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BREVE HISTÓRICO DA PSICOPATOLOGIA

Contribuições para uma Sociedade Inclusiva

Facion, José Raimundo*


Lira, Solange**
Giannini, Evie de França***

1.1. Introdução:

O presente capítulo constitui uma tentativa de delinear um perfil


nosográfico dos principais eventos históricos que nortearam a evolução do
conceito de psicopatologia.
Por psicopatologia compreende-se o ramo da patologia que estuda a
descrição, a classificação e os mecanismos de evolução das psicopatias, ou
seja, dos transtornos mentais. Faremos um estudo histórico dos transtornos
mentais até chegar a compreensão dos Transtornos Invasivos do
Desenvolvimento na Infância e na Adolescência.
Abordar o estudo das doenças mentais situando-as no tempo torna-se
necessário para compreendermos a evolução do conceito, terminologias, e
formas de tratamento empregadas desde os primórdios, até os dias atuais.
A compreensão desses acontecimentos pode contribuir para um maior
esclarecimento da população sobre as doenças mentais, possibilitando
reflexões pessoais capazes de reduzir crenças pré-concebidas e
preconceituosas, que dificultam a construção de um processo inclusivo na
sociedade.
Neste estudo será enfocada a trajetória dos transtornos mentais no
decorrer do tempo, relacionando-os com o pensamento vigente às épocas,
bem como evolução desses conceitos na sociedade brasileira.

**
Psicólogo, Doutor em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria Infanto-juvenil e Pós-Doutorado no
Departamento de Neuropediatria da Universidade de Münster – Alemanha. Professor Visitante da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ e Consultor Geral da Comunidade Terapêutica
Interdisciplinar – COTEI.
****
Psicóloga e Mestranda em Educação - Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ.
******
Bolsista Voluntária de Iniciação Científica, graduanda em Psicologia da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro – UERJ.
1.2 Os Diferentes Conceitos na História da Humanidade

Podemos falar de transtornos mentais como hoje os concebemos? A


partir de que data, de que contexto? Que acontecimentos históricos concorrem
para a demarcação desse campo conceitual?
As perturbações, distúrbios e sintomas mentais estão desde sempre
inseridas numa representação social da doença, ou essa inserção social
depende da produção de saberes e práticas datados historicamente?
O que é o transtorno mental? Seria uma doença? Qual a sua origem?
Quem são os ditos “loucos”? O que caracteriza a loucura?
Essas indagações parecem sempre ter existido, e não foi por acaso que
Erasmo de Rotterdam escreveu o clássico Elogio da Loucura, em 1509,
classificando a loucura como “patrimônio Universal da Humanidade”.
Todavia, as diferentes terminologias empregadas para abordar o assunto
ao longo do tempo - distúrbios, sintomas, perturbações, doença, transtorno,
loucura, perda do juízo e outras - constituem não só formas de nomear os
fenômenos, (hoje conhecidos e sistematizados como transtornos mentais),
como também caracteriza diferentes visões conceituais vigentes numa
sociedade, que estabelecerão, segundo Goffman (1988; p.11): “... os meios de
categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e
naturais para os membros de cada uma dessas categorias”.
Essas categorias e atributos identificarão e classificarão os indivíduos
pela similaridade ou diferença, enquadrando-os em grupos normais e
divergentes.
Dessa forma, os indivíduos que por alguma razão não conseguem se
adaptar às normas ou valores estabelecidos e aceitos pela maioria vigente em
sua comunidade, são considerados diferentes, excepcionais, loucos, anormais
(fora da norma). Esses enquadres constituem um dos critérios
institucionalizados pelo social para identificar a loucura e seus ditos “loucos”
em diferentes tempos.
Historicamente, podemos então dizer que a loucura sempre esteve
presente em todas as épocas da humanidade, constituíam grupos minoritários
e divergentes da sociedade.
Embora o histórico da presença dos transtornos mentais seja
fragmentado, encontramos inúmeras referências de perturbações mentais nas
sociedades primitivas; a exemplo podemos citar um fragmento hindu do Ayur-
Veda, escrito 1400 anos a.C., onde consta a descrição de um estado induzido
pelo demônio, no qual o afligido é voraz, sórdido, anda nu, perdeu sua memória
e move-se de um lado para o outro de um modo agitado. (Madalena; 1982:
p.25).
Algumas civilizações como a egípcia, já reconheciam a epilepsia e a
histeria, e os chineses descreviam os sintomas dos transtornos mentais.
Entre os diversos tratamentos comuns nesse período, temos: ritos
curativos, métodos simbólicos de tratar as doenças, uso de drogas
alucinógenas para a purificação do espírito e indícios de trepanação 1 entre as
culturas paleolíticas e entre os Incas.
Na literatura universal há descrições detalhadas de quadros psiquiátricos
- o velho testamento, cita personagens como Saul, que vivia deprimido e dizia-
se perseguido.
A cultura greco-romana tem obras escritas, como a “Ilíada” de Homero e
“As obras e os dias” de Hesíodo, que fornecem indícios de reconhecimento das
perturbações mentais.
Para exemplificar, citaremos um trecho da Ilíada, constante em Pessoti:
“Agamenon tenta desculpar-se por ter roubado a amante de Aquiles, dizendo:
- Não fui eu que causei essa ação e sim Zeus, o destino e as Erínias que
caminhavam nas trevas: foram eles que colocaram uma atê selvagem no meu
entendimento, naquele dia em que roubei, de minha iniciativa, o prêmio de honra
de Aquiles. Mas o que podia eu fazer? É a divindade que leva a termo todas as
coisas. Sim, é a veneranda atê, que ofusca a todos, aquela maldita! Ela...não se
arrasta pelo chão, mas sobe à cabeça dos homens para obscurecer-lhes a
mente...e conseguiu, uma vez, enevoar a cabeça do próprio Zeus, como deveis
saber”. (Pessoti, 1994, pág. 13)
De acordo com este autor, o termo atê, constante na Ilíada, tem o sentido
de perda ou turvamento temporário da consciência, ou da razão.
O conceito de loucura estava atrelado a uma visão divina, onde - “os
heróis homéricos não enlouquecem, são tornados loucos por decisões da
divindade, embora as manifestações e conseqüências da loucura se passem
no plano da realidade física e social” (Pessoti,1994: pág. 21).
Os ditos “loucos” até o início da Idade Média circulavam livremente pelos
campos e cidades, em convivência harmônica com a sociedade, sobrevivendo
de doações e donativos públicos, constituíam um número reduzido, pois boa
parte morria cedo, face às condições precárias de vida, salvo os que eram de
famílias abastadas.
Com o início da Revolução Industrial, ou seja, quando os homens saíram
do trabalho no campo para trabalhar na cidade, começaram a predominar
idéias científicas, diminuindo as explicações de práticas religiosas. Foi então
que o processo de institucionalização da loucura ocorreu. Os hospitais
passaram a ser asilos para os loucos, havendo um grande número de
internações. Porém, os internados eram tratados de forma sub-humanas, os
mais alterados eram imobilizados com lençóis úmidos, não recebiam
medicamentos, nem mesmo o acompanhamento do médico.
Ao longo da história, várias visões conceberam as pessoas com
distúrbios psíquicos.
A primeira visão organicista dos distúrbios psíquicos surge com
Hipócrates (460-370 a.C.), que entendia a loucura como uma doença orgânica,
idêntica a qualquer outra doença. Tendo como etiologia distúrbios no humor.
Para isso Hipócrates classificava o organismo como tendo quatro humores
básicos: sangue, bílis negra, bílis amarela e fleuma, que ao interagirem com
qualidades básicas da natureza - calor, frio, umidade e aridez, forneciam os

