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Resumo Goffman

Manicômios Prisões e Conventos

Erving Manual Goffman (1922-1982) nasceu em Mannville, na província de Alberta,


Canadá. Seus pais, judeus ucranianos, migraram para o Canadá no final do século 19
e se estabeleceram em Dauphin, Manitoba, onde o pai firmou-se no ramo da costura.
Graduou-se em antropologia e sociologia pela Universidade de Toronto, em 1945. Na
pós-graduação, foi para a Universidade de Chicago, Estados Unidos, tornando-se
mestre[2](1949) e doutor[3](1953) em sociologia pela mesma instituição. Em 1958, a
convite de Herbert Blumer, juntou-se ao staffdo Departamento de Sociologia da
Universidade da Califórnia em Berkeley e, a partir de 1968, foi professor de sociologia
e antropologia da Universidade da Pensilvânia (Nunes, 2009, p. 175). Também, entre
1981 e 1982, presidiu a American Sociological Association. Em sua elaboração, a obra
goffmaniana incorporou e transformou as contribuições de autores clássicos, como
Georg Simmel, Émile Durkheim, Radcliffe-Brown, Alfred Schütz, assim como de
cientistas sociais de seu tempo, como Talcott Parsons, Herbert Blumer, Everett
Hughes (Martins, 2008, p. 135). Erving Goffman, “aquele que fez com que a sociologia
descobrisse o infinitamente pequeno” (Bourdieu, 2004, p.11), olhou de perto e
longamente a realidade social como etnógrafo. Esteve, por dezoito meses, em uma
comunidade das Ilhas Shetland, na Escócia, e em seguida, foram mais três anos como
observador participante nos setores de pesquisas farmacológicas e de esquizofrenia
do National Institutes of Health Clinical Center e no hospital psiquiátrico de Saint
Elizabeth, em Washington, D.C. Ademais, acompanhou equipes cirúrgicas nas salas
de operação do Herrick Memorial Hospital, jogadores e traficantes nos cassinos de
Las Vegas e Nevada, e um disc-jockeyem uma rádio da Filadélfia, concentrando-se, a
partir de 1963, na pesquisa de campo dos espaços públicos da sociedade anglo-
americana (Frehse, 2008, p. 159).

Para Scheffer (2003), a obra de Goffman trouxe um caráter revolucionário para os


estudos socioantropológicos, pois o autor teve o mérito de “desafiar a santidade da
vida cotidiana ao inferir que ela, como qualquer outra instituição social, é construída”
(Scheffer, 2003, p. 61). Em todos os seus trabalhos, podemos vê-lo como “etnógrafo
do self” (Freidson, 1983, p. 359). Embora herdeiro da microssociologia da Escola de
Chicago, sobretudo da concepção de selfbaseada na obra de George Mead (1934), e
do legado da pesquisa empírica a partir das interações face a face (“copresença física
imediata”), Goffman distanciou-se do interacionismo simbólico, especialmente
blumeriano (Blumer, 1937, 1969). O epicentro da crítica à abordagem de Herbert
Blumer refere-se ao caráter abstrato no qual o processo de interação social é tomado,
sem uma ordem analiticamente viável – aquilo que o autor chamou de “ordem” ou
“ordem pública” e, em seu último (e póstumo) texto, de “ordem da interação”, isto é, o
conjunto ou sistema de regras básicas do jogo social (Goffman, 1982, p. 5).

Em parte da bibliografia especializada que revista a obra de Erving Goffman está


presente o debate sobre em que medida a obra do autor estaria mais associada ao
estrutural-funcionalismo ou ao pensamento da Escola de Chicago. De acordo com
Collins (2010), a partir de Behavior in public places(1963), Interaction ritual(1967)
e Frame analysis(1974), o autor afastou-se do interacionismo simbólico e aproximou-
se do estrutural-funcionalismo, na medida em que foi descentralizando a autonomia
antes conferida ao selfem prol da estrutura ou da ordem social (Collins, 2010, p. 550).
Segundo Castro (2012), em obras anteriores, como The presentation of self in
everyday life (1959), Asylums (1961) e Stigma(1963), Goffman abre margem para a
apreensão de um selfdotado de maior agência, mesmo que seja um “self que apenas
reproduz as convenções sociais ao preencher papeis em conformidade com a
definição da situação convencional” (Castro, 2012, p. 200). Para Freidson (1983),
entretanto, o valor do trabalho de Goffman se deve à sua intensa humanidade
individual e a seu estilo, não à sua relação sistemática com alguma teoria social ou à
sua tentativa de avançar tal teoria (Freidson, 1983, p. 359). Conforme o próprio
Goffman (1981):

Minha crença é de que a forma de estudar algo é começar tratando a questão como
um sistema, em si próprio e no seu próprio nível, e ainda que esse viés seja
encontrado na literatura estruturalista contemporânea, há uma fonte não relacionada,
da qual eu bebi, no funcionalismo de Durkheim e Radcliffe-Brown. É esse viés que me
levou a tentar tratar as interações face a face como um domínio em si próprio
(Goffman, 1981, p. 62, grifos meus).

