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Sara Lindberg Fontes

De que modo representam Lídia Jorge e Margarida Cardoso a memória


da Guerra – gerações diferentes, meios e modos de representação
diferentes e a necessidade de recordar o que se esqueceu.

Porquê falar na memória? Se o que dizem é verdade, que há inúmeras leituras


que se podem fazer a partir da leitura do romance “A Costa dos Murmúrios”, de Lídia
Jorge? Porque, “sem ela a nossa existência reduzir-se-ia aos momentos sucessivos de
um presente que transcorre sem cessar; não haveria mais passado... A nossa vida é tão
vã que não passa de um reflexo da nossa memória.” (Chateaubriand, in “Memórias de
Além- Túmulo”)
A memória é um dos maiores atributos do ser humano, é a capacidade de
adquirir, armazenar e recuperar informações. Ela protege o que aprendemos e resgata
esses conhecimentos quando são necessários. Sem ela não poderíamos formular
discursos e, sem eles, eu, ele ou o outro não existíamos enquanto indivíduos. Não nos
reconheceríamos porque as nossas faculdades condicionavam o acesso às referências,
aquilo que, por exemplo, nos faz relembrar quem somos à medida que o tempo corre. A
memória cria o discurso, o discurso o indivíduo, o indivíduo a diferença e a semelhança
e o tempo aliado a tudo isso cria uma História, senão múltiplas.
Se a História é feita de narrativas e discursos que a constroem, faz todo o sentido
pensar na forma como a ideia de Mundo se formou. Esta é uma tarefa difícil, pelo que
contém infinitas possibilidades de interpretação. Especialmente, porque nenhuma delas
é absoluta, falsa ou verdadeira, elas reflectem a existência de alguém que deixou a sua
marca neste planeta. Interessa-nos, sim, perceber como essa marca influenciou a nossa
existência, a História e a nossa visão de ambas.
O Mundo poderia dividir-se em duas partes: os ditos civilizados e os selvagens.
Os civilizados representam os países com grande poder económico e os selvagens, bem,
já todos sabemos que selvagem é associado à ausência de educação (entre outras
associações). Esta divisão resulta, em parte, do que foi escrito na Historiografia oficial
pois, se analisarmos do ponto de vista de quem a conta (civilizados ou os impérios),
percebemos que omitiram completamente a visão dos outros. Sendo assim, a marca que
prevaleceu no Mundo foi a “palavra” do mais forte. É exactamente neste ponto que a
função da memória entra em grande. Os outros que não tiveram lugar (foram
representados mas segundo a visão do mais forte) na Historiografia vêm reclamar o seu
espaço recorrendo à rememoração e, deste modo, surgem novas narrativas que
contrariam (ou adicionam ingredientes) às tradicionais. Quando menciono a
historiografia oficial refiro-me ao contexto colonial. Foi nesta fase de expansão dos
territórios que se tornou necessário formular discursos de modo a criar uma distinção
entre os impérios (civilizados) e os outros (selvagens). Essa distinção apenas serviu para
criar limites territoriais e afirmar a superioridade daquele que tem valores morais e
acredita no progresso versus o inculto, a quem se deve convencer da entrega da sua
terra. Não nos interessa contar a história das colónias mas, examinar cuidadosamente o
caso português a partir da perspectiva que Lídia Jorge nos oferece com o seu romance,
“A Costa dos Murmúrios” e a forma como essa é recebida e tem origem no filme de
Margarida Cardoso, com o mesmo título.
O romance de Lídia abre com um conto intitulado “Os Gafanhotos”, a acção
passa-se em torno da festa de casamento de Evita e Luís Alex. Trata-se de um relato
narrado na terceira pessoa, que não só coloca em segundo plano a guerra em cujo
contexto decorre o feliz acontecimento, como se mostra decididamente optimista,
mesmo quando faz referência a mortes sucessivas. O relato termina inesperadamente
com o suicídio do noivo. A segunda parte do romance opera uma completa deslocação
no tempo, no espaço e na voz narrativa, passando a Eva Lopo, que é a própria Evita mas
vinte anos depois, a assumir a narração. Numa tentativa de reconstituição do passado,
onde as suas lembranças são revividas e cujas vivências desenvolve minuciosamente e
as desconstrói com o seu olhar de mulher testemunha de particularidades da Guerra
Colonial.
O romance é biográfico do ponto de vista dos sentimentos da escritora, visto
que, ela viveu em Moçambique e conviveu com a realidade da Guerra do Ultramar. O
livro é uma espécie de rememoração ficcionada da História da Guerra, conta-nos a sua
perspectiva personificada na Evita que se torna Eva.