1
Trepanação – Ato ou efeito de trepanar, isto de usar o trépano, instrumento cortante, para fazer
perfurações e/ou incisões em ossos e no crânio.
temperamentos humanos: sangüíneo, colérico, melancólico e fleumático. O
desequilibro entre os humores e os elementos da natureza constituíam o cerne
das doenças mentais. Entre os principais tratamentos haviam: banhos de sol e
mar, purgações e repouso.
Platão (428 - 348 a.C.) em A República faz uma subdivisão tripartida da
alma em apetite, razão e têmpera. Comparada por muitos à divisão
psicanalítica entre id, ego e superego, entretanto, o apetite, diferentemente do
id, seria consciente. Já o superego apesar do caráter punitivo, não se limitaria
as emoções. Ele acreditava que o conceito de saúde consistia numa harmonia
entre mente e corpo.Em uma de suas obras “Timaeus” ele enfatiza que o
desequilibro alma/corpo geraria aberrações mentais.
Já Aristóteles (384 - 322 a.C.) fundamenta-se em suas teorias nas
observações empíricas do comportamento humano, onde apoiava a teoria de
que a bílis negra causava distúrbios na percepção sensorial e alucinações. A
cura das doenças mentais, para ele, poderia ocorrer a partir do despertar
impulsionado pela música, que possibilitava liberar emoções reprimidas e
paixões.
O médico romano Galeno - na Ásia Menor/Turquia (131 -200 d.C.) -
contribuiu para a história da psiquiatria, ao relacionar os sintomas histéricos
com a ausência de relações sexuais, onde ressalta os efeitos curativos das
relações sexuais e da masturbação.
Galen - (séc. III d.C.) - Reforçou a teoria de Hipócrates, estabelecendo
como ponto principal o papel do cérebro quando da presença de distúrbios
psíquicos.
Areteu da Capadócia - (Séc. II e III d.C.) - descreveu com precisão de
detalhes, de forma clínica e científica as diversas formas de loucura, sendo
considerado o Hipócrates da medicina mental. Para exemplificar, extraímos de
Pessoti (1994: pág.63) uma citação de Areteu: “os frenéticos, por causa de
uma lesão nos sentidos acreditavam ver coisas que não existem ou que são
visíveis apenas por eles; pelo contrário, os maníacos vêm como se deve ver,
só que eles julgam mal os objetos e fora da razão comum”.
Os acontecimentos ocorridos na história da psicopatologia e até agora
citados, não constituem teorias, mas modelos de elaboração conceitual, num
dado campo do conhecimento, e que influenciariam modelos futuros.
A Doutrina Demonista - difundida na Idade Média e sistematizada no
Renascimento - advém do Cristianismo que, ao consolidar-se como religião
oficial na Europa, abandona paulatinamente a visão orgânica da loucura e
reedita o modelo mitológico da antiguidade greco-romana, entretanto, atribui
um caráter negativo a loucura, tornando-a patológica, estigma de imperfeição e
culpa - o louco deve ser evitado, pois representa um perigo para a sociedade, é
produto do demônio, de divindades pagãs, que utilizam como instrumento o
pagão/herege. Esta concepção institucionalizava, dessa forma, a perseguição
aos não cristãos.
Surgem nesta época compêndios de prática exorcista de combate ao
demonismo, entre os quais: o Malleus Maleficarum (1484 - Sprenger e Kramer)
e o compêndio da Arte Exorcista (1576 - Menghi). E classificações para as
possessões:
“Num tipo de suposta possessão, a vítima era possuída, sem querer, através do
demônio como castigo de Deus para pagar os pecados cometidos. Estes eram os
doentes mentais. Sua possessão era considerada como desgraça pessoal. No
segundo tipo, a pessoa fazia de propósito um pacto com o demônio. Estes eram os
bruxos. No final do século XV, a distinção entre os dois tipos de possessões
demoníacas foi unificada”.2
De acordo com o mesmo autor, o auge desta doutrina ocorre quando o
Papa Innocêncio VIII redigiu a bula papal que incitava todo clero a “não deixar
pedra em seu lugar na busca de bruxas”. Em decorrência disto, “por mais de
200 anos, centenas de milhares de doentes mentais, homens e mulheres e até
crianças foram caçados, acusados, torturados até a confissão e, no caso de
condenação, executados em praça pública”3.
Algumas considerações ao modelo demonista são pertinentes: os
escritores desse período pertenciam a uma categoria de homens informados
com leitura de Platão, Aristóteles e dos pós-aristotélicos, portanto, com
informações suficientes para distinguir crendice, fantasia e fato real. E se
sabiam disso, por que pregavam a necessidade do exorcismo a tudo e a todos
que não fossem cristãos?
Para responder a este questionamento, retornamos ao que já foi descrito,
que este período coincide com a solidificação do cristianismo, cujo
entendimento da doutrina foi traduzido de acordo com o poder dominante na
época - o clero - que objetivava aumentar o rebanho católico e aniquilar os que
não fossem simpatizantes; através de leis e teorias doutrinárias que
permitissem aprovação social das classes populares. Legitimavam assim
práticas inquisitoriais, exorcismos e o extermínio de milhares de pessoas, e
conseqüentemente, aumentavam seu poderio financeiro e político.
Pessoti (1994; p.123) conta-nos que: “O leitor típico de obras destinadas
e fanáticas como essas era o cidadão urbano relativamente inculto ou o baixo-
clero, que nelas encontrava a justificação para um considerável poder
doutrinário, ideológico e até político no tosco ambiente cultural das zonas rurais
da Europa”.
Os desmandos da Doutrina Demonista começam a perder força (séc. XVI)
quando personagens cultos e ilustres da sociedade fazem análises críticas ao
conteúdo dos manuais e compêndios. Entre os principais representantes
citamos: Molitor (legista de Constança), Erasmo de Rotterdam (escreveu o
Elogio da Loucura) e Jerônimo Cardano (médico).
John Weyer - (século XVI) - aprofundou as concepções da época,
procurando separar entre as pessoas envolvidas com feitiçaria, aquelas que,
por alteração na sua personalidade, são facilmente impressionáveis e
influenciados pelo demônio. Foi o primeiro médico a se interessar,
principalmente, pelos distúrbios psíquicos e é considerado o pai da psiquiatria
moderna.
Neste período (final do século XV e inicio do século XVI) a Europa
vivenciou o advento da manufatura inicial e a conseqüente divisão social do
trabalho; os ofícios artesanais e agrícolas existentes anteriormente começam a
declinar, abrindo espaço para um novo pensamento: disciplinar os
2
FACION, J.R.: “História da Psicopatologia” in: FOURNIOL FILHO, 1998, pág. 298.
