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WENDY BROWN

nas ruínas do
neoliberalismo
a ascensão da pilitica
antidemocrática
no ocidente
Aturdidos pela rápida ascensao das forças •
de extrema direita, não sabemos como
í nomeá-las. O mérito de Wendy Brown,
professora de ciência política na Universi-.
dade da Califórnia em Berkeley, é pôr e s s ^
^ evento em perspectiva numa análise qué
mantém a heterogeneidade dos elemento^
envolvidos. Por um lado, os dispositivos já,
familiares do neoliberalismo: privatiza-
ção do Estado, desmonte da solidarieda-
^^jí^de social, financeirização e corrosão da I,
democracia. Por outro lado, de dentro da \
democracia liberal-capitalista, emerge seu " nas ruínas do neoliberalismo
, aparente oposto: nacionalismo, conserva-
. .dorismo cristão, racismo e masculinismo
branco. Agregando ambos, a nova direita
báte-se^de maneira agressiva, debochada
e cteletéria contra a ciência, a laicidade e
•'^as in^ituições democráticas, ao mes^o
tempo em que exibe uma feroz e oca von-
teide de potência. Embora seus coanponen^
tes pareçam familiares, estamos diante d^
uma formação relativamente inédita..^s ) sg
A leitu^í^gmarxista e foucaultiaAa'de
Brown ifes riibstra que o j)rojeto neoliberaí'
que déu à luz seu filho É^tardo fqi gestado ^
desde a 2® Guerra Mundial: pá^Fa. blindar o ^
capitalismo do "perigo" representado pelo
poder popular e a intervenção estatista, a
cidadania deve ser rigidamente cerceada.
Mais tarde, economistas como Friedrich
Hàyek elaboram o projeto mercado-e-
.-moral: a partir da lógica de mercado, tra-
ta-se de moldar o Estado, a moral e ã lei;
^ ^ o lugãf da igualdade e da solidariedade
social, agora as famílias são responsáveis
Nas ruínas do neoliberalismo:
a ascensão da política antidemocrática no Ocidente
WENDY BROWN
© 2019 Columbia University Press
© 2019 Editora Filosófica Politeia

TÍTULO ORIGINAL

In the ruins of neoliberalism:


the rise of antidemocratic politics in the West

TRADUÇÃO

Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman C. Santos


REVISÃO

Humberto do Amaral e Sílvia Antunes Marino

nas ruínas do
PROJETO GRAFICO

Isabela Sanches

neoliberalismo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/ 9410

BSyyn Brown, Wendy


Nas ruínas do neoliberalismo / Wendy Brown
traduzido por Mario A. Marino, Eduardo Altheman C. a ascensão da política
Santos. - São Paulo : Editora Filosófica Politeia, 2019, 256 p.
Inclui bibliografia e índice, ISBN 978-85-94444-07-3 antidemocrática
1. Neoliberalismo. i. Marino, Mario A.
II. Santos, Eduardo Altheman C. iii. Título. no ocidente
CDD 330.98
2019-1062 CDU 338.1

índice para catálogo sistemático


1. Neoliberalismo 330.98
2. Neoliberalismo 338.1

A reprodução parcial sem fins lucrativo deste livro,


para uso privado ou coletivo, em qualquer meio, requer
autorização prévia dos editores.

As URLS foram testadas em agosto de 2019

Editora Filosófica Politeia


São Paulo I outubro de 2019
www.editorapoliteia.com.br 1
editora politeia
K3 @ /editorapoliteia
151
CAPÍTULO 4
AGRADECIMENTOS
BOLOS F A L A M ; CENTROS
DE G R A V I D E Z O R A M
Liberdade religiosa e liberdade de expressão
na jurisprudência neoliberal | Bolos que
INTRODUÇÃO falam | Proprietário ou artista? | Artista ou
A ascensão da política antidemocrática fornecedor? | Expressão artística ou semiótica
I Neoliberalismo? O quê!? do bolo? I Liberdade de exercício como liberdade
de expressão | Centros de gravidez oram
33
CAPÍTULO 1 197

A SOCIEDADE DEVE SER D E S M A N T E L A D A CAPÍTULO 5

Democracia, igualdade e o social | A sociedade NENHUM FUTURO PARA HOMENS BRANCOS:

deve ser desmantelada | Hayek hoje: a liberdade NIILISMO, FATALISMO E R E S S E N T I M E N T O

e o social | Hannah Arendt não ajudou | Niilismo e Dessublimação | Niilismo


Perdendo o imaginário político do social e ressentimento | Espaço

67
CAPÍTULO 2
A POLÍTICA DEVE SER DESTRONADA 229

A antipolítica neoliberal | Milton BIBLIOGRAFIA

Friedman | Friedrich Hayek |


Os ordoliberais | O que deu errado? 247
ÍNDICE

109
CAPÍTULO 3
A E S F E R A PESSOAL E PROTEGIDA
DEVE SER ESTENDIDA
Teorizando o tradicionalismo moral como
elemento do neoliberalismo | A tradição
segundo Friedrich Hayek | O neoliberalismo
realmente existente | Reconfigurando a
nação como família e empresa privada
AGRADECIMENTOS

Este livro surgiu de reflexões provocadas pelas eleições pre-


sidenciais de novembro de 2016 nos Estados Unidos. Ele foi
concluído em 2018 nas Palestras da Biblioteca René Wellek
em Irvine, nos Seminários Gauss de Crítica em Princeton e
na Palestra Robert S. Stevens na Escola de Direito de Cornell.
Eu havia planejado outro tipo de pesquisa e de escritos para
esse período, durante o qual recebi a Bolsa da Fundação
Simon Guggenheim e a President's Humanities Research
Fellowship da Universidade da Califórnia. Dediquei-me às
perguntas e análises desenvolvidas nestas páginas porque
me pareceu irresponsável proceder de outro modo. Tenho
uma dívida profunda com os dois programas que apoia-
ram esta realização e com as instituições que acolheram
as palestras.
Os fundos Class of 1936 First Chair permitiram que eu con-
tratasse dois soberbos assistentes de pesquisa em Berkeley,
William Callison e Brian Judge. Para além da extensa ajuda
com a pesquisa e com o preparo do manuscrito, ambos
influenciaram meu pensamento com suas reflexões. O pro-
fundo conhecimento de Callison sobre os ordoliberais e
suas ideias refinadas sobre racionalidade política foram
especialmente importantes na concepção e revisão do capí-
tulo 2. Ele me salvou de várias gafes e me tutorou durante
o trabalho.
Além de Brian e Will, agradeço a Judith Butler, Michel
Feher, Bonnie Honig, Steve Shiffrin, Quinn Slobodian e Nel-
son Tebbe. Cada um ofereceu excelentes sugestões. Minha
aula magna na Universidade de Lucerna no verão de 2018
permitiu-me refinar algumas ideias.
Wendy Lochner da Columbia University Press foi encora-
jadora, flexível e profissional. Bud Bynack, revisor extraordi-
nário, e também gentil e divertido, é uma dádiva para escri-
tores e leitores.
A doença terminal de Saba Mahmood acompanhou gran- INTRODUÇÃO
de parte da escrita deste livro. Helene Moglen faleceu subi-
tamente durante a finalização do texto. Ambas eram amigas
amadas. Ambas nutriam irrepreensível ardor pela beleza e Eis o espírito tirânico querendo brincar
pelas possibilidades deste mundo, além de uma fúria límpi- de bispo e de banqueiro por toda parte.
da contra suas crueldades, ardis e erros. Que seus espíritos George Eliot, Middlemarch.^
possam inspirar nosso futuro.
A introdução e os capítulos i, 2 e 5 baseiam-se em argu-
mentos que delineei em Neoliberalisms Frankenstein: Autho- Para sua própria surpresa, forças da extrema direita subi-
ritarian Freedom in Neoliberal "Democracies". O capítulo 1 traz ram ao poder nas democracias liberais pelo mundo todo.^
também elementos de Defending Society, da série Big Pictures. Cada eleição traz um novo choque: neonazistas no parla-
mento alemão, neofascistas no italiano, o Brexit conduzi-
do pela xenofobia alimentada por tablóides, ascensão do
nacionalismo branco na Escandinávia, regimes autoritários
tomando forma na Turquia e no Leste Europeu e, é claro, o
trumpismo. O ódio e a belicosidade racistas, anti-islâmicos
e antissemitas crescem nas ruas e na internet. Grupos de
extrema direita recentemente amalgamados têm eclodido
audaciosamente na vida pública após terem passado anos à
espreita, na maior parte do tempo nas sombras. Políticos e
vitórias políticas encorajam movimentos de extrema direita
que, por sua vez, se sofisticam à medida que manipuladores

Agradeço a Corey Robin, que me enviou essa frase de Middle-


march.
Os sentimentos nativistas, racistas, homofóbicos, sexistas,
antissemitas, islamofóbicos, bem como sentimentos cristãos
antisseculares, adquiriram bases políticas e legitimidade
inimagináveis há uma década. Políticos oportunistas surfam
nessa onda, enquanto conservadores com mais princípios
buscam submergir e esperar que ela passe; as agendas polí-
ticas de ambos frequentemente confluem mais para a pluto-
cracia do que para as paixões furiosas de uma base que exige
a criminalização de imigrantes, do aborto e da homossexuali-
dade, a preservação de monumentos ao passado escravista e
que as nações voltem a se dedicar à branquitude [iDhiteness]
e à cristandade.
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políticos e peritos em mídia social moldam a mensagem. cujas limitações em breve ficarão claras, vai mais ou menos
Enquanto esse recrutamento continua crescendo, centris- nesta direção: no Norte global, a política econômica neoli-
tas, neoliberais mainstream, liberais e esquerdistas hesitam. beral devastou áreas rurais e suburbanas, esvaziando-as
^Indignação, moralização, sátira e esperanças vãs de que fac- de empregos decentes, aposentadoria, escolas, serviços e
ções internas ou escândalos na direita produzirão sua auto- infraestrutura enquanto os gastos sociais minguavam e o
destruição têm prevalecido sobre estratégias sérias para capital ia ã caça de mão de obra barata e de paraísos fiscais
^ desafiar essas forças por meio de alternativas convincentes. no Sul global. Ao mesmo tempo, abria-se uma clivagem cul-
Nós temos dificuldade até mesmo com a nomenclatura: tra- tural e religiosa sem precedentes. Citadinos modernos, edu-
ta-se de autoritarismo, fascismo, populismo, democracia não cados, elegantes, seculares, multiculturais e viajados cons-
liberal, liberalismo antidemocrático, plutocracia de extrema truíam um universo moral e cultural diferente daquele dos
direita? Ou outra coisa? interioranos, cujas desgraças econômicas foram temperadas
A incapacidade de prever, compreender ou efetivamen- com um distanciamento crescente dos costumes daqueles
te contestar esses desenvolvimentos é devida, por um lado, que os ignoravam, ridicularizavam ou desdenhavam. Além
a suposições cegas sobre valores e instituições ocidentais de empobrecidos e frustrados, os cristãos brancos, rurais ou
duradouros - especialmente o progresso, o Iluminismo e a suburbanos, eram deixados de lado e para trás, alienados e
democracia liberal e, por outro lado, à aglomeração pouco humilhados. E havia o racismo duradouro, crescente confor-
familiar de elementos na direita ascendente - sua curiosa me novos imigrantes transformaram bairros suburbanos e
combinação de libertarianismo, moralismo, autoritarismo, conforme políticas de "equidade e inclusão" pareceram, ao
nacionalismo, ódio ao Estado, conservadorismo cristão e homem branco não escolarizado, favorecer a todos, menos
racismo. Estas novas forças conjugam elementos já fami- a ele. Assim, as agendas políticas liberais, as agendas eco-
liares do neoliberalismo (favorecimento do capital, repres- nômicas neoliberais e as agendas culturais cosmopolitas
são do trabalho, demonização do Estado social e do político, geraram uma crescente experiência de abandono, traição
ataque às igualdades e exaltação da liberdade) com seus e finalmente raiva por parte dos novos despossuídos, das
aparentes opostos (nacionalismo, imposição da moralidade populações da classe trabalhadora e da classe média bran-
tradicional, antielitismo populista e demandas por soluções cas do Primeiro Mundo e do Segundo. Embora seus pares de
estatais para problemas econômicos e sociais). Elas conju- pele escura tenham sido prejudicados tanto quanto ou mais
gam a retidão moral com uma conduta amoral e não civiliza- pelas dizimações neoliberais dos empregos protegidos por
da quase celebradora. Endossam a autoridade enquanto exi- sindicatos e dos bens públicos, pelo declínio das oportuni-
bem desinibição social e agressão pública sem precedentes. dades e do acesso e qualidade da educação, uma coisa que
Batem-se contra o relativismo, mas também contra a ciência negros e latinos não sofreram foi a perda da supremacia na
e a razão, e rejeitam afirmações baseadas em fatos, argu- América e no Ocidente.
mentação racional, credibilidade e responsabilidade. Desde- À medida que esse fenômeno tomava sua forma inicial,
nham dos políticos e da política enquanto manifestam uma prossegue a narrativa, plutocratas conservadores manipu-
feroz vontade de potência e ambição política. Onde estamos? lavam-no brilhantemente: os despossuídos eram a cada vez
Não faltaram esforços de analistas e acadêmicos para lançados sob o rolo compressor da economia, enquanto se
responder essa questão. Uma narrativa comum da esquerda. tocava para eles uma sinfonia política de valores familiares
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cristãos, acompanhada por hinos louvando a branquitude e foram igualmente alimentados com uma dieta regular de
o sacrifício de seus jovens em guerras intermináveis e sem comentários de direita da Fox News, de programas de rádio
sentido. É disso que trata o livro What's the Matter with Kan- e mídias sociais, articulada pelas franjas enquanto um
sas?^ Misturar patriotismo com militarismo, cristandade, pot-pourri de movimentos antes isolados - nacionalistas
família, mensagens racistas cifradas e capitalismo desen- brancos, libertarianos, contrários ao governo e fascistas -
freado foi a receita de sucesso dos neoliberais conservadores conectava-se pela internet.® Devido especialmente á desilu-
até a crise financeira de 2008 devastar a renda, a aposen- são generalizada com as intermináveis guerras no Oriente
tadoria e a casa própria da classe trabalhadora e da clas- Médio, o patriotismo militarista e os valores da família não
se média branca que constituíam sua base.^ Uma mudança eram mais suficientes. Ao invés disso, o novo populismo de 1
séria era então necessária: até mesmo economistas murmu- extrema direita sangrou diretamente da ferida do privilégio
ravam seus equívocos sobre a desregulamentação descon- destronado que a branquitude, a cristandade e a masculini-
trolada, sobre o financiamento da dívida e sobre a globaliza- dade garantiam àqueles que não eram nada nem ninguém.
ção. Isso significava gritar contra o Estado Islâmico, contra Foi fácil pôr a culpa pelo seu destronamento no roubo de
os imigrantes ilegais, contra os mitos acerca das ações afir- empregos por migrantes, minorias e outros supostos bene-
mativas e, acima de tudo, culpar o governo e o Estado social ficiários não merecedores da inclusão liberal (mais escan-
pela catástrofe econômica, sorrateiramente transferindo a dalosamente, aqueles de religiões e etnias supostamente
culpa de Wall Street para Washington, porque o governo terroristas) e cortejados por elites e globalistas. Os danos
limpava a lambança resgatando os bancos, enquanto dei- das políticas econômicas neoliberais foram assim manipu-
xava as pessoas comuns na mão. Por conseguinte, nasceu lados na imagem de suas próprias perdas, espelhada no des-
uma segunda onda de reação ao neoliberalismo, mais rebel-
caminho da nação. Era ^ m a g e m de um passado míticode
de, populista e repulsiva. Já atormentados por uma elegan-
famílias felizes, íntegras e heterossexuais, quando m u ^ -
te família negra na Casa Branca, os brancos descontentes
res e minorias raciais sabiam seus lugares, quando as yizi-
nhanças eram ordeiras, j ^ r a s e homogêneas, a heroína
era problemâjdfls negros, 9 terrorismo não estava em^ solo
3 Thomas Frank. What's the Matter with Kansas? A s referências
bibliográficas completas encontram-se na bibliografia ao final
pátrio e quando nridt^nHads e branquitude hegemônicas
deste volume, [N.E.] constituíam a identidade, o poder e o orgulho nianiffíatos
4 Muitos estudiosos cuidadosos tratam a longa cauda da crise da'nagao'e do Ocidente.^ Contrário á invasão de outros povos,
de 2 0 0 8 como a causa que precipitou a virada de direita. ideias, leis, c u E u r a s ê^eligiões, esse era o mundo de conto
Cf., entre outros, Yanis Varoufalcis, "Our N e w International de fadas que os líderes populistas de direita prometeram
Movement Will Fight Rising Fascism and Globalists". David
Leonhardt, "We're Measuring the Economy All Wrong: The
Official Statistics Say That the Financial Crisis Is Behind Us. David Neiwert, Alt-America: The Rise of the Radical Right in the
It's Not". Manuel Funlce et ai, "The Financial Crisis is Still Age of Trump.
Empowering Far-Right Populists: W h y the Effects Haven't Cf James Kirchik, The End of Europe: Dictators, Demagogues,
Faded". Philip Stevens, "Populism is the True Legacy of the and the Coming Dark Age. Douglas Murray, The Strange Death
Global Financial Crisis". Khatya Chhor, "Income Inequality, of Europe. Walter Laqueur, After the Fall: The End of the Euro-
Financial Crisis, and the Rise of Europe's Far Right". pean Dream and the Decline of a Continent.
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proteger e restaurar. Os slogans das campanhas dizem tudo: trabalhadora branca ou o novo racismo ao qual se apegam
"Make America great again" [Faça a América grande de novo] jovens brancos não escolarizados. Alguns sublinham o
(Trump), "A França para os franceses" (Le Pen e a Frente papel dos poderosos think tanks de direita e do dinheiro na
Nacional], "Take back control" [Recupere o controle] (Brexit), política. Outros sublinham os velhos/novos "tribalismos"
"Nossa cultura, nosso lar, nossa Alemanha" (Alternativa para que emergem do colapso de Estados-nação ou de regiões
a Alemanha), "Polônia pura. Polônia branca" (Partido Polonês antes mais homogêneas (em termos raciais ou religiosos).
da Lei e da Justiça), "Mantenha a Suécia sueca" (Democra- Entretanto, quase todos concordam que a intensificação da
tas Suecos). Esses slogans e o ressentimento que expressam desigualdade neoliberal no Norte global foi um barril de pól-
conectaram grupos de franjas racistas outrora dispersos, vora e que a imigração em massa do Sul para o Norte lançou
católicos de direita, cristãos evangélicos e cidadãos subur- um fósforo aceso.
banos frustrados que despencavam da classe média e da Com suas várias inflexões, essa narrativa se tornou o
classe trabalhadora. A crescente segmentação [siloization] senso comum da esquerda desde o terremoto político de
do consumo de mídia, da TV a cabo ao Facebook, reforçou novembro de 2016. Ela não está errada, mas incompleta,
tais conexões e alargou o abismo entre os interioranos e como procurarei mostrar. Ela não registra as forças que
os instruídos, urbanos, cosmopolitas, mestiços, feministas, sobredeterminam a forma radicalmente antidemocrática da
defensores do queer e ateus. Ao mesmo tempo, a implacável rebelião e, assim, tende a aUnhá-la aos fascismos de outrora;
corrosão neoliberal de toda forma de existência não moneti- ela não considera a demonização do social e do político por
zada - tal como ser bem informado e cheio de idéias sobre o Darte da pnvpmpmpntalidade nraliberal, nem a valorização
mundo - convergiu com a privatização, que sufocou o acesso da moralidadeJttadicional e j o s mercados como seus subs-
ao ensino superior para muitos. Uma geração já afastada da titutos: não reconhece a d e s i n t ^ a ç ã o da sociedade e o des-"
educação em artes liberais'' voltou-se contra ela. prpHitn Hn berri Dúblíco pelaj"4;&ãQ neoliberal, a semear"^
O foco dessa narrativa varia. Ora são as políticas neoli- terreno cara os assim chamados "tribalismos" que emergi-
berais, ora a suposta fixação da esquerda liberal com o mul- i:am como identidades e forças políticas em anos recentes.
ticulturalismo e com políticas identitárias, ora o crescente Não explica como o ataque à igualdade, combinado com a
poder e importância política de nacionalistas evangélicos e mobilização dos valores tradicionais, pôde aumentar o fogo
cristãos, ora a crescente vulnerabilidade de uma população e legitimar racismos dos legados coloniais e escravagistas
não escolarizada às mentiras e conspirações, ora a neces- que há tanto tempo fervem em fogo brando — o que Nikhil
sidade existencial de horizontes, ora a falta de atratividade Singh chama de nossas "guerras internas e externas" - ou
da visão de mundo globalizado para todos, exceto para as ainda o caráter de nunca-vá-suavemente-noite-adentro® da
elites e, por vezes, o racismo duradouro de uma velha classe

"Never go gently into the night" ou sua variação "never go


7 Uma educação em artes liberais é um curso universitário vol- softly into the night" remete ao poema "Do not go gently
tado à ideia de uma educação interdisciplinar que visa uma into that good night" de Dylan Thomas, publicado em 1951.
vida cívica ativa e livre. Seu objetivo é explorar diversas áreas A expressão, hoje popularizada na língua inglesa, refere-se à
para desenvolver conhecimentos gerais de modo a fortalecer idéia de lutar até o fim, não entregar os pontos, mesmo quan-
o pensamento crítico e a comunicação, [N.T.] do o f i m é i m i n e n t e , [N.T.]
34
T 17

superordenação masculina;® não capta o niilismo crescente fica intocado pela forma neoliberal derazão^e de valoração,
que desafia a verdade e transforma a moralidade tradicional e que o ataque_do neoliberalismo à demõcí^ia tem. em todo
em arma de batalha política; n^o identifica como os ataques o lugar,TnflSido lei, cultura polítina p ciihiPÜjüíladÊjiolíÜca.
à democracia constitucional, à igualdade racial, de gênem Compreender as raízes e as forças da situação atual requer
ê ^ e x u a l ^ educação puDnca^â e s T S ^ ú b l i c a civil não vio- avaliar a cultura política e a produção subjetiva neoliberais,
lenta foram todos levados a cabo~em nome da liberdãdeV e não somente as condições econômicas e os racismos per-
da^oralidade. Não compreende como a racionalidade neo- sistentes que a geraram. Significa avaliar que a ascensão das
liberal desorientou radicalmente a esquerda ao moldar um formações políticas nacionalistas autoritárias brancas se
discurso corriqueiro no qual a justiça social é de uma só vez deve à raiva instrumentalizada dos indivíduos abandonados
banalizada e demonizada como "politicamente correta" ou economicamente e ressentidos racialmente, mas também
caracterizada como uma Kulturkampfáa esquerda gramscia-
delineada por mais de três décadas de assaltos neoliberais
na que visa depor a liberdade e a moralidade e que é assegu-
à democracia, à igualdade e à sociedade. O sofrimento eco-
rada por um estatismo blasfemo."
nômico e o rancor racial das classes trabalhadora e média
Este livro trata dessas questões por meio da teorização brancas, longe de se distinguir desses assaltos, adquire voz
de como a racionalidade neoliberal preparou o terreno para e forma a partir deles. Esses ataques também abastecem
mobilizar e legitimar forças ferozmente antidemocráticas (mesmo que por si mesmos não sejam sua causa) a ambição
na segunda década do século xxi. O argumento não é que nacionalista cristã de (re)conquistar o Ocidente. Eles tam-
o neoliberalismo por si só causou a insurgência da extrema bém se misturam com um niilismo intenso que se manifesta
direita no Ocidente de hoje, ou que toda a dimensão do pre- como perda da fé na verdade, na facticidade e em valores
sente, das catástrofes que produzem grandes fluxos de refu- fundamentais.
giados para a Europa e América do Norte até a setorização e Para construir estes argumentos, Nas ruínas do neolibera-
a polarização políticas geradas pelas mídias digitais, possa lismo revisita aspectos específicos do pensamento daqueles
ser reduzida ao neoliberalismo." Meu argumento é que nada que se reuniram na Sociedade Mont Pèlerin em 1947. ado-
taram o nome "neoliberalismo" e propuseram o esquema
Nikhil Singh, Race and America's Long War. fundador para aquilo que Michel Foucault chamaria de a
10 Cf., p. ex., Jonah Goldberg, Liberal Fascism, pp. 361-67.
11 Os eventos que ajudam a crescer e a animar o que antes era educação pública e do acesso ao ensino superior por famílias
uma formação marginal nos Estados Unidos e na Europa trabalhadoras e de classe média, e, acima de tudo, o desenvol-
incluem as consequências do colapso do capital financeiro, vimento da internet. A globalização neoliberal também é res-
o surgimento de uma mídia altamente setorizada e isolada, ponsável por grande parte do descontentamento das classes
inclusive as mídias sociais, as várias crises políticas e eco- brancas trabalhadora e média no Norte global, cujas fortunas
nômicas - da guerra civil na Síria à guerra de gangues na e futuros colapsavam à medida que o capital manufaturei-
Guatemala, gerando uma onda de refugiados e migrantes ro buscava mão de obra barata no Sul global, que o capital
para a Europa e a América do Norte - , o Estado Islâmico e financeiro transformou a necessidade humana de moradia e
outras fontes de terror, dois mandatos de um presidente afro- a provisão para a velhice em fonte de megalucros pela espe-
-americano nos Estados Unidos, a promoção pela esquerda de culação e que a idéia da tributação como forma de custeio da
justiça e cidadania multiculturais, o declínio da qualidade da civilização desapareceu.
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T 19

dramática "reprogramação do liberalismo" que hoje conhe- to o poder oligárquico internacional gerado pelas finanças
cemos como neoliberalismo. Novamente, isso não significa, que hoje segura as rédeas dos Estados." Buscando colocar
entretanto, que nem os intelectuais neoliberais originais - a politica para fora dos mercados e a concentração de inte-
Friedrich Hayek, Milton Friedman e os seus meios-irmãos, resses econômicos para fora da elaboração das politicas, eles /
os ordoliberais alemães - e nem mesmo os próprios formu- teriam deplorado a manipulação das politicas públicas por
ladores das politicas neoliberais mirassem o presente poli-
setores dominantes da indústria e do capital e teriam odia-
tico e econômico. Ao contrário, o entusiasmo popular com
do a politização das empresas. Acima de tudo, eles temiam
os regimes autocráticos, nacionalistas e em alguns casos
a mobilização politica de cidadãos ignorantes e excitados e
neofascistas, abastecidos pela disseminação de mitos e
buscavam no mercado, na disciplina moral e numa demo-
pela demagogia, afasta-se tão radicalmente dos ideais neo-
cracia severamente cerceada as formas de pacificá-los e con-
liberais quanto os regimes comunistas estatais repressivos
tê-los. Eles teriam ficado horrorizados diante do fenômeno
afastavam-se de Marx e de outros intelectuais socialistas,
contemporâneo do surgimento de lideres ao mesmo tempo
mesmo que, em ambos os casos, a planta disforme tenha
autoritários e imprudentes surfando nessa maré rumo ao
crescido do solo fertilizado por aquelas ideias. Forjado no
poder. Em suma, embora este livro argumente que a conste-
cadinho do fascismo europeu, o neoliberalismo visou uma
lação de principios, politicas, práticas e formas de governar
imunização permanente das ordens de mercado contra o
a razão que pode ser reunida sob o signo de neoliberalismo
rebrotar de sentimentos fascistas e poderes totalitários."^
constituiu de modo importante o presente catastrófico, não ^
Ávidos por apartar a politica dos mercados, os neoliberais
foi esse o rebento deseiado oelo neoliberalismo. mas sua
originais teriam detestado tanto o crony capitalism"^" quan-
criação frankensteiniana. Compreender como essa criação
veio a ser requer o exame das falhas e oclusões iminentes
12 Alguns ordoliberais chegaram perto de endossar o fascismo, e
dos principios e politicas neoliberais, bem como sua mescla
para nenhum deles estabelecer barreiras entre os mercados e
com outros poderes e forças, tais como racismo, niilismo,
a política era o único objetivo. Cf. Quinn Slobodian, Globalists:
The Birth of Neoliberalism and the End of Empire, que oferece
fatalismo e ressentimento."®
um relato convincente da ordem mundial que eles procuraram
construir. Além disso, embora eu cite a datação convencional
14 Para os relatos de como e por que bancos e instituições finan-
das origens do neoliberalismo, a partir do encontro de 1947 da
ceiras enfraquecem cada vez mais a autonomia política na
Sociedade Mont Pèlerin, William Callison traz um argumento
tomada de decisões, cf Thomas Biebricher, "The Biopolitics of
convincente ao remontar suas origens até o período entre as
Ordoliberalism", pp. 171-91; Claus Offe, Europe Entrapped. Wol-
guerras mundiais. Cf William Callison, Politicai Deficits: The
fgang Streeck, Buying Time: The Delayed Crisis of Democratic
Dawn ofNeoliberal Rationality and the Eclipse of Critical Theory.
Capitalism. Yanis Varoufakis, And the Weak Suffer What They
13 A expressão "crony capitalism", que pode ser traduzida como Must: Europe's Crisis and America's Economic Future.
"capitalismo de compadrio" ou "capitalismo clientelista", refe-
15 Muitos acadêmicos estudiosos de economia política analisa-
re-se a uma discussão travada na sociologia e na teoria políti-
ram criticamente as contradições econômicas e as limitações
ca após as experiências do Estado de bem-estar social nos paí-
da economia neoliberal. Além disso, em Politicai Deficits, Wil-
ses centrais e as modernizações "retardatárias" na periferia
liam Callison oferece uma explicação genealógica e analítica
a respeito das relações promíscuas entre o Estado e grupos
dos pontos cegos internos do neoliberalismo vis-à-vis do "polí-
econômicos monopolistas e oligopolistas. [N.T.]
tico". Thomas Biebricher escreveu sobre suas contradições e
34 T 20

/ Este livro não afirma que o neoliberalismo visou a con- subjetividade." Ele também revisa argumentos de um ensaio
juntura atual de princípios, políticas, práticas e formas de anterior, American Nightmare, em que analisei as raciona-
racionalidade, nem advoga que os fascismos dos anos 1930 lidades neoliberal e neoconservadora como distintas em
estão "retornando", nem que a civilização Ocidental, outrora suas origens e características.'» Esses dois trabalhos ante-
no caminho do progresso, encontra-se agora num período riores falharam em apreender as características cruciais
de regressão." Ao invés disso, ele teoriza a atual formação da revolução neoliberal de Thatcher-Reagan, as quais têm
como relativamente inédita, divergindo dos autoritaris- suas coordenadas naquilo que P^ilio Mirowski chamou de
mos, fascismos, despotismos ou tiranias de outras épocas e Coletivo do PensamenJxuNaoliheral e Daniel_Stedman Jones
! lugares e diferindo também dos conservadorismos conven- descreveu como "uma espécie de Internacional neoliberal",
\ cionais ou conhecidos. Por conseguinte, rejeitamos aqui a uma rede transatlântica de acadêmicos, empresários, jorna-
linguagem que boa parte da esquerda usa para repreender listas e ativistas." Essa revolução visava habilitar o mercado
a direita, bem como a que a direita usa para descrever a e a moral para governar e disciplinar indivíduos, ao mesmo
si mesma, me fnca em^njao as fornnüagões n e o l i b e r a i s ^ tempo maximizando a liberdade, e assim o fez por meio ^
liberdade inspiram e legitimam a^extrema direita e como da demonização do social e da versão democrática da vida_i
adireitajnobiliza um discurso de liberdade para justificar política. A razão neoliberal, especialmente como Friedrich
^ ^ s u a s exclusões e violações às vezes violentas e aue Hayek a formulou, coloca o mercado e a moral como formas
^ r e a s s e g u r ^ a hegemonia branca. masculina e cristã, e singulares de provisão de recursos para as necessidades
não apenas expandir o poder do caEÍtal. Também discuti- humanas, compartilhando princípios e dinâmicas ontológi-
mos como essa formulação de liberdade pinta a esquerda, cos. Enraizados na liberdade [liberty] e gerando uma ordem
incluindo a esquerda moderada ou liberal, como tirânica ou' e evolução espontâneas, seus opostos radicais são qualquer
mesmo "fascista" em sua preocupação com justiça social e,
ao mesmo tempo, como responsável pelo esgarçamento do
17 Wendy Brown, Undoing the Demos: Neoliberalism's Stealth Revo-
tecido moral, pelas fronteiras desprotegidas e por premiar
lution.
quem não merece.
18 Wendy Brown, "American Nightmare: Neoliberalism, Neocon-
O projeto deste livro requer pensar para além dos argu- servatism and De-Democratization".
mentos (e mesmo revisá-los] de Undoing the Demos: Neoli- 19 Cf. Philip Mirowski, "Neoliberalism: The Political Movement
beralisms Stealth Revolution, meu trabalho anterior sobre That Dared Not Speak Its Name". Id., "This Is Water (or Is It
o neoliberalismo e a democracia, no qual eu caracterizava Neoliberalism?}". Mirowski escolheu a denominação "Coleti-
a racionalidade neoliberal que cria um mundo como foca- vo do Pensamento Neoliberal" ["Neoliberal Thought Collective"]
para captar até que ponto as ideias centrais do neoliberalis-
da exclusivamente no impulso de economicizar todos os
mo não eram as de um indivíduo ou de uma só época, pois a
aspectos da existência, das instituições democráticas à
própria Sociedade Mont Pèlerin compreendia um grupo de
pessoas relativamente diverso e mutável que redefiniu suas
ideias ao longo do tempo. Aqueles que eram periféricos numa
época se tornaram centrais noutra. A s diferentes escolas das
^aporias vis-à-vis da neutralidade política e da soberania em
quais a sociedade foi composta nunca alcançaram uma uni-
"Sovereignty, Norms, and Exception in Neoliberalism".
dade intelectual, mesmo quando compartilhavam e desenvol-
16 Cf. Rahel Jaeggi, Fortschritt und Regression.
viam um projeto político, econômico e moral comum.
34 T 22

tipo de política, planejamento e justiça sociais deliberados e que desafia a reprodução social das hierarquias de gênero,
administrados pelo Estado.
raça e sexo, ou as políticas que promovem tímidas correções
É lugar-comum afirmar que o mercado tem esse papel no das diferenças extremas entre classes. P a i ^ a y e k , o mer-
\í' neoliberalismo - mas o mesmo não pode ser afirmado sobre cado e a moral, juntos, são o f u n d ^ n t o da liberdadejfree-
a moralidade tradicional, embora esta apareça com desta- Jom], d a " õ r c [ ê n r e d Õ d ê s e n ^ ^ dadvili-^cão. Ambos
que na declaração de fundação da Sociedade Mont Pèlerin-^"» são organizados espontaneamente e transmitidos por meio
O papel da família na revolução neoliberaí americana é tema da tradição e não pelo poder político. Os mercados só podem \
do rico livro de MelindaXooper de 2016, Family Values, que funcionar impedindo-se o Estado de neles se imiscuir ou
revela como reassegurar as normas familiares patriarcais intervir. A moral tradicional só pode funcionar quando se
não é algo secundário, mas profundamente enraizado na
impede igualmente que o Estado intervenha nesse domínio
reforma neoliberaí do bem-estar social e da educação. Coo-
e quando a expansão daquilo que Hayek chama de "esfera
per examina e vincula uma série de políticas nas quais a
pessoal protegida" confere à moralidade mais poder, ampli-
família tradicional foi explicitamente aduzida para substi-
tude e legitimidade do que as democracias sociais seculares J
tuir múltiplos aspectos do Estado social. Em sua narrativa,
racionais propiciam. Assim, mais que um projeto de amplia-
a privatizacfln mpmFidplógica da seguridade social, da saúde'
ção da esfera da competição e valoração de mercado ("eco-
e do ensino superior envolveu a r e s p o i ^ S i ^ Z ^ ^ l ^ d i -
nomicizando tudo", como argumentei em Undoing the Demos),
víduos masculinos, em vez do.Estgdo, nos
o neoliberalismo hayekiano é um projeto político-moral que
na. adolescência; dos pais, em vez do Estado, pelos custos da
visa proteger as hierarquias tradicionais negando a própria
educação superior; e das famílias, em vez Hpjistado. npTa
ideia do social e restringindo radicalmente o alcance do
provisão_dequ^^ r^iidadaj3ara_^s d^enden-
poder político democrático nos Estados-nação.
tes - ^Piam rriannaQ _deíicientes ou ídn.snQ.^' O ataque contemporâneo à sociedade e à justiça social em [I
0 livro de Cooper é brilhante. No entanto, somente voltan- nome da liberdade de mercado e do tradicionalismo moral 1
do às idéias neoliberais fundadoras, em particular a Hayek, é, portanto, uma emanação direta da racionalidade neolibe-
será possível pôr em relevo a arquitetura da razão que liga' raí, e não se limita aos assim chamados "conservadores". Se -
a moralidade tradicional ao neoliberahsmo e que anima as a reforma clintoniana do Estado de bem-estar é o exemplo
campanhas da direita hoje. Essas campanhas classificam mais óbvio do "neoliberalismo progressista", ela também
como assaltos à liberdade e à moralidade toda política social delineou a campanha pela igualdade de casamento, que
construiu a defesa do casamento entre pessoas do mesmo
20 i N a "Declaração de Objetivos" de 1 9 4 7 da Sociedade Mont sexo sobre a dupla base da singularidade moral-religiosa do
iPèlerin, o primeiro item listado como matéria a ser objeto de casamento e da singularidade econômica das famílias em
l e s t u d o s adicionais foi "a análise e exploração da natureza da
prover saúde, educação e bem-estar, assim como a transmis-
í crise atual, de modo a trazer para os outros as origens morais
são de riqueza entre gerações. As forças conservadoras, no
e econômicas essenciais" (grifo nosso). A declaração também
identificou uma "visão da história que nega todos os padrões
entanto, fizeram apelos mais diretos à moralidade tradicio-
1 morais absolutos" como um dos riscos para "os valores cen- nal e homílias ao livre-mercado, embrulhando tudo isso com
t trais da civilização" e da liberdade. patriotismo, nativismo e cristandade. Nos Estados Unidos,
21 Melinda Cooper, Family Values. uma maioria na Suprema Corte encorajou esses apelos por
10424

meio de uma série de pareceres que revogou as restrições à contra a brutalidade policial racializada, considerados des-
produção e ao comércio, repeliu estatutos antidiscriminação respeitosos às tropas americanas. Kaepernick nunca men-
e expandiu o significado e o alcance da liberdade religiosa.^^ cionou os soldados nem dirigiu seu protesto às empreitadas
Os textos fundadores raramente mencionaram isso, mas militares americanas. No entanto, mais do que metonímias
a superordenação branca e masculina é facilmente inserida ligam o hino nacional, o futebol americano e as forças arma-
no projeto neoliberal mercado-e-moral. Por um lado, os mer- das - mais ainda que a objeção racista aos atletas negros
cados desregulamentados tendem a reprõdííiiírennffiz^e de que seu trabalho é tocar e dançar para os brancos, e não
ajiienizar^_o£poderes e a_eslEaüfiuacãa,5üçjais p r o d u z i a s reivindicar um lugar à mesa com eles. A lógica que considera
historicamente. Divisões raciais e sexuais do t r a b a l h o S o seu protesto antipatriótico é organizada por uma imagem da
embutidas neles: o trabalho doméstico, por exemplo, em que nação que compreende as tradições como imunes a crítica,
predomina um gênero, não é remunerado, e sua versão de incluindo tradições de policiamento e de racismo. Os milita-
mercado lamentavelmente sub-remunerada (cuidado infan- res, identificados como a "defesa de nosso modo de vida", até
til, limpeza doméstica, cuidado domiciliar de saúde, traba- mesmo ou talvez especialmente quando lutam em guerras
lho na cozinha) é executada de modo desproporcional por impopulares, são o emblema mais brilhante dessa imagem.
não brancos e imigrantes. Profundas desigualdades tanto na
educação pública quanto na privada (do jardim de infância à
pós-graduação) compõem essa estratificação, assim como as A A S C E N S Ã O DA P O L Í T I C A A N T I D E M O C R Á T I C A
culturas de classe, raça e gênero que estruturam práticas de
contratação, promoções e sucesso. Por outro lado, a morali- Talvez os opositores da social-democracia devam saudá-la por
dade tradicional serve, por exemplo, para repelir o combate seus efeitos conservadores. A social-democracia traz contribui-
às desigualdades como, por exemplo, assegurar a liberda- ções para a sociedade em geral e para o sistema político que
de reprodutiva das mulheres ou desmantelar a iconografia servem para suavizar o radicalismo potencial da democracia
pública que celebra um passado escravocrata. A moralidade política. Todos contribuem, todos se beneficiam e todos partici-
t r a d i c i o n a U a m ^ liga a preservação do passado ao patrio- pam. Ao promover a educação pública, a seguridade social e os
tismo, promovendo-o não^genas como_amor ao país, mas cuidados ampliados com a saúde, a social-democracia ajuda a
como amor ao modo como as nnic:a<; eram. o que tacha de anti- mitigar os efeitos divisivos da riqueza, da raça, da etnicidade e
patrióticas as..Qb)eçõfíS.à injustiça racial e de^gênern. Daí a de outras identidades potencialmente explosivas. Ela promove
reprimenda aos protestos "take a knee"^' de Colin Kaepernick u m a c o m u n a l i d a d e de contribuições e benefícios compartilha-
dos que encorajam uma forma moderada, e não enfurecida, de
governo da maioria.
22 Embora esses questionamentos se baseiem em vários elemen-
Sheldon Wolin, Fugitive Democracy and OtherEssays
tos da Constituição dos Estados Unidos, nenhum desses ele-
mentos foi mais importante do que as liberdades propiciadas
pela Primeira Emenda. É o assunto dos capítulos 3 0 4 . à brutalidade policial e à desigualdade racial nos Estados Uni-
23 A l g u n s jogadores da liga NFL estadunidense, como Colin dos. Mas tal gesto tem sido interpretado por alguns (especial-
Kaepernick, passaram a se ajoelhar durante a execução do mente pela direita) como um ato desrespeitoso, de insulto à
hino nacional como forma de protesto para chamar a atenção bandeira americana e aos valores que ela representa, [N.T.]
27
26

de uma ordem global competitiva, zelada por - s t i t u i ç o e s A -i


O presente livro argumenta que a ascensão da política anti- supranacionais^ um lado, e viabilizada por Estados plena-
democrática foi promovida por meio de ataques à socieda- m e r i i v r e s dos interesses e das manipulações economistas
de — compreendida como algo experimentado e zelado de de ^utro.- Em terceiro, t e ^ o s os modos como o mercado e
forma comum - e à legitimidade e à prática da vida políti- moral se distorceram à c e d i d a que foram submetidos a
ca democrática. O capítulo i inicia esta análise do projeto gramáticas e ao espírito um do out.o - isto é. à - e d da que
mercado-e-moral do neoliberalismo examinando a crítica i S í d ^ f o i mercantilizada ^os m e r c ^ o r a l i z a d o .
do neoliberalismo à sociedade e seu objetivo de desmantelá- PoTmeio desse processo, ambos foram politizados como c r e ^ , .
-la. O capítulo 2 explora o ataque à democracia compreen- do l g m á t i c o s ' [ ^ 9 ^ . n , cre^s], perdendo assim o carat ^
dida como soberania popular e poder político compartilha- O / e o modo " o r g â n i ^ S ^ p o n t â n e o " de organizar a conduta ^_
do. O capítulo 3 delineia o projeto neoliberal de expandir o

I alcance da moralidade tradicional para além das esferas do


culto familiar e privado para a vida pública e comercial. Nos
Estados Unidos, essa expansão foi poderosamente encoraja-
pelo"quaislfe^seuscolegasosestimavam.Finalmente,
o t e o l ^ r a l i s m o intensificou o niilismo, o fatalismo e o res ^
e n t í ^ n t o rancoroso já presentes na cultura moderna tar-
d a untos, esses desenvolvimentos e efeitos geraram algo
da pela Suprema Corte. O capítulo 4 faz uma leitura de dois
di^alme^te diferente da utopia neoliberal de uma or m
vereditos recentes da Corte sob esse prisma. O capítulo 5
liberal desigualitária em que indivíduos e famílias seriam
explora o embricamento do projeto neoliberal mercado-e-
p S a d o s politicamente pelo mercado e pela moral e sub-
-moral com o niilismo, o fatalismo e a supremacia masculi-
tendTos por um Estado autônomo e com autoridade mas
na branca ferida.
d e s p o l i t i - d o . Em vez disso, o neoliberalismo produziu um
O quinto capítulo também desenvolve um leitmotiv que
monstro que seus fundadores abominariam.
percorre os outros: conforme já observei, o neoliberalis-
mo produziu efeitos muito diferentes daqueles imaginados
e visados por seus arquitetos. Há várias razões para isso.
Primeiramente, há uma espécie de retorno do recalcado na
razão neoliberal — uma erupção feroz das forças sociais e
políticas a que os neoliberais de uma só vez se opuseram,
Cf Wolfgang Streeck, Buying Time: The Delayed Crisis oPemo-
subestimaram e deformaram com seu projeto desdemocra- 24
J Z f c a p L s r n , sobretudo os capítulos a e 3- C ^ O f f e .
'tizador. Isso significa que o neoliberalismo realmente exis-
tente apresenta agora o que Sheldon Wolin caracteriza como Europe Entrapped. Greta Krippner, o"
Political Origins of the Rise of Finance, bem como a crítica de
uma forma "enfurecida" de governo da maioria (frequente-
S a n t d g T a Krippner em sua dissertação. Com a financein-
mente denominada "populismo" por especialistas) que surge ' ão NTO apenas OS Estados e mesmo as instituições supra-
da sociedade que os neoliberais pretendiam desintegrar, Z Z 2 estão subordinados aos poderes e vicissitudes dos
mas não conseguiram derrotar, e que assim foi deixada sem T a d T s financeiros, mas tambémaproduçãos^^^^^^^^^^^^^
' normas civis nem compromissos comuns. Em segundo lugar, subietividade mudam: risco, crédito e especulaçao. em vez de
X a disciplinada produtiva ou e - P - n ^ ^ ^ ^
temos o fato de o neoliberalismo ter acidentalmente soltado
não apenas a vida econômica, mas a vida polít ca Cf. Uicnei
as rédeas do setor financeiro e os modos pelos quais a finan-
ZZatedAgency:InuesteePomicsinaSpeculat.eAge.
ceirização solapou profundamente os sonhos neoliberais
10 4
29

N E O L I B E R A L I S M O ? O QUÊ!? comumente associado a um conjunto de políticas que priva-


tizam a propriedade e os serviços públicos, reduzem radical-
Concluo esta introdução com uma breve consideração sobre
mente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam
como o termo "neoliberalismo" é empregado neste trabalho.
o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigá-
O neoliberalismo não tem uma definição estabelecida. Existe
vel para investidores estrangeiros. Tais eram precisamente
atualmente uma literatura acadêmica substancial debatendo
as políticas impostas ao Chile por Augusto Pinochet e seus
suas características constitutivas. Alguns chegaram a ponto
assessores, os "Chicago Boys", em 1973 e logo depois levadas
de sugerir que seu caráter amorfo, proteiforme e polêmico
para outras partes do Sul global, muitas vezes impostas pelo
lança dúvidas sobre sua própria existência." No entanto,
Fundo Monetário Internacional na forma de mandatos de
assim como ocorre com outras formações que alteram o
"ajuste e s t r u t u r a l " vinculados à reestruturação dos emprés-
mundo, como o capitahsmo, sociaUsmo, liberalismo, feuda-
timos e da dívida.^® O que começou no Hemisfério Sul logo
lismo, cristianismo, islamismo e fascismo, os debates inte-
fluiu para o Norte, mesmo que com poderes executivos bem
lectuais em curso sobre seus princípios, elementos, unidade,
diferentes. Por volta do final dos anos 1970, explorando uma
lógica e dinâmicas subjacentes não invalidam seu poder de'
criar mundos. O neoliberalismo - as ideias, as instituições, crise de lucratividade e estagflação, os programas neoliberais
as políticas, a racionalidade política - , juntamente com sua' foram implementados por Margaret Thatcher e Ronald Reagan,
cria, a financeirização, provavelmente moldaram a histó- novamente focados na desregulação do capital, no combate ao
ria mundial recente tão profundamente quanto qualquer trabalho organizado, na privatização de bens e serviços públi-
outro fenômeno que possa ser situado no mesmo período, cos, na redução da tributação progressiva e no encolhimento
mesmo que acadêmicos continuem a debater o que ambos' do Estado social. Tais políticas se espalharam rapidamente
são precisamente. por toda a Europa Ocidental, e o colapso do Bloco Soviético no
final dos anos 1980 significou que boa parte da Europa Orien-
O termo "neoliberalismo" foi cunhado no Colóquio Walter
tal realizou uma transição do comunismo de Estado para o
Lippmann em 1938, uma reunião de acadêmicos que lançou
capitalismo neoliberal em menos de meia década.
as bases político-intelectuais daquilo que uma década depois
Esta análise, talhada por uma abordagem neomarxis-
se tornaria a Sociedade Mont Pèlerin. O neoliberalismo é mais
ta, concebe o neoliberalismo como um ataque oportunista
dos capitalistas e seus lacaios políticos aos Estados de bem-
25 A afirmação de que o significado incerto do neoliberalismo -estar keynesianos, às sociais-democracias e ao socialismo
lança dúvidas sobre sua existência é tão estranha quanto ale- de Estado. Em Glohalists: The End of Empire and the Birth of
gar que o sentido contestado de capitalismo, liberalismo ou Neoliberalism, Quinn Slobodian acrescenta uma camada
cristandade significa que eles não existam. George Monbiot
de sofisticação a esse quadro, enfatizando até que ponto o
também notou que a negação de sua existência é um tremendo
neoliberalismo foi concebido intelectualmente e desvelado
benefício para seu poder. Cf. George Monbiot, "Neoliberalism:
The Ideology at the Root of All Our Problems". De modo similar, praticamente como um projeto global no qual a soberania
cf Philip Mirowski, "This is Water (or Is It Neoliberalism?)". Id.', econômica do Estado-nação seria suplantada pelas regras e
"The Political Movement that Dared Not Speak Its Own Name".'
Cf tb. "Introdução". In: William Callison e Zachary Manfredi 26 Cf Juan Gabriel Valdês, Pinochet's Economists: The Chicago
(ed.), Mutant Neoliberalism: Market Rule and Political Rupture.
School of Economics in Chile.
34 T 30

acordos estabelecidos por instituições supranacionais como se tornam princípios de governo aplicados pelo e no Estado,
a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o mas também que circulam através de instituições e entida-
Fundo Monetário Internacional." Na narrativa de Slobodian, des em toda a sociedade - escolas, locais de trabalho, clíni-
o neoliberalismo visava desmantelar as b^^rreiras aos fluxos' cas etc. Esses princípios torr«m-se princípios de realidade que.
de capital (e, portanto, à acumulação de capital) r e ^ i ^ t a - saturam e governam c_ada esfera da e x i ^ n c i a e reorientam o
das pelos Estados-nação e neutralizar simultaneamente as própri'0 homn£g<-nnomtcusJ:ransformando-o de um suieito da
demandas redistributivas do Sul recentemente descoloniza- troca e_JâsaÜSÍacão d e j ^ c e s s i d a d e s j l i b e r a l i s m ^ ^
do, tais como aquelas incorporadas na Nova Ordem Econô- em u m ^ i t o da competirâo elJo^ãprimõrãmê^^
mica Internacional. A análise de Slobodian também ressalta humano (neoliberalismo). Ao mesmo tempo, afirma Foucault,
até que ponto a revolução neoliberaí foi projetada para anu- na formulação dos neoliberais, os mercados competitivos
lar as expectativas da classe trabalhadora, tanto no mundo necessitam de suporte político e, portanto, de uma nova forma
desenvolvido quanto nas regiões pós-coloniais em desenvol- do que ele chama de "governamentalização" do Estado. Na
vimento, ao produzir um nivelamento por baixo global dos nova racionalidade governamental, por um lado, todo gover- I
salários e das condições de trabalho. Em outras palavras, no é para os mercados e orientado por princípios de mercado, V
^ liberar o capital para caçar mão de obra barata, recursos' e, por outro, os mercados devem ser construídos, viabilizados, (
e paraisos fiscais em todo o mundo inevitavelmente gerou
amparados e ocasionalmente até mesmo resgatados por i n s - J
padrões de vida mais baixos para as populações da classe
tituições políticas. Os mercados competitivos são bons, mas
K trabalhadora e da classe média no Norte global, exploração
não exatamente naturais nem autossuficientes. Para Foucault,
I contínua e limitações ã soberania, acompanhadas por um
essas duas características da racionalidade neoliberaí - a ela-
^desenvolvimento (desigual) no Sul global.^»
boração de princípios de mercado como princípios de gover-
Em contraste com a análise neomarxista, ao conceituar o no onipresentes e o próprio governo reformatado para servir
neoliberalismo como "reprogramação do liberalismo", Michel aos mercados - estão entre aquelas que separam a raciona-
Foucault oferece uma caracterização substancialmente dife- lidade neoliberaí daquela do liberalismo econômico clássico,
rente do neoliberalismo em seu significado, objetivo e propó- e não apenas da democracia keynesiana ou da social-demo-
sito. Em seu curso no Collège de France de 1978-79, Foucault cracia. Elas constituem a "reprogramação da governamenta-
enfatizou a significância do neoliberalismo como uma nova lidade liberal" que podia e ia se instalar em todos os lugares,
racionalidade política, cujo alcance e implicações vão muito e m p r e e n d e d o r i z a n d o o sujeito, convertendo trabalho em capi-
além da política econômica e do fortalecimento do capital.^» tal humano e reposicionando e reorganizando o Estado. Para ,
Ao contrário, nessa racionalidade os princípios do mercado os foucaultianos, então, mais importante do que a reinicializa-1
ção do capitalismo pelo neoliberalismo é sua alteração radical
dos valores, coordenadas e princípios de realidade que gover-
27 Quinn Slobodian, Globalists. Especialmente a introdução e o
capítulo 1.
nam, ou "conduzem a conduta"'"' nas ordens liberais. ^

28 O livro de Guido Brera e Edoardo Nesi, Everything Is Broken


Up and Dances: The Crushing of the Middle Class, é um relato 30 Exemplos dessa posição incluem meu trabalho anterior Undo-
brilhante, lírico e comovente deste processo. ing the Demos, o livro de Michel Feher, Rated Agency e o de
2 Michel Foucault, The Birth ofBiopolitics. Pierre Dardot e Christian Laval, The New Way of the World.
100 32

Este livro se baseia tanto na abordagem neomarxista


quanto na foucaultiana do neoliberalismo, e também expan-
de ambas para saldar sua negligência mútua do aspecto
moral do projeto neoliberal. Não trata essas duas aborda-
gens como opostas ou redutíveis à compreensão materialista
versus ideacional do poder e da mudança histórica, mas as
emprega por apresentarem diferentes dimensões das trans-
formações neoliberais que têm ocorrido em todo o mundo nas
^últimas quatro décadas. A abordagem neomarxista tende a
se concentrar nas instituições, políticas, relações e efeitos
econômicos, negligenciando os efeitos de longo alcance do
DEMOCRACIA, IGUALDADE E O SOCIAL
neoliberalismo como forma de governar a razão política e a
produção de sujeitos. A abordagem foucaultiana enfoca os
A palavra "democracia" deriva de termos gregos antigos,
princípios que orientam, orquestram e relacionam o Estado,
demos (o povo) e kratos (poder ou governo). Em contraste
a sociedade e os sujeitos, e acima de tudo, o novo registro
com a oligarquia, monarquia, aristocracia, plutocracia,
de valor e valores do neoliberalismo, mas pouco atenta aos
tirania e governo colonial, democracia significa os arranjos
novos e espetaculares poderes do capital global que o neo-
políticos por meio dos quais um povo governa a si mesmo.
i^liberalismo anuncia e edifica. Aquela coloca o neoliberalis-
A igualdade política é a base da democracia. Todo o resto
mo como o que inaugura um novo capítulo do capitalismo e
é opcional - das constituições à liberdade pessoal, de deter-
gera novas forças, contradições e crises. Esta revela como
minadas formas econômicas às instituições políticas espe-
governos, sujeitos e subjetividades são transformados pela
cíficas. Somente a igualdade política assegura que a com-
remodelação neoliberal da razão liberal; considera o neolibe-
posição e o exercício do poder político sejam autorizados
ralismo como revelador de como o capitalismo não é singular
pelo todo e sejam de responsabilidade do todo. Quando a
e não segue sua própria lógica, mas é sempre organizado
igualdade política está ausente, seja por exclusões ou pri-
por formas de racionalidade política. Ambas as abordagens
vilégios políticos explícitos, pelas disparidades sociais ou
contribuem para a compreensão das características do neo-
econômicas extremas, pelo acesso desigual ou controlado
liberalismo realmente existente e de nossa atual conjuntu-
ao conhecimento, ou pela manipulação do sistema eleitoral,
ra. Dito isso, este livro está preocupado principalmente em
o poder será inevitavelmente exercido por e para uma parte,
repensar os elementos e efeitos da racionalidade neoliberal
em vez do todo. Q demos deixa de governar.
e em ampliar nossa compreensão dessa racionalidade para
contemplar seu ataque multifacetado à democracia e sua pro-
moção da moralidade tradicional em detrimento da justiça
social legislada. Há uma polêmica entre os intelectuais de hoje em torno do
significado de demos para os atenienses antigos. Cf., p. ex.,
Tosiah Ober, "The Original Meaning of Democracy" e a crítica
de Daniela Cammack a Ober em "The Dêmos in Dêmokratia .
34

A importância da igualdade política para a democracia


T 35

saber, a de que ele aja deliberadamente para reduzir as desi-


é a razão pela qual Rousseau insistiu que as diferenças de gualdades de poder entre os cidadãos. Só então é possível
poder em um povo democrata não devem "ser tão grandes se aproximar da igualdade política; só então a vida política
que possam ser exercidas como violência" e que ninguém poderia servir ao todo, ao invés de à elite.^ Para enfatizar seu
pode "ser tão rico que possa comprar outro nem tão pobre argumento sobre a paradoxal exigência democrática de que
que seja obrigado a se vender".^ O argumento de Rousseau os Estados construam a igualdade política, Wolin cita com
é que, mais do que uma questão de injustiça ou sofrimen- aprovação a crítica de Marx à Filosofia do Direito de Hegel:
to, a sistematização da violência ou da miséria coletiva leva "É evidente que todas as formas" do Estado moderno "tomam
ao fim da democracia. A importância da igualdade política a democracia como sua verdade, e por essa razão são falsas
para a democracia é a razão pela qual Alexis de Tocqueville na medida em que não são democracia".® Wolin assume que
identificou a emergência moderna da democracia como "uma
Marx quer dizer que a legitimidade do Estado moderno está
revolução na matéria da sociedade" - uma transformação
assentada na reivindicação do governar para o bem de toda
social que destruiu as posições hierárquicas, ou o que ele
a sociedade, para prover o bem comum, em vez de ser o ins-
chamou de "desigualdade de condições".^ A importância da
trumento das elites. Ele considera que Marx reconhece que
igualdade política para a democracia é também a razão pela
a democracia é "um tipo distinto de associação que visa o
qual os antigos democratas atenienses, mais sábios acerca
bem de todos" e que "depende das contribuições, sacrifícios
do tema do poder do que a maioria dos modernos, identifica-
e lealdade de todos".® Ao mesmo tempo, Wolin caracteriza
ram os três pilares da democracia: a isegoria, o direito igual
a exigência de que o Estado empregue seu próprio poder
de cada cidadão de falar e ser ouvido pela assembleia em
para produzir uma cidadania democrática como algo que se |
assuntos de política pública; a isonomia, igualdade sob a lei;
move contra o curso natural do poder politico.' Esse curso
^- e isopoliteia, votos igualmente ponderados e igual oportuni-
natural, como deixou claro Tocqueville ao discutir a questão,
dade de assumir cargos políticos. Os atenienses podem ter
vai na direção da concentração e da centralização; o poder
valorizado a liberdade, mas entenderam que a democracia
político e especialmente o poder do Estado não se diluem
^ s t á ancorada na igualdade.
naturalmente ao se disseminar, mesmo que um governo efe-
Segundo o critério da igualdade política, aquilo que se tivo possa operar por esses mesmos meios.
costuma chamar, de modo variado, de democracias liberais,
burguesas ou capitalistas nunca foram democracias plenas, 4 Sheldon Wolin, Fugitive Democracy and Other Essays.
e quaisquer que sejam suas disposições democráticas, elas 5 Id., "Democracy and the Political," in Fugitive Democracy, p.
vêm sendo constantemente enfraquecidas nas últimas déca- 247. Wolin usa Marx para afirmar que a legitimidade do Esta-
das. De fato, como seria sequer possível garantir a igualdade do moderno repousa na pretensão de governar pelo bem de
política em grandes Estados-nação com economias capitalis- toda a sociedade, para entregar o bem comum, em vez de ser
tas? Sheldon Wolin afirma que cultivar a democracia em tais o instrumento das elites. De Hegel, Marx aceita a aspiração
ou a concepção do Estado moderno ser "universal" e depois
circunstâncias implica uma demanda específica ao Estado, a
revela a famosa "revolução na vida material" que deve ocorrer
para que tal aspiração se realize.
2 Jean-Jacques Rousseau, The Social Contract, L. 2, cap 1 1 , p. 96. i. Ibid., p. 247.
3 Alexis de Tocqueville, Democracy in America, pp. 2-7. 7 hoc. cit.
34 T 36

