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Quando Miss Emily Grierson morreu, toda a nossa cidade compareceu ao enterro: os homens
em atenção a essa espécie de carinho respeitoso que se tem por um monumento tombado;
as mulheres movidas pela curiosidade de ver o interior de sua casa, onde ninguém entrara
nos últimos dez anos, exceto um velho negro, ao mesmo tempo cozinheiro e jardineiro.
Levantaram-se à sua entrada. Era uma mulherzinha pequena e gorda, vestida de preto, com
uma fina corrente de ouro descendo-lhe do pescoço até a cintura, onde desaparecia no cós
da saia. Tinha a ossatura pequena e delicada; talvez, por isso, o que em outra pessoa seria
apenas gordura, parecia, nela, obesidade. Dava a impressão de estar inchada, como um
cadáver muito tempo submerso numa água estagnada; tinha, mesmo, de um afogado, a
carne lívida e balofa. Seus olhos, perdidos nas intumescências de sua face, lembravam dois
pedacinhos de carvão enfiados numa bola de massa e iam de um rosto a outro, enquanto os
visitantes expunham o caso.
Não mandou que sentassem. Conservou-se, apenas, em pé no limiar da sala, e esperou
tranqüilamente que o porta-voz se interrompesse, balbuciando. Então, puderam ouvir o tic-
tac do relógio invisível, preso na ponta de sua corrente de ouro.
Sua voz era seca e fria:
– Não tenho impostos a pagar em Jefferson. O Corenel Sartóris me explicou isso. Talvez um
dos senhores possa consultar os arquivos da cidade e dar satisfações aos demais.
– Mas nós o fizemos. Nós somos as autoridades no município, Miss Emily. A senhora não
recebeu a notificação assinada pelo delegado?
– Sim, recebi um papel – disse Miss Emily. – Talvez ele se considere realmente o delegado…
Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
– Mas não há, nos livros, nada que o possa provar. Veja a senhora… É preciso que nós…
– Procurem o Coronel Sartóris. Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
– Mas, Miss Emily –
– Procurem o Coronel Sartóris. (Havia quase dez anos que o Coronel Sartóris estava morto)
– Não tenho impostos a pagar em Jefferson. Tobe! – O negro apareceu. – Acompanha estes
cavalheiros.
Assim ela os venceu irremediavelmente, como já lhes vencera os pais, trinta anos antes, a
respeito do cheiro. Isso aconteceu dois anos após a morte de seu pai, e quase em seguida à
ocasião em que o namorado – aquele mesmo que nós pensávamos iria se casar com ela – a
abandonou. Aquela morte e o abandono do namorado fizeram que ela depois pouco saísse de
casa. Algumas senhoras tiveram a temeridade de ir visitá-la, mas não foram recebidas e,
naquela casa, o único sinal de vida era o negro – ainda moço, então – que entrava e saía
com um cesto de compras.
– Como se um homem – seja quem for! – pudesse conservar limpa uma cozinha! – diziam as
senhoras. Assim, ninguém se surpreendeu quando se começou a sentir o cheiro. Foi um novo
laço que se estendeu entre a gente grosseira e prolífica do bairro e os grandes e poderosos
Grierson.
Uma mulher, sua vizinha, foi queixar-se ao prefeito, Juiz Stevens, que contava, então,
oitenta anos.
Não se disse, então, que estava louca. Pensamos que tinha agido como devia. Lembrávamo-
nos de todos os moços que seu pai afastara, e sabíamos que, achando-se sem nada, ela
deveria agarrar-se àquele que a despojara de tudo, como em geral acontece.
Esteve muito tempo doente. Quando tornamos a vê-la, tinha os cabelos cortados, o que a
fazia parecer uma menina e lhe dava uma vaga semelhança com os anjos dos vitrais de
igreja – uma mistura de trágico e sereno.
A cidade acabava justamente de firmar o contrato para pavimentação das calçadas e, no
verão que seguiu a morte de seu pai, começaram os trabalhos. A companhia construtora
trouxe negros, mulas e máquinas, e um contramestre chamado Homer Barron, um “yankee”,
homem grande, moreno e decidido, com um vozeirão enorme e olhos mais claros do que a
pele do rosto. Os garotos seguiam-no aos bandos, para ouvi-lo gritar com os negros, e para
ouvir os negros cantando em compasso, enquanto erguiam e abaixavam a picareta. Em
breve, o contramestre conhecia toda a gente da cidade. Cada vez que se ouviam ruidosas
gargalhadas na praça, podia-se jurar que Homer Barron estava no centro do grupo. Não
tardamos a avistá-lo, nos domingos à tarde, passeando com Miss Emily na carriola de
aluguel, que tinha rodas amarelas e era puxada por uma parelha de cavalos baios.
