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Wolfdietrich Schmied-Kowarzik

A relação dialética do homem com a natureza


Estudos histórico-filosóficos sobre o problema da natureza em Karl Marx

Tradução: Rosalvo Schütz

Cascavel
2019
7

Sumário

09 Prefácio à edição brasileira


17 Preâmbulo
25 I. As determinações da natureza em Kant
37 II. A filosofia da natureza de Schelling
47 III. A relação consciente do homem com a natureza
57 IV. A dialética de homem e natureza no jovem Marx
77 V. A problemática da natureza na Crítica da economia política
95 VI. O problema da natureza no marxismo da filosofia da práxis – uma
perspectiva
105 Referências
113 Sobre o autor e o tradutor
9

Prefácio à edição brasileira

Quando, em 1984, o livro A relação dialética do homem com a natureza:


estudos histórico-filosóficos sobre o problema da natureza em Karl Marx foi publica-
do pela primeira vez na Alemanha, pela editora Karl Alber, a Guerra Fria ainda
dominava as relações entre os Estados industriais do Atlântico Norte, liderados
pelos EUA, e os Estados do socialismo realmente existente, dominados pela União
Soviética. Os dois blocos apostavam tudo para sobrepujar um ao outro não apenas
em termos de técnica armamentista, mas, de modo geral, no progresso técnico-
científico como um todo. Os perigos, tanto para os seres humanos quanto para o
meio ambiente, revelados por acidentes com indústrias e reatores ocorridos tanto
no Leste quanto no Ocidente, eram minimizados em sua própria área de influência
como falhas técnicas ou humanas, as quais poderiam ser dominadas com uma téc-
nica mais apropriada e uma disciplina mais rigorosa. Por isso, eram atribuídos um
ao outro como erros fundamentais do sistema, que poderiam ser remetidos tanto
à ânsia pelo lucro do capitalismo privado como, por outro lado, à incompetência
da economia socialista planificada.
Uma reflexão filosófica fundamental sobre a relação do homem com a
natureza não aconteceu nem aqui, nem lá; mesmo lá, onde brotaram possibili-
dades de fazê-la, ela foi marginalizada ou mesmo amordaçada. Aquilo que estava
então acontecendo na competição industrial entre o capitalismo ocidental e o
socialismo realmente existente, com altíssimos custos para a natureza como nos-
so fundamento de vida e que hoje, sob a regência única do capitalismo global,
vê-se reforçado, carrega estruturalmente em si uma crescente contradição entre
homem e natureza, entre uma produção determinada pelo valor e os processos
de regeneração ecológica. Os acidentes e catástrofes não são panes de fracasso ou
planejamento, mas enraízam-se estruturalmente na forma determinada pelo valor
de nossas relações teóricas e práticas com a natureza; tais panes precisariam de um
fundamental esclarecimento crítico e de uma superação.
Havia, naturalmente, vozes de advertência que, já cedo, apontavam para
a ameaça fundamental que nossa relação atual com a natureza significa para nós
10

mesmos. Foi assim que, em seu livro Tempo final e final dos tempos, Günther Anders
(1972) apresentou-nos, de forma enfática, a problemática em que nos encontramos:
Com o dia 06 de agosto de 1945, o dia de Hiroshima, iniciou-se
uma nova era: a era na qual nós, a cada momento e em qualquer
lugar, podemos transformar até mesmo nossa terra inteira numa
Hiroshima [...] Não importa quanto tempo, ou mesmo se for para
sempre, esta era é a última: Pois [...] a possibilidade de nosso au-
toextermínio não pode chegar ao fim – a não ser pelo próprio fim
[...] Nossa existência define-se, com isso, enquanto “prazo” [...].
Com esse fato, modificou-se a questão moral básica [...]. ‘Temos
de nos precaver para que o tempo final seja sem fim, embora ele,
a cada momento, possa virar fim dos tempos; portanto, para que a
reversão nunca ocorra’ (ANDERS, 1972, p. 93).

