De que modo representam Lídia Jorge e Margarida Cardoso a memória
da Guerra – gerações diferentes, meios e modos de representação diferentes e a necessidade de recordar o que se esqueceu.
Porquê falar na memória? Se o que dizem é verdade, que há inúmeras leituras
que se podem fazer a partir da leitura do romance “A Costa dos Murmúrios”, de Lídia Jorge? Porque, “sem ela a nossa existência reduzir-se-ia aos momentos sucessivos de um presente que transcorre sem cessar; não haveria mais passado... A nossa vida é tão vã que não passa de um reflexo da nossa memória.” (Chateaubriand, in “Memórias de Além- Túmulo”) A memória é um dos maiores atributos do ser humano, é a capacidade de adquirir, armazenar e recuperar informações. Ela protege o que aprendemos e resgata esses conhecimentos quando são necessários. Sem ela não poderíamos formular discursos e, sem eles, eu, ele ou o outro não existíamos enquanto indivíduos. Não nos reconheceríamos porque as nossas faculdades condicionavam o acesso às referências, aquilo que, por exemplo, nos faz relembrar quem somos à medida que o tempo corre. A memória cria o discurso, o discurso o indivíduo, o indivíduo a diferença e a semelhança e o tempo aliado a tudo isso cria uma História, senão múltiplas. Se a História é feita de narrativas e discursos que a constroem, faz todo o sentido pensar na forma como a ideia de Mundo se formou. Esta é uma tarefa difícil, pelo que contém infinitas possibilidades de interpretação. Especialmente, porque nenhuma delas é absoluta, falsa ou verdadeira, elas reflectem a existência de alguém que deixou a sua marca neste planeta. Interessa-nos, sim, perceber como essa marca influenciou a nossa existência, a História e a nossa visão de ambas. O Mundo poderia dividir-se em duas partes: os ditos civilizados e os selvagens. Os civilizados representam os países com grande poder económico e os selvagens, bem, já todos sabemos que selvagem é associado à ausência de educação (entre outras associações). Esta divisão resulta, em parte, do que foi escrito na Historiografia oficial pois, se analisarmos do ponto de vista de quem a conta (civilizados ou os impérios), percebemos que omitiram completamente a visão dos outros. Sendo assim, a marca que prevaleceu no Mundo foi a “palavra” do mais forte. É exactamente neste ponto que a função da memória entra em grande. Os outros que não tiveram lugar (foram representados mas segundo a visão do mais forte) na Historiografia vêm reclamar o seu espaço recorrendo à rememoração e, deste modo, surgem novas narrativas que contrariam (ou adicionam ingredientes) às tradicionais. Quando menciono a historiografia oficial refiro-me ao contexto colonial. Foi nesta fase de expansão dos territórios que se tornou necessário formular discursos de modo a criar uma distinção entre os impérios (civilizados) e os outros (selvagens). Essa distinção apenas serviu para criar limites territoriais e afirmar a superioridade daquele que tem valores morais e acredita no progresso versus o inculto, a quem se deve convencer da entrega da sua terra. Não nos interessa contar a história das colónias mas, examinar cuidadosamente o caso português a partir da perspectiva que Lídia Jorge nos oferece com o seu romance, “A Costa dos Murmúrios” e a forma como essa é recebida e tem origem no filme de Margarida Cardoso, com o mesmo título. O romance de Lídia abre com um conto intitulado “Os Gafanhotos”, a acção passa-se em torno da festa de casamento de Evita e Luís Alex. Trata-se de um relato narrado na terceira pessoa, que não só coloca em segundo plano a guerra em cujo contexto decorre o feliz acontecimento, como se mostra decididamente optimista, mesmo quando faz referência a mortes sucessivas. O relato termina inesperadamente com o suicídio do noivo. A segunda parte do romance opera uma completa deslocação no tempo, no espaço e na voz narrativa, passando a Eva Lopo, que é a própria Evita mas vinte anos depois, a assumir a narração. Numa tentativa de reconstituição do passado, onde as suas lembranças são revividas e cujas vivências desenvolve minuciosamente e as desconstrói com o seu olhar de mulher testemunha de particularidades da Guerra Colonial. O romance é biográfico do ponto de vista dos sentimentos