A princípio, todos ficaram satisfeitos de ver que Miss Emily tinha agora um interesse na vida.
As senhoras andavam dizendo: “Naturalmente, nunca uma Grierson tomará a sério um
nortista, um assalariado.”
Mas havia outras pessoas, as mais velhas, que achavam que nem mesmo o desgosto deveria
fazer que uma verdadeira senhora se esquecesse de que “noblesse oblige”. (Sem no entanto,
empregar essa expressão: Noblesse oblige). Diziam, apenas: “Pobre Emily. Os parentes
deviam procurá-la.”
Tinha parentes em Alabama, mas, alguns anos antes, o pai rompera com eles por causa da
herança da velha Lady Wyatt, a louca, e não havia mais relações entre as duas famílias. Nem
sequer se tinham feito representar no enterro.
E, mal a gente velha exclamou “Pobre Emíly”, os mexericos começaram: “Vocês imaginam
que, realmente. . .” diziam uns para os outros. – “Mas nem há dúvida. Porque, a não ser
isso. . ” tudo sussurrado atrás das mãos no amarrotado farfalhar de sedas e cetins por
detrás das janelas fechadas ao sol das tardes de domingo, enquanto a parelha de cavalos
baios passava num leve e apressado clop-clop-clop. – “Pobre Emily!”
Ela, porém, erguia a cabeça bem alto, mesmo quando pensávamos que tinha decaído.
Parecia, mais do que nunca, exigir que se reconhecesse sua dignidade de última dos
Grierson, como se fosse necessário aquele toque de vulgaridade terrestre para acentuar mais
profundamente a sua impenetrabilidade. Tal como no dia em que comprou o veneno para
ratos, o arsênico. Isso aconteceu um ano depois de terem começado a dizer:
“Pobre Emily”, e quando as duas primas estavam hospedadas em sua casa.
– Quero comprar veneno – disse ao farmacêutico. Contava, então, mais de trinta anos; era
ainda delgada, embora estivesse mais magra do que de costume, com os olhos negros,
altivos e frios num rosto cuja pele se repuxava na altura das têmporas e em volta das
pálpebras, como se imaginava que deveria ser o rosto de um guardião de farol. – Quero
comprar veneno.
– Pois não, Míss Emily. Que espécie de veneno? para ratos ou qualquer coisa assim?
Recomen…
– Quero o que o senhor tiver de melhor. Não importa qual seja.
O farmacêutico citou alguns:
– Matariam até mesmo um elefante. Mas o que a senhora quer e…
– Arsênico – disse ela. – É bom?
– É… arsênico? Pois sim, senhora. Mas o que a senhora quer ….
– Eu quero arsênico.
– Pois, naturalmente – disse ele. – Se é isso que a senhora quer. Porém, a lei determina que
a senhora declare o fim que dará ao veneno.
Miss Emily limitou-se a fitá-lo, com a cabeça pendida para melhor fixar os olhos nos olhos
dele, até forçá-lo a desviar o olhar e a ir buscar o arsênico, que embrulhou. O caixeiro negro
que fazia entregas trouxe-lhe o pacote, pois o farmacêutico não tornou a aparecer. Ao
chegar em casa, tirou o papel; na tampa da caixa, debaixo da caveira e os dois ossos, estava
escrito: “Para ratos”.
Assim, no dia seguinte, nós dizíamos: “Ela vai suicidar-se”, e achávamos que era a melhor
solução. Quando começáramos a vê-la com Homer Barrou, tínhamos dito: “Vai casar-se com
ele”. Depois, dizíamos: “Ela ainda acabará por persuadi-lo”, porque o próprio Homer
observava – gostava da companhia dos homens e sabia-se que bebia com os rapazes no
Elk’s Club – que não era feito para casamento. Mais tarde, dissemos: “Pobre Emily”, por
detrás das venezianas, quando ambos passavam, nas tardes de domingo, na carriola vistosa,
Miss Emily de cabeça erguida e Homer Barrou com o chapéu de lado e um charuto entre os
dentes, segurando as rédeas e o chicote nas luvas amarelas.