Ao colocar Eva diante de um “documento” convoca-lhe veracidade discursiva. O
que nele está descrito poderia ter acontecido a qualquer mulher portuguesa cujos
homens foram levados para a guerra. Evita parte de Portugal para casar com Luís Alex,
um jovem matemático tornado militar. Chegada a Moçambique percebe que o seu
namorado não só esqueceu quem era como recusa ser aquela pessoa por quem ela foi à
procura. Da mesma forma que Luís Alex esqueceu a sua essência, os seus valores, o
nosso país esqueceu ou fez por esquecer a sua presença na colónia. Eva Lopo conta-nos
como esse relato não corresponde exactamente à verdade, cada discurso histórico será
sempre um olhar, uma interpretação. A própria comenta: “Esse relato é encantador. Li-o
com cuidado e concluí que nele tudo é exacto e verdadeiro, sobretudo em matéria de
cheiro e de som (…) o que pretendeu clarificar clarifica, e o que pretendeu esconder
ficou imerso.” De facto, a harmonia sentida nesse relato é própria de sentimentos
festivos, mas se pensarmos que estamos num contexto de guerra, enquanto as mortes se
sucedem lá fora conseguimos ver a postura dos nossos compatriotas em terras
moçambicanas. Quem, na realidade, presenciou esses momentos percebe nas entrelinhas
desse relato o que se pretendeu esconder ou, pode servir como ”uma espécie de
lamparina de álcool que iluminou, durante esta tarde, um local que escurece de semana
a semana, dia a dia, à velocidade dos anos.” Eva ironiza, vinte anos depois, a forma
como a História é feita. Tal como o relato, a história é feitas de pequenas
correspondências tão exactas quanto o “cheiro da fruta” e o “som do mar”, não importa
se o que se conta é verdade ou não, “basta-nos uma correspondência pequenina,
modesta, que ilumine apenas um pouco da nossa treva”. Talvez seja essa treva que Eva
procurava iluminar ao questionar-se acerca da guerra, “lembrei-me de perguntar se era
assim, se afinal não havia confrontos reais, entre pessoas e pessoas, se não morria gente.
Se não havia afinal um massacre inútil”. Naquele tempo ninguém falava da guerra ou se
se falasse não era com seriedade. O nosso povo não estava em guerra mas, sim, na
guerra de uma missão civilizadora. Tal como Eva, os portugueses nunca
compreenderam o real motivo da permanência nas terras moçambicanas, a guerra fora
um tema quase proibido. Aliás, quem tinha legitimidade para a discutir eram os homens,
eles é que a faziam e participavam nela ao contrário das mulheres. A guerra delas era
outra, a gravidez, ficar em casa a cuidar da família, etc. É no momento em que Evita
fica sozinha que surge a vontade de compreender o que modificou Luís, o que viviam
dentro da colónia e fora dos campos de batalha não justificava essa mudança. Evita
procura a companhia de Helena, a submissa e humilhada mulher de Jaime Forza Leal, e
acaba por descobrir o lado negro de Luís testemunhado nas fotografias escondidas no
armário do General. Evita sente-se perdida, numa terra que não é a sua e aos poucos
ganha consciência acerca da violência de um tempo colonial à beira do fim. É a
representação máxima da queda de um Império, talvez seja por isso que o povo
português quis esquecer este acontecimento. Não assumimos as nossas
responsabilidades, esquecemo-nos de pensar porque submergimos num luto profundo
provocado pela perda de territórios. Eva Lopo representa assim, a construção da sua
história individual que nos conduz pelos caminhos de uma história portuguesa, de um
passado recente que se reconstitui a partir do passado da narradora.
Acredito que Lídia Jorge incorreu na viagem do tempo e das suas memórias para
iluminar as trevas de um povo que reprimiu as atrocidades cometidas em Moçambique.
É necessário relembrar mesmo que seja a partir de uma ficção que esquecer é o risco de
continuarmos a não saber quem somos, o que só pode gerar incapacidade de projectar o
futuro.
Tal como foi referido anteriormente, as memórias são o corpo do nosso ser, elas
atravessam os tempos para nos mostrar as sensações que tivemos de certos
acontecimentos. Cada indivíduo pode achar a sua correspondência na história, olhamos
para uma mesma coisa mas não sentimos o mesmo. Lídia Jorge mostrou-nos a sua
perspectiva através do olhar de Eva Lopo e Margarida Cardoso, realizadora do filme “A
Costa dos Murmúrios” adaptado do livro, mostra-nos o seu ponto de vista a partir do
romance da escritora.
Antes de mais, é necessário perceber que não se procura fazer uma apreciação da
adaptação do livro ao filme, pelo contrário, pretendemos demonstrar as motivações que
levaram à realização da longa-metragem. Até porque,