A democracia, então, é o mais fraco dos trigêmeos em mesmo que votem.'" Em suma, uma orientação no sentido
guerra nascidos no início da modernidade europeia, ao lado da democracia no contexto de Estados-nação e capitalismo
dos Estados-nação e do capitalismo." De acordo com Wolin, requer apoio estatal para promover bens públicos, que vão
algo como um Estado democrático não existe, já que os Esta- desde cuidados com a saúde até a educação de quahdade,
dos seqüestram, institucionalizam e exercem o "poder exce- redistribuições econômicas e profilaxias vigorosas contra a
dente" [surpluspower] gerado pelo povo; a democracia sempre corrupção pela riqueza. Para a democracia prevalecer, não se"
j i v e em lugares que não o Estado, mesmo nas democracias.® deve permitir que nem os próprios mercados e nem os vence-
O capitalismo democratizado é também um oximoro, e demo- dores em seu âmbito governem; ambos devem ser contidos no
cratas radicais têm boas razões para promover formas eco- interesse da igualdade política, o fundamento da democracia.
nômicas alternativas. Dito isto, o capitalismo pode ser modu- Para deixar claro, a alegação não é de que as democracias
lado em direções mais ou menos democráticas, e os Estados devam lidar com o que, desde o século xix, foi chamado de "a
podem fazer mais ou menos para nutrir ou anular a igualdade questão social", que se refere à questão de saber se e como
{ política da qual depende a democracia. deve-se mitigar o empobrecimento de muitos, inerente ao capi-
O que, além de louvores gerais, promove e protege a igual- tahsmo na medida em que gera riqueza sem precedentes para
dade política nesse contexto? Ações estatais afirmativas para poucos. "A questão social" tende a ser enquadrada em termos
garantir condições adequadas de existência (renda, moradia, de compaixão pelos pobres, justiça ou preocupação com a con-
saúde) são cruciais para prevenir a privação de direitos devido vulsão social. O ponto aqui é outro, a saber, que a democracia
ao desespero. É vital também o apoio do Estado ao acesso à exige esforços explícitos para criar um povo capaz de se enga-
educação cívica de qualidade, ao voto e ao exercício de cargos jar em formas modestas de autogoverno [self-rule], esforços que
para aqueles que, de outra forma, seriam efetivamente impe- se dirigem às formas pelas quais as desigualdades sociais e
didos de compartilhar o poder político. A democracia também econômicas comprometem a igualdade política.
exige vigilância constante para impedir que a riqueza con-
centrada assuma o controle das alavancas do poder político.
A riqueza - corporativa, consolidada ou individual - nunca 10 Embora frequentemente reflexivos, esses esforços às vezes
deixará de tentar alcançar essas alavancas e, uma vez que as tomam forma como o tipo de projetos cuidadosamente ela-

tenha agarrado significativamente, não há limite para suas borados por James Buchanan, os irmãos Koch e o Instituto
Cato, segundo os quais o objetivo deliberado é substituir a
práticas em benefício próprio, que podem incluir esforços para
democracia por um governo de brancos ricos e capturar insti-
impedir que as pessoas comuns, os pobres e os historicamente
tuições políticas e o discurso político para este fim. Cf Nancy
marginalizadas participem de reivindicações políticas e até MacLean, Democracy in Chains: The Deep History of the Radical
Right's Stealth Plan for America. A manipulação das zonas dis-
tritais de voto e a supressão de eleitores tornaram-se táticas
abertas e diretas para o Partido Republicano nos últimos anos
8 Sobre os tempos atuais, Wolin diz que "a contenção da demo- e foram vividamente expostas nas eleições de meio de man-
cracia política está [...] intimamente conectada ao ânimo
dato em 2 0 1 8 . Cf S a s c h a Meinrath, " T w o Big Problems with
contra a social-democracia". Cf. "Preface". In: Fugitive Demo-
American Voting that Have Nothing to Do with Russian Hac-
cracy, p. IX.
king" e German Lopez, "Voter Suppression Really May Have
9 Loc. cit. Made the Difference for Republicans in Georgia".
10 4 39

A democracia também exige um cultivo robusto da socie- social" [social justice warriors ou siws] por minar a liberdade
dade como o local em que experimentamos um destino com uma agenda tirânica de igualdade social, de direitos
comum em meio às nossas diferenças e distâncias. Situado civis, de ação afirmativa e até mesmo de educação pública.
conceituai e praticamente entre o Estado e a vida pessoal, O neoliberalismo tinha o franco objetivo de desmantelar
o social é o local em que cidadãos de origens e recursos o Estado social, seja privatizando-o (a revolução Reagan-
amplamente desiguais são potencialmente reunidos e pen- -Thatcher), seja delegando suas tarefas (a "Grande Sociedade"
sados como um conjunto. É o local em que somos admitidos do Reino Unido e os "mil pontos de luz" de Bush), seja elimi-
como cidadãos com direitos políticos [enfranchised] e reu- nando completamente tudo o que resta de bem-estar social
nidos politicamente (não meramente cuidados) por meio ou " d e s c o n s t r u i n d o o Estado administrativo" (o objetivo de
da provisão de bens públicos, e em que as desigualdades Steve Bannon para a presidência de Trump). Em cada caso,
historicamente produzidas se manifestam como acesso, voz não é apenas a regulação e a redistribuição sociais que são
e tratamento políticos diferenciados, bem como o local em rejeitadas como interferência inapropriada nos mercados ou
que essas desigualdades podem ser parcialmente corrigidas. como assaltos à liberdade. A dependência da democracia em
A justiça social é o antídoto essencial para as estratificações, relação à igualdade política também é alijada."
exclusões, abjeções e desigualdades outrora despolitizadas O ataque neoliberaí ao social, que e s t a m o ^ j e r e s ^ a
que servem ao privatismo liberal nas ordens capitalistas e examinaLmais^^ para gerar uma cul
é, em si mesma, uma réplica modesta à impossibilidade da tllí^^^idemocrática desde baixo, ao mesmo temoo em aue
democracia direta em grandes Estados-nação ou em seus constrói_e legitima formas antidemocrática^devod.,^s^l
sucessores pós-nacionais, como a União Europeia. Mais do d S d r ^ ^ ^ A s m e r g i a entre os dois é profunda: uma cidada-
que uma convicção ideológica, a justiça social — a modula- nia cada vez mais não democrática e antidemocrática está
ção dos poderes do capitalismo, colonialismo, raça, gênero mais e mais disposta a autorizar um Estado crescentemente
e outros — é tudo o que se põe entre manter a promessa antidemocrático. À medida que o ataque ao social derrota a
(sempre não cumprida) da democracia e o abandono genera- compreensão democrática de sociedade zelada por um povo
lizado dessa promessa. O social é o local em que somos mais caracterizado pela diversidade e habilitado a governar a si
do que indivíduos ou famílias, mais do que produtores, con- de forma igualitária e compartilhada, a política se torna
sumidores ou investidores econômicos e mais do que meros um campo de posicionamento extremo e intransigente, e a
membros da nação. liberdade se torna um direito de apropriação, ruptura e atéV
É sintomático que são precisamente a existência da socie- mesmo destruição do social - seu inimigo declarado. í
dade e a ideia do social - sua inteligibilidade, seu refúgio O assalto à sociedade e à justiça social nas décadas
de poderes estratificantes e, acima de tudo, sua adequação neoliberais é mais comumente identificado no projeto de
como um local de justiça e do bem comum — o que o neo- desmantelar e depreciar o Estado social em nome de indi-
liberalismo se propôs a destruir conceituai, normativa e víduos livres e responsibilizáveis. Ele atingiu um crescendo
praticamente. Denunciada como um termo sem sentido por institucionalizado no regime de Trump, no qual os órgãos
Hayek e notoriamente declarada inexistente por Thatcher
'|\("não existe tal coisa..."), "sociedade" é um termo pejorativo 11 Wolfgang Streeck chama isso de deseconomicizar a democra-
^ara a direita hoje, que denuncia os "guerreiros da justiça cia. Cf Wolfgang Streeck, Buying Time.
34 T 41

governamentais destinados a conduzir o bem-estar social A SOCIEDADE DEVE SER D E S M A N T E L A D A


nos domínios da saúde, serviço social, educação, moradia,
trabalho, desenvolvimento urbano e meio ambiente são De todos os intelectuais neoliberais, foi Friedrich Hayek
chefiados por pessoas comprometidas com a comercializa- quem criticou de forma mais sistemática a noção de social e
ção ou eliminação desses bens, e não com sua proteção ou de sociedade e ofereceu a crítica mais sólida da social-demo-
administração/^ E há também o Office ofAmerican Innovation cracia. A hostilidade de Hayek em relação ao social é sobre-
[Escritório para a Inovação Americana], recém-criado pelo determinada, poder-se-ia dizer até mesmo exacerbada, na
regime e liderado pelo genro de Trump, Jared Kushner. A medida em que busca fundamentos epistemológicos, ontoló-
/apresentação do escritório feita pela Casa Branca como uma gicos, políticos, econômicos e até mesmo morais. Ele consi-
//"equipe da SWAT destinada a consertar o governo por meio de dera a própria noção de social falsa e perigosa, sem sentido e
I idéias oriundas dos negócios" capturou nesta única frase o oca, destrutiva e desonesta, uma "fraude semântica". A preo-
deslocamento do governo democrático pelo policiamento e cupação com o social é a assinatura de todas as tentativas
pela gestão, juntamente com a desintegração da sociedade mal concebidas de controle da existência coletiva, o símbolo
em unidades de produção e consumo." Assumindo a nova da tirania. Hayek considera a "sociedade" uma "frase impro-
posição, Kushner disse: "O governo deveria ser administra- visada", a "nova deidade à qual nos queixamos [...] se não _
do como uma grande empresa americana. Nossa esperança satisfizer as expectativas que criou".^® Na melhor das hipó-
é que possamos alcançar sucesso e eficiência para nossos teses, diz ele, o termo carrega a nostalgia de mundos antigos ^
clientes, que são os cidadãos"." No entanto, são as empresas, de associações pequenas e íntimas e pressupõe falsamente 1
e não os clientes, que buscam "sucesso e eficiência" - os "uma busca comum de fins compartilhados". Na pior, é um
clientes são os destinatários de suas estratégias de marke- disfarce para o poder coercitivo do governo." A justiça social
ting e de relações públicas. Assim, mais do que simplesmen- é uma "miragem" e a atração por ela é "a mais grave ameaça j
te revelar sua falta de conhecimento e experiência política e à maioria dos outros valores de uma civilização livre"."
sua incapacidade de entender a democracia, Kushner pode
Como a sociedade e a justiça social podem ser todas essas
ter confessado inconscientemente que quando o governo
coisas? E qual é a raiz principal da hostilidade de Hayek
é administrado como um negócio, especialmente os tipos
em relação à sociedade e à justiça social? A primeira pista
de negócios pertencentes a seu pai e a seu sogro, os cida-
repousa na frustração de Hayek com a ambiguidade do
dãos-clientes tornam-se seus objetos de lucro desprotegidos,
significado moderno de "sociedade". O fato de que a pala-
exploráveis e manipuláveis.
vra denota tantos tipos diferentes de conexões humanas
"sugere falsamente que todos esses sistemas são do mesmo
tipo", e Hayek vê mais do que mero desleixo no deslizamento
12 Trump assim expHcou afavelmente a seus partidários por
semântico da sociedade de pequenos grupos seletos para
que ele colocou uma "pessoa rica no comando da economia" e
povoou seu gabinete com ultrarricos, transformando a pluto-
cracia numa forma política de senso comum, e não subversiva. 15 Friedrich Hayek, Law, Legislation, and Liberty, vol. 2: The Mira-
13 Ashley Parker; Philip Rucker, "Trump Taps Kushner to Lead ge of Social Justice, p. 69.
a SWAT Team to Fix Government with Business Ideas". 16 Id., The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, pp. 1 1 2 - 1 3 .
14 Ibid. 17 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, pp. 66-68.
34 T 43

Estados-nação/» Notando que a origem latina do termo estendido e poder coercitivo), coisas que só podem ser valori-
[societas, de soctus] implica um par ou companheiro que se
zadas por indivíduos ou grupos." Personificação e animismo^
conhece pessoalmente, Hayek detecta um romance perigo-
também levam à crença de que a sociedade é mais do que
so com um passado perdido em seu uso contemporâneo, no
os efeitos de processos espontâneos e que pode portanto
qual o termo "sociedade" é inadequadamente usado para
ser manipulada ou mobilizada como um todo; esta é a base
denotar uma cooperação humana impessoal, não inten-
do totalitarismo." E levam à crença de que a sociedade é o
cional e não planejada em larga escala. Ainterdegendên-
produto de um projeto [design], passível de substituição por
cia complexa na modernidade, afirma Hayek, não surge do
outro mais racional, um projeto que obstrui as tradições e
sentimento c o m u n u j ^ a busca comum organizada, mas de
liberdades evoluídas, que são a verdadeira base da ordem,
indivíduos Que segúeni regras de conduta que emananTd^
da inovação e do progresso.^^
mercados e das tradições morais."» Chamar isso de "socie-
Acima de tudo, personificação e animismo falsos caracte-
dade" eqüivale a misturar erroneamente "formações com-
rizam erroneamente a sociedade como um palco da justiça.
pletamente diferentes como a companhia [companionship]
Se a sociedade é imaginada como algo que existe ã parte dos
de indivíduos em constante contato pessoal e a estrutura
indivíduos, e se sua ordem é pensada como o efeito de uma
formada por milhões que estão conectados apenas por sinais
construção deliberada, segue-se que ela deve ser projetada
resultantes de cadeias de troca longas e infinitamente rami-
com a idéia de justiça em mente. Isso abre a porta para uma
ficadas".^" Mais do que meramente errada, no entanto, essa
intervenção estatal ilimitada tanto nos mercados quanto nos
mistura revela o "desejo oculto" de defensores da justiça ou
do planejamento sociais de modelar ordens modernas com códigos morais, a qual, argumenta Hayek, tem "uma tendên-
base em uma noção intencional e organizada do bem - o cia peculiar de autoaceleração":
estofo do totalitarismo.
Quanto m a i s se vê que a posição de indivíduos ou g r u p o s tor-
HayêFvIsIúmbi^uma segunda ilusão perigosa na idéia na-se dependente de a ç õ e s do governo, m a i s eles insistirão
e na idealização da sociedade. Esse conceito, diz Hayek, é em que os g o v e r n o s v i s e m a l g u m e s q u e m a r e c o n h e c í v e l de
baseado numa falsa personificação de uma coleção de indiví- j u s t i ç a distributiva; e quanto m a i s os g o v e r n o s t e n t a m rea-
duos e num falso animismo segundo o qual "o que foi trazido lizar a l g u m p a d r ã o preconcebido de distribuição desejável,
pelos processos impessoais e espontâneos da ordem amplia- m a i s eles devem sujeitar a posição dos diferentes indivíduos
da" é imaginado como "o resultado da criação humana deli- e grupos ao seu controle. Enquanto a crença na "justiça social"
berada"." Tanto a personificação como o animismo geram a g o v e r n a r a ação política, esse processo deverá se a p r o x i m a r
ilusão de que certas coisas são "valiosas para a sociedade" e m a i s e m a i s de u m sistema totalitário.^®
devem ser fomentadas pelo Estado (legitimando seu alcance

22 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, pp. 76-78.


18 Id., The Fatal Conceit, p. 1 1 2 .
23 Id., The Fatal Conceit, p. 1 1 3 .
19 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, p. 67.
24 Hayek atribui cada uma dessas crenças a Marx, o que é uma
20 Id., The Fatal Conceit, p. 1 1 3 .
leitura equivocada da teoria de Marx do poder social, da his-
21 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, pp. 75-76. The Fatal Con-
tória e mesmo das possibilidades do comunismo.
ceit, p. 116.
25 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, p. 68.

II
34 T 45

A alternativa de Hayek ao planejamento ou à justiça O mercado e a moral, para Hayek, também revelam a^
administrados pelo Estado não é, como se diz comumente, verdadeira natureza da justiça - sua preocupação exclu
o capitalismo de livre mercado. Em vez disso, como o capí- giva com a conduta, e não com efeitos ou resultadosJXjüs-
tulo 3 elaborará mais detalhadamente, a moral e o mercado tiça se refere apenas a princípios corretos, aplicados uni-
juntos geram a conduta evoluída e d i s c i ^ ^ ^ ^ r a "criar ê versalmente, e não a condições ou ao estado das coisas."«
sustentar nrdem ampliada". A conduta evoluída "encontra- A justiça também não tem nada a ver com recompensar o
-se entre o instinto e a razão" e não pode ser submetida à jus- esforço ou os merecedores. Hayek considera equivocados
tificativa racional, mesmo que possa ser reconstruída racio- até mesmo os utilitaristas a esse respeito, especialmente
nalmente.^« Embora possamos articular retrospectivamente John Stuart Mill, a quem critica por ter escrito que uma
a função tanto do mercado quanto da moral, eles não são o "sociedade" justa "deveria tratar igualmente bem todos os
produto de um projeto funcionalista; de fato, seu surgimento que merecem o mesmo dela".'" O mais significativo é que
evolutivo e sua operação rudimentar são fundamentais para ele ataque Horatio Alger por ter popularizado a idéia de que
Hayek: "Se parássemos de fazer tudo aquilo cuja razão não a melhor defesa do capitalismo é sua recompensa para os
conhecemos, ou para o que não podemos fornecer uma jus- que trabalham arduamente." Na verdade, declara Hayek
tificativa [...] provavelmente logo estaríamos mortos"." repetidamente, os mercados re^gmpgnsamjiontrihmSQesT
O mercado e a moral, jgortanto, não são nem nrimnatíveis nada mais." Tais contribuições, como riqueza ou inovação,
com nem opostos à^azãjo, não são racionais nem irracionais. podem ouTnão ser fruto de grande esforço e, inversamente,
Eles perduram e são válidos porque surgem "espontanea- trabalhos longos e intensos podem trazer pouco." Hayek
mente", evoluem e se adaptam "organicamente", unem os sabe que isso pode ser decepcionante, mas alega que não é
seres humanos independentemente das intenções e esta- injusto - a mistura de um com o outro é o grande erro dos
belecem regras de conduta sem depender da coerção ou social-democratas.
/_^2unição estatais. Tanto o mercado quanto a tradição moral Os sistemas morais tradicionais assemelham-se aos mer-
geram uma ordem dinâmica, e não estática, e criam novos 'cados de muitas maneiras, acrescenta Hayek, especialmente
"poderes humanos que de outra forma não existiriam".^« ao estabelecerem uma ordem desprovida de projeto prévio e j
Ambos propagam uma conduta propícia [felicüous] em gran- ^ao situarem a in^^tina nas reerac; não nos resultados, h s tra-
des populações sem depender dos excessos da intenção
dições morais geram um "sistema herdado de valor", que é
humana ou das falácias da razão humana e sem empregar
os poderes do Estado. 29 pp. 31-36.
30 p. 63.
31 p. 74-
32 A disparidade entre contribuições e recompensas é inevitável
26 Na verdade, nenhum código moral pode ser submetido à jus- e inevitavelmente desapontadora, mas não injusta. Cf lá., The
tificativa racional porque ele evolui e traz consigo significa- Fatal Conceit, p. 1 1 8 .
dos e valores que estão para além do alcance da intencionali-
33 Hayek reconhece que a inveja e a f r u s t r a ç ã o resultantes
dade e da compreensão. Cf. Ibid., pp. 68-70.
podem gerar atitudes anticapitalistas, mas essas atitudes não
27 p. 68.
compreendem o modo como o capitalismo funciona e o que é
28 p. 79.
ajustiça. C/: ibid., p. 199-
34 T 47

"um dispositivo para lidar com nossa ignorância constitucio- moralmente correto ou que t r a b a l h a a r d u a m e n t e pode não
nal", uma ignorância que abrange tanto a vasta incognosci- ser r e c o m p e n s a d o por s u a virtude p a r a então declarar que
bihdade do mundo quanto todas as consequências de nos-
'a d e s i g u a l d a d e é e s s e n c i a l p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o " e q u e " a
sas ações.- Se soubéssemos tudo, se pudéssemos antecipar
evolução não pode ser justa" no sentido popular da palavra.'«
todos os efeitos da ação e concordar "quanto à importância
A verdadeira justiça e x ^ e que as r e g r a s d o j o g o sejam conhe-
relativa dos [...] fins", diz Hayek, "não haveria necessidade de
cidas e aplicadas universalmente, m a s todo loeo tem vence-
regras", incluindo as da conduta moral.^^ As regras morais
d o r e s e p e r d e d o r e s , e a c i v i l i z a ç ã o ^ ã o p o d e e v o l u i r s e m dei-
são. então, valores definitivos, não ooraue r^^iih^^^^T^T;;;^,
x a r p a r a t r a s os eieitos üa í r a a u e z a e do fracasso, b e m ^ o m o
ma dos fatos . dos fins não c o m p ^ I h a d o s
descreve o "jogo" que fará avançar a
mas Doraue fornecem códiRos p_ara a a ç ã o a d e í p ^ í ^ ^ ^ e
civilização, satisfará necessidades [ujants], dispersará infor-
problema - elas são um tipo peculiar de deferência â incog-
noscibilidade. Como tal, no entanto, elas só podem orientar a mações, terá a liberdade [íiberty] como característica e que
conduta moral; não podem por si mesmas gerar uma ordem será totalmente "não projetado", ao mesmo tempo que pode
moral. Da mesma forma que o esforço pode não condizer com ser aperfeiçoado:
sua recompensa no domínio econômico, "a conduta moral
Ele procede, c o m o todos os jogos, de acordo c o m r e g r a s que
nao gratificará necessariamente os desejos morais" por cer-
g u i a m a s a ç õ e s de p a r t i c i p a n t e s individuais cujos objetivos,
tos resultados.3« Isso pode parecer lamentavelmente injusto
habilidades e conhecimentos são diferentes, com a conse-
e ate mesmo não razoável, assim como perder repetidamen-
quência de que o resultado será imprevisível e que h a v e r á
te em um jogo de azar.
r e g u l a r m e n t e v e n c e d o r e s e p e r d e d o r e s . C o m o e m u m jogo,
- "Compreensivelmente, nós detestamos resultados moral- e m b o r a e s t e j a m o s c e r t o s e m i n s i s t i r q u e ele s e j a j u s t o e q u e
I mente cegos", escreve Hayek sobre arranjos morais e econô- n i n g u é m t r a p a c e i e , s e r i a a b s u r d o e x i g i r q u e os r e s u l t a d o s
micos gerados por uma ordem espontânea e protegidos da p a r a os diferentes jogadores sejam justos. Eles serão n e c e s s a - g « /
interferência política, mas eles são a dura verdade da histó- riamente determinados em parte pela habilidade e em parte
ria humana livre e progressiva em um mundo onde somos pelajorte.^®
Ignorantes demais para planejar resultados coletivos pre-
l^isíveis ou estar de acordo acerca de valores comuns Além Agora estamos em condições de entender o que Hayek
disso, "a tentativa infrutífera de tornar justa uma situação considera tão perigoso nos "guerreiros da justiça social" que
CUJO resultado, por sua natureza, não pode ser determinado recriariam o mundo de acordo com um plano racional ou
por aquilo que ninguém sabe ou pode saber, apenas preju- com um grande cálculo moral. Eles recorrem à "ilusão fatal"
dica o funcionamento do próprio processo-.^«- E então Hayek da sociedade e ao princípio equivocado da igualdade para
passa rapidamente pela alegação de que o indivíduo atacar os piiai:es_gênieos da civilização: a moralidade tradi- >
clonal e mercados competitivos. Eles são animados por uma
34 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, p p . 5 0 8 . forma de primitivismo social e intelectual que imagina um
35 Ibid., p. 8 .
36 Id., The Fatal Conceit, p. 74.
37 Loc. cit. 38 Ibid., pp. 74 e 1 1 8 .
39 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, p. 7 1 -
34 T 49

diretor por trás de "todos os processos de auto-ordenação" versão do que os ordoliberais chamaram de "desmassifica-
e não têm maturidade para compreender a evolução histó- ção", escorando os indivíduos e famílias contra as forças do
riça.e a cooperação social que excedem a intencionalidade capitalismo que os ameaçam.
do projeto.^" São igualmente pueris ao demandar igualdade Esse último giro, pouco familiar especialmente para os
nos resultados. E ^ submetem inadequadamente^a mora- americanos, requer uma breve elaboração. O ordoliberalis-
lidade a padrões racionais e associam iustica no mercado mo, conhecido por suas raízes na Escola de Friburgo, apre-
moral a resultados, e não a regras. Eles intervêm nos
sentava um construtivismo mais manifesto - do Estado, da
mercados de maneiras que prejudicam a inovação, o desen-
economia e do sujeito - do que qualquer outra variedade de
volvimento e a ordem espontânea." Mais do que meramente
neoliberalismo. A desmassificação estava entre esses proje-
desorientada, a justiça social ataca a justiça, a liberdade e
tos construtivistas: o objetivo era contrapor-se ao processo,
o desenvolvimento civilizacional garantidos pelo mercado e
considerado pelos ordoliberais como sendo inerente ao capi-
pela moral. Se a crença na direção social e política da socie-
talismo, por meio do qual se engendra uma população que
dade é o que nos leva por esse caminho, então a sociedade
mais e mais pensa e age como massa. Eles denominavam
deve ser desmantelada.
esse processo "proletarização", aceitando grande parte da
No neoliberalismo realmente existente, esse desmante- análise histórica de Marx, mas se opondo aos seus valores
lamento ocorre em muitas frentes. Epistemologicamente, o e esperanças políticos; viam o capitalismo como gerador de
desmantelamento da sociedade envolve a negação de sua uma força social desindividualizada e até mesmo dester-
existência, como Thatcher fez nos anos 1980, ou a rejeição ritorializada, propensa a se revoltar contra ele brandindo
da preocupação com a desigualdade como "política da inve- demandas por um Estado social ou uma revolução socialista.
ja", uma linha que o candidato ã presidência Mitt Romney A desmassificação ordoliberal visava combater a^prol^ari-
adotou 30 anos depois e agora é uma réplica cotidiana con- zação por meio da empreendedoriza^ãoJlogoTda reindivi-
tra propostas de taxação da riqueza.^^ Politicamente, envol- dualizãçaoj aos t r ã b i i l i i ^ r e s , por um lado, e da realocacão
ve o desmantelamento ou a privatização do Estado social - dos trabalhadores em práticas de autoprovisão famniai:..por
seguridade social, educação, parques, saúde e serviços de outro. O reenraizamento e a autoprovisão, como Wilhelm
todos os tipos. Legalmente, envolve o manejo de reivindi- ¥ ö p k e se referia a estas práticas e às políticas que as via-
cações de liberdade para contestar a igualdade e o secu- bilizaram, desenvolveriam um novo "quadro antropológico"
larismo, bem como as proteções ambientais, de saúde, de para tornar os trabalhadores "mais resilientes em face das
segurança, laborais e ao consumidor. E t i g a m e n j p envolve recessões econômicas"." "Ancorados na comunidade e na
a contestação da justiça social por meio da autoridade natu- família", eles seriam capazes de resistir ao que o colega de
ral dos valores tradicionais. Culturalmente, implica uma Röpke, Alexander Rüstow, chamou de "fria sociedade" do

40 Md., pp. 62-63.


41 "A curiosa tarefa da economia é demonstrar aos homens o
pouco que eles realmente sabem sobre o que eles imaginam
43 Wilhelm Röpke, The Moral Foundation of Civil Society, p. 32. Cit.
que podem projetar". Id., The Fatal Conceit, p. 76.
in: Werner Bonefeld, "Human Economy and Social Policy: On
42 Michael White, "Nick Clegg's 'Politics of Envy': A Brief History". Ordo-Liberalism and Political Authority", p. 114-
34 T 50

preço econômico e da competitividade dos fatores." Essa Arrendando quartos no Airbnb, dirigindo para o Lyft )u
âncora também impediria que os trabalhadores "se tornas- Uber, trabalhando para o Task Rabbit como freelancers,
sem presa da mania proletária que demanda 'o fruto podre compartilhando bicicletas, ferramentas e carros ou simples-
do Estado de bem-estar'".^® mente gerenciando uma variedade de fontes de renda de
, No final do século xx, a "desmassificação" foi substitui- tempo parcial e de curto prazo ("bicos"), indivíduos e famí-
í da pela "empreendedorização" neoliberal e pela "capitaliza- lias visam sobreviver aos cortes e às recessões econômicos.
í ção humana" dos sujeitos, ao passo que reformas políticas Em terceiro lugar, enquanto os investimentos sociais na
visavam transferir quase tudo o que era proporcionado pelo educação, habitação, saúde, cuidado infantil e seguridade
Estado social para os indivíduos e famílias, fortalecendo-os social são reduzidos, delega-se novamente à família a tare-
ao longo do caminho.^® Três coisas importantes decorrem fa de prover para todos os tipos de dependentes - jovens,
dessas estratégias. Primeiramente, a emoreendedorizacão - velhos, enfermos, desempregados, estudantes endividados y
ou o que os franceses e britânicos chamaram de "respon- ou adultos deprimidos ou viciados.^"
sabilização" - produz um suieito aue Founault denominou Dessas três maneiras, o neoliberalismo não só trouxe o
"uma multidão de emnresas" ou o j u e Michel Feher chama de capitalismo de volta do abismo quando este estava em crise
um "portfolio de autoinvestimentos" concebido para manter nos anos 1970, como também salvou tanto o sujeito quanto
ou incrementar o va^lorjo capital humano.^' Esse portfolio a família das forças em desintegração da modernidade tar-
inclui o cuidado com os filhos, educação, saúde, aparência e dia. De fato, dentre as realizações neoliberaigjnais im^res
a provisão para a velhice. Em segundo lugar - substituindo sionantes estão o desmantelamento epistemológico^ políti
as estratégias pastorais de Röpke para construir resiliên- côTeconômico e cultural da sociedade rie massa^em capital]
cia, segundo as quais os lares urbanos plantariam hortas e humano e unidades familiares econômico-morai.sjuntamen-^
criariam galinhas - , os trabalhadores desproletarizados e tè"conrõ^sRate"tântÔTrcrindiví3uõ q ^ n t o ^ ^ f a m í ^ n o
dessindicalizados de hoje entram na economia do "compar-
rncmentoêxatõ^ sua aparente extinção. Desnaturalizadas
tilhamento" e da terceirização, na qual transformam suas
até seu núcleo, as versões neoliberais das unidades indivi-
posses, tempo, conexões e eus em fontes de capitalização.
duais e familiares podem acabar se mostrando mais fortes
do que quaisquer iterações anteriores.
44 Alexander Rüstow, Die Religion der Marktwirtschaft, p. 65. Id.,
Freiheit und Herrschaft: Eine Kritik der Zivilisation, p. 365, cit.
in: Bonefeld, "Human Economy and Social Policy", p. 1 1 4 . Cf tb. H A Y E K HOJE: A L I B E R D A D E E O S O C I A L
Rüstowf, "Social Policy or Vitalpolitik". In: The Birth of Auste-
rity: German Ordoliberalism and Contemporary Neoliberalism,
Se a crítica de Hayek à justiça social era iconoclasta nas
pp. 1 6 3 - 7 5 .
décadas do pós-guerra, hoje em dia tornou-se o senso
45 Werner Bonefeld, "Human Economy and Social Policy", p. 1 1 4 .
comum de um conservadorismo neoliberal robusto. Em abril
46 Mglinda Cooper chama isto de retorno da Lei dos Pobres bri-
tânica. Cf Family Values: Between Neoliberalism and the New
Social Conservatism, capítulo 3. 48 Melinda Cooper, Family Values. Cf tb. Janet Halley; Libby Adler,
47 Michel Feher, Rated Agency, pp. 1 8 0 - 8 1 . Cf tb. Id., "Self-Appre- "You Play, You Pay: Feminists and Child Support Enforcement
ciation; or. The Aspirations of Human Capital", pp. 27-28. in the U.S.". In: Governance Feminism: Notes from the Field.
34
T 53

de 2018, o secretário norte-americano de Habitação e Desen- 0 assalto neoliberal ao social, juntamente com sua iden-
volvimento Urbano Ben Carson recusou-se a aplicar a Fair tificação do poder exclusivamente com coerção, promul-
Housing Act [Lei de Moradia Justa] de 1968, condenando-a gou como consequência uma reformatação do liberalismo.
como "engenharia social". Em seu projeto original, essa lei À medida que saturava o discurso estatal e popular, o ataque
de fato procurou remediar décadas de redlining*^ imposta neoliberal à justiça social, à reforma social e aos serviços
por credores, bem como outras formas de discriminação e
sociais desafiava a igualdade, reformulava as guerras cultu-
segregação racial nas vendas de casas, aluguéis e financia-
rais e produzia uma desorientação geral da esquerda. Se não
mento público e privado.®" Na mesma primavera, o primei-
existe tal coisa como a sociedade, mas apenas indivíduos e
ro-ministro canadense Justin Trudeau também foi repreen-
famílias orientados pelo mercado e pela moral, então não
dido por praticar "engenharia social", neste caso por exigir
existe tal coisa como um poder social que gera hierarquias,
que a policia e os militares eliminassem os obstáculos ao
exclusão e violência, tampouco há subjetividade nas condi-
alistamento de mulheres e que os órgãos governamentais
ções de classe, gênero ou raça. Fora de um quadro neoliberal,||
usassem linguagem neutra em termos de gênero para lidar
é claro, a linRuagem do social é o que torna manifestas as
•com seus clientes." Os ataques aos "guerreiros da justiça
desigualdades: o domínio do social é o local em que sujei • - ^
' social" - isto é, qualquer um que desafie normas excluden-
a b j e ^ e s e exclusões são vivfdas, identificadas, contestadas
tes e distribuições estratificadas - , onipresentes na direita
e potencialmente retificadas. Fora de um quadro neolibe-
hoje, servem para reforçar as alegações nativistas, suprema-
ral, os poderes sociais se assentam no que Marx identificou
I cistas e nacionalistas sobre "quem.ço^rniu o Ocidente" e
como relações de exploração e dominação, no que Foucault
a quem ele pertence.®^
identificou como forças de subjetivação e construção social
ou no que teóricos críticos da raça, feministas e queer iden-
tificam como gramáticas de subordinação e abjeção. Como
qualquer estudante sério de desigualdade sabe, o social é
49 "Redlining" refere-se à prática por meio da qual bancos e ins-
tituições financeiras se recusam a oferecer hipotecas e ofere- um domínio vital da justiça, porque é nele que as histórias e
cem taxas menos vantajosas para clientes de determinados hierarquias consolidadas de uma determinada região, nação
bairros, com base em sua composição racial e étnica, alega- ou civilização são reproduzidas. O reconhecimento dos pode-
damente por apresentarem maior risco financeiro, [N.T.] res sociais é a única maneira de entender o protesto do take
50 Aparentemente, o que qualificou parcialmente Carson para a knee ou a afirmação de que vidas negras importam, as
o cargo de secretário de HUD foi seu discurso de 2 0 1 5 contra
altas taxas de suicídio entre adolescentes queer ou as mulhe-
um regulamento da época do presidente Obama exigindo que
res que trabalham mais por menos. Além disso, o social é oj
uma parcela designada de moradias subsidiadas pelo governo
fosse construída em bairros com acesso a transporte público,
que nos conecta de maneiras que excedem os laços pessoais,'
^empregos decentes e escolas. Isso também, lamentou ele, é
a troca de mercado ou a cidadania abstrata. É lá que nós,
"engenharia social". The New York Times, "Ben Carson's War- como indivíduos ou uma nação, praticamos ou falhamos em
ped View of Housing". praticar a justiça, a decência, a civilidade e o cuidado, para
51 Christie Blatchford, "Trudeau Government's Needless Obses- além dos códigos do instrumentalismo e do familialismo de
sion with Gender Is Exhausting". mercado. E é aí que a igualdade política, essencial à demo-J
52 Michael Taube, "No Boys Allowed, and No Girls Either". cracia, é feita ou desfeita.
34 T 55

Quando a racionalidade neoliberaí tem êxito em fazer exercida legitimamente sem preocupação com o contexto
desaparecer os poderes sociais, as reivindicações críticas ou as consequências sociais, sem restrição, civilidade ou
enraizadas neles não são nada mais do que as lamúrias cuidado com a sociedade como um todo ou com os indiví-
infundadas de "flocos de neve"." Ao mesmo tempo, a redu- duos dentro dela. Quando a alegação de que "a sociedade
Çã£neoliberal^^ liberdade à coerção põe não existe" se torna senso comum, ela torna invisíveis as
os princípios (e as leis decorrentes deles] de igualdade, e normas e as desigualdades sociais geradas pelos legados da
inclusão como tirania do politicamente correto. Assim, hoje escravidão, do colonialismo e do patriarcado. Isso autoriza!
temos um liberalismo que repudia os pòdires estruturais a privação efetiva de direitos (e não apenas o sofrimento)
da dominação - "se as mulheres querem ser engenheiras e produzida pela falta de moradia, de assistência médica e de
os latinos querem ser filósofos, nada nem ninguém os impe- educação. E permite ataques em nome da liberdade ao que
dirá!" - e sublinha todos os esforços para gerar ambientes quer que tenha sobrado do tecido social.
equitativos e inclusivos como distorções do funcionamento Esse é o raciocínio neoliberaí que emoldura o ataque
espontâneo do mercado e da moral. A consistência lógica pela direita contemporânea às universidades americanas
assenta-se na suposição de que o poder é limitado ã coer- em relação a palestrantes, códigos de expressão, currículos,
ção e que a liberdade é equivalente ã ausência de lei e de
i seus ditames.
contratações e admissões, códigos de conduta e muito mais.
Enquanto a esquerda luta para articular os vários poderes
Em suma, com a ascensão da razão neoliberaí, o ataque que geram sujeitos sociais construídos e posicionados de
ao social - à sua própria existência e ã sua adequabilidade modos diferentes, a direita esmaga essa luta com um dis-
como uma província de justiça - tem sido tão significativo curso que reduz a liberdade à censura e à coerção. À medida
quanto as facetas mais familiares do neoliberahsmo (por que a esquerda busca tornar visíveis as complexas histórias
exemplo, o antiestatismo] para edificar o poder corporativo, e forças sociais que reproduzem a superordenação e a hege-
legitimar a desigualdade e desencadear um novo e desinibi- monia masculina branca, a direita zomba da engenharia
do ataque aos membros mais vulneráveis da sociedade. Por social, da mentalidade de bando e da injeção de justiça social ^
p u m lado, ^eslegitimação das preocupações com_a igualdã- em um espaço propriamente organizado pela seleção (pre-

/
' de^exceto a igualdade legal formal, e das preocupações com sumidamente livre de normas) da excelência, por um lado, e
o poder, exceto a coerção explícita, forneceiTesse novo signi- pela "diversidade de pontos de vista", por outro." J
ficado e prática da liberdade sob o manto exclusivo do direito. A universidade está longe de ser o único lugar em que a
Essa liberdade não supera simplesmente outros princípiijs direita ganha uma vantagem estratégica por meio da des-
políücflsijgla é tudp^gue exisíe. Por outro lado, a liberdade, legitimação implacável dos conceitos do social e da socie-
arrancada do social, não se torna apenas ilimitada, mas' dade pela razão neoliberaí. Consideremos a controvérsia
que irrompeu no outono de 2017 depois que o engenheiro de
software da Google, James Damore, divulgou um memorando
53 "Snowflake", nos EUA, é uma referência depreciativa, empre-
gada normalmente pela direita, às pessoas que se creem úni-
cas, especiais e demasiadamente sensíveis aos problemas do 54 Toni Airaksinen, "'Social Justice Warriors' Are Ruining Engi-
mundo. Um equivalente brasileiro é a figura, pintada pela neering, Prof Warns". George Leef, "Social Justice Has Invaded
nova direita, das pessoas que só fazem "mimimi". [N.T.] Engineering".
34
T 57

argumentando que "diferenças de personalidade" explicam "pílula v e r m e ^ " da alt-rightf em sua forma mais moderada,
'por que tão poucas mulheres ocupavam cargos em engenha- ~é a convicção"^ que a v i ^ g ^ d e t e r m i n a ^ p e l a j e n é t i c a , ^ ^
^ - n a e na liderança da empresa.®® Dadas as diferenças imu- responsabUidade^p^^ Den-
tf^ táveis que emanam do sexo biológico "em todas as partes tro deste senso comum, o social é o inimigo da liberdade,
do mundo", escreveu Damore, os esforços da Google para enquanto os "siws" são os inimigos de um povo livre. No
recrutar e promover mais mulheres nesses campos eram entanto, como vimos, o ataque ao social - sua existência
equivocados - "injustos, divisivos e ruins para os negócios".®® e sua adequabilidade como provedor de justiça - também
Imediatamente demitido pela Google por violar as regras desinibe a liberdade identificada com o neoliberalismo,
da empresa relativas a "promover estereótipos de gênero", convertendo-a de mero libertarianismo moral a um ataque
Damore processou a empresa e também se tornou uma cause agressivo à democracia. Ele franqueia o exercício da liberda-
célebre da direita - mas não apenas pelo que escreveu ou de sem preocupação com o contexto ou com as consequên-
pelo preço que pagou por isso. Ao contrário, a alegação_de cias sociais, sem se importar com a sociedade, a civilidade
/j Iter sido primeiro enverRonhado e depois demitido oor suas ou os laços sociais e, acima de tudo, sem se preocupar com o
i v i s õ e s j ^ d e l e um^cone da liberdade em uma "cultura feita cultivo político de um bem comum. Desse modo, a alegação
para suprimi-la".®^ A direita aplaudiu sua rejeição das expli- de que "não existe tal coisa como a sociedade" faz muito mais
.^cações sociais da desigualdade; celebrou sua insistência do que contestar a social-democracia e os Estados de bem-
de que a prevalência de homens no setor de tecnologia e -estar como formas de interferência no mercado que criam
nos altos escalões dos negócios é enraizada na natureza e "dependência" e "arrogação" [entitZement] equivocadas. Faz
confirmada pelo mercado; promoveu sua crença de que poli- mais do que propagar a noção de que impostos são roubo, ao
• ticas igualitárias prejudicam a justiça, a coesão social e o invés de matéria pela qual a vida comum e as coisas públicas
,>H*'desenvolvimento econômico; e amplificou seu testemunho são sustentadas.®' Faz mais do que culpar os pobres por sua
de vida sobre uma esquerda supostamente totalitária que condição ou a "natureza" das minorias e mulheres de todas
força visões e políticas conformistas, coercitivas e censoras. as raças por sua presença minúscula nas profissões e posi-
Em suma, a crítica neoliberal da sociedade e da justiça ções de elite. A liberdade sem a ^ c i e d a d e destrói o l^xico^
social em nome da liberdade e das normas morais tradicio- pelo qual a uberdade torna-^ dmüC' i j c a , combinada com
nais tornou-se hoje em dia o senso comum de uma cultura
neoliberal robusta. Em seu extremo, trata-se da ideologia da
58 Do inglês alternative right. Refere-se justamente a esse pen-
samento ligado ao mercado e à moral que Wendy Brown está
descrevendo. Corresponde também à f r a ç ã o da e x t r e m a
direita que se caracteriza pela rejeição do conservadorismo
55 Daisuke Wakabayashi, "Contentious Memo Strikes Nerve
"clássico". Um de seus nomes mais proeminentes é o supre-
Inside Google and Out". Paul Lewis, "'I See Things Differently':
macista branco Richard Spencer. No entanto, conforme mos-
James Damore on His Autism and the Google Memo".
tra Brown logo na primeira página da introdução do livro, a
56 Kate Conger, "Exclusive: Here's the Full lo-Page Anti-Diver-
alt-right partilha diversas características com a ascensão da
sity Screed Circulating Internally at Google".
extrema direita pelo globo. No Brasil, este grupo tem sido
57 Aja Romano, "Google's Fired 'Politically Incorrect' Engineer

í
chamado de "nova direita", [N.T.]
Has Sparked a Broad Ideological Debate".
59 Bonnie Honig, Public Things: Democracy in Disrepair.
59
58

a consciência social e aninhada na igualdade política^iber- iustiça social seja degradada. Expressões brutas e provoca-
dade sem soc^dade é puro instrumento de poder, desgida_de tivas de supremacismo se tornam expressões da liberdade
preocupação com os outros, o mundo ou o futuro. que a Primeira Emenda da Constituição Norte-americana foi
o s t e n s i v a m e n t e escrita para proteger - exceto que nao foi. A
A redução da liberdade à licença pessoal não regulada
no contexto de repúdio ao social e do desmantelamento Primeira Emenda era uma promessa aos cidadãos democráti-
da sociedade faz ainda outra coisa: consagra como livre cos de que eles não seriam perturbados pelo Estado em sua
expressão todo sentimento histórica e politicamente gera- consciência, fé e voz política individuais. Não era uma pro-'
do de arrogação (perdida) baseada na branquitude, mascu- messa de proteger ataques perversos contra outros seres ou
linidade ou nativismo, enquanto nega que estes sejam pro- grupos humanos e tampouco uma promessa de submeter a
duzidos socialmente, desatrelando-os de qualquer conexão nação a uma corporocracia ou a uma teocracia cristã. Como
com a consciência, compromisso ou consequência sociais. os capítulos 4 e 5 discutirão com mais detalhes, uma cultura
A arrogação perdida dos privilégios da branquitude, mascu- neoliberal de liberdade associai abre o caminho para ambas
linidade e nativismo é então facilmente convertida em ira
justificada contra a inclusão social e a igualdade política dos
historicamente excluídos. Essa raiva, por sua vez, torna-se a H A N N A H A R E N D T NÃO AJUDOU

expressão consumada da liberdade e americanidade, ou da


liberdade e europeidade, ou da liberdade e o Ocidente. Com Críticas ao conceito de sociedade e ao social vieram de qua-
a igualdade e a solidariedade social desacreditadas e com a drantes diferentes de Hayek e dos neoliberais; nenhuma
negação da existência de poderes que reproduzem as desi- delas é mais notória na teoria política do que a de Hannah
gualdades, abjeções e exclusões históricas, o supremacismo Arendt. Vamos nos deter aqui apenas brevemente, porque
i masculino branco ganha assim nova voz e legitimidade no nossa preocupação não é com esse problema na teoria poli-
século XXI. tica, mas com as coordenadas dos poderes e discursos políti-
Agora estamos em posição de entender como os nazis- cos c o n t e m p o r â n e o s . Vivemos em tempos neohayekianos, e
tas, membros da Ku Klux Klan e outros nacionalistas bran- nunca vivemos em arendtianos. Mesmo assim, vale a pena
cos se reúnem publicamente em "comícios de liberdade de uma nota sobre Arendt, tanto por sua influência peculiar-
expressão", por que um supremacista masculino, branco mente ampla sobre os filósofos políticos da esquerda quanto
e autoritário na Casa Branca é identificado com a liberda- porque a antipatia de Arendt pelo social equivale em intensi-
de por seus apoiadores por ser "politicamente incorreto" e dade, se não em conteúdo, ã de Hayek. Para Hayek, o social
como décadas de políticas e princípios de inclusão social, de não existe; para Arendt, seu desenvolvimento moderno
combate ã discriminação e de igualdade racial, sexual e de inchado destruiu as quintessenciais capacidades humanas
gênero vêm a ser tachadas como normas e regras tirânicas de liberdade e ação na esfera pública.
impostas por bandos de esquerda. O que acontece quando A diatribe de Arendt contra o social em A condição huma-
a liberdade é reduzida a asserções nuas de poder e arro- na é bem conhecida: nem privado, nem público, argumenta
gações, enquanto a própria ideia de sociedade é repudia- ela, a ascensão e a valorização do social na modermdade
da, a igualdade é menosprezada e a democracia é reduzida reduzem a política a preocupações com o bem-estar [wel-
ao privatismo liberal? Não se trata simplesmente de que a fare] e produzem regimes políticos com base no modelo de
fiO £1

uma família gigante que supre as necessidades humanas. miséria das massas".®^ A Revolução Francesa, ao contrário,
Na social-democracia e no socialismo, os seres humanos foi destruída quando o grito por liberdade foi substituído
são reduzidos a trabalhadores e consumidores, criaturas da pelas demandas dos pobres por pão, demandas que inunda-
necessidade, e não da liberdade. A vítima não é apenas uma ram o domínio político com os corpos e suas necessidades e
forma mais nobre de vida política e uma esfera protegida que provocaram o Terror.
de privacidade, mas a própria peculiaridade de nossa espé-
cie como seres de ação e intelecção. Em A condição humana, Quando eles [a multidão] s u r g i r a m n a c e n a da política, com
quase tudo o que há de errado com a modernidade é, para eles s u r g i u a n e c e s s i d a d e [necessity], e o resultado foi que o
Arendt, causado pela ubiquidade do social: inautenticidade e poder do Antigo Regime tornou-se impotente e a nova repúbli-
conformismo; ação substituída por comportamento e narra- c a n a s c e u morta; a liberdade teve de render-se à necessidade,
tiva épica substituída por estatística;®" desaparecimento de à urgência do próprio p r o c e s s o vital [...] Foi a necessidade, a s
um reino cujas coordenadas eram risco e distinção em favor u r g e n t e s c a r ê n c i a s do povo, que desencadeou o terror e lan-
de um reino de igualdade e mediocridade;" o governo políti- ç a r a m a r e v o l u ç ã o à s u a ruína. [...] a revolução m u d a r a s u a
co como uma forma singular de realização humana, obstruí- direção; não b u s c a v a mais a liberdade; seu objetivo agora era
do pelo surgimento do "governo por ninguém" em mercados a felicidade do povo.®®
e burocracias; a vida pública como domínio de arête e virtü
substituída pela sociedade centrada no trabalho [work], "a Por que a luta contra a carência [want] é hostil ao desejo
única atividade necessária para sustentar a vida", antes revolucionário por emancipação? Por que as necessidades
escondida no lar por ser considerada vergonhosa;®^ e cidada- [needs] anulam a liberdade? Arendt escreve:
nia alocada apenas para os livres e orientada inteiramente
para o autogoverno, desaparecendo em multidões escravas Pobreza é m a i s do que privação, é u m e s t a d o de c o n s t a n t e
carregando "um irresistível instinto para o despotismo".®' c a r ê n c i a e a g u d a m i s é r i a , cuja i g n o m í n i a c o n s i s t e em s u a
Apesar de todo o seu opróbrio dirigido ao social em força desumanizadora; a pobreza é abjeta porque submete os
A condição humana, no entanto, a condenação mais severa homens ao império absoluto de seus corpos, isto é, ao império
de Arendt às características destrutivas da liberdade e da absoluto da necessidade, como todos os homens a conhecem a
política pelo social aparece em Sobre a revolução. Dentre as p a r t i r de sua experiência mais íntima independente de todas
revoluções políticas que inauguram a modernidade, argu- a s e s p e c u l a ç õ e s . Foi sob o ditame d e s s a n e c e s s i d a d e que a
menta ela, só a Revolução Americana realizou sua promessa multidão atendeu ao apelo da Revolução F r a n c e s a , inspirou-a,
emancipatória. Por quê? Pois somente ela evitou caracteri- impulsionou-a p a r a a frente e, finalmente, levou-a à destrui-
zar "a questão social, na forma das condições alarmantes de ção, pois esta e r a a multidão dos pobres.®®

60 Hannah Arendt, The Human Condition, pp. 40-41.


61 Ibid., p. 40.
64 Id., On Revolution, p. 17.
62 p. 46.
65 Ibid., pp. 59-60.
63 p. 43. 66 p. 60. Cf. tb. Seyla Benhabib, "The Personal Is Not the Political"
100 6 3

I— A crítica de Arendt ao social difere significativamente da das massas em enxame, exigências que veem como ameaça
de Hayek. O legado da modernidade mais prejudicial à vida à liberdade e até mesmo à civilização. Acima de tudo, ambos
política, a sociedade é o teatro da produção, do bem-estar, das rejeitam o entendimento crítico da esquerda do social como o
necessidades e das satisfações, e não da ação, do feito e da lugar moderno essencial da emancipação, da justiça e da demo-
.imortalidade. Para Hayek, a sociedade é produto de benfeitores, cracia. Para ambos, a liberdade tem na ascensão do social seu
racionalistas e déspotas presunçosos, daqueles com ambições' leito de morte. Assim, a social-democracia e o comunismo de
de projetar e dirigir a sociedade, em vez de honrar a liberdade Estado são apenas pontos num espectro do que Tocqueville
e a tradição que permitem sua ordem e evolução espontâneas. denominou a "servidão regulada, branda e pacífica" resultante
Arendt quer salvar a vida política da intrusão dos corpos e de um estatismo administrativo que zela pelas necessidades
necessidades, economia e behaviorismo, o que está a quilôme- e esculpe os objetivos de um povo. Embora Hayek proclame
tros de distância do desejo de Hayek de salvar o mercado e a o individualismo ontológico e o privatismo liberal, e Arendt
moral dos esquemas de justiça social. Arendt idealiza a ação sonhe com cidadãos "agindo em concerto" para criar um
d e l i b e r a ^ W e r a m í b l i c a : Havekideahzah^ivi^uos moral- mundo em comum, eles compartilham a convicção de que a
mente disciQhnariosj[uezelam^ seus p r ó p r i o s T n t e r e s s e s . questão social tomou a vida política moderna e que a socieda-
Arendt teme que a liberdade tenha sido perdida para o compor- de tomou o indivíduo. A liberdade está em demonizar e, final
tamento condicionado; Hayek teme sua restrição pelo poder do mente, derrotar o social. A sociedade deve ser desmantelada.
Estado e sua dissolução em culturas políticas de dependência.
Para Hayek, o social é uma ficção tóxica que anima o monstro
destruidor de liberdade de um Estado invasivo. Para Arendt,
o próprio social é a força devoradora, que Hanna Pitkin com- PERDENDO O I M A G I N Á R I O POLÍTICO DO S O C I A L

para à figura de "um monstro maligno [...] com a intenção de


nos debilitar, absorver e por fim nos destruir, deglutindo nossa Este capítulo começou refletindo sobre o social como o fun-
distinta individualidade e nos transformando em robôs que damento da democracia, sobre a centralidade da igualdade
servem mecanicamente aos seus propósitos".®^ para qualquer conceito ou prática de política democrática, e
sobre por que a justiça social é, portanto, importante para
E ainda assim, apesar de todas as suas diferenças, algo gerar e proteger práticas e instituições democráticas. Conclui
conecta o ódio ao social compartilhado por Arendt e Hayek, refletindo sobre por que o social é importante para gerar e
algo além de seu estado de alerta para a emergência do fas- proteger um imaginário democrático.
cismo a partir dos projetos de nacional-socialismo e dos regi- Em Terra e mar, Carl Schmitt escreve que "todo ordena-
mes de Estado repressivos das revoluções proletárias. Tanto mento das questões humanas também se materializa em um
Arendt quanto Hayek execram o Estado dedicado a suprir as ordenamento do espaço. Consequentemente, as revoluções
necessidades humanas e execram a vida política - incluindo a das sociedades humanas sempre envolvem também a altera-
i democracia - quando devotada ao bem-estar humano. Ambos ção de nossas concepções de espaço"."" Schmitt desenvolve
temem a conquista ou a ocupação do político por demandas

68 Um artigo fascinante de A l e x a n d e r Somek chamou minha


67 Hanna Pitkin, The Attack of the Blob: Hannah Arendt's Concept atenção sobre esse argumento em Schmitt: "The Social Ques-
of the Social, p. 4.
tion in a Transnational Context". Veja pp. 47-48.
34 T 64

este ponto de modo diferente em O nomos da Terra, em que Alexander Somek extrai um segundo insight de Terra e
diz: "cada nova era e cada nova época na coexistência dos mar, de Schmitt. Trata-se da ligação que Schmitt estabelece
povos [...] e nas formações de poder de todos os tipos são entre as ordens espaciais e as visões escatológicas. Somek
fundadas em novas divisões espaciais, novos cercamentos e escreve: "Schmitt nos faz perceber [...] que as alterações da
novas ordens espaciais da Terra".«» Em ambos os textos, Sch- o r d e m do espaço também implicam [...] a dimensão espacial
mitt está se referindo ao espaço físico e geopohtico - anexa- ao longo da qual imaginamos mundos melhores surgindo no
ções, subdivisões, perda de linhas costeiras ou até mesmo futuro".'" Simplificando, nós vislumbramos futuros p o s s í v e i s " ' ^
dissoluções de nações ou invenções de nações novas - , os a partir e em termos das ordens espaciais de nosso presente,
tipos de reorganização que frequentemente precipitam as especialmente em termos de suas divisões e coordenadas."
guerras e seguem-se a elas. No entanto, seu argumento apli- Esse insight é significativo para considerarmos as implica-
ca-se à espacialização não literal e até mesmo desterrito- ções do desmantelamento da sociedade e a produção, em seu ,
riahzada, tal como o desmantelamento e a desintegração
lugar, de uma ingurgitada esfera de moralidade tradicional _ J
neoliberais do social.
e de uma operação expandida dos mercados. À medida que
Schmitt nos lembra que o espaço não é apenas uma o social desaparece de nossas ideias, discurso e experiência,
arquitetura para o poder, mas a cena da imaginação e dos ele desaparece de nossas visões do futuro, tanto utópicas
imaginários políticos. Ordenamentos humanos do espaço quanto distópicas. Imaginamos futuros nacionalistas auto-
e os significados atribuídos a esses ordenamentos moldam ritários, futuros virtualmente ligados em rede, futuros tec-
nossas conceituações de quem e do que somos, especial- nocráticos, futuros anarquistas, futuros cosmopolitas trans-
mente na vida com os outros. Esses ordenamentos podem nacionais e futuros fascistas. M a m o s em termos vagos da
pôr em primeiro plano localidades hemisféricas ou caracte- "miiltidãn" nu "dos rrimnng" QPm a democratízacão concreta
rísticas topográficas: uma nação perde seu mar em acordos dõTpoderes que eles abrieam e pelos auais eles seriam euia-
de pós-guerra, uma represa transforma um rio em lago, um dos. Nenhum deles visa inventar possibilidades do governo
bairro é cindido pela construção de uma rodovia ou de um democrático para o século xxi, alcançado e apoiado em
muro. Mas eles também apresentam designações do espaço parte pela democratização do poder social. Nenhum opera
público e privado, de espaço de gênero, de espaço racializa- no âm bito do poder social, mesmo que esse poder continue a
do e muito mais. Sabemos disso a partir de protestos que gerar dominação, es^tratihcação, exploração, exclusão e abje-
vão desde Little Rock até Gezi Park, da privatização de ter-
ção. E nenhunTnõs reúne^enquanto sociedade para deliberar
ras públicas às lutas contra a gentrificação e pela criação
de banheiros de gênero neutro. Nós não apenas vivemos
em territórios marcados, mas também desenvolvemos ima-
70 Alexander Somek, "The Social Question", p. 48.
ginários políticos do comum (ou da falta dele) a partir da 71 Sabemos disso por seu inverso, o que Baudrillard chamou
semiótica espacial. de "espelho da produção" na visão de Marx para a sociedade,
em que (apesar de sua apreciação passageira da liberdade
tomando forma para além da produção) ele fundamentou a
vida e a liberdade na gigantesca organização industrial das
69 Carl Schmitt, The Nomas of the Earth in the International Law massas trabalhadoras que povoavam seu próprio mundo. Cf
of the Jus Publicum Europceum, p. 79. Jean Baudrillard, The Mirror of Production.
sobre ela e governá-la em comum. A linguagem precisa é
fungível - "o social" e "sociedade" dificilmente são os únicos
termos que podem capturar esses poderes e essa reunião.
No entanto, algo deve aproximá-los para construir a igual-
dade política exigida pelas aspirações democráticas. É um
sinal do triunfo da razão neoliberal o fato de que, nas déca-
das recentes, a gramática do social, incluindo sua importân-
^^ cia para a democracia, tenha desaparecido largamente das
visões da esquerda (e não apenas da direita) para o futuro.
Nos Estados Unidos, pode-se creditar ao Occupy Wall Street
o mérito de tê-la forçado de volta ao debate público. Mais
recentemente, novas noções de socialismo e projetos como o
Hoje, os únicos detentores de poder, sem controle legal que os
Green New Deal" têm sido mobilizados para exigir uma dire-
ate e movidos pelas necessidades políticas de uma máquina obs-
ção política do bem-estar social, concebida de modo amplo.
tinada, são os assim chamados legisladores. Mas essa forma
A relação do social com o governo democrático ainda está
predominante de democracia é, em última análise, autodestruti-
interrompida e ausente desses importantes discursos de
va, pois impõe aos governos tarefas sobre as quais uma opinião
reMi|p_contra o objetivo do neoliberalismo de derrotar a
acordada da maioria não existe e nem pode existir. Portanto, é
sociedade e o social.
necessário restringir esses poderes para proteger a democracia
contra si mesma.
Friedrich Hayek, "The Dethronement of Politics"^

"o POLÍTICO" é um termo cunhado no século xx sob impulso do


trabalho de Max Weber e que sofreu diferentes inflexões em
Carl Schmitt, Hannah Arendt, Claude Lefort, Paul Ricoeur,
Sheldon Wolin, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe." Essas dife-
renças não serão examinadas aqui, nem nos deteremos na

Friedrich Hayek, Law, Legislation, and Liberty, vol. 3: The Poli-


tical Order of a Free People, p. 149-
James Wiley faz uma história intelectual de "o político" em
Politics and the Concept of the Political: The Political Imagination.
Nas pp. 3-4, ele nota que "o conceito do 'político' foi cunhado
em 1 9 2 7 por Carl Schmitt", mas que o "conceito" é diferente
72 Trata-se de uma proposta de legislação nos Estados Unidos no que diz respeito ao uso do termo "o político" que Willey
visando combater as mudanças climáticas e a desigualdade
encontra em uma carta de M a x Weber referindo-se a "das
econômica, [N.T.]
Politische" como seu antigo e "secreto amor".
100 36

