos socializados na prima infância e posteriormente para falar a(s)
línguas, para moldar a nossa garganta e falar sem sotaque durante anos de aprendizado
para chegarmos ao que parece ser, hoje, familiar e óbvio. Mas isso nós já esquecemos.
Essa proposta de tradução nos faz adentrar novamente nesses terrenos complicados da
nossa experiência linguística. Lembro-me, sempre, o meu perfeito estranhamento quando
aprendi, aos 10 anos de idade, na Bélgica, onde morava com a minha família, que a língua
flamenga possui o “neutro”, e que o particípio passado era colocado no final da frase. Isso
coloca uma outra atenção para o interlocutor, pois trata-se de prestar atenção ao verbo
que aparece no final. Esse estranhamento orientou-me para as idiossincrasias das línguas,
suas sobrevivências, suas dimensões nunca imaginadas em outra língua. Porque língua é
cultura, e organização de conhecimento, como afirma Aryon Rodrigues:

Se a gente entende linguística como o estudo específico da natureza da


linguagem humana e as suas múltiplas manifestações nas línguas dos
povos, a primeira relação é justamente esse ponto comum, a capacidade
humana de comunicação através das línguas, e não apenas
comunicação, mas organização do conhecimento. Não é só saber
dar recado para o outro. É entender as coisas.14 (Grifos meus)

14
ROSSI, Ana Helena. “Entrevista com o Prof. Dr. Emérito Aryon Dall’Igna Rodrigues por Ana Helena
Rossi, Traduzires, n. 2, Dezembro de 2012, p. 127.
15

Trata-se da “língua-cultura”, que são inteligibilidades culturais organizadas na


linguagem de um povo a respeito do mundo, e que o tradutor identifica e em explicar:

Se ele domina as duas línguas, quando há desencontro de concepções


básicas, o que ele faz é simplesmente descrever na língua que ele
está usando, para a qual ele está traduzindo, uma tradução mais ou
menos literal do que os outros dizem, e aí ele tem que interpretar um
pouco, dizer como eles estão entendendo aquilo que é diferente do que
ele mesmo aprendeu. Ele tem que estar com o pé nos dois lados, do lado
da língua do outro, e da língua dele para a qual ele está traduzindo.15
(Grifos meus)

Assim, cada língua constitui-se em um lócus com suas idiossincrasias, sua história,
suas estranhezas que cotejam o conhecido, e o conhecido coteja o estranho.
Então, voltando ao nosso problema do percurso metodológico, qual a relação entre
as línguas do par linguístico escolhido? De fato, trata-se de dois lócus de estranhamento,
dois lócus que interagem, dois lócus com os quais o aluno deve lidar compreendendo essa
estranheza que acompanha o familiar, construindo uma interação que se espera a mais
consciente possível. Lócus, palavra latina, é um local específico16 que conjugo com os
afetos. Toda língua contém elementos estranhos, cuja definição segundo o dicionário é:

1. Estrangeiro, 2. Desconhecido. 3. Alheio. 4. Singular.


5) Extraordinário. 6) Esquisito. 7) Anormal, desusado. 8)
Excessivo. 9) Repreensível. 10) Esquivo. 11) Não afeito,
não habituado.17

Essa série de exercícios iniciais para definir o texto fizeram imergir dúvidas
profundas. Estávamos prontos para iniciar o trabalho de tradução como processo.

1.2 Registrar o processo de tradução: a tradução é lócus da pesquisa

O processo tradutório é tudo, menos linear. Ele tem seus vai-e-vem, e não é
constituído por categorias herméticas entre si. Em razão da complexidade da tarefa
tradutória, e de seus inúmeros labirintos, a questão central é registrar o que está sendo
feito na tradução, a historicidade das soluções, seus erros e acertos, suas dúvidas. Sem
esse registro/memória/diário/comentários, esse conjunto de paratextos que se constitui no

15
ROSSI, Ana Helena, “Entrevista com o Prof. Dr. Emérito Aryon Dall’Igna Rodrigues por Ana Helena
Rossi, op. cit., p. 130.
16
Dicionário PRIBERAM, https://dicionario.priberam.org/lócus. Acesso em 01 de novembro de 2018.
17
Dicionário PRIBERAM, https://dicionario.priberam.org/estranho. Acesso em 01 de novembro de 2018.
16

decorrer do trabalho tradutório desaparece. Sem memória, impossível construir e


questionar o processo, impossível rever as escolhas tradutórias inquirindo-as à luz do que
foi feito. Impossível termos um movimento re-flexivo, resgatando a etimologia da palavra
“reflexão”, conforme abaixo:

Do latim tardio reflexio, -onis, volta, regresso, reflexão.


Substantivo feminino. ‘. Ato ou efeito de refletir. 2.
Prudência. 3. Meditação. 4. Argumento; objeção.18

Reflexivo, pois, remete a fazer uma nova “flexão”, dobrar, inclinar, recomeçar o
movimento de compreensão do erro, do acerto. Assim, ser um tradutor reflexivo significa
ser um tradutor em um constante movimento de fazer novamente a flexão, isto é, voltar
ao texto original, voltar às versões anteriores, aos comentários, mais uma vez, e mais uma
vez, ler de novo a primeira versão, a segunda, a terceira, para compreender as
escolhas/alterações feitas na segunda, na terceira versões e demais, a fim de produzir um
conhecimento sobre a tradução. Nesse tipo de trabalho, temos dois resultados: (1) o texto
traduzido, como também (2) o material crítico/discurso sobre a tradução que é também
um conhecimento, e que faz parte da pesquisa. Na pesquisa, para ter sobre o que refletir,
é preciso ter dados coletados, saber organizá-los, sistematizá-los, para analisa-los,
interpretá-los, e termos um resultado da pesquisa. Nesta etapa do trabalho, foi
fundamental o conceito de continuum de conversões cunhado por Marcos Vinícius Leite19
partir da leitura de Walter Benjamin, e desenvolvido por mim no âmbito deste e de outros
trabalhos. Entende-se, por continuum de conversões, os infinitos estados do texto no
decorrer da tradução. Mais concretamente, trata-se de cada uma das versões/traduções
obtidas a partir desse percurso analítico. Esse conceito explicita uma das características
fundamentais da linguagem que é a sua infinita plasticidade. Portanto, o conceito
estabelece uma relação entre os diferentes estados de concretude do texto que podem ser
organizados em termos temporais, estabelecendo a cronologia do processo de tradução.
O continuum de conversões identifica o processo tradutório. Registrando suas etapas,
analisando-as, não como partes separadas e independentes umas das outras, mas como
partes de um todo que se inicia no lócus A e termina, provisoriamente, no lócus B, eu
(tradutor/a) tenho a dimensão macro e a micro conjugadas. Entre o lócus A e o lócus B

18
Dicionário PRIBERAM, https://dicionario.priberam.org/reflex%C3%A3o. Acesso em 01 de novembro
de 2018.
19
LEITE, Marcos Vinícius. “A estrutura da linguagem em Walter Benjamin”. Revista Ética e Filosofia
Política. Nº 12. Volume 1. Abril de 2010. p. 11-23
17

encontra-se o processo. A leitura do texto “A tarefa do tradutor”, de Walter Benjamin, foi


essencial para entender que o tradutor tem uma tarefa, que ele toma não apenas uma, mas
um conjunto de decisões que, caso não sejam registradas, são perdidas para sempre, como
também são perdidos os elos cognitivos/inteligíveis entre as diferentes atividades do
processo tradutório, e que darão a inteligibilidade final da tradução. O registro não é
apenas uma questão de memória, mas também uma organização da tradução para a
pesquisa. Uma pesquisa é um todo que responde a um conjunto de teorias, de hipóteses,
problematizações, resultados, análise dos mesmos, verificação de hipóteses, construção
de novas hipóteses. Como estudar a tradução se não a colocamos no lócus da pesquisa,
da problematização, do teste das hipóteses? Como em toda pesquisa, esse registro precisa
ser organizado com referência ao objetivo que se almeja. Logo, ele será adaptado em
razão do texto que é o objeto da tradução.
No decorrer da elaboração das versões/traduções iniciam-se os quadros. Existem
vários quadros e de vários tipos cujo principal é o quadro matriz. Esse quadro contém as
todas as diferentes versões/traduções do texto. A matriz, como seu nome indica, é de onde
se origina toda a pesquisa. É preciso ordená-la dando início ao processo tradutório com a
primeira versão/tradução que não pode ser alterada, nem retocada, e muito menos
apagada. Ou seja, trata-se de manter as escolhas tradutórias da maneira a mais fidedigna
possível, sem possibilidade nenhuma de fazê-las desaparecer. O objetivo desse exercício
requer um trabalho cuidadoso de leitura do texto A, como também requer um trabalho
cognitivo do tradutor que se depara com todas as suas idiossincrasias que ele não apaga.
Trata-se de experienciar a tradução do texto no sentido benjaminiano, isto é, ter a
experiência de estranhamento e de estranheza. Paralelamente à tradução, redige-se um
diário de tradução sobre o processo. Experiência, em seu sentido etimológico significa:

Do latim experientia, -ae, ensaio, prova, tentativa. Substantivo


feminino 1. Ato de experimentar. 2. Ensaio. 3. Tentativa. 4.
Conhecimento adquirido por prática, estudos, observação, etc.;
experimentação. Por extensão: “homem ou mulher de
experiência: Homem/Mulher conhecedor(a) das coisas da
vida.”]20

A primeira versão/tradução traz à tona um conhecimento:

20
Dicionário PRIBERAM, https://dicionario.priberam.org/experiência. Acesso em 01 de novembro de
2018.
18

1. das características da linguagem do texto de partida – lócus A - (estruturas sintáticas, léxicos, campos
lexicais, expressões idiomáticas, ideias, etc.);
2. do que deve ser estar estruturado/recombinado no texto de chegada – lócus B - (estruturas sintáticas,
léxicos, campos lexicais, expressões idiomáticas, ideias, etc.);
3. da relação que une os dois textos, de suas leis de funcionamento – lócus A e -B;
4. da(s) sua(s) (in)competência(s) de tradutor; e o que deve ser feito para ultrapassá-las;
5. sobre o que está sendo construído na tradução, em termos macro, a partir das escolhas tradutórias, e
que eu chamo de projeto de tradução. É o momento do que chamo do “confronto do/a tradutor(a) consigo
mesma, e não apenas com a imagem que ele/ela tem de si.”

É um dos momentos cruciais no processo, momento em que se realiza o valor do


que ele tem nas mãos. Pois, experimentar a tradução é experimentar-se na tradução como
tradutor(a), apropriando-se do texto, dos problemas que vão guiá-lo até a sua finalização.
Os meus alunos qualificaram essa etapa inicial com vários nomes: “monstrengo”, “sem
forma”, “não entendo”. Muitas vezes, o choque era tão grande que eles não conseguiam
dizer nada a respeito. Apenas via em seus olhos a surpresa, e o fato de não poderem dizer
que o “monstrengo” não tinha sido produzido por eles. Esse estranhamento a respeito do
que sai das nossas mãos é um poderoso choque para entendermos que esse estranhamento
chega ao mais íntimo do que somos como tradutor, e do que fazemos. É um processo que
inclui também a sua dinâmica de subjetividade com a qual temos que olhar, e que incide
na pesquisa. O objetivo é sistematizar toda essa subjetividade para entender para onde
estamos caminhando.
O “projeto de tradução” é a articulação, em primeira instância, por parte do tradutor,
entre o que ele queria fazer na tradução (sua visão inicial, ideal antes da tradução), e o
que ele faz de fato na tradução (sua visão após a tradução). É a rearticulação progressiva
para pensar aa tradução de maneira macro, como um todo, e construir um discurso
coerente e coeso sobre a tradução. O projeto de tradução não combina com a ideia de a
tradução ser um conjunto de fatos fragmentados, sem nexo de inteligibilidade. O projeto
de tradução traz à luz o que/como o tradutor traduz, quais escolhas tradutórias, e
principalmente o porquê. A tradução como pesquisa tem a ver com a construção do
conhecimento, ou melhor dito, com a re-construção do conhecimento presente no lócus
A para o lócus B. Que tipos conhecimentos presentes no texto A? Históricos? De
botânica? De Arquitetura? De Filosofia? De Religião? Qual é a organização dos
conhecimentos? O que fiz com estes conhecimentos durante o processo de tradução?
Como reconhecer o conhecimento?
Tais questões afloram aos poucos, e devem ser sistematizadas nas versões/traduções
subsequentes (2, 3, até o infinito) do quadro matriz. As versões subsequentes aprimoram
19

as dúvidas, trazem respostas embutidas nas escolhas tradutórias. Dando continuidade ao


processo tradutório, cada uma das dúvidas é reformulada, e uma outra escolha é feita até
alcançar uma inteligibilidade possível do texto no lócus B.

1.2 (Re)construção do conhecimento pela tradução da letra: “traduzir em”

No processo de tradução, as categorias analíticas são portadoras de sentido. A


grande dificuldade inicia-se na forma de compreender esse sentido que é reconstruído no
lócus B, o que altera significativamente a sua compreensão desde que saiu do lócus A. As
categorias analíticas do conhecimento expressam-se pela “letra”, conceito presente em
vários autores, e em várias disciplinas. O antropólogo e tradutor francês, Pierre Clastres,
apresenta em seu Le grand parler: Mythes et chants sacrés des Indiens Guarani21, uma
tradução dos mitos e dos cantos sagrados dos Índios Guarani coletados pelo antropólogo
paraguaio Leon Cadogan. Como ele diz, existe uma tensão com a letra, que remete ao
trabalho árduo da tradução:

“Traduzir é, claro, tentar passar para um universo cultural e


linguístico determinado, a letra e o espírito de textos oriundos
de um sistema cultural diferente, produzidos por um
pensamento próprio. Quando, como nos mitos, o texto é uma
narração de aventura, a tradução não levanta muitos problemas.
O espírito cola à letra, a enigma é mais ou menos excluída da
narração. Mais árduo, e por isso sem dúvida mais apaixonante foi
o trabalho de traduzir textos religiosos. (...) Posição, então,
deliberadamente assumida: preocupados em nos distanciarmos
o menos possível da letra do texto, nós tentamos, por isso
mesmo, restituir o espírito, estimando, para parafrasear uma
famosa afirmação que, traduzir os Guarani, é traduzi-los em
guarani. Tradução quase sempre literal, portanto (...)
Fidelidade à letra em vista de preservar o espírito, e talvez, no
que diz respeito a certos fragmentos, uma aparência de
escuridão.”22 (Tradução e grifos meus)

21
CLASTRES, Pierre. Le grand parler: Mythes et chants sacrés des Indiens Guarani. Paris. Seuil.
1974. 140 p.
22
CLASTRES, Pierre. Le grand parler: Mythes et chants sacrés des Indiens Guarani. Paris. Seuil.
1974. 14-15p. [Original: “Traduire est, bien sûr, tenter de faire passer dans un univers culturel et
linguistique déterminé, la lettre et l’esprit de textes issus d’un système culturel différent, produits par une
pensée propre. Lorsque, comme dans les mythes, le texte est une narration d’aventures, la traduction ne
pose guère de problèmes. L’esprit colle à la lettre, l’énigme est à peu près exclue du récit. Plus ardu, et
pour cela sans doute passionnant fut le travail de traduction des textes religieux. (...) Parti pris donc
délibéré que le nôtre: soucieux de nous écarter le moins possible de la lettre du texte, nous avons par là
même essayé d’en restituer l’esprit, estimant, pour paraphraser une affirmation fameuse, que traduire les
Guarani, c’est les traduire en guarani. Traduction presque toujours littérale, par conséquent (...). Fidélité
à la lettre en vue d’en conserver l’esprit, et peut-être, pour certains fragments, une apparence
d’obscurité.”]
20

Pierre Clastres retoma aqui uma definição da tradução indicando, a partir da


expressão “traduzir os Guarani é traduzi-los em guarani”, o quão fundamental é o elo que
une os dois loci com os quais o tradutor está em relação. Nesse sentido, tradução é
transportar as estruturas do lócus A para o lócus B. O estranhamento origina-se pelo fato
de que o que está no lócus A, organizado de uma maneira certa, é
recombinado/reposicionado/reinventado no lócus B de uma certa maneira, não
necessariamente inteligível nesse último lócus B. O certo/o inteligível, quando
transportado/deslocado torna-se o incerto que deve ser reorganizado para se tornar
inteligível. Eis a tarefa do tradutor. Organizar o processo de tradução no âmbito de uma
visão macro que influi sobre a letra, reconstruindo-a, para alcançar uma inteligibilidade
no final do processo que é o projeto de tradução.
Um outro autor que trabalha com o conceito de “letra” é Antoine Berman, tradutor
e teórico francês. Em seus livros23, a letra é o que está escrito, da forma como está escrito.
Falando a partir também da sua experiência como tradutor de romances de autores latino-
americanos para o francês, ele confirma que é preciso traduzir o que está escrito, da
maneira como está escrito (“a letra”). A convergência desses dois autores reside no fato
de que a “letra” é o que se escreve, como se escreve, podendo se desdobrar em várias
questões pertinentes ao texto tocando desde questões de sentido como de forma. Tais
questões são organizadas em razão das características textuais em presença.

Conclusão provisória

A tradução estrutura-se sob a forma de um processo que, a partir do experimento e


da experimentação com a linguagem posicionada em seus dois lócus (quer seja a do
próprio tradutor analisando a sua própria tradução – “autotradução” -, quer seja a o
tradutor na condição de pesquisador analisando a tradução de outrem) permite acessar
uma compreensão sobre o que acontece dentro desse lapso temporal. Esta postura tanto
metodológica quanto teórica entende auxiliar o tradutor, provendo-lhe um olhar sistêmico
sobre a tradução de maneira a produzir um discurso sobre o que é traduzido, retirando-se

23
BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou o albergue do longínquo [La traduction et la lettre ou
l’auberge du lointain]. [tradutores Marie-Héléne Catherine Torres, Mauri Furlan, Andréa Guerini],
NUPLITT/7Letras. Rio de Janeiro; BERMAN Antoine. Pour une critique des traductions: John Donne.
Paris, Gallimard. 1995. 275p.
21

da posição de falar da sua tradução a partir de elementos esparsos sem amálgama entre
si. Como observa Antoine Berman:

Os tradutores geralmente não gostam muito de falar de “teoria”.


Consideram-se como intuitivos e artesãos. Entretanto, desde o
início da tradição ocidental, a atividade tradutória é
acompanhada de um discurso-sobre-a-tradução. Assim, temos ao
longo dos séculos (citando apenas os nomes mais conhecidos),
os textos de Cícero, São Jerônimo, Frei Luís de Leon Lutero, Du
Bellay, Dolet, Rivarol, Herder, Humboldt, A. W. Schlegel,
Goethe, Schleiermacher, Chateaubriand, Pouchkine, Valéry,
Benjamin, Pound, Armand Robin, Borges, Bonnefoy, Octavio
Paz etc. Esse discurso é essencialmente dos tradutores, mesmo
que se duplique, em cada época, por aqueles dos não tradutores,
que não fazem mais do que refleti-lo e repeti-lo. Eu o chamo de
“discurso tradicional”. Ele é tradicional em dois sentidos.
Primeiramente, vem do fundo da tradição da cultura ocidental.
Depois, pertence a um mundo no qual a tradução é considerada
como um dos pilares do próprio caráter da tradição, ou seja, do
modo de ser dos homens. Traduzione tradizione, dizem os
italianos; unindo passado e presente, próximo e distante, a
tradução semeia a cultura, ela mesma experimentada como um
conjunto de tradições.24

Perguntemos, então, o que “aconteceu naquele espaço temporal”? A capacidade de


produzir um discurso orgânico sobre a tradução, como diz Antoine Berman (quaisquer
que sejam as suas modalidades, como dito acima) relaciona-se com a compreensão, por
parte do tradutor, em identificar a lógica de transformação pela qual passou tanto o texto
inicial quanto as crenças e compreensões que o tradutor tem do texto e do que nele tem.
Trata-se de compreender que o tradutor operacionaliza o seu trabalho, e é nessa
operacionalização – ou modus operandi – que ocorre a transformação ao nível da
linguagem, deslocando categorias analíticas, e tendo a consciência de que cada língua tem
uma visão do mundo, e expressa essa visão na linguagem.
O que a linguagem do senso comum designa pelo fato de “passar de uma língua
para outra” consiste em um fenômeno de reelaboração conceitual atuando em dois lócus
que tem relações de vai-e-vem, quer sejam, o lócus A do “texto de origem” que o tradutor
acessa, transforma e reelabora, quer seja o lócus B do “texto de chegada” que o tradutor
re-estrutura de maneira compreensível, em função do lócus A, para ser inteligível no lócus
B. O processo de inteligibilidade levado a cabo pelo tradutor, coloca em evidência que
esse “passar” de uma língua para outra não é um procedimento de ordem mecânica, mas

24
BERMAN, Antoine. “A tradução e seus discursos”. Alea. Volume 11. número 2. Julho-Dezembro de
2009. p. 341-353
22

é analítico e de conhecimento. A teoria benjaminiana da linguagem confirma que a


tradução25, sendo operacionalizada na linguagem, tem a ver com a natureza da linguagem
humana, tal como o ser humano utiliza essa mesma linguagem que é o ato de nomear as
coisas26:

(...) Portanto, a essência linguística do homem está no fato de ele


nomear as coisas. (...) Para quê nomear? A quem se comunica o
homem? – Mas será essa questão, no caso do homem, diversa da de
outras formas de comunicação (linguagens)? (...) Antes de responder a
esta pergunta, deve-se examinar novamente a questão: como se
comunica o homem? Deve-se estabelecer uma diferença clara, colocar
uma alternativa diante da qual, seguramente, uma concepção da
linguagem essencialmente falsa seja desmascarada. Será que o homem
comunica a sua essência espiritual através dos nomes que ele dá às
coisas? Ou nos nomes? (...) Por sua vez, pode aceitar apenas que
comunica alguma coisa a outros homens, pois isso se dá através da
palavra com a qual eu designo uma coisa. Tal visão é a concepção
burguesa da linguagem, cuja inconsistência e vacuidade devem resultar
cada vez mais claras, a partir das reflexões que faremos a seguir. Esta
visão afirma que o meio [Mittel] da comunicação é a palavra; seu
objeto: a coisa; seu destinatário, um ser humano. Já a outra concepção
não conhece nem meio, nem objeto, nem destinatário da comunicação.27

Exclui-se a importância da/o “coisa/objeto” para focar no que a/o “coisa/objeto”


transporta e diz de si mesmo no âmbito da linguagem. Traduzir remete a concepções do
mundo que, em contato umas com as outras, devem ser elucidadas a partir das categorias
de conhecimento que as compõem e que estão presentes na cultura. Para tanto, o tradutor
não é um “passante” de uma língua para outra. O tradutor é aquele que, se mantendo tanto
lá quanto cá percebe o quão torna-se fundamental a sua própria formação enquanto
profissional capacitado para compreender as categorias em jogo a fim de restituí-las em
um outro lócus, preservando a inteligibilidade em jogo, isto é, tendo consciência delas, e
não jogar fora o bebe com a água do banho.

25
BENJAMIN, Walter. “A tarefa-renúncia do tradutor” [trad. Susana Kampff-Lages]. in Castello Branco,
Lúcia (org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin – quatro traduções para o português. Belo
Horizonte. Fala/UFMG, 2008, p. 66-81.
26
RAULET, Gérard. “L’atelier du traducteur. Benjamin et les Tableaux parisiens ». Revue italienne
d’études françaises [online]. 4. 2014, http://journals.openedition.org/rief/656. Acesso em 30 de agosto de
2018.
27
BENJAMIN, Walter. “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” in Escritos sobre
mito e linguagem (1915-1921), [Organização, apresentação e notas Jeanne Marie Gagnebin; Tradução
Susana Kampff Lages e Ernani Chaves], São Paulo: Livraria Duas Cidades/34 editora, 2011, p. 55.
23

Referências

BACHELARD, Gaston. L’eau et les rêves: essai sur l’imagination de la matière. Paris:
Librairie José Corti, 1942, 267 pp.

BENJAMIN, Walter. “A tarefa-renúncia do tradutor” [trad. Susana Kampff-Lages], in


Castello Branco, Lúcia (org.), A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin – quatro
traduções para o português, Belo Horizonte: Fala/UFMG, 2008, p. 66-81.

_________________ “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” in


Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), [Organização, apresentação e notas
Jeanne Marie Gagnebin; Tradução Susana Kampff Lages e Ernani Chaves], São Paulo:
Livraria Duas Cidades/34 editora, 2011, p. 55.

BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou o albergue do longínquo [La traduction


et la lettre ou l’auberge du lointain], [tradutores Marie-Héléne Catherine Torres, Mauri
Furlan, Andréa Guerini], NUPLITT/7Letras, Rio de Janeiro;

_________________ “A tradução e seus discursos”, Alea, Volume 11, número 2, Julho-


Dezembro de 2009, p. 341-353

________________. Pour une critique des traductions: John Donne, Paris, Gallimard,
1995, 275p.

CHEMLA, D., ABASTADO, P., « Vésale, Paré et Paracelse : trois figures médicales
majeures de la Renaissance », in La lettre du cardiologue – Risque Cardiovasculaire,
n.. 428, outubro de 2009, p. 35.

CLASTRES, Pierre. Le grand parler: Mythes et chants sacrés des Indiens Guarani,
Paris, Seuil, 1974, 14-15p.

Dicionário PRIBERAM, https://dicionario.priberam.org/. Acesso em 01 de novembro de


2018.

FOUCAULT, Michel. L’Archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, 175p.

__________________. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines,
Paris, Gallimard, 1966, 400p.

JUIGNET, Patrick. Michel Foucault et le concept d’épistème”. In: Philosophie Science


et société (en ligne). 2015. https://philososciences.com/philosophie-generale/la-
philosophie-et-sa-critique/10-michel-foucault-episteme (/philosophie-et-societe/29-
philosophie-generale/-la-philosophie-et-sa-critique/10-michel-foucault-episteme).
Acesso em 01/11/2018

KRISTEVA, Julia, Le génie féminin 1. Hannah Arendt, Paris, Fayard 1999, p. 9.

LEITE, Marcos Vinícius. “A estrutura da linguagem em Walter Benjamin”. Revista


Ética e Filosofia Política. Nº 12. Volume 1. Abril de 2010, p. 11-23.
24

RAULET, Gérard. “L’atelier du traducteur. Benjamin et les Tableaux parisiens », Revue


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Acesso em 30 de agosto de 2018.

RICHARD Aline, LE MEUR Hélène, Les grandes controverses scientifiques, Paris,


Dunod, 2014, pp. 2-5.

ROSCOE-BESSA, Cristiane. “O conceito de linguagem em Walter Benjamin e sua


relação com a tradução”. Traduzires. Vol. 4. 2013. p. 29-39.

ROSSI, Ana Helena. “Entrevista com o Prof. Dr. Emérito Aryon Dall’Igna Rodrigues por
Ana Helena Rossi, Traduzires, n. 2, Dezembro de 2012, p. 127.

_________________. “Processos e experiências: pensando a tradução”. caleidoscópio:


linguagem e tradução, Vol, 2, n. 1, Junho de 2018, p. 1-14.
25

APONTAMENTOS PARA UMA ESTÉTICA EPISTEMOLÓGICA

Ana Paula Aparecida Caixeta (UnB)28

Resumo: Diante de questões sensíveis que circundam o cotidiano, oriundas de relações e


experiências de um sujeito provocado pelas variações e visualidades contemporâneas, têm-se a
Estética enquanto panorama de culturas, onde o ato de conhecer através do ‘eu’ e o ‘outro’
confrontam insistentemente com elementos próprios da condição humana. Desse modo, este
trabalho intenta uma reflexão sobre a Estética, baseando-se em princípios da Epistemologia do
Romance, enquanto modus de percepção e conhecimento, cuja busca por uma consciência
sensível amplia um olhar acerca do efeito estético e do entendimento, intrínsecos às noções de
forma e conteúdo e necessários enquanto ações educativas no campo das artes visuais.
Palavras-chave: Estética. Conhecimento. Artes Visuais.

O contexto

A reflexão que aqui se propõe tem na Estética um olhar basilar, pautado em aspectos
de relações sensíveis do ‘ser no mundo’29. Assumidamente, é também um texto nascido
nas trincheiras da Epistemologia do Romance, fazendo parte de uma trajetória reflexiva
importante no que diz respeito aos debates sobre epistemologia, arte e, consequentemente,
educação. Este campo, por sua vez, embora não seja o cerne de conceitos a dar conta das
principais nuances das discussões aqui evocadas, é um eixo norteador, pois denuncia o
cunho pedagógico inerente às perspectivas da Estética enquanto possibilidade de
conhecimento na obra de arte. De outro modo, podemos dizer que este texto traz consigo
um gesto dialógico entre as questões de epistemologia do romance (enquanto teoria
complexa) e artes visuais, debatidas em uma perspectiva que se propõe pedagógica;
principalmente porque os empreendimentos aqui fomentados são claramente oriundos de
reflexões intensificadas por experiências em sala de aula, com cursos da graduação e pós-
graduação30.
Apontamentos para uma estética epistemológica nasce como ponto de partida para
um novo olhar acerca das possibilidades de conhecimento na arte, baseando-se em um

28
Doutora e mestre em Literatura (UnB); formada em Letras e Artes Plásticas. É Professora adjunta do
Departamento de Artes Visuais da UnB. E-mail: caixetaanapaula@unb.br
29
Embora a noção de “ser o mundo” seja cerne das reflexões fenomenológicas de Heidegger (Ser e Tempo,
publicado em 1927), não é tarefa deste pequeno texto adentrar-se nesse discurso. A ideia aqui evocada
esboça uma compreensão simplificada de que o ser no mundo é um ser concreto; é um ser de relações
efetivas com as coisas que o circundam.
30
Em caráter de estágio docente, junto ao Prof. Wilton Barroso Filho, coordenador do grupo Epistemologia
do Romance, vários cursos de estética foram ministrados, rendendo-nos reflexões importantes quanto a este
campo da filosofia. Como professora adjunta, ministrei duas disciplinas que fortaleceram o debate aqui
empreendido.
26

olhar contextual, comparatista e norteado por ações filosóficas como ação reflexiva
acerca das problemáticas oriundas do campo da estética. As discussões sobre estética
transitam em nossos debates de grupo31 desde o início, com os esforços empreendidos
ainda nos esboços de uma epistemologia do romance, pensada por Wilton Barroso. Essas
reflexões conduziram-nos a um novo eixo disciplinar (enquanto campo de
conhecimento), para dar conta de questões próprias do fazer romanesco, atentando-nos,
então, para reflexões de uma epistemologia com sensibilidade estética.
Ao longo da trajetória do grupo, a Estética ganhou escopo como eixo norteador da
ideia de se “decompor” uma obra a fim de compreender quais elementos fazem parte de
seu processo constitutivo. Elementos estes que ganham uma forma por meio de gestos
criativos do sujeito que cria, próprios do universo da Arte e, consequentemente, da
Estética. Desse modo, fica evidente que nosso percurso, embora se proponha
epistemológico enquanto ação por busca de elementos de conhecimentos na obra de arte,
ele é genuinamente estético: pelo processo inicial de relação entre sujeito/objeto, ou,
pensando por uma perspectiva maffesoliana (SILVA et al, 2010):
sujeito/fenômeno/forma. A esse fenômeno, nós chamamos de efeito estético; ou seja, pela
busca de consciência sensível do que essa relação (no caso sujeito/obra de arte) promove,
é que se propõe pensar o que os atravessa como aspecto de efeito. Seria nesse movimento
de investigação de questões da ordem da sensibilidade que tratam os esboços para uma
estética epistemológica.
Já é consenso em nossas pesquisas que o estético existe como uma necessidade do
epistemológico. Ou seja, a Estética, enquanto uma “ciência da sensação”
(BAUMGARTEN, 1996), é responsável por pensar questões que afetam a sensibilidade
do sujeito. Isso nos faz assumir um lugar de fala: o lugar da reflexão estética, promovido
por um leitor da obra de arte que se propõe perverso (BARROSO e BARROSO, 2018),
diferente do lugar da criação ou simples fruição, cujos debates acerca de Poética vs.
Estética ainda pairam num problemático movimento sinonímico.
Para nós, é muita cara essa diferenciação, pois é no assumir um olhar de pesquisador
(enquanto sujeito curioso e inquieto com os efeitos estéticos que circundam o sujeito no
mundo e não um sujeito de academicismos doutrinários), que se pode compreender
elementos de conhecimento no espaço da arte; justamente porque será por meio desse
olhar atento que o leitor perverso buscará formas de compreensão acerca das sensações

31
O grupo Epistemologia do Romance foi oficialmente cadastrado no CNPq em 2011, mas já trazia
discussões em artigos e dissertações desde 2003.
27

provenientes entre sujeito/obra de arte. Mais do que isso: não é um gesto de autorreflexão
somente, em que o sujeito pensa sua experiência de efeito estético, proveniente de seu
contato com a arte. Mas é um gesto de reflexão acerca do outro e dos movimentos que os
processos de efeitos estéticos causam nesse outro, em sua cultura, em seu contexto, em
seu lugar de fala32.
Colocando a estética como ponto integrante de possibilidades de conhecimento, ou
seja, por garimpar em um solo epistêmico, compreendemos que, buscar formas de
entendimento daquilo que afeta o sujeito é também uma forma de conhecimento. Não um
conhecimento preocupado com verdades absolutas. Mas um conhecimento pautado em
elementos próprios da condição humana, reverberados por meio da forma da arte.
Portanto, volto à ideia de uma epistemologia da sensibilidade, já esboçada por Bachelard,
em A psicanálise do fogo (2008), bem como por Maffesoli, em Elogio da razão sensível
(2008).
Essas discussões, porém, não nascem do puro gesto fruitivo. No âmbito acadêmico
da arte, é recente a pesquisa em arte no Brasil enquanto modus científico (ZAMBONI,
1998), haja vista que Arte (colocando-a em maiúsculo) não é lógica nem ciência – o que
para nós nunca esteve em questão. Contudo, é pelo gesto reflexivo daquele que contempla
a arte, em especial, daqueles que pensam os fenômenos sensíveis provenientes dos
processos contemplativos da arte, que se encontra um pesquisador da epistemologia do
romance.
Dito isso, podemos compreender que nosso olhar, para além do romance, ao se
assumir um olhar estético (ou seja, sensível àquilo que a forma e conteúdo provocam),
assume-se enquanto um olhar acerca de tudo aquilo que circunda o universo das artes,
sensível por natureza. Portanto, para nós, nosso movimento de pesquisar conhecimento
em arte pressupõe uma teoria complexa, operada por modos comparatistas (Artes, Letras,
Filosofia, História), de modo que, quanto maior nosso movimento de leitura da obra e
possibilidade de comparação (enquanto forma de entendimento), mais elementos
estéticos denunciam os conhecimentos possíveis no objeto, bem como sua natureza.
Feita essa contextualização, encaminho minha fala para pensarmos a Estética
epistemológica como possibilidade de se conhecer através das relações sujeito/objeto,
provocadas por percepções sensíveis.

32
Aqui, pensa-se em lugar de fala enquanto uma postura ética, do modo como aponta Djamila Ribeiro, em
O que é lugar de fala? (2017). Enquanto postura ética, o olhar acerca do lugar de fala confronta
dialeticamente com a estética.
28

Sujeito/obra de arte: relações possíveis de conhecimento

A relação sujeito/objeto é marcada, na história da filosofia, como processo de


construção de conhecimento – especialmente, a partir do idealismo transcendental
kantiano (2015). Para nós, os aspectos kantianos acerca da experiência como modo de
entendimento das coisas, oriundo de percepções sensíveis, conduz-nos às possibilidades
de pensar a arte também como espaço de conhecimentos com possibilidades universais
(seriam estes conhecimentos questões da condição humana, que estão intrínsecas ao
sujeito enquanto ser no mundo: vida, morte, sexo, sexualidade, religiosidade, etc.).
Podemos pensar esses conhecimentos de modo ambivalente: são universais por serem
elementos ontológicos, ou seja, fazem parte de uma metafísica do ser, contudo, são
particulares porque variam de acordo com os sujeitos, com suas experiências, bem como
com a forma da arte que as carrega. Essas questões corroboram para o entendimento do
humano, do universal para o particular (do “ser” para o indivíduo, que é social, cultural,
político, tribal - para usarmos um termo maffesoliano) e vice-versa. Contudo, salientamos
nossa ciência de que que Kant não tratava da arte, do objeto da arte, como objeto de
conhecimento, mas, sim, tratava do objeto Belo como objeto de contemplação, passível
de ajuizamento de gosto. A esse objeto Belo, chamamos de objeto artístico, concordando
com o que Thierry du Duve aponta em Kant depois de Duchamp (1998).
Portanto, para Kant, em Crítica da faculdade de julgar (2010), o objeto de arte é
um objeto livre de conceitos, apreciável por si mesmo, pois questões do Belo não são
categorizadas por conhecimento a priori - o que faria da arte um espaço de julgamento
universal validado, anulando aspectos da experiência do sujeito com a obra de arte.
Entretanto, em Crítica da razão pura (2015), Kant atenta-nos para questões que são da
ordem da percepção sensível como solo epistemológico, cuja experiência relacional entre
sujeito e objeto ensina-nos elementos para além de conceitos a priori. Ou seja, o efeito
de um objeto nos afeta quanto à nossa capacidade de compreensão de sua representação
(2015, p. 71), numa perspectiva de espaço/tempo. Dito isso, compreendemos, então, que
somos afetados pela arte. Contudo, esse afetamento inicial não se configura como dados
do conhecimento, porque ainda não se pensou sobre ele; não se buscou uma consciência
dessa afetação, que seria uma consciência desse efeito estético. Ou seja, para que, da
relação entre sujeito e objeto de arte eu consiga conhecer “as coisas”, eu preciso de um
esforço do entendimento – um esforço reflexivo que me permita alcançar noções do que
essa afetação me provoca. A exemplo, observemos a imagem a seguir (fig. 1):
29

Fig. 1 - Performance de Wagner Schwartz, La Bête, apresentada no MAM (Museu de Arte


Moderna). Imagem disponível em: http://infoartsp.com.br/noticias/entenda-a-polemica-da-performance-
de-wagner-schwartz-no-mam/

Fig. 2 - Objetos sensoriais/Bichos, 1966-1968, Lígia Clark. Imagem disponível em:


http://www.3margem.com.br/inspiraes/2017/2/22/lygia-clark-artes-plsticas

Segundo Mitrani, este trabalho de Schwartz foi inspirado na série de esculturas


“Bichos” de Lygia Clark (fig. 2):

desenvolvida nos anos 1960 e feitas a partir de chapas metálicas que


devem ser manipuladas e manuseadas pelos espectadores para então se
metamorfosear em diferentes formas, ou “bichos”. Na performance, o
artista carioca se apresenta nu junto de uma réplica plástica de uma
30

destas esculturas e “permite a articulação das diferentes partes do seu


corpo através de suas dobradiças”. Por meio deste trabalho, Schwartz
se transforma numa escultura performática, que, assim como as
esculturas, requerem a interação do público e dos espectadores para
tomar vida. (MITRANI, sem indicativo de ano e página)33

Para um leigo, que não conhece o trabalho de Lígia Clark nem de Schwartz,
tampouco lida com debates acerca da forma da arte enquanto performance, fica difícil,
em um primeiro movimento, lidar com os efeitos que esta obra provoca. Seja pela nudez,
ainda um tabu social quanto às questões do corpo ligadas ao sexo, à sexualidade e ao
sexismo, seja por uma moral externa à obra, que interfere, como um tipo de conhecimento
a priori (ou seja, como uma verdade universal), no modo de relação com este objeto de
arte. Isso leva o espectador, no caso, o interator, a reagir negativamente por meio de gestos
de censura: ‘não se pode ver nem tocar um homem nu; não se pode ver nem tocar um
homem nu, especialmente, uma criança, pois isso é imoral, é pedofilia, é violência’
(utilizando as afirmações movimentadas pelas mídias televisivas e sociais virtuais).
É preciso observar que, para além do reducionismo da moralidade, existe um
sintoma de cerceamento que antecede qualquer reflexão. Também evoca uma
mobilização curiosa entre arte contemporânea e ‘arte para as massas’, haja vista que o
público de uma arte que se propõe pós-moderna é reduzido a um nicho específico – seja
pela carência de espaços culturais e artísticos fora dos grandes centros urbanos, seja pela
carência formativa acera de questões ligadas às novas formas subjetivas da arte. Contudo,
antes de criar um embate raso sobre os que entendem de arte X os que não entendem de
arte (a dicotomia entre o sujeito acadêmico, culto X sujeito comum, popular), precisamos
nos perguntar: por que essa obra causa efeitos estéticos que levam o sujeito a querer negá-
la, apaga-la, silenciá-la?
Kant nos provoca a buscar conhecimento por meio de perguntas. E a arte
contemporânea é um espaço tomado por elas. Não faz parte da arte, hoje, dar respostas
(históricas, pontuais, fechadas, simbólicas, representacionais, figurativas). Ela não tem
compromisso com a forma, com o ético, com a moral, com o universo político ou
ideológico. Esse é seu princípio de autonomia (KANT, 2010); contudo, ela é fisgada pelo
princípio de heteronomia que faz da arte também reflexo de questões existentes por
contextos a priori, como as leis, por exemplo. Desse modo, nosso gesto metafísico está

33
Informações disponíveis em: http://infoartsp.com.br/noticias/entenda-a-polemica-da-performance-de-
wagner-schwartz-no-mam/
31

em compreender como esse “a priori” acaba por sucumbir a relação da obra de arte, por
uma heteronomia, a determinações lógicas do campo da moral, por exemplo. E,
retomemos, não é a lógica nem a moral espaço para compreensão/definição da arte.
Portanto, o que se evoca aqui é: ao observar a performance de Schwartz e
provocados por perguntas de conhecimentos, como: o que eu posso saber sobre essa obra
e em que ela afeta o sujeito?, tal como nos põe a pensar Kant (2015), criar-se-ão condições
de buscar elementos de conhecimento, cujas reflexões levarão a conhecer dados que
fazem parte do processo constitutivo da obra, promovendo alterações de pensamento para
além do que o simples efeito estético provoca. Ou seja, não está em questão se se gosta
ou não de performance ou se essa obra é ou não ofensiva do ponto de vista moral,
religioso, etc. O que está em questão é: como, a partir dela, é possível lidar com questões
que estão intrínsecas ao nosso modo de pensar o corpo e a relação com o corpo, por
exemplo. Ou, em outra perspectiva, é possível pensar como a arte ocupa espaços
privilegiados, cujas discussões levam a reflexões filosóficas que, lamentavelmente, não
estão em todos os contextos culturais e formativos.
Sendo assim, podemos entender, aqui, que a percepção sensível é uma ação
primária do conhecer as coisas sobre si e o outro, mas, por ser primária, é importante que
esta etapa seja ultrapassada por outras etapas de entendimento. Isso leva a pensar que, se
é possível elencar possíveis etapas de entendimento da obra de arte – não como método
interpretativo ou modelação de forma de aprendizagem, mas como caminhos para se
ultrapassar questões do efeito estético –, pode-se promover, junto a ações educativas em
artes, um gesto estético, filosófico por natureza, que incitará a pensar a arte como espaço
de conhecimento.
Uma estética que propõe epistemológica é uma estética preocupada com o
conhecer. Enquanto ação educativa, caberá a ela provocar relações de maior movimento
fruitivo, no sentido do deleite e da apreciação, cujos esforços permitirão demorar-se
diante do objeto de arte. Esse processo fruitivo de demora faz emergir noções conscientes
do efeito estético provocado pela arte, em que se altera o contexto da pura sensação em
direção a perguntas que nortearão meios interpretativos de entender ou aproximar de um
entendimento contextual (Por que? De onde vem? Quem fez? O que eu sinto ao observar
isso?). Consequentemente, prosseguimentos dessa natureza levarão a possibilidades de
conhecimento a partir da experiência com a arte.
32

Considerações

Os esboços de uma estética epistemológica possuem um princípio basilar na


Estética enquanto disciplina. Parece ortodoxo trazer um olhar baumgarteniano para se
evocar um ramo da filosofia – ainda hoje marginalizado – e isso é intencional. Assumi-la
como um campo de conhecimento do sujeito e de sua relação com o mundo é uma escolha
importante no que tange o contexto da arte e do ensino da arte.
Inundados por um universo de visualidades, cujas informações circundam como
verdades assimiladas por puro efeito, parece necessário retomarmos debates mais
incisivos, amparados por importantes discussões que sustentam uma trajetória
epistemológica da Estética. Nesses apontamentos, não nos interessa uma perspectiva de
interpretação da obra de arte com viés de ideal ou verdade, tampouco seguindo um
princípio moderno de modelo. Ao contrário, o interesse aqui é de mostrar que
possibilidades de etapas processuais de entendimento a partir do estético são formas
provocativas, dinâmicas e não se encerram no primeiro movimento interpretativo. Ou
seja, o objeto de arte não se encerra no gosto particular, pois ele é dinâmico e inacabado
por natureza.
Por meio dos apontamentos levantados, existem sólidas possibilidades de se propor
em sala de aula formas de lidar com o pensamento na arte, a partir de gestos que se
propõem estéticos e, por consequência, filosóficos. Empreendimentos dessa envergadura
permitem que, em um espaço dialógico da sala de aula, abram-se caminhos para uma
consciência estética capaz de lidar com as mais variadas formas de culturas e
visualidades, no que tange o contexto das artes visuais, sinalizando que a Estética é eixo
imprescindível no espaço do conhecimento em arte.

Referências

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.

BARROSO, Wilton; BARROSO, Maria Veralice (orgs). Estudos epistemológicos do


romance. Brasília: Verbena Editora, 2018.

BAUMGARTEN, Alexandre G. Estética – A lógica da arte e do poema. Tradução: Mirian


S. Medeiros. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

DUVE, Thierry de. Kant depois de Duchamp. Revista do mestrado em História da arte
33

EBA, UFRJ, 1998. Disponível em:


https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3071606/mod_resource/content/1/Kant-depois-
de-Duchamp-Thierry-De-Duve.pdf Acesso em outubro de 2018.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de juízo. Tradução: Valério Rohden e António


Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

______________. Crítica da razão pura. Tradução: Fernando Costa Mattos. Petrópolis,


RJ: Vozes; Ed. Universitária São Francisco, 2015.

MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. (Trad. Albert Christophe e Migueis


Stuckenbruk). Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

MITRANI, G. F. Entenda a polêmica da performance de Wagner Schwartz no MAM.


Disponível em: http://infoartsp.com.br/noticias/entenda-a-polemica-da-performance-de-
wagner-schwartz-no-mam/ Acesso em outubro de 2008.

SILVA, Marli da. GUARESCHI, A. WENDT, W. Existe sujeito em Michel Maffesoli?


Psicol USP vol.21 no.2 São Paulo abril / junho 2010. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642010000200011
Acesso em outubro de 2018.

ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas, SP:
Autores Associados, 1998.
34

TRADUZIR O SENTIR/CONHECER NA LÍNGUA DO INVASOR:


GAMALIEL CHURATA E O COMBATE DE EL PEZ DE ORO

Cesar Augusto López Nuñez (UNASM)34

Resumo: Publicado no ano de 1957, El pez de oro, de Gamaliel Churata, é considerado a bíblia
do indigenismo peruano não só pela extensão que possui, mas porque sua classificação tem sido
um grande problema para os pesquisadores. O texto transitaria entre o romance, a poesia, o teatro,
a música, o carnaval andino (pukllay), o delírio xamânico (laykhakuy), etc. e, nesse sentido, nos
apresenta um evento no qual podem ser percebidos dois objetivos. O primeiro está relacionado
com a desterritorialização do espanhol e as formas genéricas da tradição ocidental. Isso permite,
em segundo lugar, a apresentação de uma estética distinta à do colonizador. Em outros termos, a
luta que se estabelece no texto com as palavras (λογομαχία), as incrustações do quéchua e aymara
respondem à necessidade de traduzir uma ontologia divergente da hegemônica.
Palavras-chave: Estética. Tradução. Epistemologia. Pensamento ameríndio. Gamaliel Churata.

1. El pez de oro

Publicado no ano de 1957, El pez de oro, de Gamaliel Churata, é considerado a


bíblia do indigenismo peruano não só pela extensão que possui (quase mil páginas), mas
porque sua classificação tem sido um grande problema para os pesquisadores. Para
alguns, o texto pode ser entendido como uma peça de teatro, já que no começo da obra o
autor indica a participação de vinte e cinco personagens, aproximadamente. Não obstante,
Churata inclui personagens múltiplos como sonhos, versos, bactérias e, inclusive, uns três
magníficos etcéteras. Neste sentido, o texto propõe uma realidade em movimento ou
vivente, além de múltipla e de opera aperta. Esses dados não devem ser considerados
mínimos nem pertencentes a uma vontade que procuraria surpreender ao leitor, mas vias
capitais de leitura do texto.
Outros pesquisadores catalogam a obra como um romance. Acreditamos que essa
postura é produto de que El pez de oro abarca um vasto leque de expressões dentro da sua
estrutura como poesia, com uma clara intenção musical, uma introdução homilética,
diálogos teatrais e histórias em distintos planos. Ainda assim, a possibilidade de
classificar este “peixe” não é fácil e acreditamos que a intenção taxonômica da crítica não
deveria insistir nesse tema, pois parece que o impulso principal desse produto estético
está relacionado com a intenção de impossibilitar sua colocação passiva nas prateleiras.

34
Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-
mail: octaviomermao@gmail.com.
35

Mesmo assim, nós tentaremos nomeá-la, mas sem nenhuma intenção pertencente aos
parâmetros contra os quais o livro lutaria: os parâmetros ocidentais.
Um dado interessante deste texto responde à questão da sua feitura. O autor
demorou aproximadamente trinta anos em acabá-la e sua aparição no panorama das letras
peruanas representou uma tarefa inalcançável para as capacidades hermenêuticas da
intelligentia peruana dos começos da segunda metade do século XX. Poderíamos dizer,
sem temor a errar, que a criação literária no Peru sempre esteve um passo além dos
críticos. Nesse sentido, é importante fazer duas observações.
Em primeiro lugar, El pez de oro é um texto que depende muito dos anos prévios a
sua aparição no tocante aos movimentos artísticos da vanguarda, especialmente com o
surrealismo. O mesmo Churata, inclusive, debateu com César Vallejo sobre a importância
deste movimento artístico para a produção estética da América Latina. Somado a isso, as
transformações socioeconômicas do altiplano peruano foram fundamentais para criar um
espaço de efervescências do qual o escritor não esteve excetuado.35 Em segundo lugar, o
substrato epistêmico da obra será a linha de fuga que guiará o seu movimento fora da
episteme do pensamento do colonizador. Nesse sentido, não se apresentaria uma
dependência, em El pez de oro, do surrealismo, mas um transcender do mesmo, porque o
que Churata faz é sondar os limites desta corrente em prol de permitir falar a voz ou vozes
de um pensamento outro.36
Como pode se observar, a obra da qual falamos desbordaria a ideia de representação
pela variabilidade caleidoscópica que apresenta: não seria uma obra, senão muitas obras
ou muitas dobras de experimentação estética. Além da multiplicidade de personagens
teríamos uma multiplicidade de espaços nos quais estes poderiam habitar. Por outro lado,
tentaria se afastar das suas influências externas até subsumi-las em um marco distinto de
compreensão e interpretação. Em outros termos, Churata aproveitar-se-ia das potências
estéticas ocidentais. Finalmente, o tempo que tomou escrever este “peixe” permitir-nos-
ia afirmar que este produto estético é um work in progress e por essa razão deveria se
fazer muita ênfase na sua proposta de movimento. Sem dúvida, estas questões têm
semelhanças com O Guesa do genial Sousândrade, já que as pautas de ambas as obras
apontariam, finalmente, a um plano de aproximação da realidade do nosso continente.