da escritora, visto que, ela viveu em Moçambique e conviveu com a realidade da Guerra do Ultramar. O livro é uma espécie de rememoração ficcionada da História da Guerra, conta-nos a sua perspectiva personificada na Evita que se torna Eva. Ao colocar Eva diante de um “documento” convoca-lhe veracidade discursiva. O que nele está descrito poderia ter acontecido a qualquer mulher portuguesa cujos homens foram levados para a guerra. Evita parte de Portugal para casar com Luís Alex, um jovem matemático tornado militar. Chegada a Moçambique percebe que o seu namorado não só esqueceu quem era como recusa ser aquela pessoa por quem ela foi à procura. Da mesma forma que Luís Alex esqueceu a sua essência, os seus valores, o nosso país esqueceu ou fez por esquecer a sua presença na colónia. Eva Lopo conta-nos como esse relato não corresponde exactamente à verdade, cada discurso histórico será sempre um olhar, uma interpretação. A própria comenta: “Esse relato é encantador. Li-o com cuidado e concluí que nele tudo é exacto e verdadeiro, sobretudo em matéria de cheiro e de som (…) o que pretendeu clarificar clarifica, e o que pretendeu esconder ficou imerso.” De facto, a harmonia sentida nesse relato é própria de sentimentos festivos, mas se pensarmos que estamos num contexto de guerra, enquanto as mortes se sucedem lá fora conseguimos ver a postura dos nossos compatriotas em terras moçambicanas. Quem, na realidade, presenciou esses momentos percebe nas entrelinhas desse relato o que se pretendeu esconder ou, pode servir como ”uma espécie de lamparina de álcool que iluminou, durante esta tarde, um local que escurece de semana a semana, dia a dia, à velocidade dos anos.” Eva ironiza, vinte anos depois, a forma como a História é feita. Tal como o relato, a história é feitas de pequenas correspondências tão exactas quanto o “cheiro da fruta” e o “som do mar”, não importa se o que se conta é verdade ou não, “basta-nos uma correspondência pequenina, modesta, que ilumine apenas um pouco da nossa treva”. Talvez seja essa treva que Eva procurava iluminar ao questionar-se acerca da guerra, “lembrei-me de perguntar se era assim, se afinal não havia confrontos reais, entre pessoas e pessoas, se não morria gente. Se não havia afinal um massacre inútil”. Naquele tempo ninguém falava da guerra ou se se falasse não era com seriedade. O nosso povo não estava em guerra mas, sim, na guerra de uma missão civilizadora. Tal como Eva, os portugueses nunca compreenderam o real motivo da permanência nas terras moçambicanas, a guerra fora um tema quase proibido. Aliás, quem tinha legitimidade para a discutir eram os homens, eles é que a faziam e participavam nela ao contrário das mulheres. A guerra delas era outra, a gravidez, ficar em casa a cuidar da família, etc. É no momento em que Evita fica sozinha que surge a vontade de compreender o que modificou Luís, o que viviam dentro da colónia e fora dos campos de batalha não justificava essa mudança. Evita procura a companhia de Helena, a submissa e humilhada mulher de Jaime Forza Leal, e acaba por descobrir o lado negro de Luís testemunhado nas fotografias escondidas no armário do General. Evita sente-se perdida, numa terra que não é a sua e aos poucos ganha consciência acerca da violência de um tempo colonial à beira do fim. É a representação máxima da queda de um Império, talvez seja por isso que o povo português quis esquecer este acontecimento. Não assumimos as nossas responsabilidades, esquecemo-nos de pensar porque submergimos num luto profundo provocado pela perda de territórios. Eva Lopo representa assim, a construção da sua história individual que nos conduz pelos caminhos de uma história portuguesa, de um passado recente que se reconstitui a partir do passado da narradora. Acredito que Lídia Jorge incorreu na viagem do tempo e das suas memórias para iluminar as trevas de um povo que reprimiu as atrocidades cometidas em Moçambique. É necessário relembrar mesmo que seja a partir de uma ficção que esquecer é o risco de continuarmos a não saber quem somos, o que só pode gerar incapacidade de projectar o futuro. Tal como foi referido anteriormente, as memórias são o corpo do nosso ser, elas atravessam os tempos para nos mostrar as sensações que tivemos de certos acontecimentos. Cada indivíduo pode achar a sua correspondência na história, olhamos para uma mesma coisa mas não sentimos o mesmo. Lídia Jorge mostrou-nos a sua perspectiva através do olhar de Eva Lopo e Margarida Cardoso, realizadora do filme “A Costa dos Murmúrios” adaptado do livro, mostra-nos o seu ponto de vista a partir do romance da escritora. Antes de mais, é necessário perceber que não se procura fazer uma apreciação da adaptação do livro ao filme, pelo contrário, pretendemos demonstrar as motivações que levaram à realização da longa-metragem. Até porque,