Também não estamos falando de superestrutura; o politico


possibilidade de que a extensa tematização do "politico" no
não é mero reflexo dos poderes sociais, um palco no qual as
século XX seja um caso da coruja de Minerva alçando voo
lutas reais" da sociedade civil são encenadas.® Pelo contrá-A
ao anoitecer, embora seja isso que Arendt tenha tacitamen-
rio o poder político sempre se materializa e é moldado por
te argumentado e que Schmitt temia.' Nosso foco está na
importância do termo para pensar sobre a produção neoli-
uma
uma
racionalidade distinta, uma forma de razão e suas oclu-
J
beral do presente. sões, um conjunto de normas e seus efeitos gerativos. Como
Diferentemente da política, o político não se refere princi- Michel Foucault nos lembra, o poder não é nem independen-
palmente a instituições ou práticas explícitas, não é coexten- te da construção da verdade nem assimilável à verdade, e o
sivo ao Estado e não se reduz às particularidades do poder poder político não é exceção.®
político nem da ordem política. Em vez disso, o político iden- Diferentemente do que pensam Schmitt e Arendt, o poli-
tifica um teatro de deliberações, poderes, ações e valores tico nem possui fundamentos ontológicos nem coordenadas
o qual a existência comum é pensada j u a l d a d i e gover- e características historicamente imutáveis. Ele não é auto-
n a ^ . O político refere-se inescapavelmente ao traçado das nomo em relação a outros domínios ou poderes; ao contra-
coordenadas de justiça e ordem, mas também à segurança, rio, poroso, impuro e sem amarras, ele é saturado de forças
ecologia, urgências e emergências. Formas distintivas de e valores econômicos, sociais, culturais e religiosos. Ainda
poder — sejam elas legais ou decisórias, compartilhadas ou assim, o político__éjingu]ar no qu.^cgncerne a d i r _ e ç ^ o
autocráticas, desonestas ou legítimas e responsáveis — têm destino, até m ^ s - o da vida e da m o r t e , d« — H n .
a assinatura do político, mas são formas específicas de razão n ^ ^ í T í ^ r n . n o s ^ J a r g a escala. Nele também reside
L que lhe dão forma em qualquer época e lugar. Os poderes do distintivamente o significado de um povo, gerando identi-
político são gerados pela comunidade (nua) que ele reúne, dade individual e coletiva vis-à-vis de outros. Acima de tudo,
mas não da maneira metódica e rastreável pela qual o traba- somente o político resguarda a possibilidade da democracia.
lho é pensado pelos marxistas como gerador de mais-valia.^

"Quando a filosofia chega com a sua luz crepuscular a um


nem definido por seu recurso exclusivo ã violência nem cen-
mundo já a anoitecer, é então que uma manifestação de vida
trado no Estado. E, diferentemente de Wolin, o político nao
está prestes a findar. Não vem a filosofia para a rejuvenescer,
é pertinente apenas às sociedades livres e ao projeto de seu
mas apenas reconhecê-la. Quando as sombras da noite come-
bem-estar, nem se distingue da política por sua aparência
çaram a cair é que levanta voo o pássaro de Minerva". G. W. F.
rara e episódica.
Hegel, "Prefácio". In: Philosophy ofRight, p. 1 3 .
4 Diferentemente de Marx, o político não é um mero efluente Karl M a r x , The German Ideology. In: The Marx-Engels Reader,
do modo de produção, de sua superestrutura ou o palco em pp. 160-61.
que conflitos de classe se desenrolam. Diferentemente de Sch- "Estamos sujeitos ã produção da verdade pelo poder e nao
mitt, não é redutível à distinção amigo-inimigo que organiza podemos exercer poder senão através da produção da ver-
a guerra e a identidade nacional. Diferentemente de Arendt, dade [...] Precisamos produzir a verdade assim como produ-
o político não é nem distinto da violência nem primariamente zimos riqueza. Na verdade, precisamos produzir a verdade
um domínio para alcançar reconhecimento ou imortalidade antes de gerar riqueza". Michel Foucault, " T w o L e c t u r e s ,
através da fala e da ação. Diferentemente de Weber, não é pp. 93-94-
100 37

entendida como o governo pelo povo.' A democracia sem o Gestão, lei e tecnocracia no lugar de deliberação, con-
político é um oximoro; a partilha de poder que a democra- testação e partilha democráticas do poder: várias décadas
cia implica é um projeto exclusivamente político que requer dessa hostilidade multifacetada à vida política democrá-
I cultivo, renovação e apoio institucional. A legitimidade da tica geraram em populações neoliberalizadas, na melhor
1 democracia advém exclusivamente de vocabulários e orde- das hipóteses, uma desorientação generalizada quanto ao
nanças políticos. valor da democracia e, na pior, opróbrio em relação a ela.
Pensadores neoliberais viam o político com desconfiança, No entanto, dado que o político foi depreciado e atacado,
e como vamos analisar em profundidade brevemente, eram mas não extinto, enquanto a própria democracia era min-
abertamente hostis tanto à sua variante soberana quanto guada e desvalorizada, os poderes e energias políticas não
à democrática. O neoliberalismo, deste modo, visa limitar democráticos e antidemocráticos em ordens neoliberaliza-
e conter o político, apartando-o da soberania, eliminando das inchavam em magnitude e intensidade. Foi desse modo
sua forma democrática e definhando suas energias demo- que efeitos neoliberais tais como desigualdade e inseguran-
cráticas. De suas aspirações e afirmação "pós-ideológicas" ça crescentes geraram populismos de direita enraivecidos
da tecnocracia até sua economicização e privatização das e políticos demagogos no poder que não condizem com os 7
atividades governamentais, de sua oposição desenfreada sonhos neoliberais de cidadãos pacíficos e ordeiros, econo-'
ao "estatismo" igualitário até sua tentativa de deslegitimar mias desnacionalizadas. Estados enxutos e fortes e institui-
e conter as reivindicações democráticas, de seu objetivo de ções internacionais focadas em viabilizar a acumulação de
restringir direitos até seu objetivo de limitar agudamente capital e estabilizar a concorrência."'
certos tipos de estatismo, o neoliberalismo busca tanto cons- Por um lado, é óbvia a afirmação de que o ataque neolibe-
tringir quanto desdemocratizar o político.® Para isso, os neo- raí à vida política contribuiu para as rebeliões antidemocrá-
liberais promoveram Estados e instituições supranacionais ticas de hoje. A política neoliberaí visa afrouxar o controle
despolitizados, leis que "revestiriam e protegeriam o espaço político sobre atores econômicos e mercados, substituindo
da economia mundial", a governança baseada em princípios a regulação e a redistribuição por liberdade de mercado e
de negócios e sujeitos orientados pelo interesse e disciplina- direitos de propriedade descomprometidos. Os anos Reagan-
dos pelo mercado e pela moral.® -Thatcher foram moldados pelo refrão de que "o governo é o
problema, não a solução" tanto para as questões econômicas
quanto para as sociais, refrão esse que se tornou o pretexto
O exercício do poder democrático, escreve Sheldon Wolin, para os cortes de impostos, o desmantelamento do Estado
traz "a participação mais ampla possível por iguais" e está de bem-estar e o desacorrentamento do capital em relação a
"longe de um exercício de poder bruto de massa". Cf. Wolin, qualquer tipo de restrição, incluindo aquelas impostas pelo
"Democracy and the Political", p. 249. poder de barganha dos sindicatos. A contestação do controle
Práticas cada vez mais abertas de supressão de eleitores nas
eleições dos EUA ampliam as práticas neoliberais anteriores
de limitar a emancipação e conter o alcance da democracia 10 A s crises econômica, financeira e securitária lançaram com-
eleitoral. bustível nas chamas que lambiam as democracias constitu-
Quinn Slobodian, Globalists: The End of Empire and the Birth of cionais, augurando, é claro, substituí-las por novos regimes
Neoliberalism, p. 92. no século XXI.
73

político foi mais longe, no entanto, para desdemocratizar a animosidade generalizada em relação ao político, ele deu
cultura política e os sujeitos imersos nela. Nas eleições pre- ânimo a um movimento a favor do liberalismo autoritário em
sidenciais dos EUA de 2 0 0 0 , George W. Bush tornou-se um alguns domínios e do moralismo autoritário em outros. Este
ícone desse processo por ser o primeiro detentor de um MBA seria o relato rápido de como passamos do neoliberalismo
a assumir o cargo presidencial." Outro ícone surgiu duran- para o presente.
te a campanha de 2016 na pessoa de um incorporador imobi- Por outro lado, muitas coisas não se alinham com o argu-
liário que explorou sua falta de conhecimento e experiência mento de que a antipolítica neoliberal gerou a onda de auto-
políticos como um motivo para torná-lo presidente. A guerra ritarismo antidemocrático em todo o arco euro-atlântico.
declarada de Donald Trump ao "pântano de Washington" e Como, precisamente, a atração popular por homens fortes
sua promessa de trazer princípios de negócios e "a arte de políticos e o clamor por Estados de lei-e-ordem nasceram de
fechar negócios" para o Salão Oval da Casa Branca foram uma racionalidade que vê o poder político concentrado como
complementadas pela ambição de seu principal escudeiro, o perigo supremo para o mercado e a liberdade? O crescen-
Steve Bannon, de "desconstruir o Estado administrativo" e te ultranacionalismo não sinaliza uma ruptura radical com
pelas agendas privatizantes de seus nomeados para minis- o neoliberalismo? Não é por isso que tantos comentaristas
térios, muitos dos quais também tinham pouca ou nenhu- viram no Brexit, na eleição de Trump e na ascensão da direi-
ma experiência política antes de assumirem as lideranças ta nacionalista na Europa a sentença de morte do neolibera-
dos órgãos governamentais.'^ A demonização neoliberal do lismo?'^ E como encaixar a intensa polarização política de
"estatismo" também preparou o terreno para alianças de nossos tempos com uma racionalidade de governo antipolí-
outro modo improváveis entre libertários econômicos, plu- tica e antidemocrática?
tocratas, anarquistas armados de direita, vigilantes da Ku Para avaliar como a razão política neoliberal contribuiu
Klux Klan, opositores entusiastas do aborto e praticantes para a ascensão da direita antidemocrática, temos que exa-
do ensino domiciliar." Em resumo, conforme o princípio de minar mais de perto seu ataque ã forma democrática do polí-
"tirar o governo de nossas costas" se metamorfoseava numa tico. Quais são os conteúdos precisos da desconfiança do
neoliberalismo em relação à política e de sua hostilidade ã
11 John Solomon, "Bush, Harvard Business School, and the democracia? Sua objeção central dirige-se ao poder político
Makings of a President". em si, ao estatismo expansivo, ã soberania, à democracia -
12 Philip Rucker; Robert Costa, "Bannon Vows a Daily Fight for ou todas as alternativas?" O neoliberalismo está principal-
'Deconstruction of the Administrative State'". Paul Waldman,
"Donald Trump Has Assembled the Worst Cabinet in A m e -
14 Cf. Cornel West, "Goodbye, American Neoliberalism. A N e w
rican History". Jenny Hopkinson, "Trump Hires Campaign
Era is Here". Michael Peters, "The End ofNeoliberal Globa-
Workers Instead of Farm Experts at USDA. Eugene Robinson,
lization and the Rise of Authoritarian Populism", pp. 323-25-
'Surprise: Trump's Newest Cabinet Nominee Has No Relevant
Martin Jacques, "The Death of Neoliberalism and the Crisis
Experience".
in Western Politics".
13 Cf. David Neiwert, Alt-America: The Rise of the Radical Right in 15 T h o m a s Bifhrinher. The Political Theory of Neoliberalism. Esse
the Age of Tramp. Sobre o "estatismo" como o principal amigo livro é de enorme valia para responder a essa questão. Neste
dos progressistas e inimigo da liberdade, cf Mark Levin,
capítulo eu o uso extensivamente, bem como a tese de Wil-
Liberty and Tyranny: A Conservative Manifesto.
liam Callison, Political Deficits.
34 T 39

mente preocupado em conter os poderes dos Estados-nação


que tinha de ser atado com firmeza e conformado aos propó-
a fim de incrementar os poderes das federações e institui-
sitos neoliberais. Os ordoliberais eram mais próximos a Carl
ções supranacionais que organizam o capitalismo global,
Schmitt, procurando construir o Estado forte necessário
como argumenta Quinn Slobodian?!" Ou sua oposição ao
para a ordem e a estabilidade econômicas, ao mesmo tempo
político é mais profunda, enraizada em preocupações com
que lhe conferiam uma forma tecnocrática e isolavam-no das
a elevação de outros domínios e poderes - tradição, merca-
demandas democráticas. Vamos explorar algumas dessas
do, moralidade, mas talvez também a ciência e a técnica?"
especificidades em breve. O que torna possível reuni-los é
Como ele põe em ato sua oposição ao poder político, em espe-
que cada um e todos consideravam as liberdades individuais
cial ao poder político democrático? Que cegueiras e efeitos
e o mercado, juntamente com a morahdade tradicional, como
não intencionais podem ser introduzidos por sua aversão ao
elementos ameaçados pelos interesses e poderes coercitivos,
poder e à dinâmica políticos em seu próprio projeto? Como
ingovernáveis e arbitrários abrigados pelo político. Todos
ele acaba gerando forças plutocráticas e fascistóides que
eles também se opuseram à plataforma que o político forne-
visava excluir, além do afeto da massa politizada que preten-
ce para os interesses que distorcem o mercado, sejam os do
dia pacificar? O que ele politiza ou despolitiza, intencional
grande capital, das maiorias democráticas, dos pobres ou
ou inadvertidamente, de tal forma que a raiva populista ran-
corosa se torna uma de suas crias? Que outras forças inter- de quem promove noções do bem comum. Eles se opuseram
seccionam a racionalidade neoliberal - ordens de gênero e às sociedades politicamente projetadas, logo, à maioria das
raça no Ocidente, o imaginário imperial-colonial constituti- políticas e bens públicos.'® Assim, todos eles procuravam^
vo do Ocidente, niilismo, desarraigamento, dessublimação - conter radicalmente os poderes políticos por meio da sub-
gerando formações ativamente temidas pelos intelectuais missão da política às coordenadas e métricas econômicas,
neoliberais fundadores e que eles visavam evitar com sua por um lado, de sua sujeição às exigências do mercado, por
nova reformatação do liberalismo e do capitalismo? outro. A economiciMcão do tecirln social e a subordinação de
^eus poderes à economia Juntas, aoaziguariam seus perigos^
Acima de tudo, os neoliberais se uniram na oposição à
democracia robusta - movimentos sociais, participação
A ANTIPOLÍTICA NEOLIBERAL
política direta ou demandas democráticas ao Estado - que
identificaram com o totalitarismo, o fascismo ou o governo
Os intelectuais neoliberais diferiam em seu antagonismo
da plebe. Para esse fim, Hayek contestava a soberania popu-
em relação ao político, especialmente em seus esforços para
lar como incoerente e a própria noção de soberania política
redefinir a relação entre economia e Estado e para limitar
como imprópria para as sociedades livres. James Bucha-
a democracia. Milton Friedman e Friedrich Hayek colocam
nan, da Public Choice School do neoliberalismo da Virgínia,
o político como um domínio perigosamente autoexpansivo

18 Hayek e F r i e d m a n desconfiam de todos os conceitos de


16 Slobodian, Globalists.
conhecimento e de razão que usurpem a ordem espontânea,
17 Para a abordagem da racionalidade neoliberal à ciência, cf.
enquanto os ordoliberais, que depositam mais fé na ciência
Biebricher, The Political Theory of Neoliberalism e Callison, Poli-
tical Deficits. social, se opõem ao caráter não científico desses esforços e a
dificuldade de hgá-los à perícia e aos mecanismos técnicos.
100 40

deplorava os bens públicos e especialmente o ensino público Estado redistributivo, administrativo e excessivo, e um ati-
superior, por gerarem "democracia demais". Buchanan visa- vismo democrático robusto tanto desafia a autoridade moral
va fortalecer os "direitos dos estados" (sulistas) contra os quanto perturba a ordem desde baixo. A versão excepcional-
mandatos federais de igualdade e combate à discriminação, mente rarefeita da democracia que o neoliberalismo tolera é
e propunha incluir na Constituição norte-americana a obri- assim apartada da liberdade política, da igualdade política,
gatoriedade de "orçamentos equilibrados" para repelir per- do compartilhamento de poder entre cidadãos, da legislação
manentemente as demandas democráticas por um Estado voltada para o bem comum, das culturas de participação e
social.^® Ele argumentou francamente em prol da restrição de qualquer noção de interesse público que vá além da pro-
dos "excessos democráticos", entendeu a importância de teção às liberdades e à segurança individuais."
manipular os distritos eleitorais [gerrymandering]^" e supri- É claro, nenhum intelectual neoliberal buscava um Esta-
mir eleitores, e amalgamou seu estilo de livre iniciativa com do fraco. Ao contrário, o objetivo duplo era limitar o escopo e
o projeto de supremacismo branco. Os ordoliberais procu- focar acentuadamente o funcionamento do Estado.^^ Enqu^n-
raram essencialmente substituir a democracia pela tecno- to o Estado liberal clássico recorria ao moHeln econômico
cracia e por um Estado forte e autônomo. Várias escolas do do laissez-^e e ao modelo político do "vigia notuj;no";_os
neoliberalismo propuseram uma "ditadura liberal" como um neoliberais^rocuravam construir, consolidar e amarrar um
regime de transição legítimo da "democracia totalitária" (a Estado unificado e forte, um Estado no qual a soberania polí-
social-democracia) para a liberdade. No entanto, o ataque tica significa desunrr;'a""démocracia, desorientar e dividir^e a
do neoliberalismo á democracia é frequentemente menos burocracia, exaurir. O Estado neoliberal tinha de ser enxuto,
audacioso. Ele envolve alterar os significados da democra- não soberano e milimetricamente focado, isolado de interes-
cia, reduzindo-a a um "método" de estabelecer regras em ses particulares, de pactos pluralistas e de demandas das
vez de uma forma de governo, restringindo seu escopo ou massas.^' As incompatibilidades da democracia representa-
apartando-a do governar.
tiva com tal Estado são muitas. A troca de favores políticos.
O sufocamento da democracia foi fundamental, e não inci-
dental, para o programa neoliberal mais amplo. As energias
21 Enfraquecer a democracia foi, portanto, uma parte vital do
democráticas, acreditavam os neoliberais, entopem ine-
que Foucault formulou como uma reprogramação radical do
rentemente o político, o que ameaça a liberdade, a ordem liberalismo pelo neoliberalismo, mesmo se o próprio Foucault
espontânea e o desenvolvimento - e, no extremo, produzem deu pouca atenção à democracia. Cf. Michel Foucault, The
o despotismo ou o totalitarismo de Estado. Mesmo o modo Birth ofBiopolitics, pp. 1 1 7 - 1 2 1 .
corriqueiro de governo por maiorias democráticas gera um 22 O foco do Estado, afirmavam os ordoliberais, deve ser inte-
gralmente "a tarefa de garantir que a economia funcione de
modo ordenado". Cf Christian Joerges, "Europe A f t e r Ordo-
19 Nancy MacLean, Democracy in Chains: The Deep History of the liberalism", p. 198. Cf tb. Josef Hien; Christian Joerges (ed.),
Radical Right's Stealth Plan for America. New York: Viking, 2017, Ordoliberalism, Law, and the Rule of Economics.
pp. 43-44, 67-70. 23 Essa forma de Estado, como argumentou Thomas Biebricher,
2 Gerrymandering é uma prática de manipulação da abrangên- requeria uma nova forma de teoria e prática política na qual
cia geográfica de um distrito eleitoral para dar vantagem polí- os Estados fossem legitimados, mas não saturados pela demo-
tica a um partido ou grupo, [N.T.] cracia (agora limitada ao sufrágio universal e ã igualdade
34 T 41

O favorecimento econômico e outras condutas egoistas de


modo que as políticas pelas quais a racionalidade neolibe-
interesses poderosos são óbvias. O problema mais sério, no
raí guia a conduta do sujeito tornem-se incontestáveis. Ela
entanto, é representado pelos trabalhadores e pobres, dada
pode ser marginalizada por meio da supressão de eleitores,
sua inevitável exigência de que a questão social seja tratada
manipulação de distritos eleitorais, compra de eleições e de
^por meio de um Estado social.^^ Não obstante suas diferen-
legislação, bem como outras formas de isolar o poder legis-
ças, os neoliberais convergiram no reconhecimento de que
lativo da vontade ou da prestação de contas democráticas.
a democracia representativa baseada no sufrágio universal
O fato de que cada um destes mecanismos tenha sido uma
em grandes Estados-nação capitalistas seria inevitavelmen-
parte importante da paisagem política americana durante
te controlada pela classe numericamente maior, tornando a
as décadas neoliberais ajuda a explicar por que e como a
social-democracia, com sua trajetória tendencialmente tota-
razão neoliberaí ganhou adesão com tanta facilidade sem um
" litária, inevitável. A menos que sejam enganados, condicio-
assalto explícito à democracia representativa.
nados ou efetivamente marginalizados, os trabalhadores e os
Tanto no p e n s a n ^ t o quanto na prática neoliberaí, a crí-
pobres vão sempre combater os mercados como injustos em
tica da democracia e do político é disfarçada de uma defesa
sua distribuição de oportunidades e recompensas. Essa clas-
a favor da liberdade individual, especialmente por Fried-
se pode ser enganada, entretanto, com apelos a outras linhas
man e H a y e l T Ã restrição do alcance do poder político em
de privilégio e poder, como a branquitude ou a masculinida-
nomeia lioerdade justifica a revogação do Estado regulador
de, especialmente porque é a liberdade, e não a igualdade,
(ao mesmo tempo em que torna o próprio Estado sujeito à
que reproduz e assegura esses poderes. Ela pode ser con-
regulação) e a limitação da voz política do povo. Friedman
dicionada a aceitar o mantra "TINA" ["there is no alternative"
oferece esse programa dentro do quadro libertariano mais
[não há alternativa]) como um principiojc^realitiade, de
familiar, Hayek está mais sintonizado com a complexidade
da tarefa de controlar o poder político, e os ordoliberais são
mais diretos em dissociar a democracia de um Estado limi-
perante a lei] e em que a ação estatal fosse implacavelmente
atada ao bem-estar da ordem de mercado. tado por um dispositivo que eles chamam de "constituição
24 Como Callison deixa claro, os ordoliberais abordaram a ques- econômica". Todos eles se contentam com o voto e as liber-
tão social de forma um pouco diferente - procurando coop- dades pessoais como partes que constituem a extensão da
tar, em vez de dissolver. Com a economia social de mercado democracia e, seja como violação ou norma, todos endossam
da "Terceira Via", eles procuraram resolvê-lo melhor do que a o liberalismo autoritário - o poder político não democrático
esquerda poderia com o socialismo ou com a social-democra- que subjaz às liberdades privadas. Vamos agora considerar
cia. Cf. Politicai Deficits, o capitulo sobre os ordoliberais. Cf tb.
o pensamento de cada um mais de perto.
The Walter Lippmann Colloquium: The Birth of Neoliberalism, no
qual a questão social aparece com destaque. E como Callison
e Slobodian argumentam em sua discussão sobre a política
alemã contemporânea, Aufstehen está colocando a questão MILTON F R I E D M A N
social e o "Estado social forte" no centro de sua plataforma
de um modo que extrai de tradições ordoliberais e socialistas, Dentre os intelectuais neoliberais fundadores, somente Mil-
novamente uma estratégia cooptadora. Cf William Callison; ton Friedman promove a causa da economia neoliberal por
Quinn Slobodian, "An Ordosocialism Rises in Germany".
meio da "democracia", vagamente definida como "liberdade
?Î0 81

política" ou "liberdade individual"."® Capitalism and Freedom da coerção (que os mercados evitam por escolha própria).
é um livro dedicado a estabelecer a incoerência do socialis- Além disso, o poder político requer ou impõe a conformida-
mo democrático e da social-democracia: "Existe uma cone- de, enquanto o mercado "permite uma ampla diversidade": ao
xão íntima entre economia e política [...]; apenas certas com- invés de se submeter à maioria, "cada homem pode votar, por
binações de arranjos políticos e econômicos são possíveis, assim dizer, pela cor da gravata que deseja e pode obtê-la".^°
e [...] uma sociedade que é socialista não pode ser também' Reconhecendo que alguma medida do poder político é
democrática, no sentido de garantir a liberdade individual"."« necessária para manter as sociedades e estabelecer tanto as
O argumento de Friedman sobre a codependência entre "regras do jogo" quanto a arbitragem para os mercados (leis
liberdade econômica e liberdade política se baseia tanto de propriedade e direito contratual, política monetária etc.),
na sinergia quanto na similaridade. Historicamente, insis- Fj2Pdman_cr^ todos os mandatos nohtico&^ãCLaimples
te ele, a verdadeira liberdade política nasceu apenas com o s u b t ^ õ e s da liberdade. "A ameaça fundamental à liberda-
capitalismo, e os dois tipos de liberdade são quase sempre deTÕ^oder de coagir, seja nas mãos de um monarca, de
' articulados entre si."' Além disso, se uma sociedade apre- um ditador, de uma oligarquia ou de uma maioria momentâ-
senta apenas uma das duas, uma irá promover ou garantir a nea"." Mesmo a legislação democrática compromete a liber-
outra com o tempo."" Logicamente, sua afirmação assenta-se
dade ao impor a vontade da maioria às minorias. Os merca-
no fato de que os mercados livres (o "capitalismo competiti-
dos, por outro lado, sempre permitem que as preferências
vo") exigem um governo limitado e a separação nítida entre
individuais prevaleçam, o equivalente a conseguir aquilo
poder econômico e político, que "desta forma permite que
por que se vota. Ao mesmo tempo, os mercados "retiram a
uma forma" de poder "compense a outra"."« O c a p i t a l i s r n o .
organização da atividade econômica do controle da autori-
n g s s a ^ l i s e ^ ^ p r o m o v e i n j ^ r t i d a m g n t e a I Í ^ . S H P an'
dade política", permitindo que "a força econômica fiscalize o
l i m i t a r p r p c t r i n g i r O govemo.
poder político em vez de reforçá-lo".^'"
No entanto, há muito mais em jogo aqui do que o tama-
Friedman chega mais perto do libertarianismo puro do
nho e o alcance do governo. Para Friedman, qualquer tipo
que qualquer outro dos neoliberais originais. Dito isso, ele
de exercício do poder político, incluindo o da maioria popu-
articula claramente o ideal compartilhado com os outros de
lar, ameaça a liberdade tanto na vida econômica quanto na
separar o poder econômico e o político, mesmo quando afir-
política. Por esta razão, ele se opõe a quase toda legislação
ma a importância do Estado em viabilizar as condições para
promulgada democraticamente. Por quê? Para Friedman, o
os mercados. Ele também se junta aos outros ao identificar
duplo perigo representado pelo exercício do poder político diz
a vida política exclusivamente com coerção e ao reduzir o
respeito à sua concentração inerente (os mercados, por con-
traste, naturalmente dispersam o poder) e à sua dependência
30 Ibid., p. 1 5 . 1 0 mercado] é, em termos políticos, um sistema de
representação proporcional. Cada homem pode votar como se
25 Milton Friedman, Capitalism and Freedom, p. 8.
fosse pela cor da gravata que deseja e a obtém; ele não precisa
26 Ibid., p. 8. ver a cor desejada pela maioria e então, se estiver dentre a
27 pp. 8-11. minoria, submeter-se". Loc. cit. [N.T.]
28 p. 1 1 .
31 Loc. cit.
29 p. g.
32 Loc. cit.
34 T 43

significado da Uberdade à ausência de coerção. Tal posição 0 contrato social contém todos os principios responsáveis por
desacredita qualquer forma de democracia robusta, e não iludir os modernos sobre a natureza da liberdade e do gover-
apenas a social-democracia. Ademais, Friedman se une a no - ele arranca a democracia do liberalismo, incorpora-a na
seus compatriotas na legitimação do autoritarismo politico soberania popular e glorifica o Estado. Com o dispositivo da
para forjar mercados liberalizados, como os regimes insta- vontade geral, Rousseau também libera o poder legislativo,
lados no Chile pós-Salvador Allende e no Iraque pós-Saddam independentemente de quão perigosas ou discordantes da
Hussein.'^" Como veremos, ao tachar a "democracia" com uma justiça possam ser as ações legislativas.
imagem de coerção da maioria, por um lado, e ao distinguir Hayek privilegia o que chama de "tradição britânica
a importância do poder do Estado para estabihzar os mer- empirica e assistemática" do pensamento politico moderno
cados da questão da liberdade pessoal, por outro, Friedman, (incluindo Burke, assim como Locke e o Iluminismo esco-
assim como Hayek, elimina completamente o valor do poder cês) e deplora a tradição continental. Ele descreve esta
politico democratizado. como baseada em "uma interpretação das tradições e ins-
tituições que haviam crescido espontaneamente" e aquela
como obscenamente especulativa, racionalista, romântica
FRIEDRICH H A Y E K e utópica.'^ Em seu tempo, diz ele, essa oposição aparece |
como aquela entre "democracia liberal" e "democracia social
A limitação efetiva do poder é o problema mais importante da ou totalitária".'® Hayek então cita com aprovação o livro de
ordem social. O governo é indispensável para a formação de tal Jacob Talmon Origins of Totalitarian Democracy: uma tradi
ordem apenas para proteger todos contra a coerção e a violên- ção "encontra a essência da liberdade na espontaneidade
cia dos outros. Mas, assim que, para conseguir isso, o governo e na ausência de coerção, a outra acredita que a liberdade
reivindica com sucesso o monopólio da coerção e da violência, seja realizada apenas na busca e no alcance de um objetivo
torna-se também a principal ameaça à liberdade individual. coletivo absoluto [...]. Uma representa o crescimento orgâ-
A limitação desse poder era o grande objetivo dos fundadores do nico, lento e parcialmente consciente, a outra, deliberação
governo constitucional nos séculos xvii e xviii. Mas o esforço doutrinária; uma representa o procedimento de tentativa e
para conter os poderes do governo foi quase inadvertidamente erro, a outra, um padrão imposto unicamente válido".'® Para
abandonado quando se acreditou erroneamente que o controle Hayek, tudo que há de errado com a democracia republicana
democrático do exercício do poder forneceria uma salvaguarda e com a social-democracia, para não mencionar o socialis-
suficiente contra seu crescimento excessivo. mo e o comunismo, encontra-se condensado na acusação de
Friedrich Hayek, Law, Legislation, and Liberty, vol. 3 Talmon. Os pecados d ^ a H i ç ã o c.ontingntal inçluem_^ou-
trinqrismn. n racionalismo P imnnsinão deliberada d^j^jü^
A critica de Hayek a Jean-Jacques Rousseau á ainda mais con- Dlano e propósito c o l e t o , que luntos s u f o c a i i L O organicis-
tundente do que sua critica a Keynes e a Marx. Para Hayek, mo, O desenvÕÍvimento"^pontâneo, a tradição e a l i l b g r d j d e

Michael MacDonald; Barrel Paul, "KiUing the Goose That Lays 34 F. Hayek, Law, Legislation, and Liberty, vol. 3, pp. 1 0 8 , 1 1 0 .
the Golden Egg: The Politics of Milton Friedman's Economics", 35 Ibid., p. 109.
pp. 565-588. 36 p. 1 1 1 .
34 T 44

individual. O pecado capital da tradição continental, no Tal é a avalanche que resulta da soberania popular: ela
entanto, é sua adoração da soberania popular, um conceito, desata a legislatura dos limites e da justiça, expande inces-
como o de sociedade, que Hayek chama de perigosa "noção' santemente o poder do Estado e desencadeia interesses e
sem sentido".
práticas corruptores no governo. Para evitar esse desastre,
A soberania popular ameaça a liberdade individual, licen- Hayek colocaria limites radicais ao político, acima de tudo
cia o governo ilimitado e confere supremacia justamente ao despojando a democracia liberal da soberania in toto. O erro
domínio que precisa ser controlado, o político." Ela permite da soberania popular, escreve ele, "não reside na crença de
que o poder legislativo fique completamente descontrolado,
que qualquer poder que exista deve estar nas mãos do povo,
excedendo seu papel de formular regras universais de jus-
e que a vontade de seus desejos terá que ser expressa por
tiça, e assim expande inevitavelmente os poderes do Esta-
decisões majoritárias, mas na crença de que essa fonte últi-
do administrativo.'« Sob o manto da soberania popular, as
ma de poder tem que ser ilimitada, ou seja, na própria ideia
legislaturas adotam a promoção do "interesse público" como
de soberania.^' A soberania, por natureza ilimitada, é cate-
seu mandato. Essa dedicação ao interesse público (mais uma
goricamente incompatível com um governo limitado e com
noção sem sentido, segundo Hayek] incha o Estado e faz com
o "destronamento da política", ambos necessários para uma
que subornos e negociatas constituam uma parte cotidiana
ordem econômica e moral florescente. Além disso, a própria
da cultura legislativa. Assim, o suposto ícone da democracia,
noção de soberania repousa sobre uma "falsa interpretação
um órgão legislativo eleito, inverte-se em seu oposto, gover-
construtivista da formação das instituições humanas, que
nando por interesses particulares e corrupção.'® Finalmente,
tenta remetê-las a um projetista original ou a algum o u t r ^
dado que a prática legislativa, que excede o fazer da regra'
ato deliberado da vontade Assim, Hayek concorda com
universal, expande o poder estatal e restringe a liberdade, a
Schmitt que a soberania seja um conceito teológico secula-
própria justiça se torna confusa. Nós equivocadamente cha-
rizado, mas, ao contrário de Schmitt, considera a soberani^
mamos de "justo", diz Hayek, o que quer que os legisladores
falsa e perigosa porque teológica. Para Hayek, as instituições
façam, ou o que quer que pensemos que devam fazer, em
políticas não emergem de atos da vontade, mas da "existên-
vez de reservar o termo para aquilo que os gregos antigos
chamavam de isonomía, "lei igual para todos".^° cia de certas opiniões sobre o que é certo e errado entre
as pessoas"." Ele acrescenta: "já que todo poder repousa
sobre opiniões preexistentes e durará somente enquanto
37 Hayek acreditava que a ausência de limites do governo pode essas opiniões prevalecerem, não há uma fonte pessoal real
ser compensada em algum grau pela separação vigilante de desse poder e nenhuma vontade deliberada que o tenha cria-
poderes, na qual as funções legislativa, judiciária e executi-
do. A concepção de soberania repousa sobre uma construção
va são assiduamente confinadas às suas tarefas e mantidas
separadas umas das outras.
lógica enganadora".^^

38 Ibid., pp. 3, 40. Novamente, o papel da legislatura em uma


democracia é unicamente formular regras de conduta igual-
mente aplicáveis a todos. Não pode fazer "política" nem capa-
41 p- 33- Grifo meu.
citar o Estado a fazer coisas.
42 Ibid., p. 33.
39 pp. 32-33.
43 Loc. cit.
40 p. 40.
44 Loc. cit.
87

Em outras palavras, para Hayek, a capacidade e o poder Para deixar claro, Hayek não está dizendo que o absolu-
criativos sempre emergem de baixo e o fazem de forma orgâ- tismo ou a soberania são inerentes à democracia. Ao con-
I nica, espontânea e autêntica. A contenção e repressão d e s L trário, seu argumento é que, historicamente, no Ocidente,
capacidade e desse poder - contenção e repressão estas que a democracia herdou acriticamente esses princípios de seu
ele considera a essência do político - vêm de cima e são arti- antecessor, instigada pelo conto de fadas de que a soberania
ficiais, mas são perigosamente adoradas como originárias popular significa "as pessoas estão agindo juntas [...] e que
(Hayek trava uma guerra com Hobbes aqui). A soberania é isso é moralmente preferível às ações separadas dos indiví-
teológica porque postula a criação de cima para baixo, seja duos"." Hayek desmistifica ambas as partes desse conto de
por Deus, pelo rei ou pelo Estado. Hayek, portanto, respon- fadas com a alegação de que a ficção da soberania popular
sabiliza o conceito pela ilusão de que as sociedades devam serve apenas para ungir o absolutismo com uma legitimi-
ser moldadas pelo político, pelo estado sempre em expansão dade democrática. Em outras palavras, a democracia ligada"
resultante dessa ilusão, e, acima de tudo, pelo desatinado à soberania popular "ainda não cortou a cabeça do rei" na
ideal democrático do poder do povo. A soberania identificada teoria ou prática política e, consequentemente, falha em rea-
com o povo e depositada no Estado democrático terá como lizar a liberdade que promete.®"
objetivo tornar a si mesma verdadeira.^® A tentativa de despojar a democracia da soberania popu-
Hayek constrói seu argumento sobre o lugar fatal da sobe- lar poderia sugerir que Hayek seguiria Friedman ao reduzir
rania nos Estados democráticos modernos por meio de uma inequivocamente a democracia ao liberalismo. No entan-
revisão crítica da história dos Whigs. A noção de soberania to, em The Constitution of Liberty, ele segue outro caminho.
política, escreve ele, não existia no Ocidente "até a chegada do Hayek distingue nitidamente o liberalismo da democracia,
absolutismo no século x v i V Quando derrubaram os monar- afirmando que o único princípio compartilhado por eles é^
cas, os democratas adotaram esse absolutismo como o gover- o da igualdade perante a lei." Além disso, "o liberalismo
no que representava ostensivamente o povo. Dessa forma, o é uma doutrina sobre o que a lei deveria ser, a democra-
consentimento popular, que deveria ser uma forma de con- cia uma doutrina sobre a maneira de determinar o que será
trole do poder político, "veio a ser considerado como a única a lei"." A democracia é um "método de governo - a saber,
fonte de poder"." O resultado foi um poder político ilimitado governo da maioria", enquanto o liberalismo "diz respeito
"pela primeira vez investido com a aura de legitimidade", uma ao escopo e propósito do governo"." Ele cita Ortega y Gasset
legitimidade perversamente propiciada pela democracia.^»
49 Loc. cit.
50 É interessante que esse ataque à soberania seja compartilha-
45 Claro, há uma dimensão teológica na própria ontologia de do por muitos da esquerda, incluindo a esquerda anarquista.
poder de Hayek, que consiste na emanação espontânea de Cf por exemplo Giorgio Agamben, Homo Sacer. Michael Hardt;
visões e práticas desenvolvidas ao longo do tempo. Como a crí- Antonio Negri, Multitude. Sobre a questão da soberania no
tica de Marx a Hegel, e em muitos aspectos espelhando-a, a sua neoliberalismo, cf Thomas Biebricher. "Sovereignty. Norms,
é uma crítica teológica de uma cosmologia política teológica. and Exception in Neoliberalism", pp. 77-107.
46 Ibid., p. 34. 51 Friedrich Hayek. "Majority Rule", p.i66.
47 P- 35- 52 Ibid., p. 167.
48 Loc. cit. 53 pp. 1 6 7 , 1 6 8 .
100 46

em uma nota de rodapé: "A democracia responde a essa Além de autorizar o liberalismo autoritário, esses dois \
pergunta 'quem deve exercer poder público?'. O liberalis- conjuntos de opostos - democracia uersus autoritarismo e
mo pergunta, 'independentemente de quem exerce o poder liberalismo versus totalitarismo - são o que gera a noção de,
público, quais devem ser seus limites?'"." outro modo paradoxal dos "excessos da democracia". Todos
- Mais do que simplesmente distingui-los, no entanto,
os neoliberais usaram essa expressão para condenar os
Hayek identifica fortes tensões entre o liberalismo e a demo-
movimentos sociais dos anos i960 e o alargado "escopo da
cracia. O liberalismo, diz ele, está preocupado com "limitar
ação estatal guiado por decisão democrática".®" Hayek decla-
,|os poderes coercitivos de todo o governo", enquanto a demo-
ra repetidamente que a d e m o c r a c i a i ^ m método para se
c r a c i a limita o governo apenas de acordo com a opinião da
toniardeclsoes, naoj2m]fem em s i " ^ um-princípio com
ímaioria.®® O liberalismo é comprometido com uma forma
a p i S ^ g e r a l T ^ n q u ã n t ^ democrata dogmático conside-
-particular de governo, enquanto a democracia o é com o
ra d ^ " è j á v ^ u e o maior número possível de questões seja
fpovo. O liberalismo "aceita o governo da maioria como um
decidido por maioria de votos, o liberal acredita que existem
método de decisão, mas não como uma autoridade sobre o
limites definitivos para o leque de questões que devem ser
{que a decisão deveria ser". Para o democrata, "o fato de que
assim decididas".®® Qual é o "conceito crucial do democrata^
ja maioria queira algo é base suficiente para considerá-lo
dogmático? Soberania popular".®" No entanto, foi o infame"
/bom".®® Não é assim para o liberal.
Relatório da Comissão Trilateral de 1975 que popularizou
Acima de tudo, argumenta Hayek, a democracia e o libe- a acusação de "excesso de democracia". A alegação do rela-
ralismo têm opostos radicalmente diferentes. O o p o s t ^ tório de que a democracia estava em crise por causa de seu
democracia é o autoritarismo, noder polític^cmcentrado. alcance e energias ilimitados estava em linha direta com a
masjião necessariamente ilimitado. 0_ODosto do liberai Hs- cartilha neoliberal, ligando as demandas crescentes sobre
rno^^talit^smoj^ntrole total de todnQ hq a^pect^T^ o Estado social com a diminuição do respeito pelas funções
vida. Isso faz com que o autoritarismo seja compatível com e autoridade autônomas do Estado e tratando ambas simul-j
uma sociedade liberal - com a liberdade, a moral tradicio- taneamente como sintomas e danos desse excesso." Seus
nal, uma esfera privada protegida. E o totalitarismo pode ser autores resumem esse ponto: "a vitalidade da democracia
engendrado e administrado por maiorias democráticas. Se nos Estados Unidos nos anos i960 produziu um aumento
tanto a democracia totalitária quanto o liberalismo autori- substancial na atividade governamental e uma diminuição
tário são possibilidades lógicas e até mesmo históricas, tor- substancial na autoridade governamental"."
na-se razoável para Hayek unir-se aos seus companheiros Se democracia em demasia significa Estad^_^cial em
neoliberais no aceite da legitimidade do autoritarismo na demasia, con^inado^com muitn nnnr-n rp^neitn nela auto-
transição para o liberalismo, justificando assim um Pinochet
ridade nolltica.'estejiltimo sejidojinn^rob incUado
ou Bremer e os golpes ou guerras que os empossaram.®'

58 p . 170.
54 p . 167.
59 Loc. cit.
55 Ibid., p. 166.
60 Ibid., p. 171-
56 p . 167.
61 Quinn Slobodian, Globalists, p. 92.
57 p . 166.
62 Cf. Report of the Trilateral Commission, p. 64.
DO 91

pela substituição das fnnnnP« familiares pelo Estado social mesmo rejeita a tradição contratualista liberal clássica da
e a suhQtitninão H j ^ l m ^ r a l pela justiça s S í T H c í T T ^ n legitimação. Para Hayek, nossa liberdade não é fundada nem
qiISÀQÍlieHvo de Havek nara nnr Ih^tes ao eoverno excede na lei nem na política, mas nos princípios de conduta e opi-
^aiClamenteor^E.ntn e a nroter^ãn .-^OQ - j;^. nião evoluídos, frequentemente desarticulados, que formam
de conduta que evoluíram organicamente, baseadas em prin- , um povo coeso, princípios que aceitamos e a que obedece
cípios compartilhados herdados, não devem apenas s e r t ó t mos "livremente". O poder político - concentrado, empunha-
deixadas intocadas, mas também tornadas supervenientes. do de cima - nega essa liberdade por meio da coerção e per-
Respeito à propriedade privada, normas de gênero e outras turba, suprime ou substitui esses princípios de comunidade
crenças tradicionais - esses são os verdadeiros fundamen- evoluídos e testados por artifício e racionalismo. A demo-
tos de uma sociedade livre, moral e ordenada. Eis aqui como
cracia agrava esses danos com o governo [ruíe] da maioria
I Hayek os converte em limites ao governo, especialmente à
e com interesses privados disfarçados de públicos. Assim, o
democracia:
p o l í t i c o ^ geral e a democraciajm particular e i ^ n t r a m
r seus limites nos princípios comumente aceitos que formam ^
É a aceitação de princípios comuns que torna uma coleção de e ^ ^ i E ã í c f i - f f i u n i d â a e s . >iA» ^ ^
pessoas uma comunidade. E essa aceitação comum é a con- A preocupação de Hayek com a ameaça representada pela
dição indispensável para uma sociedade livre. Um grupo de democracia às normas comunitárias organicamente evoluí-
homens normalmente se torna uma sociedade não ao dar- das, 8 não apenas à liberdade, revela a lógica subjacente ao
-se leis, mas ao obedecer às mesmas regras de conduta. Isso que a esquerda frequentemente hoje considera como incon-
significa que o poder da maioria é limitado por esses princípios sistência ou hipocrisia da direita, a saber, seu objetivo de
comumente aceitos e que não há poder legítimo além deles.^^ reforçar as liberdades individuais e simultaneamente expan-
dir o alcance dos valores tradicionais. No entanto, estes se
"Não há poder legítimo além deles" - com essa frase, encaixam de maneira deveras compatível na doutrina que
• Hayek conclama todos os "princípios comumente aceitos", e' Hayek oferece. Ao desdemocratizar o Estado e remover seu
não apenas aqueles que asseguram os mercados, para limi- empenho com a igualdade, não apenas os mercados, mas
n a r o poder político. K^ses nrincinios são aquilo que cortará a os princípios comumente aceitos de um povo, das normas
cabeça dorei. isto é, que eliminará tanto a sobernníãpSIítici raciais até as religiosas, podem ser protegidos legitimamen-
quanto a soberania do politico. te da interferência do Estado e podem governar legitima-
Deve estar claro neste ponto que, em seu destronamento mente a conduta. A tentativa de burlar mecanismos antis-
da política, Hayek vai muito além da crítica à social-demo- segregação em escolas por meio de estratégias de controle
cracia e à soberania popular ou da proteção ao mercado. Ele local ou por privatizações [vouchers, "escolha da escola"), a
rejeita radicalmente - na verdade inverte - a formulação de recusa a prestar serviços relacionados à contracepção, ao
Aristóteles de a vida política ser o que torna livres os seres aborto ou a casamentos de mesmo sexo por meio de coisas
humanos. Ele rejeita a fórmula de Rousseau sobre obter como a "Lei de Restauração da Liberdade Religiosa" [Reli-
liberdade moral e política por meio do contrato social e até gious Freedom Restoration Act], a manutenção da iconografia
cristã dentro ou ao redor de edifícios públicos - tudo isso
63 Friedrich Hayek, "Majority Rule", p. 1 7 1 . Grifo meu. é possibilitado pelo limite colocado ao político no ponto em
100 48

que ele toca normas comunitárias ou liberdades individuais OS O R D O L I B E R A I S


(ou, conforme o capítulo 4 argumentará, em que as normas
comunitárias são juridicamente codificadas e mantidas A formulação ordoliberal do político é complexa e interna-
como liberdades individuais).®^ Em sua história da Public mente diversa. Vamos nos concentrar apenas em sua preo-
Choice School [escola de escolha púbhca] do neoliberalismo, cupação em construir um Estado forte e tecnocrático, sua
Nancy MacLean retraça as estratégias do Instituto Cato' ansiedade em relação à democracia e sua defesa do libera-
para resistir ou revogar a legislação federal sobre igualdade lismo autoritário.®' Ao fazer esse exame, é mais importan-
racial no sul dos Estados Unidos.®® As estratégias recorre- te ter em mente que os ordos compartilham a desconfian-
ram aos direitos expandidos dos estados (normas comuni- ça de Friedman e Hayek em relação ao político, mas não
tárias), às liberdades da Primeira Emenda (liberdade indivi- sua rejeição da soberania estatal. Eles buscam desdemo-
dual) e à privatização de escolas, parques, piscinas e muito
cratizar o Estado e substituí-lo por outro, suportado pela
mais (liberdade de mercado). Essas estratégias exemplificam
expertise técnica, dirigido por autoridades competentes e
a resistência antidemocrática do neoliberalismo à igualda-
devotado aos princípios de uma economia competitiva e
de social e econômica. Elas também revelam até que ponto
liberalizada.®"
a democracia neoliberalizada, despojada da soberania e do
legislar pelo bem comum, desatrelada da busca pelo interes- A idéia de uma "constituição econômica" é a contribuição
se público ou pela justiça social, impedida de tocar as liber- singular do ordoliberalismo à teoria neoliberal da relação
dades individuais, os mercados e as normas comunitárias Estado-economia. Como veremos, esse não é um documento
evoluídas, tem pouco a fazer e pouco poder para fazê-lo.®® literal, mas uma maneira de orientar o Estado a apoiar a mol-
dura, os elementos essenciais e a dinâmica dos mercados,
especialmente a concorrência e o mecanismo dos preços.®®
O objetivo da constituição econômica é devotar o Estado ao
64 Dado seu organicismo inspirado em Burke, Hayek pode fazer
liberalismo econômico. A constituição econômica confessa
c a r e t a s p a r a a estratégia pela qual a imposição de normas
c o m u n i t á r i a s como liberdades individuais se concretizou,
que esse compromisso não é nem natural nem garantido,
segundo a qual a Primeira E m e n d a é um martelo para que- mas deve ser assegurado politicamente - os ordos entendem
brar as leis democráticas de inclusão, igualdade e antidiscri-
minação, e os valores se tornam assim direitos, em vez de individual e incentiva uma cidadania instruída e, portanto,
títulos. A i n d a assim, ele certamente aprovaria a invocação oficiais políticos talentosos. Cf "Majority Rule", pp. 172-74-
de liberdades de mercado e a tradição como a base de u m a 67 Há vários excelentes relatos recentes da complexa concei-
crítica d e s s a s leis. Ele t a m b é m favoreceria a retomada do tuação ordoliberal do político. E m The Political Theory ofNeo-
crescimento e da legitimação de reivindicações e estrutu- liberalism, T h o m a f i j ü e e n c f l e r oferece uma excelente e deta-
ras de autoridade na família e na sociedade civil e talvez até lhada descrição da nova conceituação ordoliberal da política.
mesmo nos papéis do Legislativo e dos tribunais na garantia Callison também trata desse tema em Political Deficits. Veja o
dos direitos dos indivíduos e da moralidade tradicional sobre capítulo 3.
reivindicações de justiça social e "justiça" econômica. 68 A l g u n s economistas que t r a b a l h a m p a r a a União Européia
65 N a n c y MacLean, Democracy in Chains. Cf. capítulos 4 a 6. identificam-se direta ou indiretamente como ordoliberais.
O tríplice d i s c u r s o de H a y e k sobe a d e m o c r a c i a oferece 69 T h o m a s Biebricher, The Political Theory of Neoliberalism,
u m a t r a n s i ç ã o pacífica de poder, s a l v a g u a r d a a liberdade
pp. 3 8 e 1 3 3 .
100 49

que o capitalismo não tem uma forma única. Assim, o Estado, Se os ordos são os únicos entre os neoliberais a argu-
atado por uma constituição econômica que assegura o libe- mentar que os Estados sociais são fracos, comprometidos e 1
ralismo econômico, é o oposto daquilo que os ordos chamam carecem de poder independente para a economia, eles com-
de "Estado econômico" (e daquilo que chamamos de "Estado partilham com os outros a convicção de que a d e m o c r ^ a ^
social"), que consideram ter o duplo vício de ser um Estado é a raiz do problema. Eucken deplora abertamente a "demo-
fraco e de enfraquecer o capitalismo. O J s ^ d o ordo ideal é cratização do mundo e o consequente desencadeamento dos
n a u t J n o m o . ^ r e l a c ã o à economia. m a ^ d e d S o a ela; e ^ poderes demoníacos dos povos".'^ A "destruição dos Esta-
centraste, o Estado econômico ou Espado social é integrado dos liberais", argumenta ele, foi "forçosamente provocada
4.economia. minando a autong^iãeTcãpãd^ade política e
[...] pelas massas", que exigiam "intervencionismo e Esta-
distorcendo os mercados.'" =-== — •
do econômico", o que levou "ao inverso do que elas haviam
Isso já deixa claro que os ordos estão tão preocupados buscado: o enfraquecimento do Estado e a desorganização
com o dano que a democracia causa aos Estados quanto aos
da economia".'®
mercados." O "Estado econômico" sofre de falta de indepen-
dência na formação da vontade e no desempenho da vontade; A solução ordoliberal para esse p r o b l e i r m e n v o h ^ ^
submete-se a poderosos grupos de interesse (incluindo os o Estado tanto da d e m o c r ^ a q ^ n t o da economia. Isso
trabalhadores e os pobres), por um lado, e á golpeado por é realizado pela transtormáçâo aa constituição política
vicissitudes econômicas, por outro. "Toda depressão econô- mais em um ethos animador do que um documento sobe-
mica grave abala o próprio Estado", escreve Walter Eucken, rano, e pela complementação dessa constituição política
"demonstrando o agrilhoamento do Estado à economia"." com uma econômica. A constituição política, escreve Franz
Esse Estado não pode "tomar suas próprias decisões" ou Böhm, "estabelece o telos duradouro da nação, de modo
"realizar interesses puramente estatais". Ele também "res- que as bases organizacionais são consideradas não tanto
tringe a iniciativa do empreendedor", as forças de desenvol- por sua utilidade técnica, mas por sua conformidade com
vimento e aleija o "regulador da economia, o sistema de pre- o espírito e o gênio da nação".'" Longe de estabelecer prin-
ços". Danos à economia, por sua vez. esgotam as capacidades cípios legais, a c o n s t i t i ú £ â a £ 2 l í f e £ o á Í f i £ a o espírito de
do Estado atado a ela." "um povo cuja existência vem de uinjongo período de tempo

Essa codificação do "panorama moral particular do povo, ou


melhor, do espírito do povo", que Böhm às vezes chama de "o
poder do povo", não é precisamente uma formulação de direi-
70 Walter Eucken, "Structural Transformations of the State and tos e poderes individuais ou coletivos. Há, então, já um afas-
the Crisis of Capitalism", p. 59.
tamento abrupto em relação à democracia na formulação
71 "A transformação do Estado liberal em um Estado econômico",
afirma Eucken, "teve grande significado para a vida do Estado
e da economia". Cf. Walter Eucken, "Structural Transforma-
74 p. 69.
tions of the State and the Crisis of Capitalism", p. 59. Grifo
no original. 75 Loc. cit.
76 Franz Böhm, "Economic Ordering as a Problem of Economic
72 Ibid., p. 59.
Policy and a Problem of the Economic Constitution", pp. 1 1 8 .
73 Ibid., pp. 60 e 70.
77 Ibid., p. 1 1 8 .
96 97

burkeana que Böhm apresenta: a constituição poh'tica Em sua insistência na expertise técnica como orientação
obriga o Estado a proteger a continuidade do espírito, da para a ação estatal desinteressada em nome dos mercados,
história e da experiência de uma nação (decretar esse com- os ordos não compartilham as suspeitas de Hayek em rela-
promisso é exatamente o que os partidos nacionahstas bran- ção á ciência nesse domínio.®' Pelo contrário, a complexi-
cos europeus contemporâneos julgam estar demandando do dade da direção do capitalismo requer um conhecimento
Estado, mesmo que sua variação em torno do tema não seja especializado e perícia, comparado pelos ordos com o conhe- j
o que Böhm tinha em mente). cimento necessário para manter qualquer máquina comple-
O complemento à constituição política fornecido pela xa.®" Em contraste com os ideólogos que administram uma
constituição econômica, que Böhm chama de "prático-técni- economia planejada, argumenta Eucken, os tecnocratas que
ca", é necessário em parte porque "a boa vontade e a posição administram uma economia capitalista serão imbuídos de
moral social da comunidade econômica não podem dominar teoria econômica e de suas aplicações.®' No entanto, esses
o desafio econômico nacional por conta própria'?® As eco- especialistas (apropriadamente) não terão autoridade políti-
nomias capitalistas não são autossustentáveis nem autor- ca nem capacidade para disseminar seu conhecimento como
reguladas, e os próprios capitalistas não podem fornecer a poder. Daí a importância de embutir no Estado ordoliberal
direção que a economia requer. A constituição econômica o que Böhm chama de "uma expressão clara e inatacável da
também é necessária porque a comunidade político-moral vontade política". Ele escreve:
enfrenta "uma escolha específica entre uma variedade de
ordens econômicas possíveis"." Tal escolha, acrescenta
^ A s ú n i c a s ordens à a h u r a dessa tarefa são aquelas geradas por
Böhm, deve ser prática, funcional e isolada das demandas
i uma vontade política consciente e inteligente e por uma decisão
do momento. Sua aplicação e gestão, por sua vez, exigem
1 de liderança com autoridade fundada em conhecimento especia-
uma planta técnica para uma ordem técnica gerida por
I lizado: não h á e s p a ç o p a r a u m c r e s c i m e n t o silencioso, p a r a
especialistas técnicos.®" O compromisso consagrado cons-
u m a modelação ordenada das ações no seio da própria econo-
titucionalmente a uma economia de mercado deve vincular
mia, ou de baixo para cima. Tais torres de Babel sociais [...] só
os atores estatais de forma consistente e ao longo do tempo,
podem resultar n u m balbucio de l í n g u a s sem e s p e r a n ç a se o
assim como a constituição política vincula os atores estatais
ao espírito da nação. Ambos limitam e direcionam o Estado.
Nenhum delega poder ao povo ou promulga a democracia. 81 Thomas Biebricher, The Political Theory of Neoliberalism,
pp. 3 0 e 4 5 e capítulo 4.
82 Böhm escreve: "quanto mais dinâmica a vida econômica se
78 Loc. cit.
torna, mais estável deve ser sua ordem. Uma comparação
79 Ibid., p. i i g .
pode ser feita com uma máquina: quanto mais complexa for
80 A s duas constituições limitam-se e se complementam. A metá- a máquina, e quanto mais intrincadamente interdependente
fora reveladora de Böhm para sua relação se baseia em um
for o movimento de suas partes separadas, mais precisa deve
povo em guerra. A constituição política fornece "coragem e
ser sua construção". F r a n z Böhm, "Economic Ordering as a
disciplina", enquanto a constituição econômica fornece "prin-
Problem of Economic Policy and a Problem of the Economic
cípios táticos e liderança estratégica". Ambas são necessárias.
Constitution", p. 116.
Franz Böhm, "Economic Ordering as a Problem of Economic

I
83 Walter Eucken, "Structural Transformations of the State and
Policy and a Problem of the Economic Constitution", p. i i 8 .
the Crisis of Capitalism", p. 70.
100
99

ideal ordenador - o único elemento que p r o c u r a representar nas condições do mercado".®® Esta "terceira via" econômica
a unidade e dar sentido ao todo em todas as suas partes - não (nem o laissez-faire nem a regulamentação ou propriedade
se f u n d a m e n t a r na frase: tudo obedece ao meu comando!®^ estatais) só é possível se o Estado estiver isolado tanto dos
interesses políticos quanto da tomada de decisão democráti-
Böhm está descrevendo uma espécie de hobbesianismo neo- ca. No entanto, esse Estado não democrático não precisa ser
liberalizado: um Estado feito de autoridade e decisionismo antiliberal, mesmo em uma crise, mesmo quando suas carac-
fundado em conhecimento técnico-econômico para condi- terísticas autoritárias se manifestam claramente. A imposi-
cionar e corrigir os mercados. A conformidade notavelmente ção de medidas de austeridade e outras políticas que atacam,
intima da União Européia com essa visão ao administrar sua desenraizam ou destituem certas populações podem evitar
crise fiscal pós-2008 levou vários estudiosos a argumentar tocar nas liberdades pessoais. Ademais, o próprio mercado é
que a UE se tornou uma organização ordoliberal.®® Se isso ordenado liberalmente pelos princípios microeconômicos da
é correto, seu "déficit democrático" é agora parte intrín- concorrência e pelo eficiente mecanismo de preços.®®
seca do projeto, e não uma parte inadvertida e facilmente
Embora as prescrições ordoliberais para um Estado neoli-
solucionável.®®
beral difiram daquelas de Hayek e Friedman, as três escolas
^ O que deve estar claro neste ponto é que, em contraste do neoliberalismo compartilham uma rejeição da democra-
com Hayek e Friedman, para os ordos, o liberalismo autori- cia robusta e da noção expansiva do político sobre a qual
tário-tecnocrático não é uma fase dejxajisição. mas sim a a democracia repousa.®" Eles compartilham igualmente o
forma governamental apropriada ao capitalismo moderno. objetivo de vincular o poder político ao suporte para o
Os Estados ordoliberais não podem aceitar a participação
cidadã ou o compartilhamento do poder democrático; ao con-
88 Johanna Oksala, "Ordoliberalism as Governmentality", p. 187.
trário, eles são moldados por "uma expressão clara e ina- Este, é claro, é o neoliberalismo que inspirou Foucault em sua
:acável da vontade política" fundada na expertise técnica.®^ inversão radical da relação liberal entre economia e Estado.
Dirigir o capitalismo requer uma administração não política 89 Assim, escreve um estudioso, "o ordoliberalismo traz à tona
e não democrática por autoridades habilmente informadas uma tradição de neoliberalismo centrado no Estado, que diz
e que intervém "não no mercado, mas para o mercado [...] que liberdade econômica é liberdade ordenada, que argu-
menta que o Estado forte é a forma política do livre mercado
e que concebe a competição e a empresa como uma tarefa
política". New Politicai Economy 17, no. 5, 2 0 1 2 , p. 633. Mesmo
84 Franz Böhm, "Economic Ordering as a Problem of Economic
certos aspectos do trumpismo poderiam ser vistos como uma
Policy and a Problem of the Economic Constitution", p. 117.
espécie de ordoliberalismo aspiracional em sua constelação
Grifo meu.
composta por princípios de negócios, ataque ao "pântano
85 Brigitte Young, "Is Germany's and Europe's Crisis Politics de Washington", autoritarismo e esforço para governar por
Ordoliberal and/or Neoliberal?".
decreto combinado com elogios à liberdade individual. Clara-
86 Sobre o DNA ordoliberal das instituições da União Eurpeia, cf. mente, o nacionalismo econômico, o cultivo de seus favoritos
OS ensaios in Joseph Hien; Christian Joerges (ed.). Ordolibera- e as bases de decisão impetuosas e ideológicas, em vez de
lism, Law, and the Rule of Economics. científicas, não agradariam aos ordoliberais.
Ü7 Franz Böhm, "Economic Ordering as a Problem of Economic
90 William Callison desenvolve essa tese em detalhes em Politi-
Policy and a Problem of the Economic Constitution", p. 117.
cai Deficits.
100 101

\
liberalismo econômico e a ordem moral. Até mesmo o forte governaria, n ^ tampouco - e isso é crucial - o capital ou
estatismo do ordoliberalismo é limitado dessa maneira. seus segmentos mais poderosos. Para os neoliberais, a plu-
Assim, Christian Joerges analisa a diferença entre o schmit- tocracia é tão pouco propícia quanto a democracia ao projeto
tianismo (e seu endosso implícito do nazismo) e o ordolibera- de um Estado racionalmente organizado, destinado a asse-
lismo: Schmitt procurou "estabelecer a prioridade da política gurar os domínios do mercado e da moral. Tanto as democra-
sobre a economia sem consideração pela lei, enquanto os cias quanto as plutocracias instrumentalizarão os Estados
ordoliberais quiseram prescrever um quadro legal estável em prol de seus interesses, simultaneamente enfraquecen-
para a economia que a política teria de respeitar".®^ do sua capacidade de direção e expandindo seu alcance e
penetração na sociedade, comprometendo assim a saúde da
economia, a concorrência e a liberdade.®^
O QUE D E U E R R A D O ? À medida que o Estado neoliberal adequadamente cons-
tituído é desdemocratizado e despojado de soberania, sua
• • sonho neoliberal era uma ordem global de fluxo e acumu- autoridade seria fortalecida, e os cidadãos, politicamente
lação de capital livres, nações organizadas pela moralidade pacificados. A tarefa do Estado de assegurar condições para
tradicional e pelo mercado e de Estados orientados quase os mercados torna-se mais complexa na mesma medida em
exclusivamente para esse projeto. Atado às exigências de que a economia, tornando a tecnocracia essencial e rebai-
mercados que não são nem autoestabilizadores nem dura- xando ainda mais o valor ou mesmo a possibilidade de parti-
douramente competitivos, o Estado neoliberal, com seu cipação democrática. A tecnocracia também serveçomoum
compromisso com a liberdade e legislando somente regras anteparo contra esfotgos inevitáveis de atores poderosos do
universais, também protegeria a ordem moral tradicional i^rcacTo gara Historner a_concorrência. Daí o sonho ordoli-
contra incursões de racionalistas, planejadores, redistribu- beral de uma ordem liberal autoritária, ligada a uma consti-
cionistas e outros igualitaristas. Para esse fim, a democra- tuição econômica e guiada por tecnocratas. Daí o objetivo de
cia seria divorciada da soberania popular e rebaixada: não Hayek de uma separação estrita dos poderes, de restrições
mais um fim, mas um meio para viabilizar a transferência severas ao alcance legislativo e de deslocamento da sobera-
^pacífica de poder.®== A cidadania estaria limitada ao voto; a nia do Estado para princípios do mercado e moralidade. Daí
legislação, à criação de regras universais; e os tribunais, à o esforço da Public Choíce School em dirigir e conter o poder
arbitragem.®^' Nessa visão, nos Estados-nação, o demos não legislativo por meio de uma emenda orçamentária equilibra-
da e em usar "travas e ferrolhos" para proteger o capitalismo
da contestação ou interferência democráticas.®®
91 Christian Joerges, "Europe A f t e r Ordoliberahsm", p. i g g .
92 Friedrich Hayek, "Majority Rule", p. 170.