Essa possibilidade de autoextermínio dos seres humanos nunca mais poderá


ser erradicada da história humana. E é por isso que Edward P. Thompson (1981)
fala desse tempo final como sendo o tempo do extermínio (exterminalism). Pode-
mos apenas tentar trabalhar nisso pedagógica e politicamente, a fim de aprender
a sobreviver eticamente a esse tempo final.
Embora nos encontremos há poucas décadas nesse tempo final, ele progri-
de numa velocidade inacreditável. Hoje, já sabemos que não são apenas as armas
de extermínio atômicas, químicas e biológicas que, se aplicadas, podem causar o
fim catastrófico da história humana; mas, já pela simples continuidade e mesmo
expansão do processo industrial orientado pelo valor, acontece tanto uma cres-
cente exaustão de nossas próprias condições de vida quanto um envenenamento
crescente de toda biosfera. Esse processo, embora aconteça de modo muito mais
disfarçado, mesmo assim, inevitavelmente, há de levar-nos a um fim apocalíptico
da humanidade. O aquecimento da atmosfera, o derretimento das calotas polares, o
buraco crescente de ozônio, a derrubada das florestas tropicais e a inundação de lixo
nos mares são processos naturais causados pelos homens, os quais, caso não sejam
interrompidos em seu modo de crescimento exponencial ainda em nossa geração,
irão piorar de modo irreversível a vida humana na Terra e a tornarão, no longo
prazo, praticamente impossível. Os acidentes industriais de Majak/URSS (1957),
Seveso/Itália (1976) Harrisburg/USA (1979), Bhopal/Índia (1984), Chernobyl/
URSS (1986), Chuandongbei/China (2003), Fukushima/Japão (2011), são as
letras inconfundíveis dos sinais de alerta oriundos das paredes de nossos palácios
11

industriais. É difícil, no entanto, para os responsáveis na política, economia e ciência


sequer perceberem esses sinais, para não falar de interpretá-los adequadamente.
Frente a esse novo e mesmo último desafio para a história humana atual-
mente, é uma zombaria, um obscurecimento ideológico consciente, quando Francis
Fukuyama (1992), em contraposição a Marx e com recurso equivocado a Hegel1
– ou, mais exatamente, recorrendo à interpretação idiossincrática que Alexandre
Kojève (1975) faz de Hegel de modo a modificá-la –, declara a democracia liberal
e a economia de mercado como o fim da história; ou seja, comemorando-as como
a completude da história, na qual todas as contradições políticas e econômicas se-
riam definitivamente superadas. Não é, porém, Fukuyama que nos interessa, pois
sua propaganda ideológica serve, de modo por demais óbvio, para nos desviar dos
problemas e das crises do capitalismo realmente existente. Ora, para podermos
lidar com o verdadeiramente ameaçador fim da história humana, que está inevi-
tavelmente vindo em nossa direção, precisamos repensar criticamente a relação
dialética do homem com a natureza, tematizando, em seus traços mais basilares, a
alienação da culpa autoimputada do homem (Kant), tal como aborda Karl Marx
em meados do século 19. É neles que encontramos implícito um esclarecimento
radical de nossa situação, tornada hoje ainda mais dramática.
Referir o nome de Karl Marx fará, por certo, alguns balançarem a cabeça
desconfiados ou mesmo interromperem irritados a comunicação, pois, tanto no
marxismo dogmático quanto entre seus oponentes, Marx é tido como aquele
que afirma de modo ilimitado o progresso técnico-científico, sem avançar no
conhecimento da natureza como fundamento vivo. Bem, surpreendentemente,
verifica-se nele o contrário, quando se lê sem preconceitos seus textos desde a
fase juvenil até as obras tardias. Quase nenhum outro pensador daquele tempo
– excluindo-se, por um lado, a filosofia da natureza de Friedrich W. J. Schelling
(SCHMIED-KOWARZIK, 1996), e, por outro, o materialismo antropológico de
Ludwig Feuerbach – ocupou-se de modo tão fundamental com o enraizamento do
homem na natureza e sua possibilidade de interferir nela para poder modificá-la,
antecipando, inclusive, os perigos que podem advir dessa dupla relação, a não ser
o próprio Marx (SCHMIED-KOWARZIK, 2018a).
1
Compare-se com Hegel (1979a, p. 511-512; 1979b, p. 524 e seguintes).
12