Portanto, com isso, o autor se referia ao estrutural-funcionalismo de Durkheim e


Radcliffe-Brown, não à versão contemporânea, como, por exemplo, a teoria geral da
ação de Talcott Parsons. Para Trajano Filho (2008), desde suas primeiras obras,
Goffman estava interessado em decifrar a ordem da interação e estabelecer
homologias entre as características dessa ordem da interação no nível microssocial e
a ordem social no nível macrossocial. Sendo assim, a unidade básica de análise
deveria incorporar “o contexto, as barreiras espaciais e temporais que o circunscrevem
e as regulações ou especificações da conduta por ela prescrita, como as formas
ritualizadas de deferência, do saber portar-se e do envolver-se” (Trajano Filho, 2008,
p. 170). Então, à maneira de Durkheim e Radcliffe-Brown, o autor tomará as
interações face a face como uma cerimonia, um rejuvenescimento e reafirmação
expressivos dos valores morais da sociedade. Cronologicamente, as principais obras
de Goffman são: The presentation of self in everyday
life (1959),Asylums (1961), Encounters(1961), Behavior in public
places(1963), Stigma(1963), Interaction ritual(1967), Strategic
interaction(1969) Relations in public(1971), Frame analysis(1974), Gender
advertisements(1979), Forms of talk (1981).

O asilo

O livro Asylums: essays on the social situation of mental patients and other inmates,
originalmente publicado em 1961, foi traduzido para o português como Manicômios,
prisões e conventos, em 1974.Entre 1954 e 1957, enquanto era professor do
Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA),
Goffman foi membro visitante do Laboratório de Estudos Socioambientais do Instituto
Nacional de Saúde, em Bethesda, Maryland. Foram três anos como observador
participante nos setores de pesquisas farmacológicas e de esquizofrenia do National
Institutes of Health Clinical Center (Kunze, 2009, p. 278). No período de 1955 a 1956,
efetuou um trabalho de campo nas enfermarias do hospital psiquiátrico Saint
Elizabeth, em Washington, D.C, instituição federal com cerca de 7.000 pacientes, com
o intuito de entender o mundo social dos internos de um hospital psiquiátrico, “na
medida em que esse mundo é subjetivamente vivido por ele” (Goffman, 2007, p. 8). O
resultado desse estudo foi desdobrado em quatro artigos, sendo que os dois primeiros
foram publicados separadamente, e compilados, em 1961, sob o título Asylums(Silva,
2013, p. 8). O livro está dividido em quatro partes, respectivamente: As
características das instituições totais: introdução; o mundo do internado; o mundo
da equipe dirigente; cerimônias institucionais; restrições e conclusões. A carreira
moral do doente mental: a fase do pré-paciente; a fase de internado. A vida íntima
de uma instituição pública[parte I]: introdução; agir e ser; ajustamentos primários e
secundários [parte II]: a vida íntima do hospital: fontes; locais; recursos; estrutura
social; conclusões. O modelo médico e a hospitalização de doentes mentais: notas
sobre as vicissitudes das tarefas de reparação; conclusão.

No prefácio do livro, o autor argumenta que qualquer grupo de pessoas – prisioneiros,


primitivos, pilotos ou pacientes – desenvolve uma vida própria que se torna
significativa, razoável e normal, desde que você se aproxime dela e submeta-se à
companhia de seus participantes. Sobre as limitações do método desenvolvido na
pesquisa, Goffman deixa claro que não ficou nominalmente internado junto aos
pacientes e que a interpretação dada sobre eles é parcial, embora justificável, pois
quase toda a literatura especializada sobre os doentes mentais é escrita a partir do
ponto de vista daqueles que estão, socialmente, do outro lado, isto é, pelos psiquiatras
(p. 8). Na nota introdutória, Goffman define uma “instituição total” como um local de
residência e trabalho onde um número grande de indivíduos, em situação semelhante,
encontra-se separado da sociedade mais ampla por considerável tempo, com uma
vida fechada e formalmente administrada. Tomando as instituições totais de modo
geral e, especificamente, os hospitais para doentes mentais, o trabalho refere-se
fundamentalmente ao mundo do internado, muito pouco ao mundo da equipe dirigente.
O interesse central do autor, portanto, é chegar a uma versão sociológica da estrutura
do self,a partir da situação do internado (p. 11). Para isso, Goffman estabelecerá uma
interlocução com sociólogos e outros pesquisadores que dissertaram sobre prisões,
campos de concentração, escolas militares e conventos, dentre eles, autores como
Émile Durkheim, Eugen Kogon, Elie Cohen, Bruno Bettelheim, Kirson Weinberg (Silva,
2013, p. 8).

Para fins heurísticos, os quatro artigos serão apresentados individualmente, seguindo


a estrutura argumentativa do autor.

As características das instituições totais

Os estabelecimentos sociais, ou instituições, são locais (salas, conjunto de salas,


edifícios, fábricas) onde se desenvolve um determinado tipo de atividade. Toda
instituição tem tendências de “fechamento” (o estabelecimento conquista parte do
tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um “mundo”), mas, na
sociedade ocidental, algumas são muito mais “fechadas” do que outras. Seu
“fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o
mundo externo. Para tais estabelecimentos (asilos, hospitais, prisões, quartéis,
conventos) o autor dará o nome de “instituições totais”, a fim de sistematizar as
características gerais e comuns que as estruturam (p. 16). O aspecto central das
instituições totais pode ser descrito como a ruptura das barreiras que comumente
separam as três principais esferas da vida da sociedade moderna (o descanso, o lazer
e o trabalho). Em tais instituições, todos esses aspectos da vida são realizados no
mesmo local, sob uma única autoridade, na companhia imediata de outros
coparticipantes e com um plano racional geral, supostamente planejado para atender
aos objetivos oficiais da instituição (p. 18). O fato básico das instituições totais é o
controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática. Para isso,
existe uma divisão básica entre internados e equipes dirigentes. Geralmente, os
internados vivem na instituição e têm contato restrito com o mundo externo, enquanto
a equipe dirigente está integrada ao mundo externo. E assim, institucionalmente,
formam-se dois mundos sociais e culturais diferentes, que caminham paralelamente
juntos, com alguns pontos de contato oficial, mas com pouca interpenetração. Cada
agrupamento estabelece uma relação limitada e estereotipada com o outro – a equipe
dirigente vê os internados como amargos, reservados e não merecedores de
confiança, e os internados veem os dirigentes como condescendentes, arbitrários e
mesquinhos. Os participantes da equipe dirigente se sentem “superiores e corretos”, e
os internados se sentem “inferiores, fracos, censuráveis e culpados” (p. 19). O autor
não formula, em termos formais, o seu problema sociológico, mesmo assim, uma
sugestão foi apresentada no final do artigo: [como] os problemas sociais nas
instituições totais [são condicionados] pela estrutura social subjacente a todas elas (p.
108).