3
Idem.
trabalhadores, subordinando-os, vigiando-os e impondo normas que puniam a
ociosidade (voluntária ou não), a mendicância e a vadiagem. Em decorrência
disto, começaram a surgir instituições - as casas de correção e de trabalho, e
os chamados hospitais gerais - que tinham por função não curar, mas retirar da
sociedade todos os anti-sociais, provendo trabalho para os desocupados,
punindo a ociosidade e reeducando para a moralidade religiosa e moral. 4
É nesse tempo que a loucura desaparece do contexto social, os loucos
serão recolhidos a leprosários, pois dispunham de vagas, já que a ocorrência
de lepra epidêmica havia reduzido. O tratamento era feito por médicos
inspirados nos princípios galênicos, e consistia em sangrias e purgações. E
tinha por objetivo a reforma do louco, que devia se adaptar aos novos valores
da sociedade dominante.
No final do século XVIII, tendo por base as idéias iluministas emanadas
pela Revolução Francesa cresce o número de denúncias contra as internações
arbitrárias dos ditos loucos, surgindo no cenário social um movimento de
reforma, que propõe tratamento humanizado, conhecido como tratamento
moral. Seus principais representantes foram: Pinel na França, Chiaruggi na
Itália, pelos irmãos (William e Samuel) Tuke na Inglaterra e Todd nos Estados
Unidos.
Entre os principais pensadores deste período, destacamos Philippe Pinel,
(1745-1826) considerado o pai da primeira revolução psiquiátrica, pela iniciativa
em humanizar os asilos - libertou os grilhões que mantinham presos os
doentes, procurou criar métodos de tratamento baseando-se na higiene,
alimentação e qualidades morais dos atendentes. Ele concebia o transtorno
mental como distúrbio do autocontrole e da identidade, que denominou como
alienação e criou ainda uma nosografia das doenças mentais.
Nos Estados Unidos essas idéias foram introduzidas por Benjamin Rush
(1745-1813), considerado o pai da psiquiatria americana, que acreditava ser o
distúrbio mental causado por excesso de sangue no cérebro, e como
decorrência, seu tratamento consistia em retirar grandes quantidades de
sangue, cerca de sete litros, num período de meses. 5
Piccinini nos conta outras opções terapêuticas existentes e utilizadas pelo
tratamento moral:
“água fria pingando na cabeça, de certa altura, como maneira de controlar
episódios maníacos; uso de morfina e derivados para acalmar os doentes
agitados; Estramônio (derivado de planta tóxica medicinal-figueira do inferno) era
prescrito tanto para a epilepsia como para a mania; Extrato de cicuta, usado na
melancolia; Extrato de hisciamus para a excitação; Nux vômica era utilizada como
estimulante; e Banhos com água salgada”. (Piccinini, setembro de 2000, pág. 2-3)
Esse movimento começou a declinar por volta de 1855, quando aumentou
o número de internações e os tratamentos efetuados começaram a fracassar.
As principais críticas a esse movimento, centraram-se na ausência de
embasamento teórico e prático capaz de explicar a etiologia e o tratamento
dado aos transtornos mentais, já que se caracterizavam por experiências
empíricas, que apesar do cunho humanitário de contenção da violência,
promoviam-na de forma velada com ameaças e privações ditas terapêuticas.
4
REZENDE, Heitor: “Política de Saúde Mental no Brasil: uma Visão da História” in COSTA, 1994, pág. 25
5
FACION, J. R.: “História da Psicopatologia” in: FOURNIOL FILHO, 1998, pág. 298.
O desenvolvimento dos asilos ocorre quando em 1547, Henrique VII
entrega o Hospital Santa Maria de Bethlehem à cidade de Londres. E em 1773,
foi fundado nos Estados Unidos o primeiro hospital para doentes mentais, em
Williamsburg, Virgínia.6
Na França, Jean Etienne Esquirol (1772 - 1840) - fixa nas emoções o
cerne da enfermidade mental, tendo como ferramentas terapêuticas a
internação e adequação das emoções. Criou a Lei de Insanidade Mental em
1838, que influenciou outros países.
Franz Anton Mesmer - França/Áustria (1734 - 1815) - formulou a hipótese
de que o organismo humano é dotado de fluido magnético especial, que
quando liberado curaria todas as doenças. Ele foi o precursor da Hipnose -
palavra cunhada mais tarde por James Braid (1795 - 1860), que confirmou a
existência de um transe hipnótico, ou seja, uma alteração no estado mental do
indivíduo com preservação da consciência de realidade, que constituirá mais
tarde, a diferença entre neurose e psicose.
No século XIX a psiquiatria atual começa a ser sedimentada através do
desenvolvimento do positivismo científico. Nesta época surgem os primeiros
métodos biomédicos; os progressos da bacteriologia e da anatomia patológica
levam ao hospital psiquiátrico o microscópio, que questiona as bases pouco
cientificas do tratamento moral.
Inúmeras são as contribuições para a psiquiatria e para a história da
psicopatologia; surgem várias práticas físicas e psicológicas: Hidroterapia,
cadeira giratória de Rush, choque insulínico, drogas convulsivas, camisas de
força, quartos fortes, celas acolchoadas, eletroterapia, psicocirurgia,
psicotrópicos, antidepressivos, tranqüilizantes, antipsicóticos, soníferos,
psicoterapias e outros; transformando o cenário do campo psiquiátrico, que
passa a ser visto num aspecto multifatorial, caracterizadas pelas teorias
neurofisiológicas, bioquímicas, psicodinâmicas e sociológicas, onde podemos
citar a contribuição de vários personagens.
Wilhelm Griesinger - (1817 - 1868) retoma a hipótese somatogênica de
Hipócrates - causa fisiológica para as enfermidades mentais, que será mais
tarde endossada por Valentim Magnan e Benedict Morel / França (século XIX),
e que atribuirão causas hereditárias degenerativas, que se agravariam com as
subseqüentes gerações evoluindo até a extinção. Dando prosseguimento a
essa tendência orgânica, Emil Kraepelin / Alemanha (1883) - criou um critério
de classificação baseado na natureza orgânica das doenças mentais,
composto por um grupo de sintomas - a chamada síndrome, que serviu de
base para as categorias psiquiátricas contemporâneas.
Nas teorias sociológicas podemos citar a contribuição de Krafft Ebing e
Forel / Alemanha (século XIX) - que estudavam a influência dos fatores
insalubres (sexo, álcool, infecções, industrialização e progresso social) como
determinantes dos transtornos mentais.
Na linha psicodinâmica, temos a influência de: Jean Martin Charcot -
médico neurologista que estudou os sintomas da histeria 7 num enfoque