Por que esse aspecto do pensamento de Marx permaneceu despercebido


e irrefletido por tanto tempo? Um dos motivos é que, correspondendo ao espí-
rito geral do tempo, todas as direções de pensamento dos últimos duzentos anos
relegaram a investigação da natureza apenas às ciências naturais matematizadas,
com cujos conhecimentos puderam ser produzidos todos os inacreditáveis avanços
tecnológicos que facilitam nossa vida. Simultaneamente, parece que se tornou
desnecessário um pensamento filosófico próprio sobre a natureza em sua produ-
tividade essencial própria, à qual nós mesmos pertencemos como seres naturais.
Isso marca tanto a direção da escola do neokantismo, que foi a tendência filosófica
mais diferenciada do final do século XIX até meados do século XX, na Europa,
quanto o marxismo, que, com suas tendências diversificadas, surgiu nessa época.
A isso, deve-se acrescentar, que, com a Revolução Russa, tornou-se do-
minante justamente aquela corrente marxista que entendeu a si mesma mais for-
temente como materialismo produtivista, para o qual – no sentido pleno do lema
político de Wladimir I. Lenin: “Comunismo é poder soviético, mais a eletrificação
de todo o país” – o progresso social e o técnico-científico andam necessariamente
juntos. Assim, não é de se admirar que, a partir desse marxismo dogmático, qualquer
precaução ecológica podia ser vista apenas como estratégia de obstrução do pro-
gresso social, e que todos os pensadores que tentassem insinuar uma interpretação
ecológica de Marx fossem perseguidos sem trégua como inimigos.
Essa exegese dogmática de Marx marcou, por fim, também a direção da
teoria crítica na Europa ocidental, a qual tinha, ela mesma, brotado originalmente
de uma recepção filosófica de Marx. Assim, por exemplo, Alfred Schmidt, em sua
tese O conceito de natureza na teoria de Marx (1971), diferencia-se com razão da
ontologização da dialética materialista, que se havia tornado dominante no debate
marxista orientado pela Dialética da natureza de Friedrich Engels, descambando,
porém, ele mesmo, numa intepretação acrítica, por pressupor que, em Marx, não
haveria “nenhuma diferença metodológica fundamental entre ciências naturais e a
ciência histórica” (SCHMIDT, 1971, p. 43). É por isso que, para ele, a exigência
de Marx de que o homem deveria entregar a natureza “melhorada às gerações fu-
turas” não deveria ser tomada como crítica à destruição da natureza pela economia
capitalista, mas como convite para ainda maior dominação da natureza por meios
13

técnicos natural-científicos, com consequências imprevisíveis para o mundo da vida


humana. Além disso, Schmidt acusa Marx de ter afirmado: “No futuro, a explo-
ração da natureza não deve cessar, mas, nela, as intervenções humanas devem ser
tão racionalizadas a ponto de que mesmo seus efeitos mais distantes permaneçam
controláveis” (SCHMIDT, 1971, p. 159). Em contraposição a isso, Schmidt lança
a pergunta que adverte: “se a sociedade futura não se transformará numa gigantesca
maquinaria, como os homens poderão futuramente evitar a trapaça e o enganar
astuto da natureza enquanto aquilo que Hegel e Marx descrevem como processo
útil do trabalho?” (SCHMIDT, 1971, p. 161).
Quase na mesma direção, argumenta Jürgen Habermas em Conhecimento
e interesse (1968), supondo que Marx, de modo ainda mais radical, teria chegado
a um “semipositivismo” ao pôr a história social emancipatória do homem sob a
dominância da racionalidade técnico-científica do desenvolvimento da força pro-
dutiva. Marx estaria, com isso, misturando duas dimensões, a da produção e a da
reprodução social, a serem rigidamente diferenciadas em termos antropológicos:
aquela do “trabalho” como disputa de racionalidade utilitarista com a natureza, e
a do “agir comunicativo” como base da práxis social. “Para a análise do desenvol-
vimento das formações econômicas da sociedade, Marx remete a um conceito de
sistema de trabalho social que contém mais elementos do que aqueles declarados
na concepção do gênero autopoiético” (HABERMAS, 1982 [1968]2, p. 68)3. A
partir daí, Habermas (2011 [1968]) descarta todas aquelas linhas de pensamento
– de Schelling, passando por Marx até Bloch e Marcuse, assim como as esperanças
mais secretas de Benjamin, Horkheimer e Adorno – que tentam pensar a relação
homem/natureza de modo outro que aquele das categorias orientadas pelos fins
de racionalidade utilitarista das ciências e técnica modernas.
Assim como não é inadequada a ideia de uma nova técnica, pode-se
tampouco pensar de um modo consequente a ideia de uma nova
ciência, já que, de modo outro, no nosso contexto, ciência deve
significar sempre a ciência moderna, uma ciência comprometida

2
As obras são aqui referenciadas em conformidade com a edição portuguesa ou brasileira, quando esta existir,
acompanhadas da data, entre colchetes, da edição da obra utilizada na versão original. Quando não houver
edição em língua portuguesa, as citações são traduzidas diretamente, mantendo-se a referência da obra original
citada. [N.T.]
3
Veja-se também Habermas (1983 [1976]).
14

com a produção da possível disponibilidade técnica: tal como para


a sua função, assim também para o progresso técnico-científico
em geral, não existe substituto algum que fosse ‘mais humano’
(HABERMAS, 2011 [1968], p. 53).