35
Elizabeth Monasterios (2015) e Juan Ulises Zevallos (2013) fazem um aporte imprescindível para
compreender o tempo de Churata.
36
Marco Thomas Bosshard faz uma análise detalhada do surrealismo e certas influencias deste fora da
Europa no seu livro, presente na bibliografia, Churata y la vanguardia andina (2014).
36

2. O problema da tradução

Acreditamos que o problema de El pez de oro é fundamentalmente epistêmico,


posto que aborda um tema de conhecimento afastado de uma prática de compreensão: a
prática do colonizador. Mas, o que queremos dizer com isto? Que este peixe pertence a
um vértice de conhecimento pouco prestigiado, apagado, inexplorado ou, melhor,
invisibilizado. Aqui faz sua aparição o problema da tradução e seu fundo, ou
profundidade, ontológica. Boaventura de Sousa Santos indica que o que aconteceu nos
lugares imersos nas práticas colonizadoras, além de serem destruídos de uma maneira
muito prática, no sentido material sofreram uma violência de tipo epistêmica ou
epistemicídio, exatamente (2010). Em outras palavras, aconteceu nas experiências
coloniais, uma ontomaquia, uma batalha ontológica da qual o vencedor foi aquele vindo
de ultramar. Essa derrota para as ontologias nativas, suas narrativas, suas estéticas e suas
formas políticas abriu passagem para sua desqualificação como modelo de análise do
mundo e, posteriormente, seu lento desaparecimento.
Contudo, existiram formas de resistência que mantiveram certos protocolos de
leitura no tempo e no espaço e, para ser um pouco poéticos, porém sem perder o rigor,
nos corpos mesmos. A importância destes protocolos tem a ver, sobretudo, com a forma
de olhar a existência de uma diversidade infinita de fenômenos pessoais ou de tipo
subjetivo (em breve aprofundaremos neste ponto). E não só sobreviveram, também
estabeleceram laços conflituosos, tensos e intensos com as formas de poder colonial. É
importante dizer, neste plano, que as formas puras não existem, mas sim as formas
misturadas de interpretação do cosmos. Provavelmente a pureza nunca existiu e nós
acreditamos demais no evangelho platónico, provavelmente. Isto quer dizer, também, que
as formas, tal e como nós as conhecemos, são produtos de lutas de potências expressivas
conjugadas em um plano que muitas vezes é um conjunto de dobras.
A tarefa de Churata teria, então, duas frentes. Por um lado, a tradução de uma
ontologia outra e, por outro, a tradução de um outro modo de enfrentar a multiplicidade.
Uma distinta a de classificação de objetos, mas uma de relação de sujeitos. O surgimento
do problema epistêmico teria a ver com um problema, no nível literário, pelo menos, de
expressão. A ideia poderia se entender como um deixar novamente livre formas de ver e
escutar pouco atendidas e brincar com os elementos da exterioridade destas. Por este
motivo, seria inclassificável El pez de oro porque está interessado em elaborar uma forma
a partir de formas estabelecidas. Deleuze e Guattari utilizam o termo desterritorializacão
37

para se referir a este acontecimento (2014, 2010). Para dizê-lo de outra forma, o que se
opera em El pez de oro é a expressão das formas do afora do pensamento europeu.
Poderíamos chamar este evento estético como um de tipo crítico, já que desestruturaria
formações estratificadas para permitir emergir uma enorme diversidade de vozes a partir
do que se entenderia do conceito de relação no pensamento ameríndio: a ampliação de
laços subjetivos. Face a esta modalidade encontrar-se-ia o naturalismo ocidental ou a
denominação e dominação dos objetos do cosmos37.
O que se intentaria propriamente expressar/traduzir? Um conhecimento outro do
ser. Quais são as características deste? Fundamentalmente a imanência, a continuidade da
vida e a partilha generalizada ou ampla desta que permitiria uma comunhão dos viventes
do cosmos. O princípio reitor do livro mostra duas chaves: 1) o descobrimento da
perenidade da vida e a ficção da morte e 2) a fertilidade como seu imperativo categórico.
Melhor vermos uma passagem de El pez de oro:

Es que lo más espantable de todo esto es saber que la hermosura sólo


puede venir en gametos, y que es el hombre el inductor del drama, el
fálico sacerdote de la germinación. ¿Cómo, fuero de ésta, podrá
entenderse prelatura en el orden estético! El único mandamiento de la
belleza viva: ¡engendrar! ¿Entiendes, Plato? para el americano de
América: ¡engendrar! ¡engendrar! Engendrar hasta la profundidad del
Tawantinsuyu. (2012, p. 213)

Como se pode ver, vida e beleza são compreensíveis somente na encarnação.38 Isto
implica que o pior inimigo do pensamento que procura expor Churata é Platão, já que El
pez de oro erige-se contra a transcendência e as procuras ascendentes. Pior ainda, o
chamado da fertilidade propõe invadir o espaço, abrir as portas ao plural. Agora adquire
mais sentido a teatralidade do texto, posto que esse estaria habitado por uma grande
quantidade de seres que não dependem nem do antropomorfismo nem do
antropocentrismo.39 Os personagens principais são o Peixe de ouro, o seu pai, o Puma de
ouro e sua mãe, a Sereia do lago Titicaca. Também temos peixes de prata, lhamas,

37
Para uma visão panorâmica deste assunto é imprescindível consultar a questão das quatro ontologias
gerais que existiriam no planeta, segundo Philippe Descola (2012). Destas quatro, duas são do nosso
interesse e sua relação é inversamente proporcional: o animismo, relacionado com os povos ameríndios e
o naturalismo, relacionado com os europeus. Por outro lado, e como complemento teórico detalhado e
arriscado é importante consultar o naturalismo e perspectivismo ameríndio proposto por Eduardo Viveiros
de Castro em seu livro Metafísicas canibais (2015).
38
O conceito da vida e da carnalidade que expõe Churata tem muitas similitudes com a proposta do filósofo
francês Michel Henry (2018). No entanto, o escritor peruano vai mais além, já que não se interessaria
somente pelo humano.
39
Talvez, por este motivo, Miguel Ángel Huamán (2013) não aceite dizer que o texto é uma carnavalização
de tipo europeu, mas de tipo andino ou pukllay.
38

cachorros, vicunhas, nuvens, ventos, toda uma serie de entes que deixam de lado o
humano, personagem que também se encontra na lista, claro está, para demonstrar que a
existência não teria como regente ao homem. Por fim, estes deslizamentos nos
conduziriam a exposição de uma forma outra de organizar as existências.
Pode observar-se também que a remissão à questão de uma ontologia que permite
a habitação do livro, desterritorializa este, devido a que passaria a ser um meio complexo
de expressão que não contemplava plenamente estas capacidades. O livro converte-se em
um território novo e, por que não, sagrado. É importante mencionar, neste ponto, que o
subtítulo de El pez de oro é “Retábulos de laykhakuy”. No Peru, o retábulo é um objeto
que possui certas caraterísticas sacras, mas o destaque que nós queremos fazer é sua
proposta de simultaneidade. Como no teatro barroco, o mundo teria níveis e eles não
estariam divorciados. A interação infinita seria o signo do livro como revelação do
mundo. Algo muito parecido com a proposta que fazem Deleuze e Guattari, na primeira
parte de Mil platôs: “Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas,
organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais”
(2014, p. 22-23). É isso o que faz o texto, propor uma lógica de diálogo generalizado.
Assim, até as palavras encontrariam um limite, posto que os animais, as plantas, a
geografia e os espíritos têm uma participação política que deve ser atendida e negociada.
Neste ponto, poderia se fazer uma objeção importantíssima. A língua, na qual se
escreveu El pez de oro é o castelhano, a língua do invasor, a língua do inimigo. Por que
não escrever na língua nativa, nas suas próprias potencias criativas? Uma hipótese poderia
ser a seguinte: deve-se destruir desde dentro as capacidades da língua de poder,
demonstrar que é limitada e que esses limites têm que ser explicados a partir de língua
vencida.40 Cremos que só levando até a loucura os modos de expressão do colonizador é
possível afirmar a singularidade das formas ameríndias. Mas, como se consegue
esclarecer esta proposta? É necessário chegar a um último ponto.

3. A fuga

Nós deixamos sem explicar uma palavra chave faz linhas acima. Imaginamos que
se criou um vazio, porque além de ser um termo aymara, é um neologismo dessa língua.

40
O paradigma Deleuze-guattariano deste fenómeno é Kafka (2002), devido a que este era judeu, checo e
escrevia em alemão. Isto quer dizer que ele minava as estruturas por dentro e deste modo criava uma nova
forma expressiva.
39

A palavra é laykhakuy. O significado é delírio do laykha. O equivalente deste último


termo seria, lato sensu, xamã. Neste momento é possível nos aproximarmos a uma das
vias de leitura de El pez de oro: o livro-retábulo apresentaria uma viagem delirante do
xamã (laykhakuy). Mas, este delírio não tem a ver com formas de escape ou dependente
de uma lógica surreal, como poderia se pensar à primeira vista. A direção deste
movimento procuraria penetrar na lógica da língua castelhana e desbordar o super-real.
O delírio xamânico seria a forma idônea de quebrar a lógica do poder colonizador. Para
ser mais exatos, o laykhakuy pretenderia colocar por baixo dele as formas expressivas do
castelhano. É por este motivo que as incrustações do quéchua e do aymara no livro tem a
intenção de contaminar a língua espanhola exatamente onde não pode dizer nada, onde
se cala.
Onde não consegue se exprimir a língua europeia? Aí onde o xamã permite que
vozes não humanas adquiram protagonismo, aí onde o cosmos ferve de vida, aí onde a
música tem que ser entendida a partir do seu substrato expressivo. As viagens do laykha
são interespecíficas; o homem deixa de ser protagonista para que faça seu ingresso um
novo modo de entender o humano: o peixe de ouro entendido como o porvir: “–¡Milenios
de EL PEZ DE ORO llegan!” (2012, p. 799). Nem completamente humano, nem
completamente animal, senão uma nova plenitude da experiência ou, para ser mais claros,
uma nova estética. Importante ideia, porque a episteme ocidental não seria suficiente para
abordar as hermenêuticas sobreviventes na América Latina. Esta citação poderia ser um
bom resumo do que viemos falando:

Saberse totalidad en EL PEZ DE ORO es el cual es universo y patria,


solo porque es punto lácteo. Comenzando por nuestra vida, que es el
hecho estético augural del cosmos, entenderemos en primer lugar que
estética no estática; y en segundo que la belleza viene de una plenitud
en la profundidad, y que solo cuando nos hemos reproducido es que
realmente entramos en el drama del infinito; que solamente allí el
hombre estará en fruto y germinación (2012 p. 213-214).

A ideia é reconhecer no Peixe de ouro uma nova forma, através da qual deve ser
entendido o humano. E esta renovação ou modificação é total, porque implica uma nova
universalidade, uma nova territorialidade, um novo vitalismo, cosmos, estética, beleza,
plenitude, reprodução ou erótica. Como pode ser olhar, o projeto de Churata é muito
abrangente e, por que não o dizer, impossível.
Mas, como tentar traduzir a variedade, a variação mesma; o animal, o vegetal, por
exemplo? Através de um delírio, no qual prima a língua próxima a processos de
40

subjetivação, a língua dos vencidos que, em um processo de combate ou λογομαχία, no


sentido literal do termo, luta de palavras, conseguiria fazer ver e escutar formas invisíveis,
logicamente, para o blind side do pensamento hegemônico. Por este motivo, o laykhakuy
e seus movimentos por territórios além do humano arrastariam e modificariam todo
intento de organização alheio das suas propriedades de construção do mundo. Aquela
ontologia que aparentemente tinha sido apagada pela invasão espanhola reapareceria com
força, já que se encontraria na capacidade de abrir uma fenda no poder hegemônico com
o objetivo de enunciar a impossibilidade deste com seus próprios mecanismos.
Em resumo, se poderia dizer que há um terceiro elemento não mencionado na nossa
comunicação. Em primeiro lugar, Churata enfrentou a responsabilidade de
apresentar/traduzir uma ontologia ameríndia altiplânica fazendo curto-circuito na
capacidade comunicativa hegemónica. Mas, para que desvendar outra configuração do
ser? Para corroborar outras formas de sentir. O terceiro elemento pendente é o político
entendido a partir de uma nova forma de administrar o poder, posto que o homem não
seria o único com acesso a ele. Como esperamos ter deixado em claro, esta conversa ainda
não acabou. Finalmente, esperamos também ter animado à leitura de El pez de oro de
Churata para continuar com a complicada luta que propõe e da qual não podemos fugir
por muito tempo.

Referências

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CHURATA, G. El pez de oro. Madrid: Cátedra, 2012.

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pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify / N-1 Edições, 2015.

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42

AS NARRATIVAS (IM)POSSÍVEIS NOS ROMANCES METAFICCIONAIS


HISTORIOGRÁFICOS DE BARBARA CHASE-RIBOUD:
DISCURSO, CORPO E PODER

Dayse Rayane e Silva Muniz (UnB)41

Resumo: A escritora afro-estadunidense Barbara Chase-Riboud, através dos romances


metaficcionais historiográficos Sally Hemings (1979), The President’s Daughter (1994) e
Hottentot Venus (2003), dá voz a sujeitos negros do sexo feminino marginalizados por relações
de poder desiguais e excludentes. Resgatando personagens históricas ora apagadas pela
historiografia tradicional, a voz narrativa humaniza essas mulheres através de representações que
as concebem como sujeitos complexos. Os limites entre a ficção e a realidade são tensionados,
num registro metaficcional historiográfico que busca problematizar situações de violência
experienciadas por essas mulheres negras que viveram no século XIX, ao mesmo tempo que
desafia noções de forma, conteúdo, discurso e poder.
Palavras-chave: Raça e Gênero. Metaficção Historiográfica. Discurso. Poder.

Romancista, poeta e escultora, Barbara Chase-Riboud é uma premiada artista afro-


estadunidense, que se destacou como uma figura importante em todo o mundo devido à
qualidade estética e às temáticas presentes em suas expressões artísticas. O engajamento
da artista em relação a questões históricas, identitárias e raciais é fortemente percebido
nos três romances a serem analisados neste artigo, Sally Hemings (1979), The President’s
Daughter (1994) e Hottentot Venus (2003). A maioria das considerações aqui
desenvolvidas são provenientes da minha dissertação de mestrado, intitulada “A violência
de raça e gênero em romances afro-americanos contemporâneos: (im)possibilidades
narrativas em Barbara Chase-Riboud”, aprovada pelo Programa de Pós-Graduação em
Literatura da Universidade de Brasília em agosto de 2017.
O intuito deste trabalho é discutir três pontos comuns às três obras, que são as
representações de mulheres negras como sujeitos do discurso, a denúncia de situações de
violências experienciadas por elas e a natureza metaficcional historiográfica dos
romances. Essas três características são basilares para a criação do conceito de narrativas
(im)possíveis, definido como um lugar de enunciação que permite que vozes apagadas
pelo silenciamento estruturado pela prática discursiva colonial e patriarcal sejam
finalmente ouvidas (MUNIZ, 2017).
Sally Hemings e The President’s Daughter contam as trajetórias de três gerações
de mulheres escravas da família do presidente estadunidense Thomas Jefferson. O

41
Doutoranda em Literatura e Representação pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura pela
Universidade de Brasília. E-mail: daysermuniz@gmail.com
43

primeiro romance narra a história de Sally Hemings, através, principalmente, do ponto de


vista da própria protagonista. Em alguns momentos Elizabeth Hemings, a mãe da
personagem, e Harriet Hemings, sua filha, também dão voz à narrativa.
O romance Sally Hemings explora a relação entre a protagonista e o presidente
Thomas Jefferson, debruçando-se sobre as questões pessoais e políticas que envolvem a
vida dos escravos e da família do presidente, através de uma perspectiva que difere
radicalmente daquela registrada pela historiografia tradicional. A construção ficcional da
relação entre os dois permite que aspectos como relações de poder e posse,
consentimento, liberdade e racismo sejam problematizadas, num projeto que subverte a
lógica das narrativas tradicionais, em que a voz branca e masculina é intitulada a
selecionar e produzir o registro histórico e memorial.
O romance dá autoridade narrativa a uma mulher silenciada pela sociedade, e que
escolhe fazer do acontecimento privado um núcleo mais prestigiado no desenrolar da
história. Desse modo, entendemos que decisões políticas como a abolição da escravatura
e a inclusão das mulheres nessa luta são determinadas na privacidade dos lares; os relatos
de momentos históricos importantes, como a Batalha de Gettyburg, são feitos de forma
emotiva e sarcástica, se diferenciado de registros históricos neutros e objetivos; e,
finalmente as desigualdades de raça e gênero são mais uma vez centralizadas na narrativa.
As famílias escravizadas discutem as injustiças cometidas por homens e mulheres
brancos; as mulheres negras denunciam as violências sexuais que sofrem por sua
condição de gênero e de raça; as mulheres brancas “performam uma declaração de
independência” (SPIVAK, 2017, 578), que objetiva informar a sociedade de seu desejo
de igualdade.
A relevância da voz narrativa negra, feminina e escravizada não está fixada apenas
no mundo ficcional. Se a riqueza do registro (em sua forma e conteúdo) configura uma
perspectiva inovadora e intrigante, por um lado, também provoca questionamentos no
mundo real, por outro. O entendimento da relevância do protagonismo feminino e negro,
idealizado por uma voz autoral nas mesmas condições, é possível através da percepção
de que o lugar que as mulheres negras tradicionalmente ocupam tanto na produção
intelectual quanto na narrativa é consequência do racismo e do sexismo que elas
enfrentam em outras instâncias sociais. O discurso constrói e é construído pelos sujeitos
sociais, e o seu poder é duplo; ao mesmo tempo que o discurso é estruturante das relações
de poder, também é estruturado por ele. Uma vez que o acesso e a manutenção desse
discurso (FOUCAULT, 1996) é feita por sujeitos masculinos e brancos, as mulheres
44

negras naturalmente ocuparão um lugar de maior desvantagem, pela natureza dupla das
opressões que sofrem, chamadas de colisões pela teórica feminista negra Kimberlé
Crenshaw (2004, 12).
Nesse sentido, a busca por representações dignificantes e não estereotipadas de
populações negras, cara aos feminismos negros e aos estudos pós-coloniais, funciona
como um mecanismo que busca desmantelar a lógica patriarcal e racista. Essa necessidade
é corroborada pela feminista negra bell hooks, que encara a prática de (re)ssignificação
representativa como uma luta central na luta contra os preconceitos.

Para encarar essas feridas, para curá-las, pessoas negras


progressistas e nossos aliados nessa luta precisam estar dispostos
a fazer um esforço para interferir criticamente e transformar o
mundo das imagens, construindo um lugar de autoridade para
isso nos movimentos políticos de liberação e autodeterminação
(sejam eles anti-imperialistas, feministas, pelos direitos dos
homossexuais, liberação negra, ou todos acima citados e mais).
Se for o caso, seria necessário pensar em intervenções radicais.
Deveríamos considerar cruciais tanto as imagens que produzimos
quanto a maneira crítica como escrevemos e falamos dessas
imagens. E, mais importante, deveríamos nos ater ao desafio de
falar o que não foi falado. (HOOKS, 1992,4)

A força estética e política do não-dito na forma e no conteúdo das obras de Chase-


Riboud se alinha perfeitamente à lógica de hooks, presente nas narrativas aqui analisadas
na figura de uma intervenção radical. Ao conceber personagens negras que fogem do
estereótipo abundante na literatura ocidental, do indivíduo negro pouco crítico e
complexo, Chase-Riboud reescreve a história de personagens esquecidas, as fazendo
existir pelo menos nas lacunas deixadas pela historiografia tradicional. Ao contrário do
proposto em narrativas tradicionais acerca de personagens históricas negras do sexo
feminino, em Chase-Riboud as imagens de Sally Hemings e Harriet Petit são construídas
a partir de lugares de transcendência. São mulheres que falam mais de um idioma, tocam
instrumentos musicais, escrevem e refletem sobre questões políticas. Essas imagens
buscam reprimir um silêncio que, nas palavras da filósofa feminista Djamila Ribeiro, se
perpetua “como a negação de humanidade e de possibilidade de existir como sujeito”
(RIBEIRO, 2018, 18).
A construção de novas representações de mulheres negras na literatura, presente
numa grande parcela das obras de Chase-Riboud, tem o intuito de subverter as
representações eurocentradas desses indivíduos, tão abundantes no campo simbólico. A
45

iniciativa de autoras negras como a própria Chase-Riboud, Toni Morrison e Alice Walker,
nesse sentido, segue o pressuposto de que “o papel da literatura na produção da
representação cultural não deve ser ignorada” (SPIVAK, 2017, 580). Ainda segundo
Spivak, esse papel de representação precisa ser problematizado para além das questões
de gênero, contemplando também o cerne sexista e imperialista das práticas discursivas.
Em outras palavras, a condição feminina e negra precisa ser pensada a partir de uma
desconstrução dupla e interseccional, já que, como denuncia hooks, “a existência de
mulheres negras na cultura da supremacia branca problematiza, e torna complexa, a
questão geral da identidade e da representação femininas” (HOOKS, 2017, 498).
Aprendemos em de Sally Hemings que a pequena Sally, então com quatorze anos,
vai para Paris com o propósito de acompanhar as filhas de seu senhor. Um pouco depois
de sua chegada, é estuprada42 por ele, ficando grávida pela primeira vez. Em meio ao
desespero da descoberta da gravidez, Hemings chega a fugir do palácio em que morava,
sonhando com a liberdade em terras francesas. No entanto, a falta de perspectiva a
convence a voltar para casa. Que opções teria uma mulher negra, que não sabia nenhum
ofício, com uma criança nos braços? Essa observação é feita por Adrien Petit, empregado
e amigo de Jefferson que o acompanhou por quase toda a vida política: “Sally Hemings
passou a tarde de Natal segurando uma criança. Aquela criança simbolizada seus sonhos
perdidos em Paris: a felicidade e promessa parisienses, de que ela não falava mais”
(CHASE-RIBOUD, 1994, 43). A vida da protagonista, mudada pela maternidade, é alvo
de críticas constante de seu irmão, James Hemings, que tinha esperanças de ser alforriado
junto com a irmã, ainda na França. No entanto, James parece não entender que apesar de
ambos serem escravos, a realidade dos dois não é a mesma. Por ser mulher, Sally não
teria uma garantia de liberdade tão concreta, como percebemos na seguinte reflexão:
“Independente do homem que o meu irmão era, ele era um homem. E não importa o que
acontecesse com ele, ele nunca ficaria, como eu, preso nas garras de um amor que me
segurava contra a minha vontade” (CHASE-RIBOUD, 1979, 33% formato kindle).
Com o passar dos anos, a assimetria nas relações entre Jefferson e sua escrava se
torna cada vez mais contundente. A trajetória da protagonista, marcada pelo nascimento

42
Na narrativa, a percepção de que a relação sexual entre Sally Hemings e Thomas Jefferson não foi
consensual fica implícita em sentenças como a proferida por Hemings no início do capítulo 13: “Talvez eu
sempre soubesse que ele me reclamaria. Não tinha sido om mesmo com a minha mãe e as minhas irmãs?”
(CHASE-RIBOUD, 1994, 27% - formato kindle). A sutileza narrativa em apontar para o abuso do corpo
da mulher escravizada como uma extensão de seus serviços figura como outra denúncia feita pela voz
autoral.
46

de sete filhos do presidente, seguida pela derrocada econômica da família Jefferson e pelo
escândalo político do envolvimento de Jefferson com uma escrava, no contexto sulista
estadunidense da época, redundam em um apagamento cruel da subjetividade e da própria
existência de Sally Hemings. No entanto, o seu ato de escrever um diário se delineia como
uma resistência ainda inédita na realidade das mulheres de sua família. Hemings escreve
no diário e guarda as cartas do presidente, atitudes que salvam a sua memória através do
poder simbólico da escrita.
Outrossim, o poder simbólico dado a Sally Hemings através de seus diários, no
âmbito ficcional, e por meio de seu protagonismo em dois romances, é um passo
importante na construção de tradições negras de escrita e produção, posicionando sujeitos
ora subalternizados pelo discurso colonial como produtores de conhecimento, o que acaba
por provocar ranhuras no que Foucault denomina como “[...] constrangimentos do
discurso: os constrangimentos que limitam os seus poderes, ao que refreiam os seus
aparecimentos aleatórios, os que selecionam os sujeitos falantes” (FOUCAULT, 1996,
13). Apesar de pequenas, essas ranhuras são fundamentais para a (re)ssignificação da
história e da memória dos povos negros estadunidenses. Esse tipo de narrativa desenha
possibilidades impensáveis no discurso canônico, como podemos perceber nas
colocações trazidas pelo narrador onisciente sobre a relação entre o presidente e sua
escrava em Sally Hemings. Essa voz narrativa, entre outros aspectos, problematiza a
mudança de perspectiva de Jefferson quanto à abolição da escravatura. O que teria feito
o redator da Carta da Independência mudar de ideia?

Que Jefferson amava Sally Hemings não há nenhuma dúvida. Se


Sally Hemings amava Jefferson já não é tão claro, uma vez que
ela não teve nenhuma escolha. Esta era a tragédia. Que um amor
tão não natural possa ter mudado o rumo da história, sem dúvidas
impedindo Jefferson de usar seu poder e genialidade para inverter
a maré contra a escravidão, ao invés de tornar se cúmplice de toda
a sua escuridão e paixão, sem dúvidas, uma tragédia... Por que
Jefferson mudou sua opinião sobre a escravidão quando voltou a
Paris? O que fez Jefferson se submeter a uma contradição tão
definitiva? (CHASE-RIBOUD, 1979, 42%, formato kindle)

A natureza taciturna de Sally, descrita pela filha como uma mulher silenciosa e
resignada, faz com que a história com Jefferson continue adormecida por um longo
tempo. No entanto, quando já está idosa, Sally se envolve emocionalmente com um
jornalista branco que pretende publicar os diários. A desconfiança da protagonista,
enraizada em uma vida inteira de dor e sofrimentos, a leva a queimar todos os registros
47

históricos do envolvimento Hemings-Jefferson. A destruição de memórias tão


importantes é seguida pela seguinte ponderação:

Ela não tinha nada, com exceção do seu passado. E agora, até isso
tinha sido tirado dela. Ela tinha sido estuprada da única coisa que
uma escrava possuía: sua mente, seus pensamentos, seus
sentimentos, sua história. Entre todas as decisões da sua vida,
nenhuma delas foi feita por ela mesma (CHASE-RIBOUD, 1979,
15% formato kindle)

The President’s Daughter, publicado quinze anos após Sally Hemings, também
traz o mesmo caráter de denúncia contra as violências experienciadas por mulheres negras
presente no livro anterior. Entretanto, essa segunda trama tem uma natureza mais
polifônica que a primeira, evidenciada por um número maior de personagens, com
narrativas mais intrincadas, exploradas por diversos pontos de vista. Conta-se a história
da única filha de Jefferson e Hemings, Harriet Hemings, que se torna Harriet Petit para
fugir da escravidão. A vida da protagonista é desnudada muito mais pela ficção do que
pela história; se no primeiro romance Chase-Riboud podia contar com um aparato
histórico mais amplo, em The President’s Daughter a personagem histórica se constrói
primordialmente através da ficção (CHASE-RIBOUD, 1994).
Por ser uma mulher ruiva de olhos verdes, Harriet Petit consegue fugir do sul
escravocrata para tentar uma nova vida na Filadélfia. Tendo como mentor e guardião
Adrian Petit, Harriet cruza a linha racial para se tornar, como seus irmãos a chamavam,
uma invenção. Julgada pelos irmãos por esconder suas raízes negras, a protagonista passa
toda a vida buscando autenticidade e aprovação numa realidade que não acredita ser sua.
A paranoia de Harriet circunda todos os aspectos de sua vida: a relação com o marido e a
sociedade de modo geral, a luta travada por ela pela abolição da escravatura e até
encontros eventuais com pessoas negras. As implicações do segredo de Harriet tomam
amplas proporções, intervindo até mesmo em suas caminhadas diárias pela cidade:

Mãos que teriam se negado a tocar a Harriet Hemings negra,


pegavam as minhas. Mulheres que teriam afastado suas saias
horrorizadas se a Harriet Hemings negra tivesse esbarrado nelas,
sorriam cordialmente e pediam desculpas. Ambulantes que
teriam roubado um chapéu das mãos da Harriet Hemings negra,
impedindo-a de tocá-lo com suas mãos negras, colocavam os
chapéus em minha cabeça, comentando o preço, seu formato, sua
beleza. (CHASE-RIBOUD, 1994, 52)
48

O apagamento que Harriet sofre na busca por uma vida digna se torna fatal em sua
trajetória, levando à loucura e à morte precoce. A personagem rasura o passado como
mulher negra e escravizada, e fabrica memórias de uma realidade inexistente, carregadas
de culpa e angústia. A loucura de Hemings é sofrida em silêncio, ironicamente ocupado
por vozes de várias gerações de sua família, ouvidas pela protagonista em episódios de
alucinação e paranoia insistentemente relatados no romance. As vantagens de uma vida
branca não distanciam de Harriet profundos questionamentos existenciais, que apenas
podem ser revelados em seus diários, como observado na passagem a seguir:

Qual era o sentimento de branquitude? Simplesmente significa


que eu poderia deitar a minha cabeça no meu travesseiro sem o
medo de que ela seja comprada e vendida no dia seguinte? Ou
não ter a cabeça afundada por uma senhora ciumenta, um
observador irado, um filho petulante ou uma filha da família?
Isso significava que eu não seria arrastada da minha cama pelo
cabelo para acomodar a luxúria de algum transeunte branco ou
um membro da casa grande? Isso significava que a minha mente
poderia finalmente ser usada para algo além de contar biscoitos
ou fardos de algodão? Ou simplesmente significava que minha
cabeça era valiosa, um apêndice único de um ser humano único
e valioso, com todos os sonhos e desejos e esperanças e medos
inerentes à condição humana? (CHASE-RIBOUD, 1994, 50)

Além da incessante luta pelo fim da escravidão, a capacidade de ler e escrever é


outro alívio substancial para o tormento de Harriet, bem como uma remota possibilidade
de perpetuação da sua história como mulher negra. A protagonista tem nos diários uma
parca esperança de registro de seus antepassados e suas memórias, e a neta é a pessoa
escolhida para guardar esse segredo. No entanto, as memórias de Harriet são queimadas
pela neta e pelo marido depois de seu falecimento, atitude que mata a personagem também
simbolicamente. Ironicamente a mulher mais livre da família Hemings, a protagonista de
The President’s Daughter é silenciada três vezes. Pela morte do corpo físico, pelo
apagamento da vida negra na Virgínia e pela destruição dos diários.
Em Sally Hemings e The President’s Daughter as (im)possibilidades narrativas
são projetadas justamente no não-lugar que os seus relatos ocupam. Uma vez que todas
as memórias dessas mulheres são destruídas pelo fogo, no mundo ficcional elas deixam
de existir irremediavelmente. No entanto, a metaficção historiográfica permite, através de
uma prática que borra os limites entre a ficção e a realidade, a reconstrução dessas
narrativas.
49

A metaficcção historiográfica é idealizada e descrita pela teórica canadense Linda


Hutcheon como uma escrita que

[...] cruza o limite entre a imaginação e o fato, a história e


literatura. O que é chamada metaficção historiográfica é a
maneira de escrever que ao mesmo tempo parodia e desafia o que
a escrita representa. O ato de misturar tendências antes
inimagináveis é, na verdade, uma grande oportunidade de dar voz
a pessoas que por alguma razão não puderam fazer parte da
‘história universal’. (HUTCHEON, 1988a, 10)

No que concerne as obras aqui discutidas, podemos pontuar que Hottentot Venus
é a que mais explora a metaficção historiográfica. Essa percepção se dá pela natureza de
seu relato: Sarah Baartman, uma personagem histórica que viveu no século XIX, tem toda
a sua trajetória reconstruída através da ficção. Utilizando-se das mais diversas fontes,
como jornais, livros, teorias científicas, ilustrações e peças de teatro, Chase-Riboud
desenvolve uma narrativa a partir do lugar mais impossível de todos: a morte. Se nos dois
romances anteriores os diários são os meios de relatos das experiências das personagens,
em Hottentot Venus o mundo espiritual permite que uma mulher ora silenciada pelo
discurso eurocêntrico se torne narradora da própria trajetória, assim como mediadora de
todas as vozes que permeiam sua história.
Mais conhecida na Europa como a Vênus Hotentote, Sarah Baartman se tornou
um grande fenômeno na Europa. Após presenciar o massacre do seu povo, os coecoe, no
processo de colonização da África do Sul pelos holandeses, Baartman foi levada para o
continente europeu por um caçador de espécies raras, no intuito de ser exposta como uma
“criatura exótica”. Após viver em Londres, a sul-africana foi para a França, onde morreu
aos aproximadamente trinta anos. Objeto dos estudos eugenistas de Georges Cuvier, a
protagonista teve uma trajetória de sofrimento e desumanização, uma vez que o seu corpo
era considerado pelos estudos científicos da época como símbolo da sexualidade negra,
desviante e primitiva. Os estudos de Cuvier concluíram que a forma física de Baartman a
aproximava mais do macaco do que do ser humano, o que, entre outras afirmações
profundamente equivocadas, legitimou cientificamente toda a violência a que a
personagem foi exposta.
Visto que as representações de mulheres negras no século XIX obedeciam uma
lógica colonial que não concebe esses sujeitos como dotados de humanidade e
inteligência, a voz narrativa de Baartman como uma mulher inventiva e crítica se mostrou
50

como uma grande ruptura de padrões narrativos, discursivos e ideológicos. Baartman é o


ser pensante que observa os seus assediadores, os europeus:

Ao meu redor ficavam às vezes milhares de rostos brancos, todos


olhando para mim, com um brilho de horror, pena ou terror em
suas faces, ou às vezes um sorriso afetado de diversão, desprezo
ou excitação nervosa; olhos brilhavam, lábios franziam, peles
transpiravam. Gritos, insultos e risadas às vezes me
sobrecarregavam enquanto as ondas do oceano me devoravam,
com exceção de que não era sal que elas jogavam, mas ódio
líquido, que batia na minha pele nua, meus pés descalços, meu
rosto quente e meu cérebro ressequido. (CHASE-RIBOUD,
2003, 4-5)

A discriminação como uma construção histórica e sociocultural é denunciada por


uma mulher cujo destino foi determinado pelo seu corpo. A forma física de Baartman,
entendida pelo colonizador como “exótica” (RAGO, 2008), é peça fundamental no
entendimento de sua representação objetificada e permeada por tantas formas de
violência.
A construção inferiorizada do outro, fundamental para a empreitada colonial, é
constantemente problematizada em Hottentot Venus das maneiras mais diversas. Essas
denúncias são levantadas pela voz narrativa negra feminina, pelo relato a partir do local
de morte e a denúncia das violências simbólica, estrutural, sexual e colonial. A imagem
da protagonista, construída com base na subjetividade do sujeito pensante e complexo,
corrobora a teoria de que a inferiorização de povos e culturas não-europeus é uma
construção influenciou e ainda influencia negativamente a trajetória dos corpos negros
femininos.
O olhar colonial, que segrega e menospreza o outro na relação de poder é, para o
sociólogo Aníbal Quijano, uma criação que surge a partir do descobrimento da América,
e pode ter se originado como referência às diferenças fenotípicas entre colonizadores e
colonizados. Essas diferenças, que já eram entendidas como diferenciações sociais e
hierárquicas, funcionaram como um mecanismo de legitimação da dominação europeia
frente aos povos colonizados (QUIJANO, 2005, 118). A necessidade de explorar outros
povos e suas terras faz com que os colonizadores concebam como verdadeira a crença de
que o povo europeu era superior aos demais; tais concepções, provenientes da primeira
colonização, continuam legitimadas na chamada segunda colonização, em que a história
de Baartman toma forma.
51

Apesar da incontestável pertinência da teoria formulada por Quijano,


pesquisadoras como Sandra Ponzanesi e Maria Lugones afirmam que a colonialidade do
poder por si só não consegue explicar a dimensão das violências sofridas pelas mulheres
negras, tanto no século XIX quanto na contemporaneidade. Mendonza resgata o
pensamento de Lugones, para quem

na narrativa lógica do conceito da colonialidade do poder,


Quijano comete o erro de supor que gênero – e inclusive a
sexualidade –, forçosamente, é elemento estruturador de todas as
sociedades humanas. Ao supor que isso é assim, a priori, Quijano
aceita sem perceber as premissas patriarcais, heterossexuais e
eurocentristas que existem sobre gênero. (LUGONES apud
MEDONZA, 2017, 757, 758)

As construções narrativas dos romances metaficionais historiográficos Sally


Hemings, The President’s Daughter, e Hottentot Venus, assim como o protagonismo de
mulheres negras ora silenciadas pela sociedade, alinhadas às denúncias de violência
experienciadas por elas, são os elementos que posicionam essas obras em lugares de
(im)possibilidades narrativas (MUNIZ, 2017). Buscando problematizar o silenciamento
dos corpos negros e femininos, esses romances figuram como um artifício potente na
desconstrução dos padrões sexistas, racistas e classicistas milenarmente preponderantes
na nossa sociedade. Nas palavras da escritora feminista Eurídice Figueiredo (2013), “Esse
esforço de (re)construção, que nos ensina como os silêncios são reveladores, nos leva a
refletir sobre representações, agenciamentos e lugares de fala”, abrindo espaços para o
reconhecimento dos sonhos e da existência daqueles que estão em desvantagem nas
relações de poder.

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QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina.”


In:_________ A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas
latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales, 2005. Disponível em
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sursur/20100624103322/12_Quijano.pdf.
Acessado em 24 ago. 2016.
53

UM GESTO ESTÉTICO DO AUTOR CARLOS FUENTES NA CONSTRUÇÃO


DOS ESPAÇOS LITERÁRIOS NA OBRA TERRA NOSTRA

Denise Moreira Santana (UnB)43

Resumo: Trataremos no presente artigo de comunicação sobre o espaço literário presente na obra
Terra Nostra, do autor mexicano Carlos Fuentes. O trabalho se fundamenta nos estudos da
Epistemologia do Romance e na hipótese de que existe um gesto estético de Fuentes ao descrever
a devoção do personagem Felipe II ao quadro de um pintor italiano que nos leva a um
questionamento epistemológico sobre quais espaços literários podemos descobrir através desta
obra, em especial o quadro “Las meninas”, de Diego Velásquez, como uma obra de arte que rompe
e antevê questões estéticas e históricas da corte espanhola. O caminho hermenêutico escolhido
perpassa textos de H. G. Gadamer e M. Foucault propondo uma comparação destes textos
específicos que tratam do quadro como obra de arte, o que nos leva à possibilidade de pensar que
em Terra Nostra existe uma convergência estética do objeto com a história que conduz a
construção da racionalidade literária do autor.
Palavras-chave: Epistemologia do Romance. Literatura comparada. Carlos Fuentes. Terra
Nostra.

O gesto estético

O Real Monastério de São Lourenço do Escorial é um complexo que inclui um


palácio real, uma basílica, um panteão, uma biblioteca, um colégio e um monastério
erguido entre os anos de 1563 a 1584, pelo rei Felipe II, personagem sugerido pela
narrativa da obra Terra Nostra (1975) do autor Carlos Fuentes. O que perseguimos aqui
é um gesto estético do autor que nos permite olhar um quadro italiano que se apresenta
no espaço literário como um elemento de conhecimento epistemológico para a obra em
questão. Na narrativa do primeiro tomo da obra tudo conflui para o palácio do Escorial
lugar onde se encontram as criptas dos antepassados reis da Espanha.
O romance Terra Nostra (1975) está impregnado de diversas citações e referências
históricas, filosóficas e literárias que apontam para uma construção literária barroca nos
modelos da obra de Miguel de Cervantes Saavedra, El ingenioso Don Quijote de la
Mancha I e II (1605 e 1615), essa forma de escrita serve-nos como uma chave para a
leitura da obra fuenteana. No livro de ensaios Eu e os Outros (1989) o texto Cervantes,
ou a crítica da leitura apresenta-nos um caminho bibliográfico importante para entender
o contexto do romance aqui escolhido. Outra obra do autor que permite compreender a

43
Doutoranda em Literatura PósLIT- UnB e membro do grupo de estudos e pesquisa Epistemologia do
romance.
54

estrutura histórica do texto é a peça teatral Todos los gatos son pardos (1970). Contudo,
neste momento o que nos interessa é o quadro.
Compreende-se que o gesto estético de um autor como Carlos Fuentes é a atividade
que contempla sua racionalidade, um atributo que mostra a singularidade criativa de sua
escolha narrativa. Por perseguir esta ideia de racionalidade é que em determinado
momento da leitura de Terra Nostra nos deparamos com uma frase que nos despertou
para a busca hermenêutica de sentido do texto: “Y el señor sólo tenía ojos y voluntad para
el supuesto mistério de un cuadro italiano”. (FUENTES, 1975, p. 90). Ou seja, ao
acompanhar as palavras do narrador no trecho citado, conseguimos conecta o tempo
espaço da obra a um tratamento histórico e estético sobre a construção do Palácio do
Escorial.
Em nossos estudos junto ao grupo da Epistemologia do Romance buscamos
esclarecer como Carlos Fuentes é um autor de transpiração, um autor que possui uma
construção estética que vai além da inspiração e imaginação, ele se move pelas leituras
que faz de outros autores e do tempo histórico, ele trabalha arduamente para a construção
estética de seu projeto literário, ele possui a qualidade de escritor que incansavelmente
luta para mostrar a importância da memória social e coletiva através de seus textos.
É importante compreender e destacar a crença que Fuentes possuiu no papel que a
imaginação desempenha no texto literário, e de como essa determinação se tornou
doutrina intelectual dos anos cinquenta para a “La generación del Medio siglo”44 da qual
fez parte. O autor aponta na obra Eu e os outros (1989) uma característica reconhecível
para o continente latino-americano que é a origem Romana de nosso espírito:

Para os franceses, a inteligência está associada ao discurso racional;


para os russos, a uma intensa busca espiritual. Para um mexicano, a
inteligência é inseparável da maliciosidade – e nisso, como em muitas
outras coisas, somos bastante italianos: a furberia, a esperteza velhaca,
e o culto das aparências; la bella figura, são traços italianizados
presentes em toda a América Latina: mais que Madri, Roma é nesse
sentido nossa capital espiritual (FUENTES, 1989, p. 13).

A declaração do autor demonstra que ele acredita que a romanização ibérica


aconteceu antes da colonização do novo mundo. Perseguindo a ideia de que o continente

44
A geração da metade do século no México formada por Carlos Fuentes, Victor Flores Olea, Enrique
González Pedrero, Mario Moya, Porfirio Muñoz Ledo, Xavier Wimer e Salvador Elizondo, entre outros
teve por característica contar com escritores mexicanos que escreveram durante os anos de
1950(Hernández, 1999, p. 121).
55

americano é descendente ibérico mais que espanhol, além da raiz indígena, e das
influências africanas, o autor decide que este continente “multirracial e policultural
precisa de uma denominação mais completa e batiza-o de Indo-Afro-Iberoamérica”
(FUENTES, 1990) por reconhecer a multiplicidade de realidades aqui vivenciadas. Esse
reconhecimento se apresenta como uma constante preocupação em suas narrativas
sincréticas, antropológicas e universalizantes da criação de seu mundo literário, um
compromisso social com a inovação das formas de narrar. E foi a partir desta inquietação
que nos detivemos a compreender o espaço que o quadro ocupa na obra em questão.

O espaço

Carlos Fuentes é um autor que reitera a sua preocupação com o tempo dentro do
espaço literário, perseguir uma existência temporal de seus personagens ou de outros
elementos narrativos em suas obras significa tentar compreender o espaço presente
através do tempo refutado, passado e presente, e em nosso caso, do conhecimento que
deriva da representação do quadro italiano que é um contraponto a seu personagem
principal no primeiro tomo da obra.
Em trechos de seus ensaios aos quais ele reporta à sua memória de infância
acabamos por compreender que sua escrita advém da seriedade com que foi educado para
exercer o seu trabalho, da herança educacional aprendida em solo americano sobre como
ser um homem de sucesso, como buscar no futuro a sua meta de progresso e felicidade; e
do quanto essa cultura diverge da natureza mexicana de seus compatriotas e o torna
cidadão do mundo.

Sim, a despeito de todos os problemas, a vida era bastante boa naqueles


longos verões da Virgínia em que me tornei talvez o primeiro e único
mexicano de todos os tempos a preferir flocos de cereal a guacamole.
Também me tornei o primeiro calvinista mexicano; um bedel invisível
chamado Dever Puritano lança sua sombra sobre cada um dos meus
passos: jamais vou merecer nada se não trabalhar arduamente, com
disciplina de ferro dia após dia. A preguiça é um pecado, e se eu não
me sentar diariamente à máquina de escrever às oito da manhã para uma
jornada de trabalho de sete a oito horas, certamente irei para o inferno.
Para mim não há siestas, ai de mim, alas, e hélas e ay-ay-ay: como eu
invejo meus irmãos latinos, livres do fardo da ética protestante do
trabalho, e por que eu preciso, até hoje, ler as obras completas de
Hermann Broch e escrever notas em meu caderno preto numa
ensolarada praia mexicana, em vez de deixar o dia correr e esperar
calmamente que os cocos caiam dos coqueiros? (FUENTES, 1989, p.
14).
56

O trecho demonstra uma educação religiosa recebida nos Estados Unidos que
diverge da forma latina de educação religiosa e de uma relação latina com o tempo, e este
aspecto se apresenta como pano de fundo em Terra Nostra. A influência do pensamento
católico romano sobre a nação latino-americana é percebida na relação que o sujeito deste
lado do continente possui com o tempo e com o espaço.
Terra Nostra é um romance que está dividido em três partes: O Velho Mundo, O
Mundo Novo e o Outro Mundo, esses três mundos contam a história que inicia e termina
em Paris em 1999, durante um apocalipse. Especificamente neste trabalho queremos
iniciar um estudo comparativo com os textos de Gadamer (1997) “A valência ontológica
do quadro” e Foucault (2000) “Las meninas” para tentar alcançar a percepção do todo (a
obra) pela parte (um capítulo da obra).
Arriscamo-nos a tratar de um microcosmo que está no capítulo inicial da obra Terra
Nostra para traçarmos uma linha epistemológica da racionalidade estética do elemento
que se repete que a figuração do quadro de Diego Velásquez nos personagens da obra e a
repetição de se estar diante de um elemento contemplativo da arte. Porque entendemos
que o autor tem um motivo para usar o quadro como elemento de reflexão estética da arte,
e com este objeto estético ele nos faz pensar em uma escolha que não é apenas a escolha
da representação, mas uma escolha ontológica, uma escolha sobre a consequente
manipulação que este elemento metafórico prescinde.
É a partir de um exercício hermenêutico que entendemos poder obter o
conhecimento que deriva da representação do quadro, de uma perspectiva narrativa de
um mundo irreal construído através do espaço literário; por mais que seja esta uma obra
ficcional ela permite compreender as razões históricas de um tempo em que a religião
estava intimamente associada com a Monarquia.
Esse jogo estabelecido pela obra literária de Carlos Fuentes nos faz pensar no hábil
narrador que desde seu espaço literário, ou como nos diz Milan Kundera, desde seu
observatório literário, aponta para um quadro cheio de significações religiosas, um
território do Velho Mundo que se encontrava em franca expansão, quando os conflitos
humanos existenciais e materiais se resolviam pelos dogmas religiosos e pela doutrina
católica. Um espaço que replica as palavras retiradas do evangelho em um exame de
consciência de um personagem da realeza espanhola diante do santíssimo sacramento da
eucaristia.
Esse narrador traça caminhos e aponta suas críticas ao espelhismo, que não se
enxerga, ao exame de consciência do rei que não existe: “Dios está borracho de pecados”
57

(FUENTES, 1975, p.102). Rei este que está pedindo perdão, e continua pecando. Ganha
lugar também neste capítulo a voz filosófica do autor através das elucubrações e das
necessidades de purificação do Senhor Felipe II.
Neste jogo que o narrador estabelece com a arte e com os personagens da obra, a
voz do personagem Felipe II fala sobre o tempo, e é essa a repetição que nos aguça a
pensar o que leva a racionalidade presente na obra:

Y calmo su sed la Idea, eternamente clavada en la mente, de que detrás


de todo desgaste material inmediato estaba la riqueza inagotable de la
vida eterna: construía para el futuro, sí, pero también para la salvación,
y la salvación no tiene tiempo; no es sólo una idea – murmuró- es el
otro lugar; la vida eterna que todos deberían ganar, pues la vida de los
hombres no se debe contar por los años, sino por las virtudes, y para la
otra vida no tiene canas el que ha vivido más, sino el que ha vivido
mejor; la vida eterna que todos deberían, así, ganar, pero que yo debo
ganar porque es mía por derecho propio y divino. Poca cosa es dejar
detrás de mi una constancia tangible de esa certeza, como lo es este
palacio dedicado al Santísimo Sacramento de la Eucaristía. (FUENTES,
1975, pp. 90-91)

O trecho traz consigo uma concepção filosófica sobre o tempo que deixa claro que
a vida do homem não deve ser contada pelos anos que passam, mas pelas virtudes que
este homem possui. A racionalidade encontrada aqui revela uma busca pelo tempo e pelo
conflito humano que se perpetua no tempo, o jogo a que o leitor está submetido deve ser
repensado a cada relação com os elementos textuais.

O quadro

O quadro presente pela primeira vez no capítulo intitulado “Todos mis pecados”
funciona como uma reflexão da contemplação do pensamento do personagem sobre a
religiosidade presente neste momento histórico cultural da Espanha. Ali, existe uma clara
referência ao Palácio do “Escorial”, onde ocorre a primeira parte do livro, este lugar é um
monastério que teve a construção iniciada em 1557 sob o comando de Felipe II, para
comemorar a vitória na Batalha de San Quintín e serve até hoje para abrigar os restos
mortais da dinastia da coroa espanhola.
A obra Terra Nostra é também a alegoria do quadro de Diego Velásquez,
encontram-se ali a anã, o cachorro, os reis, o pintor e os reis. A trama é ambígua e
irracional, o quadro é um elemento simbólico e contemplativo que envolve quem lê o
58

romance, assim, nos apresenta Foucault (2000) ao percorrer e analisar a obra de


Velásquez45 no ensaio “Las meninas” a seguinte análise:

Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da


representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito,
ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com
suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna
visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela
reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é
imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a
funda [...] (FOUCAULT, 2000, p. 20)

Foucault ainda acrescenta que o que ocorre é o desaparecimento do sujeito, posto


que este se elide na obra de arte, e assinala que sua essência possui uma invisibilidade
profunda porque não pode ser imitada, daí compreendermos que Carlos Fuentes nos
oferece um quadro dentro do quadro, capaz de guardar em si as penitencias de um rei
católico, e de uma religiosidade que irrompeu o século, que atravessou fronteiras ao
catequizar homens que não possuíam a crença românica instituída pela união de dois
reinos que converteu os judeus e expulsou os mouros46 de seu território e que assim está
presente em Terra Nostra:

Escondido detrás de una columna de la cripta, Guzmán pudo decir lo


que imaginaba que el Señor, al golpearse el pecho, pensaba que no
debía estar allí, arrodillado, examinado un cuadro para poder examinar
su conciencia, sino activamente empeñado en apresurar esta
construcción que, por un motivo u otro, se retrasaba indebidamente.
(FUENTES, 1975, p.90)

Representar, neste caso, significa fazer com que algo esteja presente e seja
percebido pelo leitor pesquisador. Atentos ao fato de que o autor descreve um homem
que contempla um quadro e especificamente, através dessa contemplação passa a
descrever uma sucessão de acontecimentos vistos desta mesma perspectiva inicial, é que
compreendemos estar diante de uma possibilidade de leitura Epistemológica, uma leitura
que revela a obra de Diego Velásquez dentro da obra de Carlos Fuentes e que revela que
este mesmo quadro observa outro quadro que veio da Itália, da cidade de Orvieto, um
quadro que guarda as penitencias de Cristo e que revela uma rei que se prostra diante dele.