6
Idem.
7
Histeria – do Grego Hysterikos “referente ao útero”. É caracterizada por falta de controle sobre atos e
emoções, ansiedade, sentido mórbido de autoconsciência.
psicológico, utilizando a hipnose como forma de tratamento; Joseph Breuer -
(1842 - 1939) - Tratava pacientes histéricos com o uso da catarse, que
consistia numa liberação das emoções bloqueadas através da sugestão
hipnótica; e Sigmund Freud - (1856 -1939) - que inicia seus estudos tratando
da histeria apoiado nas idéias de Charcot e Breuer. Posteriormente cria o
método da associação livre para uso no tratamento da histeria, abandonando a
hipnose e a catarse. A partir desse momento começa a construir uma teoria (a
psicanálise) que irá abordar os fenômenos mentais do ponto de vista do normal
(estudo das parapraxias8, sonhos, chistes e outros) e do patológico (neuroses e
psicoses endógeno-funcionais). Temos ainda a contribuição de Eugen Bleuler
(1857-1939) criador do termo esquizofrenia 9 - utilizada para denominar
pacientes que apresentavam uma dissociação entre pensamentos e afetos,
classificou-a ainda em vários tipos. E na década de 30/40 tivemos a
contribuição de Jules Masserman no estudo pioneiro das Neuroses induzidas
experimentalmente e a importância de relação mãe-filho, e Leo Kanner, apud
Gauderer (1997), descrevendo pela primeira vez seus onze casos classificados
de autismo.
Já na linha bioquímica, temos as contribuições de Bonhoeffer - (1868 -
1948) - que descreve um determinado grupo de sintomas (desorientação no
tempo e espaço, falsos reconhecimentos, alucinações visuais e auditivas de
caráter onírico, agitação e perplexidade) causados por intoxicação ao uso de
drogas, toxinas produzidas por não eliminação orgânica, traumas mecânicos
cranioencefálicos, que denominou reação exógena. No que se refere à forma
de tratar os transtornos mentais, podemos citar o desenvolvimento de:
- Tratamentos de choque: o insulínico, criado por Sakel em 1933 e o
eletrochoque, criado por Bini em 1938.
- Psicofarmácos - começa a desenvolver-se com a sintetização da
clorpromazina (usado inicialmente em anestesias) por Charpentier, em
1950, e na atualidade é usada como tranqüilizante.
Piccinini nos conta que: “Os anos 50 marcaram o surgimento de novas
drogas e provocaram uma revolução na assistência psiquiátrica. Antabuse,
Lítio, Clorpromazina, Imipramina e os Benzodiazepínicos foram inovações
extraordinárias e abriram uma nova área de estudos, a psicofarmacoterapia”
(Piccinini, outubro de 2000, pág. 4).
Alguns comentários a esse período referem-se a forma de organização
social, no auge do capitalismo, do desenvolvimento tecnológico das grandes
industrias, e da necessidade de mão de obra especializada, onde o trabalho
humano é visto como bem de produção, ferramenta de lucro, o homem vale
pelo que produz. Um contingente populacional à parte começa a crescer - os
não especializados, que constituem a massa de desempregados, imigrantes e
inadaptados sociais, que engrossam a clientela dos asilos e hospitais públicos,
onde são classificados de indigentes, criminosos, alcoólatras, vadios e loucos,
constituindo um ambiente propício para o desenvolvimento do movimento
denominado “eugenia”, que viria referendar as teorias heredobiológicas da
loucura legitimando os processos de exclusão social da pobreza, dos