Exposto aqui de modo breve, esse foi o estado da discussão no qual tentou
intervir meu livro A relação dialética do homem com a natureza, de 1984. Nele, bus-
quei, em termos histórico-filosóficos, liberar a problemática da relação do homem
com a natureza do preconceito de que a natureza pode ser tematizada apenas pelas
ciências naturais. Para tanto, recorri à dupla tematização da natureza em Kant, à
filosofia da natureza e da liberdade em Schelling, e à controvérsia entre os amigos
de juventude, Hegel e Schelling. Apenas a partir desse pano de fundo – mediado
por Friedrich D. E. Schleiermacher (1981) e Ludwig Feuerbach (1975) – torna-se
compreensível a dupla dialética entre homem e natureza, tal como Marx a desen-
volveu basicamente nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e continuou a
perseguir em toda sua obra.
De fato, o livro A relação dialética do homem com a natureza desencadeou
um debate científico, que foi inicialmente travado na disputa científica entre mim
e Hans Immler (1989), economista comprometido com a ecologia. O debate
foi documentado e editado por nós, em conjunto, no livro Marx e a questão da
natureza (1984/2011), e ampliado posteriormente, em 1986, em congresso onde
o tema foi ainda mais amplamente desenvolvido. O livro A relação dialética do
homem com a natureza foi também publicado em uma tradução para o coreano
(SCHMIED-KOWARZIK, 1994), e partes dele foram traduzidas para o italiano,
croata e francês4. Em duas séries de palestras pelo Brasil, em 1990 e 1999, pude
apresentar algumas teses fundamentais da obra, experimentando ressonância muito
positiva (SCHMIED-KOWARZIK, 2002).
No entanto, visto em geral, meu livro de 1984 veio tarde demais para a
discussão sobre Marx e cedo demais para o debate ecológico ainda incipiente. A
discussão sobre Marx, que havia eclodido em decorrência do movimento estudantil
nos anos 70, tinha também alcançado a filosofia. Por um lado, apareceram nova-
mente, nos seminários filosóficos, livros reeditados e novos de Georg Lukács, Ernst

4
Vejam-se Schmied-Kowarzik (1985; 1988; 2011).
15

Bloch, Herbert Marcuse, Theodor W. Adorno e Alfred Sohn-Rethel. Já em meados


dos anos 80, porém, essa euforia pela teoria crítica viu-se reprimida pela nova onda
da moda do pós-modernismo francês. Por outro lado, fortaleceu-se igualmente,
nos anos 80, o movimento verde de protesto contra os armamentos atômicos e a
contínua destruição do meio ambiente, sem que se estivesse, entretanto, preparado
para um debate de base filosófica. Tal movimento pouco esperava, entretanto, da
filosofia prática de Marx.
Entretempos, a discussão modificou-se profundamente. A crise ecológica
intensificou-se de modo dramático ao longo das últimas três décadas. Não há mais
como negar as consequências globais da intervenção humana na biosfera; hoje, elas
já avançaram nos debates políticos internacionais. Torna-se cada vez mais claro que
as tentativas de combater a crise ecológica por meio de incentivos econômicos, de
legislação político-jurídica e de medidas técnico-científicas de reparação têm efei-
tos por demais restritos, na medida em que todas elas permanecem presas à lógica
capitalista do valor. É por isso que, nas últimas décadas, os debates em torno da
crítica ao capital, assim como em torno da ecologia crítica, vêm-se aproximando
passo a passo5.
Acredito, por isso, que esta tradução de Rosalvo Schütz da versão original
de A relação dialética do homem com a natureza (SCHMIED-KOWARZIK, 2018b)
para o português, que será publicada paralelamente à nova edição alemã, esteja
sendo publicada no momento certo, para poder intervir de modo esclarecedor no
debate sobre Marx e a problemática da natureza, que está ressurgindo justamente
em nossos dias. Aqui, eu gostaria, ainda, de enfatizar explicitamente que, para
mim, trata-se, com este estudo, não tanto de uma análise político-econômica
da crise ecológica condicionada pelo valor econômico (IMMLER; SCHMIED-
-KOWARZIK, 2011), senão de um esclarecimento histórico-filosófico, no qual
recorro aos fundamentos teóricos da relação entre homem e natureza, uma vez que
estou convencido de que somente tal esclarecimento filosófico poderá nos apontar
um caminho de emancipação para além da atualmente equivocada relação entre
homem e natureza. Nesse sentido, espero que meus estudos histórico-filosóficos

5
Vejam-se Bahro (1991), O’Connor (1998), Foster (2000), Kovel (2002), Altvater (2005), Löwy (2016), Stache
(2017) e Armanski (2017).
16

sobre Marx e o problema da natureza consigam contribuir, no ano dos duzentos


anos de nascimento de Karl Marx, para a irrupção de uma discussão filosófica
renovada acerca do filósofo.