45
A obra de Diego Velásquez é do ano de 1656, realizada durante o reinado de Felipe IV na Espanha.
46
O ano de 1492 foi de extrema importância para a Espanha porque foi o ano em que ocorreu o
descobrimento da América, a Conquista de Granada e a publicação da primeira gramática da língua
castelhana.
59

O caminho percorrido pelo texto ao retratar que o quadro é também a Via Sacra e
parte do evangelho de Jesus Cristo faz-nos buscar conexões com a história para
compreender os atos e falas dos personagens, visto que se associam ao mistério da
crucificação de Cristo e à histórica cristianização da Espanha de Carlos V e Isabel, durante
a união dos reinos de Castilha e Aragão. É ímpar perceber que o autor que se introduz
através da metáfora artística e literária do quadro faz da manifestação do divino uma
relação com a ontologia do ser, neste caso, o Senhor que olha o quadro na obra.
Para Gadamer (1999) o quadro não pode ser entendido como objeto de consciência
estética, mas como um acontecimento do ser em sua estrutura ontológicas a partir de
fenômenos como o da representação, e neste sentido tentamos nos aproximar de suas
considerações:

O quadro é um acontecimento do ser – nele o ser torna-se um fenômeno


sensorial visível. A originalidade da imagem é, antes, um momento da
essência, que encontra seu fundamento no caráter de representação da
arte. A “idealidade” da obra de arte não pode ser determinada através
da relação com uma ideia como um ser a ser imitado, reproduzido,
senão que, como diz Hegel, como o “aparecer” da própria ideia. A partir
do fundamento de uma tal ontologia do quadro, torna-se infundada a
primazia do quadro pintado sobre a madeira, que faz parte de um acervo
de pinturas e que corresponde à consciência estética. O quadro guarda,
antes, uma relação indissolúvel com o seu mundo. (GADAMER, 1999,
p.233)

Essa ontologia do quadro é uma ontologia metafísica, uma relação que se estabelece
com o mundo. Ao utilizar o quadro como escolha estética, Carlos Fuentes preenche os
vazios da distensão temporal da criação com sua imaginação linguística e geográfica de
identidade mexicana, do catolicismo presente em sua cultura. Ao lermos o ensaio de
Foucault, encontramos em Terra Nostra pontos de convergência com a obra de
Velásquez, observamos que Fuentes também utiliza uma anã, um rei, uma rainha, um
servo, um cachorro e um quadro, faltaria um pintor, mas temos um escritor, um
manipulador das palavras um ventríloquo de sua própria cena.
Quiça, a motivação de tratar neste artigo especificamente este quadro italiano que
a obra indica ter vindo de Orvieto- cidade italiana traga questionamentos ainda mais
contundentes sobre a obra. É como se o romance Terra Nostra contasse a história do
quadro de Velásquez porque tudo nesta pintura vai além do espaço pictórico, porque não
é apenas representação, é sobretudo, a relação indissolúvel que trata Gadamer do quadro
como ser ontológico, e talvez por isso, nos proponhamos futuramente compreender a obra
60

através do quadro de Velásquez e buscar a referência da obra a este quadro italiano que
reporta a uma ideia do autor sobre a origem romana que influenciou na colonização do
Novo Mundo.
Em determinado momento da obra Terra Nostra nos deparamos com o seguinte
trecho: “El cuadro: El grupo de hombres desnudos Le da la espalda al Señor y a la Señora
para mirar al Cristo; el Señor mira la baja mirada del Cristo y la Señora mira las nalgas
pequeñas y apretadas de los hombres. Y Guzmán mirará a sus amos que miran el cuadro.
Levantará, turbado, la mirada: el cuadro lo mira a él.” (FUENTES, 1975, p. 96).
Ocorre assim o efeito da inversão do olhar. O quadro que olha para o sujeito torna
o efeito da representação em um espelhismo. Gadamer (1999) também trata da relação
entre o espelho e a arte e o interessante é notar que este é o momento em que ele dissocia
a representação do objeto representado, ele mostra que o quadro ou o espelho não
representam, eles são parte integrante do objeto e foi isso que conseguimos verificar na
citação que fizemos anteriormente da obra. O quadro que olha o personagem porque ele,
personagem, tem um olhar turvo, que perdeu seu curso natural,

A representação continua, antes, vinculada essencialmente ao


representado, e até, é parte integrante dele. Essa é também a razão,
porque o espelho reflete a imagem e não uma cópia: é a imagem daquilo
que se representa no espelho e inseparável de sua presença. O espelho
pode, certamente, dar uma imagem distorcida, mas isso é apenas
deficiência sua: Não está desempenhando corretamente a sua função.
Nesse caso, o espelho confirma o que aqui se há de dizer
fundamentalmente, isto é, que em contraposição ao quadro, a intenção
se volta para a unidade originária e a não-diferenciação da
representação e do representado. É a imagem do representado – é sua
imagem (e não a do espelho) que se mostra no espelho. (GADAMER,
1999, p.226)

A afirmação de Gadamer nos serve como modo de pensar a racionalidade e a


repetição como gesto estético do autor, a partir destas reflexões sobre a ontologia da obra
passamos a compreender que o quadro é inseparável da narrativa porque ele é o espelho
da obra, é ele a sua essência, e não sua representação pura e única e é a este gesto que
Carlos Fuentes se atém ao criar a relação obra- quadro- personagem- leitor- narrador-
história- tempo e espaço.
61

O tempo

A necessidade que nos moveu neste artigo foi a de encontrar em uma realidade que
também é nossa, uma força identitária de nossa condição latino-americana, de
compreender uma cultura que muito explica sobre nossa raiz histórica no tempo, e a nosso
ver, deve ser fortemente explorada pela literatura comparada. Ver-se no outro e colocar-
se no lugar do outro é um exercício de alteridade imprescindível na sensibilidade artística
da leitura romanesca temporal de Carlos Fuentes.
Terra Nostra mostra como o passado é suscetível de manipulação e consequente
transformação pela criação literária. A abolição das fronteiras lógicas, que foram
instituídas com a finalidade de criar novas semelhanças ainda não percebidas no quadro
pode ser visto como uma metáfora poética da história da Espanha.
O quadro não é apenas uma obra de arte, ele é também um ser constituído de
significados, ele representa, porém não precisa ser representação, a força do objeto move
o sujeito, move a narrativa, é o leitor que se intriga pela relação que estabelece com o
conflito que faz parte de sua condição humana, é ele quem encontra no gesto estético do
autor a possibilidade de fruição, enfim, a compreensão de que a obra de arte é.

Referências

BARROSO, Maria Veralice e BARROSO FILHO, Wilton. Estudos Epistemológicos do


Romance. Brasília: Verbena Editora, 2018.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução Salma Tannus Muchail. São


Paulo: Martins Fontes, 2000.

FUENTES, Carlos. Terra Nostra. México: Seixl Barral, 1975.

FUENTES, C. Valiente Mundo Nuevo: Épica, utopía y mito en la novela


hispanoamericana. México D.F.: Fondo de Cultura Econômica, 1990.

GADAMER, H.- G. Verdade e Método I. Tradução Flávio Paulo Meurer. Rio de Janeiro:
Vozes, 1997.

HERNÁNDEZ, J. F. Carlos Fuentes: Territórios del tiempo- Antologia de entrevistas.


México: Fondo de Cultura Econômica, 1999.

NITRINI, S. Literatura Comparada: História, Teoria e Crítica. São Paulo: Edusp, 2015.
62

SHAW, D. L. Nueva narrativa hispanoamericana: Boom. Posboom. Posmodernismo.


sexta edición ampliada. ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 1999.

WILLIAMS, R. L. Los escritos de Carlos Fuentes. Mèxico D.F.: Fondo de Cultura


Econômica, 1998.
63

O FOBÓ MASCARADO COMO LINGUAGEM LITERÁRIA AMAZÔNIDA:


UM FESTEJO REAL QUE SUSPENDE A REALIDADE OU A DENSIFICAÇÃO
DO IMAGINÁRIO?

Elian Karine Serrão da Silva (UFOPA)47


Itamar Rodrigues Paulino (UFOPA)48

Resumo: O Mascarado Fobó é figura fundamental do carnaval de Óbidos, no oeste paraense e


importante para a atividade poético-literária na região do Baixo Amazonas. Dos estudos e
pesquisa in loco sobre cultura de Óbidos, identificou-se que o personagem símbolo do carnaval
amazônida é elemento que se destaca nos escritos poéticos da literatura obidense, caracterizado
por seu aspecto secular, moderno e ao mesmo tempo tradicional, e por ser elemento representativo
da identidade Amazônida. A literatura obidense exalta o personagem em seus textos poéticos, que
são musicalizados e cantados nas procissões dos blocos carnavalescos. Os textos musicais
costumam evidenciar a figura mascarada como símbolo e memória de vidas e épocas e, sobretudo,
da história que traduz uma luta iniciada nos anos vinte do século XX até os dias atuais pela
implantação do Carnapauxis, patrimônio cultural do Pará.
Palavras-chave: Mascarado Fobó. Carnaval. Cultura. Literatura. Amazônia.

Introdução

A linguagem literária está presente de diferentes formas na dimensão humana, isto


é, em crônicas, contos, poemas, textos musicalizados, ou seja, de acordo com a
intencionalidade do texto ou o modelo de construção do discurso a linguagem varia-se
em literária e não literária. A linguagem literária segue algumas características como
complexidade, multissignificação, conotação, liberdade na criação e variabilidade.
O objetivo deste trabalho é apresentar um viés da linguagem literária amazônida a
partir do personagem Mascarado Fobó, e como a representação deste, suas características
e suas nuances servem de inspiração para escritores/artistas locais e regionais na
composição e fortalecimento da literatura amazônida.
Nota-se que, ao utilizar uma linguagem literária confere-se ao texto um valor
estético; ao utilizar o Fobó Mascarado nos escritos literários confere-se valor estético,
sensível e cultural ao universo amazônida obidense.

47
Mestre em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida, pela Universidade Federal do Oeste do Pará
(UFOPA), e pesquisadora do Programa de Pesquisa e Extensão Cultura, Identidade e Memória na Amazônia
(Proext-Cima) da UFOPA. E-mail: karinessilva@outlook.com
48
Doutor em Teorias Literárias, é professor, pesquisador e coordenador do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida (Ppgsaq) e do Programa de Pesquisa e
Extensão Cultura, Identidade e Memória na Amazônia (Proext-Cima), vinculados ao Centro de Formação
Interdisciplinar, da Universidade Federal do Oeste do Pará. E-mail: itasophos@gmail.com
64

Pelo exposto, o trabalho apresenta em seu primeiro tópico uma breve abordagem
sobre o Carnapauxis e o Mascarado Fobó de modo a promover a compreensão de tais
particularidades da cultura amazônida, e no segundo tópico apresenta a cidade de Óbidos
e a relação dos blocos carnavalescos com o personagem enfatizando a importância da
linguagem literária no contexto amazônida, bem como do personagem Mascarado Fobó,
símbolo marcante na cultura obidense, como um dos meios pelos quais o movimento
literário em Óbidos acontece e se fortalece. Neste sentido, ressalta-se que a linguagem
literária faz da linguagem um objeto estético.

Caracterizando o Carnapauxis e o personagem Mascarado Fobó

Na Amazônia, há exemplos de manifestação cultural de diversas formas. Há em


escritos a lenda do Muiraquitã49, amuleto oferecido como presente pelas guerreiras
nativas Icamiabas, conhecidas como Amazonas aos índios guerreiros guacaris que
visitavam anualmente suas tabas, na região do rio Nhamundá, entre os estados do
Amazonas e do Pará. As histórias sobre o real e o imaginário também resgatam a lenda
da Caapora, também chamado de Curupira ou ainda de Anhangá, duende protetor da
floresta, que pune caçadores que matam os bichos por sentimento de prazer. Também há
a lenda da vitória-régia símbolo do amor entre Naia e Jaci. Contam os pajés tupi-guarani
que na gênesis do mundo era costume a Lua se esconder no horizonte, descendo por trás
das serras para ter-se com suas virgens prediletas.
Na Amazônia também ocorrem diversos festejos que dão identidade cultural à
região, entre elas o Festribal, que ocorre no município de Juruti e cuja manifestação é a
disputa de dois grupos folclóricos, o Munduruku e o Muirapinima. O Festival dos Botos
que também ocorre sob a lógica da disputa de dois grupos folclóricos, o Boto Tucuxi e o
Boto Cor-de-Rosa. Há também o Festival do Boi de Parintins, entre as agremiações
culturais Caprichoso e Garantido, embora seja questionado seu simbolismo dado que
uma festa de boi parece contradizer com a lógica de um ambiente de floresta. Ocorre
também o Sairé, uma festa folclórica de resgate dos primeiros encontros entre índios e
portugueses na região de Alter do Chão, às margens do rio Tapajós, na Região do Baixo
Amazonas. Também há a cultura festiva carnavalesca com a manifestação identitária de

49
Todas as histórias que seguem à lenda de Muiraquitã fazem parte do universo mítico e lendário da
Amazônia, sendo apresentado ao mundo por diversos contadores de história e escritores.
65

um mascarado que surge nas noites de carnaval, representando o espírito de um matuto


desconhecido, entre outras diversas manifestações.
Nesse aspecto, com idade ainda bastante jovem em sua formalização, o
Carnapauxis, no entanto, não pode ser apresentado como nascido somente em 2008.
Manifestações festeiras de carnaval com presença de foliões mascarados pelas ruas de
Óbidos remontam-se ao início do século XX e acredita-se que tenha se originado a partir
de folias de raiz portuguesa e festejos de natureza italiana. Segundo o conhecimento
popular obidense, o Mascarado Fobó tem raízes nos territórios português e italiano.
A festa tem data móvel e ocorre no período do carnaval no centro urbano do
município. Embora o Carnapauxis tenha sido divulgado com essa denominação, a Festa
do Mascarado Fobó é secular, e os foliões atuais que dela participam já são herdeiros do
movimento iniciado no início do século XX. Ela envolve alegrias, risos, brincadeiras,
com ambientação musical que procura manter um formato tradicional. A festa é uma
mistura de alegria e deboche, primando pelo escondido da identidade por meio do uso de
máscaras. O Mascarado Fobó e o uso das máscaras, é uma singela, significativa e alegre
negação de sua identidade para compor a essência de um personagem.
O ajuntamento de símbolos, concepções e sentimentos, tais como risos, alegria,
gargalhadas, deboche, brincadeiras, anonimato, revanche, seriedade, personificam e dão
vida ao personagem obidense, portanto, conferem a ele identidade e originalidade, e lhe
dão o nome de Mascarado Fobó, dotando-o de indumentária cheia de simbolismos, sendo
a peça mais conceitual a máscara. O Mascarado Fobó é um personagem que externaliza
o sério e desgastante jogo de relações entre ricos e pobres no cotidiano normal amazônida,
no formato debochado do mascarado que, sabedor da impossibilidade dos brincantes
conhecerem ou reconhecerem sua identidade de folião mascarado, manifesta sua
zombaria em formato bastante peculiar que é o uso da maisena.

Apresentando a cidade de Óbidos para investigação dos escritos literários


musicalizados

Óbidos localizada na região oeste do Estado do Pará, pertence à Mesorregião do


Baixo Amazonas e à Microrregião de Óbidos. Faz limites ao norte com a República do
Suriname; a leste com os municípios de Almeirim, Alenquer e Curuá; ao sul com o
município de Santarém e Juruti e a oeste com o município de Oriximiná.
66

A cidade tem uma história singular no cenário nacional devido à sua estratégica
localização, às margens do rio Amazonas, seu Estreito, o que permitiu aos portugueses
no período colonial levantarem no local um posto de controle e exploração da região norte
brasileira. A cidade de Óbidos foi fundada sob a influência de sua coirmã portuguesa,
situada próxima a Lisboa, no ano de 1697, a partir de uma vila então chamada de Vila
Pauxis.
Ao longo de sua história, Óbidos se destaca não somente por sua beleza histórica,
natural e sua posição estratégica, mas também por ser o lugar de nascimento de grandes
ícones nacionais na política, na ciência, e principalmente na literatura, tais como José
Veríssimo Dias de Matos (1857-1916), educador, jornalista e estudioso da literatura
brasileira, e Herculano Marcos Inglêz de Souza (1853-1918), advogado, professor,
jornalista, contista e romancista, ambos os escritores membros imortais da Academia
Brasileira de Letras.
A riqueza cultural evidenciada em sua diversidade de manifestações faz de Óbidos
um polo irradiador e sentinela do movimento de culturas da região do Baixo Amazonas.
De fato, essa cidade possui um rico folclore amazônico que inclui as quadrilhas de
Marambiré, realizadas nas diversas comunidades de quilombos, como as Remanescentes
de Quilombo Silêncio e Matá; os festivais de raízes negras com suas folias de Reis; os
festejos dedicados à fauna e a flora, tais como Festival do Jaraqui, Festival do Acari,
Festival do Tucunaré, Festival do Milho, Festival da Castanha; os festejos religiosos como
a Festa de Sant’Ana. Além dos festivais civis, o Festival Folclórico Pauxis que junta
diversos grupos de carimbó para apresentações e disputas culturais, os Cordões de
Pássaros com suas músicas, danças e disputas, estabelecendo marcos de memória nas
comunidades que as realizam, e o Carnapauxis, com seu Mascarado Fobó, e seus blocos
de foliões que saem às ruas da cidade durante o período dos festejos carnavalescos, sendo
esta última manifestação cultural obidense considerada uma das formas de inspiração
para artistas e/ou escritores locais para a composição da literatura amazônida.
Óbidos conta com sete blocos carnavalescos oficiais e um alternativo, sendo que os
oficiais saem às ruas no período do carnaval, e o alternativo no período que antecede o
carnaval. São eles, respectivamente: Bloco Vai ou Raxa, Bloco Mirim - Unidos do
Umarizal, Bloco Serra da Escama, Bloco Águia Negra, Bloco Xupa Osso, Bloco Unidos
do Morro, Bloco das Virgens; Bloco Pai da Pinga.
A relação entre o Mascarado Fobó e o Carnaval de Óbidos, denominado
Carnapauxis – ajuntamento dos termos Carnaval e Pauxis –, sendo este um gentílico dos
67

índios que habitaram a região de Óbidos, no período da colonização portuguesa na região


do Baixo Amazonas, é bastante evidente. Cabe, entretanto, apontar que o Mascarado Fobó
é um personagem que independe de época para se manifestar, não sendo uma obrigação
sua aparição somente em épocas de carnaval.
Pelo exposto, o personagem Mascarado Fobó é figura marcante no carnaval e,
consequentemente para a cultura obidense, e uma das formas para seu fortalecimento
como emblema cultural na região é a sua tradução e representação em textos
musicalizados feitos especialmente para serem cantados no carnaval.
Das trinta e três músicas (100%) dos blocos carnavalescos obidenses entre 2010 e
2018, quatorze (42%) fazem alusões ao Mascarado Fobó como elemento fundamental da
cultura carnavalesca de Óbidos, que dá identidade singular aos brincantes e foliões da
Amazônia. As quatorze músicas verificadas apresentam palavras-chaves como máscaras,
mascarados, maisena, fobós, capacete, palhaço, fantasias, risos, patrimônio cultural,
indumentária, símbolo maior, brincar de fobó, entre outros. Tais palavras fazem alusão à
fantasia, a representação do personagem e a sua simbologia, denotando valor artístico,
cultural, sensível e estético na e para a Amazônia.
Mais uma importância significativa deste fato é a valorização da cultura popular,
haja vista o Mascarado Fobó ser, indubitavelmente, representante do povo e,
consequentemente desta cultura. Essa resposta está no fato de que as formas cômicas
adquiriram ao longo do tempo moderno um caráter não oficial, mas expressão da
sensação popular do mundo, transformada em cultura popular de festa, em carnaval
(BAKHTIN, 1999).
A presença do Mascarado Fobó no Carnapauxis, tomando o que propõe Bakhtin,
consagra as extravagâncias da instabilidade, provocando o aparente equilíbrio das
estruturas oficiais de organização social. Na verdade, é a manifestação do Fobó que
provoca a simetria entre os indivíduos cujo contato era de fato livre e familiar entre
indivíduos, mas que o cotidiano os separou com barreiras sociais, econômicas e até
mesmo religiosas. É plausível, pois, pensar o Carnapauxis e a manifestação do Mascarado
Fobó, numa perspectiva bakhtiniana, evidenciando que este carnaval é uma festa lócus de
extravasamento do riso popular, marcando a interrupção, mesmo que provisória, do
sistema oficial, com suas leis, regras, interdições e hierarquias.
O reconhecimento do ato criativo ou inventivo do Mascarado Fobó como realização
do coletivo é fundamental e deve ser considerado como argumento afirmativo de que deve
permanecer assim, pois o Fobó pertence ao povo amazônida, criador de cultura popular
68

na sua essência, e não cabe ser apropriada pela cultura erudita. Sobre a festa carnavalesca
e a relação com o povo, são memoráveis as palavras de Goethe em sua visita à Itália em
1788. Para ele, o Carnaval romano não é uma festa dada ao povo, “mas que o próprio
povo dá a si mesmo” (GOETHE, 2017, p. 524). Mais adiante, no mesmo texto, ele
complementa, “na festa, ao contrário, é dado um sinal de que todos podem se comportar
do modo mais louco e tolo que quiserem, e que, com exceção de socos e golpes de faca,
tudo o mais é permitido” (p. 525).
Neste sentido, há por um instante no tempo do festejo, suspensão das relações
hierárquicas entre ricos e pobres; negros, brancos e índios; homens, mulheres e pessoas
de outras opções sexuais; adultos, jovens e crianças; visitantes, turistas e moradores.
Todos se aproximam; cada um traduz o ato do outro como uma brincadeira; fazendo com
que “a liberdade e a independência mútuas se mantenham em equilíbrio em causa do
bom humor universal” (Bakhtin, 1981, p. 215). Neste sentido, o Carnapauxis e o
Mascarado Fobó, sendo uma festa popular, devolve ao povo sua condição de coletividade,
historicidade, liberdade, simetria social e, principalmente, sacraliza o sentido sério da
brincadeira. É neste aspecto que se funda a identidade cultural do festejo obidense.

Considerações finais

A cultura, a identidade e a memória formam uma malha complexa de elementos


que dão sentido ao mundo, e sua organização sistêmica e memorial resulta do registro
histórico das atividades humanas. Neste sentido, podemos citar como formas de registros
memoriais as expressões literárias, documentais, prosaicas, crônicas, contação oral de
histórias, lendas e mitos, materiais audiovisuais, patrimônios materiais naturais ou
construídos, entre outros mecanismos didáticos que permitem a um determinado grupo
apreender a própria identidade.
Neste sentido, percebe-se acima a notoriedade de que diferentes aspectos e
dimensões da vida humana estão ligados, conectados, complementam-se, comunicam-se,
às vezes de forma voluntária, às vezes involuntariamente, mas que ao final resultam no
fortalecimento mútuo dos eixos cultura, identidade, memória, literatura, estética,
sensibilidade e características outras que se comunicam de modo a revelar por meio da
linguagem literária, dentre outras formas, os encantos do espaço amazônida.
O Mascarado Fobó constitui-se o símbolo cultural da maior festa carnavalesca do
Baixo Amazonas, no município de Óbidos-Pará. E embora seja um festejo tradicional e
69

legitimado como Patrimônio Cultural e Artístico do Estado do Pará, não há na literatura


obidense dados consistentes sobre a origem e essência deste personagem. No entanto, as
letras produzidas para o carnaval em homenagem ao Mascarado Fobó são uma forma de
proteção, conservação e valorização do patrimônio cultural amazônida e perpetuar essa
forma de produção é incitar a consolidação da cultura por meio da figura do mascarado,
bem como de sua manifestação; e valorizar também os artistas/escritores locais da região
e, consequentemente, promover o reconhecimento da literatura amazônida.
Por isso, apresentar o Fobó a partir da literatura musicada é demonstrar o
personagem não como criação carnavalesca obidense, que ganhou status de patrimônio
cultural, mas como elemento simbólico que inspira escritores a discorrerem sobre a
presença de um ser travestido de máscara, com chita e outros acessórios, saindo pelas ruas
do município debochando das pessoas, cumprindo sua função de provocar riso, com sérias
críticas à realidade.
Nota-se, pois, apego afetivo ao mascarado, dado que há um sentimento de pertença
do símbolo ao município, que surgiu como elemento cultural coletivamente criado; razão
pela qual se nota nas poesias musicais exaltação e reconhecimento cultural de um
personagem que atravessou um século servindo de manifestação estética e sensível da
vida humana amazônida.
Em suma, pode-se afirmar que, o Fobó Mascarado por meio de sua simbologia,
características, peculiaridades, ou seja, por meio do jogo de alternância entre seriedade e
ludicidade, além de suspender a realidade, promove também a densificação do imaginário
amazônida, movimentando e fortalecendo o cenário cultural obidense.

Referências

BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 1ª. ed.


Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

__________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1999.

BRUCE-MITFORD, M. O livro ilustrado dos símbolos: o universo das imagens que


representam as ideias e os fenômenos da realidade. São Paulo, Publifolha, 2001.
CANDAU, J. Memória e Identidade. São Paulo, Contexto, 2011.

GOETHE, Johann Wolfgan Von. Viagem à Itália. Tradução de Wilma Patricia Marzari
Dinardo Maas. São Paulo: UNESP, 2017.
70

HEGEL, Friedrich. Cursos de estética I, II, III e IV. São Paulo: Edusp, 1835-1999-
2000-2002-2003.

PAULINO, I. R. A Amazônia entre culturas, identidades e memórias. Em: LIMA,


Rogério e MAGALHÃES, Maria da Gloria (orgs). Culturas e Imaginários:
Deslocamentos, Interações e Superposições. Rio de Janeiro, 7Letras, 2017.

WELSFORD, Enid. The Court Masque: A Study in the Relationship Between Poetry
& Revels. Cambridge, University Press, (1927) 2015.
71

O ESPÍRITO DE ÉPOCA DA DECADÊNCIA DOS VALORES

Emanuelle Souza Alves da Silva (UnB)50

Resumo: Esta análise filosófico-literária parte da perspectiva da Epistemologia do Romance com


o objetivo de partir das obras “Os sonâmbulos” e “Espírito e espírito de época”, ambas do escritor
austríaco Hermann Broch para refletir questões que envolvem as concepções de espírito da época
e de decadência dos valores. Nesse sentido, trazemos abordagens que buscam mostrar como essas
questões se constituem partindo na noção de logos e de sistema de valores. A partir de pensadores
como Nietzsche, Kundera e Hannah Arendt, discutimos como se dão os valores morais dentro do
contexto da Primeira Guerra Mundial para dar fundamento teórico e filosófico ao nosso trabalho.
Palavras-chave: Literatura. Filosofia. Epistemologia do romance.

Esse trabalho contempla uma visão mais teórica da pesquisa e abordagem que está
sendo desenvolvida no mestrado. Como norteamento do trabalho, partimos da
Epistemologia do Romance para fazer uma análise filosófico-literária do objeto literário
que propomos analisar, que é a obra “Os sonâmbulos”, escrita pelo austríaco Hermann
Broch (1886 – 1951). Essa é uma obra extensa, formada por três volumes e carregada de
diversas questões que se aproximam da filosofia. Abordaremos aqui como se dão as
noções de espírito de época e de decadência dos valores a partir não somente de “Os
sonâmbulos”, mas do Broch enquanto um autor que pensa sobre sua obra.
Temos a possibilidade de apresentar como se dão as personagens dos três volumes
da obra, que são “Pasenow ou o romantismo”, “Esch ou a anarquia” e “Huguenau ou a
objetividade” e nesse sentido fazer uma abordagem estética mais detalhada de Os
Sonâmbulos, mas propomos fazer uma análise mais voltada para a crítica e teoria de
Hermann Broch, embora isso não queira dizer que deixaremos de abordar sua narrativa,
pois que nossa reflexão parte também dela.
Teremos outra abordagem sobre a estética mais basilar de Broch, de modo a mostrar
como ele a enxerga a partir do sistema de valores e não a partir do artista que cria uma
obra levantando questões sobre um sistema de valores.
Para isso, nos valeremos de um outro livro escrito por Broch, intitulado “Espírito e
espírito de época” (Geist und Zeitgeist, na língua alemã). Este livro não é um romance,
mas um compilado de ensaios que pretendem mostrar como se dá a ascensão e decadência
dos valores de uma época, neste caso, no início do século XX. A partir disso, Broch
defende que esses problemas podem ser captados e apresentados pela arte.

50
Mestranda - PPGμ/UnB. E-mail: emanuellesas@hotmail.com
72

A decadência dos valores está ligada a um sistema. Um sistema de valores segundo


a noção de Broch é primeiramente um ente abstrato e metafísico que organiza e estrutura
valores para serem aplicados como teoria ou doutrina. Para Broch, quanto maior ele for
mais se expressará esteticamente. Ele exemplifica o Vaticano, que sendo uma cidade que
expressa um sistema religioso, corresponde à expressão estética da Igreja, seja nas
pinturas, na arquitetura ou mesmo nas músicas que estão naquele espaço.
Vale lembrar que nossa abordagem sobre estética se constitui das concepções de
Hegel, que considera possível a espiritualização da matéria como um esforço estético e
também artístico, como arquitetura, escultura, pintura, etc. sendo isso chamado por ele de
Gestalt.
Esse exemplo de Broch sobre a arte formada pelo sistema da Igreja o leva a pensar
em algo maior. A Igreja institui um sistema de valores que propõe uma lógica de
totalidade, mostrando um absoluto. Segundo Broch, o artista que trabalha de acordo com
o sistema trabalha “bem” e não “belamente”.
A obra de arte historicamente teria expressado sobretudo um “espelho desse
absolutismo” (BROCH, 2014, p. 27). A partir disso, ele se pergunta se é possível que a
arte seja crítica e mostre toda a engrenagem do sistema ao invés de apenas expressá-lo:
“ela é capaz de dar conta dessa tarefa?” (BROCH, 2014, p. 7).
A realização do sistema nas artes não é ao acaso para Broch, sendo que se realizar
esteticamente é apresentado por ele como uma pretensão de todos os sistemas de valores
e nesse caso, todo e qualquer sistema pretende se tornar ação. A partir dessa reflexão, ele
propõe que haja um movimento onde a arte pode ser uma mediação entre o sujeito e a
lógica do sistema: primeiro ele se mostra na estética que depois se transforma em ética.
Falamos sobre a Igreja enquanto católica, do Vaticano, mas para Broch o
protestantismo não teria sido diferente, pois traria tendências ascéticas e pretende
“conduzir o medo de viver que não podia mais ser contido a novas posturas de valoração”
(BROCH, 2014, p.13). O protestantismo para Broch teria sido perspicaz, pois é uma parte
que surge do sistema da Igreja e faz alterações no modo de vida cristão para sobreviver
aos tempos modernos. Nietzsche em Genealogia da Moral os chama de fiadores do futuro.
Estes que mostram o caminho aos que sentem desespero são pessoas com “tendências
ascéticas” (BROCH, 2014, p.13) e constroem seu reino sobre sua dominação aos que
estão sofrendo, aos doentes.
Segundo Nietzsche, o que esses sacerdotes “ascéticos” procurariam é estabelecer
um terreno para “fazer- se a todo instante senhor dos sofredores” (NIETZSCHE, 2004,
73

III, § 15). Dessa forma, o sofrimento torturante e oculto dos que estão sujeitos à
degradação dos valores faz o homem procurar um afeto para que suspenda ao menos por
algum instante essa dor. Para que o sacerdote tenha credibilidade, ele mesmo tem que ser
doente, pois tem que conseguir entender como se dá o sofrimento do próximo e o
protestantismo não abandona isso.
A Igreja, para Broch, se fundamenta na “irracionalidade do ser humano”. Mas esse
não é o único sistema que se propõe absoluto, o positivismo inclusive teria sido um
sistema “mais perverso ainda” (BROCH, 2014, p.19), propondo o progresso. Com a
chegada da Primeira Guerra Mundial, todos os sistemas teriam entrado em crise, sendo
que um dos motivos seria porque a morte estava presente mais do que nunca na sociedade.
Quando um valor se estabelece na sociedade e algum homem “perturba” (BROCH, 2014,
p.33) os valores estabelecidos, esse indivíduo será expelido pela sociedade, pois que ele
é considerado mal.
Os esforços das personagens que trabalho em “Os sonâmbulos” estão diretamente
ligados às noções de sistemas de valores proposta por Broch; Pasenow quer permanecer
no sistema, mas isso o angustia. Esch quer lutar contra o sistema, mas ele é hipócrita
consigo mesmo pois sua verdadeira face é conservadora. Huguenau não quer aderir ou
lutar contra os valores, mas criar os seus próprios.
Broch defende que todo um sistema é movido por um logos que pretende dar conta
do mundo. A concepção de logos que apresentamos é fundamentada por Arendt em
“Homens em tempos sombrios”, que mostra que essa palavra está é traduzida também por
“Verbo”, presente no Evangelho de São João onde se lê “no início foi o Verbo e do Verbo
fez-se a carne” (JOÃO, 1:1-4), mas segundo ela em Broch “a carne em que se converteu
o logos não é mais o filho mítico de Deus; é o homem em máxima abstração” (ARENDT,
2018, p. 152).
Nesse sentido, o logos seria como a necessidade de uma operação lógica abstrata
para dar conta do mundo, onde a representação ganha mais espaço que alogos própria
realidade. Esse conteúdo teria se tornado tão fundamental, que passou a ser o plano de
fundo de todas as escolhas, sendo estas de sujeitos como Pasenow, Esch ou Huguenau.
Esse logos teria feito com que o conteúdo passasse a justificar a própria forma. Broch
mostra em “Os sonâmbulos” que ele é um saber cognitivo que ainda não dá conta do
futuro, da liberdade e imprevisibilidade humana.
74

Para Broch, o ponto central de cada época seria o como se dão seus valores morais,
pois afeta a história de todos os viventes inseridos nesse período, podendo se reflete
culturalmente e isso é chamado por ele de “espírito da época”. Mesmo que haja a mudança
de uma época para outra, ele afirma que o absolutismo do logos estará sempre presente
como uma nuvem de pensamento que sombreia toda a história, no sentido dos valores
morais sempre mostrarem um caminho aparentemente harmônico, único e lógico.

As personagens seriam como os sujeitos que estão ali sendo narrados de maneira a
representar toda essa estrutura moral por trás de qualquer pensamento particular, como se
houvesse uma hierarquia onde o progresso lógico fala mais alto:

(...) o mundo não é imposição imediata do eu, e sim imposição mediata,


ele é imposição de imposições, imposição de imposições de imposições
e assim por diante em uma interação infinita. (BROCH, 2011, p. 349).

Não perceber essas imposições, seria para Broch o fato de elas já serem tão naturais
ao longo da história, mas denuncia que isso vem matando outras formas de pensamento.
A dúvida não existe para o sujeito que percebe a palavra de Deus como “medida para
todas as coisas”, pois tudo está resolvido para esse sujeito; basta esperar o futuro
prometido chegar.

Ter uma promessa futura implica em haver garantia de resolução de todos os


conflitos. O espaço romanesco nos mostra que a vida humana é conflituosa. O
personagem Pasenow, por exemplo, sempre projeta seus anseios para o futuro. No último
volume de “Os sonâmbulos” Pasenow já é velho e desiludido, não há mais tempo de
vivenciar o que ele sempre quis e diante disso se desdobra sobre as doutrinas da Igreja
protestante para dar novo sentido à sua existência.
Kundera, em “A arte do Romance” cita Heidegger para falar sobre existência, pois
para ele assim como existe um ser no mundo em relação à vida real, as personagens
podem ser entendidas como um ser no mundo também.
Na obra “Os Sonâmbulos” as questões de vida e morte estão constantemente
presentes na vida dos personagens dos três volumes e por se tratar de um momento da
guerra, sobressaem diversas reflexões sobre a vida e morte nesse contexto. Se os valores
éticos se suspendem e o não-valor em si, que é o ato de matar, segundo Arendt (2018), o
resultado disso são diversos interesses privados coexistindo e, quanto mais se
75

desenvolvem, menos vontade ética se tem, pois que os sujeitos passam a se tornarem
indiferentes ao irracional, que é o caso de Huguenau. Desse modo, o narrador diz que
“diante da morte é permitido tudo ao ser humano, tudo se torna livre, por assim dizer
gratuito e estranhamente descomprometido” (BROCH, 2013, p. 213).
Nesse sentido, Arendt e Kundera em A arte do Romance, identificam na obra “Os
sonâmbulos” esse aspecto metafísico onde o sujeito é movido por um sistema e todas as
suas decisões e comportamentos partiriam dessa noção de logos, onde a representação do
real é mais verdadeira que o próprio real e o sujeito se move no que se mostra dado de
antemão pelo sistema. A boa arte para Broch teria eu se mostrar oposta inclusive ao desejo
ético. Mais adiante ele entra numa noção que expressa a má arte, que segundo ele será o
kitsch.
Ao ler uma narrativa literária, o leitor infere que as personagens descritas ali não
existem no mundo real, mas elas podem “se vestir” da existência humana. Wilton Barroso
(BARROSO, 2015, p. 22) chama esse movimento de serio ludere, literalmente traduzido
por “brincadeira séria”, que consiste na capacidade que o romance tem de exprimir o real
através de narrativas ficcionais. Em Kundera surge o termo “egos experimentais” que
sugere os personagens tendo tantos “eus” como nós, ou seja, sendo um sujeito ficcional
que também tem o seu mundo. Nesse sentido o espaço literário se mostra como um
laboratório de experimentos sobre questões humanas.
Disso, inferimos que Hermann Broch utilizou o espaço literário como sendo um
laboratório onde se imprime questões profundas da condição humana em personagens
que funcionam como se fossem representações de sujeitos do mundo real. Broch cria
personagens fictícios para compreender o próprio ser humano e teve necessidade de entrar
no espaço literário para falar dessas questões. O problema da arte para ele se tornou um
problema ético. Isso move Broch a trazer essas questões para o mundo literário, que para
ele pode abranger essas reflexões.
Por fim, podemos dizer que a obra possibilita levantar questões que ultrapassam
diferenças culturais e até mesmo temporais entre os seres humanos por tratar do que é
próprio da condição humana, como o problema da escolha, o modo em que nos inserimos
e reagimos aos sistemas em que nos encontramos e como encaramos não apenas a questão
da morte em si, mas a possibilidade de tirar a vida do outro.
76

Referências

ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras,
2018.

BARROSO, Wilton. BARROSO, Maria Veralice. Epistemologia do Romance: uma


proposta metodológica possível para a análise do romance literário, 2015. In: Jorge Luis
Gutiérrez. (Org.). Filosofia e Literatura. 1a ed. São Paulo - SP: Giostri Editora, 2015,
v.01.

BROCH, Hermann. Os Sonâmbulos – Pasenow ou o romantismo: 1888. Trad. Marcelo


Backes. São Paulo: Benvirá, 2011.

________________. Os Sonâmbulos – Esch ou a anarquia: 1903. Trad. Marcelo Backes.


São Paulo: Benvirá, 2011.

________________. Os Sonâmbulos – Huguenau ou a objetividade: 1918. Trad. Marcelo


Backes. São Paulo: Benvirá, 2011.

HEGEL, G. W. Friedrich. Cursos de Estética. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo:
Edusp, 2001.

KUNDERA, Milan. A arte do romance. Trad. Teresa Bulhões C. da Fonseca e Vera


Mourão. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1988.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. de Paulo C. de Oliveira. São Paulo:


Companhia das Letras, 2004.
77

PERCEPÇÕES ESTÉTICAS DA PINTURA CORPORAL INDÍGENA DA


COMUNIDADE DOS AWAETE PARAKANÃ NO SUDESTE PARAENSE

Habia Santos de Melo (UFOPA)51


Itamar Rodrigues Paulino (UFOPA) 52

Resumo: Os Awaeté Parakanã são povos de recente contato que preservam vivas as marcas mais
importantes de sua cultura: danças, língua, pintura, organização econômica e política, e estrutura
educacional autônoma. A pintura corporal é uma manifestação artística, cultural e estética de
diversos povos desde os primórdios da história, cuja prática apresenta peculiaridades e
simbologias próprias. Homens, mulheres, e crianças se pintam, sendo as mulheres protagonistas
na tarefa de preparar tinta e fazer pintura. Em termos práticos, o jenipapo verde é colhido, ralado
e espremido para dele ser retirado o líquido, e misturado ao pó do carvão para dar pigmentação
escura. Depois, coloca-se numa cuia e com ponta de graveto é feita a pintura corporal, que
permanece no corpo por até 15 dias. Os Parakanã se pintam por motivos de proteção da
comunidade, cerimônias de casamento, luto ou cura de doenças.
Palavras-Chave: Pintura Corporal. Awaete Parakanã. Cultura.

AESTHETICAL PERCEPTIONS OF INDIGENOUS BODY PAINTING OF THE


AWAETÉ PARAKANÃ COMMUNITY IN THE SOUTHEAST OF PARÁ

Abstract: The Awaeté Parakanã are people of recent contact who preserve the most important
brands of their culture: dances, language, painting, economic and political organization, and
autonomous educational structure. The Body painting is an artistic, cultural and aesthetic
manifestation of various people since the beginning of history, whose practice has its own
peculiarities and symbologies. Men, women, and children paint themselves. Women are
protagonists in the task of preparing the paint liquid and doing the paintings. In practical terms,
green genipap is harvested, grated and squeezed to remove the liquid, and mixed with charcoal
powder to give dark pigmentation. Afterwards, it is placed in a gourd and with tip of twig the
corporal painting is done, and it remains on the body by up to 15 days. The Parakanã paint
themselves for reasons of community protection, marriage ceremonies, mourning or healing.
Key Words: Body Painting. Awaete Parakanã. Culture.

51
Graduada em Psicologia, é discente pesquisadora do curso de Pós-Graduação Interdisciplinar Mestrado
em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida, vinculado ao Centro de Formação Interdisciplinar, da
Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. E-mail: habia_atm@hotmail.com.
52
Doutor em Teorias Literárias, é professor, pesquisador e coordenador do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida (Ppgsaq) e do Programa de Pesquisa e
Extensão Cultura, Identidade e Memória na Amazônia (Proext-Cima), vinculados ao Centro de Formação
Interdisciplinar, da Universidade Federal do Oeste do Pará. E-mail: itasophos@gmail.com.
78

Introdução

A Amazônia, com sua natureza exuberante guarda ainda hoje uma realidade pouco
conhecida e debatida no mundo, que é sua grande e complexa sociodiversidade. Os povos
que nela foram se multiplicando aos milhares constituíram complexas redes linguísticas,
sociais, culturais, harmoniosos sistemas econômicos de trocas e uma vasta fartura
gastronômica, no interior das matas e na beira dos rios. Neste contexto, traremos uma
amostra dos povos pertencentes a esse cenário, conhecidos como Awaete Parakanã, de
matriz indígena, com sua história e cultura riquíssimas. O termo 'Parakanã' não
corresponde a uma autodenominação, com significado específico vinculado a algo
simbólico como por exemplo um acontecimento ou um objeto da natureza. Os Parakanã
se auto determinam awaeté, 'gente de verdade'.
Os Awaeté Parakanã foram avistados por brancos pela primeira vez em 1910, e
identificados pelos brancos como um povo agressivo que atacava colonos e trabalhadores
da Estrada de Ferro do Tocantins para saquear objetos e comidas. Contudo, inversamente
ao que os brancos contam sobre as origens do contato, a história dos Awaeté Parakanã é
de fugas constantes de inimigos mais poderosos, e sua tendência passou a ser a de se
deslocarem a lugares novos para sobreviver, tornando-se assim povos nômades, sem
poderem cultivar qualquer tipo de lavoura. Até 1960 os Parakanã habitavam a floresta da
terra firme nas cabeceiras do rio Bacajá.
Nesse interim, possuidores de um vasto território de terra firme interflúvios do rio
Tocantins e do rio Xingu, acabaram por se separarem. A cisão entre os Parakanã ocorreu
em finais do século XIX, sendo divididos em Parakanã Ocidentais e Orientais. Isto
ocorreu em períodos distintos por motivos de brigas internas e também por doenças, como
ocorrido no caso de um surto de poliomielite em 1976, registrado pela FUNAI.
(OLIVEIRA, 1986 apud DA SILVA, 1995, p. 26).
Divididos entre as duas Terras Indígenas, os Orientais assentaram-se às margens
dos rios Pucuruí, Bacuri e do rio da Direita; enquanto os Ocidentais foram para noroeste
para viver entre os rios Jacaré e Pacajazinho-Arataú, formadores do rio Pacajá. Durante
os anos 1980, com a implantação da represa hidrelétrica de Tucucuí, os Awaeté Parakanã
do oriente foram transferidos para a Terra Indígena Parakanã entre os anos 1984 e 1986
(Almeida-Silva 2014). Hoje, os Awaeté Parakanã têm a sede de sua aldeia localizada na
latitude 4°29'2.01"S e longitude 49°57'55.45"O, distante a 35 quilômetros da sede do
79

município de Novo Repartimento e 105 quilômetros da sede do município de Marabá, às


margens da Rodovia BR 230, conhecida como Transamazônica.

Figura 01: Localização da Terra Indígena Awaeté Parakaná. Fonte: GoogleEarth/2018.

Os Parakanã falam o Awaeté Xe’enga, língua classificada como extensão da família


Tupi-guarani. Eles possuem rituais e costumes únicos, como por exemplo, a pintura
corporal, a ser explanada nos tópicos seguintes. São índios não canoeiros e exímios
caçadores. Nos dias atuais, eles praticam horticultura de coivara pouco diversificada,
tendo como cultivo básico a mandioca amarga. Nos últimos anos têm cultivado também
frutas, milho e desenvolvido extrativismo de Açaí.

Pintura corporal dos Awaete Parakanã

As pinturas corporais são as marcas de diversas etnias indígenas que carregam nos
corpos e nos rostos suas identidades. Para sua realização, os indígenas se utilizam de tintas
naturais, provindas de árvores e frutos. A fruta mais utilizada pelos índios para o preparo
da tinta é o jenipapo; e às vezes também eles recorrem ao urucum, extraindo uma tinta
vermelha para a pintura. Ora, a pintura de corpo pode ser feita com a ajuda das mãos e
dedos; sendo que os traços mais finos se fazem com pequenos estiletes de palha ou
madeira.
Esteticamente, os traçados gráficos pintados nos corpos dos índios Parakanã são
retas curtas em ziguezagues. Nesses traçados há a representação de animais da floresta
como homenagem ritualística à vida e aos mitos dessa matriz cultural indígena. Na
atividade pictórica, o papel das mulheres é relevante e fundamental, pois são
protagonistas em realizar a ação de pintar na superfície complexa da pele, bem como o
preparo da tinta. Sua pintura são desenhos com ângulos em curvas, acompanhando o
relevo do corpo.
80

Figura 02: Indígena Awaeté Parakanã, perfil corporal com gráficos pictóricos.
Fonte: http://www.eletronorte.gov.br

A pintura Parakanã também é considerada uma atividade cuja realização é uma


forma ritualística de interação e socialização entre homens, mulheres e crianças,
disseminando o conhecimento e as técnicas de geração a geração, principalmente por
meio do aprendizado do ofício artesanal pelas meninas da tribo.
De acordo com Gosso (2006), as mulheres praticam pintura corporal misturando
também o urucum dentro do próprio fruto, ou colocam as sementes dentro de algum
objeto para misturá-las, pegam gravetos finos e achatados de aproximadamente dez
centímetros, pressionam o graveto nos grãos ate adquirir a cor avermelhada, que passam
pelo corpo, braços, pernas, costas e rosto. Os desenhos apresentam figuras zoomorfas
como peixes, jabutis, ou simplesmente grafismos riscados retos simples ou até mesmo em
ziguezague, sendo este mais utilizado pelos adultos nas pinturas corporais.

Figura 03: Mulheres Awaeté Parakanã, realizando as pinturas corporais.


Fonte: http://www.eletronorte.gov.br
81

Um olhar sobre a estética na pintura Parakanã

Ao falarmos de estética, remetemo-nos ao campo da arte, e nos reporta a uma


dimensão chamada sensibilidade. Nessa perspectiva, a experiência estética se configura
a partir da percepção do sensível envolvido na criação ou na contemplação de um objeto
estético. É uma relação que ao mesmo tempo é social e individual entre um sujeito e um
objeto, pois na percepção estética estão envolvidos tanto significados socialmente
compartilhados quanto sentidos que remetem à singularidade do sujeito dessa
experiência. O objeto estético não é necessariamente uma obra de arte, pois pode ser
também um objeto que não foi produzido originalmente com uma finalidade estética.
Além disso, também a natureza por vezes nos brinda com seu espetáculo natural, podendo
ser convertida em objeto estético pelo olhar humano (Dufrenne, 2008).
No caso dos Parakanã, é preciso apresentar que na preparação do ritual de pintura,
as mulheres pintam nos dançarinos grafismos abstratos relacionados à vida e a seus mitos.
Diferentemente de outros grupos indígenas, os Parakanã adotam pinturas apenas nos
corpos, não sendo notadas pinturas em objetos utilitários e de rituais, nem em casas. A
estética das pinturas Parakanã serve de instrumento sensível de empoderamento de
unidade da comunidade, visto que desde os primeiros dias de vida, eles são movidos pelo
coletivo, dotados de sensações e sentimentos sobre coisas que os rodeiam.
Outro aspecto a se destacar é a beleza das pinturas Parakanã, que evidenciam
traçados gráficos que provocam sensibilidade no sujeito coletivo, e resulta daí
conhecimentos subjetivos a cada indivíduo Parakanã sobre pertença ao grupo indígena.
Neste sentido, o belo não está presente nos indivíduos, mas nos objetos, sejam naturais
ou em obras artísticas feitas por mãos humanas. O belo leva o sujeito ao encantamento e
admiração do sensível (Kant, 2002).
Há Estética singular da pintura Parakanã que os faz refletir sobre seu sentido de
vida, reconhecendo a representação da força guerreira, da moral e dos costumes como
conhecimento, pois entra na dinâmica cultural Parakanã como poderoso elemento político
formativo, promovendo em seus membros o senso da coletividade, habilitando-os a
resistir às insânias do tirano. Por isso, é urgente e preciso que o conhecimento da arte
pictórica corporal Parakanã seja passado de pais para filhos, tanto nos preparativos
ritualísticos de festejos, como no ambiente escolar, nas aulas culturais.
82

Considerações Finais

Levantar reflexões acerca dos aspectos culturais de um povo como forma de


afirmar essa cultura em um determinado momento na história conduz a objetivos para
além da apreciação do exótico, do belo, do estético e do diferente. Essas reflexões nos
severa validar positivamente esses aspectos culturais tanto junto ao detentor da cultura
quanto diante de uma sociedade cada vez mais discriminadora e arredia ao diferente.
No tocante a cultura material indígena demonstrada através de objetos, artefatos, e
a própria arte (como adorno); observa-se que durante os processos de “pacificação”, são
os primeiros aspectos a serem transformados seja por imposição da cultura do “branco”
ao índio, seja por apreciação por parte do indígena á cultura alheia a dele.
Todavia o povo Parakanã, por motivo de serem considerados povos de recente
contato, ainda preservam muitos aspectos da sua cultura dentre eles, a pintura corporal
com sua singularidade e originalidade específica dos povos Awaete. Verifica-se ainda
que é resguardado o significado que essa pintura revela: além do belo, o sentido
simbólico, de festas, rituais, guerras representadas através das pinturas corporais.
Conclui-se, portanto que através de um único aspecto cultural de um povo, quer
seja, a pintura corporal, é possível por meio do olhar estético, a revelação de inigualáveis
significados, que foram passados de geração em geração e perdura até os dias de hoje
com seus segredos, sentidos e exuberância, sendo capaz de representar um povo em sua
dimensão estética. Todavia prima-se a preocupação, em virtude do contato do indígena
com o homem “branco” se apresentar cada vez mais intenso; que esse ritual simbólico e
estético não caia em desuso e perca seu sentido diante da comunidade indígena. É preciso,
portanto, que o conhecimento e os saber próprio de arte/ pintura/corporal sejam
repassados aos mais jovens, através de orientações dos mais velhos, bem como
ensinamentos pedagógicos escolares durante aulas culturais práticas, vivenciadas pela
comunidade escolar e por toda comunidade aldeada.