Depois de sugerir os aspectos comuns das instituições totais, Goffman analisará tais
estabelecimentos a partir de duas perspectivas: “o mundo do internado” e “o mundo da
equipe dirigente” (p. 23). Para o internado, o sentido completo de estar “dentro” da
instituição não existe independentemente do sentido específico de estar “fora” de tal
estabelecimento. Consequentemente, as instituições totais criam e mantêm um tipo
particular de tensão entre o mundo institucional e o mundo doméstico, e assim,
reiteradamente, usam essa tensão persistente como uma força estratégica de controle
dos indivíduos (p. 24). Quando o internado chega à instituição total, inicia-se o
processo de mortificação do self, ou seja, um processo sistemático de supressão da
“concepção de si mesmo” e da “cultura aparente” que traz consigo, após uma série de
degradações, humilhações e profanações ao self. Esses ataques regulares
ao self advêm do “despojamento” do seu papel na vida civil mediante a imposição de
barreiras de contato com o mundo externo, do “enquadramento” às regras
institucionais de conduta, do “despojamento de bens” e consequentemente da perda
dos “equipamentos de identidade”, além da “exposição contaminadora” de um dossiê
que profana a autonomia do território do self. Concomitante ao processo de
mortificação, a equipe dirigente instruirá como o internado deve orientar-se na
instituição. Esse conjunto de instruções formais e informais constituirá o “sistema de
privilégios” da instituição (p. 49). Se o internado seguir as “regras da casa”, a equipe
dirigente lhe dará um pequeno número de prêmios em troca da sua obediência, mas
se descumpri-las, o interno é castigado pela sua desobediência. Diante da influência
reorganizadora, o internado desenvolve dois mecanismos de adaptação às regras da
instituição: pelos “ajustamentos primários”, quando contribui cooperativamente com as
atividades institucionais, e pelos “ajustamentos secundários”, quando emprega meios
ilícitos, não autorizados e não formais, a fim de “escapar” da realidade que a
organização lhe impõe. Os ajustamentos secundários dão ao internado uma prova
evidente de que “é ainda um homem autônomo, com certo controle de seu ambiente, e
às vezes [isso] se torna quase uma forma de abrigo para o self, um coringa, em que a
alma parece estar alojada” (p. 54).

O sistema de privilégios (principal esquema de reestruturação do self) e o processo de


mortificação do selfconstituem as condições institucionais que o internado é obrigado a
adaptar-se (p. 59). Tais “táticas de adaptação” formam-se a parir dos ajustamentos
primários e ajustamentos secundários, ou da combinação de ambos, em diferentes
fases da carreira moral do internado e são classificadas como: “afastamento da
situação” (desatenção e abstenção); “intransigência” (não cooperação com a
instituição); “colonização” (consideração da vida institucional como desejável em
relação às experiências ruins do mundo externo); “conversão” (aceitação da
interpretação oficial); “viração” (combinação de várias táticas visando evitar
sofrimentos físicos e psicológicos); e “imunização” (o mundo da instituição tornar-se
um mundo habitual e sem novidades). Desse modo, a partir dessas estratégias, o
internado vai reorganizado minimamente o seu self. Todavia, o processo contínuo de
mortificação e de reorganização do selfgera no indivíduo uma sensação de fracasso,
um sentimento “de tempo perdido” e de angústia diante da expectativa de retorno à
sociedade. Essa apreensão origina-se tanto do “status proativo” – o internado sabe
que sua posição social intramuros é radicalmente diferente do que era e,
consequentemente, sabe também que sua posição social no mundo externo nunca
mais será a mesma – quanto da “desculturação” – o internado se vê diante da
impossibilidade de adquirir os hábitos exigidos pela sociedade mais ampla.

O autor prossegue, só que agora, a partir do ponto de vista da equipe dirigente. O


“mundo da equipe dirigente” é atravessado pela contradição entre o que a instituição
realmente faz e aquilo que oficialmente a instituição deve dizer que faz (p. 70). Nesse
“mundo”, a equipe dirigente precisa impor obediência ao internado, mas com a
impressão de que os padrões humanitários são mantidos e de que os objetivos
racionais da instituição estão sendo operacionalizados. Seguindo o “esquema de
interpretação” automático da instituição, assim que o internado é admitido, a equipe
dirigente o define como o tipo de pessoa que a instituição objetiva tratar, em seguida,
a equipe dirigente estabelece um tipo de comportamento “legítimo” que se ajuste às
regras da instituição. À primeira vista, “os dois mundos” (internados e equipe dirigente)
mantêm uma distância social e têm somente uma interação limitada aos “padrões de
deferência” formais da instituição (“impermeabilidade”). Na prática, entretanto,
internados e membros da equipe dirigente estabelecem relações, até de modo ilícito,
pessoal e solidário, quando existe um compromisso conjunto em relação à instituição
(“permeabilidade”). Esse conjunto de atividades e rotinas da instituição “comuns a
todos” é denominado pelo autor como “cerimonias institucionais” (p. 85). Tais
cerimônias, festa anual, confecção de jornais internos, eventos esportivos, cerimônias
religiosas, apresentação teatral, são vistas como a possibilidade do internado
“reaprender” a viver em sociedade – e “voluntariamente”. Enfim, o mundo da
instituição é marcado pelo choque entre “impermeabilidade” (supressão das
influências sociais do mundo externo) e “permeabilidade” (manutenção dos padrões
sociais no mundo interno), e isso, de acordo com Goffman, contribui para a
compreensão das relações entre uma instituição total e a sociedade mais ampla, que a
mantém e que a tolera (p. 104). Enfim, uma instituição total apresenta-se como uma
realidade fechada e formalmente administrada, onde todos os aspectos da vida são
realizados no mesmo local, sob uma única autoridade, na companhia imediata de
outros coparticipantes, com um plano racional geral. Em contrapartida, o contexto
básico das atividades diárias da instituição é atravessado pela contradição e
irracionalidade da ação. O contato entre “o mundo dos internados” e “o mundo da
equipe dirigente” é marcado por um sistema de representações automáticas,
padronizadas, limitadas e estereotipadas do “outro”.