93 Böhm escreve: "decisões que não possuem um ideal substanti- uma direção politicamente desejável". F r a n z Böhm, "Econo-
vo específico e que não perturbam o processo econômico por mic Ordering", p. 117-
meio de um objetivo claro e de uma ordem técnica não equi- 94 Tanto as plutocracias quanto as democracias introduzirão
valem a uma constituição econômica". Em vez disso, "o que distorções na esfera econômica. Uma principalmente pela
J o r m a o verdadeiro núcleo de uma constituição econômica" é busca de renda, outra principalmente por sua redistribuição.
"uma norma de direção, que guia os eventos econômicos em 95 N a n c y M a c L e a n , Democracy in Chains, capítulo 10.
102 100 102

O objetivo de desmantelar a sociedade, sufocar a demo- OU de levar em conta, ou o que o envenenou de fora?"« Wil-
cracia, domar e reprogramar o Estado era neutralizar uma liam Callison argumenta que a oclusão do dominio, dinâmi-
panóplia de forças corruptoras - poderosos atores do merca- ca e poderes do politico resultam em um "déficit" tanto na
do, igualitaristas e engenheiros sociais e massas ignorantes teoria quanto na prática neoliberaí.»' O opróbrio do politico e
e mitômanas. No entanto, as coisas deram errado no neolibe- do democrático impediu os neoliberais de teorizar ambos os j
ralismo realmente existente, como ocorreu nas revoluções domínios com cuidado, o que tornou seu projeto intrínseca-,'
marxistas do século passado, uma das razões pelas quais há mente vulnerável (por exemplo, ã dominação contínua pelos
tamanha confusão sobre o que é o neoliberalismo e quem é o interesses do grande capital, especialmente, mas não ape- ^
culpado por seus desastres econômicos e politicos. A demo- nas das finanças) e também os impossibilitou de antecipar a I
cracia foi sufocada e rebaixada, sim. E n t r e t ^ o , o efeito tem
7/ sido o o ^ s t o dos objetivos neõntímísrEm vezdeser isolado
metamorfose do neoliberalismo realizada por poderes poli- '
ticos vigaristas, inclusive rebeliões antidemocráticas contra
do grande capital e, portanto, capaz de dirigir a economia, o seus efeitos. Não eram apenas nos intelectuais fundadores
Estado é cada vez mais instrumentalizado por este último - neoliberais que aparecia este "déficit político". Os economis-
todas as grandes indústrias, da agricultura e do petróleo aos
tas, os elaboradores de políticas, os políticos e tecnocratas
produtos farmacêuticos e financeiros, manejam as rédeas
que implementaram o neoliberalismo como projeto global
da legislação. Em vez de serem politicamente pacificados,
nos anos 1990 eram profundamente apegados às suas quali-
os cidadãos tornaram-se vulneráveis à mobilização nacio-
dades antipolíticas "pós-ideológicas", uma das razões pelas
nalista demagógica que deplora a soberania estatal limita-
quais eles repudiavam as críticas políticas a eles dirigidas e
da e a viabilização supranacional da competição global e da
desdenhavam os protestos políticos."
acumulação de capital. E, em vez de ordenar e disciplinar
espontaneamente as populações, a moralidade tradicional
tornou-se um grito de guerra, muitas vezes esvaziado de
96 Os conservadores contemporâneos do livre mercado, como
substância à medida que é instrumentalizado para outros M a r k L e v i n e Jonah Goldberg, r e c o n h e c e m algo mais próxi-
fins. A medida que os poderes e energias politicas antide- mo de uma eterna luta política entre direita e esquerda, ou
mocráticas nas democracias constitucionais ganharam mag- progressistas e conservadores, ou igualitaristas e libertários.
nitude e intensidade, eles geraram uma forma monstruosa 97 William Callison, Political Deficits.
de vida politica - arrastada por poderosos interesses eco- 98 M e s m o aqueles que s o a r a m cedo os a l e r t a s sobre "dema-
nômicos e zelo popular, sem coordenadas democráticas ou siada globalização" - Joseph Stiglitz, E m m a n u e l Saez, Paul
mesmo constitucionais, sem espirito nem responsabilização, K r u g m a n , Dani Rodrik - , geralmente se concentravam mais
e, portanto, perversamente, sem os limites ou a capacidade nos danos sociais e econômicos (especialmente no desloca-
mento de empregos e na crescente desigualdade) do que nos
de limitação almejados pelos neoliberais. Assim, os partidos
danos à democracia. Somente mais tarde eles e s c r e v e r i a m
do "governo limitado" se transformam em partidos de poder
sobre as f o r m a s como o neoliberalismo gerou a plutocracia
e gastos estatais exorbitantes.
dentro d a s n a ç õ e s ou a a s c e n s ã o de u m a oligarquia finan-
ceira internacional vividamente ilustrada por documentos
Por que o "destronamento da politica" neoliberaí saiu tão
como os Panama Papers e os Paradise Papers, que v a z a r a m
fragorosamente dos trilhos? O que ele deixou de considerar
detalhes da riqueza oculta das elites globais. Eles tampouco
p r e v i r a m que r e g i m e s medonhos poderiam t o m a r forma a
10 4 105

Em sua incapacidade de levar profundamente em con-


Estados Unidos é dominada pela necessidade de satisfazer
sideração o político, o neoliberalismo perversamente com-
tanto a uma classe de doadores de fundos para campanhas
partilha uma fraqueza crucial com o marxismo. Ambos não
políticas quanto a um eleitorado raivoso, resultando numa
apenas teorizam inadequadamente a vida política, como
cultura política de troca de favores que paga banquetes para
também rejeitam situar a liberdade (que apreciam, mesmo
os plutocratas e joga farelos para a base. Na política ameri-
que diferentemente) no domínio político, e ambos fetichi-
cana de hoje, porque os partidos políticos devem cortejar
zam a independência da "economia" em relação ao discur-
os eleitores, mas devem favores aos doadores, eles puxam
so político."" Acima de tudo, ambos combinam sua crítica
o Estado em duas direções. Apenas alguns grandes doado-
desconstrutiva e normativa dos poderes políticos (para além
res estão comprometidos com valores morais tradicionais,
daqueles administrativos que eles querem usar) com o atro-
e não muitos dos "eleitores de valores" ficam entusiasma-
fiamento prático desses poderes "após a revolução".
dos com cortes de impostos corporativos.'"' É possível fazer
Um resultado da repetição neoliberal do fracasso marxis-
negócios, é claro, e as relações contratuais entre essas for-
ta em considerar a vida e o poder político é sua deformação
ças são agora tão normalizadas que nada choca - os plu-
realizada por aquilo que ignora.'"" Ojieoliberalismo r ^ -
tocratas mais vulgares baixam a cabeça quando necessá-
mentgexisten^onsiste em Estados dm^^^h^^^ por todos ns
rio, e os religiosos mais fervorosos deixam suas crenças de
grandesjnteresse^econõmicos e compelidos a lidar com um
lado quando as situações políticas o exigem. Grupos que se
p ^ u l a c h o fervendo de rancor, raiva e ressentimento, para
opõem ao aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo
não mencionar suas necessidades materiais. Hayêkhnagi-
sexo, ou que tentam recristianizar escolas públicas por meio
nou uma ordem de poderes governamentais estritamente
de sistemas de vouchers, orações e combates em torno dos
limitados e separados, ao passo que hoje os tribunais fazem
livros didáticos usam essa linguagem contratual explicita-
leis, as legislaturas traçam políticas e o poder executivo
mente.'"" Como o capítulo 5 sugerirá, no entanto, tudo isso
emite "decretos" para contornar ambos. Os ordos imagina-
emana e intensifica um niilismo que compromete ainda mais
vam uma ordem que subordinaria a democracia ã tecnocra-
tanto o programa moral quanto o programa econômico do
cia na formulação de políticas. Em vez disso, a legislação nos
neoliberalismo.
Quatro décadas de racionalidade neoliberal resultaram
partir das culturas políticas e povos antidemocráticos que a em uma cultura política profundamente antidemocráti-
globalização gerou.
ca. Mais do que submetida a uma semiótica economizan-
99 Timothy Mitchell, "Fixing the Economy", pp. 8 2 - 1 0 1 . Id., "The
te, como argumentei em Undoing the Demos, a democracia é
Character of Calculability", capítulo 3.

100 Para além de seus paralelos com Marx, poderíamos conside-


rar a tentativa do neoliberalismo de remover o papel do poder 101 Peter Goodman, "Bottom Line for Davos Elite: Trump Is Good
político em ordenar a sociedade e eliminar o político do reino for Business".
da justiça como tendo certas continuidades com Platão. Não 102 S u s a n Harding, The Book of Jerry Falwell: Fundamentalist Lan-
obstante a severa crítica neoliberal das sociedades calcadas guage and Politics. Cf tb. Michael Tackett, "White Evangelical
em projeto [design], o neoliberalismo compartilha o objetivo Women, Core Supporters of Trump, Begin Tiptoeing A w a y " .
platônico de substituir a vida política por o r d e n s o r g â n i c a s e Jeremy Peters; Elizabeth Dias, " S h r u g g i n g Off T r u m p S c a n -
h a r m o i m s a s (míticas) mantidas por metafísicos de Estado.
dals, Evangelicals Look to Rescue GOP".
107
106

explicitamente demonizada e ao mesmo tempo despida de razoabilidade, responsabilidade e da resolução de problemas


proteções contra suas piores tendências."" Ela sofre oposição por meio da compreensão e da negociação das diferenças,
de cima e de baixo, da esquerda e da direita - por vezes, mais desacreditada se torna. Combinado com o declínio dos
as elites do Vale do Silicio e das finanças a depreciam tão padrões de vida no Norte global, que eram uma caracterís-
ferozmente quanto autoritários e nacionalistas brancos, tica prevista da globalização neoliberal, e com futuridade
mesmo que por diferentes razões."*^ Com a democracia assim e x i s t e n c i a l m e n t e ameaçada, o ataque da fúria populista à
rebaixada e diminuida, o exercido do poder politico, embo- democracia é inevitável, mas talvez seja também o menor
ra não desapareça, á cada vez mais privado da modulação dos perigos no horizonte. Consideraremos alguns desses
provida por meio da deliberação esclarecida, do pacto, da outros perigos no capítulo 5.
prestação de contas e da legitimação pela vontade do povo. A
realpolitik reina, com o resultado de que as manobras cruas,
as negociatas, as estratégias de branding, as manipulações
[spinning] e a indiferença com os fatos, argumentos e a verda-
de, tudo isso desacredita ainda mais o politico e desorientam
ainda mais a população quanto ao significado ou ao valor
da democracia. A acusação de "interferência russa nas elei-
ções" norte-americanas de 2016, nesse contexto, carece da
qualificação escandalosa que teria recebido em outra era
de democracia liberal. Assim também a supressão de elei-
tores, a depredação dos tribunais e do poder legislativo são
normalizadas e se tornam os veiculos por meio dos quais o
liberalismo plutocrático e autoritário é assegurado."*® Quanto
mais a democracia é apartada dos padrões de veracidade.

103 Wendy Brown, Undoing the Demos.


104 Sobre a "política" do Vale do Silício, cf. David Brookman et
al., "The Political Behavior of Wealthy Americans: Evidence
From Technology Entrepreneurs". Keith Spencer, A People's
History of Silicon Valley: How the Tech Industry Exploits Workers,
Erodes Privacy, and Undermines Democracy. L. Gordon Crovitz,
"Silicon Valley's 'Suicide Impulse'". Alexis C. Madrigal, "What
Should We Call Silicon Valley's Unique Politics?".
105 Z a c k Beauchamp, " T h e W i s c o n s i n P o w e r Grab Is Part of a
Bigger Republican Attack on Democracy". Ian Bruff, em "The
Rise of Authoritarian Liberalism", narra a história da ascen-
são do liberalismo autoritário no contexto europeu e da vul-
nerabilidade ao populismo que ele produz.
Há [...] uma herança moral, que é uma explicação para a domi-
nância do mundo ocidental; uma herança moral que consiste
essencialmente da crença na propriedade, na honestidade e na
família, todas coisas que não pudemos e nunca fomos capazes
de justificar intelectualmente de modo adequado [...]. Devemos
retornar a um mundo em que não apenas a razão, mas a razão
e a moral, como parceiras iguais, devem governar nossas vidas,
onde a verdade da moral é simplesmente uma tradição moral, a
do Ocidente cristão, que criou a moral na civilização moderna.
- Friedrich Hayek, Discurso de 1984 à Sociedade
Mont Pèlerin/

TEORIZANDO O TRADICIONALISMO MORAL

COMO E L E M E N T O DO N E O L I B E R A L I S M O

"Deus, família, nação e livre iniciativa" é um mantra conser-


vador familiar. Esses compromissos, no entanto, não coabi-
tam facilmente fora de um quadro binário da Guerra Fria, no

1 Friedrich Hayek, "Closing Speech" na Sociedade Mont Pèlerin


em 3 de março de 1 9 8 4 .
111
107

qual se presume que o socialismo se opõe a cada um e, desse Complemento: Irving Kristol, muitas vezes chamado de
modo, une-os. O entusiasmo pelo mercado é tipicamente ani- padrinho do neoconservadorismo, tratou o projeto político
nado por sua promessa de inovação, liberdade, novidade e de amparo dos valores morais como um complemento essen-
riqueza, enquanto uma política centrada na família, religião cial aos mercados livres. No final dos anos 1970, ele famosa-
'|e patriotismo é autorizada pela tradição, autoridade e mode- mente ofereceu duas vivas ao capitalismo pela liberdade e
ração. Aquele inova e perturba; esta assegura e sustenta.^ riqueza que prometia, mas conteve a terceira viva porque
Além disso, mesmo antes da globalização, o capital de um "as sociedades de consumo são vazias de significado moral,
modo geral desconsiderou os credos e as fronteiras políticas, se não francamente niilistas"." Um programa político-moral
ao passo que o nacionalismo os fetichizou. Consequentemen- explicitamente conservador é necessário, argumentou ele,;
te, a maioria dos estudiosos tem tratado os compromissos da para compensar esses efeitos, bem como a contribuição do
direita com a política neoliberaí e com seus outros valores capitalismo para o "declínio constante em nossa cultura
como se corressem em trilhos separados.® Sua relação tem democrática [...] afundando em novos níveis de vulgarida-
sido teorizada de modo variado como uma relação comple- de".® Esse niilismo e degradação tornam as questões morais
mentar, de hibridismo genealógico, ressonância, convergên- "candidatas adequadas à atenção do governo".« Concreta-
cia contingente ou de exploração mútua. Cada abordagem é mente, isso implicada promoção de valores tradicionais nas
retomada brevemente a seguir. famílias, escolas e espaços cívicos,1<a corroboração de uma
influência religiosa na vida política e cultivo do patrio-
tismo. Além desses, a política neoconservadora aborda a
necessidade de um Estado forte para promover o interesse
nacional.' Novamente, nessa visão, nenhum desses projetos
Tocqueville considerou a relação entre liberdade e religião
uma tensão constitutiva da democracia norte-americana e,
de Estado e de cultura é naturalmente assegurado ou apoia-
mais importante, uma fonte de sua saúde: "no mundo moral, do pelo capitalismo. Pelo contrário, eles são seus comple-
tudo é classificado, coordenado, planejado, decidido anteci- mentos essenciais.
padamente. No mundo político tudo é agitado, contestado, Hibridismo: A partir das colocações de Kristol, tratei, em
incerto [...] Longe de se prejudicarem, essas duas tendên- trabalhos anteriores, o neoliberalismo e o neoconservado-
cias, aparentemente tão opostas, vão de acordo e parecem
rismo nos Estados Unidos como duas racionalidades politi-
emprestar apoio mútuo. A religião vê na liberdade civil um
cas distintas.» Embora com algumas características formais
exercício nobre das faculdades do homem. [...] A liberdade vê
na religião o companheiro de suas lutas e triunfos, o berço
sobrepostas, argumentei, essas racionalidades têm efeitos
de sua infância, a fonte divina de seus direitos. Ela considera convergentes na geração de uma cidadania antidemocrá-
a religião a salvaguarda dos costumes; os costumes como a tica que "não ama e não quer nem liberdade política nem
garantia das leis e a medida de sua própria duração". Aléxis
de Tocqueville, Democracy in America, pp. 43-47.
4 C/: Irving Kristol, T1Ü0 Cheers for Capita/ism.
Fraturas na governança de direita também podem ser enten-
5 Irving Kristol, "The Neoconservative Persuasion".
didas como fraturas que acontecem ao longo desta linha de
falha sísmica, inclinando-se para o libertarianismo e o livre 6 Ibid., p. 4-
comércio, por um lado, e o moralismo e o nacionalismo esta- 7 pp. 4-5-
tistas, por outro. 8 Wendy Brown, "American Nightmare , pp. 690-714-
100 112

igualdade social [...] não espera nem verdade nem respon- divorciado e agarrador de bucetas^^ Os evangélicos, insiste
sabilidade na governança e nas ações do Estado" e "não se Alberta, identificam-se profundamente com Trump devido
aflige com concentrações exorbitantes de poder econômico an compartilhamento da experiência de serem desdenha-j
político [...] nem com formulações antidemocráticas sobre o dos pelas eUtes^ulmrais e atacados pelas forcas mundanas.!
propósito nacional no país ou no exterior".® Embora emanem "TantoUm como os outros foram sistematicamente alvejados
de diferentes fontes e visem diferentes propósitos, as duas em praça pública - muitas vezes pelos mesmos adversários",
racionalidades se misturaram para produzir forças obscuras especialmente aqueles que disparavam seus ataques a partir
de desdemocratização. da academia, do entretenimento e da mídia." Trump fre-
Ressonância: William E. Connolly teoriza a "ressonância" quentemente se refere a essa experiência compartilhada de
entre o cristianismo evangélico contemporâneo e a cultura difamação ao falar com multidões de evangélicos brancos, e
capitalista. Diferentemente das lógicas da implicação, da ativistas evangélicos mencionam com frequência as caracte-
dialética, da conspiração ou mesmo da genealogia, argu- rizações zombeteiras e depreciativas de suas crenças feitas
menta Connolly, a ressonância consiste em "complexidades por seus oponentes."
energizadas de imbricação e envolvimento mútuos, nas
Convergência: Melinda Cooper estuda a convergên-
quais elementos até então desconectados ou associados de
cia entre o neoliberalismo e o conservadorismo social no
modo frouxo se dobram, se torcem, se mesclam, se emulsificam
ambiente da família tradicional: "apesar de suas diferen-
e se dissolvem de forma incompleta um no outro, forjando uma
ças em praticamente todas as outras questões, neoliberais
união qualitativa resistente aos modos clássicos de expli-
e conservadores sociais estavam de acordo que os laços
cação"." Connolly está especialmente interessado na "dis-
familiares precisam ser encorajados - e, no limite, impos-
Eosição esDiritual à existência" - veemência e crueldade,
tos"." Cooper vê em ambos uma adesão aos princípios da
^^tremismoMeo^gico e^a "prontidão para_criaro^toíêí^r
Lei dos Pobres elisabetana, segundo os quais, entre outras
e s c â n d a l o ^ n t r a qu^quer um que se oponha â süavisão do
coisas, "a família, e não o Estado, teria a responsabilidade
mundo" - compartilhada por religiosos evangélicos a g í ^ i -
vos e defensores do neoliberalismo." ' primária de investir na educação, saúde e bem-estar das

Uma década depois, Tim Alberta publicou na revista


Politico uma análise diferente sobre a ressonância entre os 12 B r o w n alude aqui ao escândalo que envolveu Donald T r u m p
brancos da classe trabalhadora brandindo a Bíblia e aquele em 2 0 0 5 . T r a t a - s e de u m a r e f e r ê n c i a à f r a s e dita por ele ao
a quem apoiavam para ocupar o cargo de presidente: o anti- apresentador televisivo Billy Bush: "quando você é u m a estre-
go dono de cassino rico, vaidoso, não-religioso, três vezes la, elas d e i x a m você fazer qualquer coisa [...] A g a r r á - l a s pela
buceta. V o c ê pode fazer qualquer coisa", [N.T.]

13 T i m A l b e r t a , " T r u m p and the Religious Right: A M a t c h M a d e


in Heaven".
14 Jeremy Peters; E l i z a b e t h Dias, " S h r u g g i n g Off T r u m p S c a n -
9 Ibid., pp. 692.
dals, E v a n g e l i c a l s Look to Rescue GOP".
10 W i l l i a m Connolly, Capitalism and Christianity, American Style,
15 Melinda Cooper, "All in the Family Debt: H o w Neoliberais and
PP- 39-40. Grifo no original.
Conservatives C a m e Together to Undo the W e l f a r e State", p. 2.
11 Ibid., p. 42.
E s t e artigo á u m r e s u m o do livro de Cooper, Family Values.
100 115

crianças"." Embora os neoconservadores promovessem os brilhante." Cada um deles contribui para a compreensão de
valores familiares por razões morais e os neoliberais por como os tradicionalistas cristãos puderam ser subornados
razões econômicas, suas agendas juntavam-se em políticas por neoliberais preocupados com outras agendas, da desre-
por meio das quais as "obrigações naturais" e o "altruísmo"
gulamentação de indústrias à obtenção de cortes de impos-
das famílias substituiriam o Estado de bem-estar e opera-
tos corporativos até a contestação de leis e de políticas que
riam tanto como "um primitivo contrato de seguro mútuo
visavam a igualdade racial.^" Nancy MacLean argumenta
quanto [...] como um contrapeso necessário às liberdades
que a Public Choice School da Virgínia, fortemente financiada
Ido mercado"." Ademais, para os intelectuais e elaborado-
pelos irmãos Koch, entendeu bem a importância do recruta-
res de políticas neoliberais, a família não era apenas uma
mento de evangélicos cristãos para o projeto de contestar a
rede de proteção, mas um reservatório de disciplina e uma
democracia por meio de uma plutocracia masculina branca.
estrutura de autoridade. Eles buscavam nela um entrave
MacLean escreve:
aos excessos democráticos e ao colapso da autoridade que
acreditavam ser incitados pelas provisões do Estado social,
O c i n i s m o p r e v a l e c e u n a d e c i s ã o dos K o c h de f a z e r a s p a z e s
especialmente aquelas relativas ao bem-estar e ao ensino
[...] c o m a direita r e l i g i o s a , a d e s p e i t o do fato de q u e t a n t o s
superior público. Se os indivíduos pudgssem voltar a depen-
p e n s a d o r e s l i b e r t a r i a n o s [...] f o s s e m a t e u s que d e s p r e z a v a m
dgrdajamília para tudo. desdg manter íilh^os gerados fora do
aqueles que a c r e d i t a v a m e m Deus. M a s os o r g a n i z a d o r e s que
casamento ^ t ^ o c u s t d o da faculdade, eles também seriam
m o b i l i z a r a m os e v a n g é l i c o s b r a n c o s p a r a a a ç ã o p o l í t i c a -
ressubmetidos„à,autQridadfi^moralidade R discinlina ^ n ô -
homens como o reverendo Jerry Falwell, como Ralph Reed e
mica da famíiiQ f»
T i m Phillips - e r a m e l e s m e s m o s e m p r e e n d e d o r e s , m o t i v o
Exploração mútua: Ao longo das últimas décadas, os estu- p a r a a l e g a r u m a c a u s a c o m u m . Os empreendedores religiosos
diosos Nancy MacLean, Michael Lienesch, Susan Harding, f i c a r a m f e l i z e s e m v e n d e r o p e n s a m e n t o e c o n ô m i c o liberta-
Linda Kintz e Bethany Moreton anteciparam o que a cam- r i a n o aos s e u s r e b a n h o s - a c i m a de tudo a oposição à e s c o l a
panha de Trump de 2016 colocou em prática de maneira p ú b l i c a e o apelo à p r o v i s ã o f a m i l i a r ou à c a r i d a d e n o l u g a r
d a a s s i s t ê n c i a do governo.^^
16 Ibid., p. 2.
17 Ibid., p. 4.
18 Cooper constrói um argumento convincente em sua análise
do objetivo de restaurar tanto a autoridade política quanto a 19 N a n c y M a c L e a n , Democracy in Chains. Michael Lienesch,
familiar por meio da privatização do ensino superior público. Redeeming America: Piety and Politics in the N e w Christian
Cf. Family Values, cap. 6, esp. pp. 2 3 2 - 4 1 . N a n c y M a c L e a n cor- Right. Susan Harding, The Book ofJerry Falwell: Fundamentalist
robora Cooper em Democracy in Chains: The Deep History of
Language and Politics. Linda Kintz, Between Jesus and the Mar-
the Radical Right's Stealth Plan for America, pp. 1 0 2 - 1 0 6 . Janet
ket: The Emotions That Matter in Right-Wing America. Bethany
Halley e Libby Adler apresentam u m a análise teórica e empí-
Moreton, To Serve God and Walmart: The Making of Christian
rica incisiva da mudança nas leis de pensão alimentícia para
Free Enterprise.
os filhos, às vezes iniciadas por feministas, surgindo na era
20 N a n c y M a c L e a n , Democracy in Chains, pp. x x v i - x x v i i . Cf tb.
neoliberal. Cf Janet Halley; Libby Adler, "You Play, You Pay:
p. 2 4 3 , n.22.
Feminists and Child Support Enforcement in the us.".
21 Ibid., p. xxvii.
100 117

A campanha de Trump, e particularmente Steve Bannon, A exploração mútua entre fanáticos religiosos (e seus
compreendeu desde cedo a importância do voto evangéli- seguidores) e políticos ambiciosos sem religião tem prece-
co branco. Depois de assumir o cargo, Trump nunca parou dentes - Maquiavel foi um de seus mais brilhantes e preco-
de atiçar esse eleitorado - quanto ao aborto, casamento ces cartógrafos."® No entanto, o transacionalismo e a politi-
entre pessoas do mesmo sexo, aceitação de transgêneros, zação explícitos dos valores religiosos propriamente ditos
Jerusalém e à expansão do poder das igrejas na vida cívica, são expressões marcantes de um niilismo que será mais cui-
educacional e política. Hoje, apenas 17% dos americanos são' dadosamente considerado no capítulo 5. A tolerância aberta
evangélicos brancos, mas essa população constitui metade de valores alheios em troca da promoção da própria agenda
da base de Trump."" Tim Alberta escreve: "Os evangélicos jnorajjntolerai^^ quando os valores morais
não acreditam que Trump seja um deles como os ex-pre- p e r d e r a m , naradoxalmeníe^je^peso moral, quando "os pró-
sidentes Carter e Bush filho, mas nunca um presidente os prios valores foram desva^izados", como colocou Nietzs-
atendeu tão diretamente". Ralph Reed, presidente da Faith
c h e T l s s õ c e r t ã m ê r i t e e s t a v ã l m o s t r a na eleição especial de
and Freedom Coalition [Coalizão Fé e Liberdade], que liderou
dezembro de 2017 para senador pelo Alabama: em um esfor-
a batalha dos evangélicos para salvar a nomeação do Juiz
ço para derrotar um "democrata sem Deus" que lutou contra
Brett Kavanaugh à Suprema Corte, ameaçada por alegações
a Ku Klux Klan quando era um jovem advogado, os evangé-
de assédio sexual, e que militou contra as sanções ã Arábia
licos votaram esmagadoramente num acusado de pedofilia
Saudita após o assassinato do Jornalista Jamal Khashoggi, é
que buscava criminalizar o aborto e a homossexualidade
franco quanto à diferença entre crenças religiosas e o cará-
e equiparar o Alcorão com o Mein Kampf."® —AlâOO.
ter das lutas políticas necessário para promovê-las."=' Jerry
crist㣠contemporâneo tem esse contratualismo em seu
Falw^ell Jr., diretor da Liberty University e figura crucial na
cerne: "sua visão é de que Deus pode usar qualquer pessoa
conquista de votos evangélicos para Trump, é igualmente
desde que ela esteja promovendo ideais ou valores naciona-
direto: "Conservadores & cristãos precisam parar de eleger
listas cristãos", argumenta um sociólogo da religião; "é tudo
'caras legais'. Eles podem ser grandes líderes cristãos, mas os
uma questão de busca de poder e de o que serve ao propósito
EUA precisam de lutadores de rua como @realDonaldTrump
naquele momento político"."' A crença de que Deus escolheu
em todos os níveis do governo, pq os fascistas liberais do
explicitamente Donald Trump como seu instrumento para
partido Democrata estão Jogando prá valer & muitos líderes
republicanos são um bando de fracotes!"."^
25 O Príncipe e Os discursos sobre a última década de Tito Lívio
se referem regularmente às perspectivas dessa exploração
22 Damel Cox; Robert Jones, "America's Changing Religious Iden- mútua. A comédia A mandrágora de Maquiavel apresenta
tity". Cf. tb. Allison Kaplan Sommer, "Armageddon? Bring It um padre corrupto disposto a usar a autoridade da Igreja
On: The Evangelical Force Behind Trump's Jerusalem Speech". para suspender a virtude cristã. Lido como alegoria política,
23 "Jimmy Carter sentou-se no banco da igreja conosco, mas A mandrágora é um extraordinário conto dos acordos forjados
nunca lutou por nós. Donald Trump luta. E ele luta por nós". para promover a ambição política e religiosa.
Isso é discutido em maior profundidade no cap. 5. Tim Alber- 26 Richard Fausset; Jess Bidgood, "Five Alabama Voters on Why
ta, "Trump and the Religious Right: A Match Made in Heaven". They Support Roy Moore".
2 Harriet Sherwood, "'Toxic Christianity': The Evangelicals 27 A n d r e w Whitehead, sociólogo, cit. in S a r a h Bailey, "'A Spi-
Creating Champions for Trump".
ritual Battle': How Roy Moore Tested White Evangelical
107
118

A T R A D I Ç Ã O S E G U N D O FRIEDRICH H A Y E K
criar um mundo mais cristão - ou o Fim dos Dias - é comum
entre os evangélicos brancos.^»
Cada uma das análises acima ilumina aspectos importan- para Hayek, a liberdade exige a ausência da coerção explíci-
tes do presente politico. Nenhuma delas, no entanto, apreen- ta por outros humanos, quer esta coerção seja direta, quer
de o lugar da moralidade tradicional — tanto assegurando seja exercida por meio de instituições políticas.- Liberdade
quanto emanando da familia — dentro da razão neoliberaí. nara Hayek não é emancipação, não é o poder de pôr em pra-
Embora alguns ordoliberais tenham formulado esse lugar üca a vontade individual e não é uma licença. De fato, nao é
em sua preocupação de "reincorporar" o sujeito proleta- sequer escolha.- E, mais importante ainda, também nao se
rizado à autoridade e provisão da familia, ele adquire sua trata de independência em relação às tradições que geram
articulação teórica mais poderosa no trabalho de Friedrich regras de conduta e em relação aos hábitos de segui-las.
Hayek. Para Hayek, a relação entre mercado e moral no oro- Em um de seus cadernos, Hayek escreve: "a coibição é uma
ieto neoliberaí não tem nada a ver com complemento, hjbri- condição, e não o oposto da liberdade".'^ Mas que tipo de coi-
di^jmn. rfi.<;<;nnância. convergência ou exploração mútua. Em bição pode ser não coercitiva? Não aquelas estabelecidas por
vez disso, o mercado e a moral, igualmente importantes para decisões políticas ou impostas por uma pessoa sobre outra,
uma civilização próspera, estão enraizados em uma ontolo- mas, ao contrário, aquelas "aceitas comumente pelos mem-
gia comum de ordens espontaneamente evoluidas carrega- bros do grupo no qual prevalecem as regras da moraK Com
das pela tradição. Essa ontologia apresenta compatibilidade o fito de que esse não pareça um argumento menor, Hayek
perfeita entre (e em meio ã) disciplina e liberdade, herança conclui esta nota para si mesmo: "a demanda Dor 'liberaçao
e inovação, evolução e estabilidade, autoridade e indepen- em relação a estas coibições é um ataque a toda a liberdade
dência. Além disso, longe de constituir um programa com- possl^^^r^í^íí^^^^Tiiíi^um A liberdade hayekiana,
pensatório para contrabalancear os estragos do capitalismo, então, não tem nada a ver com a emancipação em relaçao
Hayek procura cultivar e estender "as convenções e costu- às normas ou aos poderes sociais aceitos. Ao contrário tra-
mes do intercurso humano" a fim de constituir um baluarte ta-se da capacidade não forçada [nncoerced] de empenho e
crucial contra os desígnios equivocados dos guerreiros de de experimentação dentro de códigos de conduta gerados
justiça social e o despotismo de um Estado excessivo que pela tradição e consagrados nas leis, nos mercados e na
esses desígnios inevitavelmente geram.

29 "A liberdade refere-se exclusivamente à relação dos homens


com outros homens, e sua única infração é a coerção pelos
homens". Friedrich Hayek, "Liberty and Liberties , m: The
Constitution of Liberty, p. 6o.

Allegiance to the Republican Party". Cf. tb. Robert Jones, The 30 Ibid., pp. 60-61.
31 Id The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, p. 14-
End of White Christian America.
32 Steven Horwitz, "Hayek and Freedom", in: Foundations forEco-
28 Tara Isabella Burton, "Christopher Maloney, Director of In
God We Trump, on W h y Evangelicals (Still) Support Donald nomic Education, p. 26.
Trump". Harriet Sherwood, "'Toxic Christianity'". 33 Loc. cit.
100 1

moralidade justos." Educado por Edmund Burke, moderni- mesmo se não somos moralmente autônomos." Elas isolam
zado por ele via Darwin, Hayek se admira com a capacidade as normas que emanam da tradição da exigência de defesa
da tradição de produzir harmonia e integração social junto de sua legitimidade pela razão ou razões.
com os meios da mudança, tudo isso sem o recurso à agência Partilhando da insistência de Burke de que aquilo que
coercitiva de instituições ou grupos. preserva a sociedade é orgânico a ela, Hayek também reco-
-Qher^ade. mais do que limitada pela traHiçãojTioral nhece a variedade nas tradições culturais e alerta contra a
i em parte constituída por ela. Inversamente, a liberdade tentativa de importar elementos de uma tradição para outra.
moral, mais do que desafiada pelos esquemas de justiça Dito isto, o darwinista em Hayek acredita que as tradições
impostos politicamente, é destruída por eles. Este quadro não evoluem somente internamente, mas também competem
prepara o terreno para o desmantelamento da democracia externamente umas com as outras. Apenas aquelas que se
robusta em nome da liberdade e dos valores morais. A tradi- centram na família e na propriedade, insiste ele, sobrevive-
çãg. egiiipara-se à ontologiajins mercados. Às vezes, Hayek rão a essa competição." O mesmo se passa com a liberdade
até mesmo identifica os mercados como uma forma de tra- pessoal: as tradições que fracassam em realcá-la de modo
dição: ambos geram "espontaneamente" uma ordem e um nroeminente estão condenadas. Isso se dá não somente por-
desenvolvimento sem depender de um conhecimento ou uma gue os humanos desejam a liberdade, mas pqrgue a liberda-
razão abrangente e sem uma vontade mestra a desenvolvê- de ref^a~ãjT-aciinãQ (noiimeio da-^^^mocão de inoTOçoes
-los, mantê-los ou guiá-los. Ambos são antirracionalistas adaptativas), e n a u j n t n a trí^Hingn^accora g j i b j r d ^ e (por
(nem elaborados pela razão e nem completamente apreen-
didos por ela) sem serem irracionais.'® "Nós nos encontra-
37 O verdadeiro liberalismo, que Hayek associa com a tradição
mos", escreve Hayek, "em um grande quadro de instituições
empírica liberal britânica, é edificado sobre essa compreen-
e tradições - econômicas, legais e morais - nas quais nos são da agência moral. Por contraste, a tradição republicana
encaixamos por meio da obediência a certas regras de con- f r a n c e s a , que Hayek coloca na origem da "democracia tota-
duta que nunca elaboramos e que nunca compreendemos".'® litária". explorou o conceito de u m a ordem utópica raciona-
Essas qualidades do desenvolvimento espontâneo e não lista. Friedrich Hayek, "Freedom, Reason and Tradition", in:

intencional tanto previnem a tradição de colidir com nossa The Constitution of Liberty, p. 2 2 9 . Junto com Burke, Hayek
trata a sobrevivência de uma tradição como evidência de seu
liberdade quanto fornecem sua capacidade de desenvolvi-
valor. A o contrário de Burke, Hayek recorre intensamente à
mento e adaptação ordeira às condições em mutação. Elas
biologia evolutiva para esta alegação. Hayek não incorpora o
n^o comprometem, mas são compatíveis com um libera- darwinismo social, m a s vê o princípio biológico da evolução
lismo não kantiano segundo o qual sõníos^ãg^es morais. por meio da adaptação e da competição como presente na raiz
de todas as dimensões da ordem social humana. A evolução
das culturas ou das civilizações e m a n a da dinâmica que é
tanto interna às tradições (permitindo-lhes adaptarem-se e
se t r a n s f o r m a r e m conservando seus fundamentos) quanto
34 Friedrich Hayek, "Freedom, Reason and Tradition", in: The
toma a forma de uma competição entre as tradições (permi-
Constitution of Liberty, p. 1 1 5 .
tindo as tradições exitosas triunfar e as outras a se extinguir).
35 Ibid., p. 1 1 3 . Friedrich Hayek. The Fatal Conceit, pp. 23-27.
36 Friedrich Hayek, The Fatal Conceit, p. 14.
38 Ibid., p. 1 3 7 .
1!2
iz:.

meio da p r o m o ç ^ de c o n v e n c õ e s e ordemj. E s s a simbiose


voluntária".^^ Conformidade voluntária — a m b o s os termos
t a m b é m e r e v e l a d a no negativo. A q u e l e s que b u s c a m subs-
têm m u i t o i m p o r t â n c i a n a f o r m u l a ç ã o de H a y e k . D e u m lado.
tituir as práticas e instituições tradicionais por práticas e
a tradição produz c o n f o r m i d a d e por meio da conduta habi-
instituições deliberadamente forçadas [contrioed] s ã o o s "ini-
tual, ao i n v é s d a " a d e s ã o c o n s c i e n t e à s r e g r a s c o n h e c i d a s " .
migos da verdade" na medida em que b u s c a m impor a mu -
De o u t r o , a n a t u r e z a v o l u n t á r i a d a c o n d u t a é o q u e t o r n a
t o s r e g r a s de c o n d u t a p r o j e t a d a s p o r p o u c o s e s u b s t i t u i r u m
a tradição dinâmica, assim como u m espaço de liberdade.
projeto inteligente gerado e s p o n t a n e a m e n t e pela tradição
"É e s s a flexibilidade d a s r e g r a s voluntárias que. no c a m p o
p o r u m m o d e l o r a c i o n a l i n e v i t a v e l m e n t e f a l h o 3» L o g o pLa
da moral, possibilita a evolução g r a d u a l e o c r e s c i m e n t o
Havek. a tradição promove um m o d ^ ^ e ^ ^ v r e em"^-
espontâneo", e "tal evolução só é possível c o m r e g r a s que
não são nem coercitivas e nem i m p o s t a s deliberadamente.
e l a pron^ove a l i b e r d a d e i n d i v i d u a l p o r m e i o d a c o l i i o ^ - [...] R e g r a s d e s t e t i p o p e r m i t e m u m a m u d a n ç a g r a d u a l e
de c o m s u a s n o r m a s , a s s i m como por meio da inovação, e experimentar.^3
^elae sustentada pela proteção da liberdade c o n t r i
A ê n f a s e de H a y e k n a c o m p e t i ç ã o , d e s e n v o l v i m e n t o , liber-
P o r m a i s p a r a d o x a l q u e p o s s a p a r e c e r " , c o n c l u i ele. " u m a
dade. i n o v a ç ã o e m u d a n ç a c o m o e l e m e n t o s d a t r a d i ç ã o s u g e -
sociedade livre exitosa será sempre, em larga medid^. u m a
r e q u e s u a p r ó p r i a a n á l i s e d a t r a d i ç ã o é e x t r a í d a do m o d e l o
sociedade vinculada à tradição"." aa. u m a
do m e r c a d o , e n ã o s o m e n t e do o r g a n i c i s m o e d a a u t o r i d a d e
Precisamos nos deter neste aparente paradoxo. Embora
de B u r k e . I g u a l m e n t e i m p o r t a n t e , n o e n t a n t o , o s m e r c a d o s
insista na tradição como a b a s e apropriada da ordem social
s ã o e l e s m e s m o s u m a forma de t r a d i ç ã o p a r a H a y e k , o q u e
e d a s n o r m a s de c o n d u t a . H a y e k n ã o t r a t a o p a s s a d o c o m o
adiciona outra c a m a d a ao seu isolamento legítimo da inter-
p o s s u i d o r d e u m a s a b e d o r i a ou a u t o r i d a d e intrínsecas
v e n ç ã o política. D e fato, a o r d e m g e r a d a pelos m e r c a d o s c o r - '
A o contrário, a visão evolucionista está baseada na noção
p o r i f i c a a o r d e m e v o l u í d a , l i v r e , i n c o m p r e e n s í v e l , n ã o inten-/
de q u e o r e s u l t a d o d a e x p e r i m e n t a ç ã o d e m u i t a s g e r a ç L s
cional, voluntária e ainda a s s i m socialmente integrada da
p o d e i n c o r p o r a r m a i s e x p e r i ê n c i a do q u e q u a l q u e r h o m e m
t r a d i ç ã o no q u e ela t e m de melhor. S o m o s d i s c i p l i n a d o s e
n d i v i d u a l POSSUÍ".« A s t r a d i ç õ e s q u e d e s e n v o l v e m a s m e l h o -
o r i e n t a d o s p e l a s r e g r a s do m e r c a d o ; e l a s e v o l u e m , m u d a m
e s n i a n e i r a s p o s s í v e i s de s e v i v e r e m c o n j u n t o n ã o e m e r g e m
e se desenvolvem; m a s n i n g u é m as projetou, n i n g u é m está
d a p u r a a u t o r i d a d e do p a s s a d o , m a s d a e x p e r i m e n t a ç ã o e d a
no c o m a n d o e n i n g u é m nos c o a g e dentro delas.
evolução que a liberdade permite. A o m e s m o tempo, a tra-
N e n h u m a r q u i t e t o [ m a s t e r m i n d ] , d e s í g n i o ou e x e c u t o r
dição p r o m o v e a liberdade e evita a c o e r ç ã o s o m e n i e por-
[enforcer] i m p õ e o u a s s e g u r a a t r a d i ç ã o , e a i n d a a s s i m , r e c o -
q u e . c o m a t r a d i ç ã o , " e x i s t e u m alto g r a u d e c o n f o r m i d L e
nhece Hayek, é a religião que quase sempre a codifica e a
transmite. "Como seria possível que tradições das quais as

39 Id., -The Creative Powers of a Free Civilization" in- The Con,


42 Ibid., p. 1 2 3 .
43 Deste modo, a escravidão poderia ser extinta ou o sufrágio
poderia ser garantido às mulheres para serem compatíveis
com a valorização evolutiva da liberdade universal no libera-
41 Loc. cit. lismo. Ibid., p. 1 2 4 .
100 125

p e s s o a s n ã o g o s t a m o u q u e n ã o c o m p r e e n d e m , c u j o s efei- p o p u l a r e s d a v i d a s o c i a l e política, e s p e c i a l m e n t e o c o n c e i t o
tos elas normalmente não apreciam e não podem ver nem p e r i g o s o de i n t e n c i o n a l i d a d e , d e s í g n i o e v o n t a d e s o b e r a n o s .
prever, e as quais ainda estão combatendo fervorosamen-
C o n f o r m e v i m o s n o c a p í t u l o 2, H a y e k p a r t i l h a d a a n á l i s e
te, c o n t i n u e m a s e r t r a n s m i t i d a s de g e r a ç ã o a g e r a ç ã o ? " . ^ ^
de S c h m i t t s o b r e o s a l i c e r c e s t e o l ó g i c o s d a s o b e r a n i a polí-
A s m i s t i f i c a ç õ e s r e l i g i o s a s f o r n e c e m o veículo: " N ó s d e v e m o s
tica; c o n t r a S c h m i t t , entretanto, H a y e k localiza o e r r o e o
a p e r s i s t ê n c i a de c e r t a s p r á t i c a s e a c i v i l i z a ç ã o q u e r e s u l t o u
perigo profundos da soberania em sua formulação teológica
d e l a s e m p a r t e a o s u p o r t e de c r e n ç a s q u e n ã o s ã o v e r d a d e i -
de p o d e r . H a y e k e s c r e v e : " A p r e t e n s a n e c e s s i d a d e l ó g i c a de
r a s [...] n o m e s m o s e n t i d o e m q u e d e m o n s t r a ç õ e s c i e n t í f i c a s
tal fonte ilimitada de p o d e r s i m p l e s m e n t e não existe". A o
o s ã o V ® Sentindo o chão escorregadio em que se encontra,
contrário,
I H a y e k a p r e s s a - s e a c h a m a r a s c r e n ç a s r e l i g i o s a s de " v e r d a -
4*des simbólicas" que promovem a sobrevivência e a prosperi- a c r e n ç a n e s t a n e c e s s i d a d e é u m p r o d u t o da f a l s a i n t e r p r e t a -
^ d a d e . D e u s , e s p e c u l a ele, p o d e s e r u m a e s p é c i e de t a q u í g r a f o
ção c o n s t r u t i v i s t a da f o r m a ç ã o da instituição h u m a n a , que
n e c e s s á r i o p a r a u m a c o s m o l o g i a que s e r i a de outro m o d o
b u s c a r e t r a ç á - l a s t o d a s a u m planejador [designer] original ou
d e m a s i a d a m e n t e c o m p l e x a de s e apreender, d e s c r e v e r ou
a a l g u m o u t r o a t o d e l i b e r a d o d a v o n t a d e . A fonte b á s i c a d a
até m e s m o imaginar. "Talvez o que muitas p e s s o a s queiram
o r d e m social, no e n t a n t o , n ã o é u m a d e c i s ã o d e l i b e r a d a de s e
j d i z e r q u a n d o f a l a m de D e u s s e j a s o m e n t e a p e r s o n i f i c a ç ã o
a d o t a r c e r t a s r e g r a s c o m u n s , m a s a e x i s t ê n c i a , e n t r e a s pes-
d e s t a t r a d i ç ã o de m o r a l ou v a l o r e s que m a n t é m v i v a s u a
s o a s , de c e r t a s opiniões s o b r e o que é c e r t o e o q u e é e r r a d o .
I comunidade".^« A l é m d i s s o , a f i c ç ã o d a r e l i g i ã o é v a s t a m e n t e
O q u e possibilitou a G r a n d e S o c i e d a d e n ã o foi u m a i m p o s i ç ã o
s u p e r i o r a o "delírio r a c i o n a l i s t a " de q u e p o d e m o s u s a r n o s s a
d e l i b e r a d a d e r e g r a s de c o n d u t a , m a s o c r e s c i m e n t o de t a i s
razão para projetar ordens m o r a i s . " Se as mistificações e
r e g r a s e n t r e h o m e n s que q u a s e n ã o t i n h a m u m a ideia de qual
reificações rehgiosas são atalhos p a r a se p r e s e r v a r as tradi-
s e r i a a c o n s e q u ê n c i a de s u a p r á t i c a geral.^'
ç õ e s d a s q u a i s d e p e n d e a c i v i l i z a ç ã o , s u g e r e ele, e n t ã o q u e
a s s i m seja.
S e a s o b e r a n i a política está e n r a i z a d a na c r e n ç a equi-
M a s H a y e k não pode ser tão otimista quanto ao papel da
v o c a d a de q u e a s s o c i e d a d e s s ã o o r d e n a d a s p e l a v o n t a d e e
religião e das crenças religiosas na reprodução da tradição.
pelo desígnio, e s s a c r e n ç a deve ser desfeita. H a y e k b u s c a
O s c o n c e i t o s r e l i g i o s o s de p e r s o n i f i c a ç ã o e a n i m i s m o s ã o
assim contestar na prática e conceitualmente a versão
p r e c i s a m e n t e o q u e ele b u s c a d e s m o n t a r n a s c o n c e p ç õ e s
a n t r o p o m o r f i z a d a de u m a v o n t a d e d i v i n a i n s c r i t a n a s o b e -
r a n i a política.
O a m á l g a m a entre tradição e liberalismo, como faz
44 F r i e d r i c h Hayek, The Fatal Conceit, pp. 1 3 5 - 1 3 6 . Há aqui, é
claro, u m a confissão de que a t r a d i ç ã o r e p r i m e c o m m a i s Hayek, então, coloca o liberalismo em u m c a m i n h o perigo-
força o c o m p o r t a m e n t o e envolve mais insatisfação e resis- so, s e g u n d o a p r ó p r i a p e r s p e c t i v a de H a y e k . S u a r e c o n f i g u -
tência do que a noção de "conformidade voluntária" poderia r a ç ã o do l i b e r a l i s m o s u p r i m e a a u t o r i d a d e d a v i d a p o l í t i c a
sugerir. e a c o n f e r e à s n o r m a s e p r á t i c a s i m p r e g n a d a s de r e l i g i ã o .
45 Ibid., pp. 1 3 6 - 1 3 7 . O p o l í t i c o , d e s p o j a d o d a s o b e r a n i a e do i n t e r e s s e p ú b l i c o ,
46 p . 140.