Referências

ALMEIDA-SILVA, Rita de Cássia; EMIDIO-SILVA, Claudio. Mitologia Parakanã: O


Encontro com a Morte nas Narrativas Orais de Índios Parakanã do Sudeste do Pará
– Brasil. Em: Nova Revista Amazônica, v. 2, n. 1, 27-37, Bragança, Pará.
83

CARVALHO, João. A pacificação dos Parakanã. Carta, Brasília: Gab. Sen. Darcy
Ribeiro, n. 9, p. 213-40, 1993.

DUFRENNE, Mikel Estética e Filosofia. 3ª Ed. São Paulo, Perspectiva: 2008.

DA SILVA, Aracy L.; GRUPIONI, Luiz D. Bebzi (orgs.) A temática indígena na


escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília,
MEC/MARI/UNESCO: 1995.

FAUSTO, Carlos. 'Parakanã', Povos Indígenas do Brasil, Instituto Socioambiental.


São Paulo, 2004. Disponível em: pib.socioambiental.org/pt/povo/parakana. Acessado em
10.11.2018.

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www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47132/tde-21032006-105319/pt-br. Acessado em
14.11.2018.

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do juízo. Tradução de Valerio Rohden e


Antônio Marques. 2ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária: 2002.

LUSTOSA, Caio. Parakanã, terra e barragem. Ciência e Cultura, São Paulo: SBPC,
v.32, n.3, p.325-7, 1980.

NIMUENDAJÚ, Curt. Carta sobre a expedição armada contra os índios Parakanã


(1945) In: --------. Textos indigenistas. São Paulo: Loyola, 1982. p. 244-6

SILVA, Cláudio Emidio. A caça de subsistência praticada pelos índios Parakanã


(Sudeste do Pará): características e sustentabilidade. Belém, UFPA: 1998. 145 p.
(Dissertação de Mestrado)
84

CENAS DA VIDA AMAZÔNICA DE INGLEZ DE SOUZA:


TAFULHANDO SOBRE ESTÉTICA E EPISTEMOLOGIA

Itamar Rodrigues Paulino (UFOPA)53

Resumo: Apresentada pela História Literária Brasileira de forma insipiente e insuficiente, a


Amazônia sempre esteve atrelada à biodiversidade. Atualmente, porém, vislumbra-se no
horizonte literário de expressão amazônida questões mais complexas do ser humano que aprendeu
a arte de viver na Floresta. Assim, desde meados do século XIX há escritores diversos que buscam
aproximações para afirmar que não houve ocultação ou silenciamento autoral sobre
acontecimentos socioculturais mais relevantes na região, seja por meio do narrativo ou do não
narrado. Herculano Marcos Inglez de Souza, paraense de Óbidos, apresenta em seus romances
um universo particular da Amazônia do século XIX, retratando o modo de viver dessa sociedade.
Em seus romances, trejeitos indígenas, caboclos, ribeirinhos, mocambeiros e de brancos são
exaltados, o que o permite reivindicar a si a condição de legítimo apresentador das culturas
Amazônia, outrora esquecidas ou excluídas. Seus romances servem por isso de voz a esses povos
e impõem crise no pensamento burguês local de cultura europeia, teimoso em desconsiderar essas
vozes na apresentação ao mundo do habitante da floresta. Essa é a discussão do presente artigo,
considerando estruturas estéticas e epistemológicas.
Palavras-chave: Amazônia. Literatura. Epistemologia. Estética.

SCENES OF THE AMAZON LIFE OF INGLEZ DE SOUZA:


TAFULHANDO ON AESTHETICS AND EPISTEMOLOGY

Abstract: Presented by Brazilian Literary History in an insipid and insufficient way, the Amazon
has always been linked to biodiversity. Nowadays, however, it is possible to glimpse in the literary
horizon of Amazonian expression more complex questions of the human being who learned the
art of living in the Forest. Thus, since the middle of the nineteenth century there are several writers
who seek approaches to affirm that there was no concealment or author silence on the most
relevant sociocultural events in the region, either through the narrative or the unreported.
Herculano Marcos Inglez de Souza, a born-man of Óbidos, presents in his novels a particular
universe from the Amazon of the nineteenth century, portraying the society way of living. In his
novels, indigenous, caboclos, riverside people, mocambeiros and whites life styles are exalted,
which allows him to claim to himself the status of legitimate presenter of Amazonian cultures
once forgotten or excluded. His novels serve therefore to voice these peoples and impose crisis
on the local bourgeois thinking of European culture so stubborn in disregarding these voices in
the presentation to the world of the inhabitant of the forest. The present article discusses these
topics under aesthetic and epistemological structures.
Keywords: Amazon. Literature. Epistemology. Aesthetics.

53
Doutor em Teoria Literária pela UnB, é professor e pesquisador na Universidade Federal do Oeste do
Pará, coordenador do Programa de Pesquisa e Extensão Cultura, Identidade e Memória na Amazônia
(CIMA) e do Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida (PPGSAQ),
ambos da Ufopa; membro de Grupo de Pesquisa e Estudos da Amazônia e do Grupo de Pesquisa em
Epistemologia do Romance, da UnB. E-mail: itasophos@gmail.com
85

Introdução

Era a segunda metade do século XIX, quando o Brasil acordou para os


acontecimentos em seu interior. O rígido poder oligárquico nacional passava por forte
pressão e o regime monárquico obrigado a redefinir seu papel frente às transformações
socioeconômicas do País naquele momento. As novas configurações políticas
contribuíram para que a conjuntura do País centrada no Império entrasse em processo de
mudança e resultasse na superação do poder monárquico pelo republicano em 1889.
Assim, o Brasil fomentou na implantação da República o discurso dos ideais iluministas,
já disseminados pela Europa, e que estavam provocando mudanças em várias partes do
mundo, inclusive no Brasil.
Desse contexto, podemos depreender que o regime imperialista, as oligarquias, e o
regime de escravidão ao qual era acometido o Brasil não cabiam mais como discurso
político de uma sociedade em pleno processo de transformação. Era tempo de progresso
e implantação de um modelo republicano. Neste sentido, instituir a República era uma
tentativa de adequação da estrutura jurídico-política a uma nova realidade
socioeconômica que então se apresentava. Desse processo, decorrem no Brasil novas
convenções e configurações sociais, econômicas e culturais espelhadas no que ocorria na
Europa sobre a compreensão de como se institui uma nação evoluída.
Porém o discurso sobre certa ausência de civilidade descrita na época era
inflamada diante do discurso da elite brasileira em decorrência do atraso social, político
e econômico em que se encontrava o interior do País na segunda metade do século XIX.
Nesse sentido, é possível tecer uma relação entre cidade e interior, sendo que a primeira
já busca um desenvolvimento mais liberal e progressivo em contraponto ao modelo
conservador oligárquico do interior brasileiro, portanto, atrasado diante da efervescência
do ideário burguês iluminista nos grandes centros urbanos do Brasil.
O dualismo social no Brasil do século XIX se encontrava não somente na relação
cidade-campo. Era evidente que havia dois polos de representatividade humana, que
podemos apresentar de forma metafórica como o matuto, homem nascido do mato, do
interior, descritivo de uma representação social, política, econômica e cultural, mas não
de uma representação étnica. Sobre ele há um discurso burguês elitista que o impinge
como um ser ignorante e incivilizado, distante do ‘refinado’ homem urbano, polido e
civilizado que se buscava constituir na época, conforme Freyre (1996, p.30),
86

A praça venceu o engenho, mas aos poucos. Quase sempre respeitando


nos vencidos umas tantas virtudes e gabolices; procurando imitá-las; às
vezes até romantizando-as e exagerando-as nessa imitação de
“inferiores” por “superiores”. Outras vezes, troçando do matuto rico, do
fazendeiro opulento, mas atrasado nos seus modos de falar e nas suas
modas de vestir-se, do senhor de engenho fanfarrão e até quixotesco, de
‘toda gente do mato’, de todo roceiro de ‘serra acima’. Destacando-lhe
os vícios de linguagem, os atrasos de cinquenta, cem anos em estilos de
habitação e de meios de transporte, os ridículos de moral e de etiqueta
também atrasada um século, dois, às vezes, três. Porque esses atrasados
variavam de região para região, dando ao país variedade pitoresca, mas
às vezes dramática, de estilos e estágios de cultura.

A constatação de Freyre em Sobrados e Mocambos nos ajuda a compreender as


razões pelas quais o Brasil tem sido um País atrasado, desde o século XIX, quando para
galgar o progresso precisaria incorporar o pensamento positivista Europeu. Ressaltamos
que o discurso em torno das transformações em vista do progresso fora assimilado pela
elite imperial e divulgado na tentativa de superar o “atraso colonial”, procurando definir
a nacionalidade brasileira sem perder seus privilégios. Todavia, o discurso republicano já
havia contaminado parte da elite brasileira desinteressada em promover o regime
monárquico, revelando um contexto maior que simples debate político.
Ao logo do século XIX, as transformações efervesciam não somente no campo
socioeconômico e político brasileiro. Influenciado por novas ideias científicas e
filosóficas que estavam em pleno debate na Europa, o universo intelectual teve de renovar
seu pensamento. Um dos segmentos intelectuais influenciados pelas ideias inovadoras
europeias foi o literário. As questões sobre o Naturalismo e o Realismo como propostas
de ruptura ao Romantismo da época ganharam espaço no ambiente da literatura brasileira.
Tanto no Sudeste brasileiro – São Paulo e Rio de Janeiro – como no Nordeste e no Norte
do País, as propostas literárias começaram a focar seus enredos em questões mais sociais
do que individuais.
Essa nova forma de se fazer literatura foi ganhando autonomia e independência em
relação aos modelos europeus de literatura até chegar ao seu ápice da autonomia nacional
no desenvolvimento de sua própria literatura, fato marcado pela Semana de Arte Moderna
em 1922. Durante esse período, poetas como Castro Alves, Aluísio de Azevedo e
Machado de Assis deram início à perspectiva social realista e progressista na tessitura de
suas obras, servindo de estabelecimento de uma identidade nacional brasileira
republicana, que podia falar de questões indígenas e negras, e da riqueza dos bens
materiais do país, diferentemente do período monárquico que desconsiderava a presença
87

indígena e negra na organização do País. A insistência dos escritores modernos provocou


o declínio do Romantismo e o surgimento do Naturalismo no País, uma literatura prosaica
contaminada pelo espírito republicano e que evidenciava considerar em suas obras temas
como povos indígenas, reconhecimento da presença afrodescendente no território
nacional e a descrição do ambiente.

A Legitimidade dos autores da floresta na apresentação da região Amazônica

No Norte do Brasil, escritores com formação nas escolas de Manaus e Belém,


influenciados pelos ideais liberais europeus e pleiteando certa autonomia na composição
literária nacional para apresentar uma identidade nacional, começaram a se manifestar
por meio de textos realistas. O tema de seus discursos literários não podia ser outro, a
Amazônia. Desde meados do século XIX na Amazônia, há narrativas que buscam
insinuativas aproximações realistas de autores diversos, para afirmar que não houve
ocultação ou silêncio autoral diante dos acontecimentos mais importantes na Amazônia,
seja por meio do narrativo ou do não narrado.
Herculano Marcos Inglez de Souza, nascido em 1853, em Óbidos, no Pará, e
falecido no Rio de Janeiro em 1918, foi professor, escritor e introdutor do Naturalismo
na Literatura Brasileira com o romance O Coronel Sangrado, publicado em 1877.
Cofundador da Academia Brasileira de Letras junto com seu conterrâneo, José Veríssimo,
e com Machado de Assis, além de outros ilustres da literatura na época, recebeu influência
das obras de Eça de Queirós e Emile Zola. Em seus romances História de um Pescador
(1876), O Cacaulista (1876), O Coronel Sangrado (1877), O Missionário (1891) e Contos
Amazônicos (1892), Souza apresenta um universo particular da Amazônia do século XIX,
retratando o modo de viver dessa sociedade.
Para tanto, não poupou detalhes ao compor nos limites da ficção uma narrativa
estética original sobre a realidade na Amazônia que se lhe apresentava. Seus romances
concentram-se na vida social das pequenas vilas ribeirinhas de Óbidos, locais onde
famílias abastadas cultivavam extensas plantações de cacau. Sem o compromisso de
apresentar tratados científicos do cotidiano amazônico em seus enredos, Souza teceu
enredos com percepções aguçadas do contexto histórico e cultural local, explicitando um
universo diversificado de culturas em processo de hibridização. Sua sensível descrição de
detalhes, creditando à cultura o gesto racional de dar coesão à história, contagia o leitor,
88

provocando sua capacidade inspiradora e imaginativa para dar vida a uma cena que pode
também ser um mergulho na realidade.
Assim, trejeitos indígenas, caboclos, ribeirinhos, quilombolas e migrantes são
exaltados e transparecem em seus romances, bem como reivindica para si a condição de
legítimo agente em apresentar culturas de comunidades locais, outrora esquecidas e
excluídas, por meio do romance, servindo de voz às minorias e impondo crise no
pensamento burguês local de cultura europeia, teimoso em desconsiderar essas vozes na
apresentação ao mundo do habitante da floresta. Há, nas cenas da vida amazônica,
aparente ausência de explicações e esclarecimentos dos eventos, como se fosse
deficiência – porque extrapola limites do formalismo abstrato da narração –, o que leva o
leitor desavisado a ter estranha sensação de que viver nessa região é pesadelo ou sonho
do qual não se pode acordar, ou a ter a sensação de estar de fato no mundo, mas sob o
efeito do imaginário. Assim, real e representação imaginária se confundem. Teria sido
essa a motivação de Inglez de Souza? Isso é bem provável, pois há um debate bastante
enriquecedor na Amazônia contemporânea sobre questões de cultura, que está
intrinsecamente ligado à ideia de Matutice e Civilidade, a partir do imaginário popular
dos nascidos na Amazônia e que está fortemente presente no discurso literário de Inglez
de Souza, escrito no século XIX.
A obra literária de maior prestígio de Inglez de Souza está organizada na forma de
trilogia [O Cacaulista (1876), O Coronel Sangrado (1877); O Missionário (1878)]. Na
obra, os personagens imaginados por Souza apresentam olhares da vida e do jeito de ser
do povo da Amazônia, sua relação peculiar com a floresta, o jogo meticuloso de poder
político, as disputas por terras entre fazendeiros cacaulistas, os trejeitos de moradores da
floresta, as relações conflituosas de amor, os fatos sociais que sem entendimento de
cultura que Souza propõe seria de difícil compreensão.
Assim, podemos nos perguntar se ao considerar a obra de Souza, a Amazônia pode
ser apresentada como espaço estético do entendimento humano, e como tema de debate
cuja efervescência está na relação entre jeitos culturais matutos e jeitos culturais
civilizados europeizados na Amazônia. Neste sentido, é salutar lembrar o que o teórico
ensaísta das culturas da Amazônia, Paes Loureiro, comentou sobre a questão da
Amazônia como “uma cultura dinâmica, original e criativa, que revela, interpreta e cria
sua realidade. Cultura que, através do imaginário, situa o homem numa grandeza
proporcional e ultrapassadora da natureza que o circunda”. (LOUREIRO, 1995, 30).
89

Uma proposta epistemológica da obra de Inglez de Souza

Inglez de Souza, com sua obra Cenas da vida Amazônica, e mais especificamente
o romance O coronel Sangrado (1877), foco deste artigo, utiliza-se em linhas gerais de
seus personagens por meio de prosa ficcional para enveredar no escopo da vida e do jeito
de ser do povo da Amazônia, e sua relação peculiar com a floresta, o que nos permite
apresentar nossa tese de que a literatura feita na Amazônia e pelo povo da Amazônia forja
uma possível condição humana amazônida de ser e viver. Neste sentido, podemos afirmar
que o conflito está em como apresentar ao mundo uma forma singular local de
aproximação da realidade que sirva de representação universal, contemplando variados
modos linguísticos e expressões das vivências coletivas e individuais, e que ajude o leitor
amazônida ou não a constituir suas próprias percepções de verdade, organizar suas
memórias, conhecer-se e reconhecer-se na sua condição humana. Se essa apresentação
universal é possível, é bastante complexo afirmar.
Entretanto, não estamos reivindicando uma apresentação universal, nem parece
pretensão ou projeto estratégico de escritores locais o de reivindicar a literatura
amazônida como síntese do mundo. Entretanto, é sensata a proposta de que a literatura
brasileira de expressão amazônica, sem que haja reivindicação a universalismo literário,
tenha em seu próprio universo literário um pensamento sensato sobre a condição
amazônida de uma época, uma provocativa às sociedades não amazônidas porque a
Amazônia é um daqueles lugares onde incontáveis formas de se escrever sobre a
existência são plausivelmente aglutinas, formando um olhar bastante singular sobre a
existência humana.
Neste sentido, o que nos interessa não é reivindicar que o tema Amazônia seja um
conceito universal; afinal, o próprio termo Amazônia já desempenha uma função
universalizadora. Importa-nos saber que desde meados do século XIX a literatura
amazônida tem apresentado enredos que descrevem o ambiente natural, a realidade social
e a diversidade sociocultural local, fazendo uso de linguagens próprias da região,
experimentando formatos estéticos que articulam texto e contexto, para demonstrar um
pensamento possível sobre a existência humana a partir da Floresta Tropical e provocar
reflexões sensíveis na humanidade.
Na perspectiva de se provocar um debate sobre condições humanas possíveis, e
considerando a ótica da tradição cultural da Amazônia é que tomamos como objeto de
estudo O Coronel Sangrado, de Inglez de Souza. A obra apresenta os traços culturais de
90

seu povo, suas memórias e sua fluida relação de pertencimento entre rios e florestas,
revestida de composições detalhadas da vida e dos costumes da Amazônia que somente
um típico caboclo saberia desvendar dada a sua sensibilidade.
Sua obra segue uma engenharia preenchida por arranjos comportamentais de
hábitos, de valores sociais, econômicos e políticos vividos em terras no interior da
Amazônia, no final do século XIX. Problemas de ordem racial, eleitoral e patronal são
diluídos na obra com a manifestação de diversos personagens, tais como o tenente coronel
Sangrado que dará fluidez ao enredo mediante um processo dialógico do qual se
constituirá toda sua relação com Miguel Fernandes. Sobre o romance, Távora (1882, pp.
236-237) comenta que,

No Coronel Sangrado a observação do escritor é mais minuciosa, é o


pincel mais habilidoso do artista, a pintura desperta mais interesse no
espectador, os personagens são agitados e vivos. Há a prova de uma
evolução que recomenda o escritor ao exame do futuro historiador da
literatura brasileira.

O Coronel Sangrado é um texto romanesco organizado em 26 capítulos, dispostos


em forma de algarismos romanos, sendo suas partes convergidas e direcionadas a um
todo, vinculados a um eixo epistemológico, que perpassa toda a obra, apresentando a
partir da derrocada do Coronel Severino de Paiva, que no narrador apelidou de Coronel
Sangrado, as nuances culturais do povo que vive na Amazônia. Da obra emerge o conflito
interior vivido pelo personagem Miguel Fernandes que, sob a ótica da dualidade entre
modernidade e tradição, revela contrapontos culturais de fatos ocorridos antes de sua ida
a Belém, sua liberdade e felicidade quando ainda menino vivia na comunidade de
Paranameri, e sua vida na capital Belém regrada por conveniências sociais e de
obediência ao padrão de modos de vidas e valores a que o ser humano moderno está
condicionado. Trata-se em síntese do que Jozef (1963) configurou como estilo de escrita
que expressa uma tessitura viva e fluente dos costumes e hábitos do povo Amazônida, do
qual, segundo a autora, Inglez de Souza bem soube se valer,

Seu estilo é, na maioria das vezes, escorreito e sóbrio compraz-se na


escolha do termo justo e do vocábulo preciso, o que lhe dá encanto e
espontaneidade [...] É uma linguagem coloquial, procurando cingir-se
ao vocábulo vivo da região. Frequentemente recorre ao estilo indireto
livre no diálogo e monologo mental como meio favorito de fazer ouvir,
falar e pensar seus personagens. (JOZEF, 1963, p. 12).
91

As disposições referenciais que dão credibilidade à narrativa podem ser observadas


por meio das datações, dos acontecimentos, da localização espacial, dos próprios
personagens, conflitos políticos e do próprio universo cultural das cidades envolvidas no
enredo, Belém e Óbidos. Ferreira (1876) descreve que as obras de Inglez de Souza trazem
em seus escritos os costumes e as peculiaridades do norte,

Tanto um como outro são dois trabalhos dignos de nota, dois


cometimentos de fôlego que trazem em si a tríplice bondade do
interesse no entrecho, de verdade no desenho dos costumes do norte, e
da simplicidade e naturalidade do diálogo e no estilo em geral! Ambos
são admiráveis fotografias da natureza opulenta do Amazonas, caráter
especial do povo e cunho pitoresco de seu viver íntimo e digno de ser
devidamente poetizado. Luiz Dolzani, a meu ver, promete ser, dentro
de pouco tempo, o romancista por excelência nacional, mais
pronunciado que o sr. Alencar, mais abundante que o sr. Juvenal
Galeno, mais verdadeiro e correto que o dr. Bernardo Guimarães.
(FERREIRA, 1876, p. 56).

Ferreira destaca no trecho, a acuidade com que Inglez de Souza retrata costumes e
hábitos do Norte, que parece obedecer a uma intenção geral do próprio autor em fixar em
seus romances, cenas da vida Amazônica. Segundo o comentador, nos romances de Souza
o ser amazônida não sofre diante da paisagem que o cerca, ao contrário, ele a incorpora
de tal forma em sua vida, que diante dos mais simples gestos a natureza nunca é vista de
forma diminuída ou como sufocadora dos acontecimentos. Não é por acaso que Coutinho
(2004) tenha comentado que a obra de Souza seria um tipo de conjunto documental
ecológico e sociológico importante, pormenorizado por uma escrita que evidencia a
cultura do cacau e a vida política, religiosa e social do interior paraense. Inglez de Souza
em seu romance soube imprimir o que a Amazônia tem de diverso, sua gente, seus tipos
humanos com suas nuances culturais, fielmente retratadas nas narrativas da forma mais
fiel possível à realidade, conforme atesta Barreto,

Fundamentalmente sua reconstituição do modo de vida dos habitantes


das margens do rio Amazonas: os tipos humanos locais, suas condições
de existência no adverso meio da floresta equatorial e, mais
relevantemente ainda, as variadas faces do cotidiano e da sociabilidade
na sociedade cacaueira. Isto não é nada surpreendente se lembrarmos
de que Inglez de Souza, como todos os naturalistas, não escrevia seus
romances pretendendo fazer apenas ficção, mas também esperava que
espelhassem a realidade da forma mais exata possível. (BARRETO,
2003, p. 77).
92

O texto é de fato moldado na lógica naturalista no século XIX, como expressão


direta da vida na Amazônia, arte crua, arte sem meias palavras. Em suas obras expelia-se
uma arte livre de paixões e com realidades expostas para que tudo fosse dito, descrito sem
qualquer receio. Na engenharia do texto, Souza deixa transparecer que seu narrador
assume uma estética da sensibilidade, visto que ele desenvolve um jogo de seriedade e
ludicidade na entronização do leitor na realidade. Neste sentido, é importante apontar que
a opção estética ingleziana implica a sensibilidade autoral e a liberdade do narrador cuja
evolução ocorre conforme o desenrolar do enredo. A percepção sensível de Souza oferece
como gesto estético uma abertura para a apreensão de dados da realidade. Tais dados da
realidade não se reduzem à coisa em si, mas que por força da liberdade do escritor, torna-
se uma permanente atividade caracterizada pela aceitação de possíveis surpresas ao longo
do eterno retorno aos dados da realidade.

A estética ingleziana na escrita de suas obras

No decorrer da obra, há um gesto estético que o autor faz para que o leitor
compreenda o mote, ou o eixo, e por meio dele reúna as condições epistemológicas
necessárias para apreender a lógica da vida no interior da floresta, em Óbidos, que no
nosso modo de ver, expressa uma espécie de síntese da formação cultural do povo
Amazônida no final do século XIX, ou seja, o que é ousado na estética de Souza é sua
forma literária de apresentar condição amazônida de ser e viver, por meio de uma história
que mistura a matutice e a civilidade, justamente no espaço da matutice. Em geral, a
exposição recai sobre o espaço civilizado, descaracterizando ou mesmo desqualificando
o espaço matuto.
A obra de Inglez de Souza parece seguir certa linearidade sobre aspectos culturais
retratados em seu romance. Ele configurou fontes preciosas a respeito da sociedade
amazônida de seu tempo. Segundo Martins (1996, p. 19), “a vida do amazonas, não o
temperamento dos personagens é que configuram o tema central de Inglez de Souza”. O
jeito de ser, costumes, hábitos, crenças, particularidades do linguajar, padrões de
civilidade e matutice, jogos de poder, sociabilidade, política, são alguns dos recursos que
o autor dispôs para discorrer sobre a cultura que se prefigurava na região amazônica do
século XIX e que até hoje refletem o jeito típico do matuto da Amazônia.
Inglez de Souza busca dar credibilidade ao seu texto trazendo para seu interior
nuances históricas da região e certos detalhes tão ricos que somente se pode achar na
93

Óbidos do século XIX, por alguém que conheça experiencialmente o local, dando-nos
possiblidades de conhecimento sobre a cultura Amazônica no período que a obra foi
escrita. Uma leitura epistemológica atenta à sensibilidade estética do autor no desenrolar
do enredo de O Coronel Sangrado nos permite obter um panorama das relações
socioculturais vivenciadas no interior da Amazônia no final do século dezenove, e de
como os comportamentos e as atitudes das pessoas da época são reflexos de um mundo
cultural dinâmico e de uma ambientação cultural que nada deve ou as torna inferior a
outras culturas, como aquelas advindas da ‘civilidade’.
No romance, Souza não desqualifica o interior paraense, e sequer atenua seu
discurso sobre a dicotomia entre cultura civilizada e cultura matuta. Por meio de seu gesto
estético, ele nos convida a transitar entre um mundo marcado pela aceleração da vida
[civilidade] e outro mundo que prima pela lentidão [matuto]. Enquanto a metrópole
dispõe sobre o sujeito urbano, um ser civilizado, aberto, moderno, avançado e
desenvolvido; cabe ao matuto interiorano apresentar-se como sujeito do mato,
aparentemente atrasado, selvagem e ignorante. Contudo, a opção epistemológica e
estética de Souza é apresentar como protagonista de seu texto romanesco um típico sujeito
nascido no interior da Amazônia, que viveu a experiência da metrópole e que volta às
suas origens e acaba resgatando seu trejeito cultural, sem abrir mão do que a civilidade
lhe propôs como fundamento de vida.
No discurso do narrador de Souza há todo um jogo narrativo que culmina em
atitudes e comportamentos que seus personagens vão tomando à medida que o narrador
vai expondo as situações. Assim, uma leitura do romance de Souza sob a batuta de uma
epistemologia da sensibilidade nos leva a um olhar estético dos trejeitos culturais em que
são embebecidos seus personagens, e com isso, um entendimento da existência de
diferentes culturas no seio da Amazônia, não menos ou nem menos evoluídas umas em
relação a outras, mas diversas e plurais porque vividas em contextos diferentes.
No Paranameri, ou Paraná de Maria Tereza, lugar onde nos situa o narrador como
ponto de reencontro do personagem Miguel com sua mãe e com sua grande paixão, Rita,
e também o lugar onde ocorreu o conflito de terra entre ele e o Coronel Ribeiro, descrito
em O Cacaulista. É sobre a ótica do retorno que o narrador intenta-nos apresentar o
contraponto de vida cultural do personagem Miguel, vivida em sua meninice no
Paranameri e os aspectos culturais da cidade adquiridos por ele durante os cinco anos
vividos na capital de Belém. O Coronel Sangrado evidencia através do discurso do
94

narrador o personagem Miguel ambientado aos livros e aos estereótipos de homem


citadino desacostumado com a vida de antes vivida no sítio,

Passava o dia inteiro no quarto a ler. A gente da casa estranhara isto; e


o velho capuxo, então, como sempre, acérrimo frequentador da fazenda,
dizia resmungando e olhando de esguelha para a porta do quarto de
Miguel: - Hum, hum! Que mudança! Já não é o curumim de outro
tempo! Agora leva todo o santo dia a ler nos livros como um doutor.
(Souza, 1968, p. 96).

Algo que causava certa estranheza para sua mãe, seus amigos e Rita, pois para
eles Miguel havia mudado. Não era mais o mesmo menino que pescava pirarucus, caçava
e que se divertia em meio aos cacauais. Ele era agora tão diferente. Diante disso, o
narrador deixa que Miguel evidencie o que realmente se passava em sua mente
conflituosa. E na medida em que isso ocorria, o narrador relatava nas atitudes de Miguel,
mesmo que tenha estado distante de sua terra e tendo vivenciado outra cultura, costumes
e hábitos do Paranameri. O que denota que mesmo por trás da carapuça da civilidade ele
não poderia ter outro caminho senão o de viver a sua cultura matuta,

Rita, a liberdade, a vida ampla no sítio os dias bem nutridos, as noites


bem gozadas na frescura das redes de linho, está ai o que ele queria, esta
ai o que ele no fundo, desejara sempre. Se deixara o Paranameri, fôra para
voltar mais apto para gozá-lo; se deixara Rita, fôra para não sofrer o
suplício de Tântalo. Agora, porém, não havia mais considerações que o
detivessem. O cepticismo, a que não pudera fugir na vida que levara na
capital, fazia-lhe pensar que a vida sendo breve, tolo era aquele que não
a sabia aproveitar. Queria ser sempre um homem de bem, mas não um
mártir dos preconceitos. Era tempo de viver. (Souza, 1968, p. 154).

Neste sentido, cremos que o narrador intenta apresentar ao leitor um Miguel que
mesmo tendo passado cinco anos longe de sua terra e tenha abstraído estereótipos
culturais da cidade, ainda possuía “uma natureza selvagem e ardente, de que uma
educação civilizadora apenas aparara as pontas, cortara os ângulos bruscos, encobria as
exterioridades” (Souza, 1968, p. 151). Ele de fato possuía trejeito impregnado de
matutice, demonstrado no momento em que o personagem deixa de lado convenções
políticas e sociais estabelecidas na cidade e decide por fim viver as liberdades de vida no
Paranameri com a amada Rita, mostrando que a camada de civilidade que o revestia era
tênue e passageira.
95

Considerações Finais

Há diversas as formas manifestadas de expressão da paisagem e das peculiaridades


socioculturais da Amazônia. Desde há mais de cem anos, a Amazônia é registrada sob
essa perspectiva. O escritor apresentado aqui é exemplo de uma entre as mais variadas
formas de se falar da Amazônia, sendo uma delas o regionalismo ficcional e a outra a
crônica e os textos historiográficos. Essas formas intentam expressar o ambiente, os tipos
humanos e os costumes sociais regionais, elementos fundamentais presentes numa escrita
literária, e não seria de se esperar algo diferente de um escrito regional. No caso da
literatura brasileira de expressão amazônica, o que diferencia é que a produção literária
feita na e a partir da floresta demonstra mais do que uma exigência estética, talvez uma
necessidade social de atrelar a arte à história para falar de espaço sociocultural, do qual
os próprios escritores fazem parte.
A literatura produzida nos tempos atuais na região amazônica não diferencia em
termos gritantes daquela feita há mais de cem anos por Inglez de Souza, exceto que a
produção cultural que ocorre na região amazônica não está apenas vinculada à ideia de
uma cultura letrada, das belas letras, ou de belas artes, que teimam na eterna busca de
elementos universalizantes, mas que as culturas amazônicas, ou seja, a produção cultural
e a recepção artística são híbridas, carecendo de uma estética única. Entretanto, cremos
ser esse diferencial, a carência de uma estética única, justamente o viés que permite toda
uma diversidade de produção ficcional, sem cair numa lógica de escrita etnográfica de
um povo.
Na verdade, o hibridismo literário da Amazônia é fonte de diversos olhares os mais
variados sobre o universo simbólico de uma região que mistura culturas europeias,
asiáticas, africanas e sul-americanas sem cair no cliché de cientificismos antropológicos,
sociológicos ou psicológicos ou no exagero do olhar mítico, ainda que seus temas sejam
conteúdos sempre observados, analisados e apresentados pelas ciências e por
simpatizantes das questões mítico-simbólicas. Não seria esse o motivo que preocupou o
escritor obidense Celio Simões (2012, p. 01), ao escrever a crônica Retratos e Fatos da
Literatura Obidense. Comenta o cronista,

/.../ O esforço de sistematização de tudo o que se produziu em termos


de literatura obidense pode frustrar-se, caso não seja vislumbrada como
um todo homogêneo, a traduzir o “modus vivendi” dos ribeirinhos que
buscam registrar de memória suas próprias experiências, seja em toscos
96

escritos, seja em livros ricamente elaborados merecedores de vasta


divulgação da mídia. Tudo é “fato”, nessa literatura diversificada
consagradora de ritos, mitos, cantigas, costumes de ontem que sumiram
na modernidade de hoje, restando-lhes exatamente o registro desses
aplaudidos escritores, extremamente valiosos, mesmo sendo diversos
no detalhe, mas desde que harmônicos nos objetivos.

O texto de Simões nos serve de inspiração para tafulhar ou tecer alguns


comentários ao léu sobre o romance O Coronel Sangrado. A narração Souza provoca e
convida a reflexões epistemológicas e estéticas sobre culturas travestidas de civilidade e
matutice. Por isso, é evidente que a escrita de Souza, na obra O Coronel Sangrado, depõe-
nos sobre culturas amazônidas formadas e constituídas no meio da floresta, não menos e
não mais superiores que outras, mas una e diversa, que constitui um pequeno tratado da
condição humana na Amazônia concebida como “cenas da vida amazônica”.

Referências

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Socioantropológica da Obra de Inglês de Souza. São Paulo: Letras à margem, 2003.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v. 4. São Paulo: Global, 2004.

FERREIRA, Carlos. Luiz Dolzani. Correio Paulistano, São Paulo, 28 maio 1876.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 9ª ed. Rio de Janeiro, Record: 1996.

JOZEF, Bella. Inglês de Souza: Textos escolhidos. Col. Nossos Clássicos, nº 72. Rio de
Janeiro, Agir: 1963.

LOUREIRO, João de Jesus Paz. Cultura amazônica: uma poética do imaginário.


Belém, Cejup: 1995.

MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. Vol. IV (1877-1896), 2ª ed.


São Paulo, T.A. Queiroz: 1996.

PAULINO, I. R. Entre les remous de l’imaginaire et les houles du réel : un regard


sur la littérature amazonienne brésilienne dans la contemporanéité. Em OLIVIERI-
GODET, Rita (org.). Cartographies littèraires du Brèsil actuel. 1ª ed. Bruxelles: Peterlang,
2016. v. 14.

SIMÕES, Célio. Retratos e Fatos Literatura Obidense. Crônica. I FECIMA. Óbidos,


2012. Disponível em: http://academiaobidense.wordpress.com/2012/08/01/retratos-e-
fatos-da-literatura-obidense/ Acessado em 15.11.2018.
97

SOUZA, Herculano Marcos Inglês de. O Coronel Sangrado. Coleção Cenas da Vida
do Amazonas. Belém, UFPA: 1968.

TAVORA, Franklin. La literatura brasilera – escritores del Norte del Brasil. Nueva
Revista de Buenos Aires, Buenos Aires, Ano II, Tomo V, Buenos Aires – Argentina,
1882. Ano II, Tomo V.
98

EPISTEMOLOGIA E FEMINISMOS:
TRANSFORMAÇÕES NO ESTUDO DO ROMANCE

Janara Laíza de Almeida Soares (UnB)54

Resumo: Os estudos feministas, da crítica à teoria, têm modificado o modo como o conhecimento
é produzido. Colocado ao lado de grandes teorias, como a psicanálise e o marxismo, a mudança
de perspectiva que o feminismo exige culminou numa série de mudanças nas interpretações, nos
métodos e nos conteúdos das áreas de saber. Apesar disso, o reconhecimento de tal mudança
epistemológica permanece ignorado na academia, quando não criticado a partir do senso comum.
Observando a lacuna existente na discussão acerca dos fundamentos e do papel do feminismo
para a construção de novas epistemologias, discutirei a) como o feminismo mudou as bases da
construção de conhecimento nas diversas áreas do saber; b) como o feminismo transformou o
estudo literário, em especial o romance; c) as objeções à aceitação do pensamento feminista como
base de novas epistemologias.
Palavras-chave: Epistemologia. Feminismo. Romance.

O feminismo, enquanto modo particular de ver o mundo e os seres,


soma-se ao pensamento sociológico que entende a realidade enquanto
realidade construída [...]. Masculino e feminino são identidades
sociais configuradas ao longo de processos de significação.

Ana Maria Vicentini

A literatura brasileira tem se digladiado, desde 1899, com uma história que entrou
no imaginário social, quiçá no próprio inconsciente cultural dos brasileiros leitores: Dom
Casmurro. Nosso velho conhecido narra a traição de sua esposa, Capitu, e de seu amigo
Escobar, o que o torna um homem ensimesmado e desiludido pelo resto da vida. Por
longos sessenta anos, talvez mais, o povo brasileiro se compadeceu com a história do
menino Bentinho e da covardia perpetrada por sua dissimulada esposa e seu ingrato
amigo.
No entanto, no início dos anos 1960, uma nova leitura de Dom Casmurro nos
angustiou com outro elemento: a dúvida. A crítica norte-americana Helen Caldwell
escreveu, nessa época, o livro “O Otelo Brasileiro de Machado de Assis: um estudo sobre
Dom Casmurro”, marco na fortuna crítica do escritor, pois muda o foco de análise da
traição para o ciúme. Essa mudança simples, que insere a dúvida no caráter de Bentinho
e na possibilidade de Capitu não o ter traído, definiu várias categorias de análise do

54
Doutoranda em Estudos Literários Comparados no Programa de Pós-Graduação em Literatura da
Universidade de Brasília. É Mestre pelo mesmo programa e licenciada em Letras, Linguística e Literaturas
pela Universidade do Estado da Bahia. E-mail: janara_soares@hotmail.com.
99

conjunto da obra de Machado, tais como a ambiguidade, a supressão do narrador


onisciente (SANTIAGO, 1978) e a manipulação do narrador.
Tal leitura só foi possível por conta de um contexto cultural específico, bem como
de modificações profundas na estrutura social e acadêmica. Por exemplo, o professor
Hélio Guimarães localiza questionamentos à ambiguidade do romance machadiano tanto
em um artigo de F. de Paula Azzi, de 1939, quanto num ensaio do historiador e crítico
literário Waldo Frank, de 1952. No entanto, nesse espaço de tempo, a confiança na
integridade e na autoridade do narrador, assim como um ambiente patriarcal e machista
que resistiu à ideia de não colocar, automaticamente, a culpa na mulher adúltera, talvez,
não permitiram que a ideia se popularizasse.
O feminismo foi uma das variáveis que possibilitaram as modificações estruturais
necessárias para a leitura proposta por Caldwell, que descobriu novas categorias de
análise na obra machadiana e as elevou a um patamar acadêmico que não podia mais ser
ignorado. Os estereótipos de gênero embaçaram a leitura e impediram, por mais de meio
século, o entendimento dos elementos que caracterizam a genialidade da escrita de
Machado de Assis. Apesar disso, não lembro de escutar, sequer na academia, o nome de
Helen Caldwell. Nas poucas vezes que minha pesquisa encontrou estudos de brasileiros
que definitivamente leram e utilizaram a interpretação da professora, em nenhum
momento citou-se o fato de Helen Caldwell ser precursora do feminismo nos Estados
Unidos, tampouco como o feminismo e o fato de Caldwell ser uma mulher na academia,
autorizada a fazer crítica literária, ser determinante para essa troca de perspectiva e para
a popularização de sua tese.
Trago estas inquietações porque o feminismo tem sido ignorado, relegado às
esquinas das universidades, definitivamente não levado a sério, mesmo estando na base
da grande mudança epistemológica das ciências naturais e das humanidades. Há um
esforço em discutir suas falhas, suas instabilidades de análises e categorias, mais
dificilmente se encontra igual esforço para reconhecer seu papel na construção de
conhecimento em nosso tempo. Observando a lacuna existente na discussão acerca dos
fundamentos e do papel do feminismo para a construção de novas epistemologias, discuto
neste espaço a) como o feminismo mudou as bases da construção de conhecimento nas
diversas áreas do saber; b) como o feminismo transformou o estudo literário, em especial
o romance; c) as objeções à aceitação do pensamento feminista como base de novas
epistemologias.
100

Como o feminismo mudou as bases da construção de conhecimento nas diversas


áreas do saber

Chega a ser um truísmo falar sobre a importância epistemológica do pensamento


feminista, que já consta, por exemplo, em vários manuais de teoria literária, bem como
nas ementas de cursos da mesma área. Jonathan Culler (1999) coloca o feminismo ao lado
das demais teorias (marxismo, psicanálise, desconstrução, teoria pós-colonial, etc.)
naturalmente, sem sequer problematizar sua legitimidade ou não; Terry Eagleton
desenvolve sua importância do seguinte modo:

El feminismo no era una cuestión aislable, una "campaña" particular


colocada junto a otros proyectos políticos, sino una dimensión que
conformaba y cuestionaba todas las facetas de la vida personal, social y
política. El mensaje del movimiento feminista, interpretado por algunos
que lo ven desde fuera, no se reduce a que las mujeres deben gozar de
igualdad frente a los hombres, en lo relativo a posición y poder, es un
cuestionamiento de esa misma posición y de ese mismo poder. No es
que el mundo se encontraría mejor si aumentara la participación
femenina, lo que pasa es que sin la “feminización” de la historia humana
no es probable que el mundo logre sobrevivir (EAGLETON, 1998, p.
93).

Talvez também seja um truísmo ter que afirmar, como se faz desde a década de
1970, que não há uma teoria feminista, mas diversas teorias heterogêneas com diversas
perspectivas e metas. Elaine Showalter aponta a observação de Annette Kolodny, em
1976, para quem a chamada crítica literária feminista é, na verdade, “more like a set of
interchangeable strategis than any coherent school or shared goal orientation” (1981, p.
180).
Em relação às demais áreas do saber, Londa Schienbinger, professora de história da
ciência no departamento de história da Universidade de Stanford, fez um longo trabalho
sobre o impacto do feminismo nas ciências. No livro O feminismo mudou a ciência?,
publicado em 1999, a pesquisadora afirma que a importância do feminismo não está
apenas na entrada de mais mulheres nos ambientes científicos. Uma das principais ideias
dos primeiros capítulos é que esta entrada não aconteceria sem modificações na estrutura
da ordem vigente. Em um amplo levantamento descritivo e estatístico da participação de
mulheres nas ciências na história ocidental e, especificamente, nos Estados Unidos,
Londa Schienbinger analisa como tal participação não foi uma história linear de
progresso, dependendo de variáveis diversas. Seus dados mostram, por exemplo, que a
simples abertura da entrada de mulheres na universidade não garante que elas cheguem
101

aos cargos de poder ou às chefias de pesquisa. Desse modo, “é necessário um


entendimento crítico de gênero, de como ele funciona na ciência e na sociedade”
(SCHIENBINGER, 2001, p. 39).
Segundo a pesquisadora, houve uma generização da ciência, que ocorreu com a
expulsão das mulheres do campo científico quando as instituições foram formalizadas.
Para ela, a privatização da família e a profissionalização da ciência foram cruciais para
estruturar as justificativas de tal expulsão, assim como a teoria da complementaridade
sexual55, que transformou as desigualdades em aspectos naturais aos olhos da sociedade.
Assim, “a feminilidade veio a representar um conjunto de qualidades antitéticas ao ethos
da ciência. As virtudes ideais da feminilidade – requeridas para as alegrias da vida
doméstica – eram retratadas como falhas pessoais das mulheres no mundo da ciência”
(SCHIENBINGER, 2001, p. 143). A pesquisadora ressalta, também, os cortes de raça, já
que o ideal iluminista do anjo do lar não se aplicava às mulheres negras e pobres.
Depois de analisar as questões entre público e privado na ciência, Schienbinger
apresenta a seguinte pergunta: a exclusão de mulheres das ciências teve consequências
para o conteúdo da ciência? Nesta seção, a pesquisadora apresenta as mudanças
perpetradas pelas mulheres em áreas como a medicina, a primatologia, a arqueologia, a
biologia, dentre outras. Em sua extensa análise, Schienbinger defende que a generização
da ciência, bem como os estereótipos de gênero, se incorpora na própria interpretação
científica. Dentre os exemplos que ela explora, estão como a noção da mulher como um
homem incompleto ou imperfeito serviu como fundamentação para a exclusão de
mulheres das pesquisas com remédios; ou como o paradigma da igualdade (de que os
corpos masculinos e femininos são exatamente iguais, salvo o aparelho reprodutivo) fez
com que certos aspectos da saúde das mulheres fossem pouco estudados, como a interação
entre a terapia de estrógeno e doenças cardiovasculares; ou como o paradigma da
diferença radical foi proeminente no diagnóstico, em que as queixas das mulheres,
geralmente, são descartadas como psicossomáticas.
Na biologia, a pesquisadora mostra como “a linguagem figurativa e as estruturas de
pensamento que os cientistas empregam podem afetar o conteúdo da ciência”
(SCHIENBINGER, 2001, p. 215). Um desses aspectos é o poder de criação de hipótese
dado à heterossexualidade, que, consequentemente, levam os cientistas a negligenciar os
acasalamentos homossexuais na natureza. Só depois de muito tempo, diz a autora, com a

55
De que as mulheres não são iguais aos homens, mas seus opostos complementares.
102

procura deliberada de uniões sexuais, é que se descobriram 13 espécies de lagartos


compostos por fêmeas que podem se reproduzir.
Há, pois, a identificação de mudanças não apenas críticas, mas no próprio conteúdo
das ciências e nos resultados das pesquisas. A pesquisadora ressaltar que:

[...] o propósito da análise de gênero não é desviar a ciência de


metáforas e analogias politicamente incorretas na direção de outras
corretas, mas sim revelar como os totens e tabus construídos na
linguagem influenciam as questões que os cientistas podem colocar e
os resultados que eles podem obter (SCHIENBINGER, 2001, p. 283).

Sobre as mudanças no campo da biologia, Evelyn Fox Keller (2006) apresenta


vários exemplos, sempre observando que a questão do feminismo não está exatamente na
academia, mas que as feministas acadêmicas são um subproduto de um movimento social
e político muito mais amplo. Segue-se, assim, que o pensamento feminista na academia
e nas ciências só foi possível porque a configuração social e política também foi mudada
em suas bases, de uma forma que mesmo cientistas não feministas mudam sua forma de
fazer ciência, de observar seus objetos e de fundamentar seus trabalhos.
Estes são alguns casos concretos de mudança nas ciências, principalmente no que
concerne ao seu conteúdo. Mesmo assim, é importante advertir que não há uma forma
homogênea de atuação feminista na ciência, mas variáveis que influenciam nas
descobertas, mudanças de perspectivas e resultados. Não é uma política feminista
específica sobre cada um dos conteúdos das ciências que produz todas as transformações;
em alguns momentos, pessoas se colocam em espaços e tempos específicos,
possibilitando esse movimento, como afirma Keller (2006). Deve-se reconhecer, pois,
que o movimento feminista, um movimento político e social, adentrou as várias áreas da
experiência humana, e a ciência não está fora deste espaço.

Como o feminismo transformou os estudos literários

O feminismo também mudou a forma de se estudar literatura, colocando em


evidência a generização da escrita, da atribuição de valor às obras, da sua circulação e
dos seus estudos na academia. Esse movimento tanto abriu novos campos de investigação
da literatura quanto colocou em xeque as formas tradicionais de estudo, dadas, por muito
tempo, como definitivas.
103

As primeiras tendências da crítica literária feminista, na década de 1970, se


concentravam em criticar a universalidade do sujeito, observando que tal noção era, na
verdade, uma construção masculina, no sentido de colocar o masculino como parâmetro
da neutralidade. Assim, reler as obras da tradição literária ocidental, apontado nelas os
estereótipos de gênero e denunciando as relações de poder entre os sexos, era a principal
atividade da crítica feminista até então (BELLIN, 2011; ALÓS & ANDRETA, 2017;
SHOWALTER, 1981).
Tal ação não é arbitrária: a noção de sujeito iluminista como sujeito universal
excluía vários outros sujeitos. Hortencia Moreno (1994) observa que esta noção foi
generizada pelo feminismo, permitindo que se observasse a experiência de outros sujeitos
que não o homem iluminista. Assim, “lo que aporta el feminismo es una mirada diferente.
La crítica, como toma de consciencia del carácter discursivo de la realidad, ‘desconstruye’
los discursos dominantes no tanto en función de lo que recogen, sino en función de lo que
suprimen, consignan, reprimen, marginan” (MORENO, 1994, p.112).
A partir das críticas a esta vertente, outras formas de estudar o texto literário desde
uma visão feminista foram propostas. Ana Maria Vicentini fez, em 1989, um apanhado
das duas correntes críticas da crítica literária feminista – a anglo-saxão e a francesa –
baseando-se nos trabalhos de Toril Moi, Mary Eagleton e Chris Weedon. Cada corrente
possui conceitos de gênero diferentes, o que tem implicações metodológicas, conceituais
e políticas no estudo da literatura.
A pesquisadora aponta que, na corrente anglo-americana, a crítica é feita a partir do
gênero da autora ou do autor do texto ficcional. Essa forma de estudo literário tem origem
nos trabalhos de Elaine Showalter que, em 1981, fez uma análise de como a crítica
feminista se dava na literatura. A primeira vertente possuía uma crítica ideológica,
concentrada na feminista como leitora, a fim de oferecer leituras a partir das imagens e
dos estereótipos das mulheres na literatura, bem como omissões e erros sobre mulheres
na crítica e na mulher como signo semiótico. Para Showalter, “...the feminist obsession
with correcting, modifying, supplementing, revising, humanizing, or even attacking male
critical theory keeps us dependent upon it and retards our progress in solving our own
theoretical problems” (1981, p.183). Identificando um tipo de estudo centrado na mulher
enquanto escritora, ela propõe o termo ginocrítica (gynocritics) para nomeá-lo; tal estudo,
adverte a pesquisadora, não tem como objetivo definir como uma mulher deveria escrever
ou o que se fazer para se chegar a uma universidade de textos sem traços de gênero.
104

Vincentini considera a abordagem de Showalter como utópica, pois sugere que,


“num passe de mágica, a força da experiência das mulheres, tornada consciente e
expressa, pudesse pôr por terra todos os constritos patriarcais que interferem
negativamente na criação literária feminina” (1989, p. 50). Essa crítica se parece muito
com aquela feita por Londa Schiebinger, que não viu na simples abertura para as mulheres
uma solução para o problema das mulheres nas ciências. Isso acontece porque existem
variáveis entre a “experiência e sua expressão literária”, que distinguem a obra literária
da experiência da autora. Vicentini também ressalta os trabalhos de Sandra Gilbert e
Susan Gubar, que seguem a linha de “equivalência imediata entre a experiência pessoal
da escritora e sua expressão literária” (1989, p. 50).
Posteriormente, Vicentini apresenta a vertente francesa da teoria feminista, que
possui uma grande influência da teoria psicanalítica e se concentra nos campos da
linguística, da semiótica e da psicanálise. O conceito desenvolvido por esta vertente e
analisado pela pesquisadora é a escrituração feminina (écriture féminine), que articula a
dimensão simbólica da sexualidade e do desejo para compreender os gêneros a um nível
simbólico. Os realizadores de tal literatura não precisam de correspondência entre sexo e
gênero. Como objeção a esta vertente, Vicentini afirma que a elaboração mítica da
sexualidade feminina seria inadequada para um modelo crítico e teórico.
A pesquisadora propõe, então, que a crítica literária feminista se volte para a
atividade hermenêutica. Em suas palavras

[...] mais do que a delimitação de lei e aspectos de composição de um


texto literário feminino transformador, ou seja, de uma poiesis
feminista, necessitamos urgentemente pensar em mecanismos
realmente transformadores de leitura e interpretação desses textos;
necessitamos, em outras palavras, de uma aisthesis feminista
(VICENTINI, 1989, p. 51).