A carreira moral do doente mental


O conceito de “carreira”, em um sentido mais amplo, é definido pelo autor como
“qualquer trajetória percorrida por uma pessoa durante sua vida” (p. 111). O termo
admite a perspectiva da “história natural”: os resultados singulares são esquecidos,
considerando-se somente as mudanças temporais que são básicas e comuns aos
participantes de uma determinada categoria social. O conceito de carreira, além de
não ser valorativo, refere-se aos aspectos subjetivos e objetivos, pois está ligado tanto
aos assuntos íntimos, como a imagem do self, quanto à posição oficial, relações
jurídicas e estilo de vida, e é parte de um complexo institucional acessível ao público.
Sendo assim, o termo permite que andemos do público para o privado, e vice-versa,
entre o selfe sua sociedade significativa. Este artigo, segundo Goffman, é um exercício
no estudo institucional do self, cujo principal interesse relaciona-se aos aspectos
“morais” da carreira do “doente mental” (p. 112). E, em vista disso, [quais seriam] as
mudanças que essa carreira [moral] provoca no selfda pessoa e em seu esquema de
imagens para julgar a si mesma e aos outros (p. 112). O autor tomará a categoria
“doente mental” somente a partir do processo se hospitalização, não no sentido
psicopatológico do termo. O “comportamento doentio” e a “loucura” atribuída ao
doente mental é, em grande parte, resultado da distância social entre os “doentes” e
aqueles que lhes atribui isso, e assim, a situação em que o paciente foi colocado,
fundamentalmente, não é um produto da doença mental (p. 113). Quaisquer que
sejam os refinamentos dos diagnósticos psiquiátricos, o hospital psiquiátrico não é
significativamente diferente de qualquer outra comunidade (p. 113). Em seguida,
Goffman analisará as etapas da carreira moral do doente mental: o período anterior à
admissão, a fase de pré-paciente, e o período de internamento no hospital
psiquiátrico, a fase de internado (p. 114).

A carreira moral do doente mental inicia-se com a denúncia de “transgressão” que


acarretará na hospitalização. Na fase de pré-paciente, o individuo ingressa na
instituição, voluntariamente ou involuntariamente, e a partir disso, ele é expropriado de
suas relações e direitos com o mundo externo, tornando-se um paciente, não mais um
civil. Portanto, os primeiros aspectos morais dessa carreira são os sentimentos de
abandono, deslealdade e amargura. Comumente, o pré-paciente sente-se “perturbado”
por “estar perdendo a cabeça” e isso o leva a uma interpretação desintegradora de si
mesmo, ainda que essa autoimagem se baseie em estereótipos culturais e sociais
mais amplos. Em seguida, já na instituição, um circuito de agentes – tutor, denunciante
e mediadores – engendra uma “coalização alienadora” sobre o self do pré-paciente,
que, por sua vez, se sente apenas como uma terceira pessoa do processo, traído e
enganado em relação à pessoa mais próxima e ao denunciante (p. 119). Como a
“transgressão” se tornou um fato social público, a traição testemunhada é seguida de
uma “cerimônia de degradação”, uma extensa ação reparadora diante da testemunha,
a fim de que possa restaurar sua honra e seu valor social (p. 120). Também, antes da
hospitalização, os médicos da equipe dirigente constroem a “história de caso” que é
atribuída ao passado do paciente. O último passo na carreira do pré-paciente pode
incluir a compreensão, justificada ou não, de que foi abandonado pela sociedade e
perdeu as relações sociais com o mundo externo. Inicialmente, na fase de internado, o
paciente adota a estratégia do “silêncio”, “ausência” e “anonimato”, o que sugere certo
apego ao “resto do seu passado”. O recém-internado percebe que está despojado de
suas defesas, satisfações e afirmações usais, e está sujeito a um conjunto
relativamente completo de “experiências de mortificação”, como restrição de
movimento livre, vida comunitária, autoridade difusa. Depois, com a “aceitação”,
apresenta-se para a interação convencional na comunidade hospitalar e, sobretudo,
aprende a orientar-se no “sistema de enfermarias”.