“Pela diferença de códigos e de linguagens, é difícil fazer corresponder um texto fílmico
a um texto literário, uma vez que este último tem recursos específicos que sugerem a imagem, mas a elidem e no caso do romance de Lídia Jorge a dificuldade é acrescida: constrói-se um tempo de memória em que a personagem, Evita, se distancia e aproxima de Eva Lopo, a narradora responsável pela evocação e pela epígrafe em que "choviam esmeraldas voadoras", metáfora enclausurada no texto escrito.” (Mário Jorge Torres in Público)
Margarida Cardoso e Lídia Jorge partilharam da mesma experiência, ambas
viveram em Moçambique durante a Guerra Colonial apesar da diferença de idades. Margarida era uma criança e, como tal, viveu sob a tensão de que algo se passava mas que lhe era escondido devido à sua tenra idade. Lídia era uma jovem que tinha consciência dos acontecimentos, a violência da guerra fora sentida e presenciada (dentro do possível). Esta diferença de gerações é algo fulcral para explicar o trabalho de ambas. O romance de Lídia Jorge possibilita inúmeras leituras e Margarida escolheu mostrar ao público a leitura que melhor se identifica com a sua pessoa ou melhor corresponde com as suas memórias. Margarida quis fazer do romance um filme pela óbvia identificação com o tema, no entanto, ao contar exactamente a mesma história mostra-nos como se brinca com a narração, tal como Eva Lopo brinca com o relato “Os Gafanhotos”. Ao analisarmos a ordem narrativa de um e outro conseguimos ver que ela não é respeitada. Estaríamos a saltar de página em página para achar a sua ordem e chegar à conclusão que o que retira de um lado acrescenta noutro. É curioso como esses fragmentos acabam por contar a mesma história mas, segundo o ponto de vista da realizadora e permanecer fiel ao romance. Todos nós contamos versões diferentes de uma mesma história, contudo, ela pode adquirir um tom cómico ou irónico e isso pode não alterar o esqueleto da narrativa. No filme, o tom melancólico e a ambiência escura, nublada revelam até que ponto Margarida pode contar acerca do que viu da Guerra Colonial. O texto literário possui um carácter extremamente violento, próprio de quem assistiu à violência da guerra. Uma das descrições dos crimes cometidos na guerra é referida por Helena quando mostra as fotografias a Evita. Referindo-se ao enforcamento de um negro, ela conta: “ Disse o Jaime que as calças dele escorregaram e que ejaculou para cima do capim, em frente dos soldados portugueses!” No filme, tais cenas não têm lugar. Observamos Evita perdida naquele espaço, procurando respostas, ora no hotel Stella Maris ora em casa de Helena, na praia e ainda nos momentos com o jornalista. Em suma, foi o desejo de recordar um passado recente por todos nós esquecido que surgiu o romance de Lídia Jorge. A escritora deixou a sua marca num romance que diz respeito a todos nós portugueses. Cada um tem a sua versão das atrocidades que foram cometidas mas há que assumir as responsabilidades. Margarida Cardoso, sensibilizada pelo romance e, talvez, pela necessidade de assumir responsabilidades expõe a história daquela guerra para provar o quão inútil foi e são as guerras. Refiro-me a guerras no plural, porque no filme não se faz qualquer referência à operação, local, etc., dessa guerra permitindo ao público que tire as suas conclusões. A memória serve para nos lembrarmos das coisas mas também serve para denunciar situações que se querem esconder e, neste caso, lembra-nos que toda a guerra é inútil. Não interessa de que forma nos contam quando se trata de uma situação deplorável como foi o caso de Portugal nas Colónias.