47 p. 137.
48 Friedrich Hayek, Law, Legislation and Liberty, v. 3, p. 33-
126 127

f i c a l i m i t a d o a g e r a r r e g r a s a p l i c a d a s u n i v e r s a l m e n t e (que r e t o m a r seu lugar puro e de direito. No entanto, o E s t a d o


s ã o e l a s m e s m a s a s m e l h o r e s p o s s í v e i s q u a n d o s ã o codifi- não é n e m a fonte da moralidade e n e m aquilo que a i m p õ e -
c a ç õ e s de n o r m a s que e m a n a m d a tradição) e t é c n i c a s que
esse c a m i n h o hobbesiano inflaria equivocadamente o poder
t ê m a c a r a c t e r í s t i c a de s e r e m p r á t i c a s , m u i t o m a i s do que
estatal e converteria a moral em mandados e restrições não
verdadeiras. A t r a d i ç ã o a s s e g u r a d a pela religião, por outro
livres, n o l u g a r de u m a c o n f o r m i d a d e v o l u n t á r i a c o m a s con-
jflado, a s s u m e o m a n t o d e i n c o n t e s t a b i l i d a d e e d e v e r d a d e
v e n ç õ e s . A m o r a l i d a d e d i t a d a p e l o E s t a d o , d e a u a l t i n o for.
simbólica ao m e s m o t e m p o e m que serve c o m o u m limite
sejam m á x i m a s relieiosas ou nrincípios de j u s t i ç a ^ i a l , é
a o político. E s t a f o r m u l a ç ã o explica u m a v e r t e n t e da racio-
a m a r c a do t o t a l i t a r i s m o . A s s i m , o E s t a d o só pode a s s e g u -
nalidade que organiza nosso predicamento atual: a verdade
r a r o s pré-requisitos da vida moral - liberdade, propriedade,
suprimida da vida política é transferida p a r a declarações
r e g r a s universais de justiça e deferência política ã tradição.
m o r a i s ou religiosas e n r a i z a d a s n a a u t o r i d a d e da tradição."»
E l e n ã o p o d e l e g i s l a r s o b r e a c o n d u t a o u a c r e n ç a moral.®"
O efeito é d i s s o c i a r a v e r d a d e d a r e s p o n s a b i l i d a d e [accowita-
Como, então, r e s g a t a r os princípios morais tradicionais
biUty] ( u m a r e c e i t a do a u t o r i t a r i s m o ) , c o n t e s t a r a i g u a l d a d e
d o s e f e i t o s c o r r o s i v o s d o c a p i t a l i s m o (e d a s d é c a d a s d e c o r -
e a justiça por meio da tradição, e eliminar a legitimidade
r u p ç ã o pelo E s t a d o social, d a s quais a o r d e m de H a y e k t e r i a
I da soberania popular.
de surgir) q u a n d o o E s t a d o neoliberaí n ã o pode legislar J
M a s o d i l e m a d e H a y e k n ã o foi s o l u c i o n a d o . S e a c r e n ç a s o b r e a m o r a l i d a d e o u s e r m o r a l i s t a ? C o m o e m p r e g a r a lei e
p e r i g o s a e fictícia n a s o b e r a n i a atribui a u m p o d e r vindo de o Estado p a r a apoiar a autoridade da tradição sem violar s u a
c i m a aquilo que é gerado e s p o n t a n e a m e n t e de baixo, o fato natureza orgânica e seu voluntarismo? Como minimizar a
de que a religião a s s e g u r a a t r a d i ç ã o p e r m a n e c e u m proble- c o e r ç ã o política ao a s s e g u r a r o "governo" pela tradição? No
m a sério. S u a c r í t i c a da s o b e r a n i a d e s c o n s t r ó i u m a visão de a r s e n a l h a y e k i a n o h á ^ r ê ^ t é ç n i ç a s : limitar o p o d e r legislati-
m u n d o r e l i g i o s a - p o l í t i c a c a r a c t e r i z a d a p e l a o n i s c i ê n c i a , oni- vo a g e r a r r e g r a s u n i v e r s a i s e excluí-lo de fazer políticas de
potência, por u m projeto m e s t r e e u m a vontade mestra. Com i n t e r e s s e público; d e s a c r e d i t a r q u a l q u e r d i s c u r s o de justiça
s u a insistência de que c a d a u m d e s s e s é u m e r r o ontológico, social como disparatado e totalitário; expandir o que Hayek
H a y e k v i s a a f i r m a r a liberdade c o n t r a o m a n d a d o político, os' c h a m a de "esfera pessoal protegida" p a r a estender a alçada
indivíduos c o n t r a o coletivo e o desenvolvimento e s p o n t â n e o da moralidade tradicional p a r a além dos confins da igreja
c o n t r a o projeto social racional. Ele b u s c a desreificar a socie- e da família. Juntas, e s t a s t r ê s t é c n i c a s g a r a n t e m u m lugar
dade c o m o n a d a mais que indivíduos e busca o destrona- e u m poder social às reivindicações da t r a d i ç ã o e de s u a s
m e n t o da política de m o d o que o m e r c a d o e a m o r a l p o s s a m liberdades peculiares, ao m e s m o tempo em que restringem

50 O fato de que o Estado não deveria legislar sobre a moralidade


49 10 deslocamento de verdades públicas pela autoridade da cren- torna-se um sério problema quando a democracia social des-
ça tradicional e religiosa é exatamente a fórmula que habilita piu a moralidade tradicional de seu caráter orgânico. Como
I a Suprema Corte americana a permitir que aquilo que julga exatamente essa moralidade pode "brotar novamente" para
I serem questões "controversas", como o aborto ou a homosse- uma ordem hayekiana sem o auxílio do Estado? Trata-se de
/ xuahdade, tornem-se assuntos de "expressão" protegida e a um problema também para os ordoliberais e neoconservado-
/ rechaçar a lei da igualdade. O capítulo 4 explora em detalhe res, para os quais o capitalismo devasta o solo da moralidade
esse fenômeno. mesmo sem a intervenção do Estado social.
12 12!l

r e f o r m a s e n r a i z a d a s no racionalismo, no planejamento ou exclusivamente, ou s e q u e r p r i n c i p a l m e n t e , de c o i s a s m a t e - ^


e m o u t r a s f o r m u l a ç õ e s n ã o o r g â n i c a s do bem. Juntas, elas
riais".®' A o c o n t r á r i o , p o r m e i o d e s u a f o r m a ç ã o ú n i c a p e l a I
promovem a moralidade tradicional e o mercado ao m e s m o
a c e i t a ç ã o d a s " r e g r a s gerais que g o v e r n a m a s c o n d i ç õ e s sob j
t e m p o q u e c o n t ê m o a l c a n c e do político e r e s t r i n g e m as
as quais os objetos ou c i r c u n s t â n c i a s t o r n a m - s e p a r t e da
reformas democráticas da sociedade.
esfera protegida de u m a p e s s o a ou pessoas", e s t a esfera con-
As duas primeiras técnicas, discutidas nos capítulos ante-
fere-nos "proteção contra a interferência e m n o s s a s ações"
riores, são limites diretos ao Estado. A terceira, tanto u m
p o r p a r t e d e u m a v a r i e d a d e d e fontes.®^ E l a e x p u l s a a q u e l e
limite q u a n t o u m a espécie de a ç ã o estatal, é a ú n i c a que
poder coercitivo monstruoso, o Estado, m a s t a m b é m a coer-
pode de fato r e s t a b e l e c e r os c o s t u m e s tradicionais e m u m a
ção exercida pelas formas democráticas c o m o a igualdade, a f
sociedade n a qual o Estado social os danificou ou deslocou.
inclusão, o a c e s s o e a justiça social. É a s s i m que H a y e k liga a
Trata-se precisamente da técnica que nas décadas recen-
liberdade c o m a difusão dos c o s t u m e s tradicionais p a r a além
tes t e m sido u s a d a e m d e c r e t o s presidenciais, legislação e
da família e da esfera privada de culto. A liberdade pessoal,
adjudicações que f o r t a l e c e m a s r e i v i n d i c a ç õ e s do m e r c a d o
a s s i m expandida, é o meio pelo qual "somente os valores
e da moralidade tradicional e m detrimento daquelas por
m o r a i s t r a d i c i o n a i s p o d e m prosperar".®® A d e f e s a d a " e s f e r a
igualdade, s e c u l a r i s m o e b e m c o m u m . A " e x p a n s ã o da esfe-
p e s s o a l protegida", a s s i m expandida, é o meio pelo a u a l a
r a p e s s o a l protegida" é a c o n t r i b u i ç ã o ^ o r ^ a l de H a y e k ao
tradição e a liberdade repelem seus inimigos - o^olítico e
neoliberalismo e à r e f o r m a t a ç ã o do tradicionalismo c o m o
o social, o racional e o planejado, o igualitário e o estatis-
liberdade. '
ta.®® O a l a r g a m e n t o d o d o m í n i o n o q u a l a l i b e r d a d e p e s s o a l
O p o d e r e s t a t a l c o e r c i t i v o , e s c r e v e H a y e k e m Os funda-
é irrestrita permite justamente que as c r e n ç a s e c o s t u m e s
mentos da liberdade, é bloqueado de m o d o m a i s efetivo a o se
tradicionais, ou aquilo que Hayek c h a m a de "convenções e
d e s i g n a r e m e s f e r a s e a t i v i d a d e s q u e e l e é p r o i b i d o d e tocar.®'
c o s t u m e s do i n t e r c â m b i o h u m a n o " , r e i v i n d i q u e m l e g i t i m a -
P a r a além d e s s a p r e o c u p a ç ã o e m a s s e g u r a r u m a "esfera pro-
m e n t e e de fato r e c o l o n i z e m o cívico e o social e m que a
t e g i d a de u m a p e s s o a ou pessoas", u m a ideia q u e é f a m i l i a r a
d e m o c r a c i a o u t r o r a imperava.®' T r a t a - s e de u m a m a n e i r a d e
t o d a s a s f o r m a s de liberalismo, o objetivo de H a y e k é a l a r g a r
r e p o r a o r d e m n o q u e H a y e k r e t r a t a c o m o a s u b s t i t u i ç ã o sin-
os c o n t e ú d o s e o domínio d e s t a esfera. Especificamente, ele
t o m á t i c a e perigosa da "palavra 'social' pela palavra 'moral'
designa c a d a vez m a i s atividades d e n t r o dela c o m o privadas
ou s i m p l e s m e n t e 'bem'". N e s s a s u b s t i t u i ç ã o , ele e n x e r g a a
e, logo, b l i n d a d a s a p r o p r i a d a m e n t e d a v i o l a ç ã o e s t a t a l e d a s
"influência c r e s c e n t e da c o n c e p ç ã o racionalista" da n a t u r e z a
n o r m a s d e m o c r á t i c a s . ® " "O r e c o n h e c i m e n t o d a p r o p r i e d a d e " ,
h u m a n a e da ordem h u m a n a no lugar das tradições e regras
e s c r e v e H a y e k , é "o p r i m e i r o p a s s o n a d e l i m i t a ç ã o d a e s f e -
^ra p r i v a d a q u e n o s p r o t e g e d a c o e r ç ã o " , m a s , a d i c i o n a e l e ,
"não devemos p e n s a r nesta esfera c o m o sendo constituída 53 Loc. cit.
54 Loc. cit.
55 Id., Law, Legislation and Liberty, v. 2, p. 67.
56 Id., "Coercion and the State", in: The Constitution of Liberty, p.
51 Id. "Coercion and the State", in: The Constitution of Liberty, pp.
206-7. 207.
57 Id., "Freedom, Reason, Tradition", in: The Constitution of
52 Ibid., p. 207.
Liberty, p. 1 2 3 .
1 o 131

morais herdadas, que não emergem da razão, não podem evolução adaptativa e resistiram à prova do tempo. Ambas
I ser plenamente compreendidas por ela e não dependem do "conduzem condutas" (na formulação de Foucault) ou pro-
julgamento individual.®» O "apelo ao 'social'", diz Hayek iro- duzem "um alto grau de conformidade voluntária" (na de
^^ nicamente, "realmente envolve uma demanda de que a inte- Hayek) sem coerção.®' E ambas exigem que o Estado as asse-
ligência individual, e não as regras evoluídas pela sociedade, gure e proteja por meio de leis sobre propriedade, casamento,
deveria guiar a ação individual".®® Trata-se de um argumen- contratos e herança, ao mesmo tempo que constituem limi-
to para "dispensar o que poderia verdadeiramente ser cha- tes ã ação estatal.
mado de 'social' (no sentido de ser um produto do processo Essa simetria do mercado e da moral distingue o libera- t
impessoal da sociedade)" e para expulsar a tradição moral
lismo hayekiano de formulações libertarianas ou até mesmo /
e seus efeitos espontâneos do ordenamento da sociedade e
do liberalismo clássico. O mesmo se passa com a afirma-i'
de nossa conduta.®"
ção de Hayek sobre as pressões conformistas da moralidade
Aqui, devemos nos lembrar do que está em questão na tradicional; ele não partilha, por exemplo, das preocupações
busca pela reivindicação da sociedade organizada democra- de John Stuart Mill quanto ao efeito desse tipo de confor-
ticamente com normas e códigos de conduta derivados do mismo sobre a liberdade ou a individualidade.®" Para Hayek,
mercado e das tradições morais. A respeito das "convenções contanto que essas pressões não sejam coercitivas (o que,
e costumes do intercâmbio humano" protegidos pela tradi- nessa discussão, ele define de modo revelador como "sendo
ção, escreve Hayek, "as regras morais são as mais impor- no interesse de outrem e não no nosso próprio"), elas são
tantes, mas de modo algum as únicas significativas".®' Pelo legítimas e valorosas. Elas são importantes especialmente
contrário, estão em jogo coisas como normas heteropatriar- na contestação de reivindicações morais que emanam de
cais e formas familiares; normas e enclaves raciais; posse de fontes que não a tradição e que contestam a família, a pro-
propriedade e acumulação, retenção e transmissão de rique- priedade e a liberdade.
1 za - em suma, tudo aquilo que reproduz e legitima poderes e Já deve ter ficado claro que a antipatia de Hayek pela
- ordenações históricos de classe, parentesco, raça e gênero.®^ social-democracia ou pelo socialismo não deriva unicamen-
Considerem uma vez mais a importância da simetria te de seu apreço pelo mercado, um apreço que é ubíquo na
ontológica que Hayek estabelece entre os códigos morais história do liberalismo. E tampouco deriva unicamente de
e as regras do mercado. Ambos são práticas evoluídas, não seu medo do poder estatal expansivo, também ubíquo no
simplesmente naturais. São "boas" porque resultam de liberalismo clássico e intensificado pela experiência do tota-
litarismo no século XX. Para Hayek, o maior erro da social^
-democracia jaz em suatentativa de substituir uma ordem
Ibid., p. 1 2 7 .
esDontânea'TvoluídãliistõHcãm^ sunortada pela traai-
Loc. cit.
ção^ii^talada no cosi.iime..iioi;.2rojetos racionais mestres
60 Loc. cit.
61 Ibid., p. 1 2 3 .
para a sociedade. Esse é o erro que denota incompreensão
62 Cf., p. ex., o uso da formulação de H a y e k sobre a tradição
feito por E d w a r d Feser para explicar a importância dos tabus 63 Friedrich Hayek, "Freedom, Reason, Tradition", in: The Cons-
sobre a homossexualidade e sobre o sexo fora do casamento. titution of Liberty, p. 1 2 3 .
E d w a r d Feser, "Hayek on Tradition", p. 17.
64 John Stuart Mill, On Liberty, cap. 1.
132 13:!

quanto à natureza dos seres humanos, da história, da o conceito de provisões de bem-estar social e o projeto de
mudança e da cooperação social, para não mencionar a jus- democratização dos poderes sociais de classe, raça, gênero
tiça e a hberdade.®® O neoliberalismo combate essa apreen- e sexualidade. À medida que a vida cotidiana é mercantiliza-
são equivocada por meio da afirmação da ordem enraizada da de um lado e "familiarizada" de outro pela racionalidade
I na tradição e na liberdade; ele trava essa briga por meio de neoliberal, estes processos gêmeos contestam os princípios
um ethos e de uma prática desregulatória de longo alcance de igualdade, secularismo, pluralismo e inclusão, junto com
e por meio da demonização dos esquemas de justiça estatal, a determinação democrática de um bem comum. --
do fortalecimento da tradição contra tais esquemas e da opo- Em seu estudo da implementação do neoliberalismo nos
sição à própria idéia de soberania popular. Estados Unidos, Melinda Cooper oferece exemplos desse pro-
cesso na reforma do Estado de bem-estar, no financiamento
educacional, nas "iniciativas de paternidade" [fatherhood ini-
O NEOLIBERALISMO REALMENTE EXISTENTE tiatives], e nas medidas de bem-estar "baseadas na fé".®® Eis
alguns outros exemplos:
Instalar o mercado e a moralidade nos locais em que a socie-
dade e a democracia outrora se encontravam, por meio do - S i s t e m a s de voucher escolar e escolas licenciadas [charter
princípio da liberdade em relação à regulação estatal - eis schools],"'' no lugar do controle público sobre a e d u c a ç ã o
o sonho hayekiano. Esta visão também era central para o p r i m á r i a e s e c u n d á r i a , permitem aos p a i s escolher p a r a
neoliberalismo realmente existente, especialmente sua seus filhos escolas com "valores alinhados" e evitar corpos
implementação nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Ele d i s c e n t e s e c u r r í c u l o s que eles abominam.®® N a medida
tomou uma forma distinta daquela imaginada por Hayek e em que os vouchers p r o t e g e m a " e s c o l h a " f a m i l i a r con-
seus confrades, e a parcela moral do projeto tendeu a ser t r a u m público s e c u l a r e plural, eles s i m u l t a n e a m e n t e
ignorada ou rejeitada por alguns defensores fervorosos da
desregulação e globalização dos mercados. Este pode ser o
motivo pelo qual a privatização econômica continua a ser 66 Mehnda Cooper, Family Values, cap. 3. 4 e 6.

a cara familiar do neoliberalismo e que mantém velada a 67 "Charter schools" são escolas nos EUA que possuem financia-
mento público, mas que são independentes, isto é, são esta-
força da privatização - igualmente importante - constituída
belecidas por um grupo comunitário que possui algum tipo
pela ampliação do alcance da "esfera pessoal e protegida".
de licença, firmada com u m a autoridade local ou nacional,
Na verdade, elas operam juntas, conceituai e praticamente: para promover a educação de crianças e adolescentes daquela
o desmonte da provisão pública vai rotineiramente de par localidade. Já o sistema de voucher para educação funciona
com normas da esfera privada estendida para deslegitimar de modo diferente: os pais da(o) aluna(o) recebem um subsí-
dio do governo (o voucher) para custear a matrícula [tuition)
daquele período escolar, que pode variar, geralmente sendo
Hayek escreve: "A coerção pode ser por vezes evitada somente de um semestre ou um ano. Deste modo, o que ocorre é que
porque existe um alto grau de conformidade voluntária, o que e s c o l a s J > ^ são financiadas com dinheiro público mas admi-
significa que a conformidade voluntária pode ser uma con- nistradas de modo privado, [N.T.]
dição de uma operação benéfica da liberdade". In: "Freedom, 68 Valerie Strauss, "There Is a Movement to Privatize Public Edu-
Reason, Tradition", The Constitution of Liberty, p. 1 2 3 .
cation in America: Here's How Far It Has Gotten".
13

c o n t e s t a m a p r o m e s s a de i g u a i s o p o r t u n i d a d e s e m b u t i - veredito da S u p r e m a C o r t e Citizens United foi p a r a a s cor-


! da n a e d u c a ç ã o pública e s e u c o n t r a p e s o limitado, p o r é m p o r a ç õ e s n a política, c o m a b e n ç ã o adicional de p e r m i t i r
i m p o r t a n t e , à r e p r o d u ç ã o , de o u t r o m o d o i n e v i t á v e l , da que p a s t o r e s de m e g a i g r e j a s i n c o r p o r e m diretivas de voto
e s t r u t u r a (racializada) de c l a s s e s . A s s i m , eles c o r p o r i f i - em seus sermões.
c a m tanto a f a m i l i a r i z a ç ã o a n t i d e m o c r á t i c a q u a n t o a pri-
v a t i z a ç ã o e c o n ô m i c a de u m dos domínios m a i s c r u c i a i s da
vida pública moderna.

A ferramenta mais poderosa para substituir o governo demo-


Os v e r e d i t o s judiciais e v e r s õ e s e s t a t a i s que proliferam do crático pelo mercado desregulado e pela moralidade tradi-
A t o de R e s t a u r a ç ã o da L i b e r d a d e Religiosa p e r m i t e m q u e cional é a liberdade desatrelada da sociedade e da democra-
r e i v i n d i c a ç õ e s r e l i g i o s a s desloquem princípios democrati- cia, o que foi delineado nos capítulos 1 e 2. Reivindicações de
c a m e n t e p r o m u l g a d o s de igualdade, inclusão e n ã o discri- liberdade têm sido o cerne da estratégia da direita religiosa
m i n a ç ã o . M a i s do que u m a " v i n g a n ç a dos p e r d e d o r e s " em para recristianizar a esfera pública desde os anos 1990, mas
q u e s t õ e s como o aborto e a i g u a l d a d e no c a s a m e n t o , e s s e s foram intensificadas e popularizadas na década passada. Os
i n s t r u m e n t o s f o r t a l e c e m os v a l o r e s f a m i l i a r e s c r i s t ã o s tipos de coisas que agora são enquadradas como proteções à
p a r a s u p l a n t a r a autonomia r e p r o d u t i v a l e g a l m e n t e a s s e - liberdade individual incluem: o direito de agências de adoção
g u r a d a , junto c o m i g u a l d a d e no c a s a m e n t o , e p r o t e ç õ e s e de empresas de impressão em camisetas de discriminar
p a r a p e s s o a s de gênero n ã o normativo.«® O a l c a n c e e x p a n -
pessoas LGBT, O direito de "centros de crise da gravidez" de
dido da liberdade religiosa permite a rejeição da igualdade
mentir sobre o aborto e a contracepção, o direito de legis-
e a r e s t a u r a ç ã o de s u p r e m a c i a s e a b j e ç õ e s r e i t e r a d a s p e l a
laturas de realizar sessões de oração cristãs, o direito de
m o r a l i d a d e tradicional.
professores e estudantes cristãos de evangelizar dentro
da sala de aula, e o direito de um professor universitário de
A r e v o g a ç ã o d a E m e n d a J o h n s o n de 1 9 5 4 , q u e p r o í b e a referir-se aos estudantes pelos pronome de escolha dele, e
p a r t i c i p a ç ã o d i r e t a ou i n d i r e t a de i g r e j a s e e n t i d a d e s não del@s.
s e m fins l u c r a t i v o s e m c a m p a n h a s p o l í t i c a s , é u m a d a s
A contestação da igualdade e da lei antidiscriminação
m a i o r e s p r o m e s s a s de T r u m p p a r a s u a b a s e e v a n g é l i c a . ™
como proteções ã liberdade individual é a estratégia aper-
A r e v o g a ç ã o a m p l i f i c a r i a o já c o n s i d e r á v e l p o d e r político
feiçoada de modo brilhante pela Alliance Defending Freedom
d a s m a i o r e s e m a i s r i c a s igrejas, conferindo-lhes u m a v o z
[Aliança em Defesa da Liberdade], o braço mais poderoso da
política t a n t o no púlpito q u a n t o no p a l á c i o do g o v e r n o . "
cristandade evangélica nos Estados Unidos (a ADF Interna-
A r e v o g a ç ã o s e r i a p a r a a c r i s t a n d a d e n a política o q u e o
tional leva a causa para outros países e outras cortes, nacio-
nais e transnacionais)." A aliança dedica-se a questionar os
69 Tim Wu, "The First Amendment as Loser's Revenge". limites enfrentados por cristãos para exercer sua fé de modo
70 E m m a Green, " T r u m p W a n t s to M a k e C h u r c h e s the N e w
Super PACs".
72 Cf. ADF International, "Advocacy" e Alliance Defending Free-
71 John Daniel Davidson, "It's Time to Repeal the Johnson Amend-
dom, "ADF Intl Defends Right to Life of Unborn Before Euro-
ment and Let Pastors Talk Politics".
pean Court".
H7

expansivo e público. Seu trabalho inclui contestar proibições crenças e vozes cristãs são oprimidas pelas agendas LGBT e
de exposição de crucifixos ou a educação sexual obrigatória de direitos reprodutivos, a ADF também registrou um dos-
em escolas públicas; lutar contra o aborto legal; acima de siê em defesa do segundo banimento muçulmano de Trump,
tudo, rechaçar as proteções daquilo que os conservadores cujos críticos legais ela acusou de "vasculhar inapropriada-
chamam de "leis S O G I " " - proteções contra discriminação mente os tweets de um agente do governo"." Além disso, os
baseada na orientação sexual e na identidade de gênero.''^ esforços da ADF para desmantelar a lei do aborto e as prote-
I^^escrita por seu fundador como o "exército legal cristão" e ções aos transgêneros, para combater o casamento homosse-
apoiada por contribuições privadas de mais de 50 milhões de xual e para permitir a prece e a iconografia cristã em escolas
dólares anualmente, a ADF treinou milhares de advogados e e câmaras municipais deixam claro que há mais em jogo do
legisladores, juízes, promotores, professores e procuradores- que permitir que confeiteiros, farmacêuticos, professores e
-gerais. Ela é a fonte da mais recente legislação de liberdade ativistas antiaborto sigam sua consciência.'« A g s t r a t é g ^ e
religiosa em níveis estatal e federal, e seus advogados apa- longo prazo da ADF é frekristianizar a cultura por meio de
recem frequentemente diante da Suprema Corte e da Corte
A t e s t a ç õ e s de aparatos p o l í ^ o s ^ e g a i s com^romptiflns
Europeia de Direitos Humanos."
com o senul^"T-is:TTin. n ieiialitaric;mn"p a ijiclusão. Conforme
Tanto a retórica legal quanto a retórica popular da ADF declara uma página da internet da ADF: "Sua fé não é privada,
denunciam um Estado que se excede e cujos mandados e ela é mais do que o local em que você louva aos domingos.
ameaçam as hberdades dos cristãos na vida pública e comer- Ela é quem você é, e ela influencia o modo como você vive
cial. Assim, embora os casos domésticos da ADF invoquem todos os dias da semana. Mas hoje, há uma série de esforços
a liberdade religiosa ou a liberdade de expressão de modo para retirar a influência moral da religião na sociedade por
genérico, a A D F não é nenhuma A C L U : ' ® a liberdade não é meio de sua censura na praça pública. As pessoas de fé são
senão o manto sob o qual ela se empenha no fortalecimen- cada vez mais ameaçadas, punidas e silenciadas simples-
to social e político da cristandade. Enquanto insiste que as mente por viverem de acordo com suas crenças".'®
Outra página no site retrata uma agressiva guerra secu-
73 S i g l a em i n g l ê s f o r m a d a pela p r i m e i r a letra das s e g u i n t e s lar aos fundamentos cristãos que ahcerça o sistema legal
p a l a v r a s : "Sexual Orientation and Gender Identity", isto é, dos Estados Unidos:
"Orientação S e x u a l e Identidade de Gênero", [N.T.]
74 Cf. ADF International, " A d v o c a c y " . A princípio, a ADF apoia Os P a i s F u n d a d o r e s r e c o n h e c e r a m q u e t o d a s a s p e s s o a s t ê m
todas as f o r m a s de liberdade religiosa. Na verdade, ela assu- d i r e i t o s i n a l i e n á v e i s q u e fluem do C r i a d o r . E s t e s d i r e i t o s
miu pouquíssimos c a s o s n ã o cristãos e apoiou veementemen- e s t ã o f u n d a d o s no conceito judaico-cristão ú n i c o da digni-
te ambos os "Banimentos M u ç u l m a n o s " do presidente Trump.
d a d e i n e r e n t e ao h o m e m c o m o u m a c r i a t u r a f e i t a à i m a g e m
75 Cf A l l i a n c e Defending F r e e d o m , https://adflegal.org. Cf tb.
S a r a h Posner, " T h e Christian L e g a l A r m y Behind 'Masterpie-
ce Cakeshop'". 77 S a r a h Posner, " T h e Christian L e g a l A r m y Behind 'Masterpie-
76 A União A m e r i c a n a p e l a s L i b e r d a d e s Civis é u m a ONG esta- ce Cakeshop'".
dunidense garantista e liberal f u n d a d a em 1 9 2 0 , sediada em 78 A l l i a n c e Defending Freedom, "Religious Freedom: Our F i r s t
N o v a York e que atua na p r o t e ç ã o das liberdades e direitos
Freedom".
a s s e g u r a d o s pela Constituição dos EUA. [N.T.]
79 Loc. cit.
13

de Deus, dotada de razão, livre arbítrio e de u m a alma eterna frequentemente com líderes da ADF, e o vice-presidente Pence
[...] N a medida em que f o r ç a s s e c u l a r e s d e s b a s t a m as raízes
e diversos outros membros passados e atuais do gabinete
j u d a i c o - c r i s t ã s de n o s s a nação, a liberdade religiosa é cada
gozam de ligações íntimas com a organização. A Ministra da
vez m a i s a m e a ç a d a . A A l i a n ç a em D e f e s a da L i b e r d a d e [...]
Educação Betsy DeVos é uma importante doadora. A influên-
se opõe a todas as tentativas de c o a g i r as p e s s o a s a abrirem
cia da ADF está em todos os lugares nas nomeações judiciais
m ã o de s u a s c r e n ç a s ou a se r e t i r a r e m da vida civil e política
da administração e é quem dá as cartas no desenvolvimento
como preço a p a g a r por s e g u i r e m sua fé.»°
de sua legislação favorável aos cristãos. Em julho de 2018, o
então procurador-geral Jeff Sessions anunciou o lançamen-
O Programa Blackstone de Bolsas Jurídicas da ADF, por
to de uma "força tarefa de liberdade religiosa" com estas
meio do qual ela desenvolve novos quadros de advogados
palavras:
em faculdades de direito, também descreve o processo de
inculcar em seus membros uma jurisprudência que visa a U m m o v i m e n t o p e r i g o s o , n ã o d e t e c t a d o por muitos, e s t á
cristianização da cultura, e não simplesmente a proteção contestando e erodindo n o s s a g r a n d e t r a d i ç ã o de liberdade
dos direitos de indivíduos. A ADF descreve o programa como rehgiosa. [...] E s t a não é u m a questão menor. Ele deve ser con-
o oferecimento do "treinamento de melhor nível na visão frontado e derrotado. [...] C h e g a m o s ao ponto em que n o s s a s
de mundo e na lei constitucional cristãs para ajudar a rom- cortes s u s t e n t a m que a morahdade não pode ser b a s e para a
per a camisa de força que a ACLU e seus aliados puseram lei; em que pastores têm medo de afirmar, como eles a enten-
nas faculdades de direito e no sistema judiciário de nossa dem, a escritura s a g r a d a no púlpito; e em que u m grupo pode'
naçao"." Os bolsistas do programa Blackstone têm de aderir alvejar a t i v a m e n t e g r u p o s religiosos ao classificá-los como
a "Declaração de Fé e de Princípios Guia" da ADF, que inclui a "grupos de ódio" com b a s e em s u a s c r e n ç a s religiosas s u s t e n
afirmaçao do Deus cristão como o único Deus e a rejeição ao t a d a s de modo sincero."*
casamento transgênero e homossexual e aos direitos rela-
cionados ao aborto." De acordo com o testemunho de um
A maioria da Suprema Corte frequentemente corrobora as
^bolsista, o programa emprega a "Verdade de Cristo" para
formulações legais da ADF, especialmente seu uso da Primei-
"recuperar o Estado de direito na América"."
ra Emenda tanto como um meio para expandir o poder da
Os compromissos e estratégias da Aliança em Defe- moralidade tradicional quanto para repelir a lei democrática.
sa da Liberdade têm sido recebidos calorosamente pela Acima de tudo, conforme veremos no capítulo 4, ela corrobo-
administração de Trump. O próprio presidente aparece rou a conversão estratégica feita pela ADF da liberdade reli-
giosa de um direito privado para uma liberdade pública, mol-
80 Loc. cit. dando-a como uma força pública e também permitindo sua
extensão aos negócios (pequenos e grandes) e municípios.
81 Sarah Posner, "The Christian Legal Army Behind 'Masterpie-
ce Cakeshop'".

82 Alliance Defending Freedom, "Statement of Faith: Alliance


Defending Freedom".
84 us Department of Justice, "Attorney General Sessions Deli-
83 Sarah Posner. "The Christian Legal A r m y Behind 'Masterpie- vers Remarks at the Department of Justice's Religious Liberty
ce Cakeshop'".
Summit".
140 MJ

/ Os direitos são a ponta de lança com a qual os compro- ^ Na medida em que os direitos se tornam um veículo cru- \
missos democráticos com a igualdade, a civilidade e a inclu- ciai da expansão da moralidade cristã conservadora na esfe- I
são são contestados nas batalhas legais neoliberais. Mas ra pública, essa moralidade é dissociada da tradição e, por- í
as forças por trás deles, que realizam incursões contra a tanto, desvinculada tanto das raízes orgânicas quanto dos /
sociedade e a democracia, são os valores e reivindicações _efeito's espontâneos que Hayek atribuía á tradição. Ao invés
do mercado, combinados com aqueles do familismo hetero- de códigos de conduta evoluídos e adaptados com os quais
patriarcal cristão. todo um povo se "conforma voluntariamente", a moralida-
Esse uso das liberdades civis consagra um modo espe- de - e não apenas os próprios direitos - é politizada e arma-
cífico de geminar a liberdade individual com a moralidade da. Tal politização altera o significado da "moralidade" e o
tradicional, e não se trata exatamente daquilo que Hayek ou modo de governar a conduta e, ao mesmo tempo, aumenta
os ordoliberais tinham em mente. De fato, é digno de nota sua vulnerabilidade ao contratualismo, que, de uma vez só,
que a "Declaração de Objetivos" da Sociedade Mont Pèlerin significa e incita sua deterioração niilista. Aprofundaremos
denuncie uma sociedade na qual "se permite que os direitos esse tema no capítulo 5.
privados [...] tornem-se uma base do poder predatório". A crí-
tica do modo pelo qual os direitos e "o discurso dos direitos"
estão deslocando a deliberação democrática desenhada à R E C O N F I G U R A N D O A N A Ç Ã O COMO F A M Í L I A
moda "da conversa de mesa doméstica [...] nascida na família E EMPRESA PRIVADA
partilhada e frequentemente na história étnica" também era
o assunto de um importante livro de 1993 de Mary Ann Glen- A privatização econômica neoliberal subverte profundamente
don, hoje uma proeminente membra do conselho da ADF que a democracia. Ela gera e legitima a desigualdade, a exclusão,
aparentemente abandonou sua crítica anterior, que naquele a apropriação privada dos comuns, a plutocracia e um ima-
momento visava principalmente a esquerda.®® ginário democrático profundamente esmaecido.®® A outra
ordem de privatização que estávamos considerando, a pri-
vatização por meio da familiarização e da cristianização rea-
85 Cf. Sociedade Mont Pèlerin, "Statement of Aims". M a r y A n n
lizada pela extensão da "esfera pessoal e protegida", subverte
Glendon, Rights Talk: The Impoverishment of Political Discour-
a democracia por meio de valores morais antidemocráticos,
se. Glendon escreve: "A estridente retórica dos direitos que
domina hoje o discurso político americano mal corresponde à ao invés de valores capitais antidemocráticos.®' O infame
forte tradição de proteção à liberdade individual pela qual os dito de Thatcher de que "não existe tal coisa como a socie-
Estados Unidos são justamente renomados. [...] Ela contribui dade" conclui, afinal: "há apenas indivíduos e suas famílias".
para a erosão dos hábitos, práticas e atitudes de respeito por
outrem que são a garantia definitiva e mais segura dos direi-
tos humanos". E adiciona: "ela está transformando o discurso A n n Glendon, Rights Talk: The Impoverishment of Political Dis-
político americano em uma paródia de si mesmo e questio- course, p. 1 7 1 .
nando a própria noção de que a política pode ser conduzida 86 Este é o assunto de meu livro anterior sobre o neoliberalis-
por meio de discussão e de acordo razoáveis. Pois a nova retó-
mo e a democracia, Undoing the Demos: Neoliberalism's Stealth
rica dos direitos tem menos a ver com dignidade e liberdade
Revolution.
h u m a n a s do que com desejos insistentes e infinitos". M a r y
87 Mehnda Cooper, Family Values.
A formalização deste aspecto da promulgação trava uma lado de fora, mas porque eles amam as do lado de dentro".»»
campanha familiar, e não mercantil, contra os princípios e 'Longe de algo público e democrático, a nação é concebida'
instituições democráticos. Transforma exclusão, patriarca- como propriedade privada e familiar, e o presidente é o pater
lismo, tradição, nepotismo e cristandade em legítimas amea- famílias. Consideremos também a campanha de Marine Le
ças à inclusão, à autonomia, aos direitos iguais, aos limites Pen "A França para os franceses" de 2017, na qual ela tam-
aos conflitos de interesse e ao secularismo. Embora ambos bém combinou perfeitamente as linguagens econômicas e
os tipos de privatização ocorram sob a rubrica neoliberaí de familiares para descrever a nação: "Nós somos os donos de
expansão da liberdade contra os ditames do Estado por jus- nosso país", declarou ela em comícios no leste da França, e
tiça social ou distribuição pelo mercado, o segundo é espe- "nós devemos ter as chaves para abrir a casa da França, para
_cialmente importante hoje na geração psíquica e política deixar sua porta entreaberta", ou "para fechá-la". "É nossa
da formação de uma cultura política liberal autoritária. As casa", as multidões entoaram de volta.»" Como um de seus
coordenadas da religião e da família - hierarquia, exclusão, apoiadores explicou, "ela não é contra os imigrantes, ape-
homogeneidade, fé, lealdade e autoridade - ganham legiti- nas está assegurando a justiça... é como quando a geladeira
midade como valores públicos e moldam a cultura pública está cheia e nós damos aos próximos, mas quando a gela-
conforme se juntam ao mercado para deslocar a democra- deira está vazia nós damos às nossas crianças. A geladeira
- ^ i a . Quando esse modelo duplo de privatização se estende da França está vazia". Outro apoiador que se autointitulou
à própria nação, a nação é traduzida alternadamente como "moderado", um prefeito de uma pequena cidade, inquiriu
um negócio competitivo que precisa fazer melhores acordos sobre os "jovens e bem-vestidos imigrantes" em sua cidade:
e como uma casa inadequadamente protegida, sitiada por "o que eles estão fazendo chez moi [em minha casa]?"»'
estrangeiros que não pertencem ao lugar ou que são mal-in-
Quando a nação é privatizada e familiarizada deste modo,
tencionados. O nacionalismo de direita oscila entre ambos.
ela se torna legitimamente iliberal quanto a insiders aversi-
Consideremos os discursos da campanha de Trump sobre o
vos e outsiders invasivos; assim, o neoliberalismo planta as
histórico americano de maus acordos internacionais a res-
sementes de um nacionalismo que ele formalmente abjura.
peito de tudo, do comércio à OTAN, do Irã aos tratados climáti-
Também se ramificam o estatismo, o policiamento e o auto-
cos, e sua imagem dos EUA como um país dilacerado por suas
ritarismo, uma vez que muros e proteções de todo tipo são
fronteiras inseguras, e sua promessa de construir um muro
autorizados e exigidos por essa privatização. Muros e por-
fronteiriço no Sul com "uma porta magnífica, grandiosa e
tões de casas, é claro, são os símbolos visuais mais fortes
linda" pela qual os ingressantes legais poderiam visitar ou
que demarcam o privado do público, o protegido do aberto,
juntar-se a "nossa família".»» Posteriormente, ele faria uma
o familiar do estranho, a propriedade do comum. Ao mesmo
analogia de seu muro proposto na fronteira com os "muros,
tempo, à medida que o domínio do privado se expande, ele
cercas e portões" que os políticos abastados constroem em'
torno de suas casas, "não porque eles odeiam as pessoas do
89 "Full Transcripts: Trump's Speech on Immigration and the
Democratic Response".
90 Lauren Collins, "Letter from France: Can the Center Hold?
88 Kevin Johnson, "Trumps 'Big Beautiful Door' is a Big, Beauti- Notes from a Free-for-All Election?", p. 26.
ful Step in the Right Direction".
91 Ibid., p. 24.
5 127

exige cada vez mais proteção estatal por meio da lei, de discursos e instrumentos libertários." Ao invés de reprodu-
forças de segurança públicas e privadas, de patrulhas de zir a civilização, de assegurar laços sociais e de governar a
fronteira, da polícia e dos militares. Desse modo, o Estado conduta de modo orgânico, os valores tradicionais tornam-
securitário cresce junto com a privatização e é legitimado -se gritos de guerra contra elites laicas, igualitários, secula-
por ela. De modo similar, apelos nacionalistas para se dei- ristas e muçulmanos. Assim como as insígnias usadas poi'
xar os refugiados do lado de fora do muro e para expulsar líderes políticos, religiosos e corporativos são frequentemen-
imigrantes recorrem à figura da nação como um lar amea- te flagradas em comportamentos que as violam, os valores
çado em que os princípios de justiça democrática e direi- tradicionais são reduzidos a uma marca corporativa e polí-
tos humanos não têm pertinência alguma. A expansão da tica, ponto no qual sua ablação niilista está quase completa.
"esferapessoaLprotegid^" em nome da liberdade, então, não Desenraizados da tradição, os valores tradicionais são
apenas assegura poderes desigualitários de classe. P^npr,^ esvaziados de sua função integradora. Politizados como
sexualidade e raça; ela gera uma imago e um ethos da nação "liberdades", eles^erdem aquilo que Hayek afirmava ser sua
que rejeitam uma ordem púbhca. pluraL^niila_r e democrá- coibição não coercitiva sobre a liberdade, para além de limij
tica em nome de uma oraem píTvada, homogênea e familiar.»" tar as práticas às quais se opõem. Armados como prerroga-
Aquela á caracterizada por comprSmissos com uma abertura tivas individuais e corporativas contra as leis de igualdade
modesta, diversidade, igualdade social e política e o Estado e antidiscriminação, eles se tornam um meio para atacar e
de direito. Esta, especialmente em sua forma tradicional, á sabotar os laços e a integração social, ao invés de fomentá-
murada, homogênea, unificada, hierárquica e autoritária! -los. Aordem espontânea e a aceitação comum das regras de
Conforme vimos, entretanto, o jogo do mercado e da conduta, por meio das au_ms Hayek afirmava que a tradição
moralidade no neoliberalismo realmente existente á deveras é livre^üãcUêm qualq^uer relação com a luta por valores tra-
diferente daquilo que Hayek imaginou. Estados dominados dicionais contra os valores democráticos. Ao contrário, as
pelas finanças e por indústrias poderosas que buscam legis- estratégias vencedoras para repelir políticas de igualitaris-
lação e ação estatal em prol de seus interesses afastam-se mo, diversidade e pluralismo recorrem a liberdades indivi-
radicalmente do objetivo neoliberal de instituições políticas duais e corporativas asseguradas pelo estatismo, e não por
isoladas de interesses ao mesmo tempo que promovem a uma ordem espontânea nem por normas comumente aceitas.
competição e estabilizam (ou, no caso dos ordoliberais, con- Com sua melancolia lesada por um passado fantasmático
duzem] o capitalismo. Os valores tradicionais, ao invés de e seu supremacismo agressivo, elas se rebelam contra a
integrar a vida social e ordenar a conduta de modo espontâ- ordem, ao invés de reproduzi-la.
neo, são politizados, transformados em tática e comerciali- Hoje, uma_distorcão da governamentalidade haye-
zados. A moralidade, nesta forma, causa um curto-circuito
kiana vem, então, da (de]formação pela batalha e pelo seu
na tradição e, ademais, é desatrelada da autoridade natural
que Hayek imaginava para ela com seu avanço por meio de
93 A força da tradição, lembra-nos Hayek, depende das " r e g r a s ' ^
e convenções não planejadas, cujo significado e importância
nós largamente não compreendemos", baseadas na "reverên-
92 Há certa ironia nisto como uma sequência do "Estado babá" cia pela tradição". Friedrich Hayek, "Freedom, Reason and
detestado pelos neoliberais. Tradition", The Constitution of Liberty, p. 236.
164 147".5

quanto ao uso da autoridade do Estado e da igreja para for-


enquadramento pelo discurso dos direitos e pluralismo
çar a obediência e assegurar a ordem. HaypV hn<=pnn nnnci-
dos valores. O pensamento de Hayek era intrinsecamente
liar liberdade e a u t o r i d ^ p o l í t i c a e famili«^ "«n . . a n r i f i -
vulnerável nessa questão. Sua fórmula para a transição
c a r ^ ^ í i ã í i ^ ^ í í i ^ ^ d e s t a . Seu próprio distanciamento do
da democracia social a uma ordem neoliberal era carac-
conservadorismo é relevante aqui. Os conservadores, argu-
terizada por um autoritarismo político, o que dificilmente
menta ele em "Por que não sou conservador", importam-se
poderia reconstruir o leito da tradição — organicismo, evo-
com a liberdade apenas de modo seletivo e são apoiadores
lução, espontaneidade, liberdade — mesmo se promovesse
solícitos do poder estatal quando este é empregado a seu
princípios tradicionais. De fato, aprendemos com Weber que
favor: "o conservador não se opõe ã coerção ou ao poder
a racionalidade instrumental não pode se misturar com a
arbitrário, contanto que sejam usados para aquilo que ele
racionalidade tradicional sem destruí-la - esse é o signi-
considera serem os propósitos corretos".®^ Os conservadores,
ficado do processo que Weber chama de "racionalização".®^

1
desse modo, compartilham com a esquerda duas coisas que
Com Dostoiévski, aprendemos que a fé não pode ser politiza-
Hayek considera consumadamente perigosas: a confiança de
da sem inverter-se no seu oposto - imposição e violência.®®
que eles sabem o que é bom para a sociedade e a disposição
Colocado de outro modo, trazer "de volta" a tradição é um
de empregar poder político para impô-lo. Esse tipo de con-
oximoro. Mesmo no entendimento de Hayek, o que resta da
servadorismo, especialmente hostil na direita religiosa hoje,
^ ^ "tradição" após a social democracia ter feito o que quis dela
não forma somente a autoridade do Estado endossada pelos
.1, por meio século? Como pode uma igreja evangélica inten-
neoliberais, mas também sua expansão e alcance estendido,
y sãmente politizada, repleta de ambições contratuais, capi-
^^ talistas e vingativas recuperar o que Hayek valorizava em algo que eles temiam.
modo orgânico, evolutivo e tacitamente aceito de ligar terceira distorção da formulação de Hayek da
comunidades e conduta? Assim, de um modo importante, a moralidade tradicional no neoliberalismo realmente existen-
utopia de Hayek colapsa no banco de areia do político e do te. Ela se refere à imbricação da moralidade com as energias
''^''ya social que ela visa derrotar tanto na teoria quanto na prática. reativas advindas das feridas e dos deslocamentos do homem
Ela não podia "governar" sem ser deformada pelos poderes branco, sua função como uma réplica àqueles que ele julga
que buscava combater e também foi requisitada a exercer o serem r e s p o n s á v e i s por suas feridas. Na medida em que cos-
I poder. William Callison chama isso de um "déficit político" mopolitas urbanos advogam o feminismo, as sexualidades
la racionalidade neoliberal.®® não normativas, famílias não tradicionais, secularismo, as
Uma segunda^djgtorção de Hayek nas mobilizações artes e a educação, interioranos brancos aflitos rugem rea-
contemporâneas^Tmorãlidade tradicional refere-se à sua tivamente contra o aborto, o casamento homossexual, o Islã
adoção hoje por pessoas para quem a liberdade não é um os "ataques aos brancos", o ateísmo e o intelectualismo. Não\\
princípio ou desejo central, pessoas que seriam sanguíneas se trata aqui da "tradição" ou sequer da moralidade, mas sim IV
de ódio de um mundo percebido como aquele que deseja o/^J
94 Max Weber, Economy and Society, v. 2, pp. 1 1 1 6 - 1 7 . fim do seu.
95 Fiodor Dostoiévski, The Brothers Karamazov.
97 Friedrich Hayek, "Why I A m Not a Conservative", in: The Cons-
96 William Callison, "Political Deficits: The Dawn ofNeoliberal
Rationality and the Eclipse of Critical Theory". titution of Liberty, p. 523-
148 ÇX CVHQ 149 / /
Hayek diz que a tradição fornece uma "ordem sem nacionalistas brancos da alt-right, tal qual os Proud Boys e
comandos" na forma de autoridade, fiierarquia e regras Identity Evropa,'"^ mobilizam explicitamente os valores fami-
de conduta."» Essa abstração, ao ser concretizada, é um
liares cristãos e a subordinação das mulheres em nome da
lembrete de que a tradição carrega consigo as ordenações
guerra contra o "genocídio branco" (a mistura de raças que
e estratificações geradas pelas relações de propriedade,
dilui a raça branca). Eles também expressam orgulho por
parentesco, casta, raça, gênero, sexualidade e idade. Inde-
aquilo que identificam como o supremacismo branco dos
pendentemente de qualquer outra coisa que ela forneça e
Pais Fundadores da América donos de escravos.
promulgue, a família "tradicional" assegura a supremacia
E ainda assim, o coquetel formado pela liberdade desi-
branca, a heteronormatividade e as lealdades étnico-raciais
nibida, pois desenraizada, e pela tradição politizada incita
seguras. Nos Estados Unidos, a "tradição" sulista carrega os
um niilismo contra o qual a tradição supostamente imuni-
legados da escravidão e da era Jim Crow,"" mesmo que ela
za. A formulação de Hayek, no fim das contas, era de uma
possa também carregar modos de decoro e hospitalidade.
liberdade coibida pela tradição, e não instrumentalizada
"Tradições" de cidades pequenas geralmente são construídas
como um cão de caça sem coleira ã espera do comando. Tal-
em torno de uma homogeneidade étnica, racial e religiosa,
vez ninguém tenha exemplificado melhor a deformação da
se não de exclusões explícitas."" Quando campanhas por'
valores tradicionais são alimentadas pelo rancor da ameaça arquitetura neoliberal da tradição, do mercado e da moral do
ou da perda, essas características tendem a ser realçadas e que o provocador de direita Milo Yiannopoulos. Ascendendo
politizadas, ligando-se ã fidelidade em relação ã nação ou efemeramente ao sucesso comercial por meio da sujeição de
civilização."' Isto é mais evidente nos extremos: grupos todo grupo social subordinado e de toda causa progressis-
ta a viciosos insultos supremacistas, Milo também talhou
uma persona queer extravagante, bacante, perturbadora da
98 Id., "Law C o m m a n d s and Order", The Constitution of Liberty,
vida pública e livre para dizer qualquer coisa desqualificada
pp. 2 2 8 - 2 9 .
99 A s leis Jim C r o w foram um conjunto de n o r m a s que vigorou
sobre qualquer um e em qualquer lugar. Alegando que só se
até 1 9 6 5 e institucionalizou a s e g r e g a ç ã o racial nos estados importaria com tal liberdade, se é que se importa com algu-
do S u l dos EUA. E n t r e o u t r a s m e d i d a s , ele d e c r e t a v a , p o r ma coisa, e convidando seus seguidores a serem igualmente
exemplo, a existência de escolas e meios de t r a n s p o r t e públi- irreverentes e irresponsáveis, esse tipo composto expres-
cos s e g r e g a d o s p a r a b r a n c o s e negros, [N.T.] sou perfeitamente a vontade crua de potência revelada nos
100 A r e a ç ã o da direita c o n t r a a "ideologia de gênero" ao redor valores tradicionais desvinculados da tradição e jogados na
do m u n d o s u b l i n h a o modo pelo qual a t r a d i ç ã o j u s t i f i c a a
lavagem a ácido de um niilismo que dissolve os vínculos e
h i e r a r q u i a de g ê n e r o hoje. Por o u t r o lado, o m o v i m e n t o
significados sociais.
#MeToo revela a arrogação sexual rotineira das mulheres
pelos homens como "tradicional" de Hollyw^ood a Wall Street,
Isto nos leva diretamente ã questão do niilismo, do fata-
de W a s h i n g t o n , DC, ao V a l e do Silício. A d e s c u l p a dada por' lismo e do ressentimento, o assunto do capítulo 5. Primeiro,
T r u m p p a r a s u a infame " a g a r r a ç ã o de bucetas" como "conver-
s a de vestiário" explora um discurso sobre o que os homens
Cf David N e i w e r t , Alt-America: The Rise of the Radical Right in
tradicionais fazem e as mulheres tradicionais aceitam.
the Age of Trump.
101 No limite, e s s e s v a l o r e s s ã o aduzidos p a r a u m a política de
102 A m b a s s ã o o r g a n i z a ç õ e s neonazistas, m i s ó g i n a s e suprema-
pureza étnica para a qual o controle das mulheres é essencial.
cistas b r a n c a s criadas por volta de 2 0 1 6 nos EUA. [N.T.]
entretanto, precisamos examinar mais de perto como a
linguagem dos mercados e da moral foi modelada em uma
jurisprudência antidemocrática pela Suprema Corte dos EUA

L I B E R D A D E R E L I G I O S A E L I B E R D A D E DE

E X P R E S S Ã O NA JURISPRUDÊNCIA NEOLIBERAL

[Não] se [pode] permitir que os direitos privados se tornem a


base de um poder predatório.^

O fato de que a Primeira Emenda^ da Constituição dos Esta-


dos Unidos foi, por boa parte do século xx, um escudo contra
a censura e a repressão estatal, social e corporativa é um
lugar comum. Ela foi especialmente importante na proteção
da expressão de minorias vulneráveis e dissidentes políticos,
mas também das organizações trabalhistas, da imprensa, de
apresentadores de TV, ateus e outros que se opunham às

E s t a e p í g r a f e c o n s t a em "Statement of A i m s " da Sociedade


Mont Pèlerin.
O texto da Primeira E m e n d a foi adotado nos EUA em l y g i e,
grosso modo, impossibilita o C o n g r e s s o e s t a d u n i d e n s e de
i n f r i n g i r seis direitos f u n d a m e n t a i s , a saber, e s t a b e l e c e r
religião oficial ou dar preferência a certa religião; proibir o
livre exercício religioso; limitar a liberdade de e x p r e s s ã o e
de imprensa; limitar o direito de associação pacífica; limitar
o direito de requerer do Estado reparação a agravos, [N.T.]
152

normas hegemônicas e ao poder concentrado. Então veio a Defensores da Família e da Vida contra Becerra], "a aborda-
revolução neoliberaí e, com ela, a jurisprudência neoliberaí - gem majoritária" de proteger a livre expressão neste caso
uma moldura para interpretar a Primeira Emenda a favor de "ameaça [...] a validade constitucional de boa parte, talvez da
ampla desregulamentação, especialmente para os interesses maioria, da regulação governamentaF?
corporativos e religiosos. Nas décadas recentes, a Primeira
Muitos estudiosos da Constituição escreveram a respeito
jEmenda tem sido empunhada para intensificar os poderes
da mobilização da Primeira Emenda pelos negócios e pela
econômicos, sociais e políticos do capital, da propriedade, da
direita religiosa nas décadas recentes." A maioria concen-
I cristandade e da moralidade tradicional. As corporações e
trou-se nos efeitos desregulatórios da nova jurisprudência
os conservadores cristãos e seus aliados na Suprema Corte
da Primeira Emenda e suas aplicações. Entretanto, há mais
empregaram-na para isentar os negócios de qualquer forma
em jogo no sentido e no alcance expandidos das liberda-
de regulação e para reforçar as normas sexuais e de gênero
des da Primeira Emenda hoje do que a desregulação, o que
tradicionais contra as coações impostas por leis a favor da
mostra por que é tão importante focar no modo como o livre
igualdade e antidiscriminação. O direito de expressão é o
exercício [religioso] e a livre expressão operam conjunta-
instrumento principal aqui, mas a liberdade de consciência
mente. Pareados, eles têm sido mobilizados para contestar
("livre exercício [religioso]"} é um complemento frequente,
o significado dos poderes sociais nas democracias e para
íntimo e, por vezes, necessário. Seu entrelaçamento explíci-
reforçara moralidade todicional contra mandatos de igual-
to ou implícito e sua incorporação a um discurso de merca-
dade - os temas dos três capítulos precedentes. Longe de
dos desregulados constituem uma nova força político-legal,
assegurar e proteger o dissenso político, a consciência e as
que é o foco deste capítulo.
crenças privadas diversas, e as esferas estatais, públicas e
A nova jurisprudência da Primeira Emenda rechaça comerciais neutras, a nova jurisprudência mobiliza as liber-
as leis de igualdade e antidiscriminação na educação, no dades religiosa e de expressão para permitir a (re)cristiani-
emprego, na seguridade social e no comércio; rechaça tam- zação da esfera pública.®
bém o secularismo nas esferas comercial e pública; os limi-
tes de financiamento de campanha e a transparência na polí-
tica; a verdade na publicidade; a saúde pública e a regulação 3 National Institute of Family Life Advocates v. Becerra, p. 2380.

de segurança; e as escolhas informadas e direitos do consu- 4 Cf Adam Liptak, "How Conservatives Weaponized the First
Amendment"; Tim Wu, "The Right to Evade Regulation"; id., "Is
midor. A proteção da expressão e da consciência religiosa
the First Amendment Obsolete?"; John Coates IV, "Corporate
de indivíduos, grupos, entidades sem fins lucrativos, peque-
Speech and the First Amendment: History, Data and Implica-
nos negócios e grandes corporações tornou qualquer tipo tions"; Tamara Piety, Brandishing the First Amendment- Adam
de provimento de igualdade decretado democraticamente Winkler, We the Corporations; Nelson Tebbe, Religious Freedom
vulnerável à anulação ou solapamento por meio de isenções in an Egalitarian Age; e Jim Sleeper; "First Amendment's Sli-
individuais. As sentenças da Suprema Corte que confirmam ppery Slope: Why Are Civil Liberties Advocates Joining Forces
essa tendência tornam-se cada vez mais expansivas e arro- with the Right?"

jadas. Conforme escreveu o juiz Stephen Breyer em seu voto 5 Para alguns, a mobilização da liberdade religiosa e de expres-
são para entronar a cristandade é uma ironia histórica - ou
divergente da sentença de 2018 do caso "National Institute of
regressão. Para outros, é uma prova do que o secularismo his-
Family and Life Advocates v. Becerra" [Instituto Nacional dos
Í tórico sempre foi - um modo de assegurar a hegemonia cristã
A liberdade de expressão, interpretada de modo amplia- ro aos bolos, à publicidade, a notificações judiciais, e tudo o ^
do e aplicada a muitos tipos de entidades e variedades de mais; designar corporações, pequenos negócios e organiza-
"expressão", rechaça os mandatos democráticos que orga- ções sem fins lucrativos como entidades que "se expressam";
nizam legitimamente a vida comercial, pública e social. designar atos, práticas e leis específicos como "controversos"
O livre exercício interpretado de modo ampliado e aplicado para aqueles com "crenças profundas". Juntas, essas designa-
a muitos tipos de entidades e suas relações, abre as portas ções permitem burlar leis que alegadamente põem em risco
para práticas baseadas na religião que organizam legitima- o livre exercício [religioso] ou tolhem a expressão. Combina-
mente a vida comercial, pública e social. Conectados, como das com a inclinação da Corte a expandir os privilégios da
nos casos que estou prestes a discutir, eles dão vida a um propriedade e a conceder direitos civis a associações e cor-
novo poder que nasce para contestar a democracia. Logo, porações, o efeito é reforçar o capital e restringir o trabalho,
ao sustentar uma corrente de contestações da Primeira reforçar fanáticos religiosos [religionísts], restringir o secula-
Emenda às leis de igualdade, de mercados regulados, e de rismo e ameaçar meio século de legislação e adjudicação con-
secularismo, a Suprema Corte está ajudando a estabelecer cebidas para retificar a subordinação ou a marginalização J
uma versão distorcida do sonho de Hayek - substituindo a histórica de mulheres e de minorias raciais e sexuais. Além
sociedade governada democraticamente por uma sociedade
disso, um agrupamento diferente daqueles ostensivamente
«organizada pelos mercados e pela moralidade tradicional,
relegados ao ostracismo ou vitimizados assume o lugar des-
sob o signo da liberdade.
ses grupos sob os holofotes da proteção ou da compensação
As técnicas dessa subctitninão envolvem três importan- legais: negócios e tradicionalistas morais e religiosos.'
tes designações: designar tudo como " e x p r ê s ^ " ® , do dinhei- Nessa jurisprudência em desenvolvimento, as liberdades
da Primeira Emenda são expandidas para além de seu sig-
• . - ao mesmo tempo em que a repudiava. Cf. Saba Mahmood, Poli- nificado civil clássico e até mesmo além de um significado
^ ^ tics of Piety: The Islamic Revival and the Feminist Subject; Talal
de mercado. Elas são investidas de uma ofensiva neolibe-
A s a d , Formations of Secularism: Christianity, Islam, Modernity;
ral abrangente, rechaçando o Estado regulatório e social
W i n n i f r e d Fallers Sullivan et al.. Politics of Religious Freedom;
C h a r l e s Taylor, A Secular Age; M i c h a e l W a r n e r , J o n a t h a n presunçoso que impõe esquemas de justiça nas esferas em
J^y V a n A n t w e r p e n e Craig Calhoun, Varieties of Secularism in a que as ordens espontâneas geradas pelo mercado e pela
Secular Age; e Talal A s a d et al., Is Critique Secular? Blasphemy, moral deveriam prevalecer. O inimigo designado é o Estado,
Injury, and Free Speech.
O termo em inglês para "livre expressão" é "free speech", que,
Escrevi previamente sobre o apelo ao estatuto de vítima quan-
literalmente, pode ser vertido como "discurso livre" ou "fala
do as corporações e os cristãos fazem e s s a s ofertas. Cf a dis-
livre". B r o w n e n f a t i z a aqui a p e r s o n i f i c a ç ã o neoliberal de
c u s s ã o sobre o retrato das corporações feito pela Corte como
entidades i n a n i m a d a s , como bolos de c a s a m e n t o (presente
vitimizadas pelas proibições a sua participação no discurso
já no título do capituloj ou de c o r p o r a ç õ e s por meio do ato
eleitoral em Undoing the Demos: Neoliberalism's Stealth Revolu-
da fala, u m a c a r a c t e r í s t i c a exclusiva de seres vivos e espe-
tion, capítulo 5, e a discussão sobre a jurisprudência do poder
cialmente humana. Optamos por manter o termo "expressão"
prejudicado na medida em que ele se relaciona com a proprie-
em p o r t u g u ê s pela relação imediata com o direito de "livre
dade de negócios cristãos em " W h e n Persons Become F i r m s
expressão". Porém, deve-se reter que a autora faz alusão cons-
and F i r m s B e c o m e Persons: Neoliberal J u r i s p r u d e n c e and
tante ao ato de fala e pronunciamento, [N.T.]
Evangelical Christianity" in Burwell v. Hobby Lobby Stores Inc.
I s. r<7

f a c i l m e n t e v i l i f i c a d o e m q u a l q u e r i t e r a ç ã o do l i b e r a l i s m o . n e u t r a , n o a s p e c t o d a r e l i g i ã o , e m s u a i n s t r u ç ã o do c a s o . ®
M a s p o r t r á s d e s s a o f e n s i v a e s t á o v e r d a d e i r o i n i m i g o -- No entanto, o caso, a Corte e os p a r e c e r e s legais r e v e l a m
u m projeto democrático inchado que valoriza a igualdade, a a b e r t u r a de u m n o v o front e de u m novo a r s e n a l de juris-
e x p a n d e o p o d e r p o l í t i c o e c o n t r a s t a c o m a s o r d e n s de u m ' prudência na b a t a l h a entre moralidade tradicional e justi-
mundo de m e r c a d o e moral e com s e u s resultados espontâ- ç a s o c i a l . T r a t a - s e d e m u i t o m a i s do q u e u m a b a t a l h a d e
n e o s - logo, c o m s u a l i b e r d a d e . r e t a g u a r d a por parte da direita no rescaldo da legalização
Voltamo-nos agora p a r a duas sentenças recentes da Supre- do c a s a m e n t o h o m o s s e x u a l p e l a C o r t e e m 2 0 1 4 . O p a r e c e r
m a Corte que ilustram as operações dessa jurisprudência. legal de Neil G o r s u c h e de C l a r e n c e T h o m a s , s e g u n d o o
q u a l q u a s e t o d a lei a n t i d i s c r i m i n a ç ã o e m c a s o s e n v o l v e n d o
e m p r e s a s comerciais é tratada como u m c e r c e a m e n t o poten-
BOLOS F A L A M : M A S T E R P I E C E C A K E S H O P cial d a l i v r e e x p r e s s ã o , c o n s t i t u i u m p r e s s á g i o p e c u l i a r .
C O N T R A A C O M I S S Ã O DE D I R E I T O S C I V I S DO N o e n c o n t r o q u e l e v o u a o c a s o . J a c k Phillips, o c o n f e i t e i r o

COLORADO e d o n o d a M a s t e r p i e c e C a k e s h o p , r e c u s o u u m p e d i d o de u m
b o l o f e i t o p o r d o i s h o m e n s do C o l o r a d o p a r a a c e l e b r a ç ã o
A d e s p e i t o dos g r i t o s d e v i t ó r i a d a d i r e i t a c r i s t ã e d o s l a m e n - de s e u c a s a m e n t o . O i n c i d e n t e o c o r r e u e m 2 0 1 2 , a n t e s q u e
t o s d o s a t i v i s t a s LGBT q u a n t o a o r e s u l t a d o do p r o c e s s o "Mas- o caso Obergefell contra Hodges houvesse legalizado o casa-
terpiece Cakeshop V. Colorado Civil Rights Comission" [ C a s a de m e n t o h o m o s s e x u a l n o p a í s inteiro. N o e n t a n t o , o s h o m e n s
B o l o s " O b r a - P r i m a " c o n t r a a C o m i s s ã o de D i r e i t o s C i v i s do haviam se casado em Massachusetts, onde o casamento
Colorado], c o m e n t a r i s t a s e e s t u d i o s o s l e g a i s c o n c o r d a m e m h o m o s s e x u a l era legal, e queriam celebrar com amigos e
larga medida que o caso começou prometendo tempestade, família no Colorado. Depois de Phillips se r e c u s a r a f o r n e c e r
m a s terminou como garoa.® Determinando claramente que
u m de s e u s b o l o s p e r s o n a l i z a d o s p a r a a o c a s i ã o , o c a s a l p r o -
o caso não era u m "veículo apropriado" para adjudicar ques-
t o c o l o u u m a q u e i x a n a C o m i s s ã o de D i r e i t o s C i v i s do C o l o r a -
t õ e s de f u n d o , a C o r t e e m i t i u u m j u í z o r e s t r i t o e f o c a d o n a
do (CDCC), a c u s a n d o P h i l l i p s de v i o l a r o A t o A n t i d i s c r i m i n a -
f a l h a da C o m i s s ã o de Direitos C i v i s do C o l o r a d o e m s e r
ç ã o do Colorado. E n t r e o u t r a s c o i s a s , e s s e A t o p r o t e g e c o n t r a
a discriminação b a s e a d a na orientação sexual exercida por
u m "lugar de negócios envolvido e m v e n d a s p a r a o público