O sistema de enfermaria funciona como um “sistema de socialização” da instituição: se


obedecer às normas, o internado é “recompensado” com pequenas satisfações
secundárias, caso contrário, perde o acesso a esses “privilégios”. Com o tempo, o
internado desenvolve um esquema de reorganização da autoimagem do selfa partir de
“histórias tristes”, com o reforço de ficção, sobre o seu passado. Com isso, Goffman
chama a atenção para o fenômeno de “negação da racionalidade do paciente” que
ocorre quando a equipe dirigente desmente as histórias tristes dos pacientes com as
informações contidas no seu dossiê. No hospital psiquiátrico, a equipe dirigente tem o
“mandato burocrático oficial” para modelar a concepção que o indivíduo tem de si
mesmo (p. 128). Consequentemente, o internado aceita ou finge que aceita a
interpretação do hospital. Quando o paciente aprende a sobreviver às condições
iminentes de exposição, mesmo agindo de uma forma que a sociedade considera
como destrutiva, os vínculos associativos com essa mesma sociedade se
enfraquecem e transforma-se em “fadiga moral” (p. 140). O “doente mental”, ao ser
internado, entra em um ciclo de socialização marcado pela alienação e mortificação. O
cotidiano, como modo de empregar o tempo, é sistemicamente configurado pela
equipe dirigente de modo burocrático e “racional”, embora a “razão” lhe seja negada.
Os “sistemas de enfermarias” são espaços de sociabilidade, de mobilidade
institucional, e, sobretudo, de reorganização mínima da autoimagem. A carreira moral
inclui uma sequência padronizada de mudanças no self, que se estende dentro dos
limites de um sistema institucional. Desse modo, o selfnão é uma propriedade da
pessoa a que é atribuído, mas reside no padrão de controle social que é exercido pela
pessoa e por aqueles que a cercam (p. 142). Se essa disposição social constitui o self,
constitui também como o indivíduo vive e vê o/s “mundo/s”.  

A vida íntima de uma instituição pública

Parte I: Introdução

Os vínculos que ligam o indivíduo aos diferentes tipos de instituições sociais têm
certas propriedades gerais e comuns, como compromisso e adesão às regras. Na
sociedade ocidental, o acordo formal ou o contrato é um símbolo clássico dessa forma
de associação. Com uma assinatura, “celebra-se os vínculos que liga e os limites
reconhecidos daquilo que liga” (p. 148). Por trás de cada contrato existem suposições
não contratuais a respeito do caráter dos participantes (p. 148). Cientes do que
“devem” e “não devem”, os participantes concordam quanto à validade geral dos
direitos e obrigações contratuais e quanto à legitimidade dos tipos de sansão para o
rompimento do contrato. Quem aceita um contrato supõe que seja uma pessoa de
determinado caráter e forma de ser. Se todo vínculo supõe uma concepção ampla da
pessoa ligada a ele, “devemos ir adiante e perguntar como o indivíduo enfrenta essa
definição de si mesmo” (p. 149). Para isso, Goffman perscrutará os padrões de
comportamento (modos de “agir” e “ser”) segundo um tipo particular de instituição
social, as “organizações formais instrumentais”, localizadas nos limites de um único
edifício ou complexo de edifícios (p. 149). Como ponto de partida, uma “organização
formal instrumental” pode ser definida como um sistema de atividades
intencionalmente coordenadas e destinadas a provocar alguns objetivos explícitos e
globais. Essas organizações, principalmente as “muradas”, têm uma característica
singular: parte das obrigações do indivíduo é participar visivelmenteda atividade da
organização, o que exige uma mobilização da atenção, com esforço muscular e certa
submissão do selfà atividade como símbolo de compromisso e adesão do indivíduo (p.
150). Uma organização formal instrumental só sobrevive por ser capaz de apresentar
contribuições úteis da atividade de seus participantes. Entretanto, esse tipo de
estabelecimento social não se limita apenas a usar a atividade de seus participantes –
a organização formal instrumental também determina quais são os padrões
oficialmente adequados de bem-estar, valores comuns, prêmios e castigos. Portanto,
nas disposições sociais de tais organizações, existe não só uma concepção completa
de participante, mas uma concepção dele como ser humano (p. 153). A organização
estipulará “o que fazer” e “por que fazer” e, consequentemente, tudo “o que se pode
ser”. Participar de determinada atividade com o espírito esperado (“fitting in”) é aceitar
que se é um determinado tipo de pessoa que vive em um tipo determinado de mundo,
enfim, toda organização inclui também uma “disciplina do ser”, uma obrigação de ser
de um determinado mundo.

Quando um indivíduo contribui, cooperativamente, com as atividades exigidas por


cada instituição social, e sob as condições exigidas pela sociedade, se transforma em
um colaborador, tornando-se um participante “normal”, “programado” e “interiorizado”.
Oficialmente deve ser não mais e não menos do que aquilo para o qual foi preparado,
e é obrigado a viver em um mundo, cuja realidade lhe é afim. Essa adequação regular
à instituição refere-se aos ajustamentos primários. Em seguida, Goffman estabelece
outro termo – os ajustamentos secundários– que define qualquer disposição pelo qual
o participante de uma organização emprega meios ilícitos ou com fins não autorizados,
ou os dois, como modo de “escapar” daquilo que a organização supõe que deve fazer
e daquilo que deve ser, e assim, o indivíduo se isola do papel e do selfque a instituição
admite para ele (p. 160). Se tomarmos o espaço físico onde são praticados os
ajustamentos secundários e a região de origem dos “praticantes”, o centro da atenção
se estende do indivíduo para os indivíduos. Considerando-se uma organização formal
instrumental como um estabelecimento social, o ajustamento secundário do indivíduo
se integraria ao conjunto total de tais ajustamentos que todos os participantes da
organização mantêm coletivamente. Tais práticas, em conjunto, abrangem o que pode
ser chamado de vida íntima da instituição, o que corresponderia ao “submundo” da
instituição (p. 167). Os ajustamentos secundários, fundamentalmente contidos, assim
como os ajustamentos primários, categorizam-se pelo encaixe (“fitting in”) nas
estruturas institucionais existentes, sem pressões radicais. Seguindo o ponto de vista
estrutural, contrário à sociopsicologia, Goffman questiona “qual o caráter das relações
sociais exigidas para manutenção da prática dos ajustamentos secundários” (p. 168).