Wolfdietrich Schmied-Kowarzik
Viena, Áustria, junho de 2018.
17

Preâmbulo

Em 1935, Edmund Husserl ministrou, em Praga e Viena, suas famosas


preleções sobre a Crise das ciências europeias, nas quais evidenciou que o progresso
das ciências modernas vem, simultaneamente, acompanhado de uma “perda de
seu significado de vida”. Acontecera já na Renascença – com recurso à filosofia
grega – a eclosão da ideia de “reestruturar todo o ambiente humano circundante,
a existência política e social da humanidade, a partir da razão livre, a partir dos
insights de uma filosofia universal” (HUSSERL, 2012 [1977], p. 24). Contudo,
com a fixação cada vez maior das ciências na pura objetividade daquilo que é o
caso, essas vêm a perder o vínculo com a existência humana. O sujeito humano é
sistematicamente excluído. É verdade que não se pode negar às ciências que seus
conhecimentos possibilitaram enormes sucessos técnicos, mas sua constrição cada
vez mais radical aos critérios técnico-científicos de validade e sucesso, postos por
elas mesmas, lança, ao mesmo tempo, homens e culturas por elas influenciados
em uma crise de vida cada vez mais profunda e abarcadora.
A crise da filosofia significa, portanto, a crise de todas as ciências
modernas enquanto elos da universalidade filosófica, crise esta
inicialmente latente, que, no entanto, emerge depois cada vez mais
à luz do dia, crise da própria humanidade europeia em todo o signi-
ficado da sua vida cultural, em toda a sua ‘existência’ (HUSSERL,
2012 [1977], p. 28).

Dez anos depois, de modo ainda mais aguçado, Max Horkheimer e


Theodor Adorno mostraram, em sua Dialética do esclarecimento (2006 [1969]),
a “maldição do progresso irresistível” dentro da “irresistível regressão” da racio-
nalidade ocidental. O Esclarecimento, que um dia se propusera libertar os seres
humanos para, refletindo acerca de si mesmos e a partir de seu contexto vital com
a natureza, agir de modo racional e responsável, reduz-se, nas ciências modernas,
a conhecimentos de relações entre coisas, que se deixam aplicar. “Técnica é a
essência desse saber” (HORKHEIMER; ADORNO, 2006 [1969], p. 10). “A
dominação da natureza interna e externa torna-se o objetivo absoluto da vida”
(HORKHEIMER; ADORNO, 2006 [1969], p. 38), e, para dar conta disso, o
pensamento submete-se inteiramente a uma racionalidade matemático-empírica,
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mediante a qual a natureza e o homem tornam-se, tanto intelectual quanto tecni-


camente, determináveis e manipuláveis. “Com o abandono do pensamento – que,
em sua figura coisificada enquanto matemática, máquina e organização, vinga-se
dos homens esquecidos de si –, o esclarecimento abdicou de sua própria realização”
(HORKHEIMER; ADORNO, 2006 [1969], p. 27). Assim, furtado de sua auto-
consciência, o pensamento torna-se um instrumento disponível para dominar as
relações industriais de produção e seus processos naturais de expansão. “O absurdo
desse estado de coisas, no qual a violência do sistema sobre os homens cresce a
cada passo, subtraindo-os ao poder da natureza, denuncia como obsoleta a razão
da sociedade racional” (HORKHEIMER; ADORNO, 2006 [1969], p. 20-21).
Hegel acreditava que a razão já se imporia na história mundial a partir
de si mesma como “progresso na consciência da liberdade”. Em contrapartida
a isso, Horkheimer e Adorno mostram que a razão que se insere no progresso
naturalizado da racionalidade – e, com isso, a humanidade – está diante de um
futuro bem diferente:
A razão desempenha o papel do instrumento de adaptação [...]. Sua
astúcia consiste em fazer dos homens feras dotadas de um poder
cada vez mais extenso [...]. A capacidade de destruição do homem
ameaça tornar-se tão grande que, quando vier a se esgotar, esta
espécie terá feito tabula rasa da natureza. Ou bem há de se dilacerar
a si mesma, ou bem arrastará consigo para a destruição a fauna e
a flora inteiras da terra [...] (HORKHEIMER; ADORNO, 2006
[1969], p. 185-186).