Mark David Hall, "A Missed Opportunity: Masterpiece Cake- e q u a l q u e r l u g a r q u e o f e r e ç a s e r v i ç o s ao público". Phillips,
shop v. Colorado Civil Rights Commission" e German Lopez, entretanto, justificou s u a r e c u s a alegando seu direito à
"Why You Shouldn't Freak Out about the Masterpiece Cake-
shop Ruling". A expressão "not with a bang but a whimper" 9 Lawrence G. Sager e Nelson Tebbe, em um comentário formi-
remete à última linha do poema The hollow men [Os homens dável, recusam a leitura do caso Masterpiece como algo restri-
ocos] de T. S. Eliot, de 1925. to, especialmente na alusão do juiz Kennedy à "possibilidade
Ao pé da letra, ela pode ser traduzida como "não como uma de que a prática do Colorado de proteger casais gays, mas
explosão, mas como um chiado", isto é, refere-se a algum fenô- não aqueles que rejeitam a igualdade de casamento, viola a
meno que inicialmente dá sinais de ser bastante impactante, obrigação de neutralidade religiosa por parte do governo". Cf.
mas que acaba tendo essa expectativa quebrada e termina de Sager e Tebbe, "The Reality Principle" e uma versão menor,
modo banal, [N.T.] "The Supreme Court's Upside-Down Decision in Masterpiece".
158

liberdade religiosa e à livre expressão: sua fé religiosa jul- distintos: ao descrevê-la como desprezível e também ao
gava errado o casamento homossexual, e ser coagido a criar caracterizá-la como meramente retórica - algo insubstan-
um bolo para celebrar um casamento homossexual iria for-
cial e até mesmo insincero"."
çá-lo a usar sua habilidade artística para "se expressar" de
modo contrário a suas crenças. Quando reverteu o veredito da Corte de Recursos do Colo-
rado, a Suprema Corte não solucionou nenhuma das ques-
A CDCC realizou uma investigação, seus resultados foram
tões complexas ou controversas do caso: se a produção de
enviados a um juiz de direito administrativo e a Comissão
bolos de Phillips é uma expressão artística, logo uma con-
concluiu que os direitos civis do casal de fato haviam sido
duta expressiva, logo livre expressão; se um bolo de casa-
violados pela recusa de Phillips. Ela rejeitou o argumento
de Phillips de que a Primeira Emenda lhe permitia recusar- mento é em si um tipo de expressão, e, logo, se ser coagido
-se a "exercer seus talentos artísticos para expressar uma a confeitar um bolo para um evento que se considera peca-
mensagem da qual ele discordava" e rejeitou também sua minoso constitui uma expressão forçada ou uma violação da
alegação de que ser forçado a fazer um bolo para uma cele- liberdade religiosa; se um proprietário é equivalente a um
bração de casamento homossexual violava seu livre exer- negócio ou se e como um proprietário ou um negócio estão
cício religioso. Phillips recorreu, e a Corte de Recursos do atrelados ao significado ou mensagem do produto que eles
Colorado manteve a posição do CDCC. A Suprema Corte fazem ou vendem; se recusar-se a fornecer um bolo para um
do Colorado recusou o caso, mas a Suprema Corte dos EUA casamento gay constitui uma recusa a criar e vender para
o acolheu em 2017. gays ou apenas para seu casamento, isto é, se isso discrimi-
na pessoas ou somente atos - como tentou estabelecer Phil-
Em seu juízo, a Corte se recusou a legislar sobre o argu-
lips com sua oferta de fazer bolos para o casal para outras
mento da livre expressão e nem sequer legislou substancial-
ocasiões. Como lamentam os magistrados Thomas e Gorsuch
mente a respeito da alegação de livre exercício religioso. Ao
em seu parecer legal, ao deliberar somente quanto à falha da
invés disso, ela concluiu que a Comissão de Direitos Civis
comissão de exercer neutralidade estatal no que se refere à
violara o livre exercício de Phillips porque uma transcrição
religião, a Corte não decidiu o caso.
revelou que a comissão falhara em ser imparcial do ponto
Ainda assim, tanto o caso quanto os votos são fontes ricas
de vista religioso em suas audiências e deliberações. Um
para se compreender como a Primeira Emenda está sendo
comissário condenou os modos pelos quais "a liberdade
usada para privilegiar a moralidade tradicional e solapar as
religiosa foi usada para justificar a discriminação ao longo
determinações democráticas de igualdade e justiça na vida
da história", citando a escravidão e o Holocausto, e referiu-
comercial, pública e social. O argumento de que os direitos
-se a essa prática como "um dos mais desprezíveis tipos de
de Jack Phillips garantidos pela Primeira Emenda seriam
retórica que as pessoas podem empregar" para "usar sua
violados ao exigir que a Masterpiece confeitasse e vendesse
religião para prejudicar os demais". A maioria da Suprema
um bolo para um casamento homossexual está assentado
Corte explorou essas frases e o fato de que elas passaram
despercebidas pelos outros comissários para decidir que a
10 Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission, p.
comissão falhou em tratar as crenças religiosas de Phillips
1729. Esta é uma distorção extraordinária dos comentários
de modo neutro e respeitoso. Ela concluiu que a comissão
dos comissários e também uma má compreensão do signifi-
menosprezou a religião de Phillips "ao menos de dois modos
cado de "retórica".
1 o

numa constelação de alegações que, sozinhas, não param de No entanto, o caso não se volta para a propriedade de
pé. Essa constelação liga liberdade de expressão e liberdade phillips, mesmo que a pressuponha e a mobilize ao identifi-
de exercício religioso para criar um novo espaço e um novo car sua confeitaria com sua f é . " Ao contrário, os requeren-
poder para a moral tradicional no domínio público. Além tes assentam a violação aos direitos de livre expressão de
disso, a constelação em si está assentada numa série de phillips em seu estatuto de artista. Se o caso dependesse da
oscilações e substituições - entre propriedade e habilidade propriedade, isso enfraqueceria a reivindicação de liberdade
artística, criação e provisão, expressão e semiótica. de expressão e dispararia o alarme de discriminação - vio-
lação da lei de acomodação pública" - na recusa de Phillips
ao atendimento. Conforme escreve Kennedy para a Corte,
PROPRIETÁRIO OU A R T I S T A ? "o confeiteiro, em sua função de proprietário de um negócio
servindo ao público, pode ter seu direito de livre exercício
Jack Phillips é descrito pela Corte não apenas como um con- religioso limitado pelas leis geralmente aplicáveis".'® Então,
feiteiro ou dono de um negócio, mas como um confeiteiro é o trabalho artístico de Phillips que deve portar sua liber-
especialista, dono de negócio e artista; cada uma destas dade religiosa, embora em lugar algum do caso os talentos
três identidades entra em jogo em diferentes momentos no artísticos de Phillips sejam explicitamente ligados às suas
voto majoritário, e o caso não poderia se basear em nenhu- crenças religiosas. E tampouco nenhum dos bolos de casa-
ma delas individualmente. Phillips também é retratado não mento em seu site possui temas, iconografia ou mensagens
somente como religioso, mas como um "cristão devoto cujo cristãs; ao contrário, eles variam de hiperbolicamente
maior objetivo na vida é ser obediente a Jesus Cristo e aos românticos a lúdicos e barrocos.'®
ensinamentos de Cristo em todos os aspectos de sua vida". O estatuto de Phillips de proprietário cristão de uma
Ele é um homem, relata a Corte, que "busca honrar Deus por empresa, por outro lado, é amplamente discutido no voto do
meio de seu trabalho na Masterpiece Cakeshop"." juiz Thomas, no qual ele é apresentado como evidência da
r Desde o início, portanto, a crença e devoção religiosa de
extensão com que suas crenças religiosas permeiam a loja -
/ Phillips não são confinadas e se estendem à sua copropriedade
seu fechamento dominical e sua recusa de fazer produtos
1 4 a confeitaria, ao seu trabalho nela e ao seu ofício artístico.
Essa caracterização dispõe a Masterpiece Cakeshop como
13 L a w r e n c e Glickman nota que a propriedade é mantida no
uma miniatura da Hobby Lobby, a corporação que processou e
segundo plano, mas que isso também mantém os trabalha-
ganhou o direito legal de negar a seus funcionários a cobertu-
dores na confeitaria de Phillips nos bastidores. Cf Lawrence
ra do seguro para certos tipos de controle de natalidade. Assim Glickman, "Don't Let Them Eat Cake".
como no caso da família Green. proDrietária da Hobby Lobby, a 14 "Public accomodation laws", nos EUA, são leis federais e estatais
cristandade de Pbillios é formulada como algo que satura sua que proíbem a discriminação contra certos grupos protegidos
nrnDriedade e controla cada asoecto de seu negócio." em empresas e locais considerados como "acomodações públi-
cas". Sua definição depende da legislação, mas grosso modo
trata-se de empresas ou negócios que atendem ao público em
11 Ibid, p. 1724. geral, como restaurantes, escolas, fábricas e escritórios, [N.T.]
12 Cf. Bethany Moreton, To Serve God and Wal-Mart: The Making 15 Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Comission, p. 1724-
of Christian Free Enterprise. 16 Cf o site da loja de bolos Masterpiece: masterpiececakes.com.
1 3

para o Dia das Bruxas, bolos com álcool ou bolos com cer- ela expande o controle sobre a vida dos consumidores. A ela-
tos tipos de mensagem, inclusas aquelas que criticam Deus. boração astuta do caso pelos requerentes, reiterada sem con-
Para Thomas, tudo isso demonstra que a fé cristã de Phillips testação pelos votos majoritários e concordantes, relaciona
excede seu interesse no lucro, e, logo, que a confeitaria é implicitamente a liberdade religiosa à propriedade comercial
uma extensão de suas crenças religiosas, as quais tornam, não somente a pessoas. Essa elaboração, no entanto, também \
por sua vez, os produtos confeitados uma "expressão" delas." dificulta determinar qual é o cavalo de Tróia que desloca a
Temos, então, um enigma: se é apenas a habilidade artís- moralidade tradicional para dentro da esfera pública - reli-
tica de Phillips que porta seus direitos de livre expressão gião ou expressão, propriedade ou habilidade artística. Quem
potenciais, por que discutir todos os modos pelos quais as foi erroneamente coagido, o artista ou o proprietário? Ou o j
crenças religiosas de Phillips impregnam sua administração artista é a fachada do proprietário?
da Masterpiece Cakeshop (por exemplo, o fechamento domi-
nical, a recusa de fazer produtos para o Dia das Bruxas etc.)?
Por que não focar exclusivamente na habilidade artística A R T I S T A OU F O R N E C E D O R ?
como expressão? É_some:^por meio da propriedade que a
liberdade religiosa^permji-P^casa de bolos, e r r à o ^ ^ m ê r u n ^ O caso também oscila entre a habilidade artística de Phil-
Phillips, reci^ar-se a fazer um bolo. E isto que torna o silêncio lips enquanto um confeiteiro e o fornecimento de Phillips
a respeito dos funcionários de Phillips - notado por Lawrence de produtos confeitados para eventos (pecaminosos ou
Glickman em um comentário no Boston Review - tão estron- sacrílegos) como o cenário de seus direitos potencialmente
doso e significativo. Assim como a sentença no caso da Hobby violados." Embora seja simples o fato de que o negócio de
,1 Lobby, a propriedade está sendo caracterizada como proprie- Phillips é uma confeitaria, e não um estúdio de arte ou uma
, dade cristã, o capital está obtendo direitos civis como capital galeria, os requerentes e a Corte se valem de sua habilida-
cristão. Na Hobby Lobby, essa propriedade expande o contro- de artística para formular seus bolos de casamento como
le sobre as vidas dos funcionários; na Masterpiece Cakeshop, "expressão". Claramente, Phillips devota um cuidado imode-
rado no preparo de seus bolos personalizados, orgulha-se
de seu trabalho e quer que os bolos fiquem lindos e sejam
17 ..Entre o estatuto de proprietário de Phillips e sua prática de
i/ artista, as crenças e práticas de seus funcionários não são
admirados. A Corte sublinha essas coisas ao descrever como
ouvidas ou vistas em lugar algum. Assim, conforme argumen- Phillips consulta cuidadosamente os noivos e faz aparições
tou Lawrence Glickman, isto já associa "Phillips, o confeiteiro, ocasionais para a cerimônia do bolo em festas de casamento.
e seu negócio, a confeitaria". Glickman adiciona: "ao insistir' Independentemente das opiniões que se possa ter a respei-
que as auestnp«-nh^,.^ . eSí2CS=são a r t í s t i í T d a - to do casamento homossexual, tudo isso gera uma simpatia
Philips e sua liberdade religiosa, a Corte calou-se a respeito
auestão ae como uma companhia pode p o s s í J í f i S e s d i r i i -
tos. Ela o lez nao somente ao assumir que as corporações são 18 Aparentemente, Phillips também considera o Dia das Bruxas
pessoas, mas também que os bolos feitos pela loja Master- um pecado ou sacrilégio, mas não está claro se ele simples-
piece são produzidos exclusivamente por Phillips, quando na mente se recusa a usar sua habilidade artística para fazer
verdade sabemos que a confeitaria tem outros trabalhadores". produtos confeitados temáticos do Dia das Bruxas ou se ele
Lawrence Glickman, "Don't Let Them Eat Cake". se recusa a vender qualquer produto para festas de Halloween.
164 1".5

inevitável por Phillips. Quem deveria ser obrigado a criar visando certos tipos de contracepção, ao invés de as mulhe-^
algo para aquilo que considera uma abominação? res que os utilizariam. É claro, se certos atos, como c a s a r '
Em última análise, entretanto, não é a arte que os reque- com seu parceiro ou ter acesso a um Diu ou a um Plan B"
rentes selecionam como o lócus da violação dos direitos. são fundamentais para sua igualdade, a distinção entre ato
Phillips crê que "a intenção de Deus para o casamento é que , e pessoa se liquefaz, motivo pelo qual as leis que asseguram
ele seja e deva ser a união entre homem e mulher", e a Corte direitos a tais coisas eram uma questão de leis de igualda-
afirma que criar um bolo para um casamento homossexual de em princípio. Dito isto, o foco em uniões homossexuais
"seria o equivalente a participar de uma celebração que é torna a recusa baseada em atos ou eventos, ao invés de em
contrária a suas crenças profundas"." A habilidade artística pessoas, permitindo fugir da responsabilidade pela discri-
não figura nessa decisão, assim como também não figura minação. Não obstante, a distocão ^ntre ato e p e s ^ a é^o
em um episódio descoberto por um investigador da Divisão que permitej objeção religiosa reaparecer discriminatória/
de Direitos Civis do Colorado, em que Phillips recusou-se a enauanto perpejtua a d e s i g u a l d a d ^ distinção protege a
vender cupcakes para um casal lésbico para sua cerimônia liberdade enquanto rejeita a igualdade ordenada pelo Estado
de compromisso porque a loja "tinha uma política de não Ela permite aos opositores evitar a cumplicidade com um ato
vender produtos confeitados para casais homossexuais para pecaminoso enquanto também evitam ser maculados com^
esse tipo de evento"."" Não há nenhum artista aqui, nenhum a acusação de intolerância. Ela enquadra o opositor como
bolo de casamento, ou sequer matrimônios - apenas lojas, aquele que odeia o pecado, mas não o pecador, e que busca
políticas, produtos confeitados e eventos celebrando tipos tão somente o direito pessoal de seguir seu próprio Deus. Por
específicos de casais. P h i l l i p s ^ c ^ r e j e i ^ em sua contraste, o Estado que coagiria sua conduta aparece como
confeitaria - não apenas em sua habilidade artística - que invasivo, dogmático, parcial e iliberal. Liberdade e cristan-
procuram celebrar uniões homossexiiaic HoTriHo a sua ojiie-
dade são assim aliadas e preservadas, opondo-se juntas ao
Cão religiosa à unmo. Tanto Phillips quanto a Corte knçãm
estatismo, à justiça social e à engenharia social: o hayekia4
mão de sua habilidade artística para expandir os direitos
nismo realizado. '
de expressão para negócios e para se esquivar da lei de aco-
modação pública.
Então, qual o motivo da artimanha? O foco na recusa de E X P R E S S Ã O A R T Í S T I C A OU
fazer arte para casamentos homossexuais embasa a recusa S E M I Ó T I C A DO B O L O ?
em atos ou eventos, não em pessoas, permitindo fugir da
responsabilidade de discriminação contra uma classe prote- Os requerentes assentam o direito de Phillips de se recusar
gida. Phillips diz que "faz bolos para os aniversários e chás" a fazer um bolo de casamento para um casal homossexual
0), mas não para os casamentos de clientes que recusa. Os no argumento de que sua habilidade artística enquanto
requerentes em Hobby Lobby fizeram a mesma distinção. confeiteiro é uma forma de "conduta expressiva", isto é, de
fala. Este é o argumento que os juizes Alito, Gorsuch e Tho-
19 Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission
mas aceitam inequivocamente em seus votos e que o voto
p. 1724.
20 Ibid., p. 1726.
: 21 Nome de uma pílula do dia seguinte famosa nos EUA. [N.T.]
166 178 'I 166

majoritário apresenta de maneira favorável. Ainda assim nenhum casamento, não importa quão espartano, falta bolo",
a habilidade artística de Phillips é uma pista enganosa no' e "se uma pessoa comum entrasse em um recinto e visse um
I argumento legal, um instrumento retórico que produz gran- bolo branco e com muitas camadas, ela imediatamente sabe-
de simpatia por Phillips ao mesmo tempo que não é de fato a ria que havia dado de cara com um casamento"."® Opotencial
' base de sua reivindicação de liberdade de expressão. Phillips Hfi noacão da expressão, portanto, não se assenta nem na
o reconhece, e o juiz Thomas deixa isso ainda mais claro em habilidade artística de Phillips, e nem em ditames religiosos
\'seu voto: o caso não se assenta na expressão de Phillips, mas a respeito de bolos de casamento - não há nenhuma j»ea-
no significado, logo na expressão, de um bolo de casamento. cã^õTbõlõsna Bíblia. Ao contrário, o potencial de coação da
Um bolo de casamento, declaram os requerentes, "comuni- fixpress5n nrnvéiB,4»-«f«ríea de.Ehillips de que casamentos,
ca inerentemente que um casamento ocorreu, que um matri- para os quais o bolo é uma sinédoque, são a marca distintiva
mônio começou, e que o casal deve ser celebrado".^^ Mais do de uniões ditadas por Deus e da investidura desta crença,
que meramente comunicar essas coisas, declaram os juizes da parte ae t-nillips, nos bolos de casamento que faz. O bolo
Alito e Gorsuch em seus votos, "como um emblema ou uma expressa casamento; de acordo com a fé de Phillips, apenas
bandeira", o bolo "é um símbolo que serve como um atalho certas pessoas são degíveis para^ca§aiaeates;,çelebrar casa-
de mente em mente, significando a aprovação de um sistema, m e n t o s ^ ^ não eleitos por Deus é contrário a Ele..
idéia ou instituição específicos".^' E o juiz Thomas escreve' Crucialmente, afastadas as crenças religiosas de Phillips
que "forçar Phillips a fazer bolos personalizados de casamen- a respeito de casamentos e matrimônios e os desdobramen-
to para matrimônios homossexuais obriga-o a, no mínimo, tos destas crenças nos seus bolos de casamento junto com a
reconhecer que casamentos homossexuais são 'casamentos' farinha e o açúcar, não importa se o bolo é arte ou se Phillips
e sugerir que eles devem ser celebrados - precisamente a é um artista. De acordo com o juiz Thomas (e Jacques Derri-
mensagem que ele acredita ser proibida por sua fé".^^ Para da), Phillips não controla o significado do bolo de casamento,
Phillips, "criar um bolo de casamento para um evento que ou sequer o sentido de "casamento" ou "matrimônio", embora
celebra algo contrário aos ensinamentos da Bíblia teria sido ele certamente o queira. Ao contrário, o bolo carrega para
um endosso e uma participação pessoal na cerimônia e no Phillips o sentido que ele atribui ao matrimônio, de que se
relacionamento em que eles estavam adentrando".^® trata de um evento sagrado e exclusivamente heterossexual,
Assim, não é Phillips que fala com sua arte, mas o bolo o motivo pelo qual Phillips se recusa a vender qualquer "pro-
V ^ que fala, em virtude de ser um bolo de casamento. Conforme duto confeitado" para homossexuais que tentem participar
o juiz Thomas esforçou-se bastante para estabelecer em sua desse evento. Dito de outro modo, o argumento de que os
notável disquisição sobre a natureza singular dos bolos de bolos de casamento de Phillips são sua expressão não se
casamento, embora raramente apreciado por seu sabor, o assenta em sua habilidade artística, mas em sua convicção
bolo é um elemento indispensável em tais cerimônias: "Em a respeito do divino sacramento do casamento heterosse-
xual e em sua crença correspondente de que o matrimônio
22 Ibid., p. 1743. homossexual é contrário a Deus, e no investimento dessa
23 P-1739- convicção religiosa em seus bolos. Seus bolos carregam
24 p . 1744.
25 p . 1724.
26 p . 1743.
16

aquele sentido religioso para ele, embora não necessaria-


mente para os outros e, logo, não necessariamente quando
eles falam "casamento" nos eventos que adornam. O próprio
i 169

sustentadas"." A Corte interpretou a posição da CDCC como


parcialidade religiosa, com a implicação de que "crenças e
pessoas religiosas não são plenamente bem-vindas na comu
Phillips fala, desse modo, não por meio de sua arte, mas por nidade comercial do Colorado". Essa declaração, no entanto
meio de sua disposição ou recusa de abastecer eventos que encobre, ao invés de mostrar, o argumento sobre secularis
ele acredita serem consagrados ou condenados divinamente. mo contido nesse litígio. - CO-i^o »ftUò
De fato, a instabilidade e, em última análise, a fraqueza da Uma democracia secular liberal autoriza a proteção dos
alegação de que Phillips "fala" com sua habilidade artística valores religiosos como um direito individual, geralmente
.são evidentes na inabilidade dos requerentes e do acórdão Umitando a adoção desses valores de acordo com a lei secu-
da Corte para concluir se o que Phillips visa recusar com sua lar que protege o interesse público. Mesmo após a ratificação
(negativa é sua "expressão", sua "participação", seu "endosso", do Ato federal de Restauração da Liberdade Religiosa [fede-
i| Ipu seu "reconhecimento" do casamento homossexual. ra! Religious Freedom Restoration Act] em 1993, que reforçou
Neste ponto, emerge uma questão óbvia: se é o bolo de o controle dessa conformidade, quando se buscam isenções

( casamento, e não a arte de Phillips, que fala, e se o bolo, ao


falar "casamento" não fala como Phillips, por que sequer defen-
der o argumento da liberdade de expressão? Por que não se
concentrar exclusivamente no livre exercício religioso de Phil-
em relação aos mandados federais com base nos requisitos
ou crenças religiosos, o interesse público permanece como
o critério limite. A liberdade religiosa de crer e louvar como I
se queira não deveria causar um ônus para terceiros, que é o
lips? Foi isso que a deliberação restrita da Corte efetivamente motivo pelo qual Douglas Nejaime e Riva Siegel consideram 1
fez. No entanto, para compreender por que os requerentes e a tão problemática a recente guinada para as "escusas de cons-,
Corte dão tanta importância para o argumento da expressão, ciência baseadas em cumplicidade".'" O j ^ r d c i n ^ â ü à s i -
apesar de seu alicerce vacilante, precisamos compreender a dade rehgiosa não deveria afetar a n u e j i e ^ e x t e r ^ e s à fé e
estratégia política que depende do atrela ^ento e n t r e l j ^ - gCTalmente n ^ ^ e f e r e ao e x ^ í m õ õ ^ ú ^ í í ^ ^ í í ^ ^
Ciênnia e p x D r e s s ^ e t^l modo que a religião possa exercer vliõres religiosos, mas à proteção~cõntra d i s c r i m j i ^ o ou,
iflais poder na esfera rnmpi-r-iai ^ Cortèe"muitos cuja fé designa
comentários tendem a tratar as duas reivindicações de modo o sábado como shabbat buscaram exceções às regras a res-
separado e seqüencial. Na verdade, eles são atrelados de peito da qualificação para o seguro desemprego; aqueles cuja
modo crucial em uma nova constelação antidemocrática. fé obrigava a cobrir a cabeça buscaram relaxar os requisitos
das fotografias para documentos federais, nas quais cabeças
cobertas são normalmente proibidas; os amish obtiveram as
LIBERDADE DE EXERCÍCIO COMO LIBERDADE
DE E X P R E S S Ã O
27 Ibid., p. 1 7 2 1 . 0 parecer da Corte cita um comissário afirmando
que Phillips pode acreditar "no que ele quiser", mas não pode
A liberdade de expressão é o meio pelo qual o livre exer-
agir segundo suas crenças religiosas "se ele decidir fazer
cício é expandido para dentro da esfera comercial e públi- negócios no estado". Ibid., p. 1729.
ca, em que, argumentou a Comissão de Direitos Civis do 28 Cf. Douglas Nelaime e Reva Siegel, "Conscience Wars: Compli-
Colorado, "crenças religiosas não podem legitimamente ser city-Based Conscience Claims in Religion and Politics".
170 171

c o n h e c i d a s i s e n ç õ e s d a s obrigações de e d u c a r os j o v e n s até 0 que se d e s e n v o l v e hoje c o m o u m a e s t r a t é g i a legal e


os dezesseis anos. C a d a u m a d e s s a s isenções e s t a v a b a s e a d a p o l i t i c a d e d i r e i t a é isto: a l i b e r d a d e de e x p r e s s ã o d á a s m ã o s
n a c o n c l u s ã o de que a p r o t e ç ã o ao culto religioso n ã o preju- p a r a o livre e x e r c i d o religioso, p u x a - o p a r a o m u n d o públi-
d i c a r i a o i n t e r e s s e público.^» Q u a n d o o l i v r e e x e r c i d o r e s v a l a
co e c o m e r c i a l e ali o r e f o r ç a de m o d o s i n g u l a r . É s o m e n -
e m n o r m a s a m p l a m e n t e a c e i t a s o u n a lei g e r a l m e n t e a p l i c á -
te q u a n d o se t r a t a a c o n f e c ç ã o de bolos p o r Phillips c o m o
vel, isso t e m ocorrido devido a u m a c r e n ç a f u n d a m e n t a l a
expressão baseada em sua crença religiosa que se pode
respeito de p r á t i c a s p e s s o a l m e n t e a p r o p r i a d a s de v e s t i m e n -
c o n t o r n a r a lei d e a c o m o d a ç ã o p ú b l i c a . P o r si só, c o n f o r m e
t a , a l i m e n t a ç ã o , f a m i l i a o u c u l t o q u e a q u e l a s n o r m a s e leis
a r g u m e n t a a CDCC e a C o r t e r e c o n h e c e e m s e u a c ó r d ã o , o
' r e s t r i n g e m ou v i o l a m . H i s t o r i c a m e n t e , então, o e x e r c í c i o da
direito de Phillips ao livre e x e r c i d o n ã o pode p e r m i t i r a
IjhprH.Hp n ã o foi c e n t r a d o n o e x e r c i d o p ú b l i c o d e
discriminação. A p e n a s a confluência entre livre e x p r e s s ã o
valores religiosos, m a s autoriza e protege a relação pessoal e livre e x e r c i d o , r e a l i z a d a por meio da i n s i s t ê n c i a no fato
do i n d i v i d u o c o m s u a c o n s c i ê n c i a o u c o m o divino.^" de que a p r o d u ç ã o de bolos de Phillips é a r t e e que a r t e é
j A l i b e r d a d e de e x p r e s s ã o é o a n v e r s o . D e s p r o v i d a de e x p r e s s ã o , autoriza o e x e r c i d o de s u a s c o n v i c ç õ e s religio-
/sentido no d o m i n i o p r i v a d o ou p e s s o a l , a livre e x p r e s s ã o
s a s como expressão n o d o m i n i o p ú b l i c o e c o m e r c i a l , e, i n v e r -
^•j s i g n i f i c a o d i r e i t o de dizer em público o que se quer dizer e
samente, defende sua expressão comercial como veiculo
' s o m e n t e o q u e s e q u e r d i z e r . T r a t a - s e do d i r e i t o d e f a l a r d e
de s u a s c o n v i c ç õ e s r e l i g i o s a s p r i v a d a s . De fato, a p e n a s por
i modo irrestrito e incondicionado m e s m o que alguns p o s s a m
meio d a artificiosa confluência entre liberdade de e x p r e s s ã o
Av- : s e r e s t o r v a d o s o u l e s a d o s p e l a f a l a . O d i r e i t o à l i b e r d a d e
e liberdade de e x e r c i d o p o d e - s e c o m p r e e n d e r este s u m á r i o ,
io»' li d e e x p r e s s ã o a o m e s m o t e m p o r e c o n h e c e e s u b o r d i n a a s
c a s o contrário d e s c o n c e r t a n t e , da r e c l a m a ç ã o de Phillips
q u e s t õ e s de t e r c e i r o s e da c u l t u r a pública àquele direito.
pela Corte: "obrigá-lo a c r i a r u m bolo p a r a u m c a s a m e n t o
T r a t a - s e de u m direito e x e r c i d o e m público e pode muito
h o m o s s e x u a l violaria s e u direito à livre e x p r e s s ã o ao coa-
bem moldar o âmbito público e como este é vivenciado por
gi-lo a e x e r c e r s e u s t a l e n t o s a r t í s t i c o s p a r a e x p r e s s a r u m a
o u t r e m . E, m a i s i m p o r t a n t e , ele t a m b é m t r a z c o n s i g o u m a
m e n s a g e m da qual ele d i s c o r d a v a e violaria s e u direito ao
g r a n d e porção de nosso poder público individual e m demo-
livre exercício religioso'?^
cracias, motivo pelo qual é f u n d a m e n t a l para a cidadania
N e s s a d e d s ã o , já o n ú m e r o de preposições e v e r b o s e a
,1 d e m o c r á t i c a e p o r q u e e s t e n d ê - l o à s c o r p o r a ç õ e s t r a z t a n t a s
a u s ê n d a de o r a ç õ e s s u b o r d i n a d a s t o r n a m q u a s e impossí-
^consequências.®'
vel e s p e c i f i c a r a fonte ou l ó c u s da violação. Onde, p r e c i s a -
mente, e s t á a a ç ã o ? E n c o m e n d a r u m bolo não viola o direito
29 O caso Hosanna-Tabor Evangelical Lutheran Church & School v.
à l i v r e e x p r e s s ã o . C o a g i r o exercício de talentos artísticos
Equal Employment Opportunity Commission, ao conceder uma
p a r a e x p r e s s a r u m a m e n s a g e m da qual se discorda não viola
isenção à exigência de iguais oportunidades no emprego em
instituições religiosas, sobressai-se nessa questão. o s d i r e i t o s d a P r i m e i r a E m e n d a do i n d i v í d u o ( a r t i s t a s c o m e r -

30 O caráter pessoal e privado da religião normalmente protegi- ciais t e o r i c a m e n t e f a z e m isso o t e m p o todo a pedido de s e u s
do pela Primeira Emenda é, em parte, o que torna tão radical c h e f e s ou diretores). E c r i a r u m bolo p a r a u m casamento
o veredito do caso Hobby Lobby.
31 Citizens United v. Federal Election Commission, p. 310. Cf. minha 32 Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission,
discussão no capítulo 5 de Undoing the Demos. p. 1 7 2 0 .
178 'I 173

n ã o v i o l a m a i s o d i r e i t o a o l i v r e e x e r c í c i o r e l i g i o s o do q u e p r o p j ; ^ d e , c o n f e J M r o e cristão que o h a b i l i t a ^ r i g i r u m a
ser requisitado comercialmente a exercer os talentos artís- r e s i s t ê n c i a a o a u e é a g o r a a lei do,.Eais. I s s o r e v e l a c o m o a
ticos para e x p r e s s a r u m a m e n s a g e m da qual se discorda. N o ^ i t 7 a t é g i a t e m u m espírito niilista, discutido no capítulo 5,
entanto, todos esses fenômenos combinados - a obrigação s e g u n d o o q u a l a r e l i g i ã o é m e n o s a b a s e do q u e o instmmen-^
de c r i a r a r t e e x p r e s s a n d o u m a m e n s a g e m c o n t r á r i a à c r e n ç a
to do d i s s e n s o p o l í t i c o . "
r e l i g i o s a do i n d i v í d u o - , a p o i a d o s n o direito n ã o m e n c i o n a d o
A s s i m que o veredito de Masterpiece Cakeshop foi a n u n -
ã propriedade comercial, libertam o livre exercício religioso
ciado, a A l i a n ç a e m D e f e s a d a L i b e r d a d e , a o r g a n i z a ç ã o anti-
na esfera pública e comercial e criam o palco da habilita-
-LGBT q u e r e p r e s e n t a v a P h i l l i p s , a u m e n t o u s u a a p o s t a . E l a
ç ã o d a d i s c r i m i n a ç ã o , ou, n a v e r d a d e , do c e r c e a m e n t o d a s
e s t á p r o c e s s a n d o o e s t a d o do A r i z o n a p o r p r o i b i r u m a d u p l a
l e i s d e i g u a l d a d e . I s s o é m u i t o m a i s do q u e c o n s t r u t i v i s m o
de a r t i s t a s c o m e r c i a i s (belas, j o v e n s , b r a n c a s e m u l h e r e s ) de
c o n s t i t u c i o n a l . T r a t a - s e d a S u p r e m a C o r t e d o s EUA r o b u s t e -
afixar u m a placa em seu negócio declarando sua recusa em
cendo u m a força revolucionária antidemocrática por meio da
servir casais que estejam celebrando uniões homossexuais.'"
I vinculação inédita entre propriedade, religião e expressão.
A t é o n d e s e i , a s a r t i s t a s e m B r u s h & N i b não foram abor-
H á a l g u m a s fissuras nessa nova configuração, produzi-
dadas por n e n h u m casal homossexual para criar anúncios
d a s p a r c i a l m e n t e pelo fato de que se trata de u m a estraté-
de c a s a m e n t o o u o u t r a a r t e m a t r i m o n i a l . A p e s a r d i s s o , a
gia política e que, assim, politiza a reivindicação religiosa
A l i a n ç a p r o c e s s a e m n o m e do d i r e i t o d a s a r t i s t a s d e c o l o -
que b u s c a apoiar. A liberdade de e x p r e s s ã o a s s e g u r a , entre
c a r e m s e u e s t a b e l e c i m e n t o ou e m s e u site u m a p l a c a que
o u t r a s c o i s a s , o direito ao d i s s e n s o político. O l i v r e e x e r c í c i o
s e r i a o e q u i v a l e n t e a o l e t r e i r o fixado e m u m a m á q u i n a de
r e l i g i o s o a s s e g u r a o direito do i n d i v í d u o a c r e n ç a s e ã fé p e s -
r e f r i g e r a n t e s n o s a n o s 1 9 5 0 o n d e s e lia " a p e n a s p a r a b r a n -
soal. N a medida e m que o c a s o c a m i n h a na direção da prote-
cos". A ADF e s c r e v e u : " E n q u a n t o o c a s o de J o a n n a , B r e a n n a e
ç ã o do d i s s e n s o político, ele s e a f a s t a d a p r o t e ç ã o d a p r á t i c a
B r u s h & Nib prossegue, elas continuam a criar arte que refle-
religiosa. Porque n ã o h á n a d a sobre f a z e r bolos ou habili-
te a b e l e z a de D e u s . E e l a s e s p e r a m t e r e m b r e v e a l i b e r d a d e
dade artística n a s E s c r i t u r a s ou em qualquer outro código
de s i m p l e s m e n t e c r i a r e s s a a r t e e de e x p l i c a r p l e n a m e n t e
religioso, o controle que a liberdade de e x p r e s s ã o tem sobre
suas crenças artísticas e religiosas para outrem. A Alliance
o l i v r e e x e r c í c i o r e l i g i o s o e x i g e o c o m p l e m e n t o de r e i v i n d i -
Defending F r e e d o m está aqui para proteger o direito dos
c a ç õ e s a respeito da habilidade artística e da propriedade.
profissionais criativos de u s a r s e u s talentos dados por D e u s
Logo, não fica claro se u m funcionário - que não é proprietá-
d e m o d o s c o n s i s t e n t e s c o m s u a s crenças".^'® E s s a é a n o v a
rio - d a c o n f e i t a r i a p o d e r i a a l e g a r q u e s e u s d i r e i t o s a o l i v r e
e x e r c í c i o r e l i g i o s o f o r a m v i o l a d o s p o r t e r d e f a z e r b o l o s de
casamento para todos que entrassem pela porta - presumi- 33 O efeito é tornar crível a difamada erupção do comissário dos
v e l m e n t e , e l e s i m p l e s m e n t e t e r i a de p r o c u r a r u m e m p r e g o direitos civis do Colorado sobre "situações em que a liberdade

_ d i f e r e n t e . T a m b é m n ã o f i c a c l a r o q u a n t a s r e i v i n d i c a ç õ e s (se de religião tem sido usada para justificar a discriminação [...]


para prejudicar outrem". In: Masterpiece Cakeshop v. Colorado
s e q u e r existem], fora a objeção ao c a s a m e n t o h o m o s s e x u a l ,
Civil Rights Commission, p. 1729.
p o d e r i a m p o r t a r a i n v e s t i d u r a r e l i g i o s a d a r e c u s a d e Phil-
34 Alliance Defending Freedom, Brush & Nib Studio v. City of
lips. S e u l i v r e e x e r c í c i o r e l i g i o s o , e n t ã o , n ã o e s t á de f a t o e m
Phoenix.
jogo. A o c o n t r á r i o , é s e u e s t a t u t o c o m b i n a d o de dono de u m a
35 Loc. cit.
174 175

«II
guinada na campanha por Deus e liberdade na esfera públi- E s s e ato o b r i g a v a os Crisis Pregnancy Centers [CPC] s e m l i c e n -
ca - os negócios não são apenas isentos da lei de acomoda- ça a publicar u m a declaração afirmando que eles não são
ção pública, mas se promovem com base em suas objeções.'« i n s t a l a ç õ e s m é d i c a s e o b r i g a v a t o d o s o s CPC a p u b l i c a r o u
Não há motivo para esperar que essa proposta seja limitada distribuir u m a declaração que identifica a disponibilidade
a pequenos negócios, às artes ou ao artesanato... ou que se de t r a t a m e n t o s a b r a n g e n t e s de s a ú d e r e p r o d u t i v a g r a t u i t o s
refira somente ao casamento homossexual. ou de b a i x o c u s t o o f e r e c i d o s pelo e s t a d o d a C a l i f ó r n i a , inclu-
sive cuidados pré-natal e abortos.
Os requerentes alegaram que ambos os avisos limitavam
C E N T R O S DE GRAVIDEZ Q U E ORAM sua liberdade de expressão. O voto majoritário, proferido
pelo juiz Thomas, acatou essa alegação, argumentando que
Voltamo-nos agora para um segundo caso decidido pela "o Ato FACT oprime indevidamente a expressão assegurada.
Suprema Corte em 2018 relacionado à coação da expressão. Ele impõe ao estabelecimento que se expressa a obrigação^
Neste, os requerentes utilizam a Primeira Emenda como um de divulgar os avisos cujo texto é fornecido pelo Estado"
poder desregulatório para perpetuar simultaneamente a enquanto deixa "desonerados aqueles cujas opiniões estão
ocultação e a expansão no espaço público de suas intenções de acordo com as mensagens" do próprio governo.'" Adi-
de diretrizes religiosamente orientadas. cionalmente, o parecer argumenta que o Ato FACT comete
O caso National Institute of Family and Life Advocates, DBA uma "discriminação de ponto de vista" contra os CPC e que a
NIFLA et al. versus Becerra, procurador-geral da Califórnia, expressão que ele visava impor era "baseada em conteúdo",
' , ídoraüante identificado oor NIFLA) pôs à prova a constitucio- e não em informações essenciais, incontroversas e factuais.
nalidade do Ato Reproductive F A C T " de 2015 na Califórnia. I Nenhum dos pareceres no caso - o majoritário, o con-
cordante ou o dissidente - explica o contexto e a motivação
36 É claro, outro princípio do neoliberalismo abriu esse cami- do Ato FACT, uma ausência que confere ao parecer um ar
nho: muitos negócios agora realizam seu branding por meio técnico, ao invés de político, e minimiza seu significado para
de seus engajamentos políticos e éticos. Conforme nota o
a liberdade reprodutiva das mulheres. Sem uma avaliação
juiz Thomas em seu voto convergente e conforme também
do que são e como operam os CPC, é impossível entender o
notaram os votos do caso Hobby Lobby (utilizando exemplos
da esquerda de modo astucioso], essa prática cada vez mais
comum solapa o argumento de que somente o lucro motiva Lei de Privacidade Reprodutiva, estabelece que todo indiví-
ou deveria motivar os donos de negócios. Há uma ironia aqui, duo possui um direito fundamental de privacidade com res-
é claro, dada a infame arenga do Pai Fundador do neolibe- peito a decisões reprodutivas. A lei existente estabelece que
ralismo Milton Friedman contra a "responsabilidade social" o Estado não deve negar ou interferir no direito da mulher
nas práticas de negócios. Cf Milton Friedman, "The Social de escolher ou fazer um aborto antes da viabilidade do feto,
Responsibility of Business is to Increase its Profits". conforme definido, ou quando necessário para proteger sua
37 O Ato Reproductive FACT é uma lei estadual promulgada na vida ou saúde. A lei existente especifica as circunstâncias
Califórnia em 2 0 1 5 . A sigla FACT refere-se às palavras "Free- sob as quais a realização de um aborto é considerada não
dom, Accountability, Comprehensive Care, and Transparency", autorizada", [N.T.]
isto é, "Liberdade, Responsabilidade, Cuidado Abrangente e' 38 National Institute of FamÜy and Life Advocates v. Becerra,
Transparência". O texto da lei é o seguinte: "A lei existente, a p. 2367.
1,6 177

que o Ato FACT visa reparar e por que os cpc resistiram a ele os CPC têm um objetivo, que é convencer as mulheres com
tão agressivamente. gravidez indesejada a não abortar. No entanto, sua autor-
Hoje há aproximadamente quatro mil Crisis Pregnancy representação e suas técnicas para atrair clientes obscu-
Centers nos EUA.^" A maioria obtém apoio organizacional, recem intencionalmente esse objetivo e frequentemente
financeiro, legal e relativo ao quadro de funcionários de' também seu respaldo religioso. Isso porque sua clientela
grandes organizações guarda-chuva, tal qual a NIFLA, a alvo são mulheres que eles chamam de "vulneráveis ao
CareNet, e a Heartbeat International." Segundo consta. aborto" - mulheres com gravidez indesejada e que buscam
ou estão considerando um aborto." Como disse a ativista
antiaborto Abby Johnson a respeito dos CPC na conferência
39 Os CPC superam as unidades provedoras de aborto em cifras
anual da Heartbeat International em 2012, "nós queremos
de até 1 5 p a r a 1 em algumas partes do país.
parecer neutros por fora. A melhor solicitação, a melhor
40 Do relatório da NARAL [National Association for the Repeal
cliente que você pode ter é aquela que pensa estar entrando
of Abortion Laws] sobre os CPC: "Com mais de 1 . 3 0 0 cpc afi-
hados, o National Institute of Family and Life Advocates afir- em uma clínica de aborto".""
ma claramente em seu site que está 'na linha de frente' da Para essa finalidade, a maioria dos CPC indica em seu
'batalha cultural' contra o aborto. A visão da organização é
site e em outros materiais que eles oferecem "aconselha-
'oferecer [aos cpc] recursos e aconselhamentos legais, com o
mento relativo ao aborto", mesmo que as letras miúdas pos-
objetivo de criar uma rede de ministérios a favor da vida em
todas as comunidades e por toda a nação, para conquistar sam revelar que eles não fazem e nem encaminham para
uma América Hvre do aborto'. 'Eu saí de lá muito confusa e abortos. Os funcionários da recepção são treinados para se
me sentindo péssima. Eu não consigo parar de pensar sobre esquivarem da questão quando clientes em potencial per-
como esse teria sido um jeito terrível de descobrir que se está guntam ao telefone se eles fazem abortos. Os CPC anunciam
grávida.' A Heartbeat International, anteriormente chamada um ambiente "de apoio e livre de julgamentos, não importa
Alternatives to Abortion International, administra uma rede
o que você decida fazer". Todos eles alegam oferecer "servi-
de 1 . 8 0 0 CPC nos Estados Unidos e no mundo. Assim como o
ços de apoio, educativos e médicos imparciais, confidencias
NIFLA, a Heartbeat é direta quanto à sua missão e ideologia
em seu site: 'A visão que salva vidas da Heartbeat é tornar o
e gratuitos para mulheres enfrentando uma gravidez não
aborto indesejado hoje e impensável para as gerações futuras'. planejada"."' Muitos CPC se apresentam como provedores de
A CareNet tem uma rede de mais de 1 . 1 1 0 cpc afiliados por
toda a América do Norte. Seu site declara: "A CareNet traba- ameaçar a missão primária dos centros - de chegar às mulhe-
lha para acabar com o aborto, não primariamente por meio res em risco de aborto'". Em: prochoiceamerica.org/wp-con-
da ação política, mas pela construção de uma cultura em que tent/uploads/20i7/o4/cpc-report-2oi5.pdf.

toda mulher receba todo o apoio que ela precisa para dar as 41 lor-El Godsey, "4 'Abortion-Minded' Myths" e Sydna Massé,
boas-vindas a seu filho e para criar sua própria história de Effective Ministry to the Abortion Vulnerable.
sucesso'. Do mesmo modo, o Family Research Council é fran- 42 Madeleine Schmidt, "Billboards in Denver W a r n Pregnant
co quanto ao verdadeiro propósito dos cpc: 'Há um número Women o f ' F a k e Health Centers' in Their Neighborhoods".
de mulheres que aumenta acentuadamente vindo aos [cpc] 43 Alguns até mesmo alegam ser a fonte mais imparcial de infor-
que não está 'em risco' de aborto. Essas mulheres decidiram mações sobre o aborto porque eles não os oferecem como
carregar seus filhos até o fim e vêm em busca de assistência parte de seus serviços, NARAL, "Pregnancy Centers Lie: A n
material ou outros serviços. [...] Essas tendências poderiam Insidious Threat to Reproductive Freedom", p. 5-
178

uma panóplia de serviços relacionados à gravidez, embora


'I 179

de clínicas de aborto ou escritórios fechados da Planned


as unidades sem licença ofereçam somente um teste de gra-
Parenthood.^® Alguns usam as iniciais da Planned Paren-
videz de farmácia (que a cliente deve ela mesma realizar)
thood em sua sinalização (PP para indicar "Problem Pregancy"
e "aconselhamento" que visa convencer as mulheres a não
[Gravidez Problema]), ou assumem o nome de uma clínica de
interromper a gravidez. Em muitos CPC, mesmo naqueles
saúde reprodutiva local com apenas uma palavra alterada,
em que não há equipe médica licenciada, os funcionários da
por exemplo, Oakland Women's Center [Centro de Mulhe-
recepção vestem batas ou aventais brancos de laboratório
res de Oakland] ao invés de Oakland Women's Clinic [Clínica
colhem informações de saúde em formulários de admissão'
de Mulheres de Oakland]. Frequentemente, os outdoors do
e replicam o visual e a sensação de um consultório médico
CPC também são desenhados para serem confundidos com os
Outros se apropriam do espírito e do tom de grupos feminis-
da Planned Parenthood. As organizações centrais federais
tas. Em seu site ternamente elegante, com fotos de mulheres
que patrocinam as clínicas destinam fundos consideráveis
jovens e radiantes de muitas tonalidades, a Claris Health
a métodos do tipo "pay-per-click" para fazer propaganda de
por exemplo (cujo slogan é "escolhas com as quais você pode'
suas clínicas em resposta a palavras-chave como "aborto" ou
viver"), proclama: "A história da Claris Health começou há
"pílula do dia seguinte" em mecanismos de buscas.^' A Clíni-
mais de 40 anos, quando um pequeno grupo de mulheres
ca de Mulheres de São Francisco, por exemplo, aparece no
buscou inspiração para criar uma organização que ofereces-
se serviços que poderiam mudar a vida de mulheres, homens topo de uma busca no Google por "clínicas de aborto perto
e famílias. Desde o início, nossa missão tem sido a de empo- de mim".^® Os CPC também estão desenvolvendo ferramentas
derar indivíduos para que eles possam tomar decisões de
saúde sexual e natal plenamente informadas".'"' 46 Nicole Knight, "Abortion Clinic Closures Leave Openings for
Crisis Pregnancy Centers to 'Prey' on Women".
Adicionalmente, os CPC, que angariam financiamentos
47 A CareNet e a Heartbeat International gastam mais de dezoito
federais e frequentemente são subsidiados por fundos esta-
mil dólares por mês em campanhas do tipo pay-per-click que
tais, muitas vezes localizam-se perto de clínicas da Planned têm como alvo mulheres procurando por provedores de abor-
Parenthood- ou de outras clínicas pró-escolha [pro-choice] to e que as levam aos seus sites e ao call center da "Option Line"
por vezes até no mesmo edifício, com a finalidade explícita' [Linha da Escolha]. A CareNet e a Heartbeat International
de atrair ou confundir as clientes que tentam acessar essas inserem comandos em mais de cem palavras-chave, incluin-
a ^ i a s . Em alguns casos, os CPC se mudaram para locais do "aborto", "pílula do dia seguinte" e "clínicas de saúde da
mulher", NARAL, "Crisis Pregnancy Centers Lie", p. 4.
48 A Clínica da Mulher de São Francisco (com nome similar ao de
44 Claris Health, "Get the Care You're Looking For: Take Simple
diversas clínicas que oferecem aborto na cidade) desenvolveu
Steps for Your Sexual Health".
modos particularmente astutos de camuflar seus propósitos
45 A Planned Parenthood Federation é uma ONG cujo embrião
em seu site. Anunciando-se como uma clínica que oferece
nasceu há mais de cem anos, em 1 9 1 6 . Com 56 afiliadas nos
tanto aconselhamento relativo ao aborto quanto "aconselha-
EUA que operam mais de seiscentas instalações médicas, ela
mento pós-abortivo", o site apresenta uma grande quantidade
oferece uma ampla gama de serviços relativos à saúde sexual
de informações sobre o aborto, nenhuma delas abertamente
e reprodutiva, entre eles a realização de abortos legais Embo-
histérica, e, ainda assim, muitas delas dissimuladamente
ra sua presença seja mais ativa nos EUA, ela opera no mundo
todo. [N.T.] imprecisas. Por exemplo, ela deixa escapar a afirmação de
que "nenhuma anestesia é usada durante um aborto médico"
164 180".5

p a r a a c e s s a r clientes v i a c o n s u l t a s por chat, m e n s a g e n s de que u m aborto espontâneo é provável e que, portanto, não
t e x t o e v í d e o s online.^® há n e c e s s i d a d e ' d e b u s c a r u m aborto médico. O estágio de
O " a c o n s e l h a m e n t o r e l a t i v o a o a b o r t o " do c p c p o d e e n v o l - d e s e n v o l v i m e n t o d o f e t o d a c l i e n t e p o d e s e r caracterizado^^
v e r a r e p r e e n s ã o de clientes c o n s i d e r a n d o fazê-lo, m o s t r a n - e r r o n e a m e n t e , o feto é i n v a r i a v e l m e n t e c h a m a d o de " b e b ê "
do-lhes fotos de fetos m u t i l a d o s ou de m u l h e r e s m o r t a s e m ou "nascituro", e a cliente é r e f e r i d a c o m o "mãe". Por v e z e s , a
m a ç a s , e, é c l a r o , m o s t r a n d o f o t o s e v í d e o s d e f e t o s d e n t r o equipe reza pelo " b e b ê " c o m s e u s clientes n a primeira visita.
do ú t e r o c u j o r e a l e s t á g i o d e d e s e n v o l v i m e n t o p o d e s e r u m a
M u i t o s CPC e s t ã o l o c a l i z a d o s p e r t o d e c o l é g i o s o u f a c u l -
ficção. Os a b o r t o s s ã o r e t r a t a d o s c o m o p r o c e d i m e n t o s q u e
dades p a r a atrair jovens a m e d r o n t a d a s . Outros estão loca-
t r a z e m m a i o r e s r i s c o s ã s a ú d e do q u e o p a r t o (úteros per-
lizados em bairros em que o alvo são outros grupos vulne-
f u r a d o s , sepsia, morte), e q u e a u m e n t a m a possibilidade de
ráveis - mulheres pobres e não brancas que podem não ter
f u t u r o s abortos espontâneos, suicídio, depressão, a d i c ç ã o a
a t e n d i m e n t o m é d i c o r e g u l a r , c o n v ê n i o de s a ú d e ou o u t r o s
d r o g a s , i n f e r t i l i d a d e , c â n c e r de m a m a e o u t r o s p r o b l e m a s d e
r e c u r s o s . A q u i , a oferta ( f r e q u e n t e m e n t e falsa) de cuida-
s a ú d e . ® " Os p r e s t a d o r e s d e a b o r t o p o d e m s e r d e s c r i t o s c o m o
dos c o m a saúde, moradia e apoio financeiro gratuitos é tão
p e r i g o s o s , i n e s c r u p u l o s o s , g a n a n c i o s o s e s u j o s . A l g u n s CPC
importante quanto a desinformação médica para convencer
o f e r e c e m d e s i n f o r m a ç õ e s a respeito da possibilidade de
a s m u l h e r e s a l e v a r s u a g r a v i d e z a t é o f i m . A l g u n s CPC t a m -
fazer o aborto, falando para as mulheres que elas podem
bém oferecem informações objetivamente falsas a respeito
adiar s u a s decisões por muitos m e s e s , ou falando p a r a elas
d o s r i s c o s d a c o n t r a c e p ç ã o - p í l u l a s , DIU, a t é m e s m o p r e s e r -
vativos - , em u m esforço para levar as garotas e mulheres
dentro de um parágrafo que oferece uma análise vaga e enga- não casadas a praticar a abstinência s e x u a l . "
nosa do aborto médico, que por sua vez encontra-se na seção N e m t o d o s o s CPC n o s E s t a d o s U n i d o s f a z e m t o d a s e s t a s
"Pílula do aborto". Ela também distorce o fato de que o Plan B é coisas, m a s todos fazem muitas delas. Todos o b s c u r e c e m
um medicamento vendido sob prescrição médica inserindo-o
sua raison d'être tentando parecer recursos neutros e versá-
j u n t o com evidências de seus riscos: em resposta à questão
teis p a r a m u l h e r e s c o m g r a v i d e z n ã o planejada ou "crítica",
"Eu consigo a pílula do dia seguinte sem receita médica?", o
escondendo seu patrocínio e financiamento cristão. N e n h u m
site afirma, "Não, a pílula do aborto deve ser receitada por
um médico. Na verdade, a FDA [Food and Drug A d m i n i s t r a - deles tem u m comprometimento com a ciência, os fatos, a
tion] alerta contra medicamentos que induzem o aborto que transparência ou com a compreensão informada das mulhe-
não foram receitados. Isso coloca a paciente sob risco de tomar res de s u a s e s c o l h a s legais e p r á t i c a s ao lidar c o m u m a gra-
um medicamento que não foi aprovado pela FDA". O site inclui v i d e z acidental.®^
um número de telefone e uma linha de chat, m a s não inclui
P o r t a n t o , o s CPC p o d e m s e r c a r a c t e r i z a d o s d e m o d o j u s t o
nenhum endereço da clínica. A "Support Circle" [Círculo de
como centros empenhados em uma autorrepresentação
Apoio] é outra rede de clínicas antiaborto em minha região,
enganosa e em desinformação para explorar as necessidades,
cujo website a p a r e c e no topo de u m a busca no Google por
"preciso de um aborto agora", <https://supportcircle.org>. m e d o s e a n s i e d a d e s de m u l h e r e s q u e e n f r e n t a m u m a g r a v i d e z

49 Nicole Knight, "Crisis P r e g n a n c y Centers A r e Pretty Bad at


Dissuading People Seeking Abortion". 51 L a u r a B a s s e t t , " W h a t A r e 'Crisis P r e g n a n c y Centers'? and
50 Gutmacher Institute, "Crisis Pregnancy Centers OiTer Mislea- W h y Does the Supreme Court Care About Them?".
ding Information on Abortion Risks". 52 Kristen Dold, " T h e Truth About Crisis Pregnancy Centers".
182 .H

n ã o p l a n e j a d a . É i s t o q u e o A t o FACT d a C a l i f ó r n i a v i s a v a c o m A o rejeitar a c o n s t i t u c i o n a l i d a d e do A t o , d i f e r e n t e m e n -
s u a s duas obrigações simples. Primeiramente, todas as insta- te dos a r g u m e n t o s utilizados no c a s o Masterpiece Cakeshop,
lações de cuidados com a saúde licenciadas d e v e m ou a f i x a r n e m o s r e q u e r e n t e s d a NIFLA, n e m a C o r t e i n v o c a r a m o l i v r e
u m a n ú n c i o ou distribuir p a r a os clientes a seguinte decla- exercício religioso, e m b o r a a Corte d e s c r e v a os requerentes
r a ç ã o : "a C a l i f ó r n i a p o s s u i p r o g r a m a s p ú b l i c o s q u e o f e r e c e m c o m o u m "grupo de i n s t a l a ç õ e s m é d i c a s e n c o b e r t a s que con-
a c e s s o imediato gratuito ou a b a i x o c u s t o aos s e r v i ç o s a b r a n - t e s t a m o aborto por motivos religiosos" e o voto convergente
g e n t e s de p l a n e j a m e n t o f a m i l i a r (incluindo todos os m é t o d o s d o j u i z K e n n e d y s e r e f i r a a o s CPC c o m o " c e n t r o s d e g r a v i d e z
de c o n t r a c e p ç ã o a p r o v a d o s pela FDA"), c u i d a d o p r é - n a t a l e pró-vida"." Desse modo, os requerentes e a Corte l a n ç a m
aborto p a r a as m u l h e r e s elegíveis. P a r a s a b e r se v o c ê se clas- s o b r e a r e l i g i ã o o m e s m o v é u q u e o s CPC u s a m p a r a a t r a i r
s i f i c a c o m o tal, c o n t a t e a r e p a r t i ç ã o d e s e r v i ç o s s o c i a i s d e s u a clientes inadvertidos para s u a s dependências.®®
c i d a d e " . E m s e g u n d o l u g a r , t o d o s o s CPC n ã o l i c e n c i a d o s t a m -
A i n d a assim, o livre exercício religioso está por toda a
bém devem afixar u m aviso indicando que não são estabeleci-
p a r t e n e s s e c a s o . P r o t e g e n d o a m i s s ã o d o s CPC e n ã o o f e r e -
mentos médicos licenciados.®" N e n h u m a das obrigações seria
cendo n e n h u m a d i s c u s s ã o a respeito de s u a tática, a C o r t e
c o n t r o v e r s a s e o a b o r t o (e a p r o m o ç ã o d e a b s t i n ê n c i a s e x u a l )
a r g u m e n t a q u e o A t o f o r ç a o s CPC a a f i x a r u m a n ú n c i o o u
n ã o estivesse envolvido. N e n h u m a obrigação seria n e c e s s á r i a
a fornecer informações que coagem a expressão, violando
s e o s CPC n ã o e s t i v e s s e m e m p e n h a d o s e m t a n t a d i s s i m u l a ç ã o
"crenças profundas". AJCcrtc t — ^ r g u m e n ^ u e a lei d a M » v\
e d e s i n f o r m a ç ã o p a r a p r o m o v e r s e u s o b j e t i v o s . O A t o FACT
Califórnia n ã o j m o õ e divulgações objetivas, m a s j u r ^ ^
foi i m p o s t o a u m a i n d ú s t r i a e s t r u t u r a l m e n t e f r a u d u l e n t a e
d i ^ S a " e m u m a c o n t r o v é r s i a . T r a t a r o s CPC c o m o p o s s u i -
exploratória para combater essa fraude.
dores de direitos à livre e x p r e s s ã o só é p o s s í v e l por meio
da identificação e x a u s t i v a d a s "visões" de c a d a c e n t r o c o m
53 A Food and Drug Administration (FDA) á uma agência federal do seu quadro de funcionários®' - tornando a c r e n ç a partilhada
âmbito do Ministério de Saúde e Recursos Humanos dos EUA.
c o n s t i t u t i v a de s u a e x i s t ê n c i a e propósito. A l e g a n d o q u e n ã o
Entre outras incumbências, ela é responsável pela aprovação
h á u m significado ou c l a s s e e s p e c i a l de " e x p r e s s ã o profis-
(ou rejeição) de testes laboratoriais, v a c i n a s e remédios far-
macêuticos novos. Nesse sentido, é equivalente aproximada sional", m e s m o q u a n d o t r a t a os c e n t r o s c o m o e n g a j a d o s e m
da A n v i s a no Brasil, [N.T.] tal expressão, a Corte r e c o n h e c e implicitamente o estatuto
b a s e a d o e m c r e n ç a dos centros. O c a s o só é u m a q u e s t ã o de
54 E r w i n C h e m e r i n s k y e s c r e v e : "O estatuto da Califórnia foi
promulgado para que as mulheres recebessem informações
precisas a respeito da existência de p r o g r a m a s de saúde esta- 55 National Institute of Family Life Advocates v. Becerra, p. 2379-

tais. Ele ordena apenas que o aviso seja disponibilizado para 56 É claro, se o c a s o se a s s e n t a s s e sobre ou até m e s m o invo-
os pacientes. A s p a l a v r a s podem s e r i m p r e s s a s e entregues c a s s e o direito ao livre exercício da religião, poderia ter sido
aos pacientes ou clientes, ou o aviso pode ser afixado em uma mais desafiador revogar uma regulação de um centro de gra-
parede. N i n g u é m é obrigado a dizer nada. Tampouco existe videz que alega f o r n e c e r i n f o r m a ç õ e s de saúde e cuidados
a o b r i g a ç ã o de fornecer i n f o r m a ç õ e s adicionais; por exem- com a saúde.
plo. informações específicas sobre contracepção ou encami- 57 E m inglês, personell. Aqui, o termo, além de referir-se à equipe
nhamentos para uma clínica que faz abortos". E r w i n Cheme- de funcionários, t a m b é m p a r e c e remeter ao ato de personifi-
rinsky. "If It Wasn't Related to Abortion, California's FACT A c t cação dos centros para que estes possam, como seres huma-
Would Easily be Upheld by the Supreme Court". nos, gozar do direito ã liberdade de expressão, [N.T.]
164 185".5

liberdade de expressão porque a Corte trata os CPC como tais serviços apenas altera o conteúdo da expressão do centro
centros empenhados em uma posição oposta ao aborto e porque eles são empenhados em obscurecer essa disponibili-
potencialmente enfraquecida pela afixação dos avisos, e, dade. A alegação de que o texto altera a mensagem dos centros
lainda assim, não identifica essa posição com uma religião. endossa tacitamente a prática dos CPC de dissimulação e de
A corte, tal como os CPC, está mais preocupada em proteger não transparência, confirmando que sua "expressão" envol-
essa posição política, incluindo protegê-la da acusação de ve omissão, engodo e negação, que são contrariados por um
Ioferecer um cuidado baseado na fá, do que em proteger a "texto redigido pelo governo". A alegação reconhece que os cen-
pubhcidade comprometida com a verdade, a prestação de tros não são os fornecedores de saúde que simulam ser, mas
serviços médicos sem falsear os fatos e a autonomia - que lugares engajados em uma batalha política na qual garotas e
requer informações confiáveis - das mulheres que buscam mulheres podem ser manipuladas, porque insuficientemente
ajuda diante de uma gravidez não planejada. A Corte endos- informadas. Ao mesmo tempo, ao rejeitar o princípio de que a
sa o deslocamento de cada uma dessas questões pela morali- "expressão profissional" comporta qualquer restrição especial
dade tradicional liberta da interferência estatal e expandida sob a Primeira Emenda e reduzindo os falantes em questão aos
na esfera pública, incorporando precisamente a visão neoli- indivíduos que compõem a equipe dos CPC, ela autoriza quem é
beral articulada nos três capítulos precedentes. contrário ao aborto por motivação religiosa atuar de fachada
Na verdade, o voto majoritário não identifica o aborto nem como fornecedor não regulado de serviços profissionais.
como um direito, nem como um procedimento médico dispo- Nesse veio, é significativo que a Corte outorgue aos pró-
nível legalmente. Ao invés disso, ele retrata o aborto como prios centros direitos ã liberdade de expressão, mas identifi-
uma questão de controvérsia médica sobre a qual o Estado que indivíduos como aqueles cuja expressão é "coagida" pelo
não tem o direito de impor seu "ponto de vista" ou "mensa- Ato FACT. O aviso exigido a respeito de serviços fornecidos
gem preferencial"; um tópico em torno do qual as idéias dis- pelo Estado, escreve o juiz Thomas, coage os "indivíduos a pro-
sidentes deveriam ser resolvidas no "mercado das idéias"; e ferir uma mensagem particular", na medida em que "provêm
!um produto ao qual os CPC se opõem e, portanto, que eles um texto redigido pelo governo a respeito da disponibilida-
não deveriam ser obrigados a "propagandear". Em conjun- de de serviços patrocinados pelo Estado", um dos quais "é o
to, essas idéias convertem as divulgações exigidas pelo Ato aborto".®® Na verdade, o quadro de funcionários do CPC pre-
FACT em algo que a Corte julga ser uma expressão "basea- cisa falar pelo centro para cumprir o Ato FACT tanto quanto
da em conteúdo" e "específica de um ponto de vista". O juiz trabalhadores individuais "expressam" a mensagem contida
Thomas escreveu no voto majoritário: "a exigência do FACT em anúncios obrigatórios sobre higiene, segurança ou prote-
é baseada em conteúdo porque coage indivíduos a proferir ção a denunciantes [whistleblower] pendurados em seus locais
uma mensagem particular e porque altera o conteúdo de sua de trabalho. É somente porque o quadro de funcionários do
expressão" quando "os Centros têm de prover um texto redi- centro presumidamente está comprometido com a fraude
gido pelo governo a respeito da disponibilidade de serviços cometida pelos centros - somente porque os funcionários
patrocinados pelo Estado aos quais os requerentes devotam- são parte do engodo encenado - que se pode considerar que
se a se opor".®" No entanto, identificar a disponibilidade de as divulgações coíbem sua expressão.