Então, algumas senhoras começaram a declarar que aquilo era uma vergonha para a cidade
e um mau exemplo para a gente moça. Os homens não ousavam intervir, mas, finalmente,
as mulheres forçaram o pastor batista – a gente de Miss Emily era episcopal – a ir procurá-
la. O pastor negou-se sempre a contar o que acontecera durante a entrevista e recusou-se a
voltar à sua casa. No domingo seguinte, saíram juntos novamente e, no outro dia, a mulher
do ministro escreveu aos parentes de Miss Emily, em Alabama.
Dessa forma, ela teve pessoas de seu sangue outra vez debaixo de seu teto e nós ficamos
todos à espera dos acontecimentos. A princípio, nada aconteceu. Depois, ficamos
convencidos de que iam se casar. Soubemos que Miss Emily fôra à joalheria e encomendara
um jogo de toucador para homem, todo de prata, com as iniciais II. B. gravadas em cada
peça. Dois dias mais tarde, fomos informados de que comprara um enxoval masculino
completo, inclusive uma camisola de dormir, e dissemos: “Estão casados”. E ficamos
contentes, porque as duas primas eram mais Grierson ainda do que Miss Emily jamais o fora.
Não tivemos grande surpresa quando, terminado o calçamento das ruas, Homer Barron
partiu. Sentimo-nos um pouco decepcionados por não ter havido nenhuma manifestação
pública de regozijo, mas julgamos que se tivesse afastado para preparar a ida de Miss Emily,
ou para lhe dar a oportunidade de se livrar das primas. (Por essa época formáramos uma
verdadeira cabala, e éramos todos aliados de Miss Emily no sentido de ajudá-la a alijar as
primas). O que é certo é que elas partiram ao fim de outra semana. E, como esperávamos,
no terceiro dia após essa partida, Homer Barron estava de volta à cidade. Os vizinhos viram
o negro abrir-lhe a porta da cozinha, uma tarde ao escurecer.
Foi essa a última vez que vimos Homer Barron. E, durante algum tempo, não tornamos
também a ver Miss Emily. O negro ia e vinha com a cesta das compras, mas a porta da
entrada continuava fechada. Uma vez ou outra conseguimos avistá-la à janela por alguns
instantes, como naquela noite em que os homens foram à sua casa espalhar a cal; durante
mais de seis meses, porém, ela não apareceu nas ruas. Compreendemos que isso também
era de esperar; como se aquele aspecto do caráter de seu pai, que tantas vezes
constrangera sua vida de mulher, fosse virulento e furioso demais para morrer assim.
Quando a vimos novamente, Miss Emily tinha engordado muito e seus cabelos estavam
ficando grisalhos. Nos anos seguintes, foram ficando cada vez mais grisalhos, até o momento
em que, tendo adquirido um tom cinzento-de-aço, sua cabeleira não mudou mais de cor. Até
o dia de sua morte, aos setenta e quatro anos, aqueles cabelos conservavam ainda esse
vigoroso tom cinzento-de-aço, como os cabelos de um homem ativo.
Desde aquela época, sua porta ficara fechada, exceto no decorrer de um período de seis ou
sete anos, quando ela, quarentona, dava aulas de pintura em porcelana. Instalara, num
aposento do andar térreo, o atelier onde as filhas e netas dos contemporâneos do Coronel
Sartóris lhe eram enviadas com a mesma regularidade e dentro do mesmo espírito com que
as mandavam à igreja, nos domingos, munidas de uma moedinha de vinte centavos para a
hora da coleta. Nesse ínterim, Miss Emily se vira dispensada do pagamento de impostos.
A nova geração tornou-se, então, a espinha dorsal e a alma da cidade, as alunas cresceram
e dispersaram-se, e não lhe mandaram as filhas com as caixinhas de tinta, os aborrecidos
pincéis e os modelos recortados das revistas ilustradas femininas. A porta fechou-se sobre a
última aluna e ficou fechada desde então. Quando a cidade adotou a distribuição gratuita do
correio, Miss Emily foi a única pessoa que se negou a consentir que fixassem um número de
metal acima de sua porta e uma caixa postal ao lado. Não houve argumento que a
convencesse.