Caso haja alguma saída dessa “irresistível regressão”, ela – conforme


enfatizam Horkheimer e Adorno – poderá consistir única e exclusivamente em
um esclarecimento da razão, que se volte a si mesma opondo-se simultaneamente
àquele progresso que passa cega e ferozmente por cima dos homens e da natureza.
No pensamento, os homens precisam voltar a refletir sobre si mesmos como seres
inseridos na natureza. Somente assim eles poderão se tornar sujeitos de um agir
racional e responsável em relação a seus outros e à natureza. “Graças a essa inserção
da natureza no pensamento do sujeito, em cuja efetuação está implicada a má in-
terpretação da verdade de toda cultura, o esclarecimento poderá opor-se de modo
incisivo à dominação [...]” (HORKHEIMER; ADORNO, 2006 [1969], p. 22),
tanto à dominação sobre outros homens quanto sobre a natureza. Ao progresso
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cego e feroz do modo industrial de produção, apenas pode ser contraposta uma
práxis modificada de sujeitos humanos tornados conscientes de si mesmos.
“Uma verdadeira práxis revolucionária depende, porém, da intransigên-
cia da teoria em face da falta de consciência, com a qual a sociedade deixa que o
pensamento se enrijeça” (HORKHEIMER; ADORNO, 2006, p. 23). Adorno e
Horkheimer escreveram isso em 1944, e um ano depois, foram lançadas as bom-
bas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki; com essa data – conforme frisa Günter
Anders, em seu ensaio filosófico Tempo final e fim dos tempos (1972) –, entramos
em uma nova era da história da humanidade: na era tanto do início de nosso
autoextermínio quanto da destruição da vida terrestre.
Uma guerra mundial, levando em conta o acúmulo de armamentos atô-
micos existente atualmente, significa o mesmo que o extermínio da humanidade,
e os sistemas armamentistas cada vez mais sofisticados e autorreguladores tornam
uma guerra nuclear, devido a uma falha técnica ou humana, infinitamente mais
provável do que a sobrevivência planejada da humanidade. Mas o olhar fixado
nessa possibilidade de uma guerra mundial exterminadora da humanidade faz-
nos negligenciar que, a nossas costas, está em curso um sorrateiro, mas irresistível
envenenamento e destruição da vida, que, independentemente de se haverá ou não
uma guerra, arruinará irreversivelmente – tanto no Leste quanto no Ocidente e
no mundo todo – não apenas nossa vida humana, senão toda a vida terrestre tão
somente pela continuidade de nosso modo industrial de produção. O que de nós se
aproxima não é uma catástrofe natural, mas um processo destrutivo desencadeado
por nós mesmos mediante nosso modo industrial de produção, o qual, porém,
autonomiza-se como que de modo natural. Os dejetos venenosos coproduzidos
pelo processo de produção industrial, que, inescrupulosamente, relegamos ao ar,
ao mar e à terra, modificam, passo a passo, na maior parte irreversivelmente, os
ciclos vitais da biosfera.
A loucura de nossas ações fica mais claramente evidenciada lá onde nós,
por interesse em uma produção crescente de energia, não nos intimidamos em
produzir, em concentração maciça, capaz de aniquilar a vida, o mais perigoso
veneno já elaborado por nós mesmos: o plutônio 239. É, na verdade, claro para
todos os participantes que, por todos os tempos, esse veneno – e seu lixo radioa-
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tivo – tem de ser mantido longe da biosfera mediante um isolamento absoluto e