58 National Institute of Family Life Admcates o. Becerra, p. 2365. 59 Ibid., p. 2 3 7 1 . Grifos nossos.
164 186".5

r~ o argumento de que as divulgações coagem a expressão eventualmente triunfará"" é igualmente perigosa na tentati-
também confessa tacitamente que a missão dos CPC é reli- va de restringir ou regular a expressão profissional, adiciona
giosa e política, mesmo que eles aleguem ser fornecedores ele. Citando o famoso encômio do juiz Holmes segundo o ^
de cuidados com a saúde. Se os cpc colocassem sua religião qual "a melhor prova da verdade é o poder do pensamento
e política no primeiro plano (o que minaria sua tática), a de se fazer aceito na competição do mercado", o juiz Tho- ,
"expressão profissional" não estaria em questão. Se eles mas ignora os esforços enérgicos dos CPC de distorcer esta •
fossem organizações francamente antiaborto cristãs ofere- competição e de prevenir que suas próprias idéias sejam „
cendo ajuda a mulheres grávidas em busca de tal auxílio, a transparentes o suficiente para serem testadas no merca-J
discussão para saber se a expressão profissional pode ser do.®" Se os CPC buscassem fazer sua verdade triunfar em um
regulada seria irrelevante para o caso. O pretexto dos cpc de mercado das idéias, eles abririam mão de suas artimanhas,
que oferecem serviços profissionais ao público, entretanto, de sua desinformação e de seus engodos. Eles não temeriam
exige que a Corte lide com a questão de saber se a expressão placas nas paredes informando os clientes dos fatos. Que a
profissional pode estar sujeita a restrições especiais, presu- Corte endosse sua reivindicação de liberdade de expressão
midamente compatível com a ética, o conhecimento e as res- em nome de "um mercado de idéias desinibido" talvez diga
ponsabilidades da profissão. A Corte conclui que a expressão tanto a respeito dos padrões de mercados "livres" quanto
profissional possui as mesmas proteções da Primeira Emen- sobre a "expressão" hoje - nenhum dos quais seria reconhe-
da que qualquer outro tipo de expressão, uma conclusão que cido como tal em tempos anteriores.
pode ser tratada facilmente como animada por um espírito
Há um segundo problema relacionado a este: qual é a
antirregulatório. É isso que o juiz Breyer faz em seu voto
relação postulada pelo juiz Thomas entre um livre mercado
divergente. Embora se baseie inequivocamente nos impulsos
de idéias putativo no qual a competição produz um vencedor
do voto majoritário a esse respeito, o argumento contrário à
e o reino de "crenças profundas" daqueles cuja expressão ele
restrição da expressão profissional realiza algo muito mais
alega ser coagida erroneamente pelas divulgações exigidas?
significativo ao permitir que militantes antiaborto de moti-
Mesmo se aceitamos a validade do "mercado de idéias" para
vação religiosa atuem sob a fachada de fornecedores não
algumas coisas, como ele se aplica a questões de consciência
regulados de serviços profissionais.
e fé religiosa? O pl^J^^^lis^^" ^^^
A coisa se desdobra da seguinte forma. Profissões, opina realmente deveria gerar vencedores de uma c o m p e t í ç l ^
o juiz Thomas, e, logo, expressões profissionais, são impos- (57êinõ'Hã'^ão é o espaço em que mercados, competição
síveis de se definir precisamente, e qualquer esforço para e outras provas da crença são deixados em segundo plano,
tal envolve um estatismo nefasto que confere aos Estados em que os indivíduos têm crenças inexplicáveis para outrem,
um "poder desenfreado de reduzir os direitos garantidos para a razão ou a verdade? Não é esse parcialmente o motivo
pela Primeira Emenda de um grupo ao simplesmente impor pelo qual são garantidos um porto seguro e privado ã crença
\ uma exigência de licenciamento".®" A perspectiva de dis- e à consciência em uma ordem democrática secular?
torcer o "mercado de ideias desinibido no qual a verdade

61 p. 2518.
60 Ibid., p. 2375. 62 p. 616.
220 1 8 9

Se tudo isso procede, a^m^cação de Thomas de um "mer-


secundário em relação a propósitos religiosos disfarçados

¥t-l cado de idéias hvre" para a convicção religiosa opera como


um ato falho revelador, segundo o qual um princípio liberal
considerado apropriado ao domínio do mercado ou da poli-
de serviços profissionais.
A Corte, entretanto, entrevê um risco muito diferente
nesse caso. Ela não se preocupa com a verdade, transpa-
c é acidentalmente transposto para o reino da fé ou
segundo o qual o reino da fé colapsa na política e no merca- rência, responsabilidade, normas profissionais ou com uma
do. O ato falho sugere o mesmo sintoma niilista que vislum- potencial exploração dos vulneráveis. Ao contrário, o risco
bramos no caso Masterpiece Cakeshop, na medida em que distintivo identificado tanto no voto majoritário quanto no
lança a crença em um mercado em que a publicidade, estra- convergente é a imposição de uma "expressão estatal" aos
tégias de branding e a definição de públicos-alvo são todos CPC. O perigo está nas divulgações coiriaadadas pelctEstado,
meios apropriados de se competir e de se vencer. Ele mobi- e não nos cristãos evangelistas fantasiados com os aventais
liza as alegações ostensivamente verificáveis da expressão brancosTlszproftssãp^Jiiédica.®® Tanto o voto majoritário
política para as doutrinas inverificáveis da fé, deixando quanto o convergente chegam ao ponto de identificar o Ato
FACT com o estatismo de regimes autoritários ou totalitá-
claro que a batalha em torno do aborto é fundamentalmen-
te política e que os CPC são entidades com motivação políti- rios. O Estado "se expressa", escreve o juiz Thomas, não em
ca, a despeito de obterem proteção para sua expressão com nome do interesse público, da saúde pública ou da demo-
base na consciência. Assim, ele revela que a Corte permite cracia, mas com o poder de "suprimir idéias ou informações
a reivindicação de liberdade de exnressão para prover um impopulares" e de promover seu próprio "ponto de vista".®^
véu nara uma agência pública de motivação religiosa- ao
imesmo tempo, a Corte permite que uma reivindicação reli- 63 Por um lado, centros não licenciados sem profissionais médicos
giosa isente os CPC da responsabilidade com a publicidade ou outros especialistas no quadro de funcionários pode escon-
der esse fato de clientes em potencial enquanto continuam a
^ comprometida com a verdade e de outras formas de regula-
se apresentar como instalações pseudomédicas. Por outro, a
ção. Assim CQmo no casoílaj^asternipnp C^^keshnn a Corfp
"expressão profissional" é protegida, não precisa ser factual, e,
Cermite que o veículo d a j ^ e r d a d e de exnrp^.an do.s.^íM- em suas declarações, pode desfrutar de quaisquer "crenças
lite a fuga da cristandade conservador« Hp Pcfpr^ orivada filosóficas, éticas ou religiosas (o parecer coloca 'preceitos' no
para se tornar uma força na esfera c o m e r c i a l T ^ ^ í ^ e lugar de crenças'). Uma vez que os centros não fornecem ou
ao m e s n ^ m p o ^ a protege ramo reliaião ("crença"! p-^tra' encaminham para abortos, e que os abortos são controversos,
lei'=.a^reguiamajóda_c^^ Esse é o ver- a obrigação do caso Zauderer, segundo a qual deve-se dispo-

dadeiro significado da insistência da Corte de que não há nibilizar "informações objetivas e incontroversas dos termos
sob os quais os serviços estarão disponíveis", é considerada
nada distintivo na "expressão profissional" ao se considerar
como não aplicável aos CPC — abortos não estão disponíveis e
a extensão da Primeira Emenda. Ao tratá-lo como um caso
também são controversos. Acima de tudo, o voto majoritário,
de direitos da expressão profissional e, simultaneamente, em conjunto com a convergência de Kennedy (com Roberts,
como de expressão coagida em um local de crenças profun- Alito e Gorsuch junto) enquadra os esforços do Estado de exi-
das, a Corte cria um portal através do qual deturpações e gir a divulgação como uma questão "partidária" e, pior, uma
até mesmo fraudes tornam-se expressões protegidas. Ver- questão de o Estado passar dos limites de forma totalitária. Cf.
dade, transparência e responsabilidade ocupam um lugar National Institute of Family Life Advocates v. Becerra, p. 2379.
64 Ibid., p. 2382.
220 1 9 0

C o n s i d e r a n d o que isto é típico de g o v e r n o s que historica- crenças" - 0 que representa u m a perseguição às minorias
m e n t e " m a n i p u l a r a m o c o n t e ú d o do d i s c u r s o m é d i c o - p a c i e n - p o r s e u d i s s e n s o e m r e l a ç ã o ã p o s i ç ã o do E s t a d o - , K e n n e d y
te" p a r a a m p l i a r o p o d e r e s t a t a l e s u p r i m i r a s m i n o r i a s , ele a t a c a a d e c l a r a ç ã o da m a i o r i a legislativa da C a l i f ó r n i a de
cita a jurista Paula Berg:
q u e a a p r o v a ç ã o do a t o r e p r e s e n t a o l e g a d o d e " p e n s a m e n -
to p r o g r e s s i s t a " d a C a l i f ó r n i a . " ' T r a t a n d o e s s a d e c l a r a ç ã o
D u r a n t e a R e v o l u ç ã o C u l t u r a l , os m é d i c o s c h i n e s e s e r a m c o m o a c o n f i s s ã o a b e r t a d e u m E s t a d o c o m m o t i v a ç ã o ideo-
N enviados ao interior p a r a c o n v e n c e r os c a m p o n e s e s a u s a r
lógica, K e n n e d y escreve:
' contraceptivos. Nos anos 1 9 3 0 , o governo soviético acelerou
o término de um projeto de construção na e s t r a d a de ferro da P e n s a m e n t o p r o g r e s s i s t a não á f o r ç a r indivíduos a "ser u m
Sihéria ordenando os médicos a [...] rejeitar pedidos de licen- i n s t r u m e n t o de promoção de adesão pública a um ponto de
ça médica do trabalho. [...] N a A l e m a n h a nazista, os médicos v i s t a ideológico que eles a c h a m inaceitável". Wooley contra
a l e m ã e s eram ensinados que eles t i n h a m um dever maior em Maynard, 4 3 0 U.S. 7 0 5 , 7 1 5 (977)- Pensamento p r o g r e s s i s t a é
relação à "saúde do Volk" do que à saúde de pacientes indivi-
c o m e ç a r lendo a Primeira E m e n d a tal qual retificada em 1 7 9 1 ;
duais. Recentemente, a estratégia de Nicolae C e a u ç e s c u p a r a
entender a h i s t ó r i a do g o v e r n o autoritário como os F u n d a -
aumentar a t a x a de natalidade da Romênia incluiu proibições
dores a s a b i a m então; c o n f i r m a r que a história desde então
contra o aconselhamento de pacientes sobre o uso de métodos
m o s t r a quão implacáveis são os r e g i m e s autoritários em sua
de controle de natalidade."®
tentativa de s u f o c a r a liberdade de e x p r e s s ã o ; e l e v a r e s t a s
lições adiante [...]. Não se deve permitir que governos forcem
A a n a l o g i a e n t r e o A t o FACT e r e g i m e s r e p r e s s i v o s do p e s s o a s a e x p r e s s a r u m a m e n s a g e m c o n t r á r i a às s u a s con-
s é c u l o XX q u e m a n i p u l a v a m d i r e t a m e n t e m é d i c o s e s a ú d e v i c ç õ e s m a i s p r o f u n d a s . A liberdade de e x p r e s s ã o a s s e g u r a
pública com fins estatais n e f a s t o s pode p a r e c e r u m a hipér- a liberdade de pensamento e de crença. E s t a lei põe em risco
bole. A i n d a a s s i m , a h i p é r b o l e d e T h o m a s é s u a v e s e c o m - e s s a s liberdades.""
p a r a d a c o m a do j u i z K e n n e d y . S e u v o t o c o n v e r g e n t e , c u r t o
e furioso, a c o m p a n h a d o pelos j u í z e s Alito e G o r s u c h , des- N a m e d i d a e m que tanto o voto majoritário quanto o con-
t r u i n d o o e s f o r ç o d a C a l i f ó r n i a de r e g u l a r os CPC, d e n u n c i a v e r g e n t e i d e n t i f i c a m o A t o FACT c o m a u t o r i t a r i s m o e s t a t i s t a ,
"a d i s c r i m i n a ç ã o pelo p o n t o d e v i s t a [...] i n e r e n t e a o d e s e n h o eles a c u s a m a Califórnia de f o r ç a r indivíduos a " e x p r e s s a r "
e à e s t r u t u r a " do A t o FACT, p o r m e i o do q u a l a " m e n s a g e m e " p r o p a g a n d e a r " a " p o s i ç ã o " do p r ó p r i o E s t a d o e m u m a
p r e f e r i d a " do E s t a d o " p r o p a g a n d e a n d o a b o r t o s [...], c o a g e os " c o n t r o v é r s i a " . M a s o A t o FACT n ã o s u f o c a a e x p r e s s ã o e,
indivíduos a contradizerem s u a s crenças mais profundas".®" c o m o v i m o s , é u m e x a g e r o a l e g a r q u e ele c o a g e a e x p r e s s ã o .
A d i c i o n a n d o a ideia de que h á u m a "possibilidade real de A s divulgações obrigatórias nem promovem e nem propa-
q u e e s t e s i n d i v í d u o s t e n h a m s i d o o a l v o por causa de s u a s g a n d e i a m a b o r t o s , m a s s i m p l e s m e n t e c o r r i g e m os e n g o d o s
d e l i b e r a d o s e s i s t e m á t i c o s d o s CPC a o b u s c a r e a t e n d e r clien-

65 p. 2374. Cf. Paula Berg, "Towards a First Amendment Theory tes. A Califórnia b u s c a a s s e g u r a r que os cidadãos t e n h a m
of Doctor-Patient Disclosure and the Right to Receive Unbia-
sed Medical Advice".
67 Loc. cit.
66 National Institute of Family Life Advocates v. Becerra, p. 2379. 68 Loc. cit.
220 192

acesso aos fatos que os CPC não querem que eles tenham. centros no caso: a Corte só se preocupa em proteger as "cren-
Ela está corretamente preocupada com operações políticas ças profundas" do quadro de funcionários do CPC, enquanto
fingindo serem instalações médicas e desinformando a clien- o Ato FACT SÓ está preocupado em regular as dissimulações
tela que elas frequentemente aliciam sob falsos pretextos. e deturpações sistemáticas da indústria do CPC, as quais,
A Corte, em contrapartida, atou as mãos da lei de modo que vale relembrar, sequer aparecem no acórdão da Corte. Isso^
instituições religiosas evangélicas podem operar de modo liga o caso da NIFLA com aqueles que protegem a "expressão"
irrestrito na esfera da saúde pública. Ela o fez ao demonizar corporativa, casos em que as corporações são identificadas
a legislação democrática como autoritarismo em nome do com as pessoas que as possuem e em que os direitos civis
interesse público e ao alargar as esferas desreguladas tanto previstos para indivíduos são usados para desregular con-
- dos mercados quanto da moralidade. dutas profissionais ou comerciais. Ao tratar as regulações
A questão não é que obviamente a Corte tenha tomado o concebidas para forçar transparência nos CPC como viola-
lado dos requerentes antiaborto da NIFLA. O ponto é que ela ções da liberdade de expressão de indivíduos, a Corte reduz
tacitamente afirmou e rephcou a tática dos CPC, pois aceitou o interesse público ao "ponto de vista" do Estado e contesta
o modo pelo qual a NIFLA apresentou o caso. Ela possibilitou o a democracia em prol da moralidade em nome da liberdade. /
uso do Estado feito pelos próprios CPC - pelo qual eles obtêm Em terceiro lugar, ao tratar os anúncios exigidos como
fundos públicos e proteção sob a Primeira Emenda para pro- expressão estatal oposta ã expressão do CPC e ao declarar
mover, sem regulação ou supervisão, a moralidade tradicio- que o Ato FACT "regula a expressão enquanto expressão", a
nal no domínio público, sob o signo da liberdade. Ao mesmo Corte converte a regulação de interesse público em posicio-
tempo, sem mencionar a liberdade religiosa, a Corte autorizou namento partidário.«» Lançar mdo c o n ^ e x p r e s s ã o trans-
grupos religiosos a operarem livremente na vida cívica comer- fprma^tudo em um ponto de vista e trata todos os pontos
1 ciai e pública. Isso dependeu dos seguintes movimentos. de vista como eguivalenís?. Isso também faz tudo ser apro-
Em primeiro lugar, a Corte tratou as divulgações exigi- priadamente sujeito ã "competição no mercado das idéias",
das pelo Ato FACT como uma expressão propagandeando o no qual nenhum competidor deveria ser obrigado a fazer
aborto e promovendo o ponto de vista do Estado em uma propaganda de outro. Transformar tudo em expressão ime-
"controvérsia" ética e política. A designação do aborto como diatamente obscurece e legitima os engodos deliberados dos
controverso é como a Corte transforma fatos em pontos de CPC; isso reformata esses engodos como táticas cotidianas
vista e informações a respeito dos cuidados com a saúde em na luta competitiva por uma participação no mercado dentro ,
propaganda para esses pontos de vista. do mercado das idéias.^"
Em segundo lugar, o parecer identifica que a expressão
Em quarto lugar, as "crenças profundas", protegidas como
do quadro de funcionários do CPC foi violada pelo Ato FACT.
expressão, tornam-se a base para a rejeição da regulação e
Esta identificação reconhece implicitamente que os cpc são
também conectam o caso da NIFLA ao da Masterpiece Cake-
o instrumento de indivíduos comprometidos com a preven-
shop. Embora a NIFLA não acione a cláusula do livre exercício
ção de abortos, mesmo que o Ato FACT exija que os centros,
e não os indivíduos, afixem as divulgações. O foco na expres-
69 Ibid., p. 2374.
são coagida dos indivíduos, entretanto, tem o importante
70 i Eles não estão disputando a verdade, mas sim a clientela, e
efeito de eliminar a consideração das operações dos próprios
I quanto menos os clientes souberem, melhor.
1 195

religioso, e s s a cláusula está à espreita n a s sombras, assim m a j o r i t á r i o a m e a ç a " a v a l i d a d e c o n s t i t u c i o n a l de b o a p a r t e


como propósitos e financiamentos conservadores cristãos da r e g u l a ç ã o g o v e r n a m e n t a l , talvez de s u a maioria", o voto
o r g a n i z a d o s e s t ã o à e s p r e i t a n o s q u a r t o s d o s f u n d o s d o s CPC, t a m b é m r e d e f i n e a r e l a ç ã o e n t r e a m o r a l p r i v a d a ou a s v i s õ e s
m a s r a r a m e n t e a p a r e c e m e m s u a s v i t r i n e s o u e m s e u s sites. religiosas e as preocupações democráticas com as proteções
Por fim, a "controvérsia" é mobilizada c o m o u m a desig- contra distorções, mentiras e engodos na representação e
nação para limitar a regulação estatal em geral e as deman- no f o r n e c i m e n t o de s e r v i ç o s p a r a u m público inadverti-
das por responsabilidade factual em particular. Ela convecte d o . " A s s i m como no caso da M a s t e r p i e c e Cakeshop, o voto
e m p o n t o s de v i s t a a p r ó p r i a r e g u l a ç ã o e s t a t a l , a s s i m c o m o promove u m a implantação da moralidade t r a ü c i o » a l e u m
q u a l q u e r e s p a ç o p o r ela m o l d a d o - logo, q u a l q u e r Ê s p a ç o e m retrocesso na regulação governamental que, em conjunto,
que o tradiciôjiaítemoiBeral contesta asjjrotecões democrá- t r a n s f o r m a m u m a sociedade organizada por principios e
t i c a s c o n t r a a d i s c r i m i n a ç ã o ou a í r a t a m e n t o d e s i g u a l . I s s o d e c i s õ e s d e m o c r á t i c o s e m algo outro. A s s i m c o m o no c a s o
legitima a exigência de que a g ê n c i a s de s e r v i ç o s reproduti- Masterpiece Cakeshop, o voto tanto fortalece a moralidade
v o s i n f o r m e m a s m u l h e r e s a respeito de o p ç õ e s de adoção, cristã na esfera social quanto debilita a justiça a s s e g u r a -
m a s n ã o de a b o r t o (a a d o ç ã o é f o r m a l m e n t e i n c o n t r o v e r s a ) . da pelo E s t a d o . Isso se tornou u m a e s t r a t é g i a - c h a v e legal
A " c o n t r o v é r s i a " p r e c e d e a s r e i v i n d i c a ç õ e s d e l i b e r d a d e de
p a r a realizar a a m b i ç ã o de H a y e k de substituir a democra-
expressão e cancela a responsabilidade com a ciência, a
cia social e a justiça social por u m a ordem o r g a n i z a d a pelo
saúde pública e a proteção ao c o n s u m i d o r . "
mercado e pela moralidade tradicional. <
Por meio d e s s e s cinco movimentos, s e m s e q u e r mencio- F i n a l m e n t e , o v o t o é c o m p a t í v e l c o m e i n c i t a o n i i l i s m o de
n a r a liberdade religiosa, a S u p r e m a Corte autoriza os gru- n o s s a e r a , s e g u n d o o q u a l os v a l o r e s s ã o i n s t r u m e n t a l i z a d o s
pos religiosos a evitar a responsabilidade com a ciência ou a conforme perdem seus fundamentos e tornam-se cassetetes
regulação, na medida e m que liberam seu poder de agir na p o l í t i c o s ou m a r c a s c o m e r c i a i s . O v o t o a f i r m a e s s e n i i l i s m o
v i d a c i v i c a , c o m e r c i a l e p ú b l i c a . " A l é m do q u e o j u i z B r e y e r em seu comportamento com a taticalização da religião e o
argumentou em sua divergência, a saber, que o voto destronamento da verdade na vida pública. Ele transforma
a p r ó p r i a S u p r e m a C o r t e d o s EUA e a C o n s t i t u i ç ã o q u e e l a
é obrigada a interpretar em a r m a s para as g u e r r a s cultu-
71 Tamara Piety, Brandishing the First Amendment, capítulos
|[5 e 6. Esse uso da "controvérsia" também é o que liga o caso rais. Ele é o sinal de u m m u n d o repleto de "fake news", um
|(NIFLA à estratégia maior da direita de colocar a preocupação m u n d o no q u a l a c r i s t a n d a d e c o n s e r v a d o r a , a p r o p r i e d a d e
èom evidências acadêmicas entre parênteses ao argumentar e a riqueza são fortalecidas como liberdades contra a demo-
a favor dos direitos de "posições impopulares" ou de "equi- c r a c i a social e política.
I jíbrio" nas salas de aula e nos livros didáticos. Ela legitima
apelo pela inclusão de materiais sobre o criacionismo nas
mias de ciência, a negação do Holocausto nas aulas de histó-
--ia e a suposta base genética da desigualdade socioeconómica
racial nos estudos sociais.
72 Pode-se muito bem argumentar que se os cpc são grupos clínicas da mulher oferecendo serviços relativos à gravidez,
antiaborto, eles deveriam declará-lo abertamente e ser pro- eles deveriam ser regulados.
tegidos pela Primeira Emenda. Se, por outro lado, eles são 73 National Institute of Family Life Advocates v. Becerra, p. 2380.
CAPITULO 5

Nenhum futuro
para homens
brancos: niilismo,
fatalismo e
ressentimento
NIILISMO E D E S S U B L I M A Ç Ã O

Segundo Nietzsche, o niilismo começa com a ascensão da


razão e da ciência como desafios a Deus e a outras formas
de autoridade, desafios que revelam como todo significado
é construído e como todos os fatos são despidos de significa-
do inerente. Max Weber chama isso de "desencantamento".
Tolstói, de "dessacralização" - suas diferentes inflexões e
abordagens da questão convergem no acordo de que o valor
intrínseco abandona o mundo. No entanto, para Nietzsche,
a era do niilismo não produz o fim dos valores, mas um
mundo no qual "os valores mais elevados desvalorizam-se",
na medida em que são desatracados de seus fundamentos.'

1 Hans Sluga chamou minha atenção para este aspecto do nii-


lismo de Nietzsche e a importância de sua dessublimação da
198
199

Esses valores, que incluem as virtudes cristãs junto com


se relacionado com prostitutas ou por terem pago abortos
democracia, igualdade, verdade, razão e responsabilidade
para amantes — essas coisas não causam choque, mas uma
nao desaparecem à medida que perdem seus fundamentos'
careta cúmplice, a assinatura do niilismo.
mas se tornam fungíveis e triviais, superficiais e facilmente'
No entanto, a explicação profunda de Nietzsche sobre o
mstrumentalizáveis.^ Essas trivialização e instrumentali-
niilismo foi limitada por sua preocupação com Deus e com a
zação, ubíquas hoje na vida comercial, política e até mesmo
moralidade na medida em que estes estavam sendo desafia-
religiosa, degradam ainda mais o valor dos valores, o que
dos pela ciência e pela razão. Abordar o niilismo desse modo
produz ainda mais niilismo... uma espiral infinita que molda
exclui a força niilista de outras potências humanas que são
a cultura e a subjetividade políticas. Quando um discurso de
descontroladas e perigosas, uma ordem na qual a onisciên-
Martin Luther King Jr. sobre servir ao próximo é usado numa
cia e a onipotência, tanto de Deus quanto do homem, são
propaganda de caminhonetes da Dodge durante o Super Bowl
tombadas. Ou, como ensina Carl Schmitt em seu "Diálogo
quando se revela que o clero católico molestou milhares de'
sobre o poder", quase simultaneamente ao reconhecimento
crianças enquanto seus supervisores faziam vista grossa
de que o próprio poder é radicalmente humano, de que ele
quando políticos de "valores morais" são expostos por terem'
não deriva nem da natureza e nem de Deus, há a supera- '
ção de sua contenção dentro dos e pelos humanos, um fim ã
vontade de potência em "Donald Trump: B e t w e e n Popular
dialética entre potência e impotência. Com a Modernidade,
Rhetoric and Plutocratic Rule", um artigo esplêndido apre- argumenta Schmitt, o poder humano não somente perde sua
sentado no Simpósio de Teoria Critica da U n i v e r s i d a d e da face humana (reis, barões, milícias), como também assume
Cahfórma. Berkeley, sobre a eleição em fevereiro de . 0 1 7 O novas formas que difundem e multiplicam seus efeitos. Essa
artigo de Sluga é parte de sua pesquisa mais ampla e ainda difusão e multiplicação significa que o poder passa a ser
em curso sobre o niilismo. Eu me apoio firmemente em sua lei-
direcionado contra todos, "até mesmo o detentor do poder".'
tura de Nietzsche sobre o niilismo nos parágrafos seguintes.
Trata-se de uma força multiplicadora e intensificadora sem
O nnlismo de Nietzsche, escreve Sluga. "não é um niilismo
em que não h á nenhum valor; o niilismo não é u m a condi-
respeito por seus criadores, que excede a vontade de potên
ção na anomia; antes, é um estado no qual os valores que cia e qualquer instituição ou indivíduo.^ Essa também é oca-
possuímos tornaram-se desancorados. Isso se mostra numa sião para o ressentimento, progénie eterna do poder, difun-
m u l t i p h c a ç a o de valores, na produção de v a l o r e s s e m p r e dir-se amplamente, para muito além daqueles que sofrem^
novos, m a s t a m b é m em s u a desvalorização sempre renova- de alguma opressão ou privação imediata. À medida que
da em seu descarte e substituição constantes. Os próprios
valores perderam, assim, seu valor; e, c o n s e q u e n t e m e n t e ,
nao há valores mais elevados ou rebaixados; todos os valo-
3 Carl Schmitt, Dialogues on Power, p. 47.
res sao iguais; eles se tornaram modas que vêm e vão, todas
4 O diagnóstico paralelo de M a x W e b e r focou mais estreita-
Igualmente triviais. Sob essa condição, nenhuma grandeza
mente no fenômeno do processo de racionalização desenca-
e mais possível; a própria trivialidade torna-se um de nossos
deado pela ascendência da racionalidade instrumental sobre
valores. Um sinal dessa forma de niilismo é a dissolução da
a racionalidade orientada por valores. O m a r x i s m o nos deu
distinção entre verdadeiro e falso, o momento em que não

t f - - ^—
a fantasia da recontenção ao local da produção, ignorando
todas as o u t r a s f o r m a s de poder não englobadas por e s s a
recontenção.
ro
200 201

formas historicamente novas de poder e seu caráter ubíquo e neoliberalização na medida em que dessublima a vontade de
irrestrito inédito frustram os poderosos e bem posicionados,
• potênciaem moralidade.® A coisa se passa do seguinte modo.
bem como os espezinhados, e à medida que elas destroçam
Conforme o niilismo desvaloriza os valores (tornando
inadvertidamente privilégios e formas de vida familiares, o
ocas sua fundação e verdade), ele reduz a reivindicação e a
ressentimento perambula por todas as partes.
força da consciência tanto formada pelos valores quanto a
O foco de Schmitt era em concentrações de poder nol
eles acorrentada. Mais do que simplesmente tornar os sujei-
Estado-nação e em novas formas de tecnologia, tal qual a
tos menos atados à consciência, há uma série de efeitos em
bomba atômica: os noderes não dirÍRidos do capital não esta-
cascata, sendo o mais importante a dessublimação da vonta-
vam em sua mente, as técnicas ímpares de administração
de de potência. Lembrem-se que a sublimação da vontade de
da vida humana que Foucault denominou "biopoder" não
potência, exigida pela moralidade judaico-cristã, inclui voltar
estavam em seu léxico e a financeirização e digitalização
a vontade contra si mesma. Esta inflexão da vontade de potên-
implacáveis ainda não haviam nascido. Em conjunto, tais
cia para seu interior, desencadeada sobre o sujeito, é o que
poderes intensificam o problema identificado por Schmitt
Nietzsche (e Freud, de modo diferente) colocam no lugar da
e geram um outro com o qual ele não contara. O paradoxo
consciência. É por isto que ambos tratam a consciência como
dos poderes criados pelos humanos que rebaixam o huma-
autocrueldade, e não somente como autocontenção. A cons-
no - especialmente sua capacidade de moldar seu mundo,
ciência é a formação por meio da qual atacamos internamente
atingindo novas intensidades no exato momento em que se'
e repreendemos a nós mesmos, e não somente nos coibimos..
revela que essa capacidade é tudo o que existe - , é isso que
À medida que a desvalorização niilista dos valores alivia
gera novos e mais numerosos sujeitos do ressentimento e
a força da consciência, ela nos liberta da coação, da culpa
. um niilismo que vai além dos sonhos lúcidos de Nietzsche.
e do abuso que a consciência impõe a si. A dessublimação
Insisto, Nietzsche refletiu a respeito do niilismo que emana
lança de volta para fora a vontade de potência, na medida em
do tombo acidental do divino pelo humano; ele não explorou
que liberta o sujeito da chibata e da coação da consciência..
as formações de poder que trivializam os valores morais e
Hans Sluga coloca a questão do seguinte modo: "com o nii-
, que os corrompem e desafiam abertamente.
lismo, há um recuo e um colapso da vontade de potência à
E tem mais. O lado ernnnTi-il^í.,cir>to Hr. .nPoliJjPj-aJjQTnn
sua forma elementar [...], até mesmo a religião e o apelo aos
adicionou forca e acelerou o niilismo de n o s ^ e r a . Primei-
valores religiosos se tornam instrumentos cínicos para o uso
ED ao não deixar nadajntocado gelo empreei^edorismo e
irrestrito do poder".® Não obstante, nesse colapso há mais
pela monetização; depois, com a financeirizacão. ao subme-
em jogo do que uma vontade de potência desenfreada pela
ter todos qs>s'^cfoldaexisí,ên£Ía humana a cálculos de
humildade ou pela ética. Ao contrário, escreve Sluga, "o que
investimento sobre seu valor futuro. Conforme nos tornamos
também é descartado nessa vontade desenfreada de potên-
capital Humano de cima a baixo, e também em nosso íntimo,
cia é qualquer consideração por outrem [...], particularmen-
o neoliberahsmo torna a venda da alma algo cotidiano, e não'
te pelo pacto entre gerações sobre o qual se assentou toda
um escândalo. E reduz o que restou da virtude ao branding,
para o capital grande e pequeno. Mas a economicização, com
5 Foi novamente Sluga quem chamou minha atenção para isso.
seu efeito nos valores, não é o único problema aqui. O nii-
Hans Sluga, op. cit, p. 17.
lismo também se faz valer no projeto de valores morais na
6 Ibid., p. 17.
220 2 0 3

n o s s a ordem social até a q u i V S e e s s a força dessublimada, tivo, n ã o s e n d o m a i s s e q ü e s t r a d o n a e s t é t i c a ou n a f a n t a s i a


c o m u m t o q u e d a dor de u m a f e r i d a (a m a s c u l i n i d a d e b r a n - utópica, o prazer se torna parte da maquinaria.
c a d e s t r o n a d a ) , flui n a p o l í t i c a d o s v a l o r e s t r a d i c i o n a i s hoje, A t é aqui, isso tudo é familiar. O p r ó x i m o p a s s o de M a r -
nós não poderíamos estar mais distantes da conformidade
cuse, ao desenvolver as implicações da dessublimação
v o l u n t á r i a c o m a s r e g r a s e c o m a o r d e m e s p o n t â n e a q u e os
repressiva, recai mais diretamente sobre nosso problema.
intelectuais neoliberais e s p e r a v a m que a tradição viesse a
De acordo c o m M a r c u s e , a d e s s u M i m a ç ã o não libertadora
p r o v e r . A força se tornou outra coisa.
leva à "c^onsciênciaJMlz". o t e r m o de Hegel p a r a resolver o
M e n o s de u m s é c u l o a p ó s N i e t z s c h e , H e r b e r t M a r c u s e c o n f l i t o e n t r e d e s e j o e e x i g ê n c i a s s o c i a i s p o r m e i o do ali-
considerou a dessublimação sob u m ângulo diferente ao teo- n h a m e n t o da consciência individual com o regime. M a r c u s e
r i z a r a d e s c a r g a n ã o l i b e r t a d o r a de e n e r g i a s i n s t i n t i v a s n o r e c o r r e a F r e u d e a M a r x p a r a r a d i c a l i z a r a f o r m u l a ç ã o de
c a p i t a l i s m o do p ó s - g u e r r a . A " d e s s u b l i m a ç ã o r e p r e s s i v a " - Hegel: n a s c u l t u r a s n o r m a l i z a d a s de d o m i n a ç ã o , a "cons-
f a m o s a e x p r e s s ã o c u n h a d a p o r ele - o c o r r e d e n t r o de u m a c i ê n c i a i n f e l i z " é o e f e i t o d a c o n s c i ê n c i a - a c o n d e n a ç ã o do
o r d e m de d o m i n a ç ã o e de e x p l o r a ç ã o c a p i t a l i s t a e d e " n e c e s - " m a l " pelo s u p e r e u u r g e tanto no eu [self] q u a n t o na socieda-
sidades falsas", ã medida que a tecnologia atende melhor d e . " A c o n s c i ê n c i a é, a s s i m , i m e d i a t a m e n t e u m e l e m e n t o
as necessidades das pessoas e que o desejo é incorporado n o a r s e n a l do s u p e r e u p a r a a i n i b i ç ã o i n t e r n a e u m a f o n t e
em todo lugar n u m a cultura da mercadoria fruída por u m a de j u l g a m e n t o m o r a l sobre a s o c i e d a d e . ^ a d o que a dessu-
classe média crescente. E s s a ordem proporciona prazer em b l i m a ç ã o r e p r e s s i v a oferece u m alívio d e s s a c e n s u r a estrita
a b u n d â n c i a , incluindo aquele decorrente da r e d u ç ã o radi- e dá l u g a r ã " c o n s c i ê n c i a feliz" (um eu m e n o s cindido por
'cal das restrições ã sexualidade (menos trabalho estafante s e r u m e u m e n o s c o n s c i e n t e m e n t e reprimido), a c o n s c i ê n c i a
exige menos subhmação), m a s não emancipação. A s ener- é a primeira baixa. É importante frisar que a consciência
gias instintivas, não estando mais contrariadas por imposi- n ã o r e l a x a s o m e n t e e m r e l a ç ã o ã c o n d u t a do p r ó p r i o sujeito,
ç õ e s d a s o c i e d a d e e d a e c o n o m i a e, logo, n ã o m a i s e x i g i n d o m a s t a m b é m aos males e enfermidades sociais... que não são
repressão e sublimação intensas, são agora cooptadas e se m a i s r e g i s t r a d o s c o m o t a i s . E m o u t r a s p a l a v r a s , n e s s e con-
d e s t i n a m à produção e ao m e r c a d o capitalista. C o n f o r m e o texto, menos renressão leva a " m sunereu m e n o s exigente,
prazer e especialmente a sexualidade são incorporados em ou s e i a , m e n o s c o n s c i ê n c i a , o a u j . e m u m a s o c i e ^ d e i n d i -
t o d o s os l u g a r e s d a c u l t u r a c a p i t a l i s t a , o p r i n c í p i o de p r a z e r v i d u a l i s t a e n ã n PTnannir,ada. . s i £ n i f i c a . m e i i n s c o n s i d e r a n ã o
e o p r i n c í p i o de r e a l i d a d e p e r d e m s e u a n t i g o a n t a g o n i s m o . » é t i c a e politicagem eeral- N a s p a l a v r a s d e M a r c u s e , "a p e r d a
O p r a z e r , a o i n v é s de s e r u m a c o n t e s t a ç ã o i n s u r r e c i o n a l d a da consciência devido às liberdades satisfatórias concedidas
i a l 2 l i t a ^ _ d a ^ ^ l o r a ç ã o do trabalVio. t n r n a - c o n m a f e r r a m e n t a por u m a sociedade não livre contribui p a r a u m a consciência
do c a p i t a l e g e r a s u b m i s s ã o . » L o n g e d e s e r p e r i g o s o ou o ^ s i - feliz, q u e possibilita a aceitação dos c r i m e s d e s s a sociedade".
E s s a p e r d a d e c o n s c i ê n c i a " é o s í m b o l o do d e c l í n i o d a a u t o -

7 Loc. cit. nomia e da c o m p r e e n s ã o " . " "

8 Herbert Marcuse, One-Dimensional Man, p. 76.


9 "Privado das reivindicações que são irreconciliáveis com a
sociedade estabelecida, o prazer, assim ajustado, gera sub- 10 Loc. cit.
missão". Loc.cit.
11 Loc. cit. Grifos no original.
2. 4 205

Que a dessubhmação atenue a força da consciência é [released] de expectativas mais gerais da consciência social
intuitivo. Mas por que Marcuse associa isso ao declínio da e da compreensão social. Tal descarga é ampUficada pelo
autonomia e da compreensão intelectual do sujeito-^ Seu assalto ao social e pelo ataque ao conhecimento intelectual
argumento complexo difere aqui de Freud em Psicologia das promovidos no neoliberalismo, assim como pela depressão
massas e análise do eu, segundo o qual a consciência enfra- da consciência fomentada pelo niilismo.
quece quando o sujeito efetivamente a transfere para um A dessublimação repressiva, argumenta Marcuse, é
hder ou autoridade idealizados. Para Marcuse, a autonomia
"parte e parcela da sociedade na qual ela ocorre, mas em
decima quando a c o m o r e e n s ã o ^ d ^ d i í í i ã ê ^ s e u lado cog-
lugar algum é sua negação".'® Ela parece liberdade, mas
nitivista, até mesmo racionalistaj, e a compreensão Hppijna
apoia a dominação do status quo. Suas expressões, diz
quando não é necessária para^sSbFevh^êndT^ quando o
Marcuse, podem ser ousadas ou vulgares o suficiente para
sujeito não emancipado é imerso nos grazeres e estímnlos
parecerem rebeldes ou dissidentes - podem ser "selvagens
da mercadoria capitalista. Posto de outro n r o d o , 7 í ^ s ã o
e obscenas, viris e saborosas, um tanto quanto imorais".'®
mstmtiva exige trabalho, inclusive o trabalho do intelecto -
No entanto, esse atrevimento e desinibição (manifestos hoje
Portanto, uma vez que a dessublimação do capitalismo tar-
nos tweets, blogs, trolagens e condutas públicas da alt-right)
dio relaxa as demandas contra os instintos, mas não liberta
é mais um sintoma e uma iteração do que uma contestação
o sujeito para sua autodeterminação, as demandas de inte-
das violências e preconceitos da ordem estabelecida, assim
lecção são substantivamente relaxadas.- Livre, estúpido
como de seus valores ordinários." Na visão de Marcuse, a
manipulável, consumido por estímulos e gratificações tri-
dessublimação repressiva associa como gêmeos "liberdade e
viais - quando não é viciado neles o sujeito da dessubli-
opressão", transgressão e submissão de um modo distintivo,
maçao repressiva na sociedade capitalista avançada não é
como é aparente nas expressões selvagens, raivosas e até
somente desatado [unbound] libidinalmente e desbloquea-
do Ireleased] para gozar de mais prazer, mas desobrigado"

de bens duráveis e certa "liberação" de seus impulsos sexuais


12 A repressão dos instintos dá trabalho, m e s m o que lhes dizer primários, ele tem diversas de s u a s d e m a n d a s libidinais aten-
u m firme n ã o " ou que s u b l i m a r s u a s e n e r g i a s em f o r m a s didas, ao mesmo tempo que se vê agrilhoado por m e c a n i s m o s
socialmente aceitáveis seja apoiado e organizado pela mora-
m a i s sutis de dominação social que a d m i n i s t r a m s u a libido
lidade social e teologia dominantes; e ela ocorre em um nível
e g e r e m s u a d i n â m i c a psíquica com fins de v a l o r i z a ç ã o eco-
em iarga medida inconsciente.
n ô m i c a e controle social. Daí porque n ã o é possível empre-
13 M a r c u s e d e s c r e v e u m a " a t r o f i a dos ó r g ã o s m e n t a i s e m gar, como equivalentes dos termos de B r o w n , s u a s v a r i a ç õ e s
a p r e e n d e r a s c o n t r a d i ç õ e s e as a l t e r n a t i v a s " e a f i r m a que imediatas no português, como "liberto" ou "liberado". A m b a s
para a consciência feliz, "o real é racional" e que "o sistema' r e m e t e m i m e d i a t a m e n t e a u m a idéia de liberdade que, em
estabelecido, apesar de tudo, entrega os bens". ;bid p 79 M a r c u s e , e s t á envolta em u m a dialética entre autonomia e
Aqui, B r o w n emprega u m a série de termos em inglês {"unboa- heteronomia, n e c e s s i d a d e s f a l s a s e verdadeiras, liberdade e
nd released ] que remete ao fato de o sujeito da sociedade escravização, como m o s t r a B r o w n a seguir, [N.T.]
industrial a v a n ç a d a , tal qual analisado por M a r c u s e , experi- 15 Ibid., p. 77.
m e n t a r u m a s i t u a ç ã o contraditória. V i a tecnologia, m e c a n i - 16 Loc. cit.
zação do processo produtivo, s u a v i z a ç ã o da labuta, c o n s u m o
17 Ibid., p. 79.
m e s m o i l e g a i s de p a t r i o t i s m o e n a c i o n a l i s m o q u e i r r o m p e m
F i n a l m e n t e , h á t a m b é m a c o n s i d e r a ç ã o de M a r c u s e
c o m f r e q u ê n c i a n a e x t r e m a d i r e i t a hoje.'»
s o b r e o p a p e l do m e r c a d o n a i n t e n s i f i c a ç ã o do n i i l i s m o t e o ^
A dessublimação repressiva t a m b é m desbloqueia níveis
rizado por Nietzsche. Escrevendo bem antes da revolução
n o v o s e t a l v e z até m e s m o f o r m a s n o v a s de v i o l ê n c i a por
neoliberaí, M a r c u s e a r g u m e n t a que o mercado tornou-se
meio da a b e r t u r a da v á l v u l a daquela outra fonte de instin-
tanto o princípio de realidade quanto a v e r d a d e moral: "as
to h u m a n o , T â n a t o s . A d e s s u b l i m a ç ã o de E r o s é c o m p a t í -
p e s s o a s são levadas a encontrar no aparato produtivo" - o
vel, a r g u m e n t a M a r c u s e , " c o m o c r e s c i m e n t o de f o r m a s n ã o
mercado - "o a g e n t e e f e t i v o do p e n s a m e n t o e d a a ç ã o a o
s u b l i m a d a s e s u b l i m a d a s de a g r e s s i v i d a d e " . " P o r q u ê ? P o r -
qual seus p e n s a m e n t o s e ações p e s s o a i s devem se render",
que a dessublimação repressiva não desbloqueia E r o s para a
e "nessa transferência, o aparato t a m b é m a s s u m e o papel d e ^
liberdade tout court; a o i n v é s disso, e n v o l v e u m a c o m p r e s s ã o
um agente moral. A consciência é absolvida pela reificação,
ou concentração da energia erótica no e s p a ç o da sexualida-
pela necessidade geral das coisas. N e s s a necessidade geral,
d e - i s t o é p a r t e do q u e a t o r n a u m a d e s s u b l i m a ç ã o " c o n -
n ã o h á l u g a r p a r a a c u l p a " . " Os r e s t o s f r a c o s da c o n s c i ê n -
t r o l a d a " ou " r e p r e s s i v a " . P o r t a n t o , Erosde^bhmadopode
c i a - já e x a u r i d a p e l a d e s s u b l i m a ç ã o q u e g e r a u m a c o n s c i ê n -
incitar, m e s c l a r - s e c o m , e a t é m e s m o i n t e n s i f i c a r a a g r e s s ã o .
c i a feliz - s ã o d o m i n a d o s p e l a r a z ã o e e x i g ê n c i a s do m e r c a d o .
D e s s e modo, Marcu"ãe e x p l i c a a c r e s c e n t e a c o m o d a ç a o ou
O real é tanto o racional quanto o moral. A o m e s m o t e m n o '
a q u i e s c ê n c i a c o m a v i o l ê n c i a s o c i a l e p o l í t i c a - u m " g r a u de
princípio de realidade, imperativo e ordem m o r a l ^ o capita-
n o r m a l i z a ç ã o [...] e m q u e o s i n d i v í d u o s e s t ã o s e a c o s t u m a n -
lismo torna-se necessidade, autoridade e vPrdade reunidos;
do c o m o r i s c o de s u a p r ó p r i a d i s s o l u ç ã o e d e s i n t e g r a ç ã o " . ^ "
saturando c a d a esfera e imune a críticas, a despeito de s u a s
S u a r e f e r ê n c i a e r a a e s c a l a d a de a r m a s n u c l e a r e s n a G u e r r a
devastações, incoerências e instabilidades manifestas. Não
F r i a do m e a d o do s é c u l o x x , m a s o a r g u m e n t o p o d e f a c i l m e n -
te s e r a d a p t a d o p a r a a a c o m o d a ç ã o à s m u d a n ç a s c l i m á t i c a s há alternativa."

que estão alterando o mundo e outras ameaças à existência. C o m b i n a n d o a v e r s ã o d e M a r c u s e c o m a de N i e t z s c h e , a

Para nossos propósitos, o mais importante é que seu insight e x a u s t ã o niilista da consciência e a dessublimação da von-

é sugestivo para compreender a quantidade e a intensidade t a d e de p o t ê n c i a h i s t o r i c a m e n t e e s p e c í f i c a s t a l v e z expli-

d a a g r e s s ã o q u e t r a n s b o r d a d a d i r e i t a , e s p e c i a l m e n t e d a alt- quem diversas coisas. Para começar, essa combinação pode


-right, e m meio à s u a a f i r m a ç ã o f r e n é t i c a d a l i b e r d a d e indi- a n i m a r o que é c o m u m e n t e c h a m a d o de u m a r e s s u r e i ç ã o
vidual, a qual discutiremos em breve. do t r i b a l i s m o , m a s q u e p o d e s e r m e l h o r c o n c e b i d o c o m o
u m a relação rompida com o mundo demograficamente
e x t e r i o r e t e m p o r a l m e n t e p o s t e r i o r ao do próprio indiví-
duo. T a l v e z seja a c h a v e c a p a z de d e c o d i f i c a r a f r a s e infa-

18 p. 7 8 . m e "eu r e a l m e n t e não dou a m í n i m a , vc dá?" e s t a m p a d a n a

19 Loc. cit Marcuse se distancia aqui de Freud, que em seus anos jaqueta da Z a r a que M e l a n i a T r u m p vestia em sua visita
avançados compreendia que a agressão era enfraquecida por
um escape maior para energias libidinais. Para Marcuse, entre-
21 p. 79- , , 1
tanto, a dessublimação repressiva envolve o que ele chama de
22 No original, "there is no alternative", o mantra neohberal mar-
uma "compressão" ou concentração de energia erótica.
telado ad nauseam nas últimas décadas, tornado famoso por
Ibid., p. 78.
Margaret Thatcher, [N.T.]
220 208

a c r i a n ç a s i m i g r a n t e s s e p a r a d a s de s e u s pais n a frontei- c o n s c i ê n c i a d e i x a d o s pelo niilismo t a m b é m p o d e m ajudar


r a do T e x a s . E l a p o d e e x p l i c a r o e s c á r n i o r o t i n i z a d o d a s a explicar a agressão e a sevícia sem precedentes que ema-
preocupações "esquerdopatas"" com o sofrimento huma- n a m d o s t e l e j o r n a i s d a TV a c a b o e d a i n t e r n e t , n o s blogs^
no, a i n j u s t i ç a o u a d e v a s t a ç ã o e c o l ó g i c a , e n c o n t r a d o s e m tweets da direita. E s s a a g r e s s ã o e sevícia são alimentadas
sites de direita e e m s e ç õ e s de c o m e n t á r i o s . E m Strangers pela valorização neoliberal da liberdade libertária, pela
in Their Own Land, Arlie Hochschild relata com simpatia o masculinidade branca ferida e raivosa e pela depressão
desejo de s e u s entrevistados de direita de s e r e m livres "das radical da c o n s c i ê n c i a e da obrigação social r e a l i z a d a pelo
restrições da filosofia liberal e s u a s r e g r a s de sentimen- niilismo.^"' S ã o o r g a n i z a d a s d i s c u r s i v a m e n t e p o r a t a q u e s
to". E l e s s e n t i a m q u e e s t a v a m s e n d o r e q u i s i t a d o s a " s e n t i r n e o l i b e r a i s a o s o c i a l e ao político e pela l e g i t i m a ç ã o neoli-
c o m p a i x ã o pelos e s p e z i n h a d o s " q u a n d o "eles n ã o queriam", beral da indiferença e m relação aos apuros ou ao destino
e m b o r a s e i d e n t i f i c a s s e m c o m o c r i s t ã o s devotos.^'" E l e s d e s - d e o u t r o s h u m a n o s , d e o u t r a s e s p é c i e s o u do p l a n e t a . N o
d e n h a v a m do a m b i e n t a l i s m o p o r r a z õ e s s i m i l a r e s (e p o r q u e entanto, os ataques aos liberais e às p e s s o a s de esquerda,
ele e n v o l v e u m g o v e r n o inchado], n ã o o b s t a n t e a d e v a s t a - às feministas, aos antirracistas e outros t a m b é m são u m a
ção de sua saúde e habitat r e s u l t a n t e de i n d ú s t r i a s poluen- f o r m a niilista de ação. A p a i x ã o e o p r a z e r envolvidos e m
p t e s . " A refração d e ^ ^ o l í t i c a da ^ d i f e r e n ç a através da trolar e a c a b a r c o m a l g u é m são sinais daquilo que Niet-
d e s i n t e g r a ç ã o niili.sta d e u m p a c t o ' i S H i T e aTrayés d a té z s c h e c h a m o u de " d e s t r u i ç ã o da vontade" s i m p l e s m e n t e
E e r d i d a n a s c a p a ^ a d e s de c o n t r o l a r os p o d e r e s e a r r a n - p a r a s e n t i r s e u p o d e r q u a n d o a a f i r m a ç ã o do m u n d o o u
jos h u m a n o s leya-nos a l é m d a i n c l i n a ç ã o de H o c h s c h i l d de a c o n s t r u ç ã o do m u n d o n ã o e s t ã o d i s p o n í v e i s . T a l v e z a
enraizar esse sentimento na experiência de negligência negação - b r u t a o u rr^or^Usta - seia o a u e resta q u a n d o j
^ o c i a l e política de s e u s sujeitos. Isso explica s u a a t r a ç ã o os p o d e r e s a u e m o l d a m o m u n d o p a r e c e m i n c o n i i o l á v e i s |
por líderes que c l a m a m que se bata a porta a g r e s s i v a m e n t e e ^ l í i ^ r t á v e i s e a catástrofe existencial p a r e c e iminente.i'
n a c a r a de "outsiders" e de u m f u t u r o h u m a n a m e n t e habitá- M a i s u m a vez, entretanto, é importante registrar a quali-
vel, líderes q u e i n c o r p o r a m e s s e sentimento a u m a p a i x ã o dade ativa d e s s a negação: o desdém da direita pelas pres-
política afirmativa a n i m a d a por u m a vontade de potência c r i ç õ e s é t i c a s ou políticas de c u i d a r do m u n d o ou c o n s e r -
dessublimada. Explica por que tais políticas são celebradas tá-lo é u m a f o r m a d e " f a z e r " . E , c o m o a p o n t a N i e t z s c h e , " h á
c o m g r i t o s d e g u e r r a a l e g r e s e v i n g a t i v o s . Os e s c o m b r o s d a tanto de festivo" nisso - especialmente nos prazeres da