Daí a necessidade de se criar uma referência teórica feminista para que tais
mecanismos tenham um norte. Esse pensamento se coaduna com o de Andreta e Alós
(2017), para quem as teorias feministas também são teorias de interpretação, diferindo
das demais em alguns pontos: a) olhar crítico sobre os próprios postulados básicos dos
processos de interpretação; b) suposição da relação complexa entre os textos literários e
o contexto sociocultural, histórico e geográfico, relação não transparente, pois “mesmo a
mais inocente das análises imanentistas, centrada apenas em aspectos formais e textuais
favorece e reitera uma concepção particular de Literatura que, por sua vez, fomenta uma
105

determinada concepção de mundo” (ANDRETA; ALÓS, 2017, p. 28); c) as relações


necessariamente políticas entre textos literários e os demais discursos, pois implicam
relações de saber/poder; d) pressuposição do lugar da mulher como produtora,
consumidora e objeto representado nos textos literários.
Desvelando a generização não apenas dos textos literários, mas também de todo o
campo literário, as teorias feministas construíram novas categorias de análise,
denunciaram a falácia da neutralidade epistêmica, bem como a necessidade de revisão
constante da crítica literária. O romance é, nesse âmbito, um gênero privilegiado. As
categorias de autor, narrador, personagem, dentre outras relativas às especificidades das
obras, foram ressignificadas e aspectos anteriormente não percebidos ou não analisados
foram trazidos à baila pelas teorias feministas. O exemplo de Machado de Assis, no início
deste artigo, é um dentre muitos.

Objeções à aceitação do pensamento feminista como base de novas epistemologias

A literatura enquanto instituição é um dos mais fortes objetos de poder que temos
nas sociedades, principalmente em terras brasileiras. Mesmo que a sociedade se
modifique constantemente, certos aspectos foram tão engessados no imaginário e nas
representações que dificilmente conseguem se transformar na mesma proporção. Um
deles é a superioridade da Literatura, de uma certa Alta Literatura, sustentada e legitimada
por aqueles que têm acesso a ela. Seja no senso comum, seja na academia, a forma de se
ganhar notoriedade social através da literatura continua muito parecida com aquela dos
últimos dois séculos. Os questionamentos trazidos pelo pensamento feminista e que
colocam em xeque os paradigmas que proporcionam a manutenção dessa legitimidade
não aconteceria, pois, sem reação.
Essa questão foi largamente analisada por Rita Terezinha Schmidt56, em 2006, no
artigo “Refutações ao feminismo: (des)compassos da cultura letrada brasileira”, em que
observa o silenciamento da opressão das mulheres e a ausência das questões de gênero
em obras de pensadores da cultura brasileira, bem como o antifeminismo no campo das
Letras no Brasil. Dentre os elementos analisados, estão a repulsa às ideias oriundas dos

56
SCHMIDT, Rita Terezinha. Refutações ao feminismo: (des) compassos da cultura letrada brasileira. Rev.
Estud. Fem., Florianópolis , v. 14, n. 3, p. 765-799, Dec. 2006 . Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2006000300011&lng=en&nrm=iso>. access on 19 Nov. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
026X2006000300011.
106

EUA (berço da crítica feminista), a imagem caricata do ‘politicamente correto’


disseminada no Brasil, a estrutura patriarcal, senhorial e familiar da sociedade (que se
deslocou para instituições diversas, como a própria academia). Tais elementos são
estruturais e questioná-los demanda implantar um espaço de tensão constantemente
evitado pela sociedade brasileira. Segundo a pesquisadora,

É na perspectiva das redes de dominação presentes na história social


brasileira e da persistente atualização da tradição de um pensamento
patriarcal e conservador em descompasso com as articulações do
pensamento crítico contemporâneo sobre hegemonias e suas violências
epistêmicas que se pode avaliar a função do discurso cultural e de suas
representações simbólicas na domesticação e controle das tensões no
campo das relações sociais, não só com relação à questão da mulher,
mas também com relação ao negro e ao índio (SCHMIDT, 2006, p.
775).

Desse modo, o processo de crítica às estruturas é neutralizado fazendo com que o


feminismo seja depreciado enquanto episteme, “quer pela via da retórica do declínio e da
forma caricata, quer pela via do fraseado erudito, uma armadilha para leitores/as não
versados/as nas sutilezas de um discurso que não tem outro propósito a não ser descartar
tudo o que estiver relacionado ao feminismo e aos direitos das mulheres” (SCHMIDT,
2006, p. 770). Schmidt faz um apanhado de como isso acontece na crítica literária
brasileira, analisando o posicionamento de vários críticos e desvelando como o elitismo
de certas interpretações leva a “julgamentos depreciativos generalistas a partir do
desconhecimento das tradições e da evolução das formas literárias em contextos culturais
específicos e historicamente situados” (SCHMIDT, 2006, p. 787).
Lúcia Osana Zolin (2012), ao refletir o aporte teórico feminista, aponta que tal
aporte é constantemente rasurado ou questionado nos discursos acadêmicos. As formas
de depreciação do feminismo vão desde o uso pejorativo do termo para se referir à
imagem social de mulher mal amada, com feminilidade comprometida, passando pela
dicotomia altas literaturas X Estudos da Mulher, sendo este último um eufemismo para
‘estudos menores’, e chegando à marginalização das produções intelectuais às quais
geralmente a crítica literária feminista se associa, como as literaturas populares, de
minorias étnicas e sexuais. Há, pois, múltiplas interdições para a legitimidade da
epistemologia feminista. Em suas palavras,

A importância da crítica literária feminista, todavia, mais que contestar


o modo dominante de produção do conhecimento na seara dos estudos
107

literários, pretende-se fazer reconhecer a partir dos deslocamentos


teóricos que opera, articulando crítica textual, histórica, antropológica
e cultural, de modo que seu objeto seja considerado – muito além da
sua imanência – na teia de significações que o constitui (ZOLIN, 2012,
p. 110).

As interdições, no entanto, aparecem como reação às quebras de padrões, ao


desvelamento de privilégios e às mudanças de paradigmas de valoração. Na própria
academia, imaginada como o espaço para discussões, críticas e transformações, o
pensamento feminista ainda possui uma quantidade enorme de entraves para a sua
legitimidade, entraves estes que passam longe da simples crítica teórica. Assim, mesmo
que se institucionalize a crítica literária feminista, em todo trabalho, em toda conferência,
em toda comunicação ou artigo, a primeira sessão sempre será para tentar legitimar a
epistemologia feminista.

Referências

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revisitando as origens. In: Fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Pós-
graduação em Letras, n. 49, p. 15-31, 2017.

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ZOLIN, Lúcia Osana. Aportes teóricos rasurados: a crítica literária feminista no Brasil.
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109

O QUE PODE UM CORPO QUE NÃO AGUENTA MAIS?: UMA BREVE


ANÁLISE DO LITERÁRIO NA AUTOBIOGRAFIA DE LORIS ÀDREON
“MEU CORPO, MINHA PRISÃO”

Leocádia Aparecida Chaves (UnB)57

Resumo: Discutirei, nesta breve análise, a obra “Meu corpo, minha prisão: autobiografia de um
transexual” (1985) de Loris Àdreon por meio da intertextualidade com a obra “O guarani” (1857)
de José de Alencar. “Escolha” estética genial, aos moldes discutidos por Deleuze e Guatarri
(1977), uma vez que a escritora – uma mulher transexual, me parece, manejará o modelo
romântico alencariano tanto para narrar de forma idealizada a sua história de amor com o indígena
Oitameno, quanto para revelar a sua impossibilidade, diferentemente da ficção. Dessa
perspectiva, a escritora, à beira de mais uma tentativa de suicídio, ao decidir escrever e publicar
a sua história de vida, marcada pela transfobia desde a mais tenra infância, nos remete a outra
indagação: o que pode um corpo que não aguenta mais? (LAPOUJADE,2011). Por meio dessa
análise, portanto, pretendo contribuir na desconstrução de análises literárias transfóbicas capazes
de silenciar ou até mesmo apagar a potência estética desse gênero de produção literária.
Palavras-chave: Autobiografia. Mulher Transexual. Intertextualidade. Estética. Transfobia.

Peter Pál Pelbart (2003), ao discutir sobre as agonias da contemporaneidade, nos


lembra de que não há um espaço privilegiado para resistência. De acordo com as reflexões
do filósofo, em todo e qualquer lugar pode-se disparar algo que atravesse a totalidade,
provocar reviravoltas.
Dessa perspectiva, portanto, é que tomo a produção autobiográfica de pessoas
transgêneras58 no Brasil contemporâneo, pois ainda que a vida de seus produtores seja
reconhecida como matável e insacrificável (AGAMBEN, 2002; BUTLER, 2006), têm
feito do espaço literário autobiográfico (LEJEUNE, 2014) locus privilegiado para abrigar
reviravoltas discursivas sobre si mesmos e sobre o mundo que os cerca (DE MAN, 1979).
Produzido enunciados e enunciações que à revelia de um sistema de exceção – o
cisheteronormativo (AGAMBEN, 2002; BUTLER, 2000), nos interpela quanto à nossa
condição de sujeitos éticos (BUTLER, 2015) e estéticos (BARROSO FILHO;
BARROSO, 2015), em especial, quanto a nossa contribuição na perpetuação de práticas
e discursos que conformam – ainda no século XXI – a nossa sociedade como
transfóbica59.

57
Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Práticas Sociais da UnB, sob orientação do
Professor Rogério Lima da Silva. Tem como foco discutir na tese a epistemologia da transfobia por meio
de autobiografias produzidas por pessoas transgêneras no Brasil contemporâneo. E-mail:
leocadiachaves@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6205-6304.
58
O termo genérico transgênero refere-se à condição de uma pessoa não se identificar com o gênero
designado no seu nascimento; neste grupo pode-se incluir, por exemplo, pessoas travestis e transexuais
(JESUS, 2012).
59
Luiz Mott, coordenador do Grupo Gay da Bahia (GGB) e ativista dos direitos civis de Lésbicas, Gays,
110

Pois bem, desse acervo de quatorze autobiografias publicadas entre 1982 e 2017,
importa destacar que oito foram escritas por mulheres, e desse conjunto, trago para o II
Seminário Nacional de Epistemologia do Romance “O estético como espaço de
conhecimento do humano”(2018), mesa temática “O corpo e a palavra na gestação do
texto literário: estudos sobre o não dito no processo feminino de criação” a obra de Loris
Àdreon “Meu corpo, minha prisão – autobiografia de um transexual” (1985). Escritura
que se configura como uma das primeiras autobiografias trans publicadas no Brasil e a
primeira produzida por uma mulher trans60 em nosso país (MOIRA, 2018).
Uma obra que parece “nascer” quando Àdreon à beira de mais uma tentativa de
suicídio, ao procurar Rose Marie Muraro, editora da primeira obra autobiográfica trans
no Brasil “A queda para o alto” (1982) de Anderson Herzer, ouve: “Por que em vez de se
matar você não escreve a sua história? A gente publica aqui...” (ÀDREON, 1985, p.5).
Interessante notar que esse convite, em princípio “perverso”, enunciado por Muraro
no prefácio da obra, na minha perspectiva, não apaga a agência de Àdreon enquanto
escritora, pois além de buscar uma editora para conversar sobre “o seu caso”, nos
informa, ao longo de sua narrativa, o hábito de escrever diários desde a adolescência, o
que nos leva, inclusive, a indagar sobre o seu processo de criação da obra publicada.
Neste contexto, importa situar o lugar de fala da narradora, que de origem espanhola,
branca e loira, ainda criança nos anos de 1960, migra com a sua família para a floresta
amazônica, onde alcançam alguma ascensão financeira, fator determinante para a sua boa
formação escolar:
Já no ginásio, irrepreensivelmente devotado61 a aprender com rapidez,
obtinha notas desejáveis e sempre o 1º lugar em francês. Porém os
professores notaram logo meu desajuste em relação aos colegas e sem
querer demonstrar, discriminavam-me, tornando vãos os esforços que
eu fazia para ser o melhor (ÀDREON, 1985, p.26)

Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) em entrevista ao Portal G1 em 24 de janeiro de 2017 enuncia


que em 2016, a cada 25 horas um LGBT foi assassinado no país: “(...) 99% dos assassinatos (...) "têm como
motivo seja a LGBTfobia individual (...) seja a homotransfobia cultural, que expulsa as travestis para as
margens da sociedade, onde a violência é endêmica”. De acordo com o pesquisador, esses números são
apenas a ponta de um iceberg pois não há estatísticas governamentais sobre crimes de ódio; e quanto às
estatísticas, são sempre subnotificadas pois todo e qualquer trabalho de pesquisa sobre essa realidade de
violência se baseia em notícias publicadas na mídia, internet e informações pessoais, uma vez que a
legislação brasileira não reconhece os crimes de homofobia e transfobia o que agrava o quadro.
60
Importa salientar que Loris Àdreon informa no prefácio de seu livro que usará deliberadamente a
terminologia masculina durante o seu relato por ter como objetivo colocar o leitor em contato com um
personagem masculino condicionado a esse gênero bem como, por consequência, ver anulada a vivência
de outra opção de gênero, muito embora estivesse convicta do seu Eu verdadeiro (ÀDREON, 1985). Nesse
contexto, em respeito a sua autoidentificação com o gênero feminino, obrigatoriamente usarei a
terminologia feminina para referenciá-la neste artigo.
61 Importa registrar que Àdreon, no prefácio da obra, explica que usará o gênero masculino para narrar a
sua história, pois respeitará a cronologia dos acontecimentos quanto à sua transição identitária.
111

E assim o tempo foi passando, e o final do ano letivo se aproximou...


Haveria festa no Colégio para a entrega dos certificados, mas isso não
me interessava nem um pouco; eu já não suportava mais ver as caras
dos estúpidos colegas que me atormentaram durante o ano todo! Eu já
tinha minha opção formada para o segundo grau: - pedagogia; com toda
a minha alma! (ÀDREON, 1985, p.100)

Formação que contribuirá, sobretudo, para que se tornasse uma leitora e


“pesquisadora” voraz de si mesma ao longo de sua vida. Quanto às leituras que teve
acesso, cita no decorrer de sua narrativa, por exemplo, matérias e entrevistas publicadas
em jornais e revistas sobre transexualidade (a notícia sobre Christiane Jorgensen, uma
das primeiras mulheres transexuais a se submeter à cirurgia de redesignação sexual
em Copenhague no ano de 1952; a entrevista com o psicanalista Dr. Harry Benjamim);
a leitura do romance de Henry Troyat
( escritor, ensaísta, novelista e historiador francês de ascendência armênia do século XX-
XXI) e o estudo das obras de Sigmund Freud. Quanto às obras de Freud, ressalto que,
mesmo numa leitura superficial de sua narrativa, é possível visualizar o manejo que a
autora faz do conceito de inconsciente para tentar explicar sonhos e trahmas com os quais
convive desde os primeiros anos de vida:

Vencido pelo cansaço, adormeci e sonhei com minha nova perspectiva


de vida em Manaus, vendo-me sempre só e apreensivo entre rostos
estranhos, passando por lugares nunca antes vistos. (ÀDREON, 1985,
p.39)

Eu realmente, no fundo, preferia mil vezes mais, “afundar os olhos”


num livro de psicanálise freudiana o dia todo, no delicioso silêncio da
biblioteca de Monsieur, a ir ao a agitado Porto da Panair, mas longe de
mim desagradar Amadeu, que se mostrara tão amigo “nas crises minhas
de cada dia” (ÀDREON, 1985, p.49)

Pois bem, se por um lado, temos uma biblioteca enunciada que fatalmente interfere
na arquitetura narrativa da autora construída para dar conhecimento de si e de sua relação
com o mundo, por outro lado, vislumbro nessa escrita literária a presença de uma obra
não enunciada: o romance “O guarani” (1857) de José de Alencar – um “não dito no seu
processo de criação”.
Quanto a essa “presença”, não posso comprová-la por meio da “biblioteca”
explicitada por Àdreon ou por meio de pesquisa genética de sua obra, mas por meio de
alguns elementos estéticos (PIGLIA, 1990) que compõem a sua arquitetura narrativa, o
que me permite pensa-la “[...] enquanto um espaço de reflexão e possibilidades cognitivas
112

[...]” (BARROSO FILHO, BARROSO, 2015). E nessa toada indagar: o que é possível
saber desse objeto? O que desnudar a partir da estrutura íntima dessa textualidade? O que
encontrar nessa decomposição? (BARROSO, 2003, p.4)
Pois bem, registro inclusive que esta análise literária se contrapõe
exponencialmente à “abordagem” literária dos dois primeiros paratextos que
acompanham a obra, pois enviesados por um olhar sexualizador e patologizante (MOIRA,
2018) da autora e de sua obra, se apresentam como “manifestações” críticas guiadas pelo
juízo moral e não pela razão estética (HEGEL apud BARROSO FILHO, BARROSO,
2015) da criação. Comentários críticos que acabam por se constituir em discursividades
desqualificadoras do literário na criação de Àdreon e por isso – ao fim, ao cabo –
transfóbicos (MOIRA, 2018).
Para esse contraponto, vou me deter nos paratextos “Brega delirante” de Bernadette
Lyra62 e “Excesso (Ex-sexo) melodramático” de Herbert Daniel63. Para ilustrar, citarei,
respectivamente, um trecho do texto de Bernadette Lyra e do texto de Herbert Daniel:

O discurso muito bem comportado. Com o decoro e a conveniência


modelito estandartizado da chamada “boa forma” literária em versão
melodrama circense, com pitadas de telenovela pornô, ambientado
entre selva e igarapés. Brega puro. (ÀDREON, 1985, p.131)

Lorys poderia ser um personagem de um melodrama de Douglas Sirk,


interpretado por Lana Turner; ou uma versão adaptada por Fassbinder
– se não fosse a pretensão do autor de estar contando a “verdade” sobre
um “fato real” (no caso da vida “vivida” pelo autor/ personagem Lorys.
De toda maneira, sem (provavelmente) falsificar os dados, a
autobiografia de L. Àdreon é uma transcrição da tragédia da definição
sexual, nos termos do melodrama. (ÀDREON, 1985, p.135)

Pois bem, de encontro a essas leituras estigmatizadas e desqualificadoras,


vislumbro que a escritora, ao usar uma tradição romanesca para escrever a sua
autobiografia, o faz tanto para narrar a sua história de vida quanto para subverter a ordem.
Gesto criativo que pode ser flagrado quando, a escritora, simultaneamente, avoca o amor
cortês para dizer da sua história de amor com Oitameno – uma mulher trans com um
indígena – aos moldes do vivido por Cecília (Ceci) com Peri tanto para validar o seu

62
Conforme nota de rodapé, ao final do paratexto, a comentarista é apresentada como escritora e doutoranda
pela Escola e Comunicação e Artes da USP (ÀDREON, 1985).
63
Conforme nota de rodapé, ao final do paratexto, o comentarista é apresentado como escritor (ÀDREON,
1985).
113

corpo, a sua vida para esse amor quanto para revelar, denunciar a sua impossibilidade,
pois territorializados sob o solo de uma nação – ainda – transfóbica.
Sob esse viés, percebo essa intertextualidade (CARVALHAL, 2009) como fruto
de um labor literário (BARROSO FILHO, BARROSO, 2015), pois ao usar essa tradição
literária, na minha perspectiva de análise, o faz no manejo criativo para rasurar,
questionar, provocar reviravoltas de, pelo menos, dois “campos canônicos” - o gênero
literário e o identidade de gênero.
Quanto à forma, destaco a tentativa de apresentar a narrativa por meio de capítulos
relativamente curtos; encerrados, quase sempre, com suspiro ou suspense (aos moldes
folhetinescos); o uso de uma linguagem melodiosa, subjetiva, confessional, idealizada e
sobretudo lírica, para dizer, em especial, do amor entre ela e Oitameno, indígena do povo
Juma, batizado por Amadeu64; uma textualidade fortemente marcada por lendas
indígenas. Quanto ao conteúdo, me deterei, ainda que brevemente, na construção
narrativa de Àdreon quanto ao amor de Oitameno por ela, que se aproxima do amor de
Peri para Ceci construído por Alencar, como discutem Lucena e Costa (2011) e veremos
na citação abaixo:

Em Peri, o sentimento era culto, espécie de idolatria fanática, na qual


não entrava um só pensamento de egoísmo; amava Cecília não para
sentir um prazer ou ter satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a
ela, para cumprir o menor de seus desejos, para evitar que a moça
tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.
(ALENCAR, 2006, p.56)

Um amor servil, protetor, devocional que se materializa em ambas as narrativas


pela heroicização do indígena pela via do enaltecimento de suas qualidades físicas e
quanto morais - aos moldes da concepção cavalheiresca medieval (LUCENA; COSTA,
2011). Quanto a esses aspectos, cito, respectivamente, o enaltecimento físico e moral de
Oitameno do indígena pela narradora:

Foi nessa noite que fixei pela primeira vez, desde que fomos
apresentados em minha chegada, a atenção em Amadeu, o índio,
descendente dos últimos Jumas da Região do Alto Madeira, onde seu
verdadeiro nome era “Oitameno”. Seu corpo forte e bronzeado
mostrava a virilidade e a beleza saudável que se retratam nas pinturas
da Idade Média. Seus cabelos negros, lisos e brilhantes, enfeitavam o
rosto de traços enérgicos, cujos lábios, bem delineados, mostravam

64
Interessante notar que a escritora usará, na maior parte da narrativa, o nome indígena da “personagem”
para narrar a história de amor vivida por eles.
114

grandes dentes brancos e limpos. Devia ter mais de 1,70m de altura e


andava como elegância viril. (ÀDREON, 1985, p.48)
Ao subirmos as escadas da varanda, ouvimos as gargalhadas quase
guturais que permeavam a conversa de papai com o professor. Quando
Marie France nos abriu a porta, o sorriso de papai morreu em seu
semblante ao me ver entrar na companhia de Oitameno, que saudou a
todos com a polidez gentil de um nobre da elite européia, embora
mostrasse na tez de bronze os traços deliciosos e puros do Guanany!
(ÀDREON, 1985, p.76)

Virtudes que ao revelarem um amor devoto, puro, casto, como o de Peri para Ceci,
guardam um potencial salvacionista, mas que na realidade transfóbica de Àdreon não
vingará. Sob esse viés, sublinhamos que se em “O guarani” as personagens, Cecília - a
mulher branca civilizada - e Peri - um indígena -, são criados para se enunciarem como
fundadores de uma outra Ordem, de uma outra nação ( BOSI, 1994); aqui, no século XX,
os possíveis fundadores dessa outra nação, atualizados na escrita autobiográfica de
Àdreon - uma mulher transexual (descrita aos moldes europeus) e um indígena -
contrariando o modelo inspirador - não romperão com o padrão determinado pela Ordem
patriarcal; muito antes pelo contrário. Aqui, o real é maculado pela violência transfóbica
ainda que se trate de um amor puro e nobre, um amor devoto, distanciando-se, ao fim e
ao cabo, da “matriz romanesca ficcional”:

Oitameno, sentado em uma cadeira debruçado sobre meu leito, não se


ausentou dali, senão quando muito necessário. Ele velava meu profundo
sono, segurando minha mão, e orando a Deus para que eu
sobrevivesse...
Estou sonhando a lenda do Gurany! O belo rosto índio que meus olhos
me mostram não é real, nem o pode ser o hálito quente que recende às
minhas narinas, ou a pressão firme de uma forte mão que comprime a
minha!
(...)
Ouço então uma voz que meus ouvidos aprenderam a reconhecer! Não
é irreal; não provém da garganta do Guarany! Pertence a outro filho da
selva, que o acaso me deixara conhecer. Era a voz de Oitameno, real e
calorosa! (ÀDREON, 1985, p.65)

Infortunadamente, o desfecho dessa história de amor se dá quando Àdreon é jurada


de morte pelo pai quando flagrada numa rede com Oitameno. Circunstância em que o Pai
- a Ordem destinará todo o seu ódio à identidade da filha, que já se reconhecia como
mulher transexual:

- “Seu desgraçado, filho de uma... que é que está fazendo com outro
macho nessa rede? Como é que você pode fazer uma coisa dessas, seu
115

sem-vergonha?! Quer me matar de desgosto mas não vai não; eu te mato


antes, seu maldito filho do pecado”. (ÀDREON, 1985, p.119)

Como consequência, Oitameno, diferentemente de Peri, é impedido de honrar o


seu amor por Lóris e “nobremente” aceita o império da Ordem patriarcal, como faria o
outro indígena:

- “Adeus Lorys, nunca mais nos veremos; lutei além de minhas forças,
perdoe-me, mas hoje morre minha esperança de alcançar tua liberdade!
Viverei de tua lembrança e ninguém jamais ocupará teu lugar em mim;
Adeus, minha Diakuy!”(ÀDREON, 1985, p. 120)

“Em minha vida, minha prisão”, portanto nos deparamos com uma estrutura
narrativa literariamente perversa, pois o “flerte ” com o modelo de narrativa projetado
por Alencar, que visa recriar um modelo de nação (LUCENA; COSTA, 2011), aqui é
mobilizado por Àdreon diferentemente da ficção, pois desnudará a sua inviabilidade. Na
sua escrita, portanto, não há um final apaziguador ou conciliatório para o amor, para a
nação; pior: o amor é aniquilado; a mulher é degredada e o indígena, de herói passa a ser
um anônimo errante, do qual nunca mais ninguém terá notícias:

- “Oitameno perdeu toda a motivação pela vida depois que você partiu
para a Espanha. Ele ainda voltou a te procurar dois dias depois que teu
pai te levou para o Rio. Mas tua mãe o avisou que era inútil procurar
por ti, porque não voltaria mais ao Brasil; daí ele se desesperou tanto
que que começou a beber muito e foi-se embora para ‘Puerto Ayacucho’
na divisa de Colômbia com Venezuela. Nunca mais soubemos qualquer
notícia dele durante esses quatro anos; pobre rapaz, quem sabe se até
não morreu por cometer alguma loucura, de desgosto...” (ÀDREON,
1985, p.121)

Assim o que Bernadete Lyra qualifica como “melodrama circense” e Hebert


Daniel como “transcrição da tragédia da definição sexual nos termos do melodrama”, leio
como solução estética genial, aos moldes discutidos por Deleuze e Guatarri (1977), pois
como nos lembra David Lapoujade se (...) é desde sempre e para sempre que não
aguentamos mais, se é desde sempre e para sempre que resistimos, então esta resistência
é um profundo fortalecimento a constante de um limite ou de um “último nível”
(LAPOUJADE, 2011), que no caso de Àdreom também se revela no seu objeto de
criação: a sua autobiografia.
116

Assim, do seu último nível, sob a continuidade do trauma de viver na “diferença”


decide nos interpelar como agente criadora e resistente e dessa perspectiva, mobiliza uma
arquitetura romanesca canônica tanto para revelar a 1) sua busca do entendimento do
humano; 2) quanto a sua busca para o entendimento de si mesma como humana num
sistema que, via de regra, opera de forma obscura (AGAMBEN, 2002) para impedir o
florescimento da vida, da sua vida.

Referências

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Marco Zero, Rio de Janeiro: 1985.

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118

ARTE, CONHECIMENTO E ESCRITA DE SI:


MO(VI)MENTOS AUTOBIOGRÁFICOS E (AUTO)FORMAÇÃO DO SUJEITO

Luiz Carlos Pinheiro Ferreira (UnB)65

Resumo: O texto apresenta um recorte da Tese de Doutorado: “Mo(vi)mentos Autobiográficos:


historiando fragmentos narrativos de experiência de vida docente e discente em Artes Visuais”
(2015), realizada no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes
Visuais da Universidade Federal de Goiás. O estudo, de caráter autobiográfico com ênfase em
fragmentos narrativos e mo(vi)mentos de investigação, caracterizou-se como um processo
arqueológico de experiências que foram vivenciadas ao longo de uma trajetória de vida. Para o
contexto proposto pelo seminário, recupero duas lembranças pontuais que dialogam com a arte,
o conhecimento e a escrita de si como elementos para pensar o processo narrativo, autobiográfico
e (auto)formativo do sujeito.
Palavras-chave: artes visuais, autobiografia, escrita de si, (auto)formação, narrativa

Apresentação

O texto elaborado para contribuir com a proposta da mesa: “Arte e conhecimento:


questões de formação do sujeito”, apresenta um recorte da Tese de Doutorado intitulada:
“Mo(vi)mentos Autobiográficos: historiando fragmentos narrativos de experiência de
vida docente e discente em Artes Visuais” (2015), realizada no Programa de Pós-
Graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade
Federal de Goiás. O estudo, de caráter autobiográfico com ênfase em fragmentos
narrativos66 e mo(vi)mentos de investigação, caracterizou-se como um processo
arqueológico de experiências vivenciadas ao longo de uma trajetória de vida.
Para o contexto proposto pelo seminário, apresento lembranças e questões acerca
da arte, do conhecimento e da escrita de si como elementos para pensar o processo
narrativo, autobiográfico e (auto)formativo do sujeito. Essa perspectiva ocorre mediante
uma escrita de si que remete ao campo das experiências e do processo de formação do
sujeito numa dimensão que envolve a recuperação e a busca de origens, acontecimentos
e histórias. Na especificidade do presente texto, recorto fragmentos narrativos
relacionados com dois artefatos, um acordeão e uma colcha de retalhos, que foram
pontuais tanto para a minha formação pessoal como estética, compreendendo nuances do

65
Doutor em Arte e Cultura Visual pelo Programa de Pós-Graduação em Artes e Cultura Visual da
Universidade Federal de Goiás. Professor Adjunto do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da
Universidade de Brasília.
66
A tese de doutorado apresenta dezoito fragmentos narrativos que versam sobre aspectos pontuais e
particulares relacionados com os contextos de escolarização, formação e atuação concernentes com a
investigação da minha história de vida.
119

campo da arte e da imaginação. Nesse caminho metodológico, parto de contextos


específicos que precisam ser escavados e desbravados (FREUD, 2006; CERTEAU, 2011)
para elucidar onde e como a arte e o conhecimento foram determinantes para promover
uma escrita de si. Ao desbravar um percurso arqueológico de pesquisa e de
(auto)formação, esclareço que os fragmentos narrativos funcionaram como lentes,
autorizando uma retro(re)visão da vida a partir de camadas que compõem a minha
tessitura subjetiva.

A narrativa e o processo arqueológico de investigação

Investigar representa um desafio, tanto para aqueles que estudam questões


relacionadas com objetos específicos de um determinado campo de pesquisa como para
aqueles que estão imersos em um processo arqueológico de investigação de si. Essa
experiência que convoca o sujeito a tornar-se objeto de sua própria pesquisa desperta um
olhar reflexivo e questionador sobre os processos que foram vividos, sobretudo, ao
considerar que não há uma distinção entre o sujeito e o objeto de pesquisa. A relação
sujeito e objeto ocorre mediante um trânsito dialógico, operando junto às instâncias da
intuição e sensibilidade, da memória e pessoalidade. Essa dinâmica de reflexão acerca da
vida e da pesquisa acentua o potencial das histórias pessoais que marcam cada um de nós,
ressaltando aspectos que são significativos e estão presentes nos percursos trilhados
cotidianamente.
Ao apontar tal especificidade presente no contexto da pesquisa, estou considerando
aspectos que são decisivos para significar o quão importante é o campo da pesquisa
autobiográfica e narrativa. Nesse contexto particular, o viés arqueológico torna-se
elemento determinante, pois o universo investigativo consiste em um empreendimento,
onde o próprio sujeito interroga-se permanentemente sobre o contexto de sua história de
vida. Nesse sentido, esclareço que ao retomar duas experiências de vida, inscritas ainda
na fase da infância, estou mergulhando em um processo arqueológico de investigação que
busca vestígios acerca da experiência com o universo da arte. Tais experiências
configuraram aspectos cruciais para a minha tessitura subjetiva, especialmente no que
concerne ao campo da arte. As experiências relacionadas com o acordeão do meu pai e
com a colcha de retalhos produzida pela minha avó materna remetem às questões e aos
processos (auto)formativos. Nesse ponto, o campo da narrativa apresenta-se como um
lugar promissor, justamente pela força de uma escrita que desvela uma potencialidade
120

autobiográfica. Essa força funciona como um dispositivo de investigação e de formação,


reverberando em uma vertente autorreflexiva e servindo de aporte para além do ato de
lembrar e narrar um acontecimento, ou seja, uma escrita de si como dispositivo de
aprendizagem ao longo da vida.
Quando determinadas lembranças, experiências e artefatos estão atrelados ao
campo da narrativa e da autobiografia, surge uma potencialidade de enunciação como
vertente formadora e reflexiva. De acordo com Delory-Momberger (2011, p. 337), “a
narrativa de vida continua a ser vista como um percurso orientado e finalizado, pelo qual
o narrador retraça a gênese do ser no qual se tornou”. Nesse sentido, ao traçar um caminho
autobiográfico a partir de fragmentos narrativos, estou reconstruindo arqueologicamente
um percurso orientado pelo qual experienciei determinadas situações. Tal particularidade
pressupõe compreender minha constituição subjetiva, especialmente no tocante ao campo
da arte e do processo (auto)formativo.
A intervenção realizada no campo da pesquisa narrativa e autobiográfica constitui
um trabalho arqueológico, mediante nossa vivência e sobre nós mesmos. Quando
observamos nossa história de vida, passamos a ocupar um espaço privilegiado, onde um
cenário reflexivo acentua aspectos, tendências e experiências que foram pontuais e
reveladoras. Nesse momento, nos tornamos os relatores de nossa própria vida, onde a
narrativa cede lugar para conceber lembranças que perfazem as peculiaridades de uma
história de vida. Ainda em conformidade com o pensamento de Delory-Momberger
(2011, p. 341), entendo que “pela narrativa transformamos os acontecimentos, as ações e
as pessoas de nossa vida em episódios, intrigas e personagens; pela narrativa organizamos
os acontecimentos no tempo, construímos relações entre eles”. Essa perspectiva apontada
pela autora, apresenta um caminho de investigação que concede um lugar e um
significado às situações e experiências que vivemos, pois é pela narrativa que construímos
o nosso próprio personagem, criando a história de nossa vida e reconstruindo nossa
gênese formativa.

A dimensão da arte, do conhecimento e da escrita de si

Ao refletir sobre o meu percurso de vida e de formação, considero que a dimensão


da arte, do conhecimento e da escrita de si foram e ainda são determinantes para
contextualizar lembranças, artefatos e experiências. Essa dimensão que transita entre os
conceitos, alimentam uma perspectiva particular que interessa tanto a minha vida pessoal
121

e profissional quanto à busca pelo conhecimento de si. Foi a partir de um processo de


investigação autobiográfico e narrativo que nasceu o interesse por um caminho que
desvelou aspectos relacionados com a época da infância.
Esse desvelamento implicou inquietações que se transformaram em indagações:
Qual a representação da arte na vida dos sujeitos? Como a arte pode ser significada a
partir de experiências estéticas vivenciadas durante a infância? Como determinadas
experiências relacionadas com artefatos artísticos influenciam escolhas e trajetórias de
vida? Ao trazer estas inquietações para o contexto do texto, reflito sobre aspectos que
circunscreveram determinadas experiências da época de infância. Tais reflexões serviram
para trilhar um percurso metodológico de investigação, marcado por angústias,
inquietações e descobertas acerca da minha relação com a arte e, consequentemente, da
atuação como professor de artes visuais.
O contexto de uma história de vida compreende inúmeros caminhos e
possibilidades. Ao considerar a escrita de si como elemento pontual que permeia o
contexto (auto)formativo do sujeito, entendo que a dinâmica que envolve o campo da
narrativa passa a representar aquilo que o sujeito de fato vivenciou como experiência.
Assim, o contexto (auto)formativo visa democratizar a partir das narrativas aqueles
episódios memoráveis, onde o sujeito que narra coloca-se em cena como representante e
herói de sua própria história.
A busca por uma escrita de si decorre de um “conhecimento de si” (SOUZA, 2006),
sobretudo, quando consideramos que as lembranças provenientes das experiências e
aprendizagens vivenciadas ao longo de uma história de vida são constituídas por nuances,
detalhes e episódios emblemáticos. Essas experiências e aprendizagens, funcionam como
vozes polifônicas que atravessam o sujeito confrontando-o e chamando-o à reflexão sobre
as experiências constituídas através da linguagem (BAKHTIN, 2004). Ao buscar um
argumento para corroborar com as questões relacionadas ao movimento arqueológico de
investigação de si, encontro amparo nas colocações de Bakhtin, justamente, por acreditar
que foi no campo da linguagem que constitui minha tessitura subjetiva em relação ao
interesse pela arte.
Percebo que as experiências vivenciadas com o acordeão do meu pai e a colcha de
retalhos produzida pela minha avó materna funcionaram como uma polifonia de vozes,
tornando-se objetos singulares que produziram ressonância no sujeito que sou hoje.
Segundo Souza (2006), essa ressonância permite tanto compreender as vozes que
atravessam o sujeito, como também aprimora o processo de falar de si para si mesmo,
122

como um conhecimento de si, permitindo ao sujeito organizar a sua narrativa através de


um constante diálogo interior, através do processo de (auto)formação e de conhecimento.
Nesse encontro com o conhecimento de si, apontado por Souza (2006), reside o
intuito de promover fragmentos narrativos relacionados com o processo (auto)formativo
presente nos momentos que caracterizam o percurso da vida. Tais fragmentos estão
vinculados às demandas e necessidades de avançar, o que provoca mo(vi)mentos e
inquietações que viabilizam uma arqueologia de si. Foi a partir dessas inquietações que
iniciei esse diálogo prazeroso e ao mesmo tempo carregado de conflitos com a expressão
mo(vi)mento67, combinando justaposições, associações e sentidos que (des)velassem
demandas presentificadas nas lembranças encobridoras da infância.
A lembrança, segundo Souza (2007), remete o sujeito a observar-se numa dimensão
genealógica, ou seja, como um processo de recuperação do eu em busca de suas origens,
dos acontecimentos que marcaram sua memória. Souza acrescenta que a memória, em
sua dimensão narrativa, “como virada significante, marca um olhar sobre si em diferentes
tempos e espaços, os quais se articulam com as lembranças e as possibilidades de narrar
experiências” (SOUZA, 2007, p. 63). Desse olhar sobre si, conforme explica Souza,
procurei subsídios para encontrar os fragmentos narrativos das experiências marcantes da
infância.
Ao invocar determinadas cenas guardadas na memória, ainda de acordo com Souza
(2007), devemos atentar que ela não se fixa apenas no campo subjetivo, mas, situa-se num
contexto histórico e cultural, sendo, também, uma experiência histórica indissociável das
experiências peculiares de cada indivíduo e de cada cultura. Sendo a memória uma
experiência histórica, estaria então na fronteira entre passado e presente. Nesse aspecto,
torna-se relevante pensar na busca do conhecimento de si a partir das lembranças e das
experiências cotidianas, vivenciadas nesse espaço-tempo histórico do passado como
caminho para encontrar possíveis respostas.
A escrita de si pode ser um dos caminhos para considerar essas possíveis respostas,
compreendendo um laborioso processo de percepção das questões relacionadas com o
sujeito e sua história. Considerar a escrita de si como um caminho de pesquisa e de

67
A expressão mo(vi)mento utilizada na tese de doutorado foi concebida para subsidiar os capítulos,
representando um esforço semântico que pudesse dar conta da justaposição das palavras “momento” e
“movimento”. Ao trazer essas duas palavras para o contexto arqueológico de investigação, pondero que a
liberdade concedida na justaposição entre uma e outra, almejou uma possibilidade para justificar tanto o
interesse pela arte como pelo processo de elaboração e reflexão acerca das experiências vivenciadas ao
longo da minha trajetória de vida.
123

formação representa um desafio, tanto para aqueles que precisam pensar e organizar uma
escrita que sinalize e sintetize uma trajetória profissional, como para aqueles que desejam
escrever a vida para compreender a si mesmo, numa dimensão arqueológica de
investigação do próprio sujeito.

Percursos narrativos de uma escrita de si: o campo das lembranças da infância

Nesse percurso narrativo que permeou a escrita de si, duas experiências da infância
ganharam destaque na proposição do referido texto, porque foram relevantes para
compreender minhas escolhas pessoais e profissionais. Experiências peculiares que
delinearam o entendimento e o apreço à arte e, consequentemente, meu endereçamento
para o âmbito da docência.
Uma delas está relacionada a um objeto familiar, o acordeão que pertenceu ao meu
pai e que remete ao universo da música. A outra refere-se às lembranças que apontam
para o momento em que experimento a colcha de retalhos tecida pela minha avó materna.
Tanto o acordeão como a colcha de retalhos representam artefatos emblemáticos e
configuram uma temporalidade particular da infância. Essa lembrança arraigada de
afetividade levou-me a pensar nas visualidades presentes no cotidiano da infância, no que
condiz com a sua potência enunciadora de sentidos e significados para o campo da
narrativa autobiográfica. O lugar da arte e da expressão artística estava permeado de
nuanças, até então, desconhecidas conceitualmente na época da infância. Seu sentido
residia no divertimento, na brincadeira e, também, na tentativa de construir enlaces
afetivos.
Posteriormente, ao tratar dessas lembranças a partir de um olhar atento e amparado
em elaborações advindas de um percurso de análise68, recuperei nuances e impressões
significativas relacionadas, sobretudo, com a época da infância. Um movimento que
prescindiu atentar para questões pertinentes reclusas no tempo da memória, mas que
diziam respeito ao afeto e as boas recordações de uma época determinante da minha
formação subjetiva. As lembranças da infância, nesse sentido, devem sua existência a
um processo de deslocamento (FREUD, 2006), pois residem em lugares recônditos que
precisam ser acessados a partir de um mo(vi)mento arqueológico, intenso e determinado
pelo desejo do sujeito.

68
Desde 2004 realizo um percurso de análise na perspectiva lacaniana, justamente por considerar pertinente
à elaboração dos sintomas, conceitos e situações reveladas pelo inconsciente, que fazem parte da minha
constituição como sujeito e, desse modo, passível das sintomáticas da existência humana.
124

A dimensão do afeto e da arte no munda da casa: o acordeão do meu pai

Durante o meu percurso de formação, o questionamento acerca do meu interesse


pela arte e pela profissão docente foi constante. Entretanto, foi a partir de algumas
elaborações, sobretudo aquelas que apontaram lembranças particulares da infância que
pude atenuar, provisoriamente, minhas angustias. Saliento que determinadas lembranças
funcionaram como dispositivos que capturaram e orientaram gostos e inclinações
estéticas vivenciados no mundo da casa69. O acordeão representou, na época de minha
infância, um artefato peculiar, porque remetia ao universo da arte e da música.
Atualmente, guardo o acordeão do meu pai com afeto, representando uma forma de
manter na minha memória o seu gosto pela música (Figura 1). Talvez essa tenha sido uma
forte influência na minha infância, despertando em mim o desejo pela apreciação daquilo
que é artístico. Hoje, preservo este artefato como uma relíquia que faz parte do mundo da
minha casa, como representação de um tempo que passou.

Figura 1: Acordeão usado pelo meu pai. Acervo pessoal.

A imagem do meu pai tocando o acordeão faz parte de um lugar particular, de uma
lembrança tênue no tempo, residindo nesse espaço particular e simbólico representado
pelo mundo da casa. Um tempo que, segundo Bosi (2003, p. 36), abre espaço para uma
“força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e
invasora”, prestes a lançar no tempo presente resquícios desse lugar do passado, mas
ainda presente nas lembranças e recordações da infância. Esse tempo carregado de força

69
A expressão “mundo da casa” foi utilizada nos escritos da tese para dialogar com o “mundo da escola”,
possibilitando explicitar aspectos pontuais acerca da minha experiência tanto com o contexto da arte como
na transição entre esses dois mundos.
125

subjetiva e profunda, conforme aponta Bosi (2003), acontece mediante a narrativa que
permeou os fragmentos. A narrativa acentua a importância das lembranças, aguça a
capacidade de reviver na memória momentos relevantes, sobretudo para resgatar
minúcias imprescindíveis ao conhecimento e a escrita de si. Além disso, essas lembranças
permitem compreender o meu interesse pelo campo das artes, significando com mais
nitidez, tanto do ponto de vista pessoal quanto profissional, minha relação com o meu
processo (auto)formativo. No recorte do fragmento narrativo apresentado a seguir
evidencio aspectos pontuais da minha relação com o acordeão, numa dimensão do afeto
que, até então, não era percebida por mim.

O acordeão representava uma relíquia trancada a sete-chaves pelo meu


pai. Somente nos dias de “cantoria”, como dizia minha mãe, era
possível observar tamanha beleza. Um instrumento gigante perante
minha figura de menino. Eu olhava fascinado para o brilho que aquele
artefato imprimia na minha imaginação. Era bonito de ver e ouvir. A
sonoridade derivada do instrumento, a partir dos dedos do meu pai
sobre as teclas, em preto e branco, conjugava-se ao movimento do seu
corpo, que acompanhava o som. Aquela imagem do meu pai com o
acordeão diferenciava-se da imagem do meu pai durante o cotidiano da
casa. Sua rudeza diária parecia desaparecer. Surgia um olhar diferente
para a vida, mais prazeroso e harmonioso com a sua existência
(FERREIRA, 2017, p. 73).

O fragmento narrativo acontece como algo que possibilita compreender minha


experiência associando-a às relações entre passado e presente. Nesse momento, atuo
como um arqueólogo que escava os escombros do passado para encontrar resquícios,
pedaços e fragmentos que possam, metaforicamente, ajudar a reconstruir o edifício
simbólico que representa o sujeito. Os fragmentos narrativos exercem essa tarefa de
reconstruir contextualmente o tempo e o espaço acerca das ações vivenciadas, sobretudo
com outras pessoas, em determinado tempo e lugar. A narrativa representa uma forma de
compreensão daquilo que foi vivido, possibilitando mediações entre o pensamento e a
ação, o contexto e a circunstância, mapeando elementos e processos que constroem
significados entre a história individual e a história social dos indivíduos (MARTINS e
TOURINHO, 2009).
126

A dimensão do afeto e da arte com a minha avó materna: a colcha de retalhos

Minha lembrança da infância com a colcha de retalhos produzida pela minha avó
materna permite refletir sobre os sentidos dessa experiência, especialmente como forma
de significar a minha relação com o universo da criatividade e do afeto, pois foi

[...] num desses momentos, sozinho no quarto da minha avó, que passei
a observar a colcha que ela usava na cama. Eu já tinha visto inúmeras
vezes o processo da costura de retalhos que vovó fazia. Era fantástico o
modo como ela costurava e organizava aqueles retalhos de tecidos que,
à primeira vista, não tinham serventia, como ela mesma dizia. Ela
cortava e ajustava os diferentes tipos de tecidos em uma caixa para
depois emendá-los um a um até formar uma colcha. Era um processo
demorado que dependia dos retalhos e de uma boa dose de paciência.
Em sua cama havia uma colcha antiga, usada especialmente aos
domingos para enfeitar o quarto. Foi naquele lugar, deitado na cama,
que pude perceber como diferentes tipos de retalhos podiam configurar
um todo, apesar das singularidades de cada fragmento de tecido. A
relação das partes que formavam o todo era uma coisa instigante, um
desafio para mim (FERREIRA, 2015, p. 208-209).

O cenário narrado no fragmento, acena para um momento do cotidiano, enfatizando


minha percepção acerca dos diferentes tipos de retalhos que configuravam naquele
momento um todo, apesar das singularidades de cada fragmento de tecido (Figuras 2).
Determinadas situações e cenários, segundo Martins e Tourinho (2009), se revelam por
meio da narrativa, inscrevendo-se em experiências e aprendizagens que têm como
referência aquilo que cada sujeito vivenciou. Naquela época, eu não conseguia
compreender porque a colcha de retalhos me provocava tanto, sobretudo, no aspecto da
sua visualidade e beleza. E como poderia suscitar lembranças na atualidade que
denunciariam desejos e intenções a partir de um olhar atento e estético. Lembro que a
minha intenção era apreciar o colorido da colcha e sentir o seu perfume. Um cheiro de
leite de rosas, bem característico da casa da vovó.
127

Figura 2: Colcha de retalhos produzida pela minha avó materna. Acervo pessoal.

Esse movimento de atenção para com a vida e com as particularidades de um


cotidiano marcado pelo afeto e beleza, compreende justamente a significação dessa vida,
por que “na memória, a pessoa realça e acentua os momentos de sua vida que foram
experimentados como significativos, ao passo que os outros caem no esquecimento”
(DILTHEY, 2010, p. 245). Nesse aspecto, a colcha de retalhos pressupõe uma experiência
significante no contexto da minha (auto)formação, um dispositivo que envolve
aprendizado, afetos e uma habilidade que se organiza e ganha unidade em função da
diferença que caracteriza os formatos, cores e texturas dos fragmentos de tecidos.
A colcha de retalhos torna-se um artefato emblemático porque constrói sentidos
para a vida, para um entendimento sobre o que constitui a criatividade, justamente por
considerar a complexidade que abarca os domínios social, cultural, psicológico e
educacional (KINCHELOE, 2007) da aprendizagem, envolvendo tanto a vida quanto o
seu percurso de (auto)formação estética. Refletir sobre a compreensão acerca da vida e
da formação confere um conhecimento autoimplicativo, ou seja, um modo de conhecer
hermenêutico que, ao mesmo tempo em que amplia o conhecimento das coisas, também
proporciona um saber sobre nós mesmos (SOUZA; FORNARI, 2012). Ao lidar com a
confecção da colcha de retalhos, minha avó aprendeu a lidar com as diferenças que
encontrava nos fragmentos de tecidos, fazendo uma pesquisa intuitiva acerca das
possibilidades dos retalhos: pequenos, médios e grandes; ásperos e lisos; estampados e
quadriculados; floridos e bordados, enfim, uma multiplicidade significativa que acentua
a diferença. Percebi essa diferença ao observar e imaginar histórias a partir da colcha de
retalhos que cobria a cama do quarto da minha avó, da mesma maneira como aprendi a
128

observar seu domínio e perspicácia, ao confeccionar de forma tão afetuosa aqueles


artefatos.

