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ISSN: 1413-2478
rbe@anped.org.br
Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação
Brasil
Introdução
Muito se discute em várias ins-
tâncias, desde reuniões internacionais
até em pequenas organizações não
governamentais (ONGs), desde o meio
acadêmico até nas instituições escola-
res, sobre o preconceito e sobre ações
educativas para combatê-lo. Tal dis-
cussão se fundamenta na necessidade
sempre urgente de dizimar atitudes que
acontecem cotidianamente nas escolas
e fora delas contra sujeitos ou grupos
que sofrem com estigmas.
No presente ensaio, pretendemos
contribuir para esse debate. Para tanto,
* Agradeço à professora doutora Valéria Amorim Arantes, da Universidade de São Paulo (USP),
pela leitura criteriosa e atenta do presente ensaio.
plesmente porque ela pertence a esse der” (p. 178). Ainda de acordo com esse
grupo, e, portanto, presume-se ter qua- estudo, os valores enfatizados por esses
lidades que são atribuídas a esse grupo” sujeitos são, essencialmente, aqueles
(Allport, 1954, p. 7, tradução nossa). tidos como “convencionais do momento”,
O preconceito, ainda nas palavras uma conduta exterior correta, envolven-
do autor, poderia ser explicado porque o do a capacidade no trabalho, a diligência,
ser humano tende à “overcategorization”, a higiene e a não criticidade.
que entendemos como uma super cate- Outro aspecto importante desta-
gorização dos elementos que existem na cado por Adorno e Horkheimer em rela-
realidade. Allport relata que tal proce- ção ao preconceito é o pensamento ciclista.
dimento pode ser visto como natural, Segundo os autores, os pensamentos e
uma vez que as demandas aos seres sentimentos dos sujeitos estão orienta-
humanos da compreensão do real os dos hierarquicamente, submetendo-se à
forçam a fazer ajustes e, assim, catego- autoridade moral idealizada pelo grupo
rizações que os tornam ignorantes nas ao qual julgam pertencer e estando
ações cotidianas. São, assim, elaborados totalmente alertas para condenar, pe-
diversos prejulgamentos que facilitam a los mais diversos pretextos, os que se
compreensão de mundo para o sujeito. encontram fora do grupo ou aqueles a
Entretanto, segundo Allport, os quem se considera inferiores. Esta for-
prejulgamentos não podem ser enten- ma de pensar é denominada por esses
didos estritamente como preconceitos. autores de “natureza ciclista”, ou seja,
Eles podem virar preconceitos somente “na acepção metafórica de uma pessoa
se, expostos a novos conhecimentos que gosta de calcar com o pé quem está
sobre o objeto em questão, não forem por baixo e, ao mesmo tempo, dobra o
reversíveis. Assim sendo, o autor chega corpo, em posição humilde, para os que
à seguinte definição de preconceito: estão em cima” (idem, p. 179).
“Preconceito étnico é uma antipatia Ainda de acordo com os autores, o
apoiada em uma generalização falha tipo totalitário proíbe toda e qualquer
e inflexível. Ele pode ser sentido ou reflexão, no anseio de assegurar que o
expressado. Pode ser direcionado para status quo permaneça, mantendo a sua
um grupo como um todo ou para um in- “falsa segurança” e desprezando sua
divíduo porque ele é um membro desse própria atividade intelectual, afetiva
grupo” (idem, p. 9, tradução nossa). e criativa. Tal perspectiva leva esse
Embora acreditemos que seria sujeito a apegar-se à força de um poder
importante aprofundar as discussões superior e esquivar-se à responsabilida-
travadas por Allport, partiremos para o de pessoal.