armazenamento final. Ninguém pode, no entanto, dizer como deveríamos realizá-lo;
pois, tendo em vista um tempo mediano de vida de 24.360 anos, isso significa
que, mesmo sem guerra, a quantidade até hoje produzida, capaz de exterminar a
humanidade inteira, tem de ser absolutamente isolada da biosfera por milhares
de anos – aliás, por mais tempo do que vivemos enquanto homo sapiens sobre a
Terra –, e assegurada contra qualquer incidente, tanto de origem bélica quanto de
mudanças histórico-naturais terrestres.
Com isso, fica claro que nós, para podermos gozar nossa vida – e isso
independentemente de vir a acontecer ou não uma guerra ou acidente que ani-
quile totalmente a vida sobre a Terra –, estamos delegando gigantescos problemas
vitais para as gerações vindouras, problemas esses que não sabemos se poderão ser
vencidos um dia. Nós ainda tentamos, porém, iludir-nos em relação a que, apesar
de sua periculosidade, somos capazes de controlar a expansão industrial, e quanto
a que, no caso de repetidos acidentes, trata-se apenas de excrescências parciais e
delimitadas, as quais podem ser manejadas por esforços técnico-científicos mais
enérgicos. Tentamos, ainda, ocultar que se trata, aqui, das primeiras consequên-
cias manifestas de uma relação fundamentalmente perturbada e alienada de nossa
forma de pensar e viver frente à natureza. Não queremos ver, ainda, e tomar como
verdade que estamos prestes a enterrar, para nossos filhos e filhos de nossos filhos,
as possibilidades de seu futuro humano.
Com uma ingenuidade inacreditável e irresponsável, confiamos tanto
numa racionalidade humana controlável quanto numa capacidade aparentemente
imensurável de absorção da natureza. No entanto, as ininterruptas, contínuas e
desrespeitosas intervenções de nosso modo de produção industrial nos processos
naturais da vida, com efeitos em parte irreversíveis, potencializam o conflito fun-
damental entre nossa atual práxis social e os fundamentos naturais de nossa vida.
Tal conflito, se continuar assim, sem sofrer qualquer suspensão mediante uma
inversão fundamental de nossa práxis social, levará, inevitavelmente, a um fim
catastrófico para nós e nossos descendentes. É verdade que podemos diagnosticar
esse processo contraditório em múltiplos fenômenos, mas as contramedidas até
hoje experimentadas para agir por meios técnico-científicos contra ele são, na
21

melhor das hipóteses, capazes apenas de desacelerá-lo. Estancá-lo ou revertê-lo


é impossível com tais meios, pois estão eles mesmos enraizados em nosso modo
industrial de pensar e produzir. Faltam-nos os pressupostos filosóficos que nos
permitam descortinar teoricamente e superar praticamente essa alienação cada vez
mais explícita entre homem e natureza.
Do que precisamos é de uma crítica fundamental do modo industrial de
produção e da racionalidade científica a ele associado; uma crítica que deve ser
compreendida a partir da relação a ser fundamentalmente esclarecida entre práxis
humana e natureza e que, com isso, seja capaz tanto de desvendar analiticamente
a crescente alienação do desenvolvimento social em relação à natureza quanto de
viabilizar um movimento revolucionário capaz de opor-se praticamente a essa
tendência. Sabe-se que ainda não dispomos de tal filosofia crítica da práxis social
em relação à natureza. Na melhor das hipóteses, estão sendo atualmente coleta-
dos alguns primeiros fragmentos para tanto. Nesse contexto, um dos pontos de
partida mais importantes consistirá no recurso à teoria marxiana e sua progressão
na filosofia da práxis.
Isso talvez surpreenda muitos, pois a teoria marxiana, falsamente apresenta-
da como contendo uma fundamental ignorância em relação à natureza, na afirmação
de que esta, enquanto material qualquer, seria utilizável para a produção social, foi
já suficientemente exposta em muitos compêndios acerca do conceito de natureza
na doutrina de Marx [conforme pode ser verificado até mesmo no livro de Alfred
Schmidt sobre O conceito de natureza em Marx (1971), que, ademais tem muitos
méritos]6. Quase sempre a teoria marxiana é considerada uma herdeira radical da
crença burguesa no progresso e uma das forças ideológicas impulsionadoras do
processo de industrialização – e, com isso, da destruição cega da natureza. Em
relação aos marxismos da Segunda e Terceira Internacional e à propagação de uma
expansão industrial desenfreada nos Estados do socialismo realmente existente, essa
qualificação é certamente adequada. Mostra-se, aqui, mais uma vez, o quão rápido
os adeptos e críticos – com augúrios inversos apenas – concordam sobre a teoria
marxiana, sem terem, eles mesmos, dela tomado conhecimento pormenorizado.