“Pela diferença de códigos e de linguagens, é difícil fazer corresponder um texto fílmico


a um texto literário, uma vez que este último tem recursos específicos que sugerem a imagem,
mas a elidem e no caso do romance de Lídia Jorge a dificuldade é acrescida: constrói-se um
tempo de memória em que a personagem, Evita, se distancia e aproxima de Eva Lopo, a
narradora responsável pela evocação e pela epígrafe em que "choviam esmeraldas voadoras",
metáfora enclausurada no texto escrito.” (Mário Jorge Torres in Público)

Margarida Cardoso e Lídia Jorge partilharam da mesma experiência, ambas


viveram em Moçambique durante a Guerra Colonial apesar da diferença de idades.
Margarida era uma criança e, como tal, viveu sob a tensão de que algo se passava mas
que lhe era escondido devido à sua tenra idade. Lídia era uma jovem que tinha
consciência dos acontecimentos, a violência da guerra fora sentida e presenciada (dentro
do possível). Esta diferença de gerações é algo fulcral para explicar o trabalho de
ambas.
O romance de Lídia Jorge possibilita inúmeras leituras e Margarida escolheu
mostrar ao público a leitura que melhor se identifica com a sua pessoa ou melhor
corresponde com as suas memórias. Margarida quis fazer do romance um filme pela
óbvia identificação com o tema, no entanto, ao contar exactamente a mesma história
mostra-nos como se brinca com a narração, tal como Eva Lopo brinca com o relato “Os
Gafanhotos”. Ao analisarmos a ordem narrativa de um e outro conseguimos ver que ela
não é respeitada. Estaríamos a saltar de página em página para achar a sua ordem e
chegar à conclusão que o que retira de um lado acrescenta noutro. É curioso como esses
fragmentos acabam por contar a mesma história mas, segundo o ponto de vista da
realizadora e permanecer fiel ao romance. Todos nós contamos versões diferentes de
uma mesma história, contudo, ela pode adquirir um tom cómico ou irónico e isso pode
não alterar o esqueleto da narrativa. No filme, o tom melancólico e a ambiência escura,
nublada revelam até que ponto Margarida pode contar acerca do que viu da Guerra
Colonial. O texto literário possui um carácter extremamente violento, próprio de quem
assistiu à violência da guerra. Uma das descrições dos crimes cometidos na guerra é
referida por Helena quando mostra as fotografias a Evita. Referindo-se ao enforcamento
de um negro, ela conta: “ Disse o Jaime que as calças dele escorregaram e que ejaculou
para cima do capim, em frente dos soldados portugueses!” No filme, tais cenas não têm
lugar. Observamos Evita perdida naquele espaço, procurando respostas, ora no hotel
Stella Maris ora em casa de Helena, na praia e ainda nos momentos com o jornalista.
Em suma, foi o desejo de recordar um passado recente por todos nós esquecido
que surgiu o romance de Lídia Jorge. A escritora deixou a sua marca num romance que
diz respeito a todos nós portugueses. Cada um tem a sua versão das atrocidades que
foram cometidas mas há que assumir as responsabilidades. Margarida Cardoso,
sensibilizada pelo romance e, talvez, pela necessidade de assumir responsabilidades
expõe a história daquela guerra para provar o quão inútil foi e são as guerras. Refiro-me
a guerras no plural, porque no filme não se faz qualquer referência à operação, local,
etc., dessa guerra permitindo ao público que tire as suas conclusões. A memória serve
para nos lembrarmos das coisas mas também serve para denunciar situações que se
querem esconder e, neste caso, lembra-nos que toda a guerra é inútil. Não interessa de
que forma nos contam quando se trata de uma situação deplorável como foi o caso de
Portugal nas Colónias.

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