Considerações finais

As experiências apontadas no texto buscam autenticar nossa relação dialógica com


o mundo, pois representam lembranças providas a partir de artefatos emblemáticos. Ao
mesmo tempo, esses artefatos são carregados de vestígios de afeto e beleza, que
possivelmente, determinaram o contexto da minha (auto)formação estética. E, mais tarde,
repercutiriam num olhar curioso sobre a vida e a entrada no universo da arte. Nesse
aspecto, interrogo-me novamente acerca da possibilidade de diálogo em relação às
experiências contidas no cotidiano, em sua dinâmica permanentemente inventada para
permitir o fluxo da vida, da criatividade e da invenção (CERTEAU, 1994). O que
possuem em comum tais lembranças da infância? Como as mesmas podem desencadear
maneiras de pensar afetos, experiências e aprendizagens construídas ao longo da vida?
Penso que ao rememorar essas lembranças, o meu olhar curioso sobre a vida e a arte
amplia o sentido da experiência e contribui na legitimação do valor epistemológico e
existencial presente nos momentos que a vida proporciona. Nesse aspecto, ao definir o
caminho do texto, optei por apresentar fragmentos narrativos sobre acontecimentos
peculiares que marcaram minha infância, numa perspectiva que considera a narrativa
como uma escrita de si. Essa escrita evoca a própria arte de lembrar, capaz de remeter o
sujeito a avaliar a importância das “[...] representações sobre sua identidade e práticas
formativas que viveu, de domínios exercidos por outros sobre si, de situações fortes que
marcaram escolhas e questionamentos sobre suas aprendizagens” (SOUZA, 2006, p. 61).
Ademais, considero prazeroso a oportunidade de escrever este texto, na tentativa de lançar
um outro olhar sobre os acontecimentos do passado, para suscitar outras formas de
compreender o processo de formação subjetiva que me levou ao campo da arte, do
conhecimento e da escrita de si que, hoje, reverbera sentidos no exercício cotidiano da
docência no campo das artes visuais.

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130

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131

O EPISTÊMICO E O METAFÍSICO NO ROMANCE QUE PENSA

Maria Veralice Barroso (UnB)70

Resumo: Conforme o entendimento do escritor Milan Kundera, o romance literário, que se quer
de valor estético, prima pelo conhecimento da existência, para tanto, há que ser gestado por meio
da prática do pensamento filosófico, zelando entretanto, pela permanência das dissonâncias que
o afastam de uma verdade sistêmica. Destarte, em diálogo com o pensamento kunderiano,
entendendo porntanto, que a narrativa romanesca é um solo privilegiado de conhecimentos sobre
Ser, o presente trabalho objetiva refletir acerca dos espaços concedido ao epistêmcio e o
metafísico no romance que pensa.
Palavras-chave: Romance que pensa. Metafísica. Epistemologia. Literatura. Filosofia.

O romance que pensa e suas origens

A expressão romance que pensa foi aqui subtraída dos estudos desenvolvidos pela
autora junto ao Grupo de Pesquisa Epistemologia do Romance. Movidas pela pergunta
kantiana “O que posso saber?”, as investigações assumidas pelos pesquisadores do Grupo
tomam por objeto de análise o texto ficcional, nele buscando a partir de uma abordagem
interdisciplinar, levar em conta conexões entre narrativas literárias e narrativas
filosóficas. Ao estabelecer e coordenar o diálogo entre estas duas áreas - Literatura e
Filosofia -, os estudos epistemológicos do romance, se amparam em um tripé filosófico
constituído pela estética, a hermenêutica e a epistemologia. Teoricamente assim
sustentados, os estudos epistemológicos assumem declaradamente a intenção de se
aproximar, de modo mais reflexivo e menos opinativo, de um movimento que faz circular
o desejo de extrair possibilidades de conhecimentos acerca do humano no espaço das
subjetividades literárias.
Ao lidar com os pressupostos da epistemologia, braço da filosofia que
historicamente esteve ligada às ciências modernas, faz-se importante destacar que a noção
de romance que pensa emerge da necessidade de delinear um caminho em busca do
conhecimento sobre a existência a partir da ficção. Neste percurso, ainda que de um ponto
de vista epistemológico, será necessário trabalhar no sentido de manter um claro
afastamento da linearidade e da lógica conclusiva, normalmente previstas pelas ciências
exatas - muitas das quais, ainda calcadas nos apelos positivistas. Importante lembrar,
entretanto, que distanciado da rigidez dos métodos cientificistas ou dos sistemas de

70
Doutora em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília. Pesquisadora colaboradora no
Programa de Pós-Graduação em Metafísica – PPGM/UnB. E-mail: mariaveralice27@gmail.com.
132

pensamento, aquele que lida com o Romance que pensa, não exclui de seu fazer a busca
pela racionalidade e intenções do criador, posto que trabalha no sentido de criar condições
para formular explicações que ultrapassem o que foi a priori sentido, intuído na relação
com o objeto.
A ideia de romance que pensa se arrasta entre nós pesquisadores da Epistemologia
do Romance, sendo com frequência tocada por nossas falas e escritos, sem, no entanto,
ter se constituído até o momento, esforços laborais no sentido de um enfrentamento mais
aprofundado do tema. Várias são as explicações para que isso tenha ocorrido, a razão
primeira, entretanto, diz respeito às origens da expressão, ela deriva das discussões de
Milan Kundera acerca da arte do romance.
Os estudos kunderianos foram e, em grande medida, continuam sendo um ponto
importante de referências para as pesquisas desenvolvidas nos espaços de nossas
reflexões, nesse sentido, quando, há alguns anos atrás, deparei com esta expressão
conceitual nas páginas do livro ensaístico de “A cortina”, enquanto pesquisadora da obra
romanesca de Milan Kundera, tinha consciência de que estava diante de algo que
precisaria ser melhor investigado, entretanto, naquele momento, outras questões
referentes à obra do autor se faziam mais urgentes: o reconhecimento integral da obra
literária e a compreensão de algumas escolhas estéticas tais como, a construção das
personagens como os don juans, por exemplo ou com a escrita em variação e a opção
cuidadosa por tipos específicos de narradores foram algumas das opções estéticas que
juntamente com a temática do idílio, do lirismo, do kitsch, do peso e da leveza, do riso e
do erotismo, tomaram minha atenção por mais ou menos dez anos de estudos.
Assim, a ideia de romance que pensa ficou suspensa, sinalizada por algumas breves
citações, mas sobre as quais pairavam diversas interrogações. De modo alguma, o
desenvolvimento de reflexões mais elaboradas sobre o tema deixou de se fazer presente
por haver negligência em relação a importância da discussão, mas sobretudo, em razão
da compreensão segundo a qual, caminhar pela obra e o pensar kunderiano requer uma
ação processual. A tal compreensão impõe-se outra, aquela voltada para o entendimento
segundo o qual a noção de romance que pensa não está, de modo algum, dissociada de
todos os estudos realizados até aqui no que se refere ao mundo romanesco de Milan
Kundera, neste sentido, voltar ao tema no presente é um ganho na medida em que outros
aspectos da obra já foram tratados, sendo, portanto, de melhor compreensão e manejo no
contexto da obra.
133

Neste ponto, creio ser importante esclarecer dois aspectos. O primeiro é que,
embora seja captada das reflexões kunderianas acerca do romance moderno, a noção de
romance que pensa, do modo aqui compreendida, extrapola os limites da obra literária
deste escritor, ela se estende a um corpus diversificado que compõe a historiografia do
romance moderno, do qual Miguel de Cervantes é o precursor. Já o segundo aspecto diz
respeito a uma necessidade, cada vez mais emergencial de retomar as discussões em torno
desta categoria romanesca, o que de acordo com observações prévias, decorre das
aproximações da pesquisadora com os estudos metafísicos, movimento que impele cada
vez mais a uma reflexão de cunho epistemológico cujo interesse volta-se para a
compreensão dos processos de conhecimento e pelos modos de conhecer voltados às
ontologias, em resumo, um conhecimento subtraído de reflexões constitutivas de uma
metafísica do estético romanesco.

Uma construção conceitual por oposição

Embora, no âmbito criação, o desejo de fazer da literatura um espaço do


pensamento já estivesse presente em escritos que antecedem ao Kundera romancista, as
meditações teóricas sobre o assunto foram esboçadas em ensaios, muitos dos quais
reunidos posteriormente nas coletâneas ensaísticas dos livros “A arte do romance”, “Os
testamentos traídos” e “A cortina”. Das muitas deduções possíveis acerca do romance
moderno, extraídas de uma leitura dos ensaios contidos nestes livros, uma delas nos é
particularmente cara, aquela que leva ao entendimento de que para formular o conceito
de romance que pensa, Kundera percorre um caminho no qual vai tratando de categorias
romanescas distintas que aqui poder-se-ia denominar de: romance psicológico, romance
histórico e romance filosófico.
As reflexões que desenvolve em torno disso que poderiam ser entendidas como três
modalidades romanescas, se apresentam como forma de iluminar os pensamentos acerca
da categoria, que, somente em “A cortina”, irá denominar de romance que pensa. Até
então quando traz a expressão conceitual, o escritor não se utiliza desta nomenclatura.
Nos estudos anteriores, é notório que Kundera trata da ideia de um romance que pensa tal
como o conceitua em “A cortina”, mas até ali, ele elabora essa discussão por oposição.
Em grande parte das meditações de Kundera é possível compreender que a categoria
que entende como autônoma, aquela que se constrói em diálogo com a história estética
do Romance Moderno, comprometida com o conhecimento da existência humana, que se
134

opõe ao psicologismo das personagens, que nega a descrição factual da História no


interior da ficção e que condena o atrelamento das reflexões à correntes ou sistemas
filosóficos preexistentes é a que irá esteticamente perseguir enquanto romancista e será,
portanto, esta categoria romanesca que bem mais tarde denominará Romance que pensa.
Cabe ressaltar que, de modo geral, as reflexões kunderianas sobre arte do romance
moderno, sejam elas quais forem, passam necessariamente pela relação Literatura e
Filosofia e ao tecer reflexões sobre as três tipologias romanescas aqui nominadas –
romance psicológico, histórico ou filosófico – não será diferente. Contudo, esta relação
de maneira alguma quer retomar a velha dicotomia: Literatura é Filosofia? ou, Filosofia
é Literatura? Primeiro porque esta é uma contenda que não tem razão de existir e segundo
porque é muito fácil de ser resolvida, basta lembrar que diferentemente da literatura, a
filosofia está comprometida com a verdade, ela busca dar conta de uma verdade; mesmo
que não a encontre é essa sua busca, nesse sentido, aquilo que traz como verdade pode
ser refutado, questionado ou mesmo assimilado e partilhado71. Ao passo que aquilo que
a literatura narra como possibilidade de verdade permanece no campo da ambivalência,
sendo, portanto, impossível a qualquer um refutar; sobretudo, porque o que é dito no
espaço do romance literário, por mais real que nos pareça, atua no campo da ficção.
Tentar refutar ou mesmo assimilar como verdade o que, de um ponto de vista
estético literário, foi narrado é no mínimo risível. Assim, será brincando que autores como
Machado de Assis, por exemplo, risivelmente, jogam com a pretensão de verdade que o
leitor, por ingenuidade ou arrogância, busca em seus escritos. De um ponto de vista das
duas áreas, a contenda Literatura é ou não é Filosofia? ou vice-versa é tão risível quanto
permanecermos naquela que o jogo machadiano fez circular por quase um século: “Capitu
traiu ou não traiu Bentinho?”.

Romance psicológico

Em oposição ao romance psicológico, o qual toma como parte das produções do


romance realista, largamente adotado no século XIX, Kundera desenvolve um extenso
ensaio no livro “Os testamentos traídos” o qual se intitula “Sobre obras e aranhas”. Nele,

71
Esta proposição se construiu em diálogo com a fala do professor Dr. Evaldo Sampaio, proferida no dia
06/11/2018 durante a conferência Intitulada “Filosofia é Literatura? Literatura é Filosofia?” que teve lugar
no II Seminário Nacional de Epistemologia do Romance: o estético como espaço de entendimento do
humano.
135

em diálogo com os escritos de Hermann Broch, Robert Musil e Nietzsche, Kundera expõe
seu descontentamento com o romance que se debruça excessivamente sobre as
personagens descrevendo-as minuciosamente. Conforme o pensar kunderiano, ao escritor
desta categoria de romance nada escapa, nenhuma ação, nenhum gesto, nenhum detalhe
da personalidade ou da fisionomia das personagens deixa de ser descrita, pois “...uma vez
que os personagens devem parecer “vivos”, é preciso acrescentar o maior número de
informação possível a seu respeito(mesmo que elas sejam tudo menos surpreendentes)”(
1994, p.142).
Esse patrulhamento daquele que cria em relação às ações das suas personagens é
incômodo aos olhos do romancista por várias razões: ele retira do leitor a beleza da
descobertas e, na medida em que tudo descreve e a tudo responde, restringe os espaços
das perguntas; sobretudo, o desagrado evidenciado pelo ensaísta em relação ao romance
psicológico, se deve ao fato de que, ao centrar atenção máxima nas personagens, essa
tipologia romanesca negligencia a importância do tema. E para Kundera, as personagens
não importam enquanto seres correspondentes ao real, mas sim enquanto eus que, a partir
de uma condição existencial particular, experienciam as situações propostas pela
narrativa cujo desenrolar está centrada em um tema, por isso, as personagens são, por ele
tratadas, como “egos experimentais”. Em “O livro do riso e do esquecimento”, por
exemplo, embora totalmente dispares, as narrativas se constituem em um romance cujo
entrelaçamento das sete partes independentes se dá por meio dos temas da História e do
riso. É dessa insubordinação, liberdade adquirida pela reorientação da escrita que se volta
ao tema, que advém a simpatia demonstrada pela escrita literária de Hermann Broch e
Robert Musil. Os três volumes de “Os Sonâmbulos”, por exemplo, são interligados não
por ações lineares das personagens, nem por uma cronologia temporal, mas por um único
tema: a degradação dos valores. Musil, por sua vez, ainda que não totalmente avesso a
linearidade, interliga os sentidos de “O homem sem qualidades” por meio do tema da
comicidade e, à medida que prossegue, a narrativa se afasta do verossímil aproximando-
se do jogo como estratégia de narrar.
No entendimento de Kundera, se mesmo introduzindo o pensamento no romance,
os dois autores souberam libertar a literatura do exagero descritivo, ao propor um modo
de pensar distanciado dos sistemas “Nietzsche muda em profundidade a maneira de
filosofar: como definiu Hannah Arendt, o pensamento de Nietzsche é experimental.”(
1994, p. 158). A resistência de Nietzsche em transformar as ideias em dogmatismos
dentro de sistema de pensamento é semelhante à aversão de Kundera pelo excesso de
136

descrições sobre as personagens tal qual se observa no psicologismo praticado por parte
dos criadores do romance realista. Neste sentido, o que parece propor Kundera, não é que
o romancista passe a seguir o pensamento de nietzcheano, muito menos a ele se submeter,
mas é importante se atentar para sua maneira de pensar.
No ensaio em questão, já se percebe uma clara defesa em direção ao romance que
pensa, entretanto aqui Kundera não está preocupado em discutir se o romance é Filosofia
ou se é Literatura. Através das digressões sobre o trato das ideias praticada de um ponto
de vista estético pelos literatos e do ponto de vista filosófico pelo filósofo, o que deseja
Kundera é desvendar as maneiras pelas quais o romance deve pensar e estas maneiras
certamente se distanciam da pratica excessiva da descrição cujo resultado se aproxima
dos exageros explicativos contido nas narrativas filosóficas que, ao pensar por sistemas,
arriscam transformar as ideias em dogmas. Nesta primeira acepção não se tem um
conceito elaborado de romance que pensa, mas, por oposição ao romance psicológico, ou
ao que Kundera entende acerca desta categoria de romance, já é possível observar o que
efetivamente ele não é.

Romance histórico

Ao tratar da presença da História na narrativa romanesca, Kundera dirá que é


impossível ao romancista prescindir da História como elemento constitutivo do romance,
uma vez que não há como pensar a existência fora do espaço que a condiciona. Por isso,
tomando por referência o pensamento de Heidegger, dirá que,

O homem não se relaciona com o mundo como um sujeito com o objeto,


como o olho com o quadro; nem mesmo como um ator no cenário de
palco. O homem e o mundo estão ligados como o caramujo e sua
concha: o mundo faz parte do homem, ele é sua dimensão e, à medida
que o mundo muda, a existência (in-der-Welt-sein) muda também.
(KUNDERA, 1988, p. 36)

Embora ciente da importância de pensar a História enquanto elemento constitutivo


do romance, Kundera reafirma que não será permitido confundir duas coisas: o romance
literário com uma historiografia romanceada. No entendimento kunderiano, ao romance
literário interessa apenas examinar a dimensão histórica da existência, ele não está
interessado em ilustrar uma situação histórica de uma sociedade em um dado momento.
Enquanto o romance histórico busca traduzir um conhecimento não romanesco,
137

utilizando-se da linguagem romanesca, o romance preocupado em examinar a existência,


ou seja, o romance que pensa a condição do sujeito no mundo, a situação histórica só
interessa enquanto parte da vida do ego experimental, aquela capaz de trazer à luz algo
revelador sobre a existência humana. Conforme Kundera, o romancista não é um
historiador e não deve ser confundido com um, porque

se a história o fascina, é porque ela é como um projetor que gira em


torno da existência humana e lança uma luz sobre ela, sobre suas
possibilidades inesperadas, que em tempos tranquilos, quando a história
fica imóvel, não se realizam, permanecendo invisíveis e desconhecidas.
(KUNDERA, 2006, p. 67)

Tal como aconteceu em relação ao romance psicológico, ao tratar da História, o


escritor reforça mais uma vez a necessidade de não afastar a criação romanesca de sua
única razão de ser: o conhecimento da existência. O que move a criação romanesca não é
o atrelamento a outras disciplinas, mas sim um movimento do Ser que reivindica a
História como elemento estético imprescindível para a criação. Ao entrar para o romance,
as circunstâncias históricas se tornam elementos estéticos sem os quais a narrativa
perderia à credibilidade e potencialidades meditativas acerca da existência.
A metafísica do romance que pensa supõe um olhar às ontologias que se completam
pela presença da História, mas somente como espaço no qual os seres se constituem e
vivem cotidianamente suas experiências. Ao tomar a História sem pretensão de ilustrá-la
ou destituído do desejo de se posicionar sobre as situações descritas, tentado emitir ou
construir juízos de valor sobre os fatos descritos, o romancista tornará o espaço e os
movimentos da História capazes de iluminar as diversas possibilidades da condição
humana, pois tal como salienta Hannah Arendt, a forma como os sujeitos se condicionam
aos aspectos históricos não é a mesma, depende de algo que é do indivíduo, que é singular.
E estas partículas que não se sujeitam ao desejo homogeneizante, que Kundera acredita
ser tarefa do escritor tentar desvelar.

Romance filosófico

Conforme Jean-Yves Tadié (1990), o século XX tratou o romance moderno como


cenário do pensamento filosófico. A afirmativa de Tadié sugere a necessidade de
determo-nos neste ponto uma vez que, por meio dela, estaríamos tratando de categorias
romanescas distintas: o romance filosófico. Demonstrando desconforto em relação à
138

pratica literária que ganhou adeptos no século passado da qual, para muitos críticos, seria
ele próprio membro, com veemência e insistência, Kundera irá defender a hipótese de que
nem todos os escritores que optaram por fazer do espaço literário um lugar do pensamento
se alinharam à prática criadora, subordinada à correntes de ideias pré-existentes. Não
havendo aqui uma ação discursiva no sentido de hierarquizar uma categoria romanesca
em relação à outra, o que deseja Kundera é evidenciar que o pensamento é algo próprio
da criação, assim, ao mesmo tempo em que busca se afastar dessa dependência imposta à
narrativa literária que se constrói por meio do exercício da ruminação, procura
exaustivamente apontar para diferenças que regem a percepção estética em torno da
relação literatura e filosofia no âmbito do romance moderno.
“Adentrar a alma das coisas” é uma das reflexões constitutivas do livro “A cortina”
cujo teor nos permite afirmar que a noção conceitual de um romance que pensa formulada
por Kundera emerge sobretudo em razão da aproximação que a crítica teima em realizar
entre sua escrita literária e o existencialismo sartreano. Com firmeza quase ríspida em
resposta a tal entendimento, dirá que constitui

o erro dos erros: pensar que a relação entre a filosofia e a literatura se


dá num sentido único, em que os “profissionais da narrativa”, já que são
obrigados a ter ideias, não podem fazer mais que tomá-las emprestado
aos “profissionais do pensamento. (KUNDERA, 2006, p. 62)

Para Kundera, a transformação que desviou o romance da fascinação psicológica e


o reorientou para a análise existencial, aquela que busca esclarecer aspectos da condição
humana, é anterior à moda existencialista que tomou conta da Europa, e, conforme seu
entendimento, fora inspirada (no âmbito da literatura) não pelos filósofos, mas pela
própria lógica de evolução da arte do romance. (2006, p.63).
Isto que reafirma em “A cortina”, de uma forma ou de outra já poderia ser
compreendido como um fundamento do pensar estético de Kundera, uma vez que, em seu
livro anterior, a “Arte do romance”, retoma a trajetória do romance moderno expondo um
olhar particular sobre o romance europeu, tratando-o como uma herança depreciada de
Cervantes e ao mesmo tempo, buscando problematizar em que medida o romance
literário se constituiu como um lugar de exploração e conhecimento do Ser o qual, em
sua concepção, teria sido esquecido pela ciência e pela filosofia modernas. Após o ensaio
introdutório, seguem-se entrevistas intercaladas por ensaios nos quais o escritor expõe o
139

próprio processo de criação aliado ao entendimento acerca do romance moderno, bem


como discorre sobre a razão de ser deste gênero literário.
Do fio condutor das reflexões da coletânea de “A arte do romance”, subtrai-se que,
compreender o romance é compreender seu espírito, “o espírito da complexidade” em
contraposição aos alaridos das respostas simples que mais e mais nos cercam por todos
os lados, é buscar pelo espírito da continuidade, já que em cada obra estão contidas as
experiências anteriores do romance, é, sobretudo, compactuar com a obstinação de
Hermann Broch, que por repetidas vezes afirmou: “Descobrir o que o que somente um
romance pode descobrir é a única razão de ser do romance. O romance que não descobre
uma porção até então desconhecida da existência é imoral! O conhecimento é a única
moral do romance.” (1988, p.11).
O mesmo fio condutor destas reflexões será responsável por tecer nuanças que
fazem subtrair a noção de romance que pensa em contraposição à noção de romance
filosófico, cuja sistematização se dá pelo jogo entre Literatura e Filosofia. Caminhando
pelas teias reflexivas ou pelas narrativas literárias kunderianas, nos será permitido
depreender de imediato que, a relação entre conceitos filosóficos e o romance literário,
não é algo proibido, mas deverá ocorrer preferencialmente por meio de uma “dialógica”
– pensando aqui no uso bakhtiniano do termo -, na qual não haja pretensões de
subordinação.
Ao apontar para uma ideia de romance que pensa, o ensaísta gasta boa parte do
tempo discorrendo acerca da relação literatura e filosofia no âmbito da criação romanesca.
Assim como Nietszche quis libertar o pensamento dos sistemas, Kundera defende uma
necessidade de tratar a criação literária como um exercício do pensamento no qual
pressupõe racionalidades, sem entretanto silenciar as potencialidades do literário, pois no
âmbito da criação literária é preciso compreender que “aquele que pensa, não se esforça
para persuadir os outros a aceitar sua verdade” se assim o fizesse “ ele se acharia no
caminho de um sistema, no lamentável caminho do homem de convicções”,
diferentemente do pensamento experimental que deseja “inspirar outro pensamento, pôr
em movimento o pensar”, “a convicção é um pensamento que parou, que se imobilizou”.
E conforme nos sugere Kundera, o caminho do romance que pensa é o caminho de um
pensar experimental, aberto ao devir.
140

O romance que pensa enquanto lugar do metafísico e do epistêmico

Em um primeiro momento, poderíamos compreender o romance que pensa como


um lugar do conhecimento universal acerca da existência, um conhecimento prenhe de
uma “sabedoria”, tal como entendida por Aristóteles, quando no livro I de sua
“Metafísica” designa como sabedoria o conhecimento superior que segundo as
percepções do filósofo, ultrapassa os particularismos e os recortes efetuados por outras
ciências, buscando por um conhecimento universal das coisas.
O pensamento que se pretende no âmbito do estético romanesco é um pensamento
que parte de uma metafísica cujo desejo é o de compreender e explicar aspectos do
humano por meio do reconhecimento de sua totalidade. Tal qual a metafísica quer
explicar questões referentes ao Ser na relação plena deste com os outros seres, o romance
que assume o pensamento sem subterfúgios, tal como fez Broch, Musil ou Kafka, entre
outros, fornece possibilidades de desenvolver um pensamento que não esteja preso
somente ao plano físico, empírico, uma vez que, opera sim por meio da razão, mas uma
razão sensível. Tal movimento deixa ver que, embora não prescinda da sensação, a
aquisição da capacidade de explicar pressupõem intervenções sistemáticas e sintéticas
que, como disse Kant na “Crítica da razão pura”, passam pela experiência. Em nosso
entendimento esta experiência seria um primeiro passo a permitir ao sujeito leitor
ultrapassar os efeitos iniciais, para que então tenha condições de fruir o objeto estético a
ponto de, dentro dele, ser capaz de depreender conhecimentos acerca das ontologias
presentes na narrativa literária.
No ensaio intitulado “Literatura e metafísica”, ao tratar do que intitula “romance
metafísico”, Simone de Beauvoir, propõe uma reflexão acerca das descobertas do leitor
que no ato da leitura estabelece uma espécie de pacto com o autor, no qual nem ele (
leitor) tentará fazer do romance um tratado filosófico, nem o romance se apresentará por
meio de certezas pré-concebidas, nesse acordo “honestamente lido, honestamente escrito,
um romance metafísico provoca uma descoberta da existência de que nenhum outro modo
de expressão poderia fornecer o equivalente...” (1965, p.94). Embora a ideia de romance
metafísico apresentada pro Beauvoir possa destoar da ideia de romance que pensa, posto
que ela fala de um ponto de vista do existencialismo - de onde por negação, Kundera
desenvolve sua noção de romance que pensa -, creio que a aproximação apresenta pontos
semelhantes na medida em que tanto um quanto o outro, defende a autonomia do literário,
na medida em que pressupõem o texto literário como um lugar do exercício livre do
141

pensamento e na medida em que entendem o texto literário como espaço de


conhecimentos do Ser, portanto como um espaço no qual pode operar a epistemológico
bem como o metafísico.

Considerações Finais

Por apresentar uma elaboração estética que não deriva puramente da intuição ou da
inspiração, o romance que pensa cria condições para que possamos decompor suas
estruturas, construídas laboriosamente, por uma ação que pressupõe racionalidades,
efetuando escolhas estéticas cuidadosamente desenvolvidas. O romance nesta perspectiva
é uma engrenagem estética que faz produzir sentidos sobre a vida, permitindo uma ação
hermenêutica e epistemológica na qual será possível depreender conhecimentos fecundos
acerca das ontologias, um conhecimento que prevê uma relação com a universalidade
própria da condição humana. Pois se é verdade que a filosofia não soube pensar a vida do
homem tal qual nos diz Kundera, caberá ao romance pensar sua “metafísica concreta”,
mas não será qualquer tipo de romance; não será aquele obcecado pelas informações sobre
as personagens, nem aquele preocupado em fazer da narrativa um lugar falseado, a partir
do qual poderá ilustrar a História, nem aquele que se subordina às correntes e sistemas
filosóficos em busca de um verdade, ao romance que caberá o papel de pensar a
“metafísica concreta do homem” será o romance comprometido com o pensamento mas
não com a verdade, será em suma: o romance que pensa.

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12647-4.
143

“VOCÊ É SEU PRÓPRIO LAR”: A POESIA COMO MEIO DE


RESSIGNIFICAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS PARA MULHERES VÍTIMAS DE
VIOLÊNCIAS

Maxçuny Alves Neves da Silva (SEE – DF)72

RESUMO: O presente artigo visa a apresentar os resultados parciais do projeto “Você é seu
próprio lar” que vem sendo desenvolvido emuma escola pública de Taguatinga-DF com custeio
da FAPDF com vistas ao atendimento a mulheres vítimas de violências. As atividades propostas
buscam observar o poder da palavra poética como instrumento catártico de transformação. Dessa
forma, buscando aporte teórico em Freud, Wechsler, Novaes, Hussein e Bourdieu dentre outros,
o projeto intenta analisar o efeito das oficinas de leitura e escrita a fim de verificar os efeitos dessa
atividade poética no empoderamento dessas mulheres. Espera-se que tais atividades sejam
capazes de oferecer ferramentas de autoanálise e de concientização a respeito das relações de
poder socialmente contituídas em nossa sociedade e de que fazemos parte, muitas vezes, como
vítimas e como cúmplices.
Palavras-chave: Violência. Mulher. Vítima. Poesia. Escrita. Empoderamento.

A situação da violência contra a mulher no Brasil tem sido alvo de diversos estudos
e algumas ações governamentais ao longo da história. Embora se tenha tentado minimizar
o problema, nem a criação das delegacias especializadas, nem a Lei Maria da Penha
(2006) ou da Lei do Feminicídio (2015) se mostraram capazes de reduzir o número de
casos e/ou coibir a ação dos agressores.
Infelizmente esse continua sendo um grave problema social que afeta o Brasil e o
mundo, mesmo com todos os esforços empregados pela luta feminista em torno da
questão. Na verdade, a violência contra a mulher possui um grande alcance em seus
efeitos, pois causa dor física e psicológica à vítima, afetando também os filhos e a família
como um todo e tem se perpetuado de geração a geração a despeito dos avanços
alcançados pelos estudos a respeito do tema.
Pesquisas em todo o mundo apontam para uma alta incidência de casos de
violências contra a mulher nas mais diversas camadas sociais, problema que atinge a todas
as culturas e raças e que se torna mais visível com o advento da evolução tecnológica dos
meios de comunicação. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS),
um terço das mulheres que vivem nos países do continente americano são vítima da
violência.

72
Doutora e Mestre em Literatura pela UnB, professora efetiva da SEEDF, atuando na educação básica
(Ensino Médio).
144

Embora as pesquisas tenham se intensificado no Brasil, ainda não se pode afirmar


que os números correspondam à realidade, pois o problema é bem maior do que se tem
registro. Há inúmeros casos não denunciados e mesmo os casos de que se tem registro
apontam para o momento em que a violência atinge níveis insuportáveis a qual,
normalmente, foi antecedida por várias ocorrências não registradas.
Araújo, Martins & Santos (2004) em pesquisa realizada em uma cidade do interior
de São Paulo, analisou 3.627 Boletins de Ocorrência de uma Delegacia de Defesa da
Mulher, constatando a tendência encontrada em outras pesquisas realizadas em outras
regiões do país. De acordo com os registros, as mulheres mais atingidas pela violência
são as jovens, casadas e sem atividade remunerada (62% delas têm entre 21 e 40 anos e
57% são casadas). Embora o trabalho remunerado aumente potencialmente a margem de
poder de negociação da mulher dentro das relações familiares, nem sempre isso se
confirma, há casos em que as mulheres ganham mais que seus maridos e até casos em que
elas sustentam a casa, mas, ainda assim, continuam vítimas de relacionamentos abusivos.
A maioria dos casos ocorre dentro da família (60%) e o agressor mantém relação de
proximidade com a vítima (marido, companheiro ou namorado), sendo que 23% dos casos
são de relacionamentos findos (passados) e 46% em curso (atuais). A violência física é a
campeã de denúncias (58%) seguida pela violência psicológica (36%) e a sexual com 6%
dos Boletins de Ocorrência pesquisados, confirmando a hipótese de que as denúncias só
ocorrem (na maioria dos casos) quando a violência atinge níveis insuportáveis.
A ideologia de gênero é um dos principais fatores que levam as mulheres a
permanecerem em uma relação abusiva. Muitas delas internalizam a dominação
masculina como algo natural e não conseguem romper com a situação de violência e
opressão em que vivem.
Outros motivos que levam mulheres a permanecerem em relacionamentos abusivos
são: a dependência econômica e/ou emocional, a valorização da família, a idealização do
“felizes para sempre” na simbologia do casamento, a preocupação com os filhos, o
sentimento de perda, o medo da sensação de desamparo diante da necessidade de
enfrentar a vida sozinha, principalmente quando a mulher não conta com nenhuma rede
de apoio social e familiar.
São inúmeros os fatores que podem gerar essa violência, mas parece que todos eles
desembocam na reprodução das relações de poder em que se entrecruzam as categorias
de gênero, classe e etnia em uma sociedade patriarcal a qual outorga ao homem o direito
de dominação e controle sobre a mulher.
145

De acordo com Bourdieu (1999) o homem exerce uma “dominação simbólica”


sobre o tecido social como um todo (corpos, mentes, desejos, discursos e práticas
institucionais e sociais), naturalizando as desigualdades homem/mulher. De acordo com
esse teórico, essa dominação regula a organização concreta e simbólica de toda a vida
social. Devendo, atualmente, ser observadas as variações na forma como esse patriarcado
exerce seu poder e se legitima.
Essas violências afetam a mulher de forma bastante danosa, causando danos físicos
e/ou psicológicos (baixa autoestima, falta de credibilidade em seu potencial produtivo,
dente outros), podendo afetar até mesmo sua saúde mental. Em 1990 a Organização
Mundial de Saúde reconheceu que a violência contra a mulher é um problema de saúde
pública que requer atitudes mais eficazes em seu combate e prevenção.
A violência contra a mulher tem afetado diversas camadas sociais e deixa em
situação de maior vulnerabilidade aquelas vítimas que dependem financeiramente de seus
agressores. A maioria das mulheres vítimas de violência têm entre 21 e 40 anos e é
casada73, acredita-se, por esses dados, que grande parte delas faça parte de comunidades
escolares, pois podem ter filhos em idade escolar e se encontrarem diretamente ligadas
ao cotidiano da escola, seja participando das encontros e reuniões de pais e mestres, seja
levando seus filhos às aulas, seja por morar nas proximidades de uma unidade escolar ou
mesmo por estudar nessas unidades (ensino regular ou EJA - Educação de Jovens e
Adultos) ou mesmo como trabalhadoras de uma unidade escolar (na educação básica as
mulheres são maioria, sendo professoras ou em atividades auxiliares74).
Percebe-se que a escola pode ser um ambiente propício ao atendimento de mulheres
vítimas de violência, mas sem que isso se caracterize como um procedimento terapeutico.
Para tanto, a presente pesquisa busca caminhos educacionais de baixo custo, abrindo a
possibilidade da unidade escolar adotar a proposta como projeto, oferecendo um
atendimento que possa alcançar tanto as mães como as filhas em uma atividade que não
visa a conscientização direta, nem a denúncia e tampouco a exposição da situação vivida.
Essa proposta se faz necessária, pois toda mulher, em certa medida, é/foi/será vítima de
algum tipo de violência de gênero. No presente artigo serão apresentados os resultados
parciais do projeto.

73
De acordo com a pesquisa apresentada no item 1.5 Referencial teórico.
74
De acordo com o senso de 2009 – www.inep.gov.br
146

Sendo assim, acredita-se que a processo educacional possa ser relevante para buscar
saídas para o problema que afeta a vida escolar dessas crianças e adolescentes que se
encontram inseridos em ambientes familiares que passam por esse problema. Para muitas
dessas crianças e adolescentes a escola é, talvez, o único lugar seguro.
Nesse contexto, a educação pode ser vista como um caminho viável para se
alcançar as vítimas de violência. Com educação é possível ampliar o vocabulário socio-
produtivo e aumentar a capacidade de articulação do discurso, bem como a criticidade
sobre o discurso do outro, tornando instumento de libertação e, ao mesmo tempo,
ferramenta terapêutica.
De acordo com Xerri (2013) a aprendizagem da poesia tem importância terapêutica
sobre a saúde mental e as dificuldades e os conflitos emocionais, pois produzir poesia
trabalha diretamente com a criatividade que é muito importante no nível social,
incentivando o indivíduo a ser pioneiro e progredir na ciência, tecnologia, arte e saúde,
podendo ser importante fator na solução de problemas da vida real.
No processo educativo de leitura e produção de poesia exercita-se a criatividade de
forma intensa. Essa produção criativa está relacionada com a prevenção de problemas e
ajuda a desenvolver seu potencial que facilitará a emergência de suas forças internas na
resolução de problemas presentes e futuros. (Wechsler, 1985)
O texto poético é uma potência ativa que promove a reflexão sobre os problemas
da vida com questionamentos ante os valores existentes (Novaes, 1971).
Destarte, o ensino da leitura e escrita de poesia pode ser fator preponderante na
reconstrução da autoestima bem como na percepção dos problemas e na busca por
soluções, pois a poesia leva o leitor a refletir, a contemplar, a meditar e dar um maior
significado ao existir. (Hussein, 2008)
Em suas observações, Mazza (2012) percebeu que a redação de poesia foi útil para
melhorar a autoestima, a solução de problemas, a interação social e o comportamento pró-
social de jovens.
O grupo atendido é formado por 30 mulheres da comunidade escolar (mães, irmãs,
avós e amigas de alunas e algumas alunas) que se reunem semanalmente em encontros
com duração de 1 hora. Os encontros são gravados para que se possa analisar as
contribuições orais. Ao final do projeto serpa produzido um livro relatando a experiência
e apresentando os resultados analisados durante o processo, além de conter, no livro,
poemas produzidos pelas mulheres.
147

As oficinas veem sendo desenvolvidas em duas frentes, o núcleo de atendimento na


escola que possui encontros semanais e o polo do HSVP que possui oficinas quinzenais.
Uma das voluntárias (terapeuta ocupacional) fazia residência no HSVP e se ofereceu para
promover a ponte entre o projeto e o Hospital, onde seriam atendidas as mulheres internas
na instituição. Desde o primeiro encontro a atividade se mostrou como um grande desafio
que requereria de todo o grupo um certo jogo de cintura. Mas logo ficaram todos muito
envolvidos e encantados com a proposta. O projeto foi apresentado à direção da
instituição que aprovou e ofereceu amplo apoio institucional.
Primeira frente (escola) grupo formado por alunas, mães de alunos, amigas de
alunos e até avó de aluna já participou. Nos encontros são propostas leituras, discussões
e contribuições orais, em seguida passamos ao ato da escrita que tanto pode ocorrer na
oficina como pode ser uma proposta de atividade a ser desenvolvida durante a semana.
Há um desafio proposto a todo o grupo que é escrever um texto por dia, muitas mulheres
estão se habituando ao ato da escrita como uma atividade diária, elas ganharam um
caderno em que vão registrando as atividades e suas produções individuais, algumas
costumam compartilhar no grupo os seus textos.
As oficinas promovem a leitura literária com análise e interpretação, privilegiando
textos poéticos e com preferência pela autoria feminina. Os temas tratados pelos textos
poéticos serão diversificados e não voltados para a questão da violência, mas, na medida
do possível, que tratem de questões relativas à auteridade feminina. Ao longo das oficinas
são apresentadas propostas de escrita a partir de elementos estéticos verificados nos textos
lidos (recursos estilísticos como paralelismo sintático, uso de vocabulário de um mesmo
campo semântico, figuras de linguagem, dentre outros). Com base nessas oficinas são
observados os depoimentos e as produções poéticas das voluntárias e comvistas a
analisar,de forma descritiva, os possíveis resultados que integrarão a produção escrita,
preservando o anonimato das voluntárias.
Exemplo de uma das oficinas: Leitura dramática de um poema, dinâmica de leitura
dramática. Para a leitura dramática por parte das voluntárias deve-se fazer um execício
cênico que exploração o valor da palavra com entonação, ênfase, pausas, silêncios e
demais recursos. A partir da atividade proposta serão analisadas as marcas significativas
do poema e que devem ser lidas com maior ênfase, levando as participante a pensarem
mais no campo semântico propondo a reescritura do texto proposto da oficina anterior
com vistas a fortalecer o campo semântico de sua produção. Essa produção reescrita
deverá ser entregue para revisão. No processo de análise desses textos serão observadas
148

as diversidades vocabulares empregadas com vistas a direcionar a escolha de textos que


possibilitem a ampliação desse conhecimento.
Após a última oficina foram colhidos depoimentos individuais junto às
participantes a respeito do crescimento verificado por elas em suas próprias produções e
ou atitudes. Vejamos algumas dessas falas:
A – “Eu perdi o medo de falar o que penso.”
B - “Agora eu consigo me olhar no espelho”
C – “Agora eu consigo usar roupa vermelha para agradar a mim mesma”
D – “Agora eu consigo andar de cabeça erguida, já não tento me esconder por entre os
ombros”
E – “fico desesperada quando acaba o dia e eu deito e lembro que não escrevi nada”
F – “Escrever virou um hábito e por ele eu começo a me conhecer”
Dentre muitos outros depoimentos lindos.
Na segunda frente do projeto o grupo leva poesia a mulheres internas em um
hospital psiquiátrico de Taguatinga (HSVP). Os encontros são quinzenais, mais
dinâmicos e com mais leitura de poemas. É difícil prender a atenção das internas, mas a
equipe do hospital tem se mostrado surpresa do quanto a poesia é capaz de mobilizar os
sentidos dessas mulheres que ficam atentas a cada palavra. Nessa oficina se faz
inicialmente um sarau poético com posterior discussão e proposta de produção.
Sugerimos que cada uma das mulheres diga algo a respeito ou que complete trechos do
poema adequando-o à sua realidade. No último encontro o poema escolhido para
atividade foi “Com licença poética” de Adélia Prado e posteriormente eles completariam
as frases: Não sou tão... Que não possa...
A atividade rendeu novas propostas de produção por parte das próprias internas e
elas completaram com palavras de grande peso simbólico. Vejamos alguns resultados:
“Não sou tão feia que não possa me tornar bonita”; “Não sou tão insensível que não possa
aprender a amar”; “Não sou tão triste que não possa ser alegre”; dentre outras construções.
Assim, o projeto prossegue e já apresenta resultados significativos que nos levam a
desejar uma continuidade do projeto. Mas os verdadeiros resultados devem vir na postura
dessas mulheres diante dos desafios da vida.
149

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151

CAMINHOS POSSÍVEIS ENTRE O CORPO E A PALAVRA:


APONTAMENTOS METAFICCIONAIS EM UMA/DUAS DE ELIANE BRUM

Nathália Coelho da Silva (UnB)75

Resumo: Corpo e palavra podem ser consideradas vias de rompimentos de não-ditos no processo
de transcendência de si e transgressão da sociedade? Refletir sobre esta pergunta é o objetivo
deste artigo. Com um olhar filosófico sustentado pela teoria complexa da Epistemologia do
Romance, pretende-se observar aspectos metaficcionais no romance Uma/Duas (2011) de Eliane
Brum que possibilitam a análise desse conflito humano problematizado na questão acima. O
trabalho analisará como as vozes narrativas de Laura – personagem mulher – abrem espaço para
o pensamento acerca da gestação – corpórea – da palavra ficcional e o modo como tal gesto
estético da escritora (no romance) pode também ser considerado como uma ressignificação crítica
de si mesmo, da sua história e do seu contexto social. Neste sentido, a metaficção torna-se base
para a produção de conhecimento do ser.
Palavras-chave: Corpo. Palavra. Romance. Metaficção. Não-ditos. Filosofia. Ser humano.

Introdução

Desenvolvendo e teorizando.

Durante o processo de existência humana, há uma busca – nem sempre consciente


– por sentidos da vida. Tais significações parecem perpassar duas instâncias: a primeira
é a privada, individual, aquela cuja jornada é solitária e ocorre para dentro de si. A
segunda, pública, diz respeito aos seus papeis sociais, ao seu lugar na sociedade, na
identificação de pares, na legitimação de si mesmo no sistema. Ambos os movimentos só
existem porque há um corpo físico no mundo que vive, há uma linguagem capaz de
construir sentidos para esse corpo.
É válido ressaltar, contudo, que tal entendimento descrito acima ocorre de modos
distintos e bastante contraditório durante o processo histórico da humanidade. No entanto,
acaba desembocando no contemporâneo de forma difusa, com ares de reivindicação –
por meio da arte e de diferentes meios – pela pluralidade e fluidez de ser, em detrimento
e com a missão de quebrar a consciência fechada, totalizante e universal já enraizada nos
processos humanos e sociais, por vezes violentos, excludentes, promovedores de relações
distópicas de poder e profundo silenciamento do diferente.

75
Doutoranda em Literatura pelo Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade de Brasília
(UnB). Membro do grupo de pesquisa Epistemologia do Romance (CNPq).
152

Em Nietzsche e o corpo, o teórico Miguel Angel de Barranechea afirma que a noção


nietzschiana do corpo como “fio condutor” para a compreensão do homem permite uma
“reinterpretação radical” de várias questões como a ética, a estética, política bem como
de diversos problemas filosóficos. Nesse sentido, diz ainda que, para Nietzsche, “a
filosofia pode ter sido ‘uma interpretação do corpo e uma má compreensão do corpo’”
(2017, p. 9). Tanto para teórico quanto filósofo, o corpo é um meio pelo qual se pode
compreender o mundo a partir de perspectivas, por meio de “uma avaliação singular dos
instintos” e que não se fecha em intepretações, abrindo o homem às infinitas
possibilidades.
Em Identidade cultural da pós-modernidade, o sociólogo Stuart Hall parece
dialogar com esse pensamento ao afirmar que “as antigas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo emergir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como sujeito unificado” (2006, p. 07).
Para Hall

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes


direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuadamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade
unificada desde o nascimento até a morte é porque construímos uma
cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do eu.
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia. (HALL, 2006, p. 13)

Nesse sentido, corpo e palavra podem ser consideradas vias de rompimentos de


não-ditos no processo de transcendência de si e transgressão da sociedade? Como ambos
podem dialogar nessa jornada de descoberta das possibilidades do mundo de dentro e
fora? Sobretudo as que foram ocultadas no caminho histórico? Esta é a pergunta que se
tentará perseguir neste artigo, por meio da análise de vozes que revelam aspectos
metaficcionais no romance Uma Duas (2011), da jornalista e escritora Eliane Brum.
A arte literária, aqui, configura-se como um ambiente legitimado de produção de
conhecimento acerca da condição humana e eleva-se ao patamar da pesquisa por meio
do olhar filosófico para com a obra. Faz-se necessário alguns apontamentos para traçar
previamente o caminho metodológico do trabalho. No artigo Epistemologia do Romance:
uma proposta metodológica possível para a análise do romance literário (2015), Maria
Veralice Barroso e Wilton Barroso explicam que a obra de arte é fruto não só da
sensibilidade do artista, mas também do seu trabalho, ou seja, é um elemento da
153

racionalidade. Os autores se baseiam nos estudos hegelianos acerca da estética para


solidificar tal afirmação.
Pela pesquisa teórica da Epistemologia do Romance, ainda é possível dizer que as
reflexões presentes neste artigo partem de uma ideia de desmonte do texto, com o intuito
de buscar suas regularidades, seu fundamento a partir da pergunta kantiana O que eu
posso saber?, tendo em mente as variáveis que perpassam as experiências de mundo
oriundas tanto do autor romanesco quanto do pesquisador, mas que podem ser conduzidas
e evidenciadas quanto postas no jogo de leitura76 da narrativa. Assim, a proposta
metodológica se utiliza de três disciplinas específicas que auxiliam nessa empreitada:
Epistemologia, Estética, Hermenêutica; todas trabalhadas de forma a se esgarçar suas
fronteiras de saber.
É fato que se dispõe de um espaço curto para reflexão aprofundada neste trabalho,
por isso é proposto um recorte a aspectos narrativos que consolidam – nas percepções
da pesquisadora – a metaficção no romance77. Vale lembrar ainda que não se busca
respostas, mas possibilidades de pensamento. Por isso também é importante dizer, neste
contexto, que os estudos teóricos da Epistemologia do Romance não se pretendem a um
fechamento analítico de obra nenhuma, mas compreende que narrativas ficcionais –
sobretudo às que nascem com Dom Quixote de Cervantes78 – abrem-se à impossibilidade
de uma única verdade absoluta acerca do humano, mas se constroem e emergem em
significados – assim como o contemporâneo – ao passo de cada interação com os leitores.
Deste modo, a leitura se propõe para além do efeito estético, com o intuito de
ruminar como determinada forma/conteúdo estético pode tocar e refletir, por meio da
constituição da estória, questões inerentes ao presente, ao contexto histórico cuja a obra

76
Na Epistemologia do Romance, os pesquisadores usam o termo serio ludere para identificar o movimento
proposto para o jogo de leitura. Da tradução do latim, “brincadeira séria”, o termo foi criado pelo líder do
grupo Epistemologia do Romance, Wilton Barroso Filho, e apareceu pela primeira vez no artigo Elementos
para uma Epistemologia do Romance (2003), para designar o gesto epistemológico do próprio sujeito
investigativo cuja missão é “procurar passar para além do texto, perguntando-se o que lhe é possível saber
do objeto/texto/conjunto de textos/obras”.
77
Este trabalho é fruto de uma pesquisa em andamento de doutorado da autora, no Programa de Pós-
graduação em Literatura da Universidade de Brasília. No entanto, vale dizer ainda que o tema também foi
trabalhado inicialmente na dissertação de mestrado, defendida em outubro de 2017. COELHO, Nathália.
Estética dos Contrários: a busca pela gênese de Uma/Duas, de Eliane Brum. (2017). Disponível em:
http://repositorio.unb.br/handle/10482/31274
78
Em a Arte do romance (2009), Milan Kundera diz acreditar que o fundador dos tempos modernos não é
apenas Descartes, mas também Cervantes. “Quero dizer com isso que se é verdade que a filosofia e as
ciências esqueceram o ser do homem, parece mais evidente ainda que com Cervantes se formou uma grande
arte europeia que é justamente a exploração desse ser esquecido.” (2009, p. 12)
154

foi escrita, à própria existência (que engloba tanto autor quanto pesquisador). Ora, munido
deste espírito, estas linhas se adentram no objetivo do artigo descrito acima.