8
Parapraxias – Refere-se a realização de atos que não convenham à situação.
9
Esquizofrenia – Palavra grega para mente dividida.
imigrantes vagabundos e desordeiros, vítimas não mais das condições de vida,
mas de taras e degenerações individuais.
Asilos superlotados, ausência de terapêuticas eficazes, as idéias de degeneração
tornavam os psiquiatras interessados nas idéias eugênicas. Os eugênicos se
mostravam particularmente interessados nas doenças mentais, embora algumas
fossem conhecidas por nomes diferentes como a "demência precoce" que nós
conhecemos por esquizofrenia e pela Idiotia Mongolóide agora denominada
Síndrome de Down. Mente fraca (feeblemindness) era considerada a doença
mental mais importante pelos eugênicos, junto com baixo QI era conectada a
conduta anormal, promiscuidade, criminalidade e dependência social. (Piccinini,
setembro de 2001, pág.5)
O Movimento eugênico surgiu inicialmente na Inglaterra, foi criado por
Galton (1822-1911), que definiu a eugenia como “o estudo dos agentes sob
controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das
gerações futuras, tanto físicas quanto mentalmente”. Galton acreditava que a
inteligência podia ser herdada e que o ambiente não tinha influencia sobre a
mesma.
A eugenia tinha como arcabouço teórico os estudos de Morel, Magnan,
Cesare Lombroso (que estudava características degenerativas em criminosos) , Kraft
Ebing e Forel. Este movimento dominou na América do Norte durante o período
de 1908-1925, despertou o interesse de cientistas, reformadores sociais,
educadores, políticos e industriais no mundo inteiro, tanto, que surgiram
sociedades eugênicas em vários países europeus (Alemanha, França,
Dinamarca, Tchecoslováquia, Hungria, Áustria, Bélgica, Suíça e União
Soviética, dentre outros) e americanos (Estados Unidos, Brasil, Argentina,
Peru). No geral tinham propostas políticas de higiene e profilaxia social,
acreditavam que os caracteres degenerativos seriam adquiridos
hereditariamente, logo não achavam pertinente o casamento de indivíduos
portadores de doenças tidas como hereditárias, propondo inclusive que se
eliminasse o portador de problemas físico ou mental incapacitantes,
propunham também leis de controle da imigração, pois acreditavam que o
estrangeiro poderia trazer doenças hereditárias e espalha-las na população. Os
tratamentos eugênicos consistiam na realização de Teste de QI, segregação
institucional, esterilização involuntária, controle da imigração e outros.
A influencia eugênica consubstanciou-se em leis em alguns países;
Piccinini nos conta que:
“Nos EUA, 30 estados tinham leis de esterilização eugênicas e calcula-se que
tenham sido realizadas cerca de 15 mil esterilizações cirúrgicas. (No tribunal de
Nüremberg, os advogados de médicos nazistas utilizaram estas estatísticas na sua
linha de defesa)”.(Piccinini, setembro de 2001, pág.2)
O movimento da eugenia foi esvaziando-se aos poucos até acabar.
Alguns psiquiatras do movimento, após perceber o verdadeiro sentido - que
não era científico, mas preconceituoso - abandonaram a causa. No entanto,
cabe frizar que foi na Alemanha Nazista que o eugenismo adquiriu as maiores
deturpações, sendo usado para legitimar mortes e crueldades em nome de
uma dita supremacia racial.
Passado esse tempo, houve um retorno às teorias científicas. Além disso,
boa parte dos psiquiatras ex-eugênicos passou a se interessar pela idéias de
higiene mental, que mais tarde deu origem ao movimento de saúde mental. As
idéias derivam do livro escrito por Clifford Beers, em 1908, nos EUA,
denominado “A Mind that Found itself” - “um espírito que encontrou a si
mesmo” - que consistia em relatos autobiográficos de sua experiência de
internamento em asilo psiquiátrico pelo período de três anos. Esta publicação
provocou modificações no atendimento hospitalar, levando Beers e outros
simpatizantes, em 1909, a fundar um Comitê Nacional de Higiene Mental nos
EUA, que levou a criação de movimentos de “higiene mental”, na América do
Norte e no mundo, cuja ação tinha como objetivo o tratamento das doenças
mentais e a profilaxia, com a realização de campanhas educativas junto a
médicos, professores e leigos.
Numa crítica aos movimentos existentes, começa a desenvolver-se a
partir da década de 70, movimentos alternativos em psiquiatria, que se
caracterizavam por procurar efetuar mudanças no sistema psiquiátrico e por
promover reformas nas bases. Citaremos a seguir alguns principais
movimentos ocorridos.
O condutivismo tem como representante, dentre outros, Pavlov, com o
estudo dos reflexos condicionados e dos processos de condicionamento