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A parte delimitada entre colchetes refere-se a uma inserção solicitada pelo próprio autor da obra (Schmied-
-Kowarzik), posterior, portanto, à edição original. [N.T.]
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Naturalmente, na teoria de Marx, a problemática da natureza não está em


primeiro plano, ficando quase inteiramente atrás da questão social. No entanto, a
cada intensiva leitura dos escritos de Marx – tanto em seus trabalhos de juventude
quanto em suas obras tardias –, não fica despercebido que, ao lado do trabalho
social, Marx destaca enfaticamente também a natureza como fonte de nossa riqueza,
natureza essa que, devido ao modo de produção atual, em sua forma industrial
dominante, vê-se tão ruinosamente explorada quanto o é a força viva do trabalho
dos homens que atuam no processo de produção. Também nessa questão, a sobre-
vivência depende, necessariamente, de encontrarmos uma relação transformada do
homem com a natureza que implique uma “ressureição da natureza”.
Uma preocupação do presente tratado consiste em tornar visível novamente
a linha de argumentação que perpassa os manuscritos filosóficos do jovem Marx,
indo até seus escritos tardios sobre a crítica da economia política, linha de argumen-
tação essa que se viu soterrada pelos marxismos que o seguiram. Trata-se, porém,
de algo mais do que a reabilitação de uma ideia de Marx. Trata-se de demonstrar
que a teoria marxiana oferece um aporte decisivo à superação teórica e prática
da crise ecológica a nós legada. A teoria de Marx deixa claro – mesmo que ainda
muito rudimentarmente, e a ser complementada com nossa análise crítica – que a
alienação da natureza, emersa da crise ecológica, deve ser compreendida como algo
originado na forma alienada de nossa atual práxis social tornada histórica em sua
relação com a natureza – logo, não exatamente em si e de modo incontornável na
própria relação do homem com a natureza. Fica, com isso, clara a importância de
evidenciar criticamente a determinação alienada da forma de nosso lidar teórico
e prático com a natureza. Para tornarmo-nos capazes disso, teremos de abolir, na
prática, esse modo de agir equivocado mediante uma revolução radical de nossas
relações sociais de vida.
Contudo, a exigência daí advinda por uma crítica radical da ciência natural
e técnica nos é algo tão pouco familiar que não só não conseguimos interconectá-la
com Marx, como, em geral, também a desalojamos de todo de nosso horizonte de
problemas filosóficos. Vinga-se, agora, o fato de que a filosofia, por mais de um
século e meio, apenas ousou pensar sobre a relação entre homem e natureza nos
trilhos das ciências naturais. Isso, porém, já não basta mais hoje, uma vez que até
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mesmo o próprio conceito de natureza das ciências naturais está posto em questão
enquanto momento de nossa relação alienada com a natureza. Precisamos, portan-
to, tentar antes retomar a discussão filosófica sobre a natureza no ponto em que
foi abandonada há 180 anos atrás para podermos, assim, atualizar novamente o
horizonte do problema que subjaz também à teoria marxiana.
Ainda hoje, o campo de problemas aqui indicado é marcado pelas posições
opostas de Kant e Schelling. Não é uma injustiça o fato de Kant ser considerado
o antepassado da teoria científica das ciências modernas, pois ele identificou, em
termos transcendental-filosóficos, as condições de possibilidade de um conheci-
mento rigoroso das leis científicas, nas quais as ciências objetificadoras continuam
a mover-se e diferenciar-se; ainda assim, a compreensão da natureza por Kant não
se deixa reduzir, de maneira alguma, ao conceito de natureza das ciências naturais.
Em contrapartida a isso, Schelling insistiu em esboçar uma filosofia da natureza,
que reflete a natureza a partir de suas próprias potências. Até agora, a tentativa de
Schelling quase não encontrou seguidores; não obstante, sua filosofia da natureza
vem ganhando cada vez mais importância, por ser, talvez, a última, até mesmo
a única grande tentativa de compreender nosso real “estar-na-natureza” a partir
do próprio contexto real da natureza. Marx vincula-se a isso, diretamente ou via
Feuerbach, e chega, assim, a uma filosofia da práxis social fundada em uma filosofia
da natureza, a qual ele não contrapõe, na verdade, de modo algum, à natureza, mas
define dialeticamente como fundada na própria natureza e a ela referida.
Tentaremos, portanto, primeiro explicitar novamente a determinação de
natureza em Kant e Schelling, para, assim, alcançarmos o horizonte do problema,
em geral, a partir do qual Marx discute a dialética da relação com a natureza. Após
um minucioso desenvolvimento da implicação da teoria marxiana com a filosofia da
natureza, tanto nos Manuscritos filosóficos da juventude quanto nos escritos tardios
acerca da Crítica da economia política, deverá ser ainda apenas indicado, em um
último parágrafo, que a discussão posterior acerca da filosofia da práxis, sobretudo
em Ernst Bloch e Alfred Redel, alcança novamente o nível do problema atingido
entre Kant e Schelling, ainda que sem ultrapassá-lo – tendo agora, como base, a
filosofia da práxis de Marx.

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