De acordo com a localização do praticante na hierarquia da organização, os


ajustamentos secundários – práticas presentes na vida íntima da organização formal
instrumental – se diferenciam. Os participantes com posição inferior têm menos
compromisso e ligação emocional com a organização e, por conseguinte, menos
adesão às práticas de ajustamentos secundários. Já os participantes com posição
mais elevada no sistema de enfermarias usam de maneira mais ampla tais
ajustamentos. Em tese, as camadas médias da organização são as que menos
adotam os ajustamentos secundários, porque elas exemplificariam os valores
“edificantes” e “inspiradores” da organização. No mais, o componente hierárquico do
sistema de enfermarias funciona também como um sistema de diferenciação das
características morais dos próprios pacientes (p. 169). Todas as condições que
tendem a desenvolver uma vida íntima ativa dentro de qualquer instituição também
estão presentes no hospital para doentes mentais. Instituições como os hospitais
psiquiátricos são “totais”, pois o internado vive todos os aspectos de sua vida no
edifício do hospital, na companhia de outros indivíduos igualmente separados do
mundo mais amplo. Tais estabelecimentos contêm duas categorias de participantes –
os internados e a equipe dirigente. Fundamentalmente, os hospitais públicos para
doentes mentais não funcionam de acordo com a doutrina psiquiátrica, mas segundo o
“sistema de enfermarias”. Esse esquema de disciplina delimita um conjunto
relativamente completo de meios e fins que orientam os pacientes. Dentro do sistema
de enfermarias, muitas atividades dos pacientes tornam-se efetivamente ilícitas.

Goffman, a partir daqui, se deterá nas fontes, locais, recursose estrutura social que os


pacientes empregam em seus ajustamentos secundários (pp. 173-245). Na vida íntima
do hospital psiquiátrico, as fontes predominantes são: as “substituições” (utilização de
artefatos disponíveis para um fim não oficial); e a “exploração do sistema” (exploração
da rotina completa das atividades oficiais da instituição para fins particulares). Tais
práticas transcorrem em locais como: os “espaços fora de alcance” (proibidos); os
“locais livres” (com vigilância e restrições reduzidas); os “territórios de grupos” (locais
sob o comando de um grupo específico); e o “território pessoal” (espaço íntimo criado
no interior de um local livre da instituição). Os ajustamentos secundários integram
recursos como: os “esconderijos” portáteis ou fixos (usados para esconder bens
adquiridos legitimamente nos ajustamentos primários); o “sistema de transportes”
(transporte dos bens para o esconderijo); e o “sistema de comunicação” (circulação de
mensagens e expressões faciais a partir das interações face a face e via sistema
oficial de informação). O sistema de ajustamentos secundários configura-se por meio
de uma “estrutura social” da instituição. Regularmente, a condição social pela qual um
indivíduo incorpora o esforço do “outro” para aumentar a amplitude de seus
ajustamentos secundários baseia-se: na força não racionalizada de “coerção
particular” (o coagido obedece involuntariamente); por meio de “intercâmbio social” (o
outro contribui em troca de bens materiais e afetivos); ou pelo “gesto cerimonial”
(através de relações particulares extraoficiais e de relações de proteção oficiais). Em
todo estabelecimento social existem expectativas quanto à adequação do participante.
Segundo o autor, entretanto, verifica-se que os participantes se recusam, de alguma
forma, a aceitar a interpretação oficial quanto ao tipo de selfe de mundo que eles têm
de si mesmo. “Sempre que se impõem mundos, se criam submundos” (p. 246). O
estudo da vida íntima em instituições totais restritivas tem uma característica
específica. Quando a existência é reduzida a um mínimo, compreende-se o que os
indivíduos fazem com os aspectos mais importantes de sua vida. Esconderijos, meios
de transporte, locais livres, territórios, bens para intercâmbio social e econômico –
essas são algumas das exigências mínimas para a construção de uma vida.
Comumente, tais coisas são aceitas sem discussão como parte do ajustamento
primário de qualquer indivíduo, mas, se essas mesmas coisas são retiradas da vida
oficial, consequentemente, surgirá tentativas para ressignificá-las. O estudo das
instituições totais também sugere que as organizações formais instrumentais dispõem
de locais padronizados de vulnerabilidade, por exemplo, depósitos, cozinhas,
enfermarias, ou seja, os cenários onde surgem os ajustamentos secundários.

O hospital psiquiátrico constitui um caso específico de estabelecimentos em que a vida


íntima prolifera-se. Os doentes mentais são indivíduos que, no mundo externo,
transgrediram a ordem cerimonial e por isso foram submetidas à ação psiquiátrica.
Muitas vezes, o pré-paciente “transgrediu” as propriedades situacionais de um
ambiente, e essa má-conduta se traduz em uma rejeição moral da sociedade mais
ampla. Tanto a estigmatização do doente mental quanto a hospitalização involuntária
são os meios pelos quais a sociedade moderna responde a essas ofensas contra a
adequação “regular” do comportamento. Do ponto de vista do paciente, ao recusar-se
a seguir as regras da instituição, o internado, consequentemente, discorda da
interpretação que a instituição dá de quem ele é. Mas, de acordo com a equipe
dirigente, isso é expressão de alienação, um tipo de sintomatologia que a instituição
deve tratar como “psicose”. Em resumo, a hospitalização cerceia todas as manobras
do paciente de expressar sua recusa à adequação institucional (p. 247). Entre os
diferentes tipos de ajustamento secundário, destacam-se as “atividades de evasão”,
pois permite ao indivíduo esquecer-se de si mesmo, desligar-se da “realidade”
hospitalar, e assim “fugir” para outro mundo (p. 250). Grosso modo, a vida íntima de
um hospital público apresenta-se como um “submundo” do mundo oficial da instituição
– “mundos” com múltiplas realidades paralelas. Esse submundo tem sua própria
estrutura social, seus artefatos, cenários e regras. É do sistema de enfermarias que
vem o substrato fulcral não apenas do “mundo”, mas do “submundo” ilícito da
instituição. E assim, um dia depois do outro, estratégia seguida de estratégia, o
internado aprende a se orientar entre os dois mundos.  