advindos de descobertas da neurofisiologia. O tratamento sob esse princípio
tinha por objetivo controlar melhor o comportamento dos pacientes internados
em hospitais psiquiátricos. Já outras instituições psiquiátricas, fundamentavam
seus trabalhos em práticas integracionistas e sociais, onde os pacientes eram
atendidos por equipes multidisciplinares e podendo participar emitindo opiniões
sobre seu tratamento e processo de cura.
Em oposição aos movimentos anteriores, surge na França um movimento
que tinha por objetivo evitar a hospitalização. Este movimento chamava-se
“psiquiatria de setor” - e consistia na divisão das regiões francesas em setores,
cada setor com equipes próprias que trabalhavam diretamente com a
comunidade sem uma estrutura hospitalar; atendiam em lares, clubes e outros
lugares, procuravam estabelecer vínculos terapêuticos, propiciando ao paciente
acompanhamento ambulatorial com o mesmo médico. Apesar da inovação
esse movimento não foi muito adiante, pois acabou se transformando numa
psiquiatria assistencial de consumo de remédios e vulgarização do uso do
aconselhamento psicoterápico.
Nos anos de 1961 a 1963, nos EUA, constituiu-se uma comissão conjunta
sobre a doença e a saúde mental - objetivando ação para a saúde mental, que
recomendava a desinstitucionalização psiquiátrica para clínicas de saúde
mental comunitárias. Em 1963 a desinstitucionalização ocorreu com a
aprovação do Ato de criação dos Centros Comunitários de Saúde Mental.
Porém a iniciativa do governo não logrou êxito, pois ao invés de promover a
prevenção de transtornos mentais na sociedade, acabou estimulando o
consumo de drogas e de serviços, “psiquiatrizando” a sociedade. Esse
movimento ficou conhecido como “psiquiatria comunitária”.
Na Inglaterra, em 1962, tendo por base as teorias existencialistas, Laing,
Cooper e Esterson, iniciam um movimento chamado “antipsiquiatria”, onde, a
partir de questionamentos do modelo médico hospitalar vigente desenvolveram
a teoria de que loucura não é doença, é uma passagem, uma metanóia 10,
gerada pela família e pela sociedade, que precisa ser expressa pelo paciente,
10
Metanóia – Transformação fundamental de pensamento ou de caráter.
longe da família, numa viagem interior onde poderia reconhecer seu “eu”
reprimido e aprenderia novo meio de reagir frente a si e aos outros,
necessitando-se para isso, de um local propício para sua realização. Logo,
surgem as “comunidades terapêuticas” inseridas no macro-hospital, a primeira
delas chamava-se “pavilhão 21”, depois surgiram o “Kingsley Hall” e a
“Comunidade Popular Peña Carlos Gardel”, que tinham por objetivo deixar o
paciente à vontade para decidir sobre seu tratamento, a hora que devia
acordar, cuidar de si e das coisas que decidisse fazer. Esse projeto durou
cerca de oito anos, aos fins dos quais, mostrou-se não administrável.
Um dos movimentos que conseguiu repercussão mundial surgiu na Itália,
a partir de experiências desenvolvidas num hospital psiquiátrico na cidade de
Gorízia, onde, através de uma “Psiquiatria Democrática” desenvolvida no
interior do hospital, dirigido por Franco Basaglia, tentou-se o modelo de
comunidade terapêutica com grupos de discussão, que acabaram por
promover uma maior liberdade aos internos, diminuindo-se a quantidade de
remédios receitados, flexibilizando-se horários e tornando a visitação livre.
Além de abolir instrumentos de contenção, começaram a preparar os pacientes
para viverem fora do hospício, e para tornar tal processo viável, construíram
centros de higiene mental que visavam à reintegração na vida social. Com isso,
o hospital psiquiátrico começou a esvaziar-se e não foram aceitas novas
internações, e os pacientes, mesmo em “crises agudas”, eram atendidos em
regime de internação em domicílio, ou no centro de higiene mental. Esse
movimento de “desinstitucionalização”, como ficou conhecido, foi levado em
1978 ao parlamento italiano que aprovou uma nova lei psiquiátrica, a lei nº 180
- que considera o manicômio uma instituição não terapêutica e prevê o
tratamento psiquiátrico no meio social. Hoje, a Itália revê este movimento,
considerando as grandes dificuldades de operacionalização desta idéia,
principalmente para pacientes com grau de acometimento mais grave.
Todos esses movimentos alternativos em psiquiatria foram de suma
importância para a desconstrução de uma visão pré-concebida e
preconceituosa sobre os transtornos mentais, pois possibilitaram a sociedade
refletir sobre as formas de organização do sistema psiquiátrico e sobre a forma
como lida com seus ditos loucos.