estudo de Adorno e Horkheimer (1973), Todas essas características nos
que almejaram entender o preconceito levam a perceber que o preconceito diz
com base em pesquisas sobre o sujeito mais a respeito da pessoa que o sente
totalitário. Em tal estudo, os autores ca- (o preconceituoso), visto que é uma dis-
racterizam esse sujeito como portador posição psicológica, do que do alvo do
de uma estrutura relativamente rígida preconceito. No entanto, concordando
e constante, por um “reconhecimento com Crochík (2006), o termo não pode
cego, obstinado e intimamente rebelde ser totalmente independente deste
tributado a tudo que se reveste de po- último, isto é, das representações que
Nas inter-relações entre esses por meio das representações que tem
dois conflitos, nota-se que a formação sobre ele, fazendo que seja um sujeito
de preconceitos está atrelada à força único, com características peculiares.
da cultura sobre o indivíduo de não se O jogo de imprevisibilidade e
voltar, reflexivamente, para a realidade, norma cultural são cruciais para que
quer seja por perceber o sofrimento que se compreenda o preconceito. Logo,
essa realidade contém, quer seja por o preconceito, via ordem social, visa
reconhecer essa cultura como instân- a uma percepção rígida, sem reflexão
cia que aponta para a universalidade sobre os objetos; a imprevisibilidade
humana. da identidade individual pode chegar a
Deste modo, desmentir um estereótipo disseminado
culturalmente.
[…] toda ação que incentive a ne- Nas palavras de Crochík, “Essa
cessidade do confronto com os ou- imprevisibilidade é importante, posto
tros para que possa se garantir a so- que o preconceito visa a uma percep-
brevivência, quando essa garantia ção de sua vítima que restrinja os seus
já poderia ser dada tendo em vista movimentos, tornando-os repetitivos.
os recursos atuais da civilização, Com isso, qualquer movimento que des-
colabora com a regressão social e minta o estereótipo introjetado, ou seja,
com a regressão individual, que são imprevisto, é negado pelo preconceito”
componentes básicos do preconcei- (idem, p. 65).
to. Se a cultura é expressão da na- Essas reflexões sobre a identi-
tureza humana, a exclusão contida dade individual e sua relação com o
no preconceito torna esta cultura preconceito imposto pela cultura nos
tão ameaçadora quanto a própria levam a perceber o preconceito como
natureza da qual ela se propõe de- um tipo de valor “passado” de geração
fender os homens. (idem, p. 59) a geração, de acordo com as normas
sociais. Entretanto, como enfatizaram
No diálogo que se estabelece Adorno e Horkheimer (1973), ele não
entre os aspectos culturais e psicoló- pode ser entendido como algo estrito
gicos que circunscrevem a elaboração e somente imposto pela cultura, mas
do preconceito, emerge como questão entendido como um fenômeno psico-
importante a ser apontada o concei- lógico, em interface constante com o
to de indivíduo. Segundo Adorno e social.
Horkhei mer (1973), o indivíduo é um Com base nessas conjecturas,
produto social criado historicamente, podemos entender que o preconceito
muito embora seja composto por uma necessariamente recai para a esfera
certa imprevisibilidade que aponta para da moralidade, pela qual seria possí-
a diferenciação individual. vel realizar uma análise sobre a sua
O indivíduo constitui-se em uma elaboração por parte dos sujeitos em
identidade. Ele se constrói em relação a relação com os conteúdos existentes
um mundo social já construído que tem no ambiente social. Entendemos que
predominância sobre ele. No entanto, a psicologia moral possa contribuir
sua consciência lhe proporciona uma para essas reflexões, como exporemos
construção permanente desse mundo a seguir.
com a moralidade precisa assumir uma timentos daqueles que sofrem com tais
perspectiva reflexiva, em que os alunos atitudes. Uma formação moral visaria
pensem continuamente sobre aspectos à construção de valores como os de
importantes de nossa sociedade, princi- tolerância, igualdade, justiça, solidarie-
palmente sobre aqueles que se dirigem dade, entre outros.