1. Apontamentos acerca da metaficção e sobre o corpo

O romance conta a história da mãe Maria Lúcia e da filha Laura que vivem uma
relação conflituosa de amor e ódio. Com o intuito de se livrar da sensação de que seu
corpo é apenas uma extensão da mãe, Laura começa a escrever um livro dentro do livro,
desdobrando assim, sua própria voz – iniciada em primeira pessoa e quando na ficção
dentro da ficção passa para terceira pessoa, descolada de si mesmo.
É neste movimento, entre a ficção e a realidade na narrativa, dando luz às
palavras que literalmente saem do seu corpo, como descrito, é que a personagem
consegue levantar reflexões acerca de diversos aspectos da sociedade, tais como relações
de poder e silenciamentos impostos às mulheres, violências institucionalizadas ao corpo,
fomento à submissão feminina e passa – no processo de escrita e ao mesmo tempo de
transgressão/transcendência de si – a reiterar o papel da mulher enquanto senhora dona
de si, do seu próprio corpo, das suas ações, das suas escolhas, da sua voz.
Em Universo Concentrado: narração e reflexão em “Campo geral”, disponível
no livro Entre Filosofia e Literatura: recados do dito e do não dito (2015), Franklin
Leopoldo Silva afirma que “a instância narradora se faz reflexiva para que o
desapercebido, oculto nos hábitos da vida repetitiva, se manifeste como se viesse à luz
pela primeira vez, com tudo que há de temível e de inquietante nas aparições inesperadas”
(2015, p. 09).
O autor acredita que um escritor/empreendedor da narração acaba promovendo
um desdobramento reflexivo natural do próprio exercício da escrita, “irradiando
significação e reordenando a realidade a partir de si.

a luz que revela não é nem objetiva ou subjetiva; não é natureza nem
psique, mas atua quando as duas forças entram em comunhão por via
da unidade solar que ilumina todas as coisas e cada uma delas, situando
assim o sujeito diante de si e do mundo das suas interrogações. (SILVA,
2015, p. 10)

Ao se colocar no caminho da narrativa ficcional, Laura parece promover um


pensamento acerca da condição feminina de existência, que passa pelo domínio do
próprio corpo e da sua natureza humana. Reivindica também a ocupação de um lugar que
155

é seu, próprio e deve ser respeitado, num processo de se virar literalmente do avesso para
compreender seus próprios terrenos e os que habita. Desta maneira, a característica da
personagem de narrar e refletir parece nos encaminhar para um lugar de conhecimento
que foi possível pelo fato de que a autora escolheu retratar em seu romance o nascimento
de uma própria escritora e do seu processo ficcional se formando, das entranhas, com
todas as vísceras e sangue envolvidos no processo, nada romântico e idealizado. Ou seja,
por ser um romance retratando como se faz um romance, há o entendimento do uso da
metaficção.
Em Poética do Pós-modernismo: história, teoria e ficção (1991), Linda Hutcheon
explica que a metaficção historiográfica pode ser conceituada por “romances famosos e
populares que, ao mesmo tempo, são intensamente auto reflexivos e mesmo assim, de
maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos.”
(HUTCHEON, 1991, p. 21). Não é esta definição fechada de Hutcheon que interessa aos
apontamentos em Uma/Duas, mas o modo como a teórica chegou à sua formulação com
base em suas observações da problematização da história e do sujeito.
Assim como o teórico Wladimir Krysinski, em Dialética da transgressão (2007),
diz que a “transgressão é a própria evolução criadora onde a literatura ocupa espaço tão
importante”, Hutcheon também acredita que a arte é campo de conhecimento no qual tem
a capacidade e deve, na pós-modernidade, “fazer-se questionar de dentro”, “deixando
visíveis suas contradições entre sua auto-reflexividade e sua fundamentação histórica”
(HUTCHEON, 1991, p. 15). A transgressão ocorre num ambiente pós-moderno propício
para a contradição, “que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios conceitos que
desafia” (1991, p. 19).
Hutcheon diz ainda que a habitual separação entre arte e vida já não é mais válida.
“A arte contraditória do pós-modernismo ainda estabelece essa ordem, mas depois a
utiliza para desmistificar nossos processos cotidianos de estruturação do caos, de
concessão ou atribuição de significado” (D’HAEN 1986 apud HUTCHEON, 1991, p.
24). Ou seja, a arte usa os padrões sociais pré-estabelecidos para transgredi-los em sua
essência, “mostrando que a realidade social é estruturada por discursos (no plural)”
(HUTCHEON, 1991, p. 24).
Em Uma Duas, quando Laura começa a escrever uma ficção dentro da ficção, ela
também muda a perspectiva do narrador que passa da primeira para a terceira pessoa,
marcado graficamente no livro por diferentes tipologias de fonte. Essa travessia começa
156

logo no primeiro capítulo e a história passa a se desenrolar neste entre lugar, entre
“realidade” e “ficção” na própria ficção.
É nesse exercício da escrita, ocorrido durante todo o romance, que Laura promove
reflexões em sua instância privada, de transcendência de si e na esfera pública, de
transgressão da sociedade. Enquanto fala do seu “eu”, abre e revela memórias, conflitos
e traumas internos para o leitor e as dificuldades inerentes ao escrever, que acaba
transformando-a e ressignificando-a enquanto sujeito. Ao falar por meio da voz do seu
narrador, revela como as relações sociais são construídas, como se pode manipular o
discurso em nome do poder, como há violência e repressão institucionalizada na vida
cotidiana dos seres humanos e promovida.
Ao citar a filósofa Julia Kristeva, Hutcheon lembra que a “escrita pode ser
encarada como experiência dos limites, limites da linguagem, da subjetividade e da
identidade sexual.” (1991, p. 25) E estar em limites, como Uma Duas parece revelar,
ultrapassa a esfera do discurso. O movimento de escrever - da realidade para a ficção e
da ficção para a realidade - tem um meio pelo qual se materializa, vem à tona e imbrica o
sujeito ao seu processo criativo como uma mãe a um filho, ou uma filha, neste caso. Esse
meio do qual se fala é o corpo.
As palavras de Laura não surgem limpas e tampouco vêm do nada. Elas se
inscrevem, assim como as da sua própria mãe Maria Lúcia (que também aparece como
uma terceira voz no romance contando sua versão dos fatos por meio de escrita de cartas)
primeiro em si mesmas, nas marcas dos seus corpos, nos cortes que promovem, na
inconsciência ou consciência de que são seres viventes, meros espectadores ou
protagonistas de suas próprias vidas.
Em Corpo: identidades, memórias e subjetividades (2009), as estudiosas Mônica
Pimenta Velloso, Joelle Rouchou e Cláudia de Oliveira dizem que “durante muito tempo,
predominou a ideia de um corpo, em grande parte controlado, disciplinado e subjugado
pela teia dos “podres poderes”. Restava aos estudiosos a árdua tarefa de desvendar essa
rede, tentando restituir uma suposta liberdade ao corpo-objeto” (2009, p. 15). Este parece
ser o movimento de Laura e Maria Lúcia em Uma Duas. Ambas, do modo como
conseguiram e a vida pôde proporcionar, tentam desvendar a existência através da busca
por essa liberdade e independência de seus corpos, numa viagem pela subjetividade, na
revisitação de memórias e identidades que começa no corpo e acaba por se desembocar
na arte literária.
157

Maria Luisa Luz Tavora, em seu artigo Das formas e cores – Fayga Ostrower –
do corpo operante publicado no livro acima citado diz, sobre a obra da artista polonesa,
que o “corpo integra-se aos procedimentos artísticos, chegando na contemporaneidade a
se revelar como matéria prima da obra. (...) diversos são os espaços de negociação,
múltiplos os lugares de enunciações” (2009, p. 155). Parece haver um diálogo nestes
apontamentos no que tange na escolha estética de Eliane Brum ao abrir suas personagens
para experiências corporais, que, por sua vez, servem como estrada para o desenrolar da
ficção. Ademais, é por meio deste debate que a autora eleva a discussão sobre a dignidade
de vida e morte na sociedade, de modo a abrir as significações de ambas as instâncias,
desfazendo amarras, evidenciando o que estava oculto, reiterando a ideia de que o sujeito
do hoje é essa fragmentação que nunca completa sua história.
Vale lembrar o que Guacira Lopes Louro escreveu em Corpos estranhos: ensaio
sobre sexualidade e teoria queer (2018):

Na pós-modernidade, parece necessário pensar não só em processos


mais confusos, difusos e plurais, mas especialmente, supor que o sujeito
que viaja é, ele próprio, dividido, fragmentado e cambiante. É possível
pensar que esse sujeito também se lança numa viagem, ao longo da sua
vida, na qual o que importa é andar, e não chegar. Não há lugar de
chegar, não há destino pré-fixado, o que interessa é o movimento e as
mudanças que se dão ao longo do trajeto. (LOURO, 2018, p. 13)

Pensando no movimento da palavra que se materializa escrita após ter


percorrido corpos, o artigo se encaminha para um mergulho na narrativa Uma Duas, de
modo que se possa refletir sobre essa jornada em ambas as personagens, carregando, em
mente, as considerações até aqui feitas.

2. Mergulho na narrativa Uma Duas

Como já foi dito, de um lado, o romance de Brum revela duas narradoras em


primeira pessoa que promovem, a partir de suas próprias experiências, um olhar para
dentro de si, que ocorre em meio à confusão de relação afetiva de ambas e inevitavelmente
perpassa pelas marcas de seus corpos. As descrições que se seguem abaixo têm o intuito
de compreender como um profundo silenciamento de vozes ao longo de uma história
parece culminar no desengasgo por meio de palavras escritas, por ambas personagens,
sobretudo por Laura.
158

Maria Lúcia é uma mulher que nasceu de mãe morta no parto, criada por um pai
militar que promovia um distanciamento de afeto dos dois, mas ao mesmo tempo a
violentava pela palavra quando a obrigava a escrever cartas para suas amantes. “Ao ler
o significado de ósculo, lembrei da cena. Beijo. Então era aquela coisa repugnante que
meu pai queria fazer com a mulher da carta? Na verdade, no colo da mulher da carta.
Senti um líquido quente escorrer entre as minhas pernas e soube que tinha me urinado”
(BRUM, 2011, p. 85).
Aliás, esse era o seu único contato com a palavra de Maria Lúcia, escondida num
profundo silenciamento das emoções. Quando o pai morre, num súbito infarto, Maria
Lúcia, a jovem muda e educada em casa, é coagida pelo porteiro do prédio a ser sua
esposa. O “homenzinho de pele branca, molenga e cinza” chega de mansinho dizendo que
vai cuidar de Maria Lúcia como o seu próprio pai, até que a estupra e a faz sua mulher.
Seu destino é esse. Presa por ele e ao mesmo dependente da sua presença.

Ele tocava o meu corpo com cuidado, quase com temor. E foi tocando
e tocando em todos os lugares onde meu pai nunca tocou. Eu não sabia
o que ele fazia, mas sabia que ele não devia fazer. Não conseguia me
mexer. Talvez nem quisesse. Eu nem mesmo estava ali. Mas estava de
algum modo porque comecei a gostar e a odiar aquele toque. Era a
primeira vez que alguém me tocava. E era bom e era ruim. (...) Eu tive
nojo dele ao ver aquele corpo branco e mole tão diferente do corpo do
meu pai. Mas continuei parada ali até mesmo quando ele abriu as
minhas pernas, e eu senti uma dor tão grande que pensei que tinha
acordado todos os vizinhos com o meu grito. Mas, como tudo em mim,
foi um grito de silêncio, porque ninguém apareceu. (BRUM, 2011, p.
112)

Vai crescendo, sem compreender a si mesmo, seu próprio corpo em transformação,


o seu lugar de mulher, de humano. Num determinado momento da sua carta afirma
“Peido, por exemplo, é uma palavra difícil pra mim. Peido, peido, peido. Pronto,
também estou me libertando” (BRUM, 2011, p. 71).
Inclusive quando tem a experiência da gravidez, sente que há um monstro habitando
seu próprio corpo. Nascem quatro bebês homens, e ela, com medo, com depressão, sem
saber como lidar com o fato de terem um pênis, os mata afogados, todos no vaso. Até que
fica grávida de Laura, a primeira menina. Quando decide afogá-la, Laura não chora,
somente olha Maria Lúcia em seus olhos e a mãe salva a menina, que cresce nesse
ambiente hostil entre o pai e a mãe, sem compreender a versão dos fatos da mãe. Quando
Maria Lúcia também decide escrever, no mesmo momento em que vê a filha escrevendo,
159

diz: “É para os seus leitores que escrevo. Mas a decisão de publicar também a minha
versão é sua. Será sempre sua. Eu não deixarei que você coloque mais uma violência na
minha conta. Dessa vez, vai assumir. Vai ter de me matar ou não na sua narrativa”
(BRUM, 2011, p. 71).
Laura vira jornalista e parece encontrar na palavra uma maneira de fugir de seus
conflitos de não conseguir sentir-se uma mulher independente da mãe. Durante a infância,
tem problemas de queda de cabelo, de fala. Com medo que o pai abuse dela também,
Maria Lúcia coloca a filha para dormir consigo todas as noites dando o peito para mamar.
A situação só cessa quando Laura conta para as professoras que observam a cena como
uma possibilidade de abuso e vão conversar com a mãe. Laura também tenta dar fim ao
seu próprio corpo. E é aí que adquire o hábito de cortar a si mesmo. Diz “as paredes de
mim me sufocam” (BRUM, 2011, p. 71) ou depois “Eu corto corto corto e ainda não sei
que existo” (BRUM, 2011, p. 15)
Até que, já na vida adulta, morando separadas, Laura é acionada por vizinhos da
mãe que a encontram apodrecendo no apartamento. E acaba a levando para morar consigo
novamente. Numa dessas noites cuja a mãe fica sem parar gritando o seu nome e
arranhando a porta do quarto, Laura para de se cortar para começar – de súbito – a
escrever, uma história dentro da própria história.

Quando digito a primeira palavra o sangue ainda mancha os dentes da


boca do meu braço. Das bocas todas do meu braço. Depois da primeira
palavra não me corto mais. Eu agora sou ficção. Como ficção eu posso
existir. Esta é a história. E foi assim que se passou. Pelo menos para
mim. (BRUM, 2011, p. 10)

É aqui que nasce o ambiente metaficcional de Uma/Duas, com a criação de uma


terceira narradora pela personagem Laura – Laura que fala para fora de si (ao mesmo
tempo que dialoga consigo) e que tenha emergido de suas profundezas empunhando a
palavra que dá corpo a si mesma longe do sofrimento do real, próximo de uma ideia idílica
de liberdade do corpo da mãe. Um lugar cujo o reinado seja seu, a independência seja sua,
que possa renascer. No entanto, esse renascimento não é romântico, assim como também
o processo de escrita não é floreado como se pinta.

Tinham me contado que os escritores eram uma espécie de deuses. Eles


criavam um mundo em que podiam viver e escapavam deste pela porta
dos fundos. Me preparei a vida inteira para ser deus. E só o que faço
agora é desinventar a mim mesma. Acho que é isso. A realidade é uma
160

ficção. E ao escrever eu vou quebrando essa criatura esculpida com


amor e desespero. É o contrário. É preciso destruir a forma humana
que está ali para alcançar a pedra. (BRUM, 2011, p. 69)

Parir dói. Escrever também. Parir e escrever são atos de auto violência e
transgressão. Parir ressignifica a história da mulher (dizem as mães), também a abre para
uma nova condição de vida. Assim como também a escrita de um romance. Ambos os
movimentos são viscerais. Tem cor vermelho sangue. “Sempre tive medo de escrever. Da
hora de tornar meu sangue símbolo do meu sangue”, diz Laura. (BRUM, 2011, p. 16).
A personagem Laura vive esse movimento, de gestar um texto de palavras
engasgadas na garganta durante anos à fio, e promove um parto em si mesma de palavras
escritas e ficcionais, mas que não deixam de dialogar com a sua própria história, com a
sua experiência, com seus conflitos. Ao contrário, potencializa-os quando postos em
reflexão. Neste sentido, parece problematizar, em si mesmo, o desenvolvimento de uma
narrativa ficcional, bem como os conflitos de uma escritora hipotética, no caso Laura. E
acaba, nesse sentido, pensando questões inerentes ao próprio gênero romanesco e ao
sujeito – de forma imbricada – por dentro, num entre lugar que perpassa a ficção e a
realidade, como mencionado anteriormente.
Não há, portanto, o que nos parece, uma maneira de dissociar a palavra do corpo.
Muito menos as palavras de nossas dores, marcas, traumas. No entanto, parece possível,
como revela Uma/Duas, abrir espaço – mesmo que doa – para uma nova reconfiguração
de vida, para uma reflexão sobre a sociedade, para a transgressão das relações de poder,
dos maqueamento impostos e que nos “auto impusemos” em nome da manutenção da
ordem, do silenciamento de conflitos, em nome de outros, em nome da vergonha, da “boa
moral”, dos “bons costumes”, das relações desiguais.
A reivindicação do corpo e da palavra (da sua voz) é a tomada das rédeas, do
controle de si mesmo até mesmo na decisão extrema de pôr fim em si mesmo. Maria
Lúcia, já velha, descobre que tem um câncer bastante agressivo e o tratamento, também
agressivo, ainda que tenha poucas chances de cura, promoverá uma vida, em sua opinião,
indigna e permeada de limitações. Por isso decide que não quer mais viver e pede que a
filha a mate, não mais no romance dentro do romance, mas na vida real. Laura faz
isso. E Maria Lúcia morre, após deixar seus escritos para a filha. Não se sabe o que Laura
fez com as palavras da mãe. Mas no fim, acaba com a reflexão:
161

Escrever ficção é como emprestar o meu corpo para mim mesma.


Escrevi para poder matar a minha mãe. Essa possibilidade única que a
literatura dá. E talvez para amá-la. (...) Descubro que escrevi sobre a
impossibilidade de literatura. O fracasso previamente assumido em
tentar transformar vida em palavra. O que mais importa é o que não
pode ser escrito, o que grita sem corpo e sem voz entre as linhas. O para
sempre indizível. É melhor assim. Que seja assim. (BRUM, 2011, p.
175 grifo nosso)

Conclusão

Houve a tentativa breve, neste artigo, de correlacionar o nascimento de palavras


escritas na ficção com a experiência corpórea de seus autores a partir dos apontamentos
reflexivos de Uma Duas, que trabalha a metaficção em sua narrativa. A pergunta: corpo
e palavra podem ser consideradas vias de rompimentos de não-ditos no processo de
transcendência de si e transgressão da sociedade? permanece em aberto para que os
aspectos teóricos e literários abordados neste trabalho possam ressoar e ruminar os
pensamentos do leitor que se envereda por estas linhas.
Para finalizar, entretanto, parece apropriado reafirmar que o romance Uma Duas de
Eliane Brum é um prato cheio para um debruçar filosófico sobre a própria condição
humana de encarceramento a discursos já engendrados e que, ao cair no contemporâneo
aparecem obsoletos e ao mesmo tempo contraditórios em si mesmo, por isso, a
necessidade de uma reflexão acerca de limites e das possibilidades de se ver livre; melhor
dizendo, enxergar-se de outras maneiras, encarando conflitos e não os escondendo,
quebrando padrões ou pluralizando-os, sendo voz ao invés de silenciamento,
desestabilizando antigos poderes.
Não obstante, assim como a própria Laura diz no fim de sua escritura que acabou
escrevendo sobre a impossibilidade da Literatura, é necessária coragem para ainda assim
compreender até onde o sujeito pode ir e até onde ele quer ir nesse processo de
transgressão de si. Portanto este artigo termina com uma última citação de Uma Duas, na
qual Laura passa por uma sessão de massagem e vai, aos poucos descobrindo seu próprio
corpo, mas vai embora antes do fim porque tem o compromisso de cessar os movimentos
do corpo da mãe. O questionamento se transforma: até onde corpo e palavra podem ser
vias para transgressão de si e transcendência da sociedade?

Confie em mim, você vai gostar. Eu não confio (...) Eu não me importo
de ser violentada, desde que possa ficar deitada sentindo o cheiro de
hortelã. É tão boa a sensação das mãos dele sobre mim. Seus dedos
162

seguem a teia intrincada de pequenas cicatrizes do meu corpo sem que


ele nada pergunte. (...) Ele dedilha minhas marcas e quase posso ouvir
a música. Lembro de uma história que li. Uma menina chinesa vivia
sozinha numa cama de hospital. Um dia uma mosca bate as asas no seu
rosto. Era o primeiro carinho que a menina recebia em toda uma vida.
Daquele dia em diante as asas da mosca sobre sua face a acariciavam a
cada manhã numa felicidade esperada. A menina foi curada pelas asas
da mosca. Mas acho que invento o final. Na história a mosca foi
esmagada, e a menina morreu. Não importa. Eu posso morrer ali. E acho
que estaria quase feliz. Sinto, mais do que ouço, um ruído na minha
espinha. Um clec. E desando a chorar. Estou me liquefazendo, digo a
ele. E ele diz. Está tudo bem. E está. Choro sem correnteza agora, um
riacho manso entre pedras redondas. Penso que choro pela extensão de
uma existência. Mas talvez seja só impressão. Enquanto as mãos dele
continuarem sobre mim, está tudo bem. As mãos dele delimitam o
território do meu corpo. Você me deu um corpo, eu digo. Não, ele sorri.
Só estou lembrando a você que ele é seu. E que nem sempre dói. (...)
Sou empalada pelo pensamento. Meus músculos todos se retesam, e a
descarga de adrenalina se espalha como gelo líquido. Calma. Ele diz.
Calma, calma. Relaxa. Não, eu não posso relaxar mais. Eu preciso
correr (...). Eu preciso matar minha mãe. (BRUM, 2011, p. 157)

Referências

BARRANECHEA, M. A. Nietzsche e o corpo. 2. Ed – Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.

BARROSO, W. Elementos para uma epistemologia do romance. In Colóquio:


Filosofia e literatura, 2003, São Leopoldo. Unisinos.

BARROSO, M. V. e BARROSO, W. Estudos epistemológicos do romance. Brasília:


Verbena Editora, 2018.

BRUM, E. Uma duas. São Paulo: Leya, 2011.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da


Silva e Guacira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo. Tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro:


Imago, 1991

KRYSINSKI, W. Dialética da Transgressão: o novo e o moderno na literatura do


Século XX. Tradução Ignacio Antonio Neis, Michel Peterson, Ricardo Iuri Canko. São
Paulo: Perspectiva, 2007.

KUNDERA, M. A arte do romance. tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São


Paulo: Companhia das Letras, 2009.

LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre a sexualidade e teoria queer. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
163

ROHDEN, L. Entre Filosofia e a Literatura: recados do dito e não dito. Belo


Horizonte: Relicário, 2015.

VELLOSO, M. P. ROUCHOU, J. OLIVEIRA, C. de. Corpo: identidades, memórias e


subjetividades. Rio de Janeiro: Mauad, 2009.
164

CEM ANOS DE SOLIDÃO À LUZ DOS ESTUDOS EPISTEMOLÓGICOS

Priscila Cristina Cavalcante Oliveira (UnB)79

Resumo: O presente trabalho visa a apresentar um estudo do romance Cem anos de solidão, do
autor colombiano Gabriel García Márquez, a partir da experiência estética do leitor. A pesquisa
aqui proposta buscará, nos estudos sobre a Epistemologia do Romance, aporte teórico para
analisar o ato de ler como um articulador entre o imaginário e o real a partir da concepção
epistemológica que considera a influência da filosofia, da história, da estética e da hermenêutica.
Nos propomos buscar a compreensão do efeito estético provocado na recepção, sendo o leitor
parte complementar à obra e ao sentido dela. Por meio do percurso da estrutura hermenêutica da
obra literária, elementos de recursos de sentidos saltam aos olhos como possibilidades
interpretativas e, a cada lance desse jogo a partir da linguagem, novas formas de sentido são
compreendidas. Os textos de Michel Foucault e do Ricardo Piglia nos auxiliarão na análise do
efeito estético e do processo de criação na figura do leitor.
Palavras-chave: Epistemologia do romance. Leitor. Estética da recepção.

Introdução

O romance Cem anos de solidão é uma obra complexa e rica em personagens e


elementos da realidade que superam a imaginação humana, isso porque eles se
transmutam em ficção que vai para além das fronteiras do que é crível aos olhos humanos.
A partir dos estudos que fazemos no grupo da Epistemologia do Romance80 este artigo
busca trabalhar ideias que se operam na obra para procurar compreender essa voz
narrativa que nasce dentro do texto literário para (re)criar e (re)contar. Como o narrador
revela o que sabe e de que maneira o faz? Como o leitor decodifica as imagens que vê
por meio da linguagem? Desse modo, procuro entender a operação da racionalidade
executada pelo autor ao criar a personagem Úrsula. O que essa personagem me conta e o
que posso saber sobre ela? A palavra transpira na página e compõe o percurso criativo do
autor.
Ancorado nas leituras da obra de García Márquez, especialmente em Cem anos de
solidão, este artigo pretende compreender a obra como um gesto criativo do autor. As
palavras que se formam nesta pesquisa advém da participação do grupo de estudos
Epistemologia do Romance e das reuniões e discussões em sala de aula. O texto-percurso
intitulado Elementos para uma Epistemologia do Romance, do professor Wilton Barroso,

79
Mestranda em Literatura pela Universidade de Brasília e membro do grupo de estudos Epistemologia do
Romance. E-mail: priscilacavalcante1@gmail.com
80
O grupo foi formado em 2003 pelo professor Dr. Wilton Barroso Filho e busca estudar a obra romanesca
como um espaço de desafios para pensar a condição humana.
165

inaugura uma teoria complexa que propõe um olhar diferenciado da obra literária e que
busca legitimar o texto literário romanesco como espaço possibilitador de conhecimentos
acerca da existência e condição humana.
A partir de um olhar atento e de um processo de investigação e decomposição do
texto literário, a Epistemologia do Romance busca os elementos de racionalidade
presentes na ficção. Enquanto conjunto de obra de um autor, há elementos que se mantêm
em todos os textos literários, não se modificam. Essa invariância permite o
reconhecimento da obra de um autor e orienta a saber qual elemento constitutivo está
desde o início à finalização do seu processo de criação. O que os elementos comuns e
invariáveis no conjunto da obra de determinado autor nos contam? O que eu posso saber
da recorrência de escolhas estéticas, seja de um personagem, um lugar, a opção pelo
narrador? Por detrás desse olhar pesquisador do leitor dentro do texto literário, há uma
busca de possibilidades de saberes no objeto artístico. O autor trabalha a palavra como o
artesão a argila, é labor. As palavras que formam o texto literário são escolhidas pelo seu
criador, atentando-se ao modo de sua utilização, uma vez que dentro de cada palavra há
muitas possibilidades de interpretações semânticas.

cada palavra irrompe de um centro e tem relação com um todo, e só é


palavra em virtude disso. Cada palavra faz ressoar o conjunto da língua
a que pertence, e deixa aparecer o conjunto da acepção do mundo que
lhe subjaz. Por isso, cada palavra, como acontecer do momento, faz que
aí esteja também o não dito, ao qual se refere, respondendo e indicando.
(GADAMER, 1999, p. 462)

Em seus estudos, Michel Foucault nos revela no interior de seu livro As palavras e
as coisas os processos de conhecer. O autor traz uma imagem para se pensar a opacidade
e a fragmentariedade da palavra, como a palavra pode não ser o suficiente? A perspectiva
do leitor, esse olhar do outro, faz a leitura das imagens que emergem das palavras e busca
interpretar o que se vê. A palavra é o visível e o secreto, “é uma natureza fragmentada,
dividida contra ela mesma e alterada, que perdeu sua transparência primeira; é um segredo
que traz em si, mas na superfície, as marcas decifráveis daquilo que ele quer dizer”
(FOUCAULT, 2000, 52).
As reflexões em torno da Epistemologia do Romance passam pela compreensão da
obra literária como um solo fértil para se conhecer e refletir a condição humana. Ao tomar
a questão do conhecimento dentro da obra de arte, a dicotomia razão e sensação perpassa
todo o tempo. Georg W. Hegel, em seu Cursos de Estética Volume I, diferencia o belo da
166

natureza do belo artístico, afirmando que este é superior ao natural porque provém do
espírito “só é obra de arte quando, brotada do espírito, também pertence ao terreno do
espírito, foi batizada pelo espírito e somente expõe aquilo que é formado em sintonia com
o espírito” (HEGEL, 2001, p. 51).
A arte é o espaço onde por meio do sensível o espírito se realiza. Para o autor, o
belo não é um julgamento de origem subjetiva, como em Kant, mas uma ideia que existe
na realidade, em obras de arte reais e históricas “toda obra de arte pertence à sua época,
ao seu povo, ao seu ambiente e depende de concepções e fins particulares, históricos e de
outra ordem” (HEGEL, 2001, p. 38). A arte é uma forma particular sob a qual o espírito
se manifesta. Para se manifestar, a arte depende da aparência, entende-se por ganhar
forma, ou seja, é algo construído por uma figura, cuja forma abarca um conteúdo. A
aparência do objeto de arte não é mais uma imitação, mas uma apresentação de essência.
Ao salientar que o ser humano é finito, mas sua capacidade reflexiva e filosófica é
infinita, Hegel nos orienta no sentido de fazer ver a arte como resultante do espírito
sensível e reflexivo. Para o autor, a arte é fruto da atividade humana e por detrás do
processo criador há o valor do trabalho “o produto artístico, em contrapartida, é apenas
uma obra humana, feita pelo conhecimento humano e por mãos humanas” (HEGEL,
2001, p. 51). As discussões entre o sensível e o inteligível ainda demonstra o não
esgotamento.
O leitor ao adentrar o texto literário precisa se distanciar de sua própria moral para
voltar o seu olhar para as possibilidades reflexivas acerca das provocações nascidas de
experiências com o objeto artístico. Para Wolfgang Iser, no O Ato da Leitura, a obra é
compreendida na recepção de acordo, tanto com sua estrutura quanto pelo processo de
leitura, permitindo ser observado esteticamente, uma vez que o leitor é também um
elemento marcado textualmente na obra de arte, seja literária ou não. O processo
interpretativo da obra parte de perguntas sobre o que este objeto tem a nos dizer e quais
as expectativas temos sobre ele. Quais as sensações/efeitos que a obra causou no leitor?
O efeito estético nasce do imediato, é interativo e contemplativo, sendo assim antecede o
sentido do texto.
De acordo com Iser, não há um sentido único para a recepção, e sim uma construção
de sentidos e comunicação nascidos do processo de recepção. Ao percorrermos a estrutura
hermenêutica do objeto, elementos de recursos de sentidos são revelados o tempo todo
como possibilidades interpretativas, mas são variáveis porque a cada lance desse jogo da
obra de arte novas formas de sentido são compreendidas. Marcas de leituras vão tingindo
167

o corpo do leitor e aos poucos as primeiras camadas do texto literário são descoladas até
chegar ao exercício de sua decomposição. Sentir o texto e ter a sensibilidade para perceber
os seus movimentos, ouvir e ver além do que é dito, o que está na sua subTERRAneidade.
De acordo com as discussões empreendidas pela Epistemologia do romance, o leitor
enquanto olhar pesquisador se diferencia de outros recebedores. Enquanto sujeito de
investigação, o posicionamento frente ao objeto literário não está somente para leitura e
comparação, mas também para relação e articulação dos saberes presentes no romance.
Para além da admiração e do prazer que o objeto pode exercer sobre o olhar de quem lê,
o leitor pesquisador questionará os fundamentos estéticos da obra e ouvirá o texto literário
a partir de uma percepção consciente “no entendimento dessa percepção epistemológica,
além do prazer, outros elementos são responsáveis por estabelecer nossas relações,
estimular nossas reações ou conduzir nossas atitudes diante do objeto literário”.
(BARROSO; BARROSO, 2015).
Tendo esse amparo teórico, penso o meu próprio processo de escrita, o que as
imagens da obra nos falam? O objeto artístico é dotado de conhecimento e desperta em
nós possibilidades interpretativas. As perguntas ao objeto vão e voltam em um
movimento dialógico, por isso não se finda e os problemas tencionam em outros. O
retorno ao objeto é uma necessidade para ouvir a respiração do texto literário. A arte como
atividade humana está ligada à sensibilidade e à criação, é manifestação e espaço de
conhecimento. Volto ao meu objeto literário e reflito sobre meu processo de escrita e as
escolhas estéticas de análise.

1. O objeto literário e o processo de escrita: possibilidades de saberes

O eterno retorno da obra Cem anos de solidão, dos seus personagens e do próprio
leitor pensam sobre a condição humana, arte como espaço de conhecimento. Os escritos
do autor são resultado de labor, de transpiração, eLEgeR as palavras é uma manifestação
do seu processo criativo. Os escritos de García Márquez, especialmente seus três
primeiros romances, A revoada (1955), Ninguém escreve ao coronel (1958), A má hora
(1962); e o livro de contos Os funerais de mamãe grande (1962), funcionam como
embrião de um projeto estético que se constrói gradativamente. Cem anos de solidão
(1967) se constitui por meio de um diálogo permanente com outros escritos já existentes.
A continuidade dos personagens e de Macondo são possiblidades para se refletir de que
168

maneira seus escritos funcionam como o esboço de um projeto estético sobre o qual
pretende atuar.
Ao nos depararmos com a voz narrativa sobre Macondo observamos uma obra que
constrói a sua própria lógica e seu próprio lugar. O narrador aqui nos conduz a conhecer
o objeto literário de forma natural e proximal, somos também testemunhas, vemos o que
está no limite entre o crível e o literário ao nos depararmos com a falta de limites de um
ser racional.
A personagem Úrsula Iguarán, esposa de José Arcádio Buendía, é um fio de
sustentação da narrativa e a ideia circular do tempo, presente no conhecimento platônico
grego, está nessa personagem. Como esse tempo que é circular e retorna está não só nos
pensamentos, nos movimentos, nas ações, mas também no próprio corpo de Úrsula? O
que o retorno pode pensar sobre a condição humana? O que o retorno revela? O que o
tempo de Úrsula me conta sobre sua solidão? Qual é a sua SOLidão?
O narrador tece uma rede de registros como se durante toda a narrativa estivesse
dentro de um observatório contando de forma artesanal experiências “É ele quem mostra
um pouco da cena, é ele quem esconde e torna turvo, deixando-nos apenas vozes no ar”
(FERNANDES, 1996, p.32). É um narrador-movimento, ele perpassa as vozes das
personagens tendo conhecimento de seus pensamentos, sentimentos e emoções. É o
caminhar do tempo, ele o controla e se sobrepõe a uma invenção humana, uma vez que
está em uma condição externa, em uma relação criada por ele. A voz narrativa é o acesso
do leitor aos espaços de circulação das personagens dando ritmo próprio à narrativa.
A leitura do texto literário paralisa o olhar e constrói mundos possíveis. O narrador
conta as histórias de vários personagens e projeta imagens a partir da linguagem. Os
acontecimentos de Macondo e dos Buendía se tornam passado na voz do narrador, uma
vez que são estruturadas gramaticalmente no tempo passado, mas as cenas acontecem na
imaginação do leitor no presente. As cenas são traduzidas por meio da linguagem e se
movem diante do leitor.

O narrador, como seu autor, não detém todos os fatos, nem é dono de
todos os detalhes, muito menos de forma linear. Todo o intento de
organizar uma narrativa é um esforço intelectual. O romance só é fruto
do inconsciente porque é uma manifestação criativa, mas o fato
narrativo, esse é rigorosamente consciente e cultural. O narrador então
é um organizador de peças narrativas dispersas, conflituosas entre si,
tensas e incompletas. O leitor por sua vez se não tem uma narrativa
organizada, fa-la-á em sua cabeça. Pela necessidade de ordem e
linearidade, de dar sequência lógica a uma massa amorfa de
169

informações. Sequência que não corresponde ao mundo interior,


inconsciente, da memória, mas a uma organização externa que lhe exige
coerência e lucidez. (FERNANDES, 1996, p. 35-36)

Envolta no silêncio, na solidão e na laboriosidade, Úrsula organiza, projeta e


expande sua casa e a vida das pessoas que a circundam, protege a economia dos Buendía
dos sonhos desmedidos de seu marido e administra e orienta Macondo mesmo por detrás
da cortina da cena. Úrsula cresce e diminui não só fruto do passar dos anos, mas também
dos desafios, inquietudes e sofrimentos que se voltam para seu interior. A noite nasce
para o sol surgir no novo, nos avolumamos ao decorrer da vida, sentimos a solidão mesmo
que seja só na intimidade vital, o que o retorno diz sobre mim e os outros? O que posso
saber da solidão? Como posso refletir a existência humana com Úrsula e o seu gesto vivo
de condução?
Em A sesta de terça-feira, conto de García Márquez, o olhar do leitor acompanha o
trem que é tomado pela sua fumaça. O trem penetra a cidade e segue a viagem com uma
mulher e uma menina em dos bancos de passageiro. O calor esquenta o chão e o trem
atravessa uma cidade que anos mais tarde aparecia novamente em Cem anos de solidão:
Macondo. O que elas estavam em busca naquele calor de meio-dia? O que elas estão me
contando mesmo em silêncio?
As flores envolvidas em um jornal que está na mão da menina e o olhar de luto da
mulher tomam o povoado sem perturbar a vigília dos moradores. O que aquelas chaves
abririam além da tumba do seu filho? Qual é a chave que esse conto traz? A aldeia de
Macondo ampliada e o retorno dos personagens em Cem anos de solidão, o que essas
repetições me dizem? O saber não é ver, o narrador é a voz que mais se ouve. O leitor
está diante de um mundo que é contado, um narrador que fala das impossibilidades. O
que a memória desse narrador engana?
Úrsula, personagem de Cem anos de solidão, me lembra aquela mulher do trem do
conto A sesta de terça-feira, carregam um olhar de força e coragem. Aquela mulher
enfrentou os olhares de todos depois de sair da igreja rumo ao cemitério para visitar a
tumba de seu filho que para o povoado morreu como ladrão. A sesta de terça-feira foi
substituída pela vigília, ela atravessou com a menina a rua que derretia com o calor.
Enquanto Úrsula é a grande fundadora de Macondo, assume o comando da sua família,
trabalha e alimenta seus filhos, constrói a casa dos Buendía enquanto seu marido paira no
sonho e no ar.
170

Ativa, miúda, severa, aquela mulher de nervos inquebrantáveis, e que em


nenhum momento de sua vida alguém ouviu cantar, parecia estar em
todas as partes do amanhecer até alta noite, sempre perseguida pelo suave
sussurro de suas anáguas rendadas. Graças a ela, os chãos de terra batida,
os muros de barro sem caiar, os rústicos móveis de madeira construídos
por eles mesmos estavam sempre limpos, e as velhas arcas onde era
guardada a roupa exalavam um perfume morno de alfavaca (MÁRQUEZ,
2017, p.17).

Úrsula tem uma firmeza na palavra que seca a boca de quem a ouve e o coração de
Macondo é a sua generosidade e rigorosidade. Junto com a sua morte em uma quinta-
feira santa traz para Macondo uma inundação de quatro anos, onze meses e dois dias.
Úrsula é o início e o declínio de Macondo, é a sustentação do povoado. Ela sente a
realidade que está ao seu redor, a praticidade e a decisão envolvem sua imagem, enquanto
seu marido e seus filhos caminham no tempo em busca das guerras e do imaginário. Qual
é o lugar que ela ocupa no processo criativo do autor?
Úrsula, uma criação, um labor, um cavar do escritor. García Márquez
artesanalmente trabalha a palavra, como Aureliano Buendía os seus peixinhos de ouro. É
o olhar sobre o real, como posso retomar esse real decantando a narrativa? Artesanato,
trabalho, transpiração. Macondo, Úrsula e outros personagens saltam aos nossos olhos
em romances anteriores a Cem anos de solidão, especialmente Os funerais de mamãe
grande, diálogo desta pesquisa, como posso pensar essa continuidade? De que forma essa
retomada do escritor permite pensar o seu projeto estético, criativo da obra? A criação é
um fazer artístico e sensível ao sujeito diante da necessidade de representação linguística,
por sua vez, racional.
Criador e criação, leitor diante. O leitor ao adentrar o texto literário precisa se
distanciar de suas certezas e voltar a luz de sua lanterna para o espaço artístico, o qual
permite um outro olhar de vida. Sem um posicionamento reflexivo que questione o efeito
que a leitura do texto provoca, o leitor desatento vai sentir o texto literário no seu eu
movido pela admiração sem pensar sobre o fundamento estético da obra. O leitor
pesquisador procura além do visível, do dito, do transparente, procura o que está na
subterraneidade e na intimidade do texto literário como um investigador e a sua lupa em
mãos. O escritor monta seu texto, peças são postas, uma teia de intencionalidades é
construída. O leitor comum estará mais susceptível a ser fisgado pelas armadilhas do texto
e a concordar que o texto literário conta só com uma possibilidade de interpretação.
Para concluir devemos pensar que o olhar do leitor pesquisador não captará tudo
o que se encontra na palavra. Esse olhar investigativo percorrerá o texto literário movido
171

por uma sensibilidade para ler além das linhas, para ouvir o não dito. O leitor está
mergulhado em palavras e imagens, os sentidos são múltiplos e ambíguos, o jogo
metafórico está lançado “Um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe
confusamente. Na clínica da arte de ler, nem sempre o que tem melhor visão lê melhor”
(PIGLIA, 2006, p. 19). O leitor pesquisador não desconsidera nenhuma possibilidade de
conhecimento, percorre as estruturas subterrâneas do texto literário e procura um diálogo
entre os elementos textuais regulares e as exterioridades da obra.

Referências

BARROSO, Maria Veralice; BARROSO, Wilton. Epistemologia do Romance: uma


proposta metodológica possível para análise do romance literário, 2015.

BARROSO, Wilton. Elementos para uma Epistemologia do Romance. In Colóquio:


Filosofia e literatura. São Leopoldo: Usininos, 2003.

FERNANDES, Ronaldo Costa. O narrador do romance: e outras considerações sobre


o romance. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.


Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis:


Vozes, 2004.

HEGEL, Georg. Curso de Estética I. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: EDUSP,
2001. (INTRODUÇÃO).

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. Tradução de Eric Nepuceno. Rio de
Janeiro: Record, 101.ed. 2017.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Todos los cuentos. Santiago de Chile: Sudamericana, 2012.

PIGLIA, Ricardo. O último leitor. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
172

POESIA NAHUATL EM PORTUGUÊS:


PERCURSO ARQUEOLÓGICO-TRADUTÓRIO

Sara Lelis de Oliveira (UnB)81

Resumo: Apresentar-se-ão questões arqueológicas que problematizam a tradução para o


português da obra poética Cantares Mexicanos (1904), edição fac-símile das primeiras 85 folhas
do manuscrito MS 1628 BIS, conservado na Biblioteca Nacional do México. Esse manuscrito
consiste na cópia jesuíta de um manuscrito franciscano para o qual foram transliterados para o
alfabeto latino cantos entoados em língua nahuatl compilados entre os anos 1550-1580 do período
colonial mexicano. As questões arqueológico-tradutórias envolvem a reconstrução de um texto
cujos extratos de sentido não se configuram como nos cantos originais. Sendo assim, o acesso aos
rastros da linguagem pré-hispânica no propósito da tradução exige necessariamente o
conhecimento das vicissitudes dos cantos originais desde sua escritura no sistema mesoamericano
(c. III – XVI d. C) até sua transcrição em 2018.
Palavras-chave: Cantares Mexicanos. Reconstrução. Original. Tradução.

Introdução

A produção de poesia durante o período pré-hispânico do território mesoamericano


foi constatada pelos mais diversos interessados na cultura milenar dos povos nativos da
Mesoamérica. Esse aspecto cultural concentra-se, na última fase do protagonismo
indígena, nas tradições do povo mexica ou asteca82, dominante entre os inícios dos séculos
XIV e XVI. Recebiam o título de poeta (em nahuatl, cuicapicque)83 aqueles que
compunham cantos (em nahuatl, cuicatl) para manter vivos na memória dos povos os
feitos heroicos dos guerreiros nas batalhas contra inimigos, bem como as tradições
históricas e culturais apropriadas de povos outrora dominantes84. Os cantos tornavam-se
conhecidos em celebrações, mas eram também ensinados nas escolas (em nahuatl,
calmecac) para os filhos dos governantes astecas85.
Consumada a queda do Império Mexica por castelhanos e indígenas aliados em
1521, missionários enviados pela Coroa Espanhola ao referido território com o objetivo
de implementar o Catolicismo Romano relataram em suas crônicas os inúmeros cantos

81
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura (PÓSLIT) da Universidade de Brasília. Mestre
em Estudos da Tradução e Bacharel em Letras – Tradução/Espanhol pela mesma universidade. E-mail:
saralelis@gmail.com
82
Os mexicas também são chamados de astecas, assim como outros que posteriormente adotaram outros
nomes (chalcas, huaxtecos), por serem oriundos da cidade de Aztlan (SANTOS, 2002, p. 71).
83
LEÓN-PORTILLA, 2011, p. 163-164.
84
Ao se estabelecerem no Altiplano Central, os mexicas fundaram México-Tenochtitlan, capital
mesoamericana, em 1325. Dominavam as rotas comerciais, recebiam tributos de quase toda Mesoamérica,
e impuseram o nahuatl como língua franca. A cultura dos mexicas consistiu em grande parte na apropriação
da cultura tolteca, sua antecessora (SANTOS, 2002, p. 75-76).
85
LEÓN-PORTILLA, 2011, p. 153.
173

entoados pelos nativos sobreviventes e seus descendentes, os quais foram imediatamente


proibidos sob o novo regime. Os relatos derivam-se do esforço em exterminar as
idolatrias, pois identificaram que os cantos continham adorações inaceitáveis pela
doutrina católica. O frei dominicano Diego Durán (c. 1537 – 1588) registra em sua
Historia de las Indias de Nueva España (c. 1560?) a maneira como os nativos utilizavam-
se dos cantos para perdurar o culto a seus deuses:

Digo que não se deve dissimular nem permitir que ande aquele índio
representando seu ídolo e aos demais cantores suas idolatrias, cantos e
lamentações, os quais cantam enquanto veem que não há quem os
entenda presente. No entanto, em vendo que está quem os entende,
mudam o canto e cantam o canto que compuseram de São Francisco,
com o aleluia ao final para solapar suas maldades e, em transpondo o
religioso, tornam ao tema de seu ídolo86 (DURÁN, 1867, tradução
nossa).

A proibição não resultou eficaz. O frei franciscano Bernardino de Sahagún (1500 –


1590) registra anos depois, em sua Psalmodia christiana (1583), a permanência das
idolatrias nos cantos. Um de seus feitos para impedir sua expressão foi a tradução de
salmos bíblicos para o nahuatl:

…em outras partes, e nas demais, insistem em voltar a cantar seus


cânticos antigos em suas casas ou em suas tecpas – recintos comuns a
todos – (o que coloca muita suspeita na sinceridade de sua fé cristã)
porque nos cânticos antigos em sua grande maioria se cantam coisas
idolátricas em um estilo tão obscuro que não há quem bem possa
entendê-los, apenas eles mesmos, e outros cânticos usam para persuadir
ao povo aos que querem, ou de guerra ou de outros negócios que não
são bons, e têm cânticos compostos para isso e não querem deixá-los.
Para que se possa facilmente remediar esse dano, esse ano de 1583
foram confeccionados esses cânticos que estão neste volume, que se
chama Psalmodia christiana em língua mexicana [nahuatl] para que de
todo parem com os cânticos antigos87 (SAHAGÚN, 1583, tradução
nossa, colchetes meus).

86
Do original: “Digo que no se debe disimular ni permitir que ande aquel indio representando su ídolo y
a los demás cantores sus idolatrías, cantos y lamentaciones, los cuales cantan mientras ven que no hay
quien lo entienda presente. Empero, en viendo que sale el que los entiende, mudan el canto y cantan el
canto que compusieron de San Francisco, con el aleluya al cabo para solapar sus maldades y, en
trasponiendo el religioso, tornan al tema de su ídolo”.
87
Do original: “…en otras partes, y en las más, porfían de volver a cantar sus cantares antiguos en sus
casas o en sus tecpas [recintos comunales] (lo cual pone harta sospecha en la sinceridad de su fe cristiana)
porque en los cantares antiguos por la mayor parte se cantan cosas idolátricas en un estilo tan oscuro que
no hay quien bien los pueda entender sino ellos solos, y otros cantares usan para persuadir al pueblo a lo
que ellos quieren, o de guerra o de otros negocios que no son buenos, y tienen cantares compuestos para
esto y no los quieren dejar. Para que se pueda fácilmente remediar este daño, este año de 1583 se han
impreso estos cantares que están en este volumen, que se llama Psalmodia christiana en lengua mexicana
para que del todo cesen los cantares antiguos”.
174

A tarefa de identificação das idolatrias nos cantos movimentou os missionários


católicos a encabeçarem um projeto de resgate das tradições pré-hispânicas no propósito
de eliminar todo o paganismo pré-colonial. Esse trabalho foi desenvolvido por Sahagún
e outros freis franciscanos como Andrés de Olmos (1485 – 1571) no âmbito do Colégio
Imperial Santa Cruz de Tlatelolco, centro de estudos onde lecionavam gramática, retórica,
lógica, aritmética, geometria, astronomia, música, pintura, moral e as escrituras
sagradas88. Mas no colégio também se empreendeu principalmente o resgate das tradições
pré-hispânicas por intermédio de sua transliteração do nahuatl oral para o nahuatl em
alfabeto latino no intuito de examinar sua linguagem de caráter suspeito. Entre essas
transliterações está provavelmente o registro escrito dos Cantares Mexicanos, manuscrito
considerado a grande obra poética referente ao período pré-hispânico. Trata-se de um
compilado de noventa e um cantos presentes nas primeiras oitenta e cinco folhas que
integram um manuscrito que também se encontra sob o título Cantares Mexicanos (295
folhas), conservado atualmente na Biblioteca Nacional do México com a referência MS
1628 BIS89. Ele está composto de nove partes:

1. Cantares Mexicanos
2. Kalendario Mexicano (en castellano)
3. Arte divinatorio de los Mexicanos (en castellano)
4. Ejemplos de las Sagradas Escrituras en Mexicano
5. Un sermón sobre aquello de Estole Sancti
(Sed santos…, también en Mexicano)
6. Memoria de la muerte (en Mexicano)
7. Vida de San Bartolomé (en Mexicano)
8. Fábulas de Esopo (puestas en Mexicano)
9. Historia de la Pasión (en Mexicano)
(CURIEL DEFOSSÉ, 1995, p. 71).

A autoria da compilação dos Cantares Mexicanos resulta apenas em especulações


pelos historiadores e estudiosos do manuscrito, mas é frequentemente atribuída a Sahagún
pelos historiadores e tradutores da obra. Sahagún saiu e voltou ao colégio diversas
vezes90, o que dificulta a comprovação da compilação de sua autoria, além da ausência
de indicações à autoria de maneira geral nas glosas do manuscrito. O historiador norte-
americano John Bierhorst (1936 -), por exemplo, afirma que entre os anos 1550 e 1580
Sahagún pode haver compilado alguns dos cânticos junto aos indígenas trilíngues

88
LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 80-81.
89
BIERHORST, 1995, p. 7.
90
LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 83.
175

(conhecedores do nahuatl, castelhano e latim) que colaboraram no processo realizando as


transliterações:

…evidentemente os cantos foram tomados dos lábios dos informantes


nativos durante os anos 1550, 1560 e 1570 (com um ou outro canto de
no mais tardar 1580). O coletor foi um indígena aculturado
provavelmente a serviço de Sahagún. Durante os anos, ele pode ter
compilado no mínimo alguns dos textos, acrescentando cabeçalhos
explicativos e eventuais glosas. Uma parte do trabalho parece ter sido
feita em Azcapotzalco e o restante na Cidade do México. Possivelmente
o coletor foi o conhecido indígena escritor e líder político Antonio
Valeriano ou, provavelmente, diversos coletores estavam envolvidos,
inclusive Valeriano (BIERHORST, 1985, p. 9, tradução nossa)91.

O historiador mexicano Miguel León-Portilla (1926 -) também defende uma provável


relação de ambos – Sahagún e Valeriano – no processo de compilação: “parece [...] muito
verossímil que os Cantares Mexicanos foram compilados em boa parte por um ou vários
estudantes do frei Sahagún. A identidade dele pode ser um pouco rastreada [...] estiveram
com ele Antonio Valeriano [...]92. Já o padre e filólogo Ángel María Garibay Kintana
(1892 – 1967) afirma na introdução à parte de sua tradução dos Cantares que a autoria da
compilação é certamente de Sahagún:

E quando sabemos que Sahagún fez o mesmo perguntando em diversos


ligares, já que começou por Tepepulco, região de Acolhuacan, e veio a
terminar em Tenochtitlan, é muito de admitir que ele foi quem concebeu
a ideia de fazer esta monumental coleção e deu a seus colaboradores a
tarefa de reunir poemas de suas diversas regiões (GARIBAY, 1965, p.
lxi, tradução nossa)93.