 O modelo médico e a hospitalização de doentes mentais

Em toda sociedade, existem maneiras específicas pelas quais dois indivíduos se


relacionam. Cada um desses esquemas de “contato” serve como uma fonte de
identidade, um guia para conduta ideal e como uma base para solidariedade e
separação. Cada esquema inclui um conjunto de suposições interdependentes que se
ajustam para formar um modelo. Na sociedade ocidental, uma forma importante de
interação entre dois indivíduos é a relação “servidor” e “servido”. Ao examinar as
suposições, modelos e ideais supostos nessa relação ocupacional, “penso que
podemos compreender alguns dos problemas da hospitalização psiquiátrica” (p. 264).
Geralmente, as tarefas ocupacionais especializadas distribuem-se em duas
categorias: uma em que profissional “encontra o público” por meio de seu trabalho, e
outra em que isso não se repete e o trabalho serve apenas para os participantes de
sua organização de trabalho. Entre as tarefas que exigem que o profissional encontre
o público, dois tipos se diferenciam: um em que o público é uma sequência de
indivíduos, e outro em que o público consiste em uma sequência de audiências. Em
todos os casos, as tarefas que exigem que o profissional encontre o público variam
quanto ao grau em que tais serviços são apresentados ao público como um “serviço
pessoal”, isto é, como uma assistência desejada por quem recebe. Idealmente, uma
“profissão de serviço pessoal” é definida como uma atividade em que o profissional
realiza um serviço pessoal e especializado para um conjunto de indivíduos, cujo
serviço exige comunicação direta e pessoal (p. 264). Uma forma tradicional de
classificar as profissões de serviço pessoal é pelo “sistema de honrarias”. No “topo”
estão aqueles que têm uma especialização que inclui uma competência racional e
demonstrável, e que não pode ser adquirida pelo indivíduo que é “servido” (cliente).

Neste artigo, Goffman pretende “considerar [quais são] as suposições sociais e morais


subjacentes ao trabalho do serviço especializado” (p. 265). Em nossa sociedade, os
ideais subjacentes ao serviço especializado estão enraizados no fato de que o
“servidor” tem um complexo sistema físico a ser consertado, construído ou
“remendado” – e esse sistema físico é o objeto ou o bem pessoal do “cliente”, ou seja,
do servido (p. 265). Lidamos com um triângulo – profissional, objeto, proprietário – e
um triângulo que desempenhou um papel histórico na sociedade ocidental. Toda
sociedade tem servidores especializados, mas nenhuma deu a esse serviço tanto
peso quanto a nossa – “vivemos em uma sociedade de serviços”. O tipo de relação
social que interessa ao autor é aquele em que os indivíduos (clientes) se colocam nas
mãos de outros indivíduos (servidores). Idealmente, o cliente traz para essa relação
um respeito pela competência técnica do servidor, traz também gratidão e um
honorário. Por sua vez, o servidor traz uma competência esotérica e empiricamente
eficiente, bem como disposição para colocá-la ao dispor do cliente, com discrição
profissional e seriedade voluntária, além de um desinteresse disciplinado pelos outros
problemas do cliente, tratando-o com civilidade não servil. Enfim, esse conjunto todo
constitui o serviço de reparação (p. 266). Os serviços de reparação, ou de conserto,
têm sua própria configuração social. O servidor tem uma concepção de si mesmo
como um especialista desinteressado, como um “servidor da humanidade”, crente em
sua competência racional, empírica e mecanicista. Portanto, o cliente é
“recompensado” por confiar em um servidor especializado, técnico e autônomo em
relação ao seu trabalho. Por conseguinte, a interação entre o servido e o servidor é
bem-estabelecida, com componentes técnicos, contratuais e sociais. O ciclo de
“reparação”, baseado no modelo histórico da “oficina de consertos”, estrutura-se
assim: o servido define o bem ou objeto para o servidor repará-lo; o servidor então
inicia o processo de observação, diagnose, receita e tratamento; e encerra-se quando
o bem ou objeto está “como novo”. Gradualmente, a relação entre servido e servidor
transformou-se em uma tríade social mais complexa – cliente, servidor e comunidade
– e essa “trinca” tornou-se a base da noção de serviço.

O autor assim avança para a “versão médica” do modelo de serviços de consertos (pp.
277-310). O ato de entregar o corpo para o servidor médico e ao seu tratamento
racional e empírico é um dos pontos mais complexos do serviço. Se o gradual
estabelecimento do corpo como um “bem” que pode ser “consertado” – um tipo de
máquina físico-química – é muitas vezes citado como um triunfo do “espirito científico
secular”, em contrapartida, tal triunfo é causa e efeito da crescente demanda por todos
os tipos de serviço especializado. O principal problema de submeter à medicina ao
esquema de serviço é que, mesmo com os esforços das associações médicas, a
prática médica afastou-se do ideal clínico, com clientela não organizada, para
transformar-se em uma repartição burocrática de serviços. Em seguida, o autor
estende o problema da aplicação do modelo de serviço especializado, em sua versão
médica, à psiquiatria institucional. Quando o pré-paciente chega para sua primeira
entrevista de admissão, os médicos aplicam imediatamente o modelo se serviço
médico. Quaisquer que sejam as condições sociais do indivíduo, independente do
caráter específico de sua “perturbação”, ele pode ser tratado nesse ambiente como
alguém cujo problema pode ser enfrentado, ainda que “não tratado”, pela aplicação de
uma única interpretação psiquiátrica técnica. Um dos problemas na aplicabilidade do
modelo de serviço à medicina está no fato de que parte do mandato oficial do hospital
psiquiátrico público é “proteger” a comunidade do perigo e dos aborrecimentos de
certos tipos de má-conduta. Entretanto, cada vez que o hospital psiquiátrico atua como
“albergue provisório”, destinado a lidar com indivíduos que não podem ficar na
comunidade externa, o modelo de serviço é desmentido.