aos preconceitos de todos os tipos. Nesse sentido, acreditamos em
Nesse sentido, seria necessário in- uma educação moral que não se circuns-
verter a ordem na escola que privilegia creva apenas aos direitos e deveres dos
o princípio de heteronomia, em que os sujeitos, como regras que pairam sobre
alunos e alunas se veem dependentes suas cabeças. Em nossa concepção,
de mandamentos e de normas que não a educação moral precisa abordar os
são assumidas pela sua própria razão. valores existentes na sociedade, sendo
Faz-se mister dar um maior poder de re- morais ou não, e de forma crítica anali-
flexão a todos os envolvidos no processo sar a forma como tais valores são incor-
educativo, para que possam, pelas suas porados em nossa cultura e construídos
vivências, criar maior autonomia para pelos indivíduos. Trabalhar apenas com
repensar mecanismos que estão postos regras significa desprezar toda a elabo-
culturalmente na escola e fora dela. ração humana sobre a moralidade, não
Uma perspectiva importante para atingindo efetivamente os sujeitos com
compreendermos a educação moral seus pensamentos, sentimentos, desejos
por esse viés está nos escritos de Puig e valores.
(1996). Para esse autor, sendo a educa- Com o objetivo de minimizar os
ção moral ancorada em princípios ou valores preconceituosos, a escola de-
padrões de conduta que regulam as re- veria voltar-se, principalmente, para a
lações dos seres humanos com o mundo reflexão e construção do valor de tolerân-
em que vivem, ela deve converter-se em cia às diferenças. Segundo Itani (1998),
âmbito de reflexão individual e coletiva “do lado da atitude de preconceito, que
que permita elaborar, racionalmente e é a noção formada sobre o outro, há a
autonomamente, princípios gerais de intolerância, que é a negação do outro
valor; princípios que ajudem o indivíduo como tal” (p. 131). A intolerância é
a se defrontar criticamente com reali- construída e em nosso cotidiano, como
dades como a violência, a tortura ou a enfatiza a autora, compreendida como
guerra. De forma específica, para esse práticas de defesa contra nossa fragili-
autor, a educação moral deve ajudar a dade diante do outro.
analisar criticamente a realidade coti-
diana e as normas sociomorais vigentes, A tolerância com o outro, sim,
de modo que contribua para idealizar é criada, é construída. Se esse ou-
formas mais justas e adequadas de tro participa da mesma dimensão
convivência. espa ço-temporal que eu, posso
Os valores preconceituosos, diri- construir uma restrição institucio-
gidos a diversos grupos que sofrem com nal dessa participação desse outro.
estigmas, dessa forma, precisam ser Essa construção visa evitar a todo
abordados na escola, levando os alunos custo a vivência dessa alteridade
e alunas a uma maior consciência dos radical, numa tentativa de gerir o
mecanismos de discriminação e dos sen- conflito e, notadamente, de admi-
A escola, como espaço para con- Uma proposta de educação moral para o
vivência entre diferentes, pode propor- respeito à diversidade: a perspectiva da
cionar de forma reflexiva um trabalho
resolução de conflitos
concreto para a construção do valor
de tolerância, implicando “a liberdade Não nos sentimos à vontade com
de existência do outro, que considero a ideia de formular receitas ou dar in-
diferente, o direito desse outro ser dicações finais sobre a educação moral.
diferente de mim, seja na maneira de Acreditamos que o conhecimento e a
pensar, de agir, de crer e, enfim, da consequente reflexão por parte dos do-
liberdade de ser” (idem, p. 134). centes são, na verdade, o imperioso do
Trabalhar com o valor de tole- trabalho educativo, visto que são sem-
rância, em nossa perspectiva, signi- pre necessárias adequações ao contexto,
ficaria envolver valores outros e suas incluindo não apenas a comunidade
possibilidades de integração, pelas suas escolar, como também a própria práxis
“similitudes”. Explicando melhor, não pedagógica de cada professor.
que propiciem formas de respeito à São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
diversidade, não se pode restringir-se p. 488-511.