23 Brown emprega aqui o termo "libtard", neologismo criado pela 26 Argumentei noutro lugar que o próprio neoliberalismo á uma
alt-right estadunidense a partir da aglutinação de "liberal" e expressão do niilismo em seu abandono explícito de Deus ou
"retard" para se referir pejorativamente às pessoas de incli- da deliberação humana como a base do valor, da ordem e da
nação à esquerda (ou, ao menos liberais) no espectro político conduta correta. Cf. Wendy Brown, Undoing the Demos: Neo-
Acreditamos que a versão "esquerdopata", empregada pela liberalism's Stealth Revolution, cap. 7. Eu acrescentaria que o
nova direita tupiniquim nas seções de comentários de qual- neoliberalismo provavelmente não poderia se estabilizar até
quer noticiário é um equivalente próximo, [N.T.] que um estágio avançado de niilismo já tivesse sido alcanç^;
24 Arlie Hochschild, Strangers in Their Own Land: Anger and fl do. A despeito de sua preocupação em assegurar a moralidade H
Mourning on the American Right, p. 1 2 8 . 1 tradicional, o neoliberalismo é uma teoria e prática social
25 Ibid., pp. 176-79. I niilista assentada na promoção da dessacrahzação. i.
220 211

provocação e do apedrejamento, da humilhação ou do cau- sem a inibição pela consciência, pela fé ou pelos valores e
sar sofrimento a outrem, de dançar em volta da fogueira sem crença em propósitos, sejam humanos ou divinos. Uma
daquilo que se queima.^'' expressão extrema de tal produção e orientação subjetiva
Na esteira dessa guinada, na qual o niilismo intersec- pode ser o assim chamado movimento "incei",composto
ciona o neoliberalismo, a liberdade é arrancada do hábito de homens cuja ira por serem desdenhados ou ignorados
[íorn out ofthe habitas] de valores tradicionais que, na for- pelas mulheres é voltada contra as próprias mulheres em
mação neoliberal original, deveria contê-la e discipliná-la. agressões online como trolagens e Gamergate,'" mas tam-
- A nnmhin^r^an Pntre a reprovação n e o l i b e r ^ d o p^itico e bém na formas dos ataques terroristas como os de Isla Vista
' do social & a masculinidade branca ferida e dessublimada e Toronto.»^ Aqui, a dessublimação permite que aquilo que
geram uma liberdade desinibida, liberdade aue é .sintoma anteriormente constituía o material da vergonha, do sofri-
de uma destituição ética, mesmo que f r e q u e n t e m e n t e ^ mento e do ódio a si mesmo seja representado como uma
disfarce de retidão religiosa ou d^ melancolia c o n s e r v ^ o - fúria assassina. Ao mesmo tempo, o movimento recorre ak
ra de um passado fantasmáticoTEssa liberdade é expressa uma versão niilista do tradicionalismo moral, "anterior ao
paradoxalmente como niilismo e contra o niilismo, atacando feminismo", segundo o qual o acesso masculino às mulheres I
e destruindo enquanto culpa seus objetos de chacota pela
era uma questão de direito.
ruína dos valores e da ordem tradicional. Trata-se de uma
A vontade dessublimada de potência nos sujeitos e na pró-
liberdade desenfreada e inculta, liberdade para cutucar
pria moralidade explicaria também outra característica do
as normas aceitas, descompromisso com o cuidado com o
presente, a saber, como a direita, com seus valores e agenda,
amanhã. Essa é a liberdade remanescente do niilismo, em
sobrevive rotineiramente aos escândalos morais que tão fre-
gestação por séculos e intensificada pelo próprio neolibera-
quentemente envolvem seus líderes religiosos e políticos; de
hsmo. É a liberdade do "farei porque posso, pois não creio
em nada e não sou nada a não ser minha vontade de potên-
cia".^» Essa é a humanidade sem projeto senão a vingança. fez isso". Steven Rosenfeld, "Trump's Support Falling Among
Swing-State Voters Who Elected Him, Recent Polls Find".
29 "Incel" é um neologismo em inglês criado a partir da aglu-
27 "Ver outros sofrerem faz bem, fazer outros sofrerem, mais tinação de "involuntary" e "celibates", isto é, "celibatários
ainda. [...] Sem crueldade não há festival [...] e na punição há involuntários". O movimento incei refere-se a um fenômeno
tanto que é festivo!". Friedrich Nietzsche, On the Genealogy online de comunidades de pessoas que têm em comum o fato
of Morals, p. 67. Manifesto na repercussão imediata da elei- de não conseguirem encontrar um(a) parceira(o) romântica(o)
ção de Trump e do Brexit, esse regozijo é ubíquo nos blogs de e/ou sexual, apesar de o desejarem. Embora tenha sido criado
direita e nas seções de comentários em que os trolls compe- por uma universitária canadense, o movimento "incei" aca-
tem pelos ataques mais vulgares, insultantes e até mesmo bou por aglutinar um público majoritariamente masculino,
aterrorizadores à oposição. branco e heterossexual que se vale das comunidades para
Há incontáveis variações do relato desta eleitora de Trump espalhar mensagens de ódio, especialmente de misoginia e
sobre seu apoio a ele: "Não parece fazer diferença alguma também racismo, [N.T.]
qual partido assume. O que quer que digam que vão fazer 30 Referência à controvérsia surgida em 2 0 1 4 sobre a misoginia
quando assumirem, eles não podem realmente fazer. [...] Eu na indústria de jogos online, [N.T.]
só quero que ele incomode pra caramba todo mundo, e ele 31 Jessica Valenti, "When Misogynists Become Terrorists".
.1 213

f a t o , s o b r e v i v e a e l e s m e l h o r do q u e a e s q u e r d a . P o r q u e o s
e x p l i c i t a o c o n t r a t u a l i s m o . R e s p o n d e n d o a o a s s a s s i n a t o do
b o q u e t e s de u m a e s t a g i á r i a c a u s a r a m m a i s prejuízo à presi-
j o r n a l i s t a j a m a l K h a s h o g g i pela A r á b i a S a u d i t a , ele e s c r e -
d ê n c i a d e C l i n t o n do q u e c a u s a r a m à d e T r u m p a a g a r r a ç ã o
veu: "para aqueles que estão c l a m a n d o por s a n g u e dos saudi-
de buceta, as a c u s a ç õ e s de a g r e s s ã o a p o s t u l a n t e s a M i s s
t a s - v e j a m , e s t a s p e s s o a s s ã o a l i a d o s - c h a v e [...] s e r ã o m u i -
Universo, as prostitutas fazendo xixi, e os casos com atrizes
tos empregos, muito dinheiro que v e m p a r a os nossos cofres.
pornôs e coelhinhas da P l a y b o y " - especialmente tendo em
N ã o é algo que v o c ê s queiram explodir por b e m ou por m a l " . "
vista os seus respectivos eleitorados? Como é possível que
No entanto, nem o contratualismo nem a importância
u m candidato de direita indicado à S u p r e m a Corte de justiça
reduzida da consistência moral tocam na característica mais
sobreviva a alegações que teriam derrubado u m candidato
i m p o r t a n t e do niilismo aqui. O niilismo desbloqueia a v o n - \
do P a r t i d o D e m o c r a t a e m u m p i s c a r d e o l h o s ? U m a r e s p o s t a
tade de p o t ê n c i a n ã o a p e n a s nos sujeitos, m a s n o s próprios
possível é que o niilismo deprime o significado da conduta,
valores tradicionais, revelando f r a n c a m e n t e o privilégio e
da consistência e da verdade: não é mais necessário que o
a arrogação que eles codificam, seus propósitos e energias
indivíduo seja moral, a p e n a s que grite sobre isso. Outra é
de poder crus. A s s i m , t a m b é m a moralidade "regride" à s u a
q u e o niilismo t o r n a a política de v a l o r e s contratual: a b a s e
f o r m a e l e m e n t a r , s u a v o n t a d e d e p o t ê n c i a , c o n f o r m e o nii-
e v a n g é l i c a de T r u m p n ã o liga p a r a q u e m ele seja ou o q u e
lismo estilhaça s e u s f u n d a m e n t o s e desvaloriza seu valor.
faça, d e s d e q u e f a ç a a c o n t e c e r q u a n t o a J e r u s a l é m , ao abor-
A g a r r a r bucetas, adultério, associar-se c o m prostitutas, dar
to, a o b a n i m e n t o d e p e s s o a s t r a n s d a s f o r ç a s m i l i t a r e s , a
golpes e m e m p r e s a s c o n t r a t a d a s ou e m t r a b a l h a d o r e s s e m
r e z a r n a escola e ao direito ã d i s c r i m i n a ç ã o por negócios
documentação - e s s e s são direitos dos poderosos que os
e indivíduos cristãos. C o n f o r m e v i m o s no capítulo 3, h á
valores tradicionais implicitamente autorizam ao proibir
e v i d ê n c i a a b u n d a n t e de que a m b o s os lados c o m p r e e n d e m
e x p l i c i t a m e n t e e c o d i f i c a m a o repudiar.^-® S e o s p r o p ó s i t o s
esse a c o r d o . " O líder evangélico Pat Robertson também
de poder na moralidade tradicional são enormes, eles são o
que r e s t a q u a n d o o niilismo se despe de s u a r o u p a g e m de
S e r m ã o d a M o n t a n h a . A l é m do m a i s , p a r a e l e i t o r a d o s a n g u s -
32 Trata-se de alusões a diversas alegações de condutas sexuais
e físicas impróprias da parte de T r u m p feitas por postulan- tiados c o m a d e c a d ê n c i a de s u a posição e de s e u s privilégios,

tes ao posto de M i s s Universo, inclusive menores dg^Wááe, n a d a r e c o n f o r t a m a i s do que a a r r o g a ç ã o s e x u a l c r a s s a de


no período de duas décadas em que T r u m p foi proprietário T r u m p c o m t o d a s a s m u l h e r e s , o c o n t r a t u a l i s m o c r u de s e u
da Organização Miss Universe; à suposta existência de u m a c a s a m e n t o e, n e s s e s e n t i d o , t o d a a s u a c o n d u t a c r u a e o s t e n -
gravação contendo imagens de Trump em um hotel em Mos- t a t ó r i a d a lei e d o s p r o t o c o l o s d a p r e s i d ê n c i a . U m p o l í t i c o n ã o
cou com prostitutas realizando o ato conhecido como golden
shower (popularizado entre nós g r a ç a s ao tweet de Jair Bol-
sonaro no Carnaval); finalmente, às diversas a c u s a ç õ e s de 34 Cf. T a r a Isabella B u r t o n . "Prominent E v a n g e l i c a l L e a d e r
envolvimento de Trump com prostitutas e atrizes pornô, [N.T.] on K h a s h o g g i Crisis: Let's Not Risk ' $ 1 0 0 Billion W o r t h of
3 Ralph Reed, presidente da Faith and Freedom Coalition [Coa-
A r m s Sales" e "The Biblical Story the Christian Right Uses to
lizão Fé e Liberdade]: "Jimmy Carter sentou-se no banco da
Defend Trump".
igreja junto conosco, mas não lutou por nós. Donald T r u m p
35 Karl M a r x , Clara Zetkin e A l e x a n d r a Kollontai não eram os
luta. E ele luta por nós". Citado em Tim Alberta, "Trump and
únicos a retratar a prostituição como a criada da moralidade
the Religious Right: A Match Made in Heaven".
burguesa.
220 215

branco ou mulher não poderia praticar uma dessas atitudes obstinadamente buscá-la até que triunfem. Deste modo, uma
sem perder imediatamente o cargo - que é precisamente o valorização judaico-cristã da docilidade, da humildade, da
I ponto. A grosseria e o rompimento das regras por Trump autoabnegacão e do ascetismo, mas também da igualdade
I longe de estarem em desacordo com os valores tradicionais' e da democracia, emana da ferida da fraqueza e derruba os
consagram a supremacia brancff masculina no seu âmago'
fortes e poderosos, a quem essa nova moralidade coage e
CUJO declínio é um incentivo crucial para o apoio a Trump '
pune. Novamente, a criatura do ressentimento, em sua inca-
pacidade de criar o mundo, o repreende; é quem ela culpa
por seu sofrimento e humilhação, anestesiando assim sua
NIILISMO E RESSENTIMENTO
dor aguda. Isso significa que o sistema moral que ela cons-
trói tem, em seu âmago, o rancor, a reprimenda, a negação
Além do niilismo. Nietzsche é o teórico mestre de outro e até mesmo a vingança.
sintoma de nossa era - o sofrimento experimentado como
O ressentimento, o rancor, a raiva, a reação ã humilha-
vitimização errônea. Ele postulou sistemas morais inteiros
ção e ao sofrimento - certamente todos estão em jogo hoje
nascidos do sofrimento e da raiva, oferecendo uma formula-
no populismo e no apoio da direita à liderança autoritária
ção do ressentimento como a base de sua emergência e des-
No entanto, essa política do ressentimento emerge nos indi
dobramento. Novamente, teremos de corrigir Nietzsche, uma
víduos que historicamente dominaram quando sentem tal
vez que legitimidade em declínio e supremacia lesada estão
dominação em declínio - na medida em que especialmente
no cerne dessa lógica hoje. e não meramente as frustrações
a branquitude, mas também a masculinidade, fornece uma
daquilo que ele chamou de "fraqueza". Mas permitam-nos
proteção limitada contra os deslocamentos e perdas que
antes retomar sua explicação.
quarenta anos de neoliberalismo produziram nas classes
A moralidade judaico-cristã. sugere Nietzsche no primei- trabalhadoras e médias. Esse ressentimento, assim, é dife-
ro ensaio de Genealogia da moral, nasceu como a vingança rente daquele da lógica de Nietzsche enraizada nas vicissitu-
dos fracos, daqueles que sofreram em um sistema de valo- des psíquicas da fraqueza. Embora ligadas pela humilhação,
res que afirmava a força, o poder e a ação. Os fracos não se as frustrações da fraqueza (existenciais ou históricas) e do
ressentiam de sua própria fraqueza, mas dos fortes, a quem poder lesado são completamente distintas, o que fica óbvio
eles culpavam (equivocadamente) por seu sofrimento E nas respostas radicalmente diferentes dadas pela classe tra-
assim eles inventaram um sistema de valores novo no qual balhadora branca e pela classe trabalhadora negra aos deslo-
a força seria repreendida como má, e a fraqueza, elevada camentos e rebaixamentos causados pelos efeitos econômicos
como b o a . - A invenção desse sistema de valores novo, diz neoliberais. Apenas aquela é lesada por seu destronamento^
Nietzsche, ocorre quando o ressentimento deixa de ferver
E há ainda um importante aspecto da neoliberalização da
por tempo suficiente para "tornar-se criativo e dar ã luz a
vida cotidiana que joga sal nessa ferida: as profundas desi-
valores".3' Os fracos não conseguem agir, apenas reagir; essa
gualdades de acesso e as hierarquias de status que organi-
^ c r i t i c a morahzante, e, porque é tudo que têm, eles irão
zam cada parte do comércio e do que resta da vida pública.
Conforme argumentam trabalhos como What Money Can't
36 Nietzsche, On the Genealogy of Morais, pp. 33-Q Buy, de Michael J. Sandel, hoje não há quase nenhuma ativi-
37 Ibid., p. 36.
dade ou esfera da vida não estriada por patamares ou classes
.217 213

de a c e s s o que d e p e n d a m da renda: do e m b a r q u e e e s p a ç o g r u p o de e m b a r q u e 5. A a t e n ç ã o a tais efeitos r e c o n f i g u r a


p a r a a s p e r n a s à comida dentro do avião; do a c e s s o aos even- o debate batido da esquerda a respeito da questão de saber
tos esportivos às faixas de rodovias s e m congestionamento; se o p o p u l i s m o de direita n a s c e hoje do r e s s e n t i m e n t o de
de q u e m c o n s e g u e u m a licença f a m i l i a r e m u m a corpora- c l a s s e ou de o u t r o s tipos de r e s s e n t i m e n t o , s e s e t r a t a d a
ção a q u e m c o n s e g u e u m a autorização do convênio m é d i c o raiva dos que foram deixados para trás economicamente
p a r a fazer r e s s o n â n c i a magnética; de quão rapidamente você ou da raiva do m a s c u l i n i s m o b r a n c o destronado. A neolíbe-
consegue renovar seu passaporte, entrar em brinquedos no
ralização da vida cotidiana - não m e r a m e n t e seus efeitos
p a r q u e da Disney ou colocar s e u s filhos e m u m a clínica de
desigualitários, m a s t a m b é m seu espírito implacavelmente
reabilitação.'» E s s a s e s t r a t i f i c a ç õ e s e s t ã o inscritas de m o d o
desigualitário - combina intensamente ambos. ^
tão profundo na cultura contemporânea que são u m a parte
^ O que a c o n t e c e q u a n d o o r e s s e n t i m e n t o s u r g e do d e s í r o J
essencial do branding: a s r e d e s d e h o t é i s m a i s a b o m i n á v e i s namento, da a r r o g a ç ã o perdida, ao invés de surgir da fraque-j'
têm saguões premium, e upgrade é u m t e r m o u b í q u o e m q u a l -
za? Quero oferecer d u a s especulações.
quer indústria ou serviço. Quanto m a i s a vida pública é priva-
Primeira possibilidade: o rancor e a raiva não desenvol-
tizada - parques naturais, educação, emergência, escolas e
vem valores morais refinados, m a s p e r m a n e c e m como ran-
outros serviços urbanos - , tanto mais a desigualdade amon-
cor e raiva. Eles não são sublimados na a u t o a b n e g a ç ã o e no
toa os despossuídos em pilhas desassistidas abarrotadas de
amor ao próximo cristãos que Nietzsche trata como o zénite
m i s é r i a e n q u a n t o o f e r e c e a o s d e p o s s e (os 3 0 % d e c i m a , n ã o
(ou o n a d i r ) d o p r o c e s s o d e s c r i t o p o r e l e e m Genealogia da
o 1 % d o topo) t o d a m a n e i r a p o s s í v e l d e c o m p r a r s u a s a í d a d a
moral. S o f r i m e n t o , humilhação e ressentimento não sublima-
a g l o m e r a ç ã o , d a e s p e r a e do s o f r i m e n t o .
do t o r n a m - s e u m a política p e r m a n e n t e da v i n g a n ç a , do ata-
A e s t r a t i f i c a ç ã o do a c e s s o e da p r o v i s ã o d e t e r m i n a d o s que àqueles culpados por destronar a masculinidade bran-
p o r r e n d a n ã o c o n s t i t u e m n a d a d e n o v o s o b o sol. M a s a ca - feministas, multiculturalistas, globalistas, que tanto os
privatização e a legitimação da desigualdade neoliberais as d e s t i t u e m q u a n d o d e s d e n h a m deles. A ferida n ã o e s t a n c a d a
tornam mais intensas, mais disseminadas e mais profun- e a raiva n ^ s u b h ^ m a d a , c o m b h i g d a ^ o m u m niilismo que
damente encravadas na vida cotidiana do que em qualquer r l d i c u l a r í z ã p r e v i a m e n t e todos õ s r a l o r e s , s i g n i f i c a ^ e altos
m o m e n t o d e s d e o f e u d a l i s m o . O pre^co d o s s e r v i ç o s n a c e s s o n í v e i s d e a f p t o m o t i v a m aQ n n n i i l p c n e s mobij[iza^das.por e l g s .
e o t r a t a m e n t o p a r a ü ^ o e m todos os lugares por p a t a m a r e s e não sistemas morais desenvolvidos.jião o aueJMietzsche
acostuma todos às d e s i g u a l d a d e s V n õ s t o r n á mais feudais c h a m a v a de " p e r s p i c á c i a s e m p r e c e d e n t e s a edificar sis-
do.que democráticos em nossa subietividade e ethos. Esse t e m a s inteiros da crítica". T r a t a - s e de r e s s e n t i m e n t o p u r o
fenômeno t a m b é m certamente intensifica a raiva dos des- s e m a g u i n a d a n a d i r e ç ã o d a d i s c i p l i n a , d a c r i a t i v i d a d e e,
tronados, q u a n d o os p a s s a g e i r o s do g r u p o de e m b a r q u e 1, finalmente, s e m o domínio intelectual que, p a r a Nietzsche,
e x a l a n d o cosmopolitismo e a i m p o r t â n c i a da própria posi- r e m o n t a à m o r a l i d a d e de e s c r a v o s n a e d i f i c a ç ã o d a civili-
ç ã o social, u l t r a p a s s a m os c a s a i s b r a n c o s de m e i a idade zação judaico-cristã. T r a t a - s e de ressentimento s e m o des-
d o s e s t a d o s e m p o b r e c i d o s d o c e n t r o d o s EUA e s m a g a d o s n o vio p a r a críticas perspicazes e lógicas morais refinadas que
invertem a d o m i n a ç ã o ao repreendê-la. Trata-se de ressen-

38 Michael J. Sandel, What Money Can t Buy: The Moral Limits of timento preso e m s e u r a n c o r retido, i n c a p a z de "tornar-se
Markets, cap. 1. criativo". E l e só t e m v i n g a n ç a , s e m saída, s e m futuridade.
220 2 1 8

É significativo que o próprio Trump identifique a vingan- esquivar de razões ou valores, também ela expressa niilismo.
ça como sua única filosofia de vida: vingança e nada mais, Na medida em que expressa numa ferida a base de um apego,
vingança sem fim, porque não há nada mais.'® Além dos ela põe no discurso um ressentimento em relação àqueles
esforços para destruir qualquer um que o questione ou se que eles sabem ser os verdadeiros vencedores hoje: aqueles
oponha a ele, a vingança satura sua assim chamada agenda no grupo de embarque 1 e 2. Ao reiterar o respeito pelo presi-
política e também é aquilo que satisfaz a parte mais vil de dente, independentemente de sua conduta, ela reitera o cará-
sua base. Ela anima o impulso de revogar todas as conquis- ter oco do "apoio às tropas" que estão lutando em guerras
tas da era Obama, é claro, dos pactos climáticos ao acordo nas quais ninguém acredita - lealdade a uma casca outrora
com o Irã, mas também o de destruir aquilo que essas polí- repleta de valor. An canfpg?iar que Trump corporifiça_uma
\ ticas visavam proteger ou preservar: a Terra e suas muitas
réolina à sj^dor. ela exolica por que não importa quais polí-
espécies, os direitos e as proteções dos vulneráveis (LGBT,
ticas rIr siga, mas somente que ele jg^oponha àquelas que
mulheres, minorias) e a saúde dos americanos assegurada
seus apoiador_es iulg^im s e r respo^avpi«; nnr SRU sofrimento.
por meio do Obamacare.""
Na verdade, seus abusos de poder - conjugais e políticos -
Também é significativo que muitos apoiadores de Trump, são vitais para esse desejo, e não estão em desacordo com
quando entrevistados a respeito de suas mentiras, casos, ele. Trump detém o poder que lhes falta e não é nada senão
desprezo pela verdade ou pela lei, digam "Eu não ligo. Estou vontade de potência. Sua base sabe disso, precisa disso e não
cansado do desrespeito que seus opositores têm por ele e o elegeu por sua retidão moral - muito menos por sua compe-
por mim"." Que tipo de defesa do seu homem é essa? Ao se tência política, mas pela vingança da ferida do vazio [nothing-
ness], destruindo o agente imaginado daquela ferida. Trata-se
39 Chauncey Devega, "Puhtzer-Prize Winning Reporter David de ressentimento empapado de modo asqueroso de niilismo.
Cay Johnston: 'The Evidence Suggests Trump Is a Traitor'". A segunda possibilidade: um quadro de valores de fato
40 Trump ordenou a deterioração do Obamacare em um de seus
emerge do ressentimento daqueles que sofrem as arroga-
primeiros decretos presidenciais, uma ordem que foi cum-
ções perdidas de um poder conferido historicamente. Se
prida por meio de estratégias para semear o caos nos merca-
dos de seguros, reduzir o período de inscrição e o quadro de
Nietzsche tem razão que o ressentimento dos fracos redi-
funcionários, aumentar as vigências de apólices sucateadas me sua condição ao chamar de "mau" aquilo que julgam
que escapam às trocas de seguros e mais. O único objetivo responsável por sua dor e ao chamar a si mesmos de "bom",
nisso tudo é fazer ruir o Obamacare. Cf. Tami Luhby, "8 Ways então a arrogação destronada denunciaria a igualdade e até
Trump Hurt Obamacare in His First Year"; Politico Staff, mesmo o mérito a fim de afirmar sua supremacia baseada
"Trump Administration Freezes Billions in Obamacare Pay-
em nada mais do que o direito tradicional. "Make America
ments, Outraging Advocates".
great again" [Torne a América grande de novo], "a França
Cf James Hohmann, "The Daily 202: Trump Voters Stay Loyal
Because They Feel Disrespected". "Os eleitores de Trump
r e c l a m a m que não há nenhum respeito pelo presidente disse, sempre havia respeito. Era sempre "sr. Presidente". E
Trump ou por pessoas como eles, que votaram nele. Uma agora, isso me enoja'"; Democracy Corps, "Macomb and Ame-
mulher mais velha da classe trabalhadora de Macomb lem- rica's N e w Political Moment: Learning from Obama-Trump
bra-se de que, quando começou a votar, 'havia muito respeito
Working Class Voters in M a c o m b and Democratic Base
pelo presidente. E eu não ligo para o que ele fez ou o que ele
Groups in Greater Detroit".
220 221

para os franceses", "Polônia pura. Polônia branca" - todos os Para Nietzsche, o niilismo emana da morte de Deus.
slogans de direita expressam isso. Ao afirmar a supremacia Inaugurando o reconhecimento de que os humanos criam
e a arrogação baseadas na supremacia e no direito passados, seus próprios significados, valores e mundos, nós primeiro
essas formações operam uma inversão histórica dos valo- transferimos, de Deus para o homem, nossa reverência, e
res que encerram três séculos de experimentos modernos
então perdemos a fé naquilo que nós mesmos criamos como
com a democracia. De fato, eles atacam a própria moralidade
algo infundado e contingente. Além disso, conforme escreve
judaico-cristã cuja produção Nietzsche retraçou, sugerindo
Nietzsche em Genealogia da moral, ao edificarmos a civiliza-
uma conclusão daquilo que o niilismo iniciou. Eles apresen-
ção judaico-cristã, nos tornamos pequenos e miseráveis, não
tam a supremacia agora como uma crua reivindicação de
nobres e fehzes, e assim ficamos fartos do homem: "junto
arrogação - uma apresentação que converge de modo pode-
com o medo do homem, nós também perdemos o amor por
roso com o ataque neoliberal ã igualdade e ã democracia, ao
ele, nossa reverência por ele, nossas esperanças nele, até
social e ao político.
mesmo nossa vontade dele". Como resultado, "o que é o nii-
A supremacia do homem branco na política de valores lismo hoje senão isso? - Estamos fartos do homem". ^
tradicionais contemporânea torna-se explícita, então, não
No entanto, conforme discuti no início do capítulo, a aná-
somente porque o niilismo arranca a roupagem moral daque-
lise de Nietzsche do niilismo, segundo a qual primeiro Deus
les valores e os torna contratuais ou instrumentalizáveis, mas
e depois o homem tombam como fontes fundamentais da
também porque essa supremacia foi ferida sem ser destruída.
verdade e da moralidade, é inadequada para nosso p r e s e n ^
Seu sujeito abomina a democracia, que julga responsável por
te. Outras coisas inílexionam as manifestações e o curso
suas feridas, e busca derrubá-la junto ã medida que decai.
contemporâneos do niilismo. Hoje, por exemplo, o niilismo
Talvez estejamos testemunhando também o que ocorre se intensifica num mundo que reflete a humanidade como
com o niilismo quando a própria futuridade é incerta. Talvez aquela que trouxe a espécie a uma miséria sem precedentes
haja uma forma de niihsmo moldada pela míngua de um tipo e o planeta à beira da destruição. "O homem" não perdeu\
de dominância social ou pela dominância social minguante
somente valor ou um significado estável, ele é indiciado j
de um tipo histórico. Na medida em que este tipo se encon-
por uma miríade de poderes gerados, mas não controlados
tra num mundo esvaziado não apenas de significado, mas
pelos humanos, poderes que nos diminuem, zombam de nós,
de seu próprio lugar, longe de ir gentilmente noite adentro,
repreendem-nos e nos ameaçam, e não somente nos desva-
ele se volta na direção do apocalipse. Se os homens bran-
lorizam. Aparecemos não somente sem nobreza nem grande-
cos não podem ser donos da democracia, então não haverá
za, mas sem sequer a habilidade para nos sustentarmos ou
democracia nenhuma. Se os homens brancos não podem
arrumarmos nossa própria bagunça. Uma espécie de bebês
dominar o planeta, então não haverá planeta. Nietzsche era
gigantes, com apetite por poder, prazer e brincadeiras, nós
imensamente curioso a respeito do que viria depois dos dois
ainda temos que nos tornar responsáveis por nossas cria-
séculos de intensificação do niilismo que ele esperava. Mas
ções, nossa história. O paradoxo dos poderes criados por
e se não houver um "depois"? E se a supremacia for o rosário
humanos que diminuem o humano, ao revelar nossa inca-
segurado apertado à medida que a própria civilização bran-
pacidade de conduzir nossos destinos ou de preservar a nós
ca parece estar acabada e leva consigo toda futuridade? E se
for assim que tudo terminará?
42 Nietzsche, Op. Cit, p. 44- Grifos no original.
r/Vtt
222

mesmos e o nosso habitat, atingindo novos p a t a m a r e s con-


desafiaram legitimamente a igualdade democrática em
forme esses poderes são revelados como tudo o que cria este
n o m e tanto dos v a l o r e s da família quanto da liberdade. Isso
m u n d o - isto gera u m niilismo além da i m a g i n a ç ã o m a i s
significa que não c o n s e g u i m o s apreender as novas forma-
alucinante de Nietzsche. A o r e t r a ç a r o niilismo como algo
ç õ e s subjetivas e políticas que são, e m b o a parte, efeitos
q u e e m a n a d a d e s s a c r a h z a ç ã o e, a s s i m , d a d e s v a l o r i z a ç ã o
neoliberais. A o m e s m o tempo, não conseguimos apreender
dos valores, Nietzsche não levou em conta as formações
quais são as forças que o neoliberalismo acidentalmente
e efeitos de poder que t r i v i a l i z a m e z o m b a m dos próprios
i n t e r s e c c i o n a o u i n s t i g a e, a s s i m , o q u e e l e p r o d u z i n a d -
h u m a n o s , m o m e n t o no qual o niilismo i n t e r s e c c i o n a o fata-
v e r t i d a m e n t e ou até m e s m o contra s e u s próprios objetivos.
h s m o , o c u l t o do a p o c a l i p s e o u o d e s e s p e r o . N ã o e s p a n t a q u e
E s s e s s ã o o s t i p o s de e m e r g ê n c i a s g e n e a l ó g i c a s ( p a r a u s a r a
a c r i s t a n d a d e do a r r e b a t a m e n t o , c o m s u a e s c a t o l o g i a do fim
l i n g u a g e m de M i c h e l Foucault) ou c o n j u n t u r a s (para u s a r a
d o s t e m p o s , s e j a a r e h g i ã o de n o s s a e r a . ^ '
d e S t u a r t Hall) o c l u í d a s p e l a s h i s t o r i o g r a f i a s a t a d a s a o p r o -
g r e s s o , à r e g r e s s ã o , à d i a l é t i c a ou a o d e t e r m i n i s m o . " E l a s
p o d e m ser difíceis de m a p e a r e narrar, m a s s e m elas fica-
ESPAÇO mos perdidos.
A c i m a de tudo, q u a n d o o n e o l i b e r a l i s m o é r e d u z i d o a u m a
S e o n e o l i b e r a l i s m o for c o n c e b i d o s o m e n t e c o m o u m a polí-
política ou racionalidade e c o n ô m i c a , ficamos cegos a três
tica e seus efeitos econômicos, o quadro p a r a o desconten-
d e s l o c a m e n t o s t e c t ó n i c o s n a o r g a n i z a ç ã o e c o n s c i ê n c i a do
tamento é hmitado a fatores econômicos - desigualdade
e s p a ç o que t a n t o e s t i m u l a m c e r t a s r e a ç õ e s políticas hoje
c r e s c e n t e , d e s i n d u s t r i a l i z a ç ã o , p e r d a do e m p r e g o s i n d i c a -
quanto o r g a n i z a m o teatro no qual elas ocorrem. O primei-
l i z a d o e d a p r o t e ç ã o do E s t a d o s o c i a l . A a n á l i s e r e s u l t a n t e
r o d e l e s é o h o r i z o n t e p e r d i d o do E s t a d o - n a ç ã o e m c o n s e -
foca-se n a q u e l e s "deixados p a r a trás", e s p e c i a l m e n t e nos
q u ê n c i a d a g l o b a l i z a ç ã o . D o s fluxos d e c a p i t a l a o s fluxos de
negligenciados econômica e politicamente pertencentes às
i m i g r a n t e s , d a s r e d e s d i g i t a i s à s c a d e i a s de s u p r i m e n t o , o
c l a s s e s t r a b a l h a d o r a s e m é d i a s b r a n c a s , efeito p r o v o c a d o
mundo invadiu a nação, enfraquecendo suas fronteiras e
p o r u m a m a r é a s c e n d e n t e de e l i t e s , d e c o s m o p o l i t a s e d o s
sua soberania, redistribuindo a produção e o consumo e
beneficiários das políticas identitárias. Se o neoliberalis-
t r a n s f o r m a n d o a s c o n d i ç õ e s e p r o s p e c t o s e x i s t e n c i a i s de
m o é concebido somente como u m a racionalidade política
todos os tipos de p o p u l a ç ã o - rural, suburbana e urbana.
c a r a c t e r i z a d a p e l a u b i q u i d a d e d o s m e r c a d o s e dohomo
S e esse deslocamento incitou o r a n c o r tanto contra os novos
oeconomicus (minha argumentação em Undoing the Demos),
i m i g r a n t e s quanto c o n t r a a política e os políticos, julgados
não c o n s e g u i m o s apreender os investimentos afetivos nos
r e s p o n s á v e i s por p e r m i t i r e m a entrada dos i m i g r a n t e s no
privilégios da branquitude e da existência primeiro-mun-
dista presentes n a n a ç ã o e n a cultura nacional ou n a mora-
lidade tradicional. T a m b é m não c o n s e g u i m o s apreender os 44 Para a teorização de Foucault da "emergência" como o prê-
modos pelos quais as h i e r a r q u i a s e exclusões da "tradição" mio da genealogia, cf Michel Foucault, "Nietzsche, Genea-
logy, History". "Conjuntura" é o enriquecimento da análise
marxista distintivo de Stuart Hall, flexionado firmemente por
43 William Connolly viu isso precocemente. Cf. Capitalism and Gramsci. Para um exemplo de sua utilidade, conferir Stuart
Christianity, American Style, especialmente o capítulo 3. Hall, "The Great Moving Right Show".
248 225

Ocidente, ele também está produzindo uma nova clivagem Uma análise popular dos efeitos dos três deslocamen-
entre aqueles que acolhem o deslocamento e aqueles que se tos está resumida na noção de "os de algum lugar" [some-
rebelam furiosamente contra ele. wheres] e "os de qualquer lugar" [anywheres] do crítico bri-
O segundo deslocamento espacial envolve a destruição tânico David Goodhart."® "Os de algum lugar" são pessoas
neoliberal do social discutida no capítulo 2. Na medida em enraizadas num local ou comunidade específicos, rurais
que o neoliberalismo dissolve essa esfera em uma ordem de ou suburbanos, geralmente com educação e exposição ao
mercado, de um lado, e em uma ordem familiar, de outro, mundo limitadas e que nutrem cosmovisões conservado-
desaparece o espaço da igualdade e do cuidado cívico com ras. Ele retrata "os de qualquer lugar" como relativamente
o bem comum que a democracia exige. Ao mesmo tempo, a desenraizados, urbanos e cosmopolitas; eles tendem a ser
ascensão do digital eera uma sociabilidade nova, radical-
mais educados, progressistas e abertos ao futuro. Com essa
mente desterritorializada e,de£dÊmQCraJÁ3a(l3. Essa socia-
popular demografia, Goodhart visa oferecer um manancial
bilidade não contém protocolos claros quanto à partilha do
geopolítico das clivagens políticas contemporâneas - um
poder, à emancipação ou ao comprometimento com a nego-
manancial que exceda as convenções dos beneficiários e
ciação de visões e necessidades diversas, a inclusão ou a plu-
vítimas da globalização, mas que também busque contornar
ralidade. A despeito de seus méritos, as "sociedades" digitali-
o enquadramento convencional da clivagem urbano/rural
zadas são desconectadas do desafio de partilharmos o poder
segundo a qual aqueles que ganham com a globalização
igualmente para governarmos a nós mesmos. Elas podem
são contrapostos àqueles devastados por ela, e aqueles que
possuir outros potenciais democratizadores, mas sozinhas
habitam locais multiculturais são divididos daqueles que até
não substituem as práticas democráticas e de igualdade polí-
então habitavam mundos brancos homogêneos ou mundos
tica que elas exigem.
racialmente hierarquizados de longa data. Com esse mapa
O terceiro deslocamento espacial é pertinente á ascensão e léxico, Goodhart busca pôr em relevo a clivagem políti-
do capital financeiro e da modalidade de valor que ele intro- ca entre aqueles que experimentam ameaças profundas ao
duz no mundo. Corporações multinacionais e linhas de mon- seu enraizamento demográfico - "os de algum lugar" - e
tagem globais do pós-fordismo já desafiaram a visibilidade e aqueles que Goodhart projeta como nascidos em cidades, ou
a tangibilidade do controle da propriedade e do capital. No que ao menos adotam uma existência urbana, cosmopolita
entanto, em relação aos poderes que criam e governam o
e desterritorializada - "os de qualquer lugar". Os horizontes
mundo, os poderes vaporosos das finanças, que governam
e afetos diferentes que ele visa codificar com tal divisão do
tudo, mas não vivem em lugar nenhum, são semelhantes a
mundo distinguem aqueles que se agarram ao local daqueles
uma revolução copernicana para a subjetividade. De fato,
que adotaram a globalização - cultural, social, econômica
assim como a esfericidade da Terra não pode ser vista, mas
e politicamente.
pode ser conhecida somente de modo dedutivo por meio de
seus efeitos, o governo das finanças envolve uma transfor-
mação da consciência espacial que, paradoxalmente, depen-
de da desespaciahzação do poder como tal, e não somente 45 David Goodhart, The Road to Somewhere: The Populist Revolt
da desterritorialização identificada com a globalização em and the Future of Politics. Cf tb. Jonathan Freedland, "The Road
suas décadas iniciais. to Somewhere by David Goodhart - A Liberal's RigRt-Wing
Turn on Immigration".
227
226

O mapa de Goodhart é exagerado e oclui características batendo abertamente com a fusão entre indústria e coloni-
importantes. No entanto, assim como a figura de Hochschild zação que Hegel espelha de seu tempo.^® Nessa discussão, a
dos "estranhos em sua própria terra", Goodhart captura um desconfiança de Schmitt quanto aos povos marítimos, mas
aspecto da reação subjetiva branca e ocidental à globaliza- também quanto ã desnacionalização, é palpável: a perda do
ção. Para desenvolver a tese de Goodhart, Carl Schmitt mos- solo envolve a perda da fronteira e do horizonte, perda de
tra-se novamente útil devido à sua atenção rigorosa com as vínculos com o local ao longo do tempo, perda da primazia
implicações ontológicas do espaço. Em Land and Sea e Dialo- da família, da tradição e da religião. Sangue e solo,®" de fato.
gues on Power and Space, Schmitt lança esta provocação: os Schmitt sabe que essa história especulativa não fica con-
humanos são mamíferos terrestres e se orientam por meio finada aos povos e locais reais, e que há, ao contrário, uma
da demarcação e organização da terra.^® Uma relação pró- transformação da consciência (europeia) que vem com a des-
xima com a terra assegura tanto o solo quanto o horizonte coberta do Novo Mundo, com a revolução copernicana e com
para os humanos. Ela orienta a humanidade na direção da a "revolução espacial" que "envolve uma mudança nos con-
demarcação, da posse e da linhagem, que são conquistadas ceitos de espaço que abrange todos os níveis e domínios da
concretamente por meio da propriedade, da casa, do matri- existência humana".®' "Não é um exagero", escreve ele, "ale-
mônio, da família e da herança. Em contraste, os esforços gar que todos os domínios da vida, todas as formas de exis-
para estender a soberania até o mar, ou através dele — e até tência, todos os tipos de força humana criativa, arte, ciência
mesmo para desenvolver modos de vida do mar — orientam e tecnologia tomam parte no novo conceito de espaço".®^ Ele
as pessoas diferentemente: na direção da ausência de fron- se torna até mesmo a fundação do racionalismo ocidental
teiras, e também na direção do uso e do consumo, ao invés da que "avança irresistivelmente" e destrói "as formas medie-
propriedade e do cultivo.^' Schmitt está pensando aqui não vais de comunidade humana, constrói novos Estados, fro-
somente na diferença entre pesca e agricultura, extração e tas e exércitos, inventa novas máquinas, subjuga povos não
reprodução, mas como e por que a Inglaterra, cercada pelo europeus e os coloca perante o dilema de adotar a civilização
mar, torna-se um império e como todas as nações costeiras europeia ou descer ã condição de mero povo colonial".®^
da Europa buscam uma expansão externa infinita, enquan- Embora de modo problemático, incompleto e tenden-
to outras nações e povos europeus permanecem orientados cioso, Schmitt antecipa a experiência da globalização dos
na direção da Europa.^® Como ele mesmo reconhece, Sch- "de algum lugar", nos termos de Goodhart, para os quais o
mitt está respondendo ã consideração de Hegel em Princí- apego à nação, ã família, à propriedade e á branquitude é
pios da filosofia do direito de que a terra "é a condição para mobilizado como uma formação politicamente reacionária.
o princípio da vida familiar", enquanto "para a indústria, o O que está ausente em ambas as análises é a mistura tóxica
elemento natural externo animante é o mar", e ele está se
49 Carl Schmitt, Land and Sea, p. 95.

46 Carl Schmitt, Land and Sea, pp. 5-9; Id., "Dialogue on N e w 50 Referência à doutrina do Blut und Boden do terceiro Reich.
Space", pp. 73-4. [N.T.]
47 Carl Schmitt, "Dialogue on N e w Space", p. 73. 51 Ibid., p. 57-
48 0 texto, e esta formulação em particular, é francamente antis- 52 p . 59.

semita. 53 p . 58.
I (
pyô> I I•
228

de niilismo, fatalismo e ressentimento com ataques neoli- BIBLIOGRAFIA


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International, 2 0 1 7 .
autoritarismo: 65. 7 9 - 8 0 , 2 1 2 - 1 5
endosso de Friedman ao, capitalização humana, como
8 0 - 8 7 ; Hayek e, 8 8 - 9 1 , 1 4 5 ; política neoliberaí, 3 8 - 3 9
ordoliberais e, 9 8 CareNet, 1 7 6 , 1 7 9 n.47
CARSON, Ben, 5 2
B Cato Institute, 3 8 n.io, 9 2
Banco Mundial, 3 0 charter schools, 1 3 3
BANNON, Steve, 39, 7 2 , 1 1 6 "Chicago Boys", 29
BAUDRILLARD, Jean, 6 5 n.71 Chile, experiência
BERG, Paula, 1 9 0 neoliberaí no, 29, 8 2
BÖHM, Franz, 95, 96, 97 cristandade, 8 , 1 0 9 - 1 5 , 1 2 3 - 2 4 ,
n . 8 2 , 1 0 0 n.93 129,137-38,153.174-75
brancos, branquitude, Claris Health, 1 7 8
ascensão nos regimes classe trabalhadora, 1 1 ,
neoliberais dos, 5 8 - 5 9 ; 12,14, 30,112, 215
nativismo masculino dos, CLINTON, Bill, 23, 2 1 2
11-13, 58,148-49. 201-03, Colóquio Walter Lippmann
2 1 3 - 1 4 , 2 1 6 - 1 7 ; rurais e em 1 9 3 8 , 2 8
suburbanos, 10-11,13,14,16, Comissão Trilateral,
7 1 - 7 2 , 2 1 5 , 2 2 7 - 2 8 , 1 9 n.14; relatório da, 8 9
superordenação masculina CONNOLLY, William, 1 1 2
dos,24-25; supremacismo dos, constituição econômica, e
59-60, 219-22 ordoliberais, 9 5 - 9 7 , 97 n . 8 i
248 249

COOPER, Melinda, 2 2 - 2 3 , ordoliberais e danos aos Fox N e w s , 1 3


113-14,133 Estados e mercados pela, 94; e d u c a ç ã o em a r t e s liberais, 1 4 FREUD, Sigmund, 2 0 1 ,
c o r r u p ç ã o eleitoral, 3 3 , 76, 7 9 rebaixada e diminuída, 106; empreendedorização, como 203, 204, 206
crise financeira de 2 0 0 8 , três pilares na Atenas Antiga, 34 política neoliberal, 4 9 - 5 0 FRIEDMAN, MíltOn, l 8 , 74,
26, 27, 3 0 n.28, 2 0 0 democracia, esfera pessoal protegida, 7 9 - 8 2 , 9 3 , 1 7 4 n.36
crisis p r e g n a n c y ataques neoliberais à: 23,127-29,144 Fundo Monetário
centers, 1 7 5 - 9 4 ascensão de oligarquias e, Escola de Friburgo, 49 Internacional, 29, 3 0
cristãos evangélicos: 1 0 3 n.98; como estratégia Estado:
neoliberalismo e, 1 1 2 , 1 1 4 - 1 8 ; anticorrupção, 101; enfraquecimento na
politização de valores religiosos consistência entre as três globalização, 2 2 3 ; liberal gerrymandering, ver
e, 1 1 4 ; suporte a Trump, escolas do neoliberalismo, vs. neoliberal, 7 7 ; poder c o r r u p ç ã o eleitoral
motivos para, 112-13,116 99; cultura política coercitivo do, 1 2 8 - 2 9 ; poder GLENDON, M a r y A n n , 1 4 0

antidemocrática e, 1 0 5 - 0 6 ; do, 2 2 , 72, 7 7 , 1 1 4 - 1 5 GLICKMAN, L a w r e n c e , 1 6 2


D efeito dos, 1 7 - 1 8 ; esforços E s t a d o social, 8 9 - 9 0 , 93; ver globalização, 2 2 3 , 2 2 4 - 2 8
DAMORE, James, 5 5 - 5 6 para restringir os inevitáveis tb. social-democracia GOODHART, David, 2 2 5 - 2 6 , 2 2 8
democracia: excessos da, 7 4 - 7 9 ; projeto estatismo administrativo, 6 3 Google, 5 5 - 5 6
ação do Estado para mercados e moral e, 2 4 , 2 6 estratificação de classe, 2 1 6 - 1 7 GORSucH, Neil, 1 5 7 , 1 5 9 , 1 6 6 , 1 9 0
aumentar a igualdade política d e m o c r a c i a s capitalistas, 3 6 EUCKEN, Walter, 9 4 governo:
na, 36; ataques da esquerda democracia, papel da demonização pela extrema
e da direita à, 1 0 6 ; crescente sociedade na: direita, 1 2 ; mercados livres
confusão sobre o valor correção das desigualdades e, Fair Housing, ato, 5 2 como controle do, 8 0 - 8 1 ;
da, 1 0 7 ; desdemocratização, 34-35> 37-38, 53; poder social FALWELL, Jerry, 1 1 5 , 1 6 o negócio como modelo
1 1 2 ; excessos da, segundo e, 6 5 - 6 6 FALWELL IR., Jerry, 9 4 - 9 5 neoliberal de, 7 2 - 7 3 , 1 4 2 - 1 4 3 ;
os liberais, 76; Friedman desmassificação, 4 9 - 5 0 família tradicional: neoliberal, incompatibilidade

e, 7 9 - 8 0 , 8 1 - 8 2 ; igualdade dessublimação, 2 0 0 - 0 8 ; importância no pensamento da democracia com, 7 7 - 7 8 ,

política como fundação 1 0 0 - 0 1 ; programas de, 4 9 - 5 1


agressividade da extrema neoliberal, 22-23;
da, 3 3 - 3 6 , 37, 5 3 ; direita e, 2 0 4 - 0 5 ; aumento da privatização da esfera pública
incompatibilidade com agressividade, 2 0 1 - 0 2 , 206; por meio da familiarização, H
o governo neoliberal, 77, como consequência do 1 4 1 - 4 4 ; resgate ordoliberal e HARDING, S u s a n , 1 1 4
100-01; incompatibilidade niilismo, 2 0 0 - 0 1 ; liberação neoliberal da, 5 1 ; suporte por HAYEK, Friedrich,
do capitalismo com, 36; de Tãnatos, 206; repressiva, neoliberais e conservadores, abusos pelas legislaturas,
limitação pelo discurso e Marcuse, 102-05 109-10,115-16 67, 84; Arendt e, 5 9 - 6 3 ;
neoliberal, 79; necessidade do DEVOS, Betsy, 1 3 9 FEHER, Michel, 5 0 autoritarismo e, 8 7 - 8 8 ,
político, e a, 6 9 - 7 0 ; obrigação Digitalização, 2 0 0 ; ver FOUCAULT, Michel, 17, 1 4 5 - 4 6 ; Burke e, 1 2 0 , 1 2 1 ,
do Estado em manter a tb. internet 30-32,50, 53,69,77 1 2 3 ; civilização e, 4 6 - 4 7 ;
igualdade política na, 3 4 - 3 5 ; DOSTOÏEVSKI, Fiodor, 1 4 6 n . 2 i , 99 n.88, 2 0 0 , 2 2 3 democracia, 83-84, 87-88;
251

esfera pessoal protegida e, I KHASHOGGI, Jamal, 116, 2 1 3 104 n.ioo, 203, 2 1 3 n.35
2 3 , 1 2 7 - 2 9 ; filosofia política Identity Evropa, 1 4 g KINTZ, Linda, 1 1 4 marxismo, marxista, 68,
de, 8 2 - 9 1 ; governo e, 62, igualdade política: Koch, irmãos, 1 1 5 1 0 2 , 1 0 4 , 1 9 9 n.4
82, 84, go, 1 0 1 ; governo da ataques neoliberais à, KRisTOL, Irving, 1 1 1 masculinidade, apelos
plebe, 75; instinto, tradição 1 6 , 1 7 , 3 8 - 3 9 , 5 6 - 5 8 , 79, KUSHNER, Jared, 40 políticos à, 7 8
e razão, 44; interesse 1 3 6 - 4 0 ; como fundação Masterpiece Cakeshop v.
público, 84; liberdade, 42, da democracia, 3 3 - 3 6 , 38; Colorado Civil Rights
63. i i g - 2 2 , 1 4 7 ; liberdade construção na sociedade da, LE PEN, Marine, 1 4 , 1 4 3 Commission, 1 5 6 - 7 4
e valores tradicionais, 53; direitos e, 140; inclusão e, liberdade: mercado de ideias, 1 8 6 - 8 8
9 0 - 9 1 , 1 2 0 - 2 2 ; mercados, 5 8 , 1 2 9 , 1 3 3 , 1 3 4 ; obrigação agenda de justiça social mercados:
1 1 8 - i g ; mercados e moral, do Estado em assegurar a, da esquerda e, 20; como princípios de governo
22, 23, 4 5 - 4 6 , 1 0 1 , 1 1 8 - 1 9 , 34-35; políticas de justiça compatibilidade com no neoliberalismo, 3 0 - 3 1 ;
1 3 0 - 3 1 ; natureza da justiça, social para manter a, 3 8 - 3 9 valores tradicionais, g o - g i ; Hayek e, 1 1 9 - 2 0 , 1 2 3 , 1 3 0 - 3 1 ;
45-46, 84; necessidade de igualitaristas e planejadores, formulação da extrema direita intromissão pela justiça
restringir as legislaturas, 127; 87-88,100,102, da, 2 2 - 2 4 , 5 5 - 5 9 ; Friedman e, social nos, 47; livres, 23, 7 1 ,
o político e, 73, 8 4 - 8 6 , go; 118-19,130-32,146 7 9 - 8 1 ; fundamento neoliberal 8 0 - 8 1 , 9 2 , 1 1 1 , 1 8 7 ; no projeto
"Por que não sou conservador", imigrantes, 1 1 - 1 4 , 1 6 n . i i , da, 20; neoliberalismo e, 48, neoliberal mercados e moral,
147; religião, 1 2 4 - 2 5 ; sistema 24,143, 223-24 5 4 - 5 5 ; no liberalismo, 83; 16; preservação dos, como
social planejado, 1 3 0 - 3 1 ; incei, movimento, 2 1 1 reforma social como ataque à, objetivo do neoliberalismo, 82
soberania e, 8 5 , 1 2 4 - 2 6 ; internet, 9 , 1 3 , 1 7 n . i i , 209, 224 2 2 - 2 3 , 5 6 - 5 7 ; supremacismo mercados e moral, v. Hayek
soberania popular e, 8 3 - 8 5 , e, 5 8 - 5 9 ; tradição da social- mercado, forças do, rendição
87; sociedade livre e, 90; I democracia e, 57, 60, 63, 76; niilista às, 2 0 7
tradição, 2 2 , 1 1 8 - 2 5 ; valores JOERGES, Christian, 1 0 0 uso para restabelecer valores MILL, John Stuart, 4 5 , 1 3 1
do Ocidente, 109; valores JOHNSON, Abby, 1 7 7 tradicionais, 1 3 5 - 4 0 , 1 5 2 - 5 3 . MIROWSKI, Phillip, 21, 28 n.25
tradicionais, 32, 70, 74-76, Johnson, Emenda, 1 3 4 1 6 8 - 7 0 ; uso para suportar a MONBIQT, George, 28 n.28
96-98 JONES, Daniel Stedman, 2 1 hegemonia masculina branca Mont Pèlerin, Sociedade,
Heartbeat International, justiça social, 16, 20, 32, 38, cristã, 30 1 7 , 1 8 , n.i2, 2 1 n.19,
1 7 6 , 1 7 7 , 1 7 9 n.47 41, 5 1 - 5 6 , 6 2 - 6 3 , 9 0 , 1 2 7 , LIENESCH, Michael, 93 22, 2 8 , 1 4 0 , 1 5 1 n.i
HEGEL, G. W. F., 35, 203, 2 2 7 129,142,157,165,195 moralidade da extrema direita:
hierarquias tradicionais, M como contratual, 1 0 5 , 1 1 7 ,
proteção neoliberal às, K MACLEAN, Nancy, 37 1 2 9 , 1 3 5 . 2 1 2 - 1 3 , 220;
23-24, 9 0 , 1 3 0 , 1 4 7 - 4 8 KAEPERNICK, Colin, I 4 n.io, 9 2 , 1 1 4 - 1 5 esvaziamento pelo niilismo
Hobby Lobby, caso, 160, KENNEDY, Anthony, MARCUSE, Herbert, 2 0 2 - 2 0 7 da, 2 1 1 - 1 2 , 2 1 8 - 1 9 , 2 2 7 - 2 8
1 6 2 , 1 6 4 , 1 7 4 n.36 1 3 1 , 1 4 8 , 1 5 7 n.g MARX, Karl, 18, 35, 43, 49- 53. moralidade tradicional, ver
HOCHSCHILD, Arlie, 2 0 8 keynesiano, 29 65 n.71, 68 n.4, 82, 86 n.45. valores tradicionais
253

MORETON, Bethany, 1 1 4 esquerda, caracterização PITKIN, Hanna, 62 REED, Ralph, 1 1 5 - 1 1 6


muros de fronteira, 1 4 2 - 4 4 do neoliberalismo pela, plutocracia, 10, 3 3 , 1 1 5 , 1 4 1 religião, 1 8 6 - 8 8 ; Hayek e,

11-14, 29-32, 222-23; pobres, 36, 37, 50, 57, 1 2 3 - 2 6 ; Tocqueville e, 1 1 0 n.2;
N financeirização e, 26, 28, 200; í I 61, 75, 78, 9 4 , 1 1 3 uso em demandas privadas

nacionalismo, g - 1 0 , 1 7 - 1 8 , 52, forma ideal de, 7 7 , 1 0 0 - 0 1 ; política antidemocrática, na esfera pública, i35-3g,

58, 9 6 , 1 1 0 , 1 1 7 , 1 4 2 - 4 4 neoconservadorismo e, ascensão da, 25 151-52,159-60,168-69

"não há alternativa", 7 8 n i - 1 3 ; oposição á igualdade político, o, 15, 61, 63, 6 7 - 7 1 , 1 0 2 , Religious Freedom Restoration,
Î I
National Institute of Family social e econômica, gs; raízes 1 0 3 - 0 4 ; ataques neoliberais ato, gi, 1 3 4 , i 6 g
and Life Advocates v. do, 17; "realmente existente", ao, 7 0 - 7 8 , 210; fracasso do Reproductive FACT, ato, 1 7 4 - 9 2
Becerra, 1 5 2 - 5 3 , 1 7 4 - 7 6 , 73, 7 7 - 7 8 , 1 0 2 - 0 5 , 1 3 2 - 3 5 . marxismo em teorizar o, 104 responsabilização, 5 0 - 5 1
183-85,189-91,192-94 1 4 4 - 4 9 ; retorno do recalcado populismo(s), 1 0 , 1 3 , 26, ressentimento, 1 9 7 - 9 8 ,
negócios: e, 26; ultranacionalismo e, 7 3 7 1 , 1 0 6 , 215, 217 214-17, 221-22
branding, 1 0 6 , 1 7 4 n . 3 6 , 1 8 8 , NIETZSCHE, Friedrich, Primeira Emenda, 1 3 5 - 1 4 0 , Revolução Francesa, 61
200, 216; como modelo de 1 9 7 - 2 0 2 , 207, 2 0 9 - 1 0 , 151-84; e expressão ROBERTSON, P a t , 2 1 2

governo neoliberal, 'ji.-'jz, 2 1 4 - 1 5 , 217, 2 1 9 - 2 2 profissional, 185-87, RÖPKE, Wilhelm, 4 9 - 5 °


142; extensão neoliberal do niilismo, 1 6 , 1 7 , 1 9 , 26, 27, 1 5 3 , 1 8 9 n.63 ROUSSEAU, Jean-Jacques,
direito de expressão aos, 74,197-201, 212-14, privatização, 14, 22, 29, 48, 64, 34, 8 2 - 8 3
152-56,170-73,186,193 217, 2 1 9 - 2 2 , 228 70, 9 2 , 1 1 4 , 1 3 2 , 1 4 1 - 4 4 , 2 1 6 RÜSTOW, Alexander, 49
NEJAIME, Douglas, 169 programas sociais, 23,
neoconservadorismo e O 39. 51, 53, 6 6 , 1 1 3
neoliberalismo, 1 1 1 - 1 4 OBAMA, Barack, 52, 218, 219 Proud Boys, 1 4 9 SANDEL, Michael J., 2 1 6
neoliberal: Occupy Wall Street, 66 Public Choice School SCHMITT, Carl, 6 3 - 6 5 , 6 7 - 6 9 , 75,

desmantelamento da ordoliberais, 4 9 - 5 0 , 9 3 , 1 2 7 , of Neoliberalism, 8 5 , 1 0 0 , 1 2 5 , igg-200, 226-27

sociedade, 26, 3 8 - 3 9 , 48, 1 4 0 , 1 4 4 ; constituição 75, g 2 , 1 0 1 , 1 1 5 SESSIONS, Jeff, 1 3 6 , 244

6 5 - 6 6 , 1 0 2 , 224; economia, política para os, 95-96, 96 SIEGEL, Riva, 16g

19 n.15; intelectuais, 1 7 - 1 9 , n.8o; família e, 1 1 8 ; governo sindicatos, 1 1 , 7 1

2 8 - 2 9 ; t^er tb. filosofia e, 74-79, 96, 97 n.82, gg "questão social", a: SINGH, Nikhil, 7
política dos neoliberais Organização Mundial ARENDT e, 60; capitalismo SLOBODIAN, Quinn,
neoliberahsmo: do Comércio, 30 e, 3 6 - 3 8 ; ordoliberais e, 4g, 2 g - 3 0 , 74, 7 8 n.24
abordagem neomarxista do, ORTEGA Y GASSET, J o s é , 8 7 76, 7 8 n.24; preocupação SLUGA, Hans, i g 7 n . i - n . 2 , 2 0 1
2 8 - 2 9 ; como projeto global, neoliberal com, 7 7 - 7 8 soberania, 30, 70, 75, 8 3 - 8 7 ,
2 9 - 3 0 ; conceito de, 2 8 - 2 9 , 3 1 g2-g4,100-03,124-27
n . 3 0 , 1 0 0 - 0 3 ; crise financeira Partido Republicano, 37 n.io R social-democracia, 25, 31, 4 1 ,
de 2008 e, 12; deficit político PENCE, Mike, i 3 g racismo, 1 0 - 1 1 , 1 4 , 1 5 , 60, 63, 7 6 , 8 0 , 83, g o , i 3 i

e, 1 0 3 ; democracia e, 7 6 , 1 0 0 - PHILLIPS, T i m , 1 1 5 sociedade, 3 8 - 3 g , 4 1 - 4 3 ,


1 7 , 1 9 . 25, 2 1 1
01; dessublimação e, 2 0 4 - 0 5 ; PINOCHET, Augusto, 2g, 8 8 6 3 - 6 6 , i 2 8 - 2 g ; como
REAGAN, Ronald, 21, 29, 39
254

protetora do imaginário U
democrático, 63-66 União Européia, como ordem
SOMEK, Alexander, 65 política ordoliberal, 98
Soviético, Bloco, 29 universidades, ataques
Suprema Corte, 23, 2 6 , 1 3 6 , 1 3 9 , neoliberais às, 5 5 - 5 6
1 5 3 - 5 9 . 1 7 1 . 1 9 5 . 212; ver utilitaristas, 4 5
tb. Masterpiece Cakeshop
V. Colorado Civil Rights
Commission; National valores tradicionais, 2 2 - 2 4 ,
Institute of Family and 47-48, 7 4 - 7 5 , 1 0 0 - 0 2 , 1 1 0 ,
Life Advocates v. Becerra 1 2 6 - 3 0 , 1 3 2 - 3 3 . 1 4 1 - 4 3 ; como
base para qualquer governo
legitimo, 43, 7 5 n.i8, 90,
TALMON, Jacob, 83 1 0 1 ; como limite do poder
tecnocracia, 70, 7 1 , 7 6 , 1 0 1 , 1 0 4 governamental, 90; como
terrorismo, 1 3 ordem espontânea, 86; Hayek
THATCHER, Margaret, 21, e, 8 6 , 1 1 9 - 3 2 ; importância
38, 39, 4 8 , 1 4 1 , 2 0 7 na teoria neoliberal dos, 10,
THOMAS, Clarence, 1 5 7 , 1 5 9 , 15-16, 3 1 - 3 2 , 1 0 9 - 1 8 , 1 4 9 ;
162,166,174-75,184-90 LIBERDADE E, 9 I - 9 2 , 1 2 0 - 2 2

TOCQUEVILLE, Alexis voucher escolar, sistema


de, 34, 6 3 , 1 1 0 de, 9 1 , 1 3 3
TOLSTOI, Leon, 197
tradição, 22, 2 4 - 2 5 , 9 0 - 9 1 , W
1 1 9 - 3 2 ; ver tb. valores WEBER, Max, 6 7 , 1 4 6 , 1 9 7 , 1 9 9 n.4
tradicionais WOLIN, Sheldon, 25, 26,
tribalismo, 15, 2 0 7 3 4 - 3 6 , 70 n.7
TRUDEAU, Justin, 5 2
TRUMP, Donald, 14, 73, 99,
1 1 3 - 1 1 7 , 1 3 4 . 213- 2 1 8 - 2 1 9 , YIANNOPOLOUS, Mílo, 1 4 9
2 1 8 n.40; campanha eleitoral
de, 9 3 - 9 5 ; mandato de, 39,
72,136 n.74,137-39.142
pela educação moral e social dos indiví-
duos sob o modelo do capital humano, v a l e ^
dizer, a formação da massa de empreen-
dedores de si a partir de uma gramática
individualista e hipercapitalista.
— Com Nietzsche, Brown mostra como o
empoderamento raivoso da extrema direi- '
ta volta-se contra si produzindo niilismo,
ou seja, valor religioso-moral canalizado
na lógica da mercadoria. O sujeito torna-se
capital humano de cima a baixo quando o
impulso de vida, amor e criatividade trans-
' forma-se no que Marcuse chamou de dessu-
blimação repressiva, conceito que explica
o gozo sentido como subversivo pela nova
direita: livre, manipulável, viciado em estí-
mulos e gratificações triviais, o sujeito é
não somente desatado libidinalmente e
desbloqueado para gozar de mais-prazer,
mas desobrigado de qualquer relação com
o social. Abre-se assim a válvula de outro
instinto humano, Tânatos.

Eduardo Altheman, pós-doutorando em


sociologia pela F F L C H / U S P .
Mario Marino,*mestre e doutorando em
filosofia pela F F L C H / U S P . ^
E s t e livro foi c o m p o s t o n a t i p o g r a f i a R e P u b l i c e i m p r e s s o e m
p a p e l Polen S o f t 8 o g / m ' n a B a r t i r a G r á f i c a e E d i t o r a . :Para a
c a p a f o r a m u t i l i z a d a s i m a g e n s de satélite d a m i n a de C a r a j á s

!
e m P a r a u a p e b a s - PA. c o o r d e n a d a s - 6 . 0 5 4 6 3 5 , - 5 0 . 1 7 7 9 5 6 © 2 0 1 9
CNEs/Airbus, Landsat/Copernicus, M a x a r Technologies,
U.S. G e o l o g i c a l S u r v e y , D a d o s do m a p a © G o o g l e 2 0 1 9 '
S ã o Paulo, n o v e m b r o de 2 0 1 9
o neoliberalismo gerou seu filho
disforme. F o r ^ de difícil nomeação»
é ao mesmo tempo neofascista,
u l t r a c á ^ ^ ^ t a e conservadora. Sua
rápida expansãb^o tema das análises
da filósofa e feminista norte-americana
Wendy Brown, autora de livros sobre
o fim da democracia na atualidade.
A partir de Foucault, Nietzsche e
Marcuse, Brown aponta para a corrosão
política, social e moral em curso:
valq^f considerados inquestionáveis,
como democracia e respeito à
pluralidade, são invertidos por uma
moral ressentida.
Entender esse fenômeno político,
^econ^s^io e moral é um compromisso
om ò ^ s s o temoe^ J É ^ y L é possível
sâver em sociedade q i ^ ^ g ^ t d e s t r o e m
r ^ ^ noções de d^^M*acia,
^•justiça e liberdad^^uando a força do
' Gapit^üi segue s a l t a n d o ^ ^ ^ ^ S d o
' nft viver em comum r íík
comum?5^^^

fe J ^ ^ A R G A R E T H R A G O

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