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Minha crença é de que a forma de estudar algo é começar tratando a questão como
um sistema, em si próprio e no seu próprio nível, e ainda que esse viés seja
encontrado na literatura estruturalista contemporânea, há uma fonte não relacionada,
da qual eu bebi, no funcionalismo de Durkheim e Radcliffe-Brown. É esse viés que me
levou a tentar tratar as interações face a face como um domínio em si próprio
(Goffman, 1981, p. 62, grifos meus).
O asilo
O livro Asylums: essays on the social situation of mental patients and other inmates,
originalmente publicado em 1961, foi traduzido para o português como Manicômios,
prisões e conventos, em 1974.Entre 1954 e 1957, enquanto era professor do
Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA),
Goffman foi membro visitante do Laboratório de Estudos Socioambientais do Instituto
Nacional de Saúde, em Bethesda, Maryland. Foram três anos como observador
participante nos setores de pesquisas farmacológicas e de esquizofrenia do National
Institutes of Health Clinical Center (Kunze, 2009, p. 278). No período de 1955 a 1956,
efetuou um trabalho de campo nas enfermarias do hospital psiquiátrico Saint
Elizabeth, em Washington, D.C, instituição federal com cerca de 7.000 pacientes, com
o intuito de entender o mundo social dos internos de um hospital psiquiátrico, “na
medida em que esse mundo é subjetivamente vivido por ele” (Goffman, 2007, p. 8). O
resultado desse estudo foi desdobrado em quatro artigos, sendo que os dois primeiros
foram publicados separadamente, e compilados, em 1961, sob o título Asylums(Silva,
2013, p. 8). O livro está dividido em quatro partes, respectivamente: As
características das instituições totais: introdução; o mundo do internado; o mundo
da equipe dirigente; cerimônias institucionais; restrições e conclusões. A carreira
moral do doente mental: a fase do pré-paciente; a fase de internado. A vida íntima
de uma instituição pública[parte I]: introdução; agir e ser; ajustamentos primários e
secundários [parte II]: a vida íntima do hospital: fontes; locais; recursos; estrutura
social; conclusões. O modelo médico e a hospitalização de doentes mentais: notas
sobre as vicissitudes das tarefas de reparação; conclusão.
Depois de sugerir os aspectos comuns das instituições totais, Goffman analisará tais
estabelecimentos a partir de duas perspectivas: “o mundo do internado” e “o mundo da
equipe dirigente” (p. 23). Para o internado, o sentido completo de estar “dentro” da
instituição não existe independentemente do sentido específico de estar “fora” de tal
estabelecimento. Consequentemente, as instituições totais criam e mantêm um tipo
particular de tensão entre o mundo institucional e o mundo doméstico, e assim,
reiteradamente, usam essa tensão persistente como uma força estratégica de controle
dos indivíduos (p. 24). Quando o internado chega à instituição total, inicia-se o
processo de mortificação do self, ou seja, um processo sistemático de supressão da
“concepção de si mesmo” e da “cultura aparente” que traz consigo, após uma série de
degradações, humilhações e profanações ao self. Esses ataques regulares
ao self advêm do “despojamento” do seu papel na vida civil mediante a imposição de
barreiras de contato com o mundo externo, do “enquadramento” às regras
institucionais de conduta, do “despojamento de bens” e consequentemente da perda
dos “equipamentos de identidade”, além da “exposição contaminadora” de um dossiê
que profana a autonomia do território do self. Concomitante ao processo de
mortificação, a equipe dirigente instruirá como o internado deve orientar-se na
instituição. Esse conjunto de instruções formais e informais constituirá o “sistema de
privilégios” da instituição (p. 49). Se o internado seguir as “regras da casa”, a equipe
dirigente lhe dará um pequeno número de prêmios em troca da sua obediência, mas
se descumpri-las, o interno é castigado pela sua desobediência. Diante da influência
reorganizadora, o internado desenvolve dois mecanismos de adaptação às regras da
instituição: pelos “ajustamentos primários”, quando contribui cooperativamente com as
atividades institucionais, e pelos “ajustamentos secundários”, quando emprega meios
ilícitos, não autorizados e não formais, a fim de “escapar” da realidade que a
organização lhe impõe. Os ajustamentos secundários dão ao internado uma prova
evidente de que “é ainda um homem autônomo, com certo controle de seu ambiente, e
às vezes [isso] se torna quase uma forma de abrigo para o self, um coringa, em que a
alma parece estar alojada” (p. 54).