1.3 Evolução da Psicopatologia no Brasil

Não há como negar a influência que os movimentos históricos e culturais


exerceram na história da psicopatologia mundialmente onde - guardadas as
devidas proporções como: cultura, forma de colonização e organização social -
aprendemos por conceitos míticos, preconceitos religiosos e experimentações
empíricas e científicas das mais diversas formas de compreender estes
fenômenos.
As práticas e saberes advindos, influenciaram na sociedade brasileira
com matizes e características próprias.
Historicamente, não há relatos escritos de como eram identificados e
tratados os ditos “loucos” no território brasileiro antes de sua colonização pelos
portugueses. Entretanto, levando-se em conta o caráter universal da loucura,
podemos dizer que a mesma também fazia parte do contexto brasileiro.
A literatura de Guimarães Rosa, “Crônicas da vida dos sertões de Minas Gerais,
relata casos de indivíduos que, esquisitões e ensimesmados, recolhiam-se por
dias, semanas ou anos aos retiros (locais remotos das propriedades) ou
navegavam sem rumo pelos rios, até que se sentissem novamente em condições
de retornar ao convívio da comunidade. Esta, apesar de muitas vezes reconhecer
nestas atitudes “coisa de maluco” ou “doideira”, não julgava necessário intervir e
via esses comportamentos muito mais como um aspecto de singularidade dessas
pessoas do que propriamente evidência de patologia ”. (Rezende in Costa; 1994
pág. 31).
Neste período, esses indivíduos não eram vistos como seres
ameaçadores; eles podiam vagar pelo território espontaneamente, sem serem
incomodados.
No Brasil colônia a situação irá modificar-se ligeiramente. A organização
da sociedade era constituída de uma minoria de senhores e proprietários (que
detinham o poder econômico e político), uma multidão de escravos (que
realizava todas as atividades laborais da colônia) e uma população diversa que
cresce diariamente, de inadaptados, indivíduos sem trabalho definido ou sem
trabalho.
Nesta fase, o conceito de trabalho possui características muito
particulares, a primeira delas se baseia no trabalho, visto como ocupação para
escravos, ocupação medíocre e indigna de homens livres e senhores da corte.
Constitui uma visão preconceituosa, que determinará uma outra característica.
Se o trabalho escravo constituía a base da economia da colônia, o que restava
para os demais? Ludicamente diríamos: “curtiam a vida”. Como? Se nem todos
eram da corte ou proprietários de engenho.
Dessa forma, sendo o trabalho uma ocupação indigna, poucos se
arriscavam a serem empregados, alguns viveram na vadiagem, alimentando-se
dos produtos da natureza, de doações e de roubos; outros se tornaram
soldados dos senhores de engenho.
A figura do “louco” aparece nesse cenário junto aos vadios e desordeiros,
diferenciando-se dos demais, “pelos seus grotescos andrajos, seu
comportamento inconveniente e pela violência com que, às vezes, reagem aos
gracejos e provocações dos passantes” (Rezende in Costa; 1994: pág. 35).
Diante dessa configuração social, restava como alternativa, remover, do
convívio social e trancafiá-los em Hospitais Gerais das Santas Casas de
Misericórdia e prisões, sempre que constituíssem ameaça a ordem local. Nas
Santas Casas não havia um tratamento específico para os loucos; consistia na
verdade, em depósitos de todas as minorias sociais, como órfãos, alcoólatras e
vadios.
Durante 40 anos a administração das Santas Casas foi feita por
religiosos, que decidiam sobre a internação e tratamento. Não havia médicos
suficientes e a incidência de mortalidade era alta. Ocorriam na maioria das
vezes por agressões, péssimas condições de higiene e desnutrição.
A partir de 1830, um grupo de médicos, conhecidos como médicos
higienistas (José Martins da Cruz Jobim, Joaquim Cândido Soares de
Meirelles, Luiz Vicente de Simoni, Jean -Maurice Faivre e Francisco Xavier
Sigaud) mobilizaram a opinião pública em seus artigos, criticando a forma
como eram tratados os loucos nos hospitais gerais - “ os loucos eram
abandonados a si mesmo e perambulavam pela cidade” – propondo, como
forma de amenizar estes problemas, a criação de um hospício de alienados
que utilizará os princípios emanados pela ideais humanistas de Pinel. Estes
autores são considerados os fundadores da psiquiatria na Brasil.
Em 1841, o imperador Dom Pedro II assina o Decreto de Fundação do
primeiro Hospício Psiquiátrico Brasileiro - o Hospício Dom Pedro II, no Rio de
Janeiro - que só foi inaugurado em 1852, com a direção de religiosos das
Santas Casas. Somente em 1881, um médico assume a direção do hospício,
Nuno de Andrade.
A primeira Lei Federal de Assistência aos alienados surgiu em 1903 e,
somente em 1912, a psiquiatria torna-se especialidade médica autônoma.
A partir de 1920 ocorre o aumento no número de estabelecimentos
destinados aos “doentes mentais”. Daí surgem hospitais colônias no Rio de
Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Pará e Bahia. Com relação à clientela podia-
se encontrar de tudo: mendigos, órfãos, vadios, pobres, imigrantes e outros,
que em pouco tempo abarrotavam os hospitais. As denúncias de maus-tratos,
de falta de assistência medica e alta mortalidade continuaram presentes.
Sobre a classificação Rezende descreve:
“Os alienados eram classificados e dispostos nos diversos setores e enfermarias
segundo critérios classificatórios essencialmente leigos; alienados comuns,
perigosos, criminosos, condenados, etc”.(Rezende, in Costa, 1994, pág. 40)
O desenvolvimento da psiquiatria científica brasileira começa quando
Juliano Moreira, em 1903, assume a direção do Hospício Nacional no Rio de
Janeiro. Sua contribuição para a psiquiatria foi imensa, escrevendo em
diversas áreas: dermatologia, infectologia, neuropsiquiatria, modelos
assistenciais, legislação para alienados, nosografia psiquiátrica e outras.
Moreira acreditava que a função da psiquiatria deveria ser a profilaxia, a
promoção da higiene mental e da eugenia, não a eugenia racista, mas uma
eugenia sanitarista. Suas idéias e práticas tinham por base a teoria da
degenerescência de Magnan e o alienalismo científico de Kraepelin. No
entanto, diferentemente da grande maioria dos psiquiatras de seu tempo,
Moreira não atribuía a miscigenação da raça à degeneração do povo brasileiro
e nem ao clima tropical o surgimento das doenças mentais - atribuía sim, às
causas sanitárias e educativas como agravantes dos problemas sociais:
alcoolismo, sífilis, verminoses e outros.
Em 1923, ocorre a Fundação da Liga Brasileira de Higiene Mental -
LBHM, pelo psiquiatra Gustavo Riedel, e que tinha como objetivo melhorar o
atendimento prestado aos doentes mentais, investindo em hospitais e
profissionais. A liga era composta por psiquiatras do Brasil inteiro.
A partir do ano de 1926 os objetivos da liga Brasileira de Higiene Mental
começam a alterar-se e passam a visar a prevenção, a eugenia e a educação
dos indivíduos.
O conceito de prevenção em psiquiatria modifica-se e expande-se dos
serviços psiquiátricos para a comunidade, apoiando-se numa proposta de
medicina orgânica preventiva (que trata o corpo antes que adoeça). Dessa
forma, observa-se que “a ação terapêutica deveria exercer-se no período pré-
patogênico, antes do aparecimento dos sinais clínicos”.( Costa, 1981; pág. 28)