Essa breve introdução aos Cantares Mexicanos baliza a existência de poesia nahuatl
no período pré-hispânico, vinculada à sua produção oral, e abre caminho para o início da

91
Do original: “...evidently the songs were taken from the lips of native informants during the 1550’s,
1560’s, and 1570’s (with one or two songs as late as the 1580’s); some appear to have been collected
singly, and others in batches; the collector was an acculturated Indian, probably in the service of Sahagún,
over the years he may have recopied at least some of the texts, adding explanatory headings and occasional
glosses; some of the work seems to have been done in Azcapotzalco, the rest in Mexico City; possibly the
collector was the well-known Indian writer and political leader Antonio Valeriano; or, just as likely, several
collectors were involved, including Valeriano”.
92
Do original: “Parece, por tanto, muy verosímil que los Cantares mexicanos fueron compilados en buena
parte por uno o varios estudiantes indígenas de fray Bernardino. La identidad del mismo puede rastrearse
un poco. Al tiempo en que Sahagún investigaba en Tepepulco estuvieron con él Antonio Valeriano” (LEÓN-
PORTILLA, 2011, p. 183).
93
Do original: “Y cuando sabemos que Sahagún hizo lo mismo indagando en diversos rumbos, ya que
comenzó por Tepepulco, región de Acolhuacan, y vino a terminar em Tenochtitlan, es muy de admitir que
él fue quien concibió la idea de hacer esta monumental colección y dio a sus colaboradores la tarea de
reunir poemas de sus diversas regiones.
176

reconstrução e problematização envolvidas no propósito de tradução do referido


manuscrito para o português brasileiro. Em suma, traduz-se por meio de uma versão em
PDF (2011) da edição fac-símile de 1904 do mexicano Antonio Peñafiel, responsável por
reproduzir a fotocópia do manuscrito MS 1628 BIS que tampouco é o original, mas a
cópia jesuíta dos manuscritos compilados pela provável supervisão de Sahagún no
período 1550 – 158094.
Nessas circunstâncias, executar a tradução desse manuscrito para o português
brasileiro no ano 2018, antes de mais nada, sustenta o interesse pela expressão indígena
pré-hispânica e sua sobrevivência em um idioma inédito, inserindo-se na cronologia de
traduções dos Cantares para as línguas inglesa, espanhol e francesa. Para tanto, faz-se
necessário o conhecimento de um processo histórico-arqueológico de séculos que não se
inicia em 1550, data indicada por Bierhorst para as primeiras transliterações/compilações
dos cantos, mas entre os séculos III e VIII d. C, período que data a produção de
manuscritos no sistema de escrita mesoamericano utilizados como suporte para proferir
os cantos95. Neste sentido, este trabalho visa apresentar esse percurso essencial dos
Cantares haja vista que nosso projeto de tradução se fundamentará no reconhecimento da
linguagem poética pré-hispânica em um texto cujos extratos de sentido não se configuram
como nos cantos originais. Pelo contrário, trata-se de um texto que manifesta a
sobreposição de duas culturas tanto em sua forma, já que a escrita foi alterada para o
sistema latino de escritura e sofreu inúmeras alterações ao longo dos anos, quanto em seu
conteúdo, já que os cantos estão impregnados de interpolações divinas católicas.

Cantares: da escrita mesoamericana à paleografia e traduções (séc. III d. C a 2018)

O percurso arqueológico-tradutório dos Cantares rompe no período em que os


cantos eram extraídos das leituras dos códices, manuscritos pré-hispânicos de escrita
mesoamericana existentes desde pelo menos os séculos III e VIII d. C. Os códices foram
nomeados “livros” pelos cronistas castelhanos do século XVI, como relata Bernal Díaz
del Castillo em sua Historia verdadera de la Conquista de la Nueva España (1632): “...e
encontramos [...] muitos livros de papel”96. Não se assemelhavam materialmente com os
livros que havia no ocidente e tampouco seu sistema de escrita, que consistia em signos

94
BIERHORST, 1985, p. xii.
95
LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 10.
96
DÍAZ del CASTILLO, 1939, p. 169, tradução nossa.
177

glíficos nos quais se expressam conceitos como dia, nuvem, fumaça, cidade, palavra e
canto, assim como em glifos para números, calendários e outros glifos silábicos para
nomes de lugar e de pessoas97. Apesar dessa assertiva, houve durante os últimos anos
(1980 -) uma vasta discussão quanto à classificação da escrita mesoamericana na qual é
questionado se se trata de uma escrita logográfica, silábica, fonética, semasiográfica ou
rebus98. A conclusão a que chega León-Portilla, por exemplo, é a de que os signos
também representavam palavras e sons, hipótese recuperada através da escrita em nahuatl
em alfabeto latino inserida nos códices no período colonial:

Imagem 1: exemplo de escrita nahuatl acompanhada da escrita latina (LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 29).

No que se refere aos cantos, pois a escrita mesoamericana em si é tema para outro
artigo, a oralidade e o canto na escrita eram representados através de elementos
pictográficos. A transmissão do conhecimento e das tradições na cultura nahuatl mantinha
uma estreita relação com os códices, os quais indicavam quando a leitura deveria ser
cantada e/ou compartilhada oral e coletivamente como ensinamento. “Para aprender os
cantos, a conta dos dias, a história, se “seguia o caminho dos livros”, como expressa o
vocábulo amoxohtoca”99. O elemento pictográfico que caracteriza o canto e a oralidade é
popularmente chamado de vírgula:

Imagem 2: elemento pictográfico representante do canto e da oralidade (LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 99).

97
LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 30.
98
WHITTAKER, 2009, p. 48-49.
99
LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 99.
178

Esse breve comentário sobre a escritura mesoamericana nos códices – os “livros”


pré-hispânicos – e sua íntima relação com a oralidade e sobretudo com os cantos, os quais
eram suporte de sua leitura, nos dá a noção de um primeiro substrato do manuscrito MS
1628 BIS, que consiste em que os cantos ouvidos pelos freis advinham de uma forma
escrita. No entanto, esse primeiro substrato ainda guarda seu caráter pré-hispânico e pode-
se reconhecer os cantos proferidos como “originais” em comparação com as inúmeras
transformações subsequentes. O importante aqui é conhecer que os cantos advinham de
interpretações diversas dos códices, mas que ainda assim se mantinha o acesso a
linguagem pré-hispânica sem influência estrangeira.
A primeira metamorfose significativa, derivada do confronto de culturas, resulta da
transliteração dos cantos em nahuatl para sua escritura alfabética latina. Esse processo
ocorreu mediante transcrição fonética, tarefa empreendida pela primeira vez pelo frei
Andrés de Olmos na obra Arte para aprender la lengua mexicana (1547), e pela segunda
vez pelo frei franciscano Alonso de Molina (c. 1513 – c. 1585) em Arte de la lengua
mexicana y castellana (1571)100. Consistiu em adaptar cada som da língua nahuatl ao
alfabeto latino da época através de coincidências ou aproximações fonéticas. O alfabeto
exposto por Molina em sua gramática resultou nos seguintes fonemas: a, e, i, y, o, u, v,
hu, u, uh, p, t, c, qu, h, tz, tl, ch, cu, qu, ç, z, x, m, n, l 101. Segundo essa metodologia
ensinada aos indígenas trilíngues na escola de Tlatelolco, não surpreendem os limites em
se conhecer a relação (im)precisa entre o que era realmente pronunciado e o que foi
transliterado. Como consequência do método adotado, a escrita do nahuatl em alfabeto
latino não garante a preservação de todos os sons outrora pronunciados, nem mesmo uma
padronização entre todos os freis e indígenas trilíngues que realizaram as transliterações
durante o período colonial. O alfabeto dos Cantares Mexicanos ao qual se tem acesso nos
dias atuais, por exemplo, corresponde ao alfabeto utilizado pelos jesuítas tendo em vista
sua posterior cópia do manuscrito franciscano, que se perdeu e obedecia aos fonemas
colocados por Olmos e Molina.

Quadro 1: alfabeto nahuatl na escritura jesuíta

100
CARR, 2016, p. 62-63.
101
CARR, 2016, p. 78.
179

Imagem reproduzida de CARR, 2016, p. 79.

O historiador John Bierhorst, em relação aos Cantares, lista caracteres modernos


baseado no alfabeto latino jesuíta do século XVII. A prática é bastante comum entre os
estudiosos do nahuatl em escritura latina devido à transformação da língua castelhana
com o passar do tempo. A letra ç, por exemplo, eliminada do alfabeto, passou a ser grafada
pela letra z.

Quadro 2: alfabeto jesuíta modernizado de John Bierhorst

Imagem reproduzida de CARR, 2016, p. 82.

Esses caracteres, no entanto, são base apenas para a paleografia de Bierhosrt e sua
posterior tradução para o inglês. Em português, por exemplo, no caso de nossa transcrição
do texto, adotou-se o alfabeto na escritura jesuíta antiga.
Essa transformação do nahuatl oral para o nahuatl escrito aclara a imprecisão da
linguagem nahuatl uma vez que há grandes possibilidades de perdas fonéticas. Além
disso, a perda do manuscrito franciscano e sua cópia pelos jesuítas datada de 1628
também configura mais uma camada que afasta o texto em alfabeto latino dos cantos
originais. Tal é o registro que se tem do manuscrito Cantares localizado atualmente na
Biblioteca Nacional do México.
Após transcrição e compilação durante a segunda metade do século XVI, e cópia
no início do século XVII, o manuscrito MS 1628 BIS esteve perdido até a década de
cinquenta do século XIX, quando foi redescoberto na antiga Biblioteca Nacional do
México pelo historiador mexicano Don José Fernando Ramírez. Desde então começaram-
se os estudos e traduções dos Cantares. À época da redescoberta, Ramírez solicitou ao
especialista em língua nahuatl Faustino Galicia Chimalpopoca que o transcrevesse em
outra obra para publicação. Foi transcrito também em 1865 pelo etnógrafo francês Charles
Étienne Brasseur de Bourbourg. Ambas as cópias de Chimalpopoca e Brasseur de
Bourbourg se encontram, respectivamente, na Biblioteca Nacional da Espanha e na
Universidade da Pensilvânia102. Segundo León-Portilla, a cópia do Cantares localizada

102
LEÓN-PORTILLA, 2011, p. 174.
180

nos Estados Unidos foi traduzida do nahuatl para o inglês por Daniel G. Brinton em 1887,
data da edição.
O manuscrito do século XVI, passada a redescoberta de Ramírez e suas três
consequentes publicações em nahuatl e inglês, foi encontrado em 1895 por José María
Vigil na Biblioteca Nacional do México, na época o diretor. O acontecimento gerou mais
publicações nos anos 1899, 1904 e 1918. As publicações de 1899 e 1904 são do mexicano
Antonio Peñafiel (1839 – 1922)103. A primeira, de 1899, trata-se da própria transcrição
dos Cantares e a segunda, de 1904, de uma edição fac-símile sem tradução e com uma
nota histórico-bibliográfica, obra à qual temos acesso pela versão em PDF (2011).
Traçamos o esquema a seguir:

1) Período pré-hispânico (séc. III – XVI) 2) Período colonial (séculos VVI e XVII)

Escrita Os cantos Cantares Cantares


mesoamericana: na tradição oral Mexicanos Mexicanos
códices (séc. III (compilação
(cópia jesuíta)
(séc. III a XVI d.C) franciscana -
MS 1628 BIS)
a XVI d.C) 1550 a 1580)

3) Século XIX 4) Século XX 5) Século XXI

Edição Versão
Redescoberta
fac-símile em PDF Transcrição Tradução
do até então
de do fac- por LELIS, por LELIS,
desaparecido
Peñafiel, símile de 2018 2018
MS 1628 BIS
1904 1904

Elaborado por Sara Lelis de Oliveira no âmbito deste trabalho, 2018.

O esquema apresentado acima abrange apenas nosso percurso em relação à


trajetória arqueológico-histórica dos Cantares a partir do material que temos em mãos
para tradução para o português. Desde sua redescoberta no século XIX, foram diversos
os estudos realizados, bem como as traduções do manuscrito pela versão fac-símile de
Peñafiel, como mostramos no quadro abaixo:

103
CURIEL, 1995, p. 72-74.
181

Quadro 3: Histórico das doze traduções dos Cantares (1887 – 2011)

Cantares Mexicanos Autor Língua Obra


1) Vinte hinos sacros (compilação de Daniel G. Brinton Inglesa Brinton’s Library of
diversos cantos dos Cantares (1837 – 1899) Aboriginal American
Mexicanos considerados poemas Literature (1887)
religiosos)
2) [F. 7v a 15r; 16 v a 26v; 31v a 36r] Ángel María Mexicana Poesia Nahuatl, vol. II
Garibay Kintana (1965)
3) F. 26v a 31v; 36r a 36v; 55v a 56r; (1892 – 1967) Poesia Nahuatl, vol. III
65r a 71v; 53v; 72r al 79v] (1968)
4) Partes/trechos variados com fins de William Gingerich Inglesa Tlaloc, his song (1976)
exemplificação
5) Partes/trechos variados com fins de Georges Baudot Francesa Les lettres
exemplificação précolombiennes (1976)
6) Partes/trechos variados com fins de Frances Karttunen y Mexicana La estructura de la poesía
exemplificação James Lockhart náhuatl vista por sus
variantes (1979)
7) Partes/trechos variados com fins de Michel Launey Francesa Introduction á la Langue
exemplificação etá la Littérature
Aztéques (1979/80)
8) Completo [F 1r a 85r] John Bierhorst Inglesa Cantares Mexicanos:
(1936 -) Songs of the Aztecs
(1985)
9) Dezoito cantos Marcos Caroli Português Dezoito cantos em
Resende brasileiro nahuatl (1995)
10) Partes/trechos variados com fins Birgitta Leander Francesa Anthologie Náhuatl.
de exemplificação Témoignages littéraires
du Mexique indigéne
(1996)
11) Partes/trechos variados com fins Richard Haly Inglesa Poetics of the Aztecs
de exemplificação (1998)
12) Completo [F 1r a 85r] Miguel León- Mexicana Cantares Mexicanos
Portilla (1926 -) (2011)
Elaborado por Sara Lelis de Oliveira no âmbito deste trabalho (LEÓN-PORTILLA, 2011, p. 187-194)

Para concluir este percurso histórico-arqueológico, apresentaremos a seguir um quadro


comparativo entre as paleografias e traduções dos tradutores da obra Cantares completa,
a saber John Bierhorst e Miguel León-Portilla, ao lado de nossa primeira tentativa de
transcrição dos caracteres escritos à mão no manuscrito original com o agravante das duas
posteriores edições imagéticas, a fac-símile e o PDF. Nessas condições, é possível
verificar as diferenças entre uma transcrição e outra e os resultados das diferentes
traduções tendo em vista, ainda, o possível uso de dicionários distintos. Propomos a
tradução das linhas 7-9 da folha 16v do manuscrito:
182

Quadro 4: Paleografias e traduções dos Cantares: inglês, espanhol e português (1985, 2011, 2018)

Peñafiel, 1904, f. 16 v Paleografia de Tradução para o Paleografia de Tradução para o Transcrição de Lelis Tradução para o
Bierhorst (1985, p. inglês de Bierhorst León-Portilla (2011, espanhol de León- (2018) português por Lelis
182) (1985, p. 183) p. 196) Portilla (2011, p. (2018)
197)
Xiahuilompehua Strike it up in Xiahuilompehua Alegre empieza, Xiahuil ompehua Regue as plantas,
xihuioncuican pleasure, singer! Sing xiahuiloncuican alegre canta, tú xihuioncuican comece
ticuicanitl huiya ma in pleasure. May you ticuicanitl huiya ma cantor; alegraos, incuicanitl huiya Ei! Deem o tom os
xonahuiacany, all be pleasure. Life xonahuiacan y, reciba contento el maxonahuiacan y on cantores
onelelquixtilon Giver is entertained. onelelquixtilon Dador de la vida elelquixilonypalnemoh Cantem algo
ypalnemohuani yyeo Be pleasured. Life Ypalnemohuani yyeo Alegraos, ya nos uani yyco ayahui Que reguem as plantas
ayahui ohuaya Givers adorns us. All ayahui ohuaya envuelve el Dador de ohuaya ehe
Ma xonahuiacani ye are dancing as flower etcétera. la vida, con brazaletes Maxonahuiacan i Ai! Deram-me um
techonquimiloa bracelets. They’re Ma xonahuiacan i ye floridos se hace el vetechonquimiloa golpe lá onde todo
ypalnemohua ye Your flowers! techonquimilo a baile. Son tus flores, ypalnemoa ye mundo vive
xochimaquiztica They’re strewn: our Ypalnemohua ye ya se ofrecen, nuestro xochimaquiztica Estava em pé
netotilo ye nehuihuio songs are strewn xochimaquiztica canto ya se ofrece. netotilo yenehuihuio E chuviscava Ohuaya
aya moxochiuh a within this house of netotilo ye nehuihuio Donde están los ayamo xochiuha
ohuaya, yao yao ho bracelets, scattered in aya moxochiuh a brazaletes, en la casa ohuaye yao yaoho Que reguem as plantas
ama y yehuaya this house of gold. ohuaya, yao yao ho de metal precioso, amayyehuaya ahuayyao
ahuayyao aye ohuaya The flower tree is ama y yehuaya esparce sus hojas el ayeohuaya ohuaya Enterraram-me lá onde
ohuaya quaking: it shakes. ahuayyao aye ohuaya árbol xochincuáhuitl, se vive
Let the quetzal inhale. ohuaya se balancea, se mece. Não me entregaram
Let troupials, let flores no baile
swans, inhale. Encorajaram-me
Ainda não me deram
flores
Ohuaye yao yaoho
amayyehuaya
ahuayyao ayeohuaya
ohuaya
Elaborado por Sara Lelis de Oliveira no âmbito deste trabalho, 2018.
183

Considerações Finais

O presente trabalho pretendeu apresentar questões arqueológicas que


problematizam a tradução para o português do Brasil da obra poética Cantares
Mexicanos, manuscrito datado de 1628 e conservado na Biblioteca Nacional do México.
Trata-se de um texto que não corresponde à originalidade com a qual estamos
familiarizados neste século na área da tradução. Sua origem remonta aos séculos III e
VIII d. C e sofreu inúmeras metamorfoses até 2011, ano em que se criou o PDF da edição
fac-símile de 1904, elaborada pelo mexicano Antonio Peñafiel. Neste sentido, faz-se
necessário traçar um percurso para conhecer as transformações desse material ao longo
dos séculos e o que pode ser recuperado da linguagem pré-hispânica na tradução.
O percurso Cantares Mexicanos que temos em mãos para traduzir inicia-se entre
os séculos III e VIII d. C, quando os nativos da Mesoamérica se utilizavam dos códices
como suporte para entoação dos cantos no período pré-hispânico. Com a chegada e
domínio dos castelhanos e indígenas sobre a região entre 1519 e 1521 e,
consequentemente, o trabalho dos freis franciscanos de resgate das tradições pré-
hispânicas com fins de evangelização, os cantos sofreram a mudança do registro oral para
o escrito. Contudo, a transliteração é apenas a primeira alteração, posto que no início do
século XVII houve uma cópia do manuscrito pelos jesuítas, o que significou várias
alterações no alfabeto.
Essa série de metamorfoses que experimentaram os cantos coloca em questão o
tipo de tratamento dado a esse tipo de material no propósito de tradução. Mais ainda, um
propósito de tradução cujo projeto se fundamenta no que pode ser resgatado da linguagem
pré-hispânica não obstante as inúmeras transformações. A partir do conhecimento das
metamorfoses dos Cantares e da experiência de tradução das linhas 7-9, folha 16 v,
constatamos a necessidade de, antes de tudo, adquirir a técnica da paleografia para melhor
ler a edição fac-símile do manuscrito em sua versão PDF. Isso porque o domínio do
alfabeto resulta fundamental na formação das palavras que se encontram nos dicionários
realizados junto às diversas gramáticas nos séculos XVI e XVII do período colonial
mexicano. Não só o conhecimento formal é importante, mas também o histórico-cultural
que intervém no teor dos cantos pré-hispânicos entoados no período colonial com
interpolações da religiosidade castelhana. O objetivo central de nossa primeira
aproximação aos Cantares Mexicanos neste sentido consiste em problematizar o
184

tratamento desse tipo de material como um estudo arqueológico no propósito da tradução


no qual serão necessários outros tipos de abordagens tradutórias.

Referências

BIERHORST, John. Cantares Mexicanos. Songs of the aztecs. Stanford: Stanford


University Press, 1985.

CARR, David Charles Wright. Lectura del Nahuatl. Versión revisada y aumentada.
México: Secretaría de Cultura, Instituto Nacional de Lenguas Indígenas, 2016.

CURIEL DEFOSSÉ, Guadalupe. El manuscrito “Cantares Mexicanos y otros opúsculos”


de la Biblioteca Nacional de México: una tarea pendiente. Boletín del Instituto de
Investigaciones Bibliográficas, Universidad Nacional Autónoma de México, v. 7, p. 71-
82, 1995.

DÍAZ del CASTILLO, Bernal. Historia verdadera de la Conquista de la Nueva España.


Editorial Pedro Robredo. México: D.F, 1939.

DURÁN, Diego. Historia de las indias de Nueva-España e islas de tierra firme. Tomo I.
México: Imprenta de J. M. Andrade y F. Escalante, 1867. Disponível em:
http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/historia-de-las-indias-de-nueva-espana-y-
islas-de-tierra-firme-tomo-i--0/html/514896e8-f194-46bb-95fc-ff8cca6a87ea.htm
Acessado em 24/10/2018.

GARIBAY KINTANA, Ángel María. Poesia Nahuatl. Tomo I. México: Universidad


Nacional Autónoma de México, Instituto de Historia, Seminario de Cultura Nahuatl,
1965.

LEÓN-PORTILLA, Miguel. Códices. Os antigos livros do Novo Mundo. Tradução de


Carla Carbone. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012.

______________________. Estudio Introductorio a los Cantares. In: Cantares


mexicanos. México: Universidad Nacional Autónoma de México: Fideicomiso Teixidor,
2011. Disponível em:
http://www.historicas.unam.mx/publicaciones/publicadigital/libros/cantares/cm01.html
Acessado em: 24/10/2018.

NATALINO DOS SANTOS, Eduardo. Mesoamérica: história, pensamento e escrita. In:


Deuses do México Indígena. Estudo comparativo entre narrativas espanholas e nativas.
São Paulo: Palas Athena, 2002, p. 39-104.

SAHAGÚN, Bernardino. Psalmodia christiana y Sermonario de los santos del año en


lengua mexicana. México: Casa de Pedro Ocharte, 1583. Disponível em: http://bdh-
rd.bne.es/viewer.vm?id=0000085282&page=1 Acessado em 24/10/2018

WHITTAKER, Gordon. The Principles of Nahuatl Writing. Göttinger Beiträge zur


Sprachwissenschaft 16 (2009), p. 47-81.
185

ASPECTOS DO PROCESSO CRIATIVO NO TEATRO

Walter Lima Torres Neto (UnB)104

Resumo: Na primeira parte deste artigo apresento algumas definições sobre o processo criativo
no teatro para nos balizar acerca das diversas dinâmicas criativas aí existentes. Na segunda parte,
tomo emprestado o exemplo da minha própria trajetória formativa entorno da questão da
transmissão de um processo criativo institucionalizado. E por fim, concluo de maneira provisória
sobre alguns pressupostos acerca do processo criativo no teatro.
Palavras-chave: Processo criativo. Cultura Teatral. Programa de teatro.

“Mozart sabia dar rédea livre às fantasias. Elas borbulhavam num fluxo de padrões
sonoros que, quando ouvidos por outras pessoas, estimulavam seus sentimentos de
maneiras as mais diversas”. (ELIAS, 1995, p.60). Já pináculo da criação artística é
alcançado quando a espontaneidade e a inventividade do fluxo-fantasia se fundem de tal
maneira com o conhecimento das regularidades do material e com o julgamento da
consciência do artista, que as fantasias inovadoras surgem como por si mesmas,
satisfazendo as demandas tanto do material, como da consciência. (ELIAS, 1995, p. 63)
Neste ensaio, o sociólogo alemão para fazer sua análise da trajetória de Mozart, ao
longo dos seus breves 35 anos de existência, é auxiliado pela sociologia, história e
sobretudo pela psicologia. Porém, sua interpretação do processo criativo deste músico de
corte, que desaparece em 1791, ou da concepção de gênio, que ele adota, parece-me
fortemente amparada pelos conceitos apresentados por Hegel em sua Estética, quando
trata do artista.
Hegel, em seu tópico dedicado ao artista, reflete, no início do séc. XIX, sobre
noções tais quais, imaginação, talento, gênio, inspiração, estilo e originalidade. Ao
desenvolver seus conceitos, o filósofo afirma que a imaginação é “a faculdade artística
mais importante” (HEGEL, 1993, p.160), e destaca a noção de “fantasia” associada à
imaginação, que de fato seria a criadora, por oposição a uma imaginação passiva.
Assim, acrescentando-se o exercício da memória do artista acerca das coisas e dos
fatos vistos e vividos, é que afirma ainda o filósofo que “o artista deve inspirar-se, não no
reservatório das abstrações gerais, mas na vida; é que a missão da arte, prossegue o
filósofo, não é exprimir pensamentos, como a filosofia, mas formas exteriores e reais.

104
Walter Lima Torres Neto é formado em Artes Cênicas (Direção e Interpretação). Atualmente é professor
titular de Estudos Teatrais no Curso de Graduação e Pós-graduação em Letras da UFPR em Curitiba.
gualter20@gmail.com ou limatorres@ufpr.br
186

Este é o ambiente próprio do artista.” (HEGEL, 1993, p.160). Portanto, me deterei sobre
os procedimentos próprios às artes cênicas na fabricação dessas ditas “formas exteriores
e reais”.
As artes narrativas da cena possuem propriedades específicas quando as
comparamos à narrativa romanesca. Essas propriedades advêm das combinações entre
espaço e tempo como motores da enunciação teatral. Essas grandezas presentes tanto
numa obra ficcional, dita dramática, quanto idealizadas por meio de uma estética pós-
dramática, condicionam processos criativos distintos. Esses processos criativos
amparados no trabalho sobre o tempo e o espaço pavimentam a entrada em cena de uma
ação que pode ou não pressupor a representação.
Do ponto de vista de uma estrutura narrativa, atribui-se a Aristóteles a primazia de,
com suas considerações sobre a tragédia, nos chamar atenção para o funcionamento de
uma certa engrenagem narrativa. Com o passar do tempo verticalizamos a análise das
partes de qualquer máquina narrativa, por meio de interrogações não mais sobre os
elementos constituintes do drama (ação, conflito, interno e externo, intriga, personagem,
etc) mas sim sobre: a formação de uma identidade, a criação de um imaginário, a
veiculação de uma ideologia e os aspectos de uma intertextualidade inerentes a qualquer
obra. Mas eu não vou lhes falar sobre obras, e sim, sobre processos que levam à
configuração, no caso do teatro, a uma obra cênica, ou no dizer de Hegel suas “formas
exteriores e reais”.
Gianni Ratto, diretor, cenógrafo, homem de teatro de origem italiana que adotando
o Brasil, fez aqui sua carreira depois de deixar a Itália, afirma no seu livro Hipocritando,
que “a criatividade não é algo espontâneo, que surge magicamente por uma solicitação
onírica: a criatividade é sempre a consequência de algo que, incrustado no subconsciente,
provoca um encadeamento de imagens, de ideias e propostas convergentes.” (RATTO,
2004, p. 30). Mas como dar início ao processo criativo especificamente no campo teatral?
Como encontrar uma forma exata para obra, mesmo que esta forma seja provisória? Quais
seriam as etapas processuais deste trabalho teatral que conseguiriam cristalizar este
esforço criativo em “formas exteriores e reais”?
De uma maneira bem geral, e correndo o risco de abarcando o teatro desde a Idade
Média até os dias de hoje, ser acusado de cometer diversos anacronismos, arrisco definir
criatividade no teatro, como sendo: — o procedimento pelo qual um conjunto de agentes
criativos, de distintas áreas artísticas (atuação, dramaturgia, indumentária, cenografia,
iluminação, direção, cenotécnica, iluminotécnica...), mobilizados por um mesmo
187

princípio estético e ético, engajados num projeto artístico e ideológico comum, resolvem
compartilhar criativamente a concepção, execução e promover ainda a recepção de uma
obra cênica, pressupondo um espaço específico e uma determinada audiência.
Esse processo criativo envolve aspectos da técnica, da cultura e da teoria do teatro,
e na minha opinião, ele é condicionado por um forte espírito lúdico. Talvez a “fantasia”
de Hegel aqui compartilhada como um potencial de ludicidade, que mobilizaria os
agentes criativos envolvidos com a criação de uma obra cênica. Esse processo se daria
por meio de um conjunto incontável de ações e reações lúdicas, criativas, espontâneas ou
induzidas; ações e reações, as quais são selecionadas por tentativa/erro para amalgamar
uma determinada forma.
E desse conjunto de atitudes criativas vão se constituindo fragmentos de formas
provisórias, as quais buscam a expressão de conteúdos, até mesmo subliminares, que
agora afloram, atinentes que são às orientações estéticas do processo coletivo indutivo,
cuja meta é a realização de uma determinada obra cênica. É o trabalho intelectual de um
autor dramático ou de um diretor teatral, juntamente com o esforço criativo dos atores e
de um cenógrafo, que numa dinâmica conjunta alcançam essas formas provisórias, num
período que antecede a exibição pública da obra cênica. Esse período preparatório chama-
se genericamente de “ensaio”.
Tradicionalmente, esse conjunto de ensaios é coordenado por um único agente
criativo, cujo perfil, pormenorizado, veremos a seguir. É ele quem, historicamente:
preside os trabalhos criativos e técnicos dos demais agentes envolvidos no projeto; ele
racionaliza o emprego do tempo nas etapas processuais; ele provoca a fantasia dos artistas
envolvidos no processo; ele propõem temas e questões a serem compartilhados
criativamente; orienta o jogo com o espaço; e sobretudo se responsabiliza pelo processo
criativo como um todo, o qual se amalgará, pouco a pouco, no formato de uma obra
cênica. Numa palavra, no dizer de Anne Ubersfeld, que ao se aproveitar da leitura de
Kant, afirma que ele, o diretor teatral, é “o homem do julgamento”.
Como homem do julgamento é dele a última palavra sobre: a identidade da obra; as
figurações do imaginário nela presente; a ideologia da qual ela é portadora; e sobretudo
as combinações intertextuais ou inter-semióticas inerentes à obra.
Os ensaios ou os períodos preparatórios são constituídos por diversas etapas
denominadas no jargão teatral como: leitura de mesa; ensaio a italiana; ensaio de
marcação; ensaio baseado na improvisação corporal; ou na improvisação com texto; ou
ainda na improvisação musical; o ensaio também pode ser compreendido como um
188

treinamento para se dominar uma determinada técnica corporal ou vocal; pode ser
composto ainda de etapas específicas associadas a pesquisas, como por exemplo, uma
improvisação com máscaras; pesquisas de mimeses corpóreas; sessões de pesquisas
etnográficas; ainda tem-se ensaios mais técnicos de ligação de cenas e fragmentos; há
ainda ensaios corridos; ou ensaios técnicos de figurinos, de luz; até se chegar num ensaio
geral... aqui os procedimentos e as práticas são tão variáveis quanto às necessidades dos
grupos de agentes criativos alcançarem suas metas para o estabelecimento da obra cênica.
Ao término do período preparatório de ensaios, quando a obra alcança uma forma
satisfatória, ela é submetida a uma audiência. Pode-se estimar que neste momento, o
elenco de agentes criativos tenha alcançado um consenso, o qual permite a fixação desta
forma que é sustentada: pelo modo de se expressar da cena; pelo jogo da atuação dos
atores; pelos andamentos da encenação; pelas texturas dos materiais exibidos; pelo
balanço dos volumes e formas; pelo ritmo da música; pela harmonização de uma paleta
de cores para figurinos, iluminação e cenários; numa só palavra, esse elenco de agentes
criativos chegam a um consenso sobre uma teatralidade; ou mais contemporaneamente
uma performatividade que conceberam juntos em comum acordo, ao comungarem de um
mesmo projeto estético.
Evidentemente, essa forma convencionada, a ser exibida a cada noite ou a cada
sessão, ou intervenção no espaço público da rua, pode sofrer algum tipo de interferência
(interna ou externa) podendo vir a ser modificada no seu todo ou nas suas partes, desde
que os agentes criativos executores da obra estejam de acordo.
Tentei resumir o processo criativo no teatro que poderia denominar de tradicional
quando liderado por um único agente criativo. Agora gostaria de complementar
lembrando mais duas modalidades de processos criativos presentes no teatro. Vou
resumir para vocês o que seria, a meu ver, uma criação coletiva e o atual processo
colaborativo.

1. A criação coletiva

A data de nascimento da “criação coletiva” é incerta e poderíamos, remontando no


tempo, alcançar traços desse trabalho criativo na própria Comédia dell’Arte.
Porém, mais contemporaneamente, poderíamos associar a sua eclosão ao período
dos movimentos da contracultura, nos anos 1960. Os questionamentos às hierarquias e às
autoridades nos diversos campos da sociedade, bem como as transformações
189

socioculturais gestadas por maio de 1968, influenciaram o campo do teatro, engravidando


no seu interior a consolidação da expressão criativa coletivizada.
Com a frase, “A imaginação no poder”, abalavam-se as estruturas que mantinham
a Autoridade, justificavam a Hierarquia, e legitimavam as diversas Relações de opressão
no interior da sociedade. Desde então ficaria “proibido proibir!” No campo teatral
propriamente dito, o Festival de Avignon em 1968 confrontava seu tradicionalismo de 22
anos com as novas tendências criativas de expressão cênica como o happenings.
Isto é, para Criação Coletiva, não haveria mais um princípio de hierarquia, de um
autor do texto, ou de uma dramaturgia, ou de um diretor teatral criador autônomo da
encenação, mas sim a contribuição sinergética de todos os agentes criativos envolvidos
na produção que ao circularem nas diversas funções artísticas interagem contribuindo
todos, diretamente, para concepção e execução da obra cênica.
Nesta ciranda dos artistas em diferentes funções prevalece um trabalho
improvisacional centrado no ator com proeminência na improvisação e na expressão
corporal. A assinatura do espetáculo advém do grupo, e o texto, a dramaturgia são o
resultado deste mesmo processo de improvisações (sempre por tentativa e erro). O texto
coletivo será fixado somente sob consenso de todos e ao longo do processo de trabalho
improvisacional dos atores.
Fortemente calcada em métodos improvisacionais e centrada na expressão corporal,
a criação coletiva conta com a emancipação do corpo em relação ao texto, à dramaturgia
escrita ou dita erudita, tradicional. Em princípio, trata-se de uma obra cênica que vai
surgindo, por meio de estímulos e provocações criativas os quais geram um fluxo de
imagens, de ideias e propostas convergentes sem necessariamente o amparo do texto
teatral, sem a presença inclusive de uma meta muito clara a ser atingida, do ponto de vista
da forma da encenação. É sempre o processo quem mostra o caminho e revela as metas
que vão, pouco a pouco, se desenhando e definindo. Normalmente, esse processo criativo
é fortemente eivado de componentes ideológicos ou temas políticos ou sociais cujo o
próprio grupo estima colocar em discussão pública.
Problematizada por grupos teatrais nos anos 1960, a CC parte do pressuposto de
que todos somos agentes criativos aptos a atuar, todo somos indivíduos onde jaz a chama
da criatividade, que nos outorgaria o direito de nos manifestarmos teatralmente.
Questionando assim a especialização dentro da qual cada agente criativo profissional
ficara preso até então, a CC se opõe ao academicismo e ao modo de produção empresarial,
buscando meios alternativos ou coletivizados para viabilizar o trabalho teatral.
190

A CC responde a um anseio de democracia que traz para o âmbito da criação


artística aspectos do vivencial de um grupo de pessoas, que acabam por assumir uma
postura lúdico-criativa também em relação à vida. Verifica-se uma certa fluidez entre o
imaginário e o real, uma fronteira cada vez mais tênue entre teatro e vida. Pode-se dizer,
que a concentração desse processo de criação é percebida nos espetáculos com forte viés
político de alguns grupos dos anos 1960, tanto estrangeiros como o Living Theatre ou o
Performance Group ou ainda experiências como as do Teatro Oficina com Gracias
Senhor ou o Teatro Ipanema com Hoje é dia de Rock.

2. O processo colaborativo

Na minha opinião, a difusão deste procedimento criativo coletivizado pode ser


atribuída ao fato de que na tradição do teatro brasileiro de matriz erudita não se verificou,
o enraizamento de uma cultura teatral no tecido da nossa sociedade, que reivindicasse a
fundação de uma língua, diferente da cultura teatral inglesa, espanhola e francesa.
Sobre o processo colaborativo, é consenso entre pesquisadores de que este processo
criativo visa instaurar uma horizontalidade nas relações entre os esforços criativos e os
trabalhos intelectuais dos diversos integrantes de um grupo teatral profissional. Essa
dinâmica criativa começou a se delinear com mais nitidez nos processos de criação dos
espetáculos do Grupo Teatro da Vertigem, nos anos 1990, liderado por Antônio Araújo.
Os espetáculos que compõem a denominada trilogia bíblica seriam os exemplos, mais
bem-acabados, deste novo procedimento: Paraíso perdido (1992); Livro de Jó (1995) e
Apocalipse 1, 11 (1999). Neste processo, o texto dramático, como cenário, figurino, som
e iluminação vão sendo criados e escrito/inscritos ao mesmo tempo que as cenas/situações
vão sendo levantadas por meio de improvisações realizadas pelos diversos agentes
criativos envolvidos na produção. Cada agente criativo trabalha e circula por áreas
criativas específicas, havendo conforme o caso um responsável para cada uma dessas
áreas. Não há um modelo exato de processo colaborativo a ser seguido. Neste caso, há
uma forte tendência no permanente compartilhamento, por todos os agentes criativos, das
ideias, das imagens, dos propósitos, e dos fins artísticos que norteiam o projeto estético.
Há diversos grupos teatrais hoje em dia, oriundos de diferentes matrizes de culturas
teatrais distintas, que reivindicam técnicas composicionais entendidas, segundo suas
experiências como um processo colaborativo. Na leitura de programas de espetáculos,
críticas e projetos de encenação, contemporâneos, pode-se encontrar definições distintas
191

acerca deste procedimento criativo, que redimensiona o trabalho intelectual e o esforço


criativo na concepção do espetáculo na atualidade.
Na minha opinião, a difusão do processo colaborativo no âmbito dos grupos de
teatro profissional, sobretudo após o processo de redemocratização, desde 1985/1990 se
constitui como um lugar de solidariedade e de sociabilidade que se configura como
espaço de exercício de cidadania. O que quero dizer com isso? Quero dizer que os laços
de solidariedade teatral se tecem, ao longo do processo colaborativo, quando se verifica,
a meu ver, no interior dos grupos e coletivos artísticos a coexistência de noções
fundamentais, que, ao serem compartilhadas, agem sobre o processo criativo: identidade,
imaginário, ideologia e intertextualidade. Eis os valores que cada agente criativo, à sua
maneira, aporta ao banquete estético em via de construir uma obra cênica.
Assim, o processo colaborativo, bem como o constructo poético, aquilo que é
fabricado pelo grupo, é o resultado da dinâmica interna destas quatro noções, que ao
agirem, ludicamente, umas sobre as outras, por meio de trocas e improvisações
simbólicas, alcançam sua tradução na forma de obras cênicas, ou ações performativas, ou
intervenções urbanas, ou peças de teatro, ou encenações...
Tratemos agora da transmissão institucional da noção de criação e de processo
criativo no teatro. E para tanto, tomo emprestado agora a minha própria trajetória
formativa (que em parte foi institucionalizada) para contrapor com a minha prática
docente em artes cênicas.
Em 1958, foi determinado pelo MEC que os cursos do Conservatório Nacional de
Teatro sediados no Rio de Janeiro seriam: Interpretação, Cenografia, Coreografia e
Direção Teatral. Cada uma destas carreiras disporia de um programa de disciplinas e,
portanto, possuiriam uma concepção de processo criativo específico, para cada carreira.
E isso se intensifica mais nos dias de hoje apesar das experiências interdisciplinares. Seria
possível nos determos longamente sobre a particularidade de cada uma dessas formações
ou carreiras e, por conseguinte sobre cada processo criativo transmitido nestas quatro
disciplinas.
O governo federal, em 1965, dispôs novamente sobre os cursos de Teatro e
regulamentou as seguintes categorias profissionais, correspondentes às funções de:
Diretor de Teatro, Cenógrafo, Professor de Arte Dramática, Ator, Contrarregra,
Cenotécnico e Sonoplasta. Estabeleceu-se que, o Diretor de Teatro, o Cenógrafo, bem
como o Professor de Arte Dramática, seriam formados em cursos de nível superior. Essa
orientação sinalizava que haveria uma certa “hierarquia”, propiciada aqui pelo nível de
192

formação, entorno da liderança pelo processo criativo. Por que? Porque o teatro é uma
arte social coletiva, e seria necessário a identificação de um agente criativo responsável
pelo conjunto da obra. E nesse sentido, uma distinção por meio de escolaridades,
diferenciariam uma formação técnica de uma formação universitária.
Não demorou muito e começava aos poucos uma reação no sentido de transformar
os cursos técnicos e de nível médio em cursos de nível superior. Todas as formações
“seriam alçadas” à formação universitária. Ocorria naqueles anos a passagem da noção
de formação do artista do âmbito de um ambiente tipo Conservatório, para o regime
acadêmico universitário. Tratava-se da mudança de um paradigma, de uma formação,
cuja herança era europeia, mormente francesa, para uma formação organizada por
créditos escolares no padrão das universidades norte-americanas, com disciplinas
independentes umas das outras.
Tratava-se de uma medida de controle (de contenção) dos agentes criativos que
naqueles anos durante a ditadura estavam fortemente associados aos movimentos
políticos, pois o Conservatório funcionava no antigo prédio da UNE e havia uma relação
de reciprocidade entre o movimento dos estudantes e as formas e conteúdos trabalhados
pelos artistas de teatro que ali se formavam. No plano institucional, a primeira exigência
foi que as Escolas Isoladas se agregassem em Federações, daí o surgimento primeiro da
Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da Guanabara – FEFIEG (1969),
posteriormente FEFIERJ – Federação das Escolas Isoladas Federais do Estado do Rio de
Janeiro (1975). Por ocasião da criação da FEFIEG, o Conservatório Nacional de Teatro
passou a denominar-se, Escola de Teatro da FEFIEG, e sendo instalada na antiga Escola
de Química da UFRJ, enclausurada entre o Morro da Urca, a Escola Superior de Guerra
e o Companhia de Pesquisa de Recurso Minerais (CPRM), no bairro da Praia Vermelha.
Finalmente, o Conselho Federal de Educação, em 1975, reconheceu os cursos de Direção
Teatral e Cenografia e criou os cursos de Interpretação e Teoria do Teatro, sendo essas
regulamentadas em 1978. Com a criação da UNIRIO, em 1979, concretizou-se a
institucionalização dos cursos superiores em Teatro. E a Escola de Teatro da UNIRIO,
consolidava-se como a única escola de nível superior a oferecer todos os cursos na área
de teatro.
Em 1989, era eu que me formava como ator e diretor teatral, habilitado por esta
mesma Escola, para construir formas simbólicas de expressão cênica. Eu, assim como
boa parte de meus colegas, atores ou diretores, fomos submetidos a uma formação
profissional para nos transformarmos em agentes criativos capacitados a atuar em formas
193

narrativas dramáticas tanto no teatro, quanto na televisão e no audiovisual. O processo


criativo que nos foi transmitido do ponto de vista da direção teatral, por exemplo,
repousava no que chamamos de textocentrismo. Isto é, tratava-se de conhecer o mais
numeroso repertório de textos teatrais passíveis de serem encenados com algum grau de
originalidade.
Tratava-se, de um processo criativo em vista de uma escrita cênica que considerava
o texto teatral como uma espécie de manancial/fonte/potência, uma referência para o
estímulo da criação cênica. Esse texto deveria ser submetido a uma rigorosa “leitura”,
objeto de uma análise pormenorizada e uma “interpretação” original da obra dramática
que deveria se transformar em obra cênica.
Assim o diretor operando como um mediador/comentador de textos teatrais transita
entre dois universos, se apresentando como um criador demiúrgico. Ele é o criador de
uma obra cênica que advém de um resíduo literário, dramático. Seu trabalho poético tem
por meta uma encenação, com seus aspectos sensoriais, poéticos visto que essa obra é
revestida por uma carga de teatralidade.
Já do ponto de vista da formação do ator, o processo criativo deveria ser subsidiado
por um rigoroso trabalho psicofísico sendo o jovem ator capaz de comunicar, expressar,
apresentar, reviver, por assim dizer, as situações dramáticas evocadas por uma
personagem de ficção, escrita por um autor dramático.
A meta aqui era encarnar comportamentos imaginários e expressar sentimentos com
o emprego do seu corpo e da sua voz, procurando algum grau de originalidade nesta
criação de subjetividade. O processo criativo aqui, como não poderia deixar de ser, se dá
no corpo do próprio ator, que é o seu próprio instrumento, seu material e sua ferramenta
de trabalho. Na contemporaneidade, no tocante ao trabalho do ator, há de se recordar uma
boa diversidade de denominações para função desempenhada pelo ator no interior de um
processo criativo. Saindo-se da dicotomia intérprete / executor, encontram-se
denominações como ator compositor; ator criador; ator-autor; ator-colaborador, ator-
performer....
Assim posso concluir, que estive exposto a uma formação cujo processo criativo se
afirmava por meio de um pensamento convergente. Isto é, a possibilidade de oferecer
uma solução ao problema da criação teatral por meio de uma expressão artística, que não
deixava de ser a manifestação de uma expressão cênica a ser correspondida, sem maiores
dificuldades por parte de uma assistência.
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Quando docente do Curso de Direção Teatral na UFRJ, no início dos anos 1990,
procurei pesquisar sobre o trabalho criativo do coordenador da cena teatral, da encenação
ou da performance. Aproveitando-me da história do teatro brasileiro e dos vocábulos que
a língua portuguesa me oferecia estabeleci 04 tipos ideais: o ensaiador dramático; o
diretor teatral; o encenador; e o performador.
Esses tipos ideais de comportamento criativo era para demostrar aos jovens
aspirantes à carreira de diretor teatral, concepções criativas distintas diante da elaboração
e execução de uma obra cênica. No início dos anos 1990, o perfil deste realizador, —
envolvido por grandes transformações atinentes ao mundo digital e ao emprego da
tecnologia em cena, — era muito diferente da formação que me fora dispensada.
Assim, o trabalho criativo do coordenador da cena, conforme um ponto de vista
histórico, poderia ser idealmente resumido da seguinte maneira.
O Ensaiador Dramático, possuiria um perfil de cunho luso-brasileiro, trabalharia
basicamente focado na reprodução de uma cena que converge para expressão do gênero
dramático em que o texto foi escrito. Deve haver uma relação sincrônica entre literatura
dramática e encenação;
O Diretor Teatral por sua vez aporta uma leitura crítica do texto teatral e confere ao
mesmo um revestimento estético, produzido por uma subjetividade que lhe permita
assinar o espetáculo, elevando-o a condição de uma obra de arte independente da
literatura.
O Encenador a seu turno, tensionando cada vez mais a emancipação da cena em
relação à literatura teria o seu trabalho criativo disparado a partir de qualquer resíduo
literário, questão, problema, trazendo à cena uma obra que não tem necessariamente
nenhum vínculo com uma literatura dramática, instaurando novos protocolos criativos e
formas expressivas;
O Performador, estaria próximo daquele criador cênico, que em grupo ou
individualmente, oferece sua própria biografia, decantada por manifestações poéticas
performativas em forma de ações e intervenções cujas matrizes indutivas adviriam do
happening e das artes da performance com o fim de fabricar uma forma cênica muitas
vezes radical, pois arriscando-se fisicamente seus limites entre o real e o ficcional
confronta o espectador com formas divergentes.
Dando continuidade aos estudos sobre processos de criação cênica, em 2013, passei
a estudar o discurso dos agentes criativos expresso nos programas de espetáculos teatrais.
Nesta pesquisa com os programas de teatro, o mais estimulante foi a descoberta da
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presença de quatro ênfases discursivas no interior do projeto editorial dos programas de


teatro, cuja autoria nem sempre é fácil localizar. Essas ênfases no projeto editorial dos
programas nos ajudam a compreender as mentalidades bem como os caminhos do
processo criativo e as suas variedades em relação a um grupo teatral; um diretor; uma
companhia estável de repertório; um espetáculo avulso, entre outras modalidades de
produções teatrais. Essas modalidades são assim designadas por mim: didascálica,
histórica, estética e genética.
Por meio de uma análise da argumentação dos agentes criativos nas páginas dos
programas, pode-se perceber um conjunto de discursos criativos que se interligam as
esferas das políticas culturais; da economia; da publicidade; da arte; e notadamente do
teatro constituindo-o como um fato da cultura.
Já mais recentemente fui estudar a possibilidade de se pensar um deslocamento do
olhar historiográfico, e consequentemente dos juízos sobre os processos criativos, quando
se estuda a história e o trabalho criativo de um teatro “fora do eixo” RJ-SP. Observa-se
que de uma cultura teatral, rural ou urbanizada, central ou periférica no interior de uma
dada sociedade, emergem processos criativos de inspiração endógena ou exógena. Sejam
eruditos ou populares, eles podem ser cotejados com os processos criativos de produções
inseridas num sistema teatral, por sua vez, já consolidado, sobretudo com o produzido no
eixo-RJ-SP.
Ao se observar nossas Regiões Teatrais constatam-se densidades variáveis no
interior de sistemas teatrais que são distintos uns dos outros. São eles, independentes de
suas intensidades, quem são capazes de efetivamente, condicionados pelas esferas
política, econômica e artística, articularem e estruturarem um mercado teatral. Aqui
haveria muito o que discutir, pois o próprio mercado, a seu turno, também é capaz de
engendrar a reprodução de determinados comportamentos criativos, que por sua vez
engendram obras específicas visando a manutenção do próprio mercado, em detrimento
de outras manifestações cênicas periféricas a este mesmo mercado.
Podemos concluir deduzindo que:
1. há historicamente uma concepção de processo criativo hierarquizado de
longa duração, o qual encontrou nos anos 1960 a experiência da criação coletiva e nos
anos 1990 o processo colaborativo, sobretudo aqui no Brasil;
2. há uma formação específica para os agentes criativos no interior da cadeia
criativa das artes cênicas, o que pressupõe o domínio de um processo criativo atinente a
cada formação;
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3. que o processo criativo pode ser percebido diferentemente do ponto de


vista histórico, dependendo das intenções do projeto estético do coordenador do
espetáculo teatral (Ensaiador Dramático; Diretor Teatral, Encenador e Performador);
4. que as três esferas, da cultura teatral, do sistema teatral e de um mercado
teatral podem determinar/impor concepções imaginárias e engendrar processos criativos
distintos;
5. de que, por fim, sobretudo na atualidade os programas de espetáculo são
as nossas fontes primárias para conhecer os processos criativos quando nos defrontamos
com uma argumentação sobre a gênese criativa do trabalho teatral.

Referências

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Subtexto, n. 2, ano ii, 2005.

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2013.

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