às diferenças dentro da escola, mas ARAÚJO, Ulisses Ferreira. Conto de escola:
também buscar a reflexão sobre os a vergonha como um regulador moral. São
mecanismos de preconceito e exclu- Paulo: Moderna/ Campinas: Editora da
são existentes na sociedade. A escola UNICAMP, 2003.
precisa encontrar formas de cumprir o . A construção social e psicológica
princípio constitucional de igualdade, o dos valores. In: ARAÚJO, Ulisses Ferreira;
que exige sensibilidade dos educadores PUIG, Josep María; ARANTES, Valéria
para a questão da diversidade cultural e Amorim (Orgs.). Educação e valores: pontos
ações decididas em relação aos proble- e contrapontos. São Paulo: Summus, 2007.
mas gerados pela injustiça social. ARAÚJO, Ulisses Ferreira; PUIG, Josep
Talvez esse seja o desafio principal María; ARANTES, Valéria Amorim (Orgs.).
das escolas, pois, em tempos de uma Educação e valores: pontos e contrapontos.
sociedade em que mecanismos de pre- São Paulo: Summus, 2007.
conceito ainda permanecem estáveis, BLASI, Augusto. The development of
mobilizar os educadores para destrin- identity: some implications for moral func-
char formas de promover uma educação tioning. In: NOAM, Gil; WREN, Thomas
moral voltada para o respeito à diver- (Orgs.). The moral self. Cambridge: The MIT
sidade significaria, antes, realizar um Press, 1992. p. 99-122.
trabalho de reflexão com os educadores . Moral functioning: moral un-
para que se apercebam das questões que derstanding and personality. In: LAPSLEY,
impedem a nossa sociedade de superar Daniel K.; NARVAEZ, Darcia. Moral develop-
os valores preconceituosos. No entanto, ment, self and identity. Marhwash, New Jersey;
a psicologia moral nos ensina que isso é London: Lawrence Eerlbaum Associates
possível, já que todos podem mudar seus Publishers, 2004.
valores mediante as situações que se lhes BRASIL. Secretaria de Educação Funda-
apresentem e as consequentes reflexões mental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
que elas proporcionam. A força para a pluralidade cultural e orientação sexual.
mudança está na educação. E isso não é Brasília: MEC/ SEF, 1997.
um aforismo, isso é a realidade. CANEN, Ana. Educação multicultural,
identidade nacional e pluralidade cultural:
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ITANI, Alice. Vivendo o preconceito em sala preconceito. In: AQUINO, Júlio Groppa
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teóricas e práticas. São Paulo: Summus, Summus, 1998.
1998.
MORENO, Montserrat; SASTRE, Genove-
va. Resolução de conflitos e aprendizagem emocio- VIVIANE POTENZA GUIMARÃES
nal: gênero e transversalidade. São Paulo: PINHEIRO, mestre em psicologia e edu-
Editora Moderna, 2002. cação pela Universidade de São Paulo
PINHEIRO, Viviane Potenza Guimarães. A (USP), é atualmente doutoranda nessa
generosidade e os sentimentos morais: um estudo mesma área e instituição. No momento,
exploratório na perspectiva dos modelos dedica-se à pesquisa Aproximações entre
organizadores do pensamento. Dissertação moral e self: um estudo da integração e
(Mestrado em Psicologia e Educação) − regulação por valores e sentimentos.
Faculdade de Educação da Universidade de Atua na área de educação, tendo partici-
São Paulo (FEUSP), São Paulo, 2009. pado de vários projetos em instituições
PUIG, Josep María. A construção da personali- públicas e privadas.
dade moral. São Paulo: Ática, 1996. E-mail: viviane@escolapinheiro.com.br
SCHNITMAN, Dora (Org.). Novos paradig-
mas na resolução de conflito. São Paulo: Artes
Médicas, 2003.
Recebido em outubro de 2010
VIANA, Cláudia; RIDENTI, Sandra. Rela-
ções de gênero e escola: das diferenças ao Aprovado em outubro de 2010