Parte I: Introdução
Os vínculos que ligam o indivíduo aos diferentes tipos de instituições sociais têm
certas propriedades gerais e comuns, como compromisso e adesão às regras. Na
sociedade ocidental, o acordo formal ou o contrato é um símbolo clássico dessa forma
de associação. Com uma assinatura, “celebra-se os vínculos que liga e os limites
reconhecidos daquilo que liga” (p. 148). Por trás de cada contrato existem suposições
não contratuais a respeito do caráter dos participantes (p. 148). Cientes do que
“devem” e “não devem”, os participantes concordam quanto à validade geral dos
direitos e obrigações contratuais e quanto à legitimidade dos tipos de sansão para o
rompimento do contrato. Quem aceita um contrato supõe que seja uma pessoa de
determinado caráter e forma de ser. Se todo vínculo supõe uma concepção ampla da
pessoa ligada a ele, “devemos ir adiante e perguntar como o indivíduo enfrenta essa
definição de si mesmo” (p. 149). Para isso, Goffman perscrutará os padrões de
comportamento (modos de “agir” e “ser”) segundo um tipo particular de instituição
social, as “organizações formais instrumentais”, localizadas nos limites de um único
edifício ou complexo de edifícios (p. 149). Como ponto de partida, uma “organização
formal instrumental” pode ser definida como um sistema de atividades
intencionalmente coordenadas e destinadas a provocar alguns objetivos explícitos e
globais. Essas organizações, principalmente as “muradas”, têm uma característica
singular: parte das obrigações do indivíduo é participar visivelmenteda atividade da
organização, o que exige uma mobilização da atenção, com esforço muscular e certa
submissão do selfà atividade como símbolo de compromisso e adesão do indivíduo (p.
150). Uma organização formal instrumental só sobrevive por ser capaz de apresentar
contribuições úteis da atividade de seus participantes. Entretanto, esse tipo de
estabelecimento social não se limita apenas a usar a atividade de seus participantes –
a organização formal instrumental também determina quais são os padrões
oficialmente adequados de bem-estar, valores comuns, prêmios e castigos. Portanto,
nas disposições sociais de tais organizações, existe não só uma concepção completa
de participante, mas uma concepção dele como ser humano (p. 153). A organização
estipulará “o que fazer” e “por que fazer” e, consequentemente, tudo “o que se pode
ser”. Participar de determinada atividade com o espírito esperado (“fitting in”) é aceitar
que se é um determinado tipo de pessoa que vive em um tipo determinado de mundo,
enfim, toda organização inclui também uma “disciplina do ser”, uma obrigação de ser
de um determinado mundo.
O autor assim avança para a “versão médica” do modelo de serviços de consertos (pp.
277-310). O ato de entregar o corpo para o servidor médico e ao seu tratamento
racional e empírico é um dos pontos mais complexos do serviço. Se o gradual
estabelecimento do corpo como um “bem” que pode ser “consertado” – um tipo de
máquina físico-química – é muitas vezes citado como um triunfo do “espirito científico
secular”, em contrapartida, tal triunfo é causa e efeito da crescente demanda por todos
os tipos de serviço especializado. O principal problema de submeter à medicina ao
esquema de serviço é que, mesmo com os esforços das associações médicas, a
prática médica afastou-se do ideal clínico, com clientela não organizada, para
transformar-se em uma repartição burocrática de serviços. Em seguida, o autor
estende o problema da aplicação do modelo de serviço especializado, em sua versão
médica, à psiquiatria institucional. Quando o pré-paciente chega para sua primeira
entrevista de admissão, os médicos aplicam imediatamente o modelo se serviço
médico. Quaisquer que sejam as condições sociais do indivíduo, independente do
caráter específico de sua “perturbação”, ele pode ser tratado nesse ambiente como
alguém cujo problema pode ser enfrentado, ainda que “não tratado”, pela aplicação de
uma única interpretação psiquiátrica técnica. Um dos problemas na aplicabilidade do
modelo de serviço à medicina está no fato de que parte do mandato oficial do hospital
psiquiátrico público é “proteger” a comunidade do perigo e dos aborrecimentos de
certos tipos de má-conduta. Entretanto, cada vez que o hospital psiquiátrico atua como
“albergue provisório”, destinado a lidar com indivíduos que não podem ficar na
comunidade externa, o modelo de serviço é desmentido.