Dias, meses e anos, vimos o negro, cada vez mais grisalho e curvado, entrando e saindo
com a cesta de compras. Anualmente, em dezembro, mandavam-lhe a declaração de
impostos, que o correio devolvia na semana seguinte, com a nota de não haver sido
reclamada. Uma vez ou outra, nós a avistávamos diante da janela do andar térreo – tinha,
evidentemente, fechado todo o andar superior da casa – semelhante ao busto esculpido de
um ídolo no seu nicho, e nunca chegamos a saber se estava olhando para nós, ou se nem
sequer nos via. E assim passou ela de geração para geração – querida, inevitável,
impenetrável, tranqüila e perversa.
E, então, ela morreu. Caiu doente no seu casarão cheio de sombras e de pó, tendo como
único auxílio o negro caduco. Nem ao menos soubéramos que estava doente, pois havia já
muito tempo que desistíramos de arrancar qualquer informação ao negro. Não falava com
pessoa alguma, talvez nem mesmo com ela; sua voz se tornara áspera e rouquenha como
uma voz que não serve nunca.
Morreu num dos quartos do andar térreo, numa cama de nogueira maciça com cortinados, a
cabeça grisalha erguida por um travesseiro amarelo e mofado pelo tempo e pela falta de sol.
O negro encontrou a primeira das senhoras na porta da frente; deixou-as entrar, com suas
vozes sussurradas e sibilantes, com seus olhares rápidos, furtivos e curiosos, e depois
desapareceu. Meteu-se pela casa a dentro, atravessou-a toda, saiu pelos fundos e sumiu
para sempre.
A duas primas não tardaram a chegar. Fizeram o enterro no segundo dia. A cidade em peso
compareceu para ver Miss Emily coberta por um montão de flores compradas, o retrato, a
carvão, de seu pai profundamente pensativo, acima do caixão, cercado pelas senhoras
sibilantes e macabras. No saguão e no gramado, homens, muito velhos – alguns nos
uniformes de confederados muito bem escovadinhos – falavam de Miss Emily como se fosse
uma de suas contemporâneas, imaginando que tinham dançado com ela, e até mesmo,
talvez, que a tinham namorado, confundindo o tempo e a progressão matemática, como
fazem os velhos, para os quais o passado não é uma estrada que se vai encurtando, porém
uma vasta planície nunca atingida pelo inverno, dividida para eles, agora, pelo estreito
gargalo da ampulheta dos últimos dez anos.
Nós todos já sabíamos da existência, naquela região, do andar superior, onde ninguém
pisara há quarenta anos, de um quarto fechado que seria preciso arrombar. Esperamos que
Miss Emily estivesse docemente enterrada, antes de forçá-lo.
A violência com que pusemos a porta abaixo pareceu encher o quarto de uma poeira
penetrante. Era como se uma mortalha, tênue e acre, se estendesse sobre todas as coisas
daquele quarto, mobiliado e enfeitado para urna noite de núpcias: sobre as desbotadas
cortinas de pesada seda cor-de-rosa, sobre os quebra. Luzes rosados das lâmpadas, sobre a
penteadeira, sobre os delicados objetos de cristal, sobre as peças do aparelho de toucador
para homem, com seus dorsos de prata embaciados, tão embaciados que nem se
distinguiam os monogramas escurecidos.
Durante muito tempo, ali ficamos, imóveis, olhando para o seu ríctus profundo e descarnado,
O corpo devia ter, a principio, repousado na atitude de carícia, abraçado a outro corpo, mas
agora o grande sono que sobrevive ao amor, o grande sono que vence até mesmo as carícias
do amor, dominara-o afinal. O que restava dele, em decomposição dentro do que restava de
sua camisola de dormir, tornara-se inseparável do leito em que jazia; e sobre ele, assim
como sobre o travesseiro vazio ao seu lado, estendera-se aquela camada espessa de
paciente e obstinada poeira.
Notamos, então, que no segundo travesseiro havia a marca funda de uma cabeça. Um de
nós encontrou qualquer coisa caída sobre esse travesseiro e, debruçando-se, enquanto a
leve, impalpável poeira acre e seca, nos entrava pelas narinas, vimos um longo fio de cabelo
de um tom cinzento-de-aço.