Outro problema do modelo de serviço refere-se ao caráter, sobretudo involuntário, da


admissão em um hospital psiquiátrico. Tal como ocorre com a atenção médica exigida
pelos muitos jovens ou pelos muitos velhos, existe um esforço para empregar o
principio do “tutor” e assimilar a ação tomada pela pessoa mais próxima à ação
tomada pelo paciente. Embora alguns pacientes involuntários reconheçam o erro de
sua resistência à hospitalização, de modo geral, o paciente ressente-se com aqueles
entes mais próximos. Mas, comumente, uma primeira entrevista com o servidor
(médico) basta para afirmar a crença do indivíduo na “racionalidade” e na “boa-
vontade” da sociedade em que vive. Como resposta à estigmatização e à privação
social da hospitalização, o internado frequentemente desenvolve certa alienação em
relação à sociedade civil. Comumente, a “patologia” que chama a atenção para a
condição de “doente mental”, a principio, é o comportamento dito como “inadequado”
em uma dada situação. Contudo, o julgamento de determinado ato como apropriado
ou inapropriado é frequentemente leigo, porque não existe um “mapeamento técnico”
que defina todos os padrões de comportamento de uma sociedade.
Consequentemente, o julgamento torna-se etnocêntrico, pois o servidor julga o
comportamento de indivíduos segundo o seu ponto de vista cultural e seus interesses
políticos. Na psiquiatria, existe um esforço formal para agir como se o problema fosse
de tratamento, não de julgamento moral, mas isso não é mantido de forma coerente. É
difícil manter a neutralidade ética na prática da psiquiatria, pois a perturbação do
paciente está intrinsicamente ligada a uma forma de agir que ofende as
“testemunhas”. Em “nossa sociedade”, a maneira padronizada de tratar tais ofensas é
castigar o “transgressor”, negativa e corretivamente. Portanto, a sociedade atua com
essa suposição em todos os itens, em todas as minúcias da vida. Sem algum
equivalente funcional, seria impossível a manutenção da ordem social (p. 296).

Então, o psiquiatra e o paciente estão condenados pelo contexto institucional, a uma


relação falsa e contraditória, pois os hospitais psiquiátricos institucionalizaram uma
espécie de farsa da relação de serviço especializado (p. 299). Na maioria das vezes, a
ação médica é apresentada ao paciente como um “serviço individual”, mas é a
instituição que recebe o serviço, visto que a especificidade da ação se ajusta àquilo
que favorece o controle administrativo. Em suma, sob o “disfarce” do modelo de
serviço médico, a ação de um hospital psiquiátrico sob os pacientes é legitimada. Do
ponto de vista da instituição, o psiquiatra deve oferecer seus serviços porque o doente
mental “clama”, voluntária ou involuntariamente, pelo “tratamento”. Os ajustamentos
do paciente em relação à instituição são apenas os “sintomas” da sua enfermidade. O
“tratamento”, prescrito sob a forma de “arregimentação” (dormitório, cela de
isolamento, remédios, terapias, atividades institucionais), serve como um “mecanismo
de reparo” do doente. Esses aspectos da profissão do médico psiquiatra orientam-se
pela “ideologia institucional”. O que a sociedade vê como mau comportamento, o
médico tem que classificar como “patologia”. Essa mesma patologia requer
tratamento, pois significa a “incapacidade” do paciente para viver em sociedade. O
sucesso da “cura” é resultado de um trabalho “eficaz” do hospital, mas o fracasso
refere-se à perturbação da doença do paciente. Enfim, para sair do hospital ou para
manter-se “bem” na instituição, os doentes mentais têm de demonstrar que aceitam o
lugar que lhes foi atribuído, apoiando o papel profissional daqueles que os mantêm em
tais condições. Essa “servidão moral auto-alienadora”, que talvez justifique porque os
internados tornam-se mentalmente confusos, é auferida graças à tradição da relação
de serviço especializado, principalmente em sua versão médica. No final das contas,
“os doentes mentais são esmagados pelo peso de um ideal de serviço que torna a
vida mais fácil para a sociedade” (pp. 310-312). Seguindo as pistas dadas pelo o
autor, a “ordem social” forma-se a partir da interação entre os indivíduos de uma
mesma sociedade. Cada um desses “esquemas de contato” serve como uma fonte de
identidade, um guia para conduta ideal, padrões de comportamento, e também como
uma base para solidariedade ou para exclusão. Cada esquema contém um conjunto
de suposições interdependentes que se ajustam e tornam-se “modelos” (p. 263). Cada
modelo contém um sistema de tipificações automáticas que orientará a vida, sobretudo
“cotidiana”, dos indivíduos. Na sociedade ocidental, esses esquemas diferenciam-se
pela institucionalização do conhecimento dito “especializado”, entre servidor
(especialista) e servido (não especialista). O contato entre esses dois “mundos”
baseia-se em uma lógica arbitrária, ainda que legítima, pois o servido é apenas um
“cliente” da relação de serviço ou, às vezes, é apenas um mero “objeto” do servidor.

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