As principais implicações dessas mudanças refletem-se na clientela e no
objetivo clínico: Abandona-se o estudo do individuo doente para enfocar o
individuo normal, deixando-se de perseguir a cura, para prevenir a ocorrência
de transtornos mentais.
O campo de atuação dos psiquiatras aumenta consideravelmente; estão
na família, na escola, no trabalho e na sociedade e começam a determinar
padrões, normas e culturas.
Esse movimento justificava sua prática nos progressos da eugenia, que
despontava no ambiente cultural e intelectual da época, advindos da psiquiatria
alemã de Kraepelin (organicidade das doenças mentais) e de seu discípulo
Rudin, que em 1931, apregoava as idéias eugênicas afirmando que “a hygiene
mental, em sua aplicação prática, não deve exercer-se somente no terreno da
psychiatria, senão em todos os domínios da vida social”. (Rudin, in Costa,
1981; pág. 40).
Politicamente o Brasil vivia sob os auspícios da república que, apesar de
defender ideais democráticos, consistia numa pequena oligarquia que se
sustentava na exploração de grupos minoritários e que não paravam de
crescer; constituía-se a clientela de ex-escravos, imigrantes europeus,
migração de camponeses e escravos para as cidades.
O crescimento acelerado das minorias desfavorecidas e a ausência de
um planejamento social, com condições de trabalho, educação e habitação
para todos, geravam constantes tensões sociais e crises econômicas que
afetavam a todos e que ameaçavam principalmente, as minorias oligárquicas
dominantes, que justificam as dificuldades no “clima tropical e na constituição
étnica do povo brasileiro”. (Costa, 1981, pág. 31).
A estrutura dos programas eugênicos de psiquiatria criticava a política
republicana em seus princípios liberais, pregavam um valor de moralidade
muito particular, que fixava o cerne das “doenças mentais” em vícios, taras e
degenerações da raça.
Para exemplificar, retiramos um trecho constante nos archivos brasileiros
de hygiene.
Sobre a extinção de indivíduos considerados “incapazes, e de raças
inferiores”:
“Evidencia-se por toda parte a preocupação dos governos de encontrar solução
para abrigar e alimentar a elevadíssima percentagem de incapazes, de mendigos,
de criminosos, de anormais de todo gênero, que dificultam e oneram,
pesadamente, a parte sã e produtiva da sociedade. Para agravar, ainda mais, a
calamitosa situação, a hygiene social de um lado, a medicina e a philantropia de
outro, salvam a vida de milhões destes infra-homens (que a seleção natural devia
eliminar), aumentando, assim, o peso morto e as contribuições para conservá-los
na inatividade ou reclusos nos estabelecimentos adequados”.(Kehl, in Costa, 1981,
pág. 40).
Algumas considerações são pertinentes a esse período, apesar do
movimento de higiene mental e de eugenia ocorrerem quase simultaneamente
no Brasil dos anos 20/30, nem todos os higienistas partilhavam das idéias
eugênicas e nem todas as idéias eugênicas aceitas pelos psiquiatras
brasileiros tinham o caráter racista.
Somente a partir de 1955 é que os psicofármacos adentram os hospitais
psiquiátricos brasileiros.
Nos anos de 1964 a 1987, o povo brasileiro vivia sob os auspícios da
ditadura militar, que para manter-se no poder exercia os atos mais vis, retirava
todas as formas democráticas de expressão individual e coletiva, prendia e
seqüestrava quem ameaçassem a ordem. Apesar disso, tivemos o
desenvolvimento de cursos de formação regular de psiquiatras e de residências
em psiquiatria. O atendimento prestado na época tinha por base a psicanálise,
a psiquiatria dinâmica e a comunidade terapêutica. Em 1966 nasce a
Associação Brasileira de Psiquiatria.
O número de internos não parou de crescer, e para dar conta dessa
demanda, aumentam-se o número de instituições psiquiátricas privadas e os
convênios com a previdência, que custeava o atendimento dos que não podiam
pagar. Foi nesse período que mais se internou pessoas, alargou-se o tempo de
internação e conseqüentemente iniciando-se um processo de cronificação dos
doentes e de estagnação do serviço psiquiátrico. Os hospitais psiquiátricos e
os ambulatórios de psiquiatria vivenciavam o ciclo repetido de internações
sucessivas e de prescrições demasiadas de medicamentos.
Apesar de nesse período o Brasil já possuir uma política oficial de saúde
mental de caráter preventivo, que previa uma rede assistencial integrada e com
múltiplos recursos, esta política não funcionava na prática.
A partir de 1979, com a anistia política, inicia-se um processo de abertura
político-social na sociedade brasileira, ressurgindo diversos grupos de lutas
(associações de bairros, de favelas, sindicatos, conselhos profissionais,
partidos e outros) que visavam a reforma e reorganização do sistema social
brasileiro, tornando-o mais democrático. Somente após as denúncias contra a
violência e o abandono praticadas aos pacientes internados em instituições
psiquiátricas alcançarem a imprensa, é que o Ministério da Saúde resolve
contratar técnicos para as unidades psiquiátricas.
O ambiente é propicio para o inicio do processo chamado Reforma
psiquiátrica, que consistia numa série de movimentos diferentes que ocorriam
em várias regiões brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e
outros) de articulação e combate ao sistema hospitalar psiquiátrico existente.
Como conseqüência neste mesmo período surgiram cursos de extensão e
especialização para profissionais em diversas áreas, que visavam preparar
recursos humanos para enfrentar a realidade asilar. Surgem também estudos
sobre especificidades da clientela e da demanda psiquiátrica, que levam a uma
necessidade de reestruturação da assistência psiquiátrica.
O processo de Reforma Psiquiátrica começa a tomar corpo a partir de
ações ocorridas no ano de 1989: um dos acontecimentos foi a intervenção da
Prefeitura de Santos na Casa de Saúde Anchieta - entidade privada e
representante perfeita do modelo asilar (com celas, enfermarias superlotadas e
trancadas; mortalidade de pacientes, inexistência de programas terapêuticos)
onde começa a efetuar todo um processo de desconstrução da cultura asilar,
quebrando com o regime de clausura e abandono dos pacientes. Criando em
substituição uma rede de serviços de acompanhamento ao paciente - os
Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) - e atuando em conjunto com a
opinião pública.
Neste mesmo ano, começa a tramitar no Congresso Nacional o Projeto de
Lei nº 3.657/89 do Deputado Paulo Delgado (PT/MG) - que “Dispõe sobre a
extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos
assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória” - que após
inúmeras modificações e de tramitar pelo Congresso por mais dez anos, foi
finalmente assinada no dia 13 de Abril de 2001, pelo Presidente da República
Fernando Henrique Cardoso, a Lei nº 10.216/2001 que “Dispõe sobre a
proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo da assistência em saúde mental”.
Até o presente momento tivemos a preocupação de situar acontecimentos
históricos e científicos que viabilizaram a conquistas de espaços para o dito
“louco” na sociedade, e verificamos que essa história é cheia de altos e baixos,
de grandes conquistas e exclusões diversas. Onde há